Texto 02 Michel Conan

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Tradução: Vladimir Bartalini, para uso exclusivo da disciplina AUP 5810 Paisagismo, do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1 o semestre de 2012. 1 MICHEL CONAN A invenção das identidades perdidas

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Tradução: Vladimir Bartalini, para uso exclusivo da disciplina AUP 5810 – Paisagismo, do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1o semestre de 2012.

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MICHEL CONAN

A invenção das identidades perdidas

Tradução: Vladimir Bartalini, para uso exclusivo da disciplina AUP 5810 – Paisagismo, do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1o semestre de 2012.

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Da desaprovação dos portos em águas profundas à desaprovação dos pousos

de helicópteros em geleiras, por toda parte elevam-se vozes exigindo que o

planejamento do território, que a construção de qualquer tipo de edifício e que

a utilização da natureza sejam mais respeitosos com a paisagem. Uma

exigência social vaga e polissêmica, mas insistente, é dirigida aos políticos, aos

planejadores e aos usuários do território para que eles assegurem a todos a

fruição de um novo bem público, a paisagem. Exige-se que o patrimônio

fundador da existência de uma sociedade que vive em harmonia com o mundo

seja preservado.

Existem várias tradições culturais que oferecem referências a partir das quais

pode-se tentar compreender o objeto visado por esta exigência. Os paisagistas

e certos arquitetos sabem compor paisagens em harmonia com um castelo,

organizar um parque de lazer ou uma reserva natural. Mas parece que as

questões que surgem no presente correspondem a situações sociais novas e

apelam por novas maneiras de pensar as paisagens. De fato, as ideias a

respeito das paisagens, como as ideias a respeito da história e da tradição,

evoluem com o tempo.

As sociedades que nos precederam forjaram suas ideias a respeito da maneira

de apreciar ou de criar paisagens. Mas a história não para. As transformações

das sociedades levam a uma renovação constante das mentalidades, das

relações sociais, das formas da economia e da dominação da natureza pelas

organizações humanas. Assim também, as sociedades contemporâneas estão

em busca de novas ideias sobre a apreciação e a criação das paisagens.

Como elas procedem? Como se pode compreender as condições de produção

das ideias sobre a paisagem em uma sociedade? A quais aspectos da

organização social é preciso estar atento e como as ideias antigas sobre a

paisagem são recusadas, transformadas ou reutilizadas? Seria preciso

responder a estas questões para poder lidar com a redefinição do papel do

paisagista, para saber como ele poderá superar as limitações que fazem pesar

sobre ele as determinações de sua posição social e as pulsões do seu

inconsciente.

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Todo nosso esforço se volta à apresentação de uma forma nova de

reflexividade1 na conduta do pensamento do paisagista. Esta reflexividade

consiste, muito simplesmente, em permitir-lhe, em cada situação concreta em

que é colocado pelo seu trabalho, reexaminar suas ideias sobre a paisagem à

luz de uma análise das condições de produção de ideias sobre a paisagem e

sobre a organização do espaço.

Método:

Compreender os ritos sociais

Para compreender o que estas novas exigências relativas à paisagem põem

em jogo na sociedade, não se partirá de uma definição a priori de paisagem,

mas, muito prosaicamente, de uma análise do que é comum a todas as

situações em que as paisagens são invocadas em uma dada sociedade. Isto

conduz ao interesse pelos ritos sociais contemporâneos. Certos ritos sociais

criam significações partilhadas, objetivos comuns, identificações e morais

coletivas, mas também conflitos entre grupos portadores de representações e

de objetivos diferentes. Alguns dentre eles têm a ver com a paisagem. É

preciso conhecê-los e analisá-los para compreender as condições para a

invenção coletiva de novas paisagens nos dias de hoje.

Esta pesquisa se abre para nós. Ela requer observações precisas e exaustivas

antes que teorias simples e operatórias possam ser apropriadas pelos

paisagistas e lhes permitam contribuir, com uma relativa clarividência, para o

processo de construção das paisagens contemporâneas. Esbocemos as

grandes linhas de trabalho que estão surgindo.

1 A reflexividade é um procedimento metodológico utilizado em ciências humanas, em que o pesquisador submete seu próprio trabalho a uma análise crítica. Ver, por exemplo, BOURDIEU, Pierre, S c i e n c e d e l a s c i e n c e e t r é f l e x i v i t é , 2001 (N.T.).

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Os ritos de apropriação de um território:

produções e lazeres

Os grupos sociais que se manifestam em relação à paisagem são muito

diversos. Eles o fazem, geralmente, para defender um território contra uma

transformação. Eles se reagrupam segundo as relações de propriedade que

mantêm com este território. Entende-se aqui por relação de propriedade os

ritos de interação provenientes de um direito ou de um costume. O direito de

passagem ou de caça, o hábito de tirar fotos, a exploração econômica de uma

terra por um fazendeiro, são exemplos de relações de propriedade que podem

se aplicar a um mesmo território, mesmo se diferem do direito civil de

propriedade da terra. A apropriação do território designa o conjunto das

condutas pelas quais as pessoas realizam estas relações de propriedade. O

seu reconhecimento é extremamente importante e nos leva a precisar porque a

paisagem não pode ser confundida nem com o país, nem com o lugar, nem

com o espaço geográfico no sentido em que é entendido nas classificações

habituais.

Para compreender estas distinções é necessário reconhecer as diferentes

utilidades de um território. De fato, se se considera o território em que um

grupo de pessoas exerce uma particular relação de propriedade – uma família

de fazendeiros sobre as suas terras, ou os membros de uma sociedade de

caça sobre o seu domínio –, pode-se observar ali ritos de propriedade que

concorrem para a sua utilidade social. O exercício da propriedade do território

faz parte da atividade econômica. Mas, se certos modos de uso de um território

contribuem para a sua utilidade econômica, outros, como a observação

sistemática, a análise de amostras de água, de terra, ou de rocha, contribuem

para a sua utilidade científica; outros ainda, como cartazes eleitorais ou rotas

alfandegárias, contribuem para a sua utilidade política. É evidente que estas

utilidades não são mutuamente excludentes. Elas resultam dos sistemas de

interesses que a organização social produz. De fato, são estes interesses que

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definem as unidades de medida das utilidades. Mas há outras relações de

propriedade provenientes de modos de uso do território para utilidades cujo

valor é inquestionável. São os ritos de lazer no sentido mais amplo do termo.

Eles correspondem a formas de propriedade que repousam sobre ideias de

natureza estranhas à concepção dominante na produção econômica. Assim,

passear em família, fruir esteticamente o espetáculo na natureza, nela meditar

ou devanear, são outros modos de se apropriar de um território. Percebe-se

logo a multiplicidade das formas de leitura de um território que são praticadas

nestas ocasiões, a partir de sistemas de decodificação tão diferentes como as

ciências da natureza, a história social, a geografia, as artes e as letras, as

tradições locais e o folclore, em suma, a partir de um conjunto de celebrações

culturais.

País, lugar, paisagens e espaços

A teoria dos ritos de interação desenvolvida por Randal Collins a partir,

notadamente, dos trabalhos de Emile Durkheim e de Erwin Goffmann fornece

um primeiro quadro de análise. De fato, cada um destes ritos produz

sentimentos, símbolos e ideais comuns, partilhados pelos membros do grupo

que os pratica, sob três condições, a saber: 1) que eles gerem interações com

a participação de todos os membros do grupo, conjunto ou sub-grupo; 2) que

eles obedeçam a modelos que especificam práticas e palavras; 3) que os

grupos disponham de, ao menos, um objeto simbólico, um emblema que

encarne a ideia do grupo. Assim, cada grupo que exerce uma relação de

propriedade sobre um território é suscetível de fazer do próprio território seu

emblema. Se estas três condições são preenchidas, sentimentos, ideais e

símbolos específicos do grupo são produzidos segundo os rituais que lhe são

próprios. Assim, por exemplo, o valor emblemático de um território é diferente

conforme a relação de propriedade contribua para uma utilidade social ou para

o lazer. No primeiro caso, trata-se de um país para o grupo que faz uso de sua

propriedade para fins de produção econômica; no segundo caso, trata-se de

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um lugar para o grupo que faz uso de sua propriedade para fins mais ou menos

explícitos de celebração cultural.

Porém, certos ritos de celebração cultural obedecem a modelos que

especificam apenas o modo de uso do território – o piquenique em família, por

exemplo –, ao passo que outros, aos quais se reservará o nome de paisagem,

especificam, ademais, uma maneira de pensar e de manifestar aquilo que faz a

singularidade da experiência do lugar, por exemplo: tirar uma fotografia da

Ponta do Raz2 porque é um belo suvenir; ou comparar a floresta de Laon, na

Drôme (uma típica configuração de sinclinal em falésia), com a arca de Noé,

para exaltar seu valor de refúgio e o sentimento de liberdade que ela

proporciona ao se passear por ela. No primeiro caso, o fotógrafo testemunha,

querendo ou não, uma certa concepção histórica de beleza, no segundo, o

espectador joga, deliberadamente, com associações culturais entre o mito e a

geografia.

Assim, um mesmo território, segundo os grupos que fazem uso dele, pode ser

ao mesmo tempo país, lugar e paisagem, ou não ser nada disto. Pode-se, por

exemplo, conhecer um território e designá-lo em um mapa, ou nas ações

cotidianas, por uma categoria abstrata, como riacho, cumeeira, talvegue, sem

que ele seja o objeto de uma apropriação por um grupo preciso. Cada um

destes espaços pode ser nomeado, designado, organizado; mas ele não se

tornará país, lugar ou paisagem a não ser pelo valor simbólico que lhe

conferem os ritos de propriedade efetuados pelos membros de um grupo

social.

Hipótese fundamental

A paisagem é um símbolo do grupo que se torna coeso ao apropriar-se,

mediante formas de experiência ritualizadas, de um lugar que lhe assinala uma

2 Pointe du Raz, promontório que avança sobre o mar, na região da Bretanha, França (N.T.).

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só em relação aos ritos de propriedade - e a relação cultural????

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identidade esquemática, e o valor que lhe é atribuído é um símbolo dos ideais

coletivos do grupo. Por sua materialidade, pelo valor de representação e pelo

sentido que lhe é adicionado, ele constitui um emblema do grupo. De fato, a

paisagem, enquanto emblema, representa o grupo e o modo psicológico sob o

qual ele adquire coesão no ritual. Este modo psicológico pode ser a meditação

religiosa (Cf. Emerson e os transcendentalistas americanos), a apropriação

estética (Cf. Gilpin e os turistas contemporâneos), a exploração científica (Cf.

Young e os geógrafos a partir do século XIX), a observação ecológica (Cf. John

Muir,  Aldo  Leopold  e  os  “Deep  Ecologists”  contemporâneos).  Nada  impede  que  

outros modos psicológicos sejam inventados pelas sociedades. Eles têm em

comum fornecer uma esquematização de uma fração de mundo que confere

uma unidade estrutural à sua representação. Graças ao seu valor esquemático,

a paisagem representa, pela aparente imobilidade da matéria, a permanência

do grupo, a despeito da efemeridade de seus membros. A prática da

experiência ritual da paisagem suscita, assim, um simbolismo coletivo.

Como se manifesta o simbolismo coletivo da paisagem?

Antes de mais nada, os membros do grupo compreendem que o valor que eles

conferem à paisagem é materializado, ao mesmo tempo, no mundo externo a

eles e neles mesmos. Aquele que experimenta o valor de uma paisagem prova

que ela é também depositária de uma parte deste valor. Se, como os discípulos

de Emerson, ele é tocado pela transcendência da paisagem, ele se dá conta de

que há uma alma que constitui uma parcela da transcendência que lhe permite

comunicar-se com a transcendência que a paisagem encarna. Se, como os

admiradores da escola de Barbizon, ele é tocado pela beleza da paisagem, ele

se dá conta de que dispõe de uma faculdade estética que lhe permite

reconhecer, melhor que outros homens, esta beleza, e que esta faculdade

adorna seu espírito, torna-o  belo.  Se,  como  os  “Deep  Ecologists”  americanos,  

ele é tocado pela harmonia primitiva de um biótipo, ele reconhece um instinto

que desperta nele a lembrança do mundo antes do homem. Por outro lado, se,

fora dos rituais de apreciação da paisagem, a convivência gera conflitos ou

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contradições no grupo social, isto acaba refletido na paisagem. Pelo contrário,

se os grupos só existem por ocasião dos rituais de apreciação da paisagem,

porque seus membros não vivenciam em conjunto outros ritos de interação, a

paisagem simboliza a harmonia.

A paisagem pode então dar lugar a simbolismos coletivos muito diferentes

entre si, mas cada um contribui para a orientação das práticas dos membros do

grupo de diversas maneiras:

a. O reconhecimento do valor da paisagem dita uma moral da organização:

há atos que são moralmente recomendáveis porque vão a favor da paisagem,

outros que  são  moralmente  condenáveis  porque  “desfiguram,  destroem,  matam  

a   paisagem”.   Esta   moral   da   organização   prescreve   certas   ações   e   interdita  

outras.

O respeito a esta moral testemunha, aos olhos dos membros do grupo, sua

cultura, ou sua sensibilidade, ou sua humanidade. Ele assegura, a cada um

dos membros do grupo, o respeito social por parte dos outros membros do

grupo e a garantia de fazer parte do grupo. Ao contrário, a recusa a se

conformar à moral da organização, ou aos diferentes rituais da experiência da

paisagem, expõe cada membro a reprovações, sanções e, finalmente, à

exclusão do grupo. Cada um é então induzido a respeitar a moral do grupo

social ao qual pertence. Assim, uma vez que sobre um mesmo território

existem diversos grupos que aderem a diferentes morais de organização, os

conflitos entre eles são conflitos entre sistemas morais, bem como conflitos de

uso ou de direito de propriedade.

b. As situações de experiência coletiva, em acordo com o ritual da

paisagem, suscitam um engajamento afetivo intenso das pessoas que delas

participam. Isto as torna capazes de se mobilizar de modo profundamente

altruísta em prol das visões coletivas do grupo (a exaltação do valor da

paisagem), mas também enfraquece sua capacidade de reflexão crítica.

Quando uma pessoa simboliza o grupo, ela detém toda a potência do grupo e

canaliza a energia afetiva dos seus membros para a direção que ela propõe. O

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líder carismático é criado pelo grupo que ele dirige, e ele dispõe de um poder

de orientação das ações do grupo controlando a moral que funda sua

autoridade. Ele é então levado a justificar permanentemente sua ação pela

exaltação da moral do grupo. Os membros do grupo obtêm da ação coletiva um

benefício evidente: eles se sentem mais fortes e mais úteis do que se

estivessem isolados. Isto os encoraja a se fundir na identidade coletiva do

grupo (eventualmente isto pode conduzir à interiorização da figura do chefe

carismático).

A produção das paisagens

Historicamente, de Teócrito à escola de Barbizon, a invenção de uma nova

paisagem parece ser produzida por um grupo social que, embora privilegiado,

está também submetido a constrições sociais novas das quais ele não pode se

esquivar. Em um passado distante, foram os cortesãos, depois, no século

XVIII, cidadãos ou nobres em luta contra o poder real, e, no século XIX,

burgueses urbanos em conflito com a aristocracia fundiária ou com o

proletariado industrial. Cada um destes grupos se reconheceu em um país

mítico onde as contradições por eles vividas eram abolidas ou onde os

habitantes gozavam dos mesmos prazeres que eles: a Arcádia, o país bíblico,

os campos romanos, depois, as províncias remotas da Escócia, da região dos

lagos na Inglaterra, de Dalarna, na Suécia, ou da fronteira do far-west nos

Estados Unidos. As terras povoadas de selvagens, como se dizia, passaram a

fazer sucesso desde Cristóvão Colombo, assim como todos os países julgados

exóticos pelos habitantes da Europa e da América do Norte. Artistas deram

corpo a esses sonhos, criando representações que permitiram o

estabelecimento de rituais de apreciação da paisagem.

Então, a partir do século XVIII, configuraram-se rituais de apreciação estética

da própria natureza, seguindo um processo de artialização do olhar que

permitiu, por sua vez, uma artialização da natureza in situ para aperfeiçoá-la

enquanto paisagem, como mostrou A. Roger. A invenção do turismo no século

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XVIII tornou possível outras formas de apreciação da paisagem. Os circuitos

dos santuários naturais no leste dos Estados Unidos, no século XIX, ou ainda

as   peregrinações   nacionalistas   dos   anos   1930,   na   época   do   “See   America  

First”,  são  alguns  exemplos.  

Do mesmo modo, de Audubon a Aldo Leopoldi, as ciências da natureza

forneceram matéria para outras leituras da paisagem. Hoje, a arqueologia

fornece novas chaves, tanto em Lejur, na Dinamarca, como em Samobriva, na

França. Parece que a esquematização reflexiva da natureza depende cada vez

menos de uma representação artística, e cada vez mais de modelos materiais,

de inspiração científica, cujo valor mítico não é menor do que o da pintura de

Poussin (ele foi admirado em seu tempo pelo conhecimento da história antiga,

o que dava verossimilhança [conveniência] às suas paisagens).

Parece então evidente que a história da paisagem só pode ser compreendida

como um capítulo da história das sociedades, consagrada ao exame das

transformações das relações de domínio sobre a natureza, da evolução das

ideias e da formação dos rituais.

Os efeitos sociais destas invenções da paisagem são extremamente variáveis.

De fato, elas podem simbolizar sonhos nostálgicos, fugas românticas para fora

da sociedade, visões utópicas de transformação, ou ainda a exaltação de uma

natureza a construir, ou de uma raça a purificar. A partir do fim do século XVIII,

a paisagem esteve ligada à ideia de nação. Mas o próprio simbolismo

nacionalista é aberto a significações diferentes: na Suécia, no fim do século

XIX, ele tinha por finalidade reunir as províncias e unificar o país sob a égide da

burguesia. Na Alemanha, sob o terceiro Reich, ele visava a exclusão dos

estrangeiros e a purificação da raça, sob a égide do estado nazista. Nestes

dois casos, este simbolismo, longe de ser um sonho nostálgico, foi instrumento

de uma dominação social. É um convite a não se engajar muito ingenuamente

na apologia de não importa qual concepção de paisagem.

A paisagem é uma invenção urbana?

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Entre todos os grupos de pessoas que frequentam a floresta de Fontainebleau,

ou a vereda dos Douaniers, perto de Paimpol, é fácil verificar que muito poucos

descobrem, ali, paisagens: sua evocação de uma visita ao local se esgota com

a descrição de práticas que eles efetuaram ou de observações que puderam

fazer. Faltam-lhes as palavras, os gestos e as práticas para re-situar estas

práticas ou experiências em relação a um esquema de apreensão do lugar

onde elas se desenvolveram, que designem este lugar como uma entidade

composta por características cuja complexidade possa ser evocada ou

partilhada. São citadinos que evocam os percursos dos rochedos na floresta de

Fontainebleau como metonímias da alta montanha, ou os sub-bosques por

onde passeiam como pinturas da escola da Barbizon. São também citadinos

que contemplam as costas de granito rosa da Bretanha com os olhos voltados

ao pitoresco.

A história européia faz emergir analogias perturbadoras. Como os pintores que

iam à floresta de Fontainebleau no século XIX, estes citadinos vão hoje a estes

lugares para retomar forças, para se distanciar dos conflitos que a existência

na cidade lhes impõe. A fuga da cidade conduz à procura de lugares investidos

de um valor de natureza. Horácio elogiava os méritos do campo, queixando-se

de uma condição de citadino que ele não queria abandonar. Boileau fez o

mesmo, bem como, depois deles, todos os citadinos atingidos por projetos de

reconfiguração do território, numa ação solidária de um grupo contra o

responsável por algum prejuízo a um emblema do grupo. O próprio

responsável costuma avaliar mal o alcance simbólico do prejuízo que causou.

De fato, se é o respeito ao ritual que dá distinção à multidão de pessoas

solidárias de um grupo, o não respeito denuncia o estrangeiro e significa uma

ameaça à identidade do grupo. Isto suscita, então, uma resposta que não é

proporcional aos atos, mas ao sentido que o grupo solidário lhe atribui. Ora, à

medida em que um ritual conduz um grupo a definir seus ideais e a distinguir

entre os atos a favor e os opostos a estes ideais, tal grupo é investido,

necessariamente, de uma moral particular, colocando-se em conflito com os

estrangeiros em nome da cólera moral.

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Vê-se, então, que a compreensão de uma situação conflituosa associada à

transformação do uso da terra pede um exame sistemático das relações de

propriedade exercidas sobre o território. É preciso saber, em cada caso, qual é

o grupo de pessoas a que o território diz respeito, em que consistem os ritos de

interação entre estas pessoas, quais são os emblemas do grupo e de que

modo eles lhe são fornecidos pelo próprio território, que sentimentos estes

emblemas inspiram, à expressão de que ideais eles estão vinculados, como

estes ideais definem uma moral do grupo e, em particular, uma moral do uso

da terra. Além disso, cada conflito local suscitado pela reconfiguração de uma

paisagem pode produzir uma reverberação nacional, ou até mais ampla. Mais

ainda, para situar os conflitos no campo das relações sociais a eles

concernentes, é preciso, por um lado, avaliar se eles se opõem a outras morais

coletivas e, por outro, quais são os principais grupos da sociedade suscetíveis

de se reunir em torno de emblemas comuns.

Este inventário permitirá ao menos descobrir, por trás dos conflitos de interesse

mais manifestos, os conflitos de identidade, com enfrentamentos de ordem

moral que podem deslocar as questões atinentes aos conflitos de interesse

específicos, e tornar derrisórios os esforços para chegar a um compromisso por

meio de cálculos racionais baseados só na consideração dos interesses em

jogo.

Derivas identitárias e relações de força

Não se deve confundir organização do espaço com organização da paisagem.

Os conflitos atuais, ligados a inúmeras intervenções na organização do espaço,

desde a interrupção de um caminho de passeio para a instalação de um campo

de golfe, até a passagem de uma auto-estrada em uma zona protegida,

revelam dois tipos de lógica. Uma está enraizada no campo das instituições e

das práticas de poder, garantindo-lhes o exercício e, frequentemente, a

legitimidade. Ela é exercida por atores que intervêm pontualmente sobre o

território, no mais das vezes em nome de uma racionalidade técnica. A outra

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está enraizada no campo das identidades coletivas; ela é exercida por atores

que intervêm ritualmente sobre o território e que são às vezes suscetíveis de

mobilizar solidariedades nacionais muito amplas, as quais lhes conferem um

contra-poder face às instituições por um apelo à conservação ou à reconquista

do país, do lugar, ou da paisagem.

Estes conflitos existem há muito tempo, mas parece que adquiriram uma

importância nova devido às populações urbanas investirem o território com

práticas rituais de lazer, em busca de lugares onde viver protegidas das

constrições associadas às mudanças sociais ou técnicas que elas sofrem nas

cidades. Assim, criam-se novas identidades locais em aliança mais ou menos

estável com as identidades locais existentes, até mesmo dominantes ou

hegemônicas,   como   em   certos   “parques   naturais”.  Mas   elas   são   capazes   de  

mobilizar a atenção pública. Cada conflito que suscita tal debate contribui para

a emergência e para o reforço destas identidades coletivas. Assim, as

intervenções no uso do solo em nome de uma reorganização econômica

contribuem, muito involuntariamente, para o desenvolvimento de identidades

locais promovedoras de uma moral anti-técnica. A racionalidade técnica se

volta contra ela mesma no inconsciente profundo de seus promotores.

Todas as situações suscitadas por estes conflitos parecem ser singulares,

irredutíveis a um modelo ou a alguma tipologia. Mas elas têm traços comuns

aos quais se deve estar atento, pois estes conflitos constroem uma história, um

servindo de referência ao outro. Tomemos três deles: o refluxo da confiança no

progresso técnico; a exigência de consulta aos cidadãos; a dominação

paradoxal da área rural pelos citadinos em nome de esquemas culturais anti-

urbanos.

Cada um deles põe em causa formas de poder existentes, o que obriga o

observador que quer compreender estes conflitos a ampliar sua atenção bem

além do território limitado no qual eles se desenrolam. A metade do século XX

viu os domínios técnicos se beneficiarem da confiança maciça dos cidadãos.

Esta confiança foi abalada. Isto tem consequências importantes: os aparelhos

econômicos que fundavam sua legitimidade sobre a racionalidade técnica

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vêem suas margens de manobra se modificar mas, de modo talvez mais

importante, estão em vias de transformação as formas de penetração da

consciência política pelas técnicas. Portanto, são as ideologias tecnicistas e a

capacidade dos aparelhos técnicos de impor decisões que estão em vias de

transformação.

A vontade das associações, dos habitantes novos ou velhos, dos grupos

afetados de um modo ou de outro por qualquer intervenção no uso do solo, de

se fazer ouvir e compreender é cada vez mais manifesta. Mas não se pode

parar por aí: há também instituições de todos os tipos que exigem ser

escutadas. Em um país onde as instituições públicas e civis permitem que

centenas de milhares de pessoas representem seus concidadãos, há um déficit

de atenção para os pontos de vista expressos. Evidentemente, a transformação

destas vozes, que hoje clamam no deserto, em diálogos concertados, pode

modificar profundamente as formas de exercício do poder.

Enfim, talvez de modo ainda mais geral que seus predecessores, são inúmeros

os citadinos contemporâneos que opõem, em suas mentes, a cidade e a

natureza. Estudando de modo sistemático certas representações pelas quais

esta oposição passa, foi possível descobrir que ela é muito compartilhada. Há

apenas uma pequena fração dos citadinos que escapam totalmente da

oposição entre a cidade, fonte do mal, e a natureza, fonte do bem. Mas não há

uma cultura ou uma ideologia comum a todos os demais. Ao contrário, as

representações da oposição entre a natureza e a cidade são extremamente

variáveis. Contudo, a maior parte delas parece exprimir uma busca de proteção

psicológica face à fragmentação das identidades que a cidade impõe,

percebida como símbolo do poder da sociedade sobre homens e mulheres. O

apelo à natureza parece então exprimir a esperança de que, afastando-se da

cidade, pode-se encontrar uma verdadeira identidade, uma autenticidade

perdida. Isto talvez esclareça um aspecto das relações, muitas vezes difíceis,

entre citadinos e pessoas do campo. Estas importam sem cessar signos

urbanos do progresso, perturbando profundamente as aspirações defensivas

dos citadinos. Estes últimos se apóiam então em textos da lei e em práticas

administrativas de uso do solo, que são concebidos por pessoas urbanas, que

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Tradução: Vladimir Bartalini, para uso exclusivo da disciplina AUP 5810 – Paisagismo, do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1o semestre de 2012.

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são majoritárias e fortemente impregnadas por suas representações, levando à

clivagem entre cidade e natureza. Ora, agindo assim, os citadinos, como

demonstrou brilhantemente Michel Marie, investem na área rural para

reencontrar uma identidade comum fundada simbolicamente em um território;

eles provocam conflitos de identidade com os habitantes e usuários tradicionais

destes lugares, destruindo assim o sonho que eles acreditaram poder viver.

Pelo fato da proteção da paisagem ter por finalidade impedir modificações no

território julgadas inaceitáveis pelos citadinos que ali vão procurar uma nova

identidade, é preciso dar toda a atenção aos efeitos de dominação ideológica

que a escolha dos esquemas da paisagem pode acarretar.

Não se pode deixar de observar que um dos efeitos desta nova forma de

conflito em nossas sociedades contribui para o reforço das identidades

construídas por pequenos grupos unidos por uma relação de propriedade. Há,

assim, uma proliferação e uma fragmentação das identidades locais. Não é o

menor dos paradoxos os citadinos virem a um território em nome do retorno ao

chão natal e contribuírem para a explosão da identidade local. Portanto, não

são somente os mecanismos de poder que parecem estar no meio da

tormenta, mas igualmente as identidades coletivas, ou, dito de outra maneira,

as condições da confiança mútua entre os cidadãos.

Rumo a um novo papel dos paisagistas

Tais problemas de sociedade não se resolvem transformando ou criando

paisagens. Mas sua análise tem vantagens. Uma delas é evitar que o

paisagista venha a ser, inconscientemente, aliado incondicional de um ator

particular nestes conflitos. Por exemplo, pode ser tentador esposar a causa de

grupos que falam em termos de paisagem ou em termos de ecologia, se se é

formado nesta ciência. Ou, ainda, pode ser fácil acreditar que os argumentos

racionais a favor de uma obra de arte justifiquem descartar o exame de

qualquer outra sugestão, reduzindo a contribuição do paisagista à produção do

seu décor. Estas atitudes não são condenáveis em si, desde que sejam

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Tradução: Vladimir Bartalini, para uso exclusivo da disciplina AUP 5810 – Paisagismo, do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1o semestre de 2012.

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refletidas. Ainda assim é preciso ter consciência das implicações desta posição

sobre as diferentes partes presentes nos conflitos, latentes ou abertos,

provocados por tal projeto de uso do solo.

Outras atitudes são possíveis. Pode-se resolver os conflitos com a espada,

como se fez com o nó górdio. Estas foram as formas ordinariamente adotadas

nas  intervenções  no  uso  do  solo  ocorridas  durante  os  “trinta  gloriosos”3. Pode-

se também buscar transformá-los pela negociação. Pode-se, para usar a

linguagem metafórica dos negociadores, passar de um jogo com resultado nulo

a um jogo com resultado positivo: reformular os problemas afim de abrir

perspectivas de solução aceitáveis por todas as partes envolvidas em um

conflito, de modo que todos ganhem alguma coisa, que o resultado lhes pareça

justo, plausível e passível de durar no futuro. Já existem métodos de

negociação que obtiveram sucessos deste tipo. Seguramente, serão

inventados outros novos.

Eles têm em comum reunir representantes de todas as partes interessadas nos

rituais de negociação que visam, entre outras coisas, fazer emergir no seio dos

grupos presentes a consciência de formarem uma coletividade pluralista: uma

coletividade cuja identidade provém da reunião de diferentes grupos, sistemas

de valor e modos de agir que a constituem.

Esta coletividade tem necessidade de produzir as condições de duração de sua

existência. Ela tem também necessidade de emblemas. Pode ser que ela

chegue a isto sem paisagistas. Parece-nos possível que os paisagistas a

ajudem a tanto, precisamente inventando paisagens que condensem

emblemas de diferentes grupos e que organizem a coexistência das diferentes

relações de propriedade. Esta paisagem seria então, ao mesmo tempo,

pragmática e simbólica. Para produzi-la, o paisagista deveria saber propor,

mais para sentir as reações do que para fazer valer um ponto de vista de

3 Referência ao excepcional crescimento da economia capitalista nas três primeiras décadas após o término da segunda guerra mundial, em 1945 (N.T.).

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“técnico   da   paisagem”.     A   maneira   de   cumprir   esta   tarefa   está   para   ser  

inventada.

O papel do paisagista

Os conflitos entre grupos sociais podem, em geral, ser resolvidos pela

negociação quando se trata de conflitos distributivos, em que os atores se

opõem em virtude de suas diferenças de interesse. Estas são acompanhadas

evidentemente, no mais das vezes, por diferenças parciais nos sistemas de

valores. É o que permite a um mesmo objeto, o resultado da negociação, ser

muito apreciado pelas partes envolvidas, pois elas não atribuem o mesmo valor

a cada um dos aspectos deste objeto. Para conduzir tais negociações é

aconselhável, em princípio, separar totalmente os debates referentes às

relações entre as pessoas (em particular os debates morais) dos debates

referentes aos interesses em jogo. Ora, em um conflito relativo a um território,

constatou-se que grupos diferentes podiam, por uma parte, fazer deste

território, ou de alguns de seus aspectos, um emblema de sua identidade, e,

por outra parte, investir de valor moral seu uso e sua organização espacial.

Percebe-se então, sem dificuldade, que o próprio princípio da negociação

racional não se aplica facilmente.

Pode-se, contudo, reter algumas ideias. É preciso que o resultado da

negociação seja considerado justo por todas as partes interessadas; que ele

seja eficaz, ou seja, que ele substitua uma situação de barganha em torno de

um ponto de compromisso não aceitável por todos, por uma situação de co-

produção na qual cada parte envolvida encontre um interesse específico

substancial; que ele seja confiável ou realizável sem surpresas más; e que ele

seja durável, isto é, que não corra o risco de ser rapidamente colocado em

cheque pelos fatos. Para ser considerado justo por todas as partes, é preciso

que estas tenham contribuído para sua elaboração, em condições nas quais

elas tenham podido fazer compreender e reconhecer, mutuamente, suas

questões, seus pontos de vista, suas morais e suas identidades.

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Isto significa demandar às partes que dêem início à formação de uma

identidade coletiva que integre suas diferenças, respeitando-as. Para que o

resultado seja eficaz é preciso inventar novas formas de organização e de uso

do território, afim de melhor satisfazer aos interesses mais variados dos grupos

presentes, respeitando as morais de organização do território que são suas.

Isto significa demandar que o negociador se faça auxiliar por um planejador

capaz de compreender a condução da negociação, os interesses e os valores

das partes envolvidas, afim de ajudá-las a inventar alternativas de organização

e uso do solo.

Para ser factível e durável, é preciso que o acordo obtido entre os

negociadores que representam os diversos grupos de interessados seja

compreendido e reconhecido por todos. É preciso então que a implementação

deste acordo desencadeie o desenvolvimento de uma nova identidade mais

ampla, respeitando as identidades pré-existentes e integrando-as. É preciso

então que este acordo seja refletido e que cada um possa representar para si o

objeto do acordo, reconhecendo nele um valor emblemático. Além do

compromisso entre os usos a que este território satisfaz, trata-se de criar um

lugar onde se comemore o acordo durável entre os grupos que se opunham, e

fazê-lo de modo que cada um possa representar para si a singularidade de sua

experiência do lugar. Para isto é útil que o planejador seja um paisagista, afim

de assegurar que a nova organização do território se torne um emblema

comum a todos os grupos. Isto exige que a criação das opções de organização

leve em conta tanto as formas culturais de lazer próprias a cada grupo, quanto

seus interesses. Nesta perspectiva, a análise inventiva proposta por Bernard

Lassus constitui um instrumento estratégico nas mãos de um paisagista

chamado como consultor para auxiliar um negociador a encontrar uma solução

durável para um conflito de organização do território.

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