Teresa Leonor M. Vale, Encomendas portuguesas de arte italiana. As gravuras do Promptuarium Artis...

13
CONOGRAFIA E FONTES DE INSPIRAÇÃO. IMAGEM E MEMÓRIA DA GRAVURA EUROPEIA I A CTAS DO 3 º COLÓQUIO DE A RTES DECORATIVAS Lisboa, 19, 20 e 21 de Novembro de 2009 Salão Nobre do Museu de Artes Decorativas Portuguesas da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva Coordenação Isabel Mayer Godinho Mendonça Ana Paula Rebelo Correia Lisboa, 2011

Transcript of Teresa Leonor M. Vale, Encomendas portuguesas de arte italiana. As gravuras do Promptuarium Artis...

CONOGRAFIA E FONTES DE INSPIRAÇÃO.

IMAGEM E MEMÓRIADA GRAVURAEUROPEIA

I

ACTAS DO3º COLÓQUIODE ARTESDECORATIVASLisboa, 19, 20 e 21 de Novembro de 2009Salão Nobre do Museu de Artes Decorativas Portuguesas da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva

CoordenaçãoIsabel Mayer Godinho Mendonça

Ana Paula Rebelo CorreiaLisboa, 2011

217

TERESA LEONOR M. VALECEPESE, Universidade do Porto

Bolseira FCT

Encomendas portuguesas de arte italiana.As gravuras do Promptuarium Artis Argentariae de Giovanni Giardini e os modelos dominantes na ourivesaria do settecento romano

1. Nota introdutória

Em Portugal, a primeira metade do século XVIII, sensivelmente coincidente com o reinado de D. João V, é marcada de forma indelével pela im-

portação de obras de arte italiana, em geral, e romana, em particular. Ocupar-nos-emos, ao longo do presente texto, de algumas obras de ourivesaria sacra encomen-dadas e/ou adquiridas preferencialmente pelo soberano, mas também por congregações religiosas e agentes par-ticulares, produzidas no ambiente do settecento romano e que constam na actualidade de colecções portuguesas. Ora tal ambiente, no que à produção de ourivesaria diz respeito, era claramente inf luenciado pelas gravuras da-quela que pode ser considerada a mais importante obra sob esse ponto de vista, o Promptuarium Artis Argentariae de Giovanni Giardini, cuja primeira edição de 1714 era desde logo constituída pelas gravuras abertas pelo checo Maximilian Joseph Limpach.

As obras de ourivesaria que nos propomos abordar nesta apresentação – concretamente os cálices e os relicários en-comendados em Roma por ordem de D. João V, para a basílica de Mafra –, traduzem, por um lado a adopção dos modelos veiculados pelo Promptuarium Artis Argentariae de Giardini, e por outro, a rejeição desses mesmos modelos. Com efeito, se algumas dessas obras são realizadas e/ou adquiridas em perfeita consonância com o que domina no ambiente artístico da cidade pontifícia na primeira metade de Setecentos, outras constituem-se verdadeiramente como uma manifestação do gosto nacional, pois, como alguma da correspondência sobrevivente o revela, são realizadas no contexto do settecento romano mas de acordo com directivas específicas idas de Lisboa.

2. O Promptuarium Artis Argentariae de Giovanni Giardini e os modelos dominantes na ourivesaria do settecento romano

O Promptuarium de Giovanni Giardini

Sob o extenso título de Promptuarium Artis Argentarium: ex quo, centum exquisito studio inventis, delineatis, ac in aere inci-sis tabulis propositis, elegantissimae, ac innumerae educi possunt novissimae ideae ad cujuscumque generis vasa argêntea, ac áurea invenienda, ac conficienda. Opus non modo artis tyronibus, ve-rum etiam provectis magistris sane per utile invenit, ac delineavit Joannes Giardini ac in duas partes distribuit foi publicada em Roma (pela oficina de Fausto Amidei, sita na Via del Corso) no ano de 1759, a obra de Giovanni Giardini (1646-1721), cuja primeira edição datava de 1714, como se referiu – então com o muito mais modesto título de Disegni Diversi. Desde essa primeira edição que a obra era constituída pelas gravuras abertas pelo checo Maximilian Joseph Limpach, o qual desen-volvera actividade em Roma, concretamente junto da imprensa vaticana 1.

O ourives Giovanni Giardini nasceu em Forlì (na Ro-magna), a 24 de Junho de 1646, mas desenvolveu a sua activi-

1 As referências disponíveis sobre Limpach encontram-se apenas em obras de carácter muito geral, vejam-se por exemplo: THIEME-BECKER, Allgemeines Lexikon der Bildenden Künstler von der Antike bis zur Gegenwart, Vol. XXIII, Leipzig, E.A. Seemann, 1911-1950, p. 232 e E. BÉNÉZIT, Dictionnaire Critique et Documentaire des Peintres, Sculpteurs, Dessinateurs et Graveurs, Vol.6, [Paris], Librairie Ernest Gründ, 1966, p. 670; para além das suas gravuras insertas no Promptuarim de Giardini reconhecem-se outras gravuras avulsas de sua autoria, as quais surgem por vezes no mercado, como por exemplo o retrato do Bispo Severo Casimiro.

Iconografia e Fontes de Inspiração – Imagem e Memória da Gravura EuropeiaActas do 3.º Colóquio de Artes Decorativas

218

dade sobretudo em Roma, cidade na qual se fixou com cerca de 20 anos, começando por trabalhar no contexto da oficina de Marco Gamberucci e obtendo a sua própria patente em 1675, conhecendo seguidamente um notável percurso enquanto ouri-ves e fundidor (foi nomeado fundidor oficial do Sacro Palazzo Apostolico em 1699) e também o reconhecimento e apreço dos seus pares, que o elegeram Quarto Cônsul (em 1686) e por três vezes Camerlengo (sucessivamente em 1692, 1703 e 1706) da poderosa Congregazione degli Orefici e Argentieri. Na mesma cidade pontifícia veio Giardini a falecer no último dia do ano de 1721, sendo sepultado num assinalável monumento fúnebre em sua memória erigido na igreja de Sant’Eligio degli Orefici, templo romano da corporação dos ourives.

Apesar de ter passado desapercebido a grande parte da historiografia da arte do século XX 2, Giardini – a quem re-centemente foi concedida a devida atenção bibliográfica 3 – foi todavia uma personalidade da maior relevância no ambiente ar-tístico romano do último quartel de Seiscentos e no primeiro de Setecentos. Com efeito, apesar de grande parte da sua obra ter desaparecido durante as guerras napoleónicas, as sobrevivências permitem atestar do elevado nível das suas capacidades técnicas e da sua inventiva, embora saibamos que frequentemente se socorreu de desenhos e modelos de outros artistas 4. A sua obra coloca assim em evidência a excelência da produção artística em geral, e da ourivesaria em particular, do seicento romano e permite ainda constatar a influência exercida noutros contextos, como por exemplo naquele francês, nomeadamente através de uma figura tão relevante como Thomas Germain (1673-1748), activo em Roma (e em concreto na campanha do altar de S. Ignazio da igreja do Gesù) nos primeiros anos de Setecentos, ou seja, no auge da carreira de Giardini.

2 Sendo a excepção neste panorama a monografia de Carlo GRIGIONI, Giovanni Giardini da Forlì (24.VI.1646-31.XII.1721) Argentiere e Fonditore in Roma, Rocca San Casciano, 1963, naturalmente paara além da abordagem sumária no clássico Bulgari – Costantino BULGARI, Argentieri, Gemmari e Orafi d’Italia, Vol. I, Roma, Lorenzo del Turco, 1958 ou na versão actu-alizada de Anna Bulgari CALISSONI, Maestri Argentieri, Gemmari e Orafi di Roma, Roma, Fratelli Palombi Editori, 1987.

3 Cf. Jennifer MONTAGU, Gold, Silver and Bronze.Metal Sculpture of the Roman Baroque, New Haven-Londres, Yale University Press, 1996, pp. 117-154 e ainda Alvar GONZÁLEZ-PALACIOS, Arredi e Ornamenti alla Corte di Roma 1560-1795, Milão, Mondadori Electa, 2004, pp. 131-147.

4 Cf. Jennifer MONTAGU, “The Practice of Roman Baroque Silver Sculpture”, in The Silver Society Journal, Nº 12, Outono 2000, p. 25 e Ga-briele BARUCCA, Jennifer MONTAGU, (dir. de), Ori e Argenti. Capolavori del ‘700 da Arrighi a Valadier, Milão, Skira Editore, 2007, p. 55.

Entre as obras de Giovanni Giardini contam-se sobretudo peças de carácter religioso – na actualidade dispersas pelos mu-seus de todo o mundo, embora, com naturalidade, se constate uma maior concentração das mesmas no território italiano 5 – que na generalidade evidenciam uma extrema qualidade téc-nica, a familiaridade com os diversos metais (Giardini traba-lhava os metais preciosos mas era igualmente um fundidor de bronze, tendo neste domínio realizado importantes trabalhos) e o gosto pelo recurso a outros materiais, designadamente aque-les pétreos, reconhecendo-se assim com alguma frequência a presença de lápis-lazúli, pórfiro, etc.

O inventário dos seus bens, realizado no seguimento da sua morte, ocorrida a 31 de Dezembro de 1721 6, revela, para além da confortável existência que decerto experimentou, os resultados dos seus contactos com os artistas do seu tempo e não só. Assim, podiam reconhecer-se, entre os bens do ouri-ves Giovanni Giardini, gravuras de Albrecht Dürer, Stefano della Bella e Jean Le Pautre, pinturas várias – entre as quais se contavam um retrato de Gianlorenzo Bernini e uma Pietà de Domenichino, obras de Benedetto Lutti e de Filippo Zuc-chetti –, diversas obras de escultura, nomeadamente um relevo com putti de François Duquesnoy, um bozzetto em gesso, da autoria de Camillo Rusconi, da estátua de S. Sebastião que Giardini realizou em prata para a igreja da Santissima Annun-ziata de Fumone 7, numerosas peças de prata e dois grandes baixo-relevos em metal dourado e lápis-lazúli, cujos modelos

5 Entre as obras de Giardini podem assinalar-se: a ornamentação em bronze dourado, tendo por tema central a Santíssima Trindade, da pia baptismal da Basílica de S. Pedro do Vaticano; os bustos relicários de S. Nicolau de Bari e de s. Filipe de Neri (em prata e bronze dourado), 1707 e 1708, férula (prata parcialmente dourada), c. 1696-1700, Victoria & Albert Museum, Londres; colegiada de S. Urbano, Apiro; tabernáculo-relicário do Santo Lenho (prata dourada, cobre, cristal, pórfiro e gemas), c. 1711, Kuns-thistorisches Museum, Viena, crucifixo processional (prata e madeira), 1715, concatedral de Santa Maria Assunta, Matelica; tabernáculo da Madonna del Fuoco (bronze dourado), 1718, Catedral de Forlì; estátua de S. Sebastião (prata; segundo modelo do escultor Camillo Rusconi), igreja da Santissima Annunziata, Fumone; glória (bronze dourado), altar-mor da igreja do con-vento de S. João, Valetta; relicário (bronze dourado, prata, lápis-lazúli), palácio da Residenz, Munique; pia de água benta (prata, bronze dourado e lápis-lazúli), Minneapolis Institute of Art, Minneapolis.

6 ARCHIVIO DI STATO DI ROMA (Roma), 30 Not. Cap., Uff. 10 (Parchettus), Vol. 391, fls. 225v.-247, ref. por Jennifer MONTAGU, Gold, Silver and Bronze.Metal Sculpture of the Roman Baroque, (…), p. 235 (Nota 6).

7 Cf. Gabriele BARUCCA, Jennifer MONTAGU, (dir. de), Ori e Ar-genti. Capolavori del ‘700 da Arrighi a Valadier, (…), p. 64.

Encomendas portuguesas de arte italiana.As gravuras do PromPtuarium artis argentariae de Giovanni Giardini

e os modelos dominantes na ourivesaria do settecento romano

219

Teresa Leonor M. Vale

eram da autoria do escultor genovês Angelo De Rossi (1671--1715) e a execução fora da responsabilidade de “Monsù Ger-mano”, certamente Thomas Germain. Ora, é sabido que os três artistas contactaram decerto em várias ocasiões e, quanto aos dois últimos, em particular durante a concretização da grande campanha de enriquecimento artístico do monumental altar de S. Ignazio da igreja do Gesù, efectuada sob a coordenação de Andrea Pozzo 8, e onde então também se reconhecia a presença de um jovem alemão, Johann Friedrich Ludwig, cujo nome surge então já italianizado como Ludovisi, o qual seria ainda um pouco mais tarde aportuguesado como Ludovice 9.

Foi a 10 de Agosto de 1712 que Giovanni Giardini celebrou um contrato com Maximilian Joseph Limpach de Praga com vista à realização, por este último, de um conjunto de cem gravuras 10 a partir de desenhos dos seus objectos de prata. A publicação resultante viria a lume dois anos mais tarde, sob o título de Disegni Diversi, e seria reeditada em Roma, no ano de 1759, já sob a designação mais pomposa de Promptuarium Artis Argentarium (…), como se viu.

Não cabe neste texto abordar a mais complexa questão da verdadeira (e total) autoria dos desenhos destinados a ser abertos por Limpach, devemos porém referir, como já atrás se assinalou,

8 Acerca desta obra, iniciada em 1695, e que envolveu um elevadíssimo número de artistas (mais de 100), a fim de que a sua conclusão se efectivasse num breve lapso de tempo, veja-se: ARCHIVUM ROMANUM SOCIE-TATIS IESU (Roma), vols. 2056, 2057 e 2058 (Libro Maestro, Giornale e Conti dei Operai), nos quais o Padre Carlo Mauro Bonacino, a quem fora confiado o acompanhamento dos trabalhos, registou todos os dados – cit. por Vittorio DE FEO, Andrea Pozzo. Architettura e Illusione, Roma, Officina Edizioni, 1988; acerca do altar de Santo Inácio veja-se também P. Aurelio DIONISI, SJ, Il Gesù di Roma. Breve Storia e Illustrazione della Prima Chiesa Eretta dalla Compagnia di Gesù, Roma, Residenza del Gesù, 1996, pp. 101-109, Maria Pia D’ORAZIO, “Santíssimo Nome di Gesù (Il Gesù)”, in Roma Sacra, Ano III, Nº 9, Mai. 1997, pp. 59-60, Rudolf WITTKOWER, Arte e Architettura in Italia 1600-1750, Turim, Einaudi, 1993, p. 398 (1ª edição 1972) e Robert ENGGASS, Early Eighteenth-Century Sculpture in Rome. An Illustrated Catalogue, Londres-Pennsylvania, University Park and London-The Pennsylvania State University Press, 1976, pp. 44-51.

9 Acerca da participação de Ludovice na campanha do altar de S. Igna-zio, veja-se o que tivemos oportunidade de escrever em Teresa Leonor M. VALE, “As Ordens Religiosas e a Mobilidade dos Artistas. A Companhia de Jesus e o ourives João Frederico Ludovice: de Roma a Lisboa”, in Teresa Leonor M. VALE, Maria João Pereira COUTINHO, (coord. de), Colóquio Lisboa e as Ordens Religiosas. Actas, Lisboa, Grupo dos Amigos de Lisboa - Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 2010, pp. 55-72.

10 Cf. Hugh HONOUR, Goldsmiths and Silversmiths, Londres, Weiden-fedl & Nicholson, 1971, pp. 118-119.

que Giardini frequentemente se socorreu, para a realização das suas obras, de desenhos e modelos de outros artistas, pelo que a proposta de Jennifer Montagu, no sentido de se reconhecer em alguns dos desenhos a intervenção de um pintor como Benedetto Lutti – artista dos contactos de Giardini e do qual o ourives possuía obras, como o já mencionado inventário de 1721 atesta – afigura-se muito plausível 11.

As soluções de cálices e de relicários no Promptuarium

Uma vez que nos propomos abordar apenas os casos dos cálices e dos relicários realizados em Roma para satisfação da encomenda portuguesa relativa à basílica de Mafra, tratare-mos apenas dessas duas tipologias no contexto do conjunto de soluções veiculadas no âmbito do Promptuarium de Giovanni Giardini.

Quanto aos cálices, na obra de Giardini reconhecem-se sete propostas 12, todas elas caracterizadas por uma pronunciada e evidente componente escultórica, à excepção da apresentada no fólio 6, quase diríamos arcaízante, na sua opção pela simples decoração gomada. Todas as restantes seis variações ostentam uma ornamentação volumetricamente destacada, constituída por uma gramática diversificada, entre a qual se reconhece a figuração humana – desde os inevitáveis anjinhos, cabeças de querubins, putti, às figuras adultas, observáveis na base das propostas dos fólios 2 e 3, por exemplo –, os motivos alusivos à eucaristia – as espigas de trigo e as folhas de videira que co-brem, no seu dinâmico e harmonioso entrelaçado, o cálice do fólio 4 ou surgem igualmente no do fólio 5 – ou ainda palmas, acantos, guirlandas e festões de flores (observáveis na proposta constante do fólio 7).

O impacte destas propostas de Giovanni Giardini reco-nhece-se plenamente em cálices produzidos em ambiente ro-mano mas também naquele napolitano, por exemplo, durante os primeiros cinquenta anos de Setecentos e também ainda durante toda a segunda metade da mesma centúria.

Entre os cálices resultantes do trabalho de ourives activos na cidade pontifícia (e não só) que de algum modo seguem as

11 Cf. a este respeito Jennifer MONTAGU, Gold, Silver and Bronze.Metal Sculpture of the Roman Baroque, (…), p. 117 e p. 235 (nota 5).

12 Correspondentes aos fólios 2 a 8 (da edição romana de 1759, aquela que sempre utilizaremos).

Iconografia e Fontes de Inspiração – Imagem e Memória da Gravura EuropeiaActas do 3.º Colóquio de Artes Decorativas

220

sugestões das gravuras do Promptuarium de Giardini, podem mencionar-se os seguintes, apenas a título de exemplo, entre os muitos passíveis de serem considerados: desde logo dois cá-lices em prata dourada de Antonio Arrighi (1687-1776), que se encontram respectivamente no Tesouro da Catedral de Ur-bino (datável de 1737-1738) e no Museu Diocesano de Ancona (1755-1756). Enquanto o primeiro ostenta, ao nível da base, uma solução que bem poderia resultar da leitura conjugada das propostas dos fólios 5 e 7 da obra de Giardini, o segundo evidencia afinidades com a proposta do fólio 2.

Por outro lado, o cálice de Simone Migliè (1679-1752), datável de 1738-1740 e pertença da concatedral de Santa Maria Assunta de Matelica, revela afinidades com a proposta do fólio 8 do Promptuarium, uma vez mais ao nível da base, e em concreto na opção pelo motivo das cabeças aladas de querubins.

A estas peças pode ainda juntar-se um cálice realizado por um ourives de uma geração sucessiva, que trabalhou para Por-tugal (no âmbito da encomenda destinada à capela de S. João Baptista da igreja de S. Roque), evidenciando a continuação da adopção dos mesmos modelos: aquele de Giovanni Felice Sanini (1727-1787), actualmente constante do acervo do Mu-seu Diocesano de Ancona, resultante de uma oferta do papa Bento XIV 13, que denota uma opção de falsa copa recortada, afim a algumas propostas de Giardini (designadamente aquela constante do fólio 3).

Já quanto aos relicários – pertencentes à tipologia que agora nos importa, ou seja, a do relicário-ostensório – o Promptuarium de Giardini apresenta quatro propostas 14. Para além da primeira (fólio 12), evidentemente escultórica – na qual uma figura humana segura o receptáculo da relíquia e a exibe perante os fiéis – todas as restantes partem de uma base (de apoio único ou duplo) sobre a qual assenta o corpo da peça, desenvolvido em soluções afins, que se diferenciam pelo vocabulário ornamental eleito, de carácter mais arquitec-tónico (volutas) ou vegetalista (folhagem, palmas, festões de flores). A parte superior da peça é constituída pelo receptáculo da relíquia que, protegida por um vidro, assim é exibida aos fiéis para veneração.

13 Acerca destas peças veja-se Gabriele BARUCCA e Jennifer MON-TAGU, (dir. de), Ori e Argenti. Capolavori del ‘700 da Arrighi a Valadier, (…).

14 Concretamente nos fólios 12 a 15.

Estas propostas de Giardini tiveram um significativo impacte na produção italiana do settecento, ultrapassando claramente as balizas cronológicas normalmente considera-das para o barroco, tendo conhecido enorme difusão no contexto romano em particular e naquele italiano em geral, passando depois, por exportação, a outros e muito diversifi-cados espaços geográficos. Assim, só em igrejas de Roma são inúmeros os exemplares idênticos passíveis de serem identi-ficados – conhecendo-se ou não os seus autores –, existindo em número considerável na igreja de San Rocco e naquela de San Lorenzo in Lucina, bem como na basílica de S. João de Latrão, sendo estes últimos (na actualidade no Tesouro da basílica lateranense) da autoria do cotado ourives Angelo Spinazzi (1693-depois de 1785/antes de 1789), que trabalhou para Portugal, em concreto para a capela de S. João Baptista da igreja de S. Roque de Lisboa.

Também a Portugal chegaram diversos exemplares deste modelo produzidos no contexto romano, é o caso dos seis re-licários realizados na oficina familiar dos Arrighi e na actuali-dade constantes das colecções do Palácio Nacional de Mafra, de que adiante trataremos, mas também dos quatro relicários (de S. Vicente Mártir, S. João Francisco de Regis, S. Estanislau Kostka e S. Sebastião), pertencentes à igreja de S. Roque e ex-postos no Museu de S. Roque da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa 15, da autoria do ourives romano Antonio Gigli (c. 1704-1761?), activo na cidade pontifícia entre 1735 e 1756, e ainda do relicário de dois mártires jesuítas do Japão: S. João Soan (de Goto) e S. Diogo Kisai que cremos ser igualmente da autoria de Antonio Gigli e se conserva hoje no Museu de Ciência da Universidade de Lisboa 16.

O mesmo modelo foi aplicado noutros centros de produção da península itálica, reconhecendo-se exemplares oriundos da Itália meridional – destacando-se aqueles oriundos de Nápo-

15 Com os seguintes números de inventário: RL 1254; RL/MT 0291; RL/MT 0299; RL/MT 0300.

16 Com a referência de inventário MCUL 6.

Encomendas portuguesas de arte italiana.As gravuras do PromPtuarium artis argentariae de Giovanni Giardini

e os modelos dominantes na ourivesaria do settecento romano

221

Teresa Leonor M. Vale

les 17 – ou de outras regiões e cidades detentoras de oficinas relevantes, como sejam Génova 18 ou Bolonha 19.

3. As encomendas portuguesas: aceitação e rejeição dos modelos veiculados no Promptuarium

Os cálices de Mafra como exemplo da rejeição dos modelos de Giovanni Giardini

Foi nos últimos anos da década de vinte do século XVIII que efectivamente se desencadeou o processo de encomenda de obras de ourivesaria italiana para a basílica de Mafra 20. Nesse processo reconhecem-se três intervenientes fundamentais, entre os quais desde logo se destaca o soberano, D. João V, numa acção enquadrável num mais vasto contexto de importação de obras de arte italiana que marcou indelevelmente Mafra e caracterizou toda a actividade cultural do seu reinado, como é por demais sabido. Todavia, outras duas figuras emergem como essenciais na concretização do projecto: dois agentes do mo-narca, um em Lisboa e outro em Roma. Na capital do reino, na sua qualidade de oficial da Secretaria de Estado, encontrava-se o Dr. José Correia de Abreu (o qual tivera ocasião de perma-necer anteriormente vários anos em Roma, tendo mesmo sido

17 Como o que na actualidade integra as colecções do Museu Attilio e Cleofe Gaffoglio, em Rapallo, Inv. Nº 8 (da colecção de Pratas e Ourivesa-ria) – cf. Piera RUM, (dir. de), Museo Attilio e Cleofe Gaffoglio. La Collezione di Argenti e Oreficeria, Milão, Skira, 2006, pp. 35 e 108 – ou os quatro (provenientes da oficina do ourives Andrea De Blasio), que se encontram no altar do Santíssimo Sacramento da Catedral de Sant’Eustachio de Ac-quaviva delle Fonti, e se podem observar em fotografia publ. por Corrado CATELLO, Elio CATELLO, La Scultura in Argento nel Sei e Settecento a Napoli, Nápoles, Franco di Mauro Editore, 2000, p. 159.

18 Veja-se no mesmo Museu A. e C. Gaffoglio o par de relicários com o Inv. Nº 10 (da colecção de Pratas e Ourivesaria) – cf. Piera RUM, (dir. de), op. cit., pp. 37 e 110; ou aquele, datado de 1732, pertencente ao Santuário de Nostra Signora delle Grazie al Molo, de Génova, com a marca da con-trastaria da cidade – cf. Gianna ROCCATAGLIATA, Argenti Genovesi. La Torretta, Génova, Tormena Editore, 1992, pp. 28 e 179.

19 Veja-se o relicário de Santo Apolinário, datável de c. 1739, constante do acervo do Tesouro da Catedral de Bolonha – cf. Franca VARIGNANA, (coord. de), op. cit., pp. 92 e 217.

20 Veja-se o que já tivemos ocasião de escrever acerca da globalidade da encomenda: Teresa Leonor M. VALE, “‘só para ostentação da magestade, e grandeza’. Aproximação à encomenda de ourivesaria barroca italiana para a basílica de Nossa Senhora e Santo António de Mafra”, in Revista de Ar-tes Decorativas, Escola das Artes-Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional do Porto, Nº 2, 2008, pp. 19-44.

director da Academia Portuguesa), e na cidade pontifícia, o frade franciscano, convertido sucessivamente em encarregado de negócios, ministro plenipotenciário e embaixador de Portu-gal, Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752).

Data concretamente do mês de Dezembro de 1728, o mais recuado documento, até ao momento localizado, acerca da en-comenda de obras de ourivesaria italiana para a basílica de Nossa Senhora e Santo António de Mafra. Trata-se de uma carta, escrita no dia 17 desse mês, pelo Dr. José Correia de Abreu e endereçada a Fr. José Maria da Fonseca Évora 21. Nessa missiva encontra-se o que pode considerar-se ser um primeiro esboço da encomenda - a qual se veria, na correspondência sucessiva, precisada e ampliada – desde logo se encomendavam doze cálices “de prata de Capela (que he a mais pura e perfeita) Lizos”, mais se indicava que “estes Callisses deuem ser todos dou-rados, tanto dentro quanto por fora”, e vir com as respectivas patenas 22.

Na actualidade sobrevivem em Mafra seis cálices 23, um da autoria do ourives Giacomo Pozzi (1682-1735), quatro de Giovanni Paolo Zappati (1691-1758) e um oriundo da oficina familiar dos Arrighi, o qual poderá ser da autoria do pai Gio-vanni Francesco (1646-1730), do filho mais velho Agostino (1682-1762), ou do mais novo – o ourives que mais trabalhou para Portugal no período joanino – Antonio Arrighi (1687--1776), uma vez que os três se encontravam em actividade no contexto da mesma oficina nesses anos.

Todos os cálices sobreviventes se apresentam muito seme-lhantes entre si, denunciando directivas comuns seguidas de molde a que a diferença de autoria que se regista seja pratica-mente imperceptível. Antes de mais, os seis cálices integram-se, do ponto de vista morfológico, na tipologia que surge a partir do Renascimento/Maneirismo 24 e se desenvolve no contexto do barroco, a qual se caracteriza por virar para o exterior o bordo ou lábio da copa (concedendo-lhe a forma de tulipa), pelo au-mento do fuste (o que confere ao cálice uma altura por vezes mesmo excessiva), pela redução do diâmetro da base e pelo

21 Cf. BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL (Lisboa), Secção de Reservados, Fundo Geral, Mss. 41, Nº 7, Doc. 1.

22 B.N.P., Secção de Reservados, Fundo Geral, Mss. 41, Nº 7, Doc. 1, fl. 1.

23 Com os números de inventário: PNM 286, PNM 287, PNM 288, PNM 296, PNM 297 e PNM 361.

24 Veja-se por exemplo as propostas de Giacomo LAURENZIANI, Opere per Argentieri et Altri, Roma, 1632, ilustr. 7A.

Iconografia e Fontes de Inspiração – Imagem e Memória da Gravura EuropeiaActas do 3.º Colóquio de Artes Decorativas

222

enriquecimento decorativo da mesma (com figuras de carácter escultórico ou através da incrustação de gemas). Verifica-se, de um modo geral, uma perda de carácter arquitectónico, o qual se vê substituído pela graça e ligeireza, bem patente nas propostas do Promptuarium de Giardini.

Os cálices de Mafra ostentam estas características estilísticas barrocas mas mitigadas por uma relativa sobriedade e comedi-mento, a que não é estranha a intervenção de Lisboa e muito concretamente de José Correia de Abreu, como o comprova a seguinte passagem de uma sua carta de 2 de Agosto de 1729: “(…) todos os ditos Calices sarão dourados por dentro, e por fora, e por de baixo dos pês; os quais terão diuerso feitio dos que Vossa Reverendissima mandou, porque alem de estes terem as copas feitas ao estilo Romano, e não segundo as regras de S. Carlos, tinhão os pês muito pequenos, que justamente se pode reçear que com facilidade volte um calix sobre o Altar, o que se deue obviar por todos os principios, e pera isto não he necessario faze-los dema-ziadamente grandes os pês, porque alem de pareçerem obra de Aldea, he desnecessario, e assim basta que sejão alguma couza majores daqueles que mandou Vossa Reverendissima. Tambem se deue aduertir que não sejão tão franzinos de prata, como ja notei a Vossa Reverendissima na minha ultima carta, e se deue procurar que esta noua Commissão seja feita com mais atenção pellos artifices, tanto em terem mais prata, que não fiquem tão franzinos, como em serem os mais pequenos da altura de 14 onças de passeto, com as copas do garbo e feitio do risco que mando a Vossa Reverendissima. Estes Calices terão hum Lauor moderado, porem destinto dos 3 majores, e que deuem ser mais ricos.” 25. Este excerto denota a preocupação de Lisboa em adequar ao gosto nacional as peças produzidas no ambiente romano, bem como assegurar o seu bom funcionamento: os cálices não deveriam ter bases tão reduzidas (ao gosto da época e como outros já enviados) porque “que justamente se pode reçear que com facili-dade volte um calix sobre o Altar, o que se deue obviar por todos os princípios” 26.

A intervenção de Lisboa traduziu-se mesmo no envio de desenhos (esquemáticos e devidamente anotados) a ter em conta com vista à realização dos cálices, sempre de acordo com os di-

25 B.N.P., Secção de Reservados, Fundo Geral, Mss. 41, Nº 7, Doc. 8, fl. 2v.

26 Idem.

tames de S. Carlos Borromeu (1538-1584) 27, expressos nas suas Instructiorum Fabricae et Supellectilis Ecclesiasticam, publicadas em Milão no ano de 1577.

A mesma ordem de razões explicará, pelo menos em parte, as opções ao nível decorativo que os cálices de Mafra eviden-ciam. Com efeito, nenhuma das peças ostenta uma ornamen-tação de carácter escultórico, como se verifica em numerosas obras coevas produzidas em idêntico contexto. Não se reco-nhecem assim representações (de anjos, virtudes ou de figuras da Igreja) na base ou na articulação desta com a parte inferior do fuste, ao contrário das propostas apresentadas por Giovanni Giardini, como se referiu; nem tão-pouco surgem cabeças de querubins (ou símbolos eucarísticos), na articulação da copa com a parte superior do fuste, como é observável em outros cálices barrocos romanos.

A decoração é de facto muito plana, limitando-se a revestir a superfície com motivos sobretudo fitomórficos e vegetalistas, organizados em torno de cartelas e enquadrados por molduras recortadas, em muito baixo-relevo. Tal circunstância verifica-se independentemente da diferente autoria das peças. O cálice dos Arrighi (Giovanni Francesco, Agostino ou Antonio), como o de Pozzi, como os restantes de Zappati, obedecem todos a um mesmo figurino e apresentam idênticas soluções (morfológicas e decorativas), o que denuncia o facto de estarem subjacentes directivas comuns e que procuravam orientar o trabalho dos ar-tistas. Com efeito, tal decorre, pelo menos em parte, do respeito pela vontade expressa a partir Lisboa. A mesma preocupação continua a ser veiculada alguns anos volvidos, numa carta de 6 de Abril de 1734, sempre de Correia de Abreu para Fr. José Maria da Fonseca Évora, na qual pode em concreto ler-se: “A pixede e calix que se pedem devem ser feitas (…); de hum bom risco, e ar (…), sem que o rilievo do Lavor possa molestar as mãos do Sacerdote quando nellas pegar; a copa, e patena do Calix sejão da grandeza, e pello risco dos que se fizerão por via de Vossa Reve-rendissima ultimamente pera Mafra (…).” 28. A píxide e o cálice a que a missiva alude não seriam, muito provavelmente, para

27 BIBLIOTECA DA AJUDA (Lisboa), Ms. 54-XII-14, Nº 57, Nº 58, Nº 59 e Nº 60. Estes desenhos foram publicados por Marie Thérèse MANDROUX-FRANÇA, “La Patriarcale del Re Giovanni V di Portogallo” in Sandra Vasco ROCCA, Gabriele BORGHINI, (dir. de), Giovanni V di Portogallo e la Cultura Romana del suo Tempo, Roma, Àrgos Edizioni, 1995, p. 98.

28 B.N.P., Secção de Reservados, Fundo Geral, Mss. 41, Nº 7, Doc. 72, fl. 1v.

Encomendas portuguesas de arte italiana.As gravuras do PromPtuarium artis argentariae de Giovanni Giardini

e os modelos dominantes na ourivesaria do settecento romano

223

Teresa Leonor M. Vale

Mafra (embora nada o afirme ou negue explicitamente) mas a referência para a sua realização eram as peças já executadas para a basílica de Nossa Senhora e Santo António e no excerto citado, fica bem clara a preocupação em que a decoração não fosse particularmente relevada, para que a mesma não “possa molestar as mãos do Sacerdote quando nellas pegar”, o que explica a opção pelo muito baixo-relevo da ornamentação dos cálices de Mafra.

Os relicários-ostensório como exemplo da aceitação dos modelos de Giovanni Giardini

Curiosamente no primeiro elenco de peças encomendadas para Mafra pela missiva de 17 de Dezembro de 1728, a que se aludiu, não se verifica qualquer menção a relicários. Com efeito, só em finais de 1729 se pode encontrar uma referência à encomenda de relicários, no contexto da correspondência trocada entre Lisboa e Roma e que chegou até nós. Em carta datada de 3 de Novembro desse ano de 1729 ocupava-se o oficial da Secretaria de Estado em precisar ao representante de Portugal em Roma, diversos aspectos relativos aos relicários, depreendemos que já anteriormente encomendados, os quais “não deuem ser dos pequenos, mas dos de pê” 29 e devem ser de diferentes feitios, “huns como os de ordinário se poem nos Altares dessas Igrejas nas festas; outros como Costodia, com cazinhas pera diversas relíquias; e outros também em forma de costodia redondos, o Ambola, que são pera ossos majores (…).” 30.

Os seis relicários saídos da oficina familiar dos Arrighi – contendo as relíquias da veste de Cristo (?), de S. João e S. Mateus Evangelistas, de Santa Maria Madalena, de S. Joaquim e Santa Ana, de Santa Clara de Assis e de Santa Catarina de Siena –, que na actualidade integram as colecções do Palácio Nacional de Mafra 31, apresentam-se muito semelhantes entre si, pelo que uma descrição tipo poderá ser feita para todos, atendendo às devidas variações, quanto às legendas identifi-cativas das respectivas relíquias. Trata-se assim de relicários em forma de custódia, resultantes da aplicação de folha de prata sobre uma estrutura (ou alma) de madeira entalhada.

29 B.N.P., Secção de Reservados, Fundo Geral, Mss. 41, Nº 7, Doc. 12, fl. 1v.

30 Idem.31 Com os números de inventário: PNM 394, PNM 395, PNM 5782,

PNM 5783, PNM 5784 e PNM 5785.

O pedestal apresenta forma triangular perfilada e moldurada, elevando-se sobre o mesmo a base de voluta com concheado, rodeado por motivos vegetalistas. O fuste apresenta-se decorado com cartelas, folhas de acanto e concheados. No corpo central encontra-se a cartela moldurada, envidraçada e rematada por concha. A relíquia surge aplicada ao centro da reserva, sobre o fundo de tecido carmesim, decorado com papéis dourados enrolados (paperoles). Reconhece-se ainda, colada, a legenda identificativa da relíquia. Ladeiam a cartela-relicário duas vo-lutas ou dois querubins (um de cada lado) em alto-relevo. A peça é rematada por cruz, com decoração vegetalista e com auréola de raios lanceolados.

Os relicários em questão seguem de modo evidente os mo-delos dominantes no âmbito do Promptuarium de Giovanni Giardini, evidenciando como os mesmos tiveram bom aco-lhimento junto da corte portuguesa que não levanta qualquer objecção e não evidencia qualquer preocupação em orientar – concreta e detalhadamente – a encomenda a partir da capital do reino. Assim, ao contrário do verificado com os cálices, no que aos relicários concerne regista-se uma adopção incondicio-nal das propostas romanas – e em concreto daquelas de Giar-dini – à semelhança do que se verificara um pouco por toda a península itálica, como se pode constatar quando se aludiu aos vários exemplares desta tipologia resultantes da actividade dos mais diversificados centros de produção.

Curiosamente, decerto devido ao sucesso e consequente grande difusão destas peças em Itália – onde se assistem a re-petições do modelo nos séculos XIX e XX, refiram-se, a título de exemplo, os quatro relicários tardios que se observam na igreja romana de S. Giovanni della Malva (Trastevere) –, conti-nua a verificar-se a importação para Portugal de peças idênticas que, já tardiamente, continuam a veicular os modelos barrocos, como é o caso do relicário de Santo André Avelino, datável dos últimos anos de Setecentos, em concreto de c. 1796-1800, da autoria do ourives Felice Marianecci (1740-1818), activo em Roma entre 1794 e 1818, cuja presença em Portugal terá re-sultado de uma aquisição do arcebispo de Évora D. Joaquim Xavier Botelho de Lima (cujas armas ostenta no interior da cartela oval que se observa na base), e hoje integra o acervo do Museu de Arte Sacra da Sé daquela cidade.

Por outro lado, e detentor de talvez ainda maior relevância, é o facto de se registarem “ecos” das mesmas peças no âmbito da produção portuguesa da segunda metade do século XVIII e mesmo do século XIX: vejam-se os três relicários em prata (na

Iconografia e Fontes de Inspiração – Imagem e Memória da Gravura EuropeiaActas do 3.º Colóquio de Artes Decorativas

224

actualidade despojados das suas relíquias), que integram as co-lecções do Museu Condes de Castro Guimarães, de Cascais 32.

4. Brevíssimas considerações finais

Ao eleger o tema desta apresentação sabíamos estar perante uma situação que não se afigurava a nossos olhos de forma com-pletamente clara mas tínhamos também a consciência de saber que era possível falar de duas posturas distintas numa mesma encomenda, se considerássemos os modelos disponíveis para a concretização das peças. Assim, tendo em conta as propostas de Giovanni Giardini no seu Promptuarium Artis Argentarium e algumas das obras de prata realizadas para a basílica de Ma-fra, no âmbito das encomendas joaninas, podia constatar-se

32 Inv. Nº 600, 600.1 e 601, cf. Leonor d’OREY, A Colecção de Ouri-vesaria do Museu Condes de Castro Guimarães, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2005, pp. 96-97 e 120.

que, no que dizia respeito aos relicários a adopção dos modelos romanos (nos quais se incluíam e eram marcantes aqueles de Giovanni Giardini) se fazia de modo pacífico, já quanto aos cálices as directivas emanadas de Lisboa – sob a forma de mis-sivas minuciosas e orientadoras e sob a forma de desenhos – se revelavam menos consonantes com as propostas e contrariavam claramente alguma das opções por estas veiculadas.

Todavia, com esta brevíssima apresentação tendo por tema o papel desempenhado pelas gravuras abertas por Maximi-lian Joseph Limpach para o Promptuarium Artis Argentarium de Giovanni Giardini na concretização de obras de ourivesa-ria encomendadas por portugueses em Roma e destinadas ao nosso país, tentámos tão-só efectuar uma aproximação a uma questão bem mais complexa e para a qual outros contributos devem ainda ser reunidos e analisados. Assim, este texto deve ser entendido como uma reflexão inicial, no âmbito de uma problemática que nos propomos continuar a abordar em pró-ximos estudos.

Encomendas portuguesas de arte italiana.As gravuras do PromPtuarium artis argentariae de Giovanni Giardini

e os modelos dominantes na ourivesaria do settecento romano

225

Teresa Leonor M. Vale

Fig. 2 – Cálice. Giovanni Giardini, Promptuarium Artis Argenta-riae (…), Roma, Fausto Amidei, 1759, fl. 4.

Fig. 1 – Cálice. Giovanni Giardini, Promptuarium Artis Argenta-riae (…), Roma, Fausto Amidei, 1759, fl. 2.

Iconografia e Fontes de Inspiração – Imagem e Memória da Gravura EuropeiaActas do 3.º Colóquio de Artes Decorativas

226

Fig. 4 – Cálice, ourives Giovanni Paolo Zappati – pormenor da decoração da base, Palácio Nacional de Mafra

Fig. 3 – Cálices, Roma, século XVIII (dos ourives Arrighi, Giacomo Pozzi e Giovanni Paolo Zappati), Palácio Nacional de Mafra

Encomendas portuguesas de arte italiana.As gravuras do PromPtuarium artis argentariae de Giovanni Giardini

e os modelos dominantes na ourivesaria do settecento romano

227

Teresa Leonor M. Vale

Fig. 6 – Relicário, oficina Arrighi, Palácio Nacional de Mafra.

Fig. 5 – Relicário. Giovanni Giardini, Promptuarium Artis Argen-tariae (…), Roma, Fausto Amidei, 1759, fl. 15.