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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA
VINICIUS VALLE
VIDA APÓS A MORTE E HISTÓRIAS SEM FIM
NO TRABALHO DE STEVEN MOFFAT EM DOCTOR WHO
Palhoça
2021
VINICIUS VALLE
VIDA APÓS A MORTE E HISTÓRIAS SEM FIM
NO TRABALHO DE STEVEN MOFFAT EM DOCTOR WHO
Artigo apresentado como Trabalhode Conclusão de Curso ao Cursode Graduação em Cinema eAudiovisual, da Universidade doSul de Santa Catarina, comorequisito parcial à obtenção dotítulo de Bacharel em Cinema eAudiovisual.
Orientadores: Prof. André Arieta, Me.Profª. Ramayana Lira, Dra.
Palhoça
2021
2
Resumo
Este artigo explora os conceitos de pós-vida sob o prisma da ficção científica nos
episódios da série britânica Doctor Who, as várias maneiras como e porquê este se manifesta
nos episódios objetos, o enquadrando em 4 tipos diferentes de pós-vida sci-fi, e
posteriormente investiga o tratamento da eternidade e histórias no trabalho do mesmo autor
sob a ótica do monomito (jornada do herói) de Joseph Campbell e dos arquétipos de Carl
Jung. O texto demonstra com diversos exemplos como essas representações nas histórias de
Moffat se dão de modo metatextual e autorreflexivo, elucidando dentro da diegese a natureza
do material como ficção, e correlato à natureza atemporal e fluida das histórias e os padrões
nelas representados. O artigo também desenvolve como o próprio ato da narrativa de
observar-se em Moffat é usado como parte do processo de sobrevivência como história.
Palavras-chave: Doctor Who; Steven Moffat; vida após a morte; histórias sem fim;
monomito; arquétipos; sci-fi
1. Introdução
Neste artigo, pretendo investigar certos temas recorrentes em episódios roteirizados
por Steven Moffat para Doctor Who, tanto antes quanto durante seu tempo no cargo de
showrunner. Mais especificamente, o relacionamento entre temas de sobrevivência, pós-vida
e histórias sem fim no trabalho de Moffat em Who, como um evolui a partir do outro.
O conflito acerca da literal sobrevivência (ou não) dos personagens, enquanto
componente do enredo, ocorre em quase todo episódio de Doctor Who, algo que naturalmente
se estende às histórias escritas por Moffat. Ocasionalmente, o programa reflete sobre o
conceito de sobrevivência em si, do lutar pela mesma e das repercussões de uma vida
estendida, ampliando o papel de tal conceito para algo central também no nível temático.
Moffat o faz com frequência em seu Doctor Who, de acordo com uma sensibilidade
autorreflexiva pós-moderna metamoderna vista não apenas na versão do século 21 de Who,
mas também noutras das séries do roteirista, como Sherlock e Drácula.
3
O que é Doctor Who?
Doctor Who é uma série britânica de televisão, dos gêneros ficção científica e
aventura, produzida pela BBC. Estreou em 1963 e é a mais antiga série de ficção científica
ainda no ar, além de a mais longa da História, tendo se tornado parte da cultura popular do
Reino Unido. Alcançou também uma base significativa de fãs no âmbito internacional. É
comumente chamada de "série família", já que busca ser do interesse para todas as idades,
apesar de seu público-alvo central ainda ser crianças e pré-adolescentes. Em 2021, 13 atores
já estiveram no papel do protagonista.
A série foi em seus primeiros anos produzida por Sydney Newman e Verity Lambert,
e teve dois períodos distintos de produção. O primeiro, conhecido hoje como a "Série
Clássica" ou Classic Who, foi ao ar entre 1963 e 1989, até ser posta "na geladeira" e, na
prática, cancelada. Em tal período, a série acumulou 26 temporadas e 695 episódios, 97 dos
quais não têm cópias existentes na atualidade. As primeiras 6 temporadas, da década de 60,
têm sua imagem completamente em preto e branco, além de teor educativo.
A série clássica é particularmente episódica, organizada em arcos de histórias
individuais dentro de uma mesma temporada, geralmente independentes entre si (com
exceções), com uma média 4 ou 6 episódios por arco. A maioria de tais episódios durava
cerca de 25 minutos.
Houve uma tentativa de trazer a série de volta em 1996 com a produção de um
telefilme, realizado em conjunto com a produtora norte-americana Fox e gravado no Canadá.
A tentativa fracassou, e o telefilme é hoje, em geral, considerado parte da série clássica.
Em 2005, o roteirista e produtor galês Russell T. Davies, junto às produtoras Julie
Gardner e Jane Tranter, liderou o dessa vez bem-sucedido retorno de Doctor Who, sua
produção agora tendo migrado da Inglaterra para o País de Gales. Essa fase de produção é a
que dura até hoje, e é chamada de "Série Revivida", "Série Nova", ou simplesmente New
Who. Pode ser classificada como um soft reboot, pois, apesar de se manter na mesma
continuidade que a série clássica, ter assistido a versão anterior não é necessário para
4
entender a atual - todos os conceitos são reintroduzidos como se num programa
completamente novo, e a numeração das temporadas resetada. Em inglês, as temporadas da
série clássica são denominadas seasons e as da revivida series, ajudando a diferenciá-las.
Até agora, New Who chegou a um total de 13 temporadas e 171 episódios,
predominantemente com 45 minutos cada. 19 desses episódios são especiais de cerca de 1
hora (13 deles de Natal) e não fazem parte de nenhuma temporada.
Apesar de permanecer episódica, a série nova costuma ter arcos que perpassam toda
uma temporada ou vão além, conectando episódios de outra forma independentes e
culminando em series finales. Ademais, quando comparada à série clássica, possui maior
ênfase em arcos de personagem e seus conflitos emocionais.
Sobre o que é Doctor Who?
A série narra as viagens no tempo e pelo espaço sideral de um alienígena humanoide
conhecido apenas como "O(a) Doutor(a)". Ele(a) é acompanhado(a) em suas viagens por
companheiros/ajudantes, ou companions na terminologia da série em inglês, majoritariamente
seres humanos dos então "dias atuais" (além de britânicos). Os companions agem como
representantes do público, e embora o(a) Doutor(a) seja a "estrela" do programa, a série
acompanha em primeiro lugar a perspectiva deles, tornando-os tão protagonistas quanto o(a)
Doutor(a), senão mais. Eles geralmente duram uma ou mais temporadas antes de deixarem
o(a) Doutor(a) e outros entrarem sem seus lugares.
As viagens do(a) Doutor(a) são possíveis por conta de uma máquina do tempo/nave
espacial chamada TARDIS (sigla em inglês para Time and Relative Dimension in Space), a
qual se move através um meio chamado de vórtice do tempo (desaparecendo e reaparecendo
no mundo real), e também serve como lar do alienígena. Ela é “dimensionalmente
transcendental", ou seja, é maior por dentro do que por fora. O modelo usado pelo(a)
Doutor(a) é antiquado, às vezes defeituoso. Seu exterior, devido a um sistema de camuflagem
falho, está preso na aparência de uma cabine telefônica de polícia de cor azul, comuns no
Reino Unido em meados do século 20.
5
As aventuras mostradas na série envolvem situações de perigo para os personagens,
seguindo narrativas de um "mal a ser combatido" ou "sobrevivido", com o(a) Doutor(a) e
seus companions assumindo o papel de heróis. Os antagonistas da série são normalmente
representados como "monstros", os ciborgues-mutantes Daleks sendo os mais antigos e
melhor conhecidos. Em ocasião são vilões mais clássicos, como seu arquiinimigo o Mestre,
membro da mesma espécie que o Doutor. Dito isso, o pacifismo é uma perspectiva moral
predominante em Doctor Who, e mesmo quando a tentativa de argumentar ou ser mais
esperto que o antagonista falha, a série ainda mantém uma posição anti violência,
especialmente na versão atual do programa - o(a) Doutor(a) normalmente não usa armas ou
mata. Seu acessório mais frequente, inclusive, é uma "chave de fenda sônica", um dispositivo
multifunções (abrir portas trancadas, escanear formas de vida, hackear computadores) que
não é usado ofensivamente.
O(a) Doutor(a) tem séculos de idade, é um gênio que domina diversas disciplinas, é
extremamente excêntrico (para tanto humanos quanto sua espécie), e por vezes imaturo ou
arrogante. Tem um gosto excessivo pela aventura e perigo, mas também um senso moral que
o compele a ajudar outros acometidos por tal perigo ou por situações de sofrimento, ou que
julga injustas. Mesmo assim, pode às vezes ser frio(a) ou até mesmo cruel.
O planeta favorito do(a) Doutor(a) é a Terra e ele(a) sente uma afinidade especial pela
humanidade, justificando o tempo que passa com seres humanos e visitando a nossa História.
Ele(a) é um membro dos Senhores do Tempo - um povo humanoide, longevo e de
tecnologia altamente avançada, mais do que qualquer outro quesito manipulação do tempo.
Sua sociedade, entretanto, é rígida e burocrática. O(a) Doutor(a) é um rebelde entre seu povo,
e, na maior parte da série, exilado dos mesmos. Sob circunstâncias nunca clarificadas (assim
como o seu nome real), fugiu de sua vida em seu planeta natal, Gallifrey, e roubou de um
museu a TARDIS vista na série.
Na série revivida apenas, o(a) Doutor(a) é representado como o último Senhor do
Tempo, o restante tendo perecido num conflito cataclísmico denominado a Última Grande
Guerra do Tempo, combatida entre os Senhores do Tempo e os Daleks. A participação do
Doutor na mesma, as atrocidades que se encontrou forçado a cometer - no contexto de uma
guerra que acometia todo o espaço-tempo e a ameaçava a integridade da própria realidade -
6
serviam como o principal tormento e vergonha do Doutor na concepção da série revivida. O
ápice desse tormento se dá no fim da Guerra, que se deu diretamente pelas mãos do próprio
Doutor, que se viu obrigado a fazê-lo num ato que sacrificou a vida de seu povo para salvar a
do restante de um Universo, cuja própria existência estava à beira do colapso.
Quando estão prestes a morrer, o(a) Doutor(a) e outros Senhores do Tempo entram
num processo para sobreviver chamado regeneração - sua aparência física muda
completamente, assim como boa parte de sua personalidade. É esse o dispositivo narrativo é o
que permite que o papel tenha sido assumido por diferentes atores, cada um com uma
interpretação única do personagem, sem interferir na continuidade - todos são versões
distintas, mas canônicas do mesmo indivíduo, e fundamentam a longevidade do próprio. A
encarnação atual, a Décima Terceira Doutora, é a primeira interpretada por uma mulher, Jodie
Whittaker.
Quem é Steven Moffat?
Steven Moffat (n. 1961) é um roteirista e produtor escocês, primariamente de
televisão. Tornou-se fã de Doctor Who já na infância, assistindo ao programa desde seus
primórdios. Adquiriu um mestrado em inglês pela Universidade de Glasgow, e após um
período como professor de ensino médio, teve seus primeiros trabalhos de televisão no campo
da comédia, sendo ele o criador da dramédia Press Gang (1989-1993) e da sitcom Coupling
(2000-2004) - a última tendo sua esposa, Sue Vertue, como produtora.
Em 1999, escreveu um híbrido de paródia e homenagem de Doctor Who, intitulado
The Curse of Fatal Death, produzido para a caridade Comic Relief. Começou a trabalhar para
a série propriamente dita logo com o retorno da mesma em 2005. Sob a supervisão do
showrunner Russell T. Davies, Moffat roteirizou 6 episódios (constituindo 4 histórias) para as
4 temporadas iniciais da versão revivida da série. Nessa época, mais uma vez com sua esposa
como produtora, criou a minissérie Jekyll (2007), adaptação para os tempos modernos de "O
Médico e o Monstro", clássico da literatura gótica vitoriana.
A partir da 5ª temporada de New Who, com a saída de Davies, assumiu o posto de
showrunner, posição que manteve até a 10a temporada. Durante esse período, que durou de
2010 a 2017, escreveu mais 41 episódios (incluindo um especial comemorando os 50 anos da
7
série), assim conquistando o recorde de maior número de episódios escritos para o programa.
Como showrunner também introduziu a décima primeira e a décima segunda encarnações do
Doutor, interpretadas por Matt Smith e Peter Capaldi, respectivamente, além de 5 novos
companions. Seus episódios na era Capaldi foram frequentemente dirigidos pela
norte-americana Rachel Talalay, colaborando com ela mais do que com qualquer outro diretor
em Doctor Who.
Em 2010, mesmo ano em que se tornou o "chefe" de Who, lançou seu trabalho mais
popular fora do próprio, novamente com Sue Vertue produzindo – a série Sherlock
(2010-2017), da BBC, criada junto ao colaborador Mark Gatiss e estrelada por Benedict
Cumberbatch. Foi seu segundo caso de adaptação de um clássico literário britânico do século
19, aqui Sherlock Holmes, para os dias atuais. Depois do fim de seu trabalho tanto em Who
quanto em Sherlock, Moffat, com Gatiss, chefiou a adaptação de ainda outra obra literária do
período, nesse caso a minissérie Drácula (2020), distribuída internacionalmente pela Netflix.
No cinema, seu único crédito é pelo roteiro, com Edgar Wright e Joe Cornish, da
animação As Aventuras de Tintin (2011), dirigido por Steven Spielberg e produzido por Peter
Jackson. No teatro, escreveu a ainda não lançada The Unfriend, peça cômica que será dirigida
por Gatiss.
2. Vida após a morte sci-fi
A ficção científica e a fantasia, segundo Régis de Oliveira (2003; p.181), "sãoherdeiras das fábulas e das narrativas de viagens. As fábulas descrevem seres maravilhosos elugares exóticos."
A justaposição entre o conhecido e o estranho, o Eu e o Outro, o existente e onão-existente, revela que o tema comum à fábula, ficção científica e fantasia é ainterrogação de nossa humanidade e de nosso mundo a partir da presença de umOutro ser (pigmeus e trogloditas, alienígenas e robôs, ou duendes e ogros) ou de umOutro mundo (as culturas orientais, os planetas longínquos, os remos de fadas) (...)A partir de uma ou várias mudanças nas esferas de subjetividade, saber eespaço-tempo, a fábula e a ficção fantástica exercitam a curiosidade e odeslumbramento sobre seres e mundos desconhecidos como estratégia deproblematização de nossa própria humanidade e de nosso potencial de exploraçãono mundo (OLIVEIRA, 2003; p. 181-182).
8
A viagem extraordinária é intrínseca a Doctor Who e parte de seu apelo inicial, mas
como qualquer obra do fantástico seu verdadeiro valor recai sobre como aborda a
humanidade. Falando especificamente da ficção científica, Oliveira (p. 182) elabora:
Enquanto pensadores e cientistas buscam as condições de concretização da UtopiaModerna por meio da antecipação do futuro, os escritores de ficção científicanarram as outras utopias, distopias e heterotopias possibilitadas pelosdeslocamentos de fronteiras nos campos da subjetividade, tecnociência econfigurações de espaço e tempo. Surgem histórias sobre viagens no tempo,aventuras em planetas distantes (...) máquinas inteligentes, experimentos biológicoscom (...) homens, entre outros temas.
Os dois primeiros exemplos, viagens no tempo e aventuras em planetas distantes, são
os modos de ficção científica nativos a Doctor Who em sua própria concepção, mas a partir
deles praticamente qualquer outra modalidade sci-fi (abreviação de science fiction, ficção
científica na língua inglesa) pode ser configurada no "Universo Who", representado em tela
um pedaço por vez devido natureza episódica da série. A flexibilidade narrativa do programa
britânico aqui tratado abre a porta para infindáveis subjetividades potenciais. Stephen Burt
reflete sobre como a vida após a morte pode ser uma dessas subjetividades, ela sendo uma
forma primordial de narrativa utópica ou distópica situada no futuro.
Se ficção científica é a literatura do futuro imaginado, então devemos nos deixarimaginar o que acontece depois que morremos; e se ficção científica é a literaturado cognitivamente explicável, o empiricamente verificável, e ainda assim também aliteratura da maravilha, do incognoscível, o irreal, deve tentar imaginar a vida apósa morte, aquela matéria que repousou por tanto tempo (...) na fronteira do fato e dafé.1 (BURT, 2014; p. 175)
A fronteira entre fato e fé é território fértil para o sci-fi, pois não se trata de um gênero
interessado exclusivamente na ciência. Como diz Oliveira (2003; p. 183), a "ficção científica
cria as condições de produção de sentido entre subjetividade, tecnociência e espaço-tempo,
tornando-se campo propício para interrogar o humano por meio da comunicação fecunda
entre filosofia e ciência." Nos roteiros de Steven Moffat, histórias de sobrevivência
regularmente se desenvolvem em histórias de vida após a morte - particularmente, na morte
de personagens e a extensão de suas histórias sob nova condição de vida, gerada através do
prisma da ficção e/ou fantasia científica. Às vezes, certa morte é revelada como uma farsa.
1 Tradução livre - "If SF is the literature of the imagined future, then it must let us imagine what happens afterwe die; and if SF is the literature of the cognitively explicable, the empirically verifiable, and yet also theliterature of wonder, of the unknowable, the unreal, it must attempt to imagine life after death, that matter thathas rested for so long(...) at the boundary of fact and faith."
9
Noutras, o artifício da viagem no tempo é usado para gerar linearidades de eventos e durações
entre estes que diferem de personagem para personagem ou entre um personagem e seu
mundo. Em decorrência disso, temos mortes que não agem como fim das narrativas daqueles
que as sofrem - histórias que são não-lineares, simultaneamente, para o espectador e para
observadores de dentro do universo ficcional. De modo mais concreto, existem instâncias nas
quais um personagem passa por uma espécie de ressurreição. De vez em quando, suas mortes
físicas perduram ao passo que suas existências têm continuidade apenas em estados mais
etéreos - simulacros digitais que mimetizam paraísos típicos de mitos ocidentais sobre o
pós-vida, ou cópias de memórias e personas preservadas em mentes de colmeia. A
versatilidade de Doctor Who é assim demonstrada, e cada uma dessas instâncias cai numa
das classificações visionadas por Burt acerca do além-vida sci-fi (2014; p. 175-176):
Essas versões de ficção científica da vida após a morte podem ser divididas em pelomenos quatro tipos. O primeiro, o mais comum, envolve extensão de vida ehistórias futuras, seguindo a mesma pessoa no mesmo corpo físico, incluindopersonagens de vida muito longa (mas mortais) e imortalidade literal, e incluindo,também, os enredos de "acordar adormecido" (...) onde pessoas de um tempoacabam em outro que, sem o novum da ficção científica, nem nós, nem ospersonagens, veríamos. O segundo são histórias e símbolos da vida fora do corpo,em que a alma ou a mente continuam em alguma forma não física ou não local. Oterceiro são histórias em que pessoas que morrem, ou pessoas que estariam mortas,ou pessoas que parecem mortas, recebem novos corpos: ressuscitadas oureencarnadas. A quarta são histórias em que a viagem no tempo, ou temporalidadesinterrompidas e desconhecidas, dão às pessoas (tanto leitores quanto personagens) achance de sair da vida normal de mão única do tempo secular, em que nascemos eviajamos em direção à morte (...) Esses quatro tipos não são exclusivos: eles podemcoexistir em um texto.2
É importante frisar a possibilidade observada acima por Burt da coexistência desses
tipos numa mesma narrativa. Em todos os exemplos citados acima, inclusive nos primeiros, a
nova vida tem configuração distinta da anterior, com graus de mudança também distintos
entre cada exemplo, além de perspectivas narrativas que alternam em tratá-los como dádivas
ou maldições.
2 Tradução livre - "These science-fictional versions of the afterlife may be divided into at least four types. Thefirst, the most common, involve life extension and future histories, following the same person in the samephysical body, including both very long-lived (but mortal) characters and literal immortality, and including, also,the “sleeper wakes” plots (...) whereby people from one time end up in another that, absent the science-fictionalnovum, neither we, nor the characters, would see. The second are stories of, and symbols for, life outside thebody, in which the soul or the mind continue in some nonphysical or nonlocal form. The third are stories inwhich people who die, or people who would have been dead, or people who seem like the dead, are given newbodies: resurrected, or reincarnated. The fourth are stories in which time travel, or disrupted and unfamiliartemporalities, give people (both readers and characters) a chance to step outside the normal one-way lifespan ofsecular time, in which we are born and travel one way toward death (...) These four kinds are not exclusive: theycan coexist in one text."
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Os roteiros de Steven Moffat também apontam as renovações de vida de seus
personagens como indicadores de histórias possivelmente sem fim. As indicações são dadas
através da aparente imortalidade de vidas estendidas indefinidamente, ou através de fins,
ocultos ou não, que têm relevância reduzida devido à relação singular de alguns de seus
personagens com o tempo - a presença de um viajante do tempo na História de seu universo
ficcional não termina necessariamente com sua morte, nem a presença de outros na história
pessoal desse viajante. A utilização de viagem no tempo em contextos como este, na qual sua
mecânica e relação com a percepção tradicionalmente linear do tempo funcionam como
dispositivo narrativo mais complexo do que simplesmente chegar a ponto A ou ponto B, mas
como recurso para exploração temática, não era tão comum na série clássica. Exceções
notáveis eram as histórias multi-Doutor, onde diferentes versões do personagem - incluindo
as que já "morreram" - interagem na mesma história, a exemplo de The Three Doctors
(1972-1973) e The Five Doctors (1983), de Bob Baker e Dave martin e de Terrance Dicks,
respectivamente. Referindo-se à primeira, Hills (2014; p. 180) fala que em
1972-73, esta história aproximou Who de uma forma inicial de hiperdiegese, (...) Aointroduzir a noção de que os Doutores anteriores não estavam definitivamenteconfinados à história do programa, mas poderiam ser narrativamente restaurados(aqui, por meio da agência dos Senhores do Tempo), The Three Doctors converteuas vidas do Doutor de uma sequência narrativa finita em um arquivo de momentosinfinitamente recombinantes.3
A situação mudou na série revivida, e a associação de Steven Moffat em particular às
histórias que na terminologia que ele próprio estabelece são wibbly wobbly, timey-wimey é
natural (HEARN, 2013; p. 262-269). Moffat, em entrevista ao canal de YouTube de Doctor
Who (2018), fala como para o Doutor, num dia bom, todos no universo estão vivos, e num dia
ruim, todos mortos. Burt (2014; p. 180) comenta:
Os autores de ficção científica poderiam aproveitar a viagem no tempo pararemover seus protagonistas precisamente dessa corrente de tempo, para olhar parauma vida, uma história, como se de cima ou de fora, para fornecer mais metáforaspara a experiência de leitura e para considerar as contradições envolvido em umaimaginação aparentemente secular de vida após a morte.4
4 Tradução livre - "SF authors could take use time travel to remove their protagonists from precisely that streamof time, to look on a lifespan, a history, as if from above or outside, to furnish more metaphors for the
3 Tradução livre - "1972–73, this story moved Who closer to an early form of hyperdiegesis(...) By introducingthe notion that previous Doctors were not definitively confined to the show's history, but could be narrativelyrestored (here, via the Time Lords’ agency), ‘The Three Doctors’ converted the Doctor's lives from a finitenarrative sequence into an archive of infinitely recombinatory moments."
11
Burt (p. 170) descreve que o "o quarto tipo de vida após a morte em ficção científica
envolve descontinuidades no tempo: seus personagens pulam suas próprias mortes,
experienciando um futuro que antecede seu próprio presente e passado, ou escapando da linha
do tempo secular."5 O retorno de personagens mortos ao presente relativo dos protagonistas
em Doctor Who é possibilitado pela viagem no tempo (ainda que dificultado por obstáculos
na realidade como o envelhecimento e/ou falecimento de seus intérpretes); linhas do tempo
podem ser alteradas e o programa pode trazer o personagem num ponto anterior à sua morte
sem que se trate de um flashback, e portanto suas histórias são, de certo modo,
potencialmente eternas - mesmo se nunca contadas, ou eventualmente recebam uma
conclusão. É válido mencionar, todavia, que a ontologia do tempo em Doctor Who varia de
episódio para episódio, entre essas representações eternalistas - em que todo o tempo ocorre
simultaneamente se observado de maneira não linear - e outras nais quais a maleabilidade do
tempo é soberana (DECKER, 2019; p. 15-16).
A inserção de pós-vidas sci-fi em Doctor Who não é exclusiva ao trabalho de Steven
Moffat, muitos menos começou com ele. The Tenth Planet (1966), arco da série clássica
escrito por Kit Pedler e Gerry Davis, que serviu como última história regular do primeiro ator
a interpretar o Doutor, William Hartnell, é notável por introduzir as formas de pós-vida mais
tradicionais a série - os Cybermen e o próprio conceito de regeneração, embora esse nome da
segunda especificamente só viria alguns anos mais a frente, em Planet of the Spiders (1974),
de Robert Sloman. Os Cybermen são ciborgues tradicionais da ficção científica, cujo corpo
biológico foi integrado à maquinário para garantir a sobrevivência do humano, porém em
detrimento da própria humanidade deste - a mente de um Cyberman é fria como o metal de
suas peças, as emoções humanas suprimidas, e seu modus operandi acompanha seu visual ao
seguir o mesmo paradigma restrito que todos os outros da mesma subespécie, desprovido de
identidade individual. Pertencem à primeira classe de pós-vida sci-fi definida por Burt. Os
Cybermen da série modena, introduzidos em Rise of the Cybermen/The Age of Steel (2006),
de Tom MacRae, diferem dos da série clássica ao representarem a supressão de emoções
como aspecto proposital, ao invés de sintomática, e instantânea ao invés de gradual, do
5 Tradução livre - "A fourth sort of SF afterlife involves discontinuities in time: its characters skip over theirown deaths, experiencing a future that precedes their own present and past, or escaping the line of secular time."
experience of reading, and to consider the contradictions involved in an apparently secular imagination of lifeafter death."
12
processo de mecanização em um Cyberman, tais emoções identificadas por estes como
"inferioridades" ou "falhas". A conversão de humanos em Cybermen é também agora tratada
como a imperativa mór dos Cybermen, de forma semelhante aos Borg de Star Trek: A Nova
Geração. Tendo em vista o mundo imerso numa esfera virtual que é o século 21, onde a
comunicação e a ação cibernética são aceleradas, a repetitividade de informação é
implacável, e agressividade intencional da sociedade pela integração às redes sociais e seus
respectivos padrões de comportamento, as atualizações dos Cybermen modernos são naturais.
Em conformidade, "deletar" é o principal verbo no vocabulário de um Cyberman desde 2006.
A regeneração dos Senhores do Tempo, por outro lado, se enquadra no padrão ao qual
Burt dá o número 3. Trata-se da literal metamorfose de um novo corpo numa nova versão.
Em The Deadly Assassin (1976), de Robert Holmes, é traçado um limite de 12 regenerações
(e, portanto, 13 encarnações) a um Senhor do Tempo.
Um exemplo da segunda classe de pós-vida sci-fi aparece em The Deadly Assassin
(1976). A Matrix de Gallifrey é estabelecida como um repositório digital para a memória e
identidades de Senhores do Tempo falecidos. Parte da razão pela qual os Senhores do Tempo
construíram a Matrix é para tê-la como um banco de dados - a outra usar sua capacidade de
processamento junto a todo conhecimento da espécie como meio de prever o futuro. É uma
ocorrência de pensar um indivíduo ou conjunto de indivíduos como num estado de
informação como meio de se acessar uma perspectiva atemporal, como será elaborado acerca
do trabalho de Moffat mais à frente.
Sua primeira história para Doctor Who, The Empty Child/The Doctor Dances (2005),
vencedora do prêmio Hugo de Best Dramatic Presentation, Short Form6 em ficção científica
e fantasia, tem um dos melhores desfechos do revival, que culmina no Doutor euforicamente
proclamando everybody lives! ("todos vivem!''). Situados durante a blitz londrina da Segunda
Guerra Mundial, os dois episódios mostram uma epidemia que transforma suas vítimas,
através do toque, em mortos-vivos com máscaras de gás fundidas ao rosto e um corte numa
das mãos. Eles se comportam como zumbis à procura de suas mães, que enxergam a todos
como suas mães. O paciente zero - que também é capaz de liderar os outros - é uma criança.
6 Disponível em - http://www.thehugoawards.org/hugo-history.
13
Ao final de The Doctor Dances (2005), o Doutor descobre que a causa da praga são
nanorrobôs de primeiros socorros de uma nave-ambulância alienígena, trazida à Londres por
um golpista do século 51 disfarçado de voluntário americano. Sem o conhecimento deste, os
nanorrobôs tiveram seu primeiro contato com a raça humana num garoto morto por uma
bomba nazista enquanto vestia uma máscara de gás. Assim, assumiram este ser o padrão da
espécie e partiram para "consertar" quem encontrassem. O Doutor, ao reunir a criança
original com sua mãe, portadora do DNA matriz, indica aos nanorrobôs o verdadeiro padrão,
levando-os a curar todos os afetados. Os nanorrobôs vão além, curando quaisquer prévios
males físicos do grupo. A vitória sem fatalidades num cenário de guerra deixa o Doutor em
êxtase. Ademais, o Doutor no último momento possível salva o golpista, Capitão Jack
Harkness, da morte certa após este ter se sacrificado, adotando-o como um novo companion.
O terceiro roteiro consecutivo de Moffat a ganhar o Hugo7, Blink (2007),
frequentemente considerado um dos melhores do programa, introduz os monstros mais
populares criados por ele - os Weeping Angels ("Anjos Lamentadores", em português). Blink
também é notável ao fazê-lo enquanto episódio Doctor-lite - papel reduzido do Doutor e
companion, com outro personagem agindo como protagonista; orçamento também
similarmente reduzido. No episódio, o Doutor descreve os anjos - cujo modo de
sobrevivência os leva a aparentar serem estátuas e só se moverem quando observados,
fornecendo-os virtual imortalidade quando se considera que não se pode matar uma pedra -
como "os únicos psicopatas que te matam de forma gentil".8 O método pelo qual os anjos
matam é peculiar - eles enviam o alvo ao passado, no qual ele vive até a morte no presente, e
os anjos se alimentam da energia potencial de todos os dias que a vítima poderia ter vivido.
Dessa forma, as mortes só ocorrem de fato a partir de um referencial do presente; as vítimas
sobrevivem em suas próprias perspectivas. A narrativa do episódio, além disso, se constrói ao
redor de um paradoxo ontológico causado pelas viagens no tempo, ou seja, eventos sem
começo ou fim definidos.
Os Weeping Angels retornam em The Time of Angels/Flesh and Stone (2010), já da
fase de Moffat como showrunner, nos quais têm um novo poder exibido - qualquer imagem
de um Anjo Lamentador, seja ela a imagem cinemática e fiel de um vídeo ou uma reprodução
simples como um desenho a lápis, é ela própria um Anjo Lamentador. A essência do ser dos
8 Tradução livre - "the only psycopaths to kill you nicely".7 Disponível em - http://www.thehugoawards.org/hugo-history.
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Anjos é aqui deslocada de qualquer manifestação física, sendo associada puramente à sua
representação imagética. A existência de um Anjo é assim totalmente dependente de um
"espectador". Sua existência material só se manifesta numa esfera separada do observador,
presença deste reforçando seu o status quo do Anjo como apenas uma figura, porém qualquer
representação abstrata sua age como canal de extensão de vida e assim eternidade, já evocada
através de sua imagem celestial. Kinder (2012; p. 40) fala dos Weeping Angels:
Esses trabalhos também examinam como a imagem atua como uma replicação dosujeito e potencialmente oferece uma forma de vida eterna, mas apenas quandoocorre um ato de morte. Isso é conseguido ao tentar ver além da moldura - seja amoldura de uma parede, a tela da televisão ou a caixa de pedra que contém um serinvisível - em um espaço onde o misterioso se esconde, um espaço que às vezesvislumbramos fora do canto do nosso olho. Essas replicações (ou "duplas") doassunto original, sejam elas apresentadas como retratos em movimento oufotografias, memórias de infância ganham vida em um mundo imaginado ou objetoshumanóides, como estátuas que resultam em morte no momento em que você olhapara longe, refletem um segundo eu que existe em um espaço fora do tempo. O queesses trabalhos estão explorando é a possibilidade de que essas imagens, por meiosmisteriosos, possam escapar dos limites de seus quadros e reentrar no mundo doespectador, recriando-se em uma existência física.9
Na última aparição completa dos Weeping Angels na era de Moffat, The Angels Take
Manhattan (2012), os companions Amy e Rory são feitas vítimas do deslocamento temporal
e enviados a Nova York da década de 30. Por conta de normas envolvendo paradoxos
prescritos ao episódio em si, o Doutor não pode salvá-los ou visitá-los - da perspectiva dele
uma morte comum, linear. O principal fator que determina essa prisão paradoxal da fluidez
do tempo é um livro - as regras ali estabelecidas explicam que o tempo não pode ser mudado
depois de lido. A linearidade irrita o Doutor, e no início do episódio, ele remove a última
página de dito livro, a justificativa de tal ato dada como uma aversão por finais.
Também envolvendo livros é Silence in the Library/Forest of the Dead (2008), última
história de Moffat na era de Russell T. Davies, revisita o conceito de everybody lives, que é
aqui novamente proferido num monólogo, e trata do pós-vida e histórias sem fim em duas
9 Tradução livre - "These works also examine how the image acts as a replication of the subject and potentiallyoffers a form of eternal life, but only when an act of death occurs. This is achieved by attempting to see beyondthe frame – whether that is ((...)) the television screen, or the stone casing that holds an unseeable being – into aspace where the uncanny lurks, a space we sometimes glimpse out of the corner of our eye. These replications(or “doubles”) of the original subject ((...)) humanoid objects, such as statues that result in death the momentyou look away, reflect a second self that exists in a space outside of time. What these works are exploring is thepossibility that these images, via uncanny means, can escape the confines of their frames and re-enter the worldof the viewer, recreating themselves into a physical existence."
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frentes interligadas do enredo - na do salvamento dos habitantes de um planeta biblioteca, e
na introdução da personagem River Song.
O enredo se passa no futuro e trata do Doutor, sua companion Donna, e um grupo de
arqueólogos investigando o desaparecimento, ocorrido cem anos antes, de todos os presentes
na gigantesca Biblioteca, que inclui livros físicos e cópias digitais. Paralelamente, uma
menina do século 21 percebe esses eventos como visões e os relata a um psiquiatra. A
Biblioteca é logo revelada como infestada de seres carnívoros que, a olho nu, se assemelham
a sombras, e vivem nas páginas dos livros (suas antigas florestas). As sombras passam a
matar os arqueólogos um a um, alimentando-se de tudo exceto os esqueletos e uniformes
hazmat, os quais são subsequentemente possuídos e usados como forma física por tais
sombras. Dispositivos de comunicação nos uniformes conseguem guardar cópias das
consciências dos mortos por alguns minutos, uma breve vida após a morte virtual, antes do
padrão degradar e articular repetidas vezes a frase final do falecido. Quanto aos corpos dos
desaparecidos, não se encontram vestígios.
Como gancho do primeiro episódio, Donna experiencia uma falha de um sistema de
teletransporte e é dada como morta, seu corpo preso nos arquivos do teletransportador. No
segundo, ela surge num subúrbio inglês nos dias atuais, sem conseguir lembrar com clareza
do Doutor e sua circunstância anterior. Ali, Donna passa por toda uma versão idílica de uma
vida tradicional - casamento, filhos - limitadamente percebendo que parece pular
instantaneamente de um evento para outro. O subúrbio é eventualmente revelado como parte
do mesmo mundo da menina - uma realidade virtual criada como lar para a garota, ela sendo
na verdade uma cópia da consciência e memórias da falecida filha do fundador da Biblioteca.
Naquele paraíso digital, Donna também encontra o simulacro de uma das arqueólogas mortas,
cuja mente foi copiada do dispositivo de comunicação em seu uniforme. A jovem é
descoberta também como o computador central do planeta, e a causa do desaparecimento de
sua população - ela havia os "salvado", literalmente, das sombras assassinas ao manter seus
corpos no buffer do sistema de teletransporte, assim como a Donna. Todos são liberados na
conclusão do episódio.
A história de duas partes também introduz, como parte do grupo de arqueólogos, a
personagem de River Song, cuja história foi subsequentemente desenvolvida no período de
Moffat como showrunner. River é alguém que conhece o Doutor pessoal e profundamente,
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que o trata como alguém muito próximo - até o espelha em certos aspectos, usa uma chave de
fenda sônica, e há também tensão romântica entre os dois -, mas tem essa relação como
existente, nesse momento, apenas em sua perspectiva. River é, como o Doutor, uma viajante
do tempo, na linha do tempo dele Silence in the Library (2008) é o primeiro encontro entre os
dois. Ela possui, inclusive, um diário para traçar seus encontros fora de ordem com o Senhor
do Tempo. Para garantir a confiança de um Doutor que ainda não a conhece, River sussurra o
nome verdadeiro do mesmo em seu ouvido.
No clímax de Forest of the Dead (2008), River Song se sacrifica para garantir o
retorno dos desaparecidos, solidificando assim o primeiro encontro do Doutor com ela e, do
ponto de vista dela, seu último. Antes de morrer, River implora ao Doutor que não reverta a
história dos dois, e põe ênfase no fato de que para ele aquele é apenas o começo. Não
obstante, uma narração de River perto do fim do episódio remarca: "Todos sabem que todos
morrem, e ninguém sabe tão bem como o Doutor. Mas acho que os céus de todos os mundos
ficariam escuros, se ele alguma vez, mesmo que por um momento, aceitasse."10 O Doutor,
afinal, não gosta de finais. Ele então descobre um dos dispositivos de comunicação, retendo a
psique de River, escondido na chave de fenda dada a ela por sua versão futura. Dessa forma,
realiza o upload da consciência da arqueóloga à Biblioteca, fornecendo-lhe um pós-vida
paradisíaco junto às mentes dos outros arqueólogos. Em conclusão, River profere "todos
vivem".
Na 8.ª temporada, vida após a morte na forma de um Paraíso é central para o arco
geral - diversos personagens ao longo da temporada tem breves cenas representando suas
chegadas ao Paraíso imediatamente após suas mortes, as boas vindas dadas por uma figura
tipo Mary Poppins chamada apenas de Missy (interpretada por Michelle Gomez).
Simultaneamente, episódios com androides e outras inteligências artificiais definem suas
diretivas como chegar a esse Paraíso. O robô puído do episódio de abertura, Deep Breath
(2014) que foi se reconstruindo com partes biológicas arrancadas de vítimas humanas, é o
único a atingir seu objetivo ao cumprir uma versão distorcida da jornada de Pinóquio.
Na história final, Dark Water/Death in Heaven (2014), o namorado de Clara, Danny
Pink, morre num acidente banal de carro. Condicionada pelos constantes salvamentos
10 Tradução livre - "Everybody knows that everybody dies. And nobody knows it like the Doctor. But I do thinkthat all the skies of all the worlds might just turn dark if he ever, for one moment, accepts it."
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quiméricos que presencia em sua vida fantástica com o Doutor, Clara tenta coagi-lo a usar
viagem no tempo para resgatar o amado. O Doutor recusa, mas aceita buscá-lo em algum
pós-vida, o que os leva a rastrearem o Paraíso de Missy, no qual o espectador vê que é onde
se encontra Danny. O enredo dessa forma remete à lenda de Orfeu e Eurídice da mitologia
grega, em que um herói adentra o submundo em busca do amante. A TARDIS leva a dupla a
um instituto - maior por dentro, oculto no interior da Catedral de São Paulo em Londres - no
qual seus membros, que incluem Missy, clamam não apenas ter descobrido o além-vida mas
também a permanência de uma conexão entre a alma incorpórea e o corpo defunto; segundo
eles, os mortos são sofrem agonia quando seus corpos são cremados, por exemplo. Missy
eventualmente se expõe como o Mestre - Senhor do Tempo, arqui-inimigo e amigo de
infância do Doutor - que após seu aparente fim na era Russell T. Davies regenerou para um
corpo feminino (Missy é um diminutivo de Mistress, feminino de Master, em inglês). O
Paraíso é similarmente exposto como uma farsa - uma realidade virtual proveniente de uma
fração da Matrix da série clássica (explicando assim a atração das inteligências artificiais), a
qual há séculos compilava cópias digitais das mentes dos mortos. O propósito nefasto do
ciberespaço pseudo-celestial se apresenta numa alegoria crítica ao papel social da Internet -
um mundo frio cuja hiperconectividade e estímulos sensoriais (a conexão sensorial entrw
"espírito" e cadáver) e ecos do passado (as "almas" e memórias dolorosas preservadas) são
arquitetados para gerar emoções desagradáveis e assim condições propícias para que alguém
escolha frieza e abandono de sua humanidade. Em Doctor Who, uma fábrica de Cybermen. A
raça de ciborgues, assim, sob comando de Missy, uma sutil mudança de paradigma - realizada
a conversão psicológica na esfera digital, as recém-alteradas mentes são reintegradas aos
corpos biológicos, os quais receberam o upgrade mecânico e fisicamente se converteram nos
ciborgues.
O plano de Missy era de utilizar os Cybermen como um reflexo sombrio da vida
eterna que ela e o Doutor compartilham, e a realidade virtual como um genuíno meio para a
extensão de vida pela qual o Doutor sempre luta, num apelo desesperado para que ambos
cessem sua rivalidade e com isso suas respectivas solidões.
Em suas duas histórias finais para o programa, World Enough and Time/The Doctor
Falls (2017) e Twice Upon a Time (2017), Moffat apresenta um 12.º Doutor, ferido a ponto de
necessitar uma regeneração, que inicialmente rejeita outra mudança de face e contempla uma
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morte final, cansado das sucessivas transformações e agarrado à noção de terminar sua
história com a identidade atual. A mesma história inclui Cybermen da série clássica, e numa
reviravolta trágica Bill Potts, a atual companion, é convertida após um horrorífico tiro a laser
fatal, ainda que tenha força de vontade suficiente para manter sua personalidade intacta. Ela
também, como o Doutor não vê valor em continuar sua vida sem sua identidade, própria algo
que leva ambos a se sacrificarem numa grande explosão e sofrerem morte biológica. Bill é
então salva por uma garota chamada Heather, que no episódio de abertura da temporada
presente The Pilot (2017) fora transformada numa entidade não-humana, um tipo de fluido
espacial senciente, capaz como o Doutor atravessar o espaço-tempo com facilidade. Bill é
também transformada numa entidade do tipo, e deixa o Doutor para se aventurar no Universo
com Heather, porém não antes de utilizar suas novas habilidades para concedê-lo uma
segunda chance - a regeneração do Doutor, todavia ainda é pendente.
Twice Upon a Time (2017) tem início no Doutor reencontrando sua primeira
encarnação (aqui interpretada por David Bradley, considerando a morte do ator original,
William Hartnell, na década de 70). Ali o 1.º Doutor é representado como também à beira de
sua regeneração, durante os eventos do arco clássico The Tenth Planet (1966), enfrentando
uma hesitação semelhante a de sua contraparte presente. O conflito que ambos enfrentam
também emana de um pós-vida - uma inteligência artificial chamada Testemunho, a qual
viaja o pelo tempo abduzindo indivíduos nos seus últimos momentos antes do óbito para
deles realizar cópias digitais e com isso arquivá-las. Logo se torna claro, entretanto, que o
conflito é inexistente - o Doutor, tão acostumado a enfrentar monstros com planos nefastos
(como os de Missy) nem mesmo cogita que, como nos seus próprios atos heroicos de
salvamento, o que o Testemunho faz é apenas uma misericórdia - um Além-Vida artificial de
intenção benevolente.
O simulacro da memória e identidade, assim como uma história, é, portanto,
apresentado como um caminho ao pós-vida. Tal temática também é simbolizada pela própria
Biblioteca em Silence in the Library (2008), pelas "crianças ocas" de The Empty Child (2005)
e os Cybermen cadáveres de Death in Heaven (2014), mortos-vivos não apenas física mas
também alegoricamente (já que são vazios, desprovidos de identidade, e no caso do
Cybermen apesar de terem memórias esta é fria e computadorizada), pelas realidades virtuais
paradisíacas de Silence, Dark Water (2014) e essa de Twice Upon a Time (2017) (a do meio
só alcançada por uma inteligência artificial quando esta imita Pinóquio e se torna humana),
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ficções em si próprias, e pelos Weeping Angels cuja existência é circunscrita a sua imagem
repetida. Estes também transparecem uma quebra da quarta parede (KINDER, 2012; p.41).
Observar a própria natureza eterna de uma história, e sua capacidade de continuar uma vida
após sua morte real é uma das razões pelas quais o pós-vida sci-fi se configura:
Os persistentes pós-vidas de ficção científica admitem várias explicaçõessobrepostas: por um lado, ficção científica é a literatura do futuro e não pode deixarde criar símbolos para seu próprio hábito de imaginar o que acontecerá depois quemorrermos. Por outro lado, a cadeia de símbolos de ficção científica, pois a vidaapós a morte permite ao gênero refletir sobre si mesmo: apresenta-no como ummeio de fuga (desta vida, dos constrangimentos do real) e como uma forma derefletir sobre por que contamos histórias11 (BURT, 2014; p. 168).
A frequência com a qual Moffat se utiliza do pós-vida sci-fi pede e evasão da morte
por vários personagens suscita a pergunta do seu porquê. Escreve Charles (2011; p. 20):
Nos primeiros seis episódios de Doctor Who de Moffat, e depois em sua primeiratemporada completa como o escritor principal do programa, ninguém morre, excetode causas naturais, ou seja, nenhum dos personagens visíveis é morto - ou, se for ocaso, eles são eventualmente restaurados. É por isso que Moffat mantém suasconversas implacáveis com os mortos: esses discursos permitem que até os mortossejam redimidos. A sensação de perda que permeia essas histórias envolve umaalegria profunda, vital e eventualmente redentora.12
A ideia redenção remete naturalmente a um arco, uma jornada para figuras que
carregam fardos. Além disso, entende-se que a relação do personagem do Doutor com esses
pós-vidas, como o personagem os reflete eles definem suas identidades, além de sua aversão
a "fins" e reação extasiada à sobrevivência de sujeitos, seu papel como salvador em tias é
crucial para entender a simbologia em jogo. Isto me leva ao próximo capítulo.
12 Tradução livre - "In Moffat’s first six episodes of Doctor Who, and then in his first full season as theprogramme’s lead writer, nobody dies except of natural causes, that is, none of the visible characters gets killed– or, if they do, they are eventually restored. This is why Moffat holds his relentless conversations with thedead: these discourses allow even the dead to be redeemed. The sense of loss which pervades these storiesencompasses a profound, vital and eventually redemptive joy."
11 Tradução livre - "SF’s persistent afterlives admit several overlapping explanations: for one thing, SF is theliterature of the future, and it cannot help coming up with symbols for its own habit of imagining what willhappen after we die. For another thing, SF’s string of symbols for the afterlife enables the genre to reflect onitself: they present it as a means of escape (from this life, from the constraints of the real) and as a way to reflecton why we tell stories" (BURT, 2014; p. 168)
20
3. Histórias sem fim, atemporalidade e o nome do Doutor: relações com
o monomito e arquétipos Junguianos
A sobrevivência, em particular aquela após uma experiência de morte e renascimento
acompanhada de transformação e um novo estado de vida "entre dois mundos" que é
frequente aos roteiros de Moffat (como demonstrados no capítulo anterior) refletem a
longeva narrativa do protagonista do programa, a qual caminha sem fim claro, com potencial
ser continuada indefinidamente. Quando o autor o faz nesta narrativa propriamente dita, ele
traz à tona a natureza mítica do personagem, um papel que na série moderna é cumprido
(tanto na era Moffat quanto na de seu predecessor Davies) também diegeticamente.
No trabalho em Who do roteirista aqui tratado, a contínua sobrevivência é enfatizada
como endêmica aos caráteres lendário, heroico, e fantástico do protagonista em seu mundo
ficcional, e assim simbiótica ao próprio conceito do monomito e a jornada do herói descrito
por Joseph Campbell em obras como O Herói de Mil Faces e O Poder do Mito, além dos
arquétipos da psicanálise de Jung, que inspiraram a obra de Campbell. São padrões e
elementos indicados por eles em várias narrativas de diferentes culturas ao longo da História
da humanidade, e, independente de qualquer pretensão acientífca por tais autores acerca de
sua universalidade (CAMPBELL, 1999) e origens num processo evolutivo pré-cultural
(JUNG, 2002) ou seus vieses, sua observabilidade em inúmeras ocasiões é evidente por meio
de seus exemplos.
O monomito e seus arquétipos associados é ainda mais relevante na ficção realizada a
posteriori, de maneira mais consciente de tal. Doctor Who tem a distinção de refletir o
monomito e arquétipos não apenas da maneira tradicional, mas também ao incluir a
pluralidade de permutações do mesmo como parte de seu microcosmo - as constantes
transfigurações do personagem principal, a rotatória dos companions deuteragonistas, a
metamorfose estética acompanhando a passagem das décadas, porém a premissa e conceito
base série permanecendo. O universo inteiro se renova, como o ciclo cosmogônico
(CAMPBELL, 1999; p. 261-262). O(a) Doutor(a), um herói de literais "14 faces", tem sua
jornada constantemente repetida. A repetição do ciclo, assim como a possível ocorrência fora
de ordem dos estágios, porém a do Doutor é peculiar pois se apresenta de maneira
incompleta. A fase inicial, pré-cruzamento do primeiro limiar (CAMPBELL, 1999; p. 82-91)
21
é envolta em mistério e a nós oculta; por certa ótica nunca chega ao estágio final do Retorno
(p. 195-236), seguindo em loop na zona do desconhecido - a não ser sob a ótica de que em
suas contínuas aventuras o desconhecido se tornou mais conhecido e seu novo mundo
comum. De maneira condizente com uma série sobre viagem no tempo, a repetição de certos
estágios não é linear. Mais importante que sua própria jornada, todavia, é como o Doutor,
como o mentor ancião (p. 102-110), catalisa sucessivas - e mais tradicionais - outras jornadas
sofridas por seus companions, além de catalisar o "caos" ou desobediência ao status quo,
como o trapaceiro, ou trickster, que consegue alterar sua aparência (CHARLES, 2013, p. 94,
apud. JUNG, 1999, p. 94), e é agente da mudança nos espaços e eventos que visita
(CHARLES, 2013, p. 93).
Os companions, vale ressaltar, também servem como mentores do próprio Doutor no
quesito humanidade - parte do que mantém a bússola moral do Senhor do Tempo renegado
são seus assistentes, ancorando o ser que vive além do contexto humano comum numa fatia
de realidade. Agem, dessa forma, como opostos aos elementos divinos que guiam a jornada
campbelliana tradicional - a jornada do Doutor é, portanto, incomumente guiada por signos
terrenos. Esses signos, ao contrastarem com a longevidade extrema do Doutor e sua condição
extraterrestre, pela qual vê nos seus ajudantes companhias evanescentes, trazem consigo uma
solidão ao personagem do Doutor. Considerando a não aceitação da morte em Forest of the
Dead (2008), o desgosto sentido pelo Doutor referente aos fins de histórias em The Angels
Take Manhattan (2012) e a oferta de companhia de Missy em Death in Heaven (2014),
pode-se postular que tal solidão é parte do que o move aos constantes salvamentos heroicos e
a seu desgosto por finais - é seu desejo ter alguém para compartilhar da vida, um igual,
embora que de certa forma saiba da impossibilidade alcançá-lo.
Antes de escrever para a série propriamente dita, em 1999, Moffat roteirizou The
Curse of Fatal Death ("A Maldição de Morte Fatal'', em português), uma paródia da série
clássica produzida para a caridade Comic Relief. Ela estrelou Rowan Atkinson (Mr. Bean) no
papel do Doutor e Jonathan Pryce ("Brasil" de Terry Gilliam) no do Mestre. A visão
destilada, de cunho cômico de Moffat sobre a série de sua infância reflete seu futuro trabalho
autorreflexivo na mesma, contendo diversas convenções que se tornariam comumente
associadas à sua autoria na séria moderna, entre elas repetidos retornos após fins que
aparentem, por falta de melhor palavra, "finais", como o homônimo e satírico pleonasmo
"morte fatal".
22
No enredo da paródia, o Doutor, após um conflito com Daleks, é forçado a regenerar
sucessivas vezes - passando por alguns ilustres atores britânicos, incluindo Hugh Grant - até
ter sua capacidade regenerativa desabilitada e morrer, de modo supostamente definitivo.
Passado um instante de luto, o herói miraculosamente se regenera mais uma vez, desta vez
para o corpo de uma mulher, interpretada por Joanna Lumley. O Mestre remarca que aquilo
deveria ser impossível por quaisquer leis do Universo, enquanto a companion rebate que
talvez o Universo não suporte continuar sem o Doutor. Ainda que retratando com ironia como
a narrativa pode ser irracionalmente contorcida para justificar a continuidade da história do
personagem chave, há uma clara associação entre a constante sobrevivência do Doutor e seu
papel crucial como salvador de seu universo ficcional.
Em A Good Man Goes to War (2011), na 6.ª temporada, a personagem de River Song
propõe que, no universo ficcional da série, a palavra "Doutor", significando "curandeiro ou
homem sábio",13 tem origem no próprio protagonista, o qual se faz presente em diferentes
eventos por toda extensão do tempo-espaço de dita realidade.
Em Moffat, o nome do Doutor, seu lado heroico, "nunca cruel ou covarde", que crê
em "nunca desistir, nunca se entregar"14 (como proferido em The Day of the Doctor (2013)
pelo próprio Doutor), cujas artimanhas beiram o impossível, tratado como lenda ou divindade
na continuidade ficcional da série, é distintamente definido, aos olhos do próprio
personagem, como uma persona junguiana - uma máscara projetada e observada
exteriormente:
Ao analisarmos a persona, dissolvemos a máscara e descobrimos que, aparentandoser individual, ela é no fundo coletiva; em outras palavras, a persona não passa deuma máscara da psique coletiva. No fundo, nada tem de real; ela representa umcompromisso entre o indivíduo e a sociedade, acerca daquilo que "alguém pareceser: nome, título, ocupação, isto ou aquilo. De certo modo, tais dados são reais; mas,em relação à individualidade essencial da pessoa, representam algo de secundário,uma vez que resultam de um compromisso no qual outros podem ter uma quotamaior do que a do indivíduo em questão (JUNG, 1982; p. 43).
O nome do Doutor é então tratado como uma promessa de função. Seu eu verdadeiro,
aquele que Jung caracterizaria como si-mesmo e holisticamente une seu consciente com seu
inconsciente (JUNG, 1982; p. 45; 60), é muito mais humano e "real" do que a natureza
14 Tradução livre - "never cruel or cowardly"; "never give up, never give in."13 Tradução livre - "healer or wise man"
23
alienígena do personagem e fantástica de seu papel no seu Universo deixam sugerir, e
frequentemente falha em corresponder com a persona. Se Jung (1982; p. 123) descreve o
si-mesmo como "plenamente o que somos", "incognoscível", como "o Deus em nós", o
si-mesmo de um "deus" como o Doutor é naturalmente o humano nele. Em entrevista, Moffat
descreve como embora a compaixão e a bússola moral do Doutor o façam agir como protetor
defronte certa injustiça ou calamidade, sua motivação primária ao se aventurar pelo Universo
ainda é diversão e regozijo. O super-eu freudiano do personagem, seus valores e código
moral (FREUD, p. 25-36) o compelem a ser um bom samaritano, porém as exigências de seu
id, seus instintos basais (FREUD, p. 16-25), são hedonísticas, e funcionam como seu motor
primário. Ademais, o seu lado cruel e covarde, sua sombra junguiana, "aspecto perigoso da
metade obscura, não reconhecida pela pessoa" (JUNG, 1971, p. 86), rejeitado por ele no seu
conceito de quem "o Doutor" deve ser e representar também se manifesta todavia no como o
Universo fictício percebe a figura lendária do "Doutor", potencialmente amedrontadora e
inclemente, um guerreiro inflexível, especialmente para seu adversários, aos quais os
máximas do protagonista contra armas, violência física, ou a ação de matar pouco diferem - e
falta deste último por vezes visto como impiedade. O conflito do da persona ou personalidade
do Doutor, todavia, assim como sua predileção pela aventura, é o parte do que o põe em
movimento - não a aventura somente pelo prazer hedônico mas também pelo prazer pelo
perigo em si, e pela fuga do personagem de si próprio, dessa sombra. Para Jung (1971; p. 49):
a sombra é uma parte inferior da personalidade. Por isso, é reprimida; e devido auma intensa resistência. Mas o que é reprimido tem que se tornar consciente paraque se produza a tensão entre os contrários, sem o que a continuação do movimentoé impossível. A consciência está em cima, digamos assim, e a sombra embaixo, ecomo o que está em cima sempre tende para baixo, e o quente para o frio, assimtodo consciente procura, talvez sem perceber, o seu oposto inconsciente, sem o qualestá condenado à estagnação, à obstrução ou à petrificação.
O arquétipo do trickster é evocado nesse contexto da dualidade de como o Doutor
persona é percebido. Segundo Jung (2002; p. 252),
No caráter do xamã e do curandeiro há algo de "trickster", pois eles também pregampeças maldosas aos que a eles recorrem, para depois sucumbirem à vingança dosprejudicados. Sua profissão portanto acarreta às vezes perigo de vida. Além disso,as técnicas xamânicas causam frequentemente desgraças e até mesmo tormentos aocurandeiro (...) O "aproximar-se do salvador" é, confirmando a verdade mítica - ofato de que o feridor e ferido cura, e o que padece repara ou remedia o sofrimento.
24
Jung continua (2002; p. 252), "encontraremos alguns sinais da imprevisibilidade, da
inútil mania de destruição e do sofrimento auto-inflingido do 'trickster', juntamente com o
desenvolvimento gradual rumo ao salvador e sua humanização."
Em The Name of the Doctor (2013), final da 7.ª temporada lançado no ano em que a
série completava meio século, é revelado uma nova encarnação do Doutor, interpretada por
John Hurt, até então desconhecida. Seria a versão do personagem que lutou na Última
Guerra do Tempo, creditada como "Doutor da Guerra", situada na linha do tempo entre o 8.º e
9.º Doutores, entre as séries clássica e moderna. É enfatizado, mesmo assim, que essa
encarnação não chamava a si mesmo de "O Doutor", seu dever e promessa tendo sido
quebrados.
A origem do "Doutor da Guerra" é posta em tela no mesmo ano no mini-episódio The
Night of the Doctor (2013). Nele, Paul McGann retorna como um 8.º Doutor que evita tomar
parte no combate direto da Guerra, mas cuja tentativa de iniciar uma de suas façanhas
tradicionais numa circunstância daquele expansivo conflito resulta numa potencial
companion rejeitando seu chamado à aventura, avessa à uma insensibilidade dos Senhores do
Tempo na Guerra que também projeta no Doutor. A quebra da sequência costumeira de
eventos marca um rompimento na fantasia, e acaba na morte - sem regeneração - de tanto o
Doutor quanto da companion que nunca foi. O Doutor é em pouco tempo revivido por uma
irmandade de bruxas alienígenas e dado a opção de direcionar a forma para a qual irá
regenerar. Após a líder da irmandade argumentar que o Doutor iguala seu título de escolha
com "homem bom" e apelar para que ele suba à ocasião da Guerra, o protagonista escolhe sua
nova forma - um guerreiro, indigno do seu nome anterior, e aos olhos do Doutor sua própria
sombra junguiana em forma física. É o nascimento do "Doutor da Guerra" de John Hurt.
No especial de 50 anos de Doctor Who, The Day of the Doctor (2013), as mortes que
funcionaram como a diferença mais fundamental entre séries clássica e moderna - a do povo
do Doutor, os Senhores do Tempo, e de seu planeta natal, Gallifrey - são revertidas. O 11.º
Doutor de Matt Smith, então o incumbente, se reúne com duas de suas personas passadas - o
10.º Doutor de David Tennant e o Doutor da Guerra - numa aventura que culmina no seu
retorno ao fatídico último dia da Guerra do Tempo e na iminente repetição do ato que
destruiu seu mundo natal. Apesar de se tratar de uma história multi-Doutor, a ênfase na
presença dos três simultaneamente se aplica mais como uma forma do espectador e do
25
próprio personagem analisarem o Doutor em função dos seus arquétipos, de maneira a
propulsionar a narrativa ao futuro, mais que uma mera comemoração do passado.
Embora as histórias multi-Doutor tenham, em certos momentos do passado deDoctor Who, operado como uma ponte de eras de produção - apoiando leituras defãs do programa como hiperdiegético - a série contemporânea oferece variaçõessobre esse tema. ‘The Name of the Doctor’ e ‘The Day of the Doctor’ oferecemversões de TV purificadas de ‘estética de banco de dados’, tematizando a seleção eretrabalho de imagens da linha do tempo de Doctor Who15 (HILLS, 2014; p. 109).
O momento em que o Doutor destruiria Gallifrey, como afirmado pelo cânone,
também dá nome a arma de destruição - o Momento. O especial de aniversário acrescenta que
o imenso poder da arma lhe confere uma consciência. Aqui a consciência toma a forma
humanoide da companion da primeira e segunda temporadas da série revivida, Rose Tyler
(interpretada por Billie Piper), especificamente uma variação da mesma com poderes divinos.
Agindo literalmente como a Deusa, a arma consciente é quem mostra ao Doutor da Guerra
seu futuro como forma de fazê-lo renovar o papel e promessa do "Doutor". No clímax em que
os três Doutores se preparam para destruir Gallifrey pela primeira, segunda e terceira vez,
respectivamente, Clara, na sua própria afirmação do papel da companion, suplica a seu
Doutor que seja um "Doutor", no sentido de um curandeiro e homem sábio - ela o compara
com o de John Hurt - arquetipicamente o Guerreiro, a sombra - e o de David Tennant, o herói
que veste um sobretudo e posa de maneira dramaticamente intensa para exacerbar sua
condição de semideus e mascarar o conflito de identidade em seu cerne. O Doutor o faz, e
altera sua história com um plano mirabolante elucidado pelos eventos arquitetados pelo
Momento.
Num voice-over onírico encerrando a comemoração de aniversário, o Doutor narra
uma conversa com Clara após esta questionar sobre o que ele sonha - "Sobre o que todos
sonham. Sonho sobre onde estou indo". Ele diz que Clara responde "Mas não você vai a lugar
nenhum, apenas vagueia", e o Doutor retruca "Não é verdade. Não mais. Tenho um novo
destino. Minha jornada é a mesma que a sua. A de qualquer um. Me levou tantos anos, tantas
vidas, mas finalmente sei aonde estou indo. Aonde sempre estive indo (...) para casa. Pelo
15 Tradução livre - Although the multi-Doctor story has, at certain moments across Doctor Who's past, operatedas a bridging of production eras – supporting fan readings of the show as hyperdiegetic – the contemporaryseries offers varia- tions on this theme. ‘The Name of the Doctor’ and ‘The Day of the Doctor’ offer purified TVversions of ‘database aesthetics’, thematising the selection and reworking of images from Doctor Who'stimeline.
26
caminho longo".16 O entendimento renovado do Doutor sobre si próprio e o posicionamento
de Gallifrey desta história fazem o tornar a casa da jornada do herói (CAMPBELL, 1999; p.
195-236), portanto, uma possibilidade - e meta - ao até então apenas vagante, apenas fugitivo
Doutor.
Gallifrey Falls No More ("Gallifrey Cai Não Mais"), diz uma figura misteriosa
chamada de o Curador, que carrega a face de Tom Baker, intérprete do 4.º Doutor da série
clássica, assegurando o 11.º Doutor do sucesso de seu plano e de sua jornada futura. A
aparição do ator, bem mais velho do que durante seu período como protagonista incumbente
da série, num papel vagamente aludido como um Doutor futuro revisitando uma face antiga,
assim como uma uma entidade vestindo o rosto de uma antiga companion - ambos em papéis
divindades reveladores do monomito - enevoam as linhas diegéticas e reforçam a conjuntura
metatextual contemplativa do episódio. Hills explica (2014; p. 107-108):
A imprecisão da identidade diegética do Curator significa que integrar a aparênciaenvelhecida de Baker ao cânone de Doctor Who se torna um assunto paraespeculação e análise de fãs: em vez de unificar eras da narrativa do programa emuma hiper-diegese definida, este permanece um momento de excesso, perfurandodiegéticos lógica e pairando liminarmente entre o significado textual e extra-textual,um pouco como a imagem de fechamento do episódio, embora extra-textualmentevinculado à afeição dos fãs (...) Aqui, a encarnação atual de Matt Smith encontrauma mistura indecidível do ator Tom Baker e o Doutor, deslocando a hiperdiegesecom uma modalidade totalmente diferente de ficção: quebrar a quarta parede com oquarto Doutor.
Em The Time of the Doctor (2013), o 11.º Doutor é aprisionado em circunstâncias que
o forçam a proteger um planeta durante séculos, atingindo ele próprio uma imagem anciã que
destoa de sua jovialidade habitual. Próximo da morte por velhice, ele revela ter chegado ao
limite de regeneraçòes - O "Doutor da Guerra" sendo uma delas, e o 10.º tendo gasto uma
regeneração na era Davies em The Stolen Earth/Journey's End (2008). Sua morte neste
planeta, Trenzalore, já havia sido premeditada em The Name of the Doctor (2013) quando
visita seu futuro túmulo - algo estabelecido como concretizador da linha do tempo naquela
história. Temporadas antes, na abertura da 6.ª temporada, The Impossible Astronaut/The Day
of the Moon (2011), essa mesma encarnação é assassinada por monstros chamados Silêncio,
cuja missão é "silenciá-lo". Os companions Amy e Rory viajam com uma versão 200 anos
16 Tradução livre - "Same thing everybody dreams about, I tell her. I dream about where I'm going."((...)) "Butyou're not going anywhere, you're just wandering about." (...) "That's not true. Not anymore. I have a newdestination. My journey's the same as yours, the same as anyone's. It's taken me so many years, so manylifetimes, but at last I know where I'm going, where I've always been going (...) home. The long way round.
27
mais jovem do personagem no restante do arco, cientes do fim próximo de seu amigo. Por
meio de um truque com um doppelganger robótico no finale The Wedding of River Song
(2011), todavia, o Doutor retorna dos mortos. The Time of the Doctor (2013) tem mais uma
vez a morte certa derrotada pelo Doutor - através de uma rachadura temporal, os ainda
perdidos Senhores do Tempo pagam a dívida do especial de 50 anos e concedem ao Doutor
um novo ciclo regenerativo, uma dádiva do sobrenatural do além entregeu como recompensa
máxima ao salvador de seu povo. Eles só fazem, entretanto, quando Clara Oswald suplica,
lembrando-lhes de sua dívida com o renegado ao reafirmar sua identidade como "Doutor"
acima da nativa do Senhor do Tempo renegado - o Doutor persona.
Um dos exemplos mais claros do papel da persona na contínua vitória e sobrevivência
do protagonista está na história de abertura da 9a temporada, The Magician's Apprentice/The
Witch's Familiar (2015) ("A Aprendiz do Mágico/A Assistente da Bruxa", em português,
referindo-se ao papel da companion Clara). A premissa base começa com o Doutor desistindo
de salvar uma criança de um campo minado ao descobrir que se trata de Davros - um de seus
arqui inimigos desde a série clássica, e criador dos Daleks, mutantes raivosos dentro de
tanques robóticos obcecados pela "pureza" de sua própria espécie e pelo extermínio de todas
as outras (uma alegoria clara ao nazismo). É um evento que remete ao arco Genesis of the
Daleks (1975), da série clássica, no qual o Doutor, no momento dessa literal gênese dos
Daleks, pondera acerca do direito moral de, dado o poder da viagem no tempo, matar ou
deixar morrer na infância alguém que se tornaria algo análogo a Hitler. Ao fim daquela
história ele decide por não fazê-lo. Nessa, entretanto, ele falha em manter sua integridade
moral.
Após um salto de tempo, a trama revela que o Doutor está desaparecido, em fuga,
certo de que o momento de sua morte chegou - paralelamente, a versão presente de Davros,
que em sua última aparição, num roteiro de Russell T. Davies, aparentava ter encontrado sua
morte, está a sua procura. A informação dessa situação na qual o Doutor se encontra vem da
boca de Missy, outra personagem retornando subitamente de uma aparente morte apenas duas
histórias antes, em Death in Heaven (2014). O Mestre, vilão clássico e frequentemente
cartunesco em sua vilania, um Senhor do Tempo que é uma nítida sombra do Doutor, é um
personagem que mais de uma vez já havia retornado dos mortos - de Planet of Fire (1984)
para The Mark of the Rani (1985), ou do telefilme (1996) para Utopia (2007), por exemplo. A
reviravolta forçada que revela um personagem estimado previamente falecido e ausente da
28
história por um tempo como ainda parte do mundo dos vivos é comum a narrativas populares
de certa longevidade - na literatura, Sherlock Holmes famosamente retorna em The Adventure
of the Empty House (1903), anos após sua batalha fatal com Moriarty em The Final Problem
(1893); nos quadrinhos de super-heróis, era comum o ditado que os únicos personagens que
nunca voltam à vida são o Tio Ben, Bucky e Jason Todd, até que hoje a regra só pode ser
aplicada ao Tio Ben de Homem-Aranha (HERMAN, 2004). Aqui, Moffat usa esse tropo
conscientemente - Missy pede com escárnio para que o restante aceite seu retorno com
rapidez e sem ponderação - com um propósito que se torna claro na metade seguinte da
história de dois episódios. Nos momentos finais desta metade, Missy, aqui temporariamente
aliada ao Doutor, parece ser mais uma vez morta, assim como Clara, agora pelos Daleks.
O gancho da morte de ambas é rapidamente resolvido no início de The Witch's
Familiar (2015), e a temática que Moffat aplica nessa ocasião é evidenciada por diálogos
entre Missy e Clara (a bruxa e sua assistente) explanando não somente a sobrevivência das
duas, mas o ponto crucial, o porquê do Doutor - e ela, por extensão - escaparem do fim certo
com tanta constância, por conseguinte o porquê do Doutor acreditar que a hora de sua morte
finalmente chegou. Missy narra uma ocasião cuja justificativa tipicamente empolada para a
sobrevivência do Doutor no último momento possível - envolvendo um cálculo e
hackeamento absurdos feitos em poucos segundos e a adaptação da energia de um tiro fatal
de laser para um dispositivo de teletransporte portátil - foi recriada para forjar sua morte em
Death in Heaven (2014), e salvar tanto a ela quanto a Clara no presente. A vilã então leva
Clara a realizar que extraordinárias e sucessivas evasões do óbito como essa ocorrem em
parte pois o Doutor, como se consciente da imagem de herói, velho sábio e trickster que
projeta e da função que elas cumprem num evento crítico, sempre assume que, ele sendo o
herói que é e tendo a mente que tem, vai vencer - ou escapar - e nesse contexto utiliza seu
cérebro fantástico para solucionar os detalhes do como. É algo próximo a uma quebra da 4.ª
parede pelo roteiro de Moffat - um herói inteligente o suficiente para praticamente saber que
é o herói numa história e dessa forma sairá vitorioso, e de que também é o mago e o
trapaceiro, e assim o fará através de artimanhas estrambólicas e "truques de mágica"
fenomenais. Jung (1971; p. 87) elucida acerca do arquétipo do "feiticeiro" e do "demônio"
(ou, no nosso contexto sci-fi, um alienígena trapaceiro):
"Feiticeiro'' e "demônio" poderiam representar qualidades que, logo se vê, nãocaracterizam qualidades humanas, pessoais, mas mitológicas. "Feiticeiros" e"demônios" são figuras mitológicas, que exprimem a sensação desconhecida,
29
"desumana" (...) Logo, esses atributos não são imputáveis a uma pessoa humana,apesar de geralmente serem projetados em outras pessoas, na forma de juízosintuitivos, sem comprovação crítica e sempre em prejuízo da relação humana. Taisatributos sempre indicam que são conteúdos projetados do inconscientesuprapessoal
Nesse mesmo episódio, situado num planeta alienígena, o Doutor surge
repentinamente com uma xícara de chá e proclama acerca da implausibilidade de tal ação que
"Eu sou o Doutor, simplesmente aceitem"17. Como já discorrido anteriormente, a visão que o
personagem principal tem dele próprio enquanto "O Doutor" nos roteiros de Moffat, como
uma persona desejada e exteriorizada que não corresponde ao todo do si-mesmo, uma espécie
de ficção dentro da ficção, define uma promessa de valores associada ao título e papel.
Similarmente, esse "Doutor" enquanto promessa não somente corresponde a persona do
mundo externo mas também à personalidade-mana associada ao "feiticeiro" mencionado
acima, "o conhecido arquétipo do homem poderoso, sob a forma do herói, do cacique, do
mago, do curandeiro e do santo(...) " (JUNG, 1982: p. 114), ou "uma criatura cheia de
qualidades mágicas e ocultas (mana), dotada de sabedoria e poder mágicos " (JUNG, 1982; p.
113). Ele também escreve:
Diferenciando o eu do arquétipo da personalidade-mana, somos obrigados aconscientizar (...) os conteúdos específicos da personalidade-mana. Historicamente,esta é sempre a detentora de um nome secreto ou de um saber especial, ou ainda daprerrogativa de uma atuação particular (...); numa palavra, ela possui uma distinçãoindividual. (JUNG, 1982; p. 120-121).
A energia sobrenatural da mana (JUNG, 1982; p. 119) não só alimenta os feitos
fantásticos, mas como vemos, a própria vida e sobrevivência do Doutor. Jung (1982; p. 114)
comenta que "é a figura do mago(...) que atrai para si o mana(...) No entanto, só na medida
em que identificar-me inconscientemente com aquela figura, julgarei que sou, eu mesmo, o
possuidor do mana(...) É o que acontece infalivelmente nestas circunstâncias." Ainda que o
Doutor conscientemente veja o mago como algo fabricado, em seus momentos de heroísmo
seu inconsciente se identifica com aquilo, que "emerge do fundo obscuro e toma posse da
personalidade consciente" (JUNG, 1982; p. 114). Parte da razão disto é justamente o Doutor
arrogantemente assumir vitória - sua crença de ter compreendido sua função metatextual é
análoga ao que Jung (1982; p. 113) nomeia "uma projeção ingênua de um autoconhecimento
inconsciente".
17 Tradução livre - "I'm the Doctor, just accept it."
30
Sim, foi um engano, o eu não subjugou a anima e, portanto, não conquistou o seumana. A consciência não se tornou senhora do inconsciente; simplesmente a animaperdeu sua arrogância, e isto na medida em que o eu confrontou- se com oinconsciente. Este confronto não representou, porém, uma vitória da consciênciasobre o inconsciente, mas sim o estabelecimento de um equilíbrio entre os doismundos (JUNG, 1982; p. 115).
Embora não explicitado como anteriormente, o momento em que o Doutor escolhe
não salvar o infante Davros age como uma severa quebra da promessa, dessa vez sem a
desculpa de uma guerra de horror incomensurável e um novo arquétipo de guerreiro. É uma
transgressão que, ao ferir a imagem que tem do herói mítico, faz o eu mediador do Doutor se
compreender indigno das fabulosas façanhas de sobrevivência do "Doutor" arquetípico num
possível confronto com Davros - e, portanto, a origem da certeza de morte com a qual o
personagem se encontra ao início de The Magician's Apprentice (2015), já que "se o eu
desistir de sua pretensão à vitória, cessará automaticamente sua possessão pelo mago"
(JUNG, 1982: p. 115). O psiquiatra também escreve que
existe a possibilidade do indivíduo não identificar-se com a personalidade-mana e
concretizá-la como um "Pai do céu" extramundano, ao qual é atribuído um caráter
absoluto (...) Com isto se atribuiria ao inconsciente uma preponderância igualmente
absoluta (se o esforço da fé o conseguisse), e assim todo o valor se dispersaria no
inconsciente. Logicamente, nada mais resta, neste caso, senão um mísero fragmento
de homem inferior, cheio de pecados (JUNG, 1982; p. 112).
Nesses termos, o Doutor que atinge todo seu potencial extramundano sobrevive, o
homem pecador morre. Essa certeza se estende aos membros da esfera de salvamento do
Doutor herói - Missy indaga à Clara, "O que acontece quando o Doutor acredita que vai
morrer?", que responde "Nós morremos."18 Diz Jung (1971; p. 87), o "conhecimento dos
arquétipos significa um avanço importante. O efeito mágico ou demoníaco sobre a pessoa do
outro desaparece, porque a sensação perturbadora é restituída a uma dimensão definitiva do
inconsciente".
Chegado o desfecho, o Doutor se redime e retorna para salvar seu futuro nemesis
pouco após um diálogo inusitadamente franco com o vilão no presente - Davros,
contemplando, assim como o Doutor, sua morte eminente, elucida uma luta de natureza moral
pela sobrevivência (de outros, e sua própria) como motivação e vocação (com a distinção de
18 Tradução livre - "What happens when the Doctor thinks he's going to die?" (...) "We do".
31
limitar radicalmente os "outros" a seu próprio povo e considerar a exterminação do restante
como necessária ao processo), se posicionando, assim como o Mestre/Missy, como sombra
do protagonista. Aquilo que Davros criou a partir de seu povo, os Daleks, foram afinal feitos
mutantes para sua sobrevivência, transformados para viver de maneira equiparável à
regeneração dos Senhores do Tempo. Numa reviravolta súbita, ao mesmo modo absurdo que
a narrativa propositalmente ilustra para o Doutor e Missy, Davros garante sua sobrevivência.
The Magician's Apprentice/The Witch's Familiar (2015) se estabelece como uma à eterna
recorrência dos arquétipos dos heróis e de suas sombras. Prestes a ser morta pela enésima
vez, Missy comenta que acabou de ter "uma ideia muito inteligente".19
Quanto a Clara, sua morte também não chega, porém ocorre mais a frente na
temporada, em Face the Raven (2015), escrita por Sarah Dollard (sob supervisão de Moffat),
numa culminação de um arco que a aproximou sua caracterização àquela do próprio Doutor, a
personagem conscientemente espelhando suas atitudes naquelas do titular. A morte se dá
quando Clara assume um risco muito alto para salvar uma amigo, numa situação arquitetada,
a mando de personagens ocultos, por "Eu"/Ashildr (Maisie Williams, de Game of Thrones),
uma personagem introduzida nesta temporada com o próprio arco espelhando o Doutor. Em
The Girl Who Died (2015), co-escrito por Moffat e Jamie Mathieson, Ashildr era uma jovem
viking ressuscitada pelo Doutor, utilizando tecnologia apropriada de uma raça alienígena
guerreira, após uma epifania pelo Senhor do Tempo que renova sua percebida missão de
tentar salvar todas a qualquer custo. The Woman Who Lived (2015), de autoria de Catherine
Tregenna, confirma o medo do Doutor que a ressurreição possa ter sido permanente (e criado
uma nova imortal) ao apresentar, no século XVII, uma Ashildr de 800 anos que agora carrega
apenas o nome de "Eu" (em inglês, Me) - muito como a persona em Jung , uma identidade
básica externa que a carrega através dos anos, que esconde o peso cansativa e constante
mudança de identidades precedentes, e age como "promessa" egônica de não se deixar
influenciar emocionalmente pelas vidas mortais de duração para ela efêmera. Face the Raven
(2015) coloca "Eu" na Londres dos dias de hoje, oposta ao Doutor.
O arco de Clara em especial teve suas sementes plantadas já na introdução da
personagem duas temporadas antes. "A Garota Impossível", como era chamada na temporada
de número 7 (2012-2013), aparece primeiramente em dois episódios separados, Asylum of the
19 Tradução livre - "a very clever idea."
32
Daleks (2012) e The Snowmen (2012), como versões completamente distintas da mesma
personagem - a primeira uma tripulante de uma nave espacial no futuro e a segunda uma
residente de Londres no século XIX - ambas morrendo ao fim de seus episódios em
circunstâncias similares, salvando o Doutor de algum perigo mortal. Em The Bells of Saint
John (2013), o Doutor passa a viajar com a versão de Clara dos dias atuais, intrigado pelo
mistério da ressurreição e pela identidade da "Mulher Duas Vezes Morta". Todas as três têm
uma profissão relacionada à infância - animadora mirim, governanta, e babá,
respectivamente. Os paralelos com o Doutor são claros - configurações diferentes de uma
personagem, as quais morrem e são substituídas por outras semelhantes, mas não iguais; uma
personagem que pertence simultaneamente ao passado, presente e futuro, tende a
heroicamente salvar seu co-protagonista, cujas origens são enigmáticas e cujo trabalho
envolve seu exemplo no desenvolvimento de crianças (um paralelo metatextual neste
exemplo específico). A Clara de The Snowmen (2012) até mesmo retira um Doutor, então
aposentado, melancólico e relutante, da vida comum que havia construído na Inglaterra
vitoriana, agindo como o arauto do chamado à aventura campbelliano que o Doutor
normalmente é a seus companions. The Name of the Doctor (2013) revela que Clara é
simplesmente uma humana comum dos tempos atuais, que por meio de dispositivos
narrativos de viagem no tempo e num paradoxo ontológico, tem nesta história cópias suas
espalhadas pela linha do tempo do Doutor com a função de salvá-lo. A ênfase aqui é, com
isso, no seu espelhamento do Doutor enquanto uma função a qual ela se insere através de
contextos fantásticos, seu espelhamento do Doutor enquanto ideia, imagem, persona
exteriorizada, não algo a ela primordialmente intrínseco - a Clara "real" não chega a morrer
de fato, apenas seus ecos provenientes de um artifício da fantasia; sua "vida após a morte" só
ocorre quando todas as Claras são compreendidas como uma única.
Ainda que a 8.ª temporada (2014) tenha amenizado a temática de espelhamento
Clara/Doutor e focado na vida corriqueira da personagem - agora uma professora de literatura
para crianças - a 9.ª o retoma com ênfase no aspecto comportamental ao invés do contextual,
e no proposital ao invés do circunstancial. A morte de Clara é resultado de sua mimese do
Doutor, do seu agir literalmente segundo princípio postulado em The Witch's Familiar (2015)
de mergulhar no perigo e assumir riscos já presumindo vitória e sobrevivência, mesmo
enquanto sendo simplesmente humana - tal princípio, simbólico do poder da autoconfiança e
da consciência de responsabilidades, é parte do que garante a sobrevivência do Doutor, porém
este ainda provém de um contexto fantástico; trata-se de um alienígena de uma sociedade de
33
avanços técnico-científicos e de longevidades absurdas, além daqueles da humanidade. O
Doutor em Moffat é explicitado diegeticamente como um ser que pertence ao território da
ficção, dos arquétipos e das lendas. Se o "Doutor persona" e o "Doutor si-mesmo" são da
perspectiva do Doutor o "ficcional" e o "real", por essa ordem, da perspectiva do espectador,
daquela do mundo real, são ambos obviamente ficcionais. Clara faz parte de um pedaço
daquele Universo que representa diretamente o mundo real, que apesar de tocar o mundo da
fantasia o faz apenas em águas rasas, e o fracasso da companion em compreendê-lo decorre
no titular "confronto com o corvo" do episódio em que perece tentando imitar o Doutor de
maneira excessivamente fiel. Retornando ao conceito de personalidade-mana, Jung sugere
cautela, e que alguém
Poderá, entretanto, mudar de atitude em relação a ele, evitando assim o risco desucumbir ingenuamente a um arquétipo no caso de desempenhar um papel à custade sua humanidade. O homem possuído por um arquétipo converte-se numa figuracoletiva, numa espécie de máscara atrás da qual sua humanidade não podedesenvolver-se, atrofiando-se cada vez mais. Devemos por isso ter cuidado de nãosucumbir à dominante da personalidade-mana. Esse perigo consiste em ter deassumir a máscara paterna ou então o de ficar entregue à dita máscara, usada poroutro. Neste sentido, mestre e discípulo se equivalem (JUNG, 1982; p. 119-120).
Em Heaven Sent (2015) e sua sequência Hell Bent (2015), que concluem a 9.ª
temporada, o Doutor é levado aos extremos (e além) tanto de sua persona quanto de si
próprio para garantir o retorno de Clara à vida. Heaven Sent (2015), que segue Face the
Raven (2015) diretamente, apresenta um Doutor que, após cair numa armadilha, é teleportado
sozinho e aprisionado num castelo mecanizado, o qual eventualmente reconhece como uma
câmara de tortura feita sob medida para ele próprio. É um estudo de personagem do 12.º
Doutor de Peter Capaldi, que o tem isolado e como único membro do elenco por quase a
totalidade do episódio, tentando descobrir a natureza de sua prisão, a identidade de seus
captores e um meio de fuga, ao mesmo tempo em que lida com o luto por Clara. O Doutor
tem que fazê-lo enquanto escapa de uma criatura que faz alusão à própria morte - um corpo
decrépito, rodeado por insetos e envolto num véu, que tenta alcançar o Doutor de maneira
devagar, mas constante, resoluta, imparável. Ele descobre que, tratando-se de uma câmara de
tortura, consegue retardar a criatura ao fazer confissões - declarar verdades até então não
ditas. O sucesso impendente da criatura é apontado por evidências de vários habitantes
prévios do castelo, incluindo um depósito de centenas de crânios. Algumas das evidências
são pistas intencionais que fornecem orientação para os próximos passos do Doutor, como as
34
que o levam a sala de número 12, onde uma parede de cristal hiper duro bloqueia o caminho
"para casa", e a palavra "pássaro".
O personagem de Capaldi também percebe que o edifício automatizado está num ciclo
fechado de energia, ou seja, a maioria das salas é resetada, retorna à mesma formação original
na qual o Doutor as encontrara após certo tempo. A conclusão que ele chega a partir desse
detalhe é mórbida - os crânios são os dele mesmo, e os habitantes prévios que o deixaram
pistas suas cópias, possibilitadas pelo reset da máquina de teletransporte, uma sucedendo a
outra após cada uma das intermináveis mortes. Com isso, o Doutor parte para murrar a parede
de cristal enquanto recita o conto do pastorzinho dos Irmãos Grimm20, que fala sobre o
"pássaro" cujo tempo excepcionalmente longo de picadas para erodir uma montanha
simboliza a eternidade, e permite que a criatura o alcance e o fira fatalmente; se arrastando ao
teletransporte, ele se "queima" num ato suicida, energizando o dispositivo e assim reiniciando
o ciclo. Uma sequência exibe as consecutivas cópias do Doutor repetindo quase que
igualmente os eventos do episódio até então, por éons, cada um mais próximo de quebrar a
parede de cristal. A intenção de Moffat em ter Heaven Sent (2015) como uma destilação de
da totalidade repetitiva Doctor Who é evidente quando o Doutor ferido pondera: "Por quanto
tempo posso continuar fazendo isso, Clara? Queimar o meu eu antigo para fazer um novo."21
A própria necessidade do Doutor ter que confessar algo espelha a tendência meta-textual dos
roteiros de Moffat de refletir sobre e expor a semiose do programa. As pistas pelas cópias
anteriores deixadas espelham como a memória e padrões do passado configura o plano de
ação de Doctor Who no presente. O espelhamento assim também se estende à jornada do
herói, manifesto no momento em que a parede de cristal fratura - a casa é literal, e o Doutor
encontra Gallifrey depois de tê-la salvado. Desta forma um porquê da intenção de Moffat em
ter escrito tal episódio destilação do todo de Who - contexto para o próximo.
O título do finale da 9.ª temporada, Hell Bent (2015), é uma expressão em inglês
definida pelo dicionário de Cambridge como "estar extremamente determinado a fazer algo,
sem considerar os riscos ou resultados possivelmente perigosos" (MCINTOSH, 2013). Sua
tradução direta é "inclinado ao Inferno". É apropriado em ambos sentidos, já que é uma
história que continua a obstinação mostrada na anterior, e dos limites éticos
consequentemente ultrapassados pelo Doutor para trazer Clara de volta ao plano dos vivos e
21 Tradução livre - "How long can I keep doing this, Clara? Burning the old me to make a new one."20 Disponível em - https://www.grimmstories.com/pt/grimm_contos/o_pastorzinho
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se vingar de seu povo. Gallifrey representa o Inferno como um espaço que traz ao Doutor
desconforto - um mundo do qual decidiu fugir séculos antes, campo da Guerra do Tempo e
causador do sofrimento por qual passou nos episódios mais recentes - e também, devido a
sua condição como fonte da mais elevada tecnologia de manipulação temporal, e assim o
ponto de mais fácil para o encontro dos mortos condenados, como Clara o foi pelas ações dos
Senhores do Tempo - eles queriam uma confissão do Doutor acerca de um "Híbrido" previsto
como catalisador da ruína de Gallifrey. É pela segunda vez, a primeira em Dark Water/Death
in Heaven (2014), uma recontagem do mito grego de Orfeu e Eurídice, desta vez com o
Doutor no papel de Orfeu. Enquadrando-a na jornada do herói de Campbell, é uma fusão do
estágio da tentação (CAMPBELL, 1999; p. 121-123) e subsequente ida ao Abismo (p.
126-144) com o mais óbvio do retorno ao lar, como profetizado em The Day of the Doctor
(2013). O retorno ao lar ocorre quando o herói se torna o Senhor dos Dois Mundos
(CAMPBELL, 1999; p. 225-231), quando após ter conquistado seus demônios no mundo do
desconhecido, interna e, metaforicamente, externamente, a volta ao seu mundo comum inclui
reassumir parte de sua identidade original junto da nova. Simbolicamente, o Doutor troca seu
casaco vermelho aveludado - Doctor-y, segundo Clara - por um preto, mais básico e rústico,
pouco após chegar ao deserto de seu planeta natal; a máscara do "Doutor" benevolente e
afável é comprometida em função do si-mesmo, mas ele ainda utiliza da obstinação, da
sagacidade e dos métodos e histórico extraordinários desenvolvidos junto ao Doutor persona
para estabelecer a seu povo com quem estão lidando. A promessa do nome do Doutor é
abalada, ele sucumbe à tentação de usar suas habilidades extraordinárias, que o desvia de sua
jornada heróica - "lealdade" (aqui a valores) e "temperança" mencionados por Campbell
(2009; p. 163) como "exigências básicas para uma carreira heróica" - enquanto ignora a
natureza questionável de suas ações e projeta qualquer responsabilidade em outrem, seu
próprio povo. Ao agora "anti-herói" que torna à casa, todavia, que sob outro contexto está não
um desvio mas guinada sombria de sua jornada, um "Senhor dos Dois Mundos" invertido, as
"bênçãos heróicas"são mantidas.
A estética cinematográfica estabelecida pela diretora Rachel Talalay também evoca o
gênero do faroeste e seus arquétipos - manifesta o protagonista rebelde abatido pelo ambiente
severo ("infernal" até mesmo) em que se encontra, caminhando em espaços morais ambíguos
e retornando à civilização que renegou para afirmar sua versão pessoal de justiça. O Doutor
de aparência mais velha de Capaldi é aqui não dissimilar ao personagem de Clint Eastwood
em Os Imperdoáveis (1992), e a imagem do território como "fronteira" também é evocada, a
36
fronteira mítica que vai cruzar de volta o lar, e o "recomeço de vida" que pretende dar a
Clara.22
Por meio de mentiras e manipulação maquiavélica por parte do Doutor, os Senhores
do Tempo são convencidos a abduzirem Clara de sua linha do tempo meros instantes antes de
sua morte. Ela é posta num estado "temporalmente suspenso", no qual funções biológicas
como um pulso cardíaco e respiração estão congeladas, assim como envelhecimento - um
estado "morto-vivo". O Doutor escala a quebra do próprio código ao empunhar uma arma e
lesionar fatalmente outro de sua espécie - que se regenera - para tentar fugir com Clara. Seu
próximo passo os leva à uma área subterrânea de Gallifrey ligada à Matrix dos Senhores do
Tempo, cuja iluminação escassa, estruturas de pedra cobertas por vegetação lembram um
cemitério abandonado num filme de horror. Nela, descrita como uma zona sem escapatória,
espectros holográficos de Gallifreyanos mortos rodeiam como fantasmas e junto a monstros
constituem uma imagem do Submundo grego. Repetindo o ato que originou sua jornada, ali o
Doutor rouba uma velha TARDIS, cuja cenografia interior imita a da TARDIS original de
1963. Como já exposto, Campbell escreve que a jornada do herói é cíclica, pois mesmo após
completa ela tende a repetir-se sob novos contextos e novos inconscientes a serem explorados
- para o Doutor a tendência é reforçada, pois permanece na jornada indefinidamente já era seu
hábito antes de chegar ao estágio final. Clara ainda comenta sobre a previsibilidade desse ato
de fuga de Gallifrey em particular. Levando-a ao extremo fim do Universo, o Doutor espera
que o fim deste e o enfraquecimento das leis da natureza permitam que Clara se livre do
estado morto-vivo de suspensão temporal. Ter atirado num Senhor do Tempo o Doutor foi
cruel e covarde, e aqui a covardia chega a novo nível, potencializando consequências
catastróficas ao descumprir com as regras fundamentais da realidade. Num reencontro com
"Eu"/Ashildr no fim dos tempos, a imortal - agora anciã e sábia bilhões de anos além do
Doutor, no papel do Deusa do monomito (CAMPBELL, 1999; p. 111-121) que, "no mais
extremo canto da terra" (p. 112), que o leva a uma renovada apreciação da preservação da
natureza (CAMPBELL; MOYERS, 2009, p. 192), avaliando a "santidade da própria terra"
(CAMPBELL; MOYERS, 2009, p. 175), ou universo no presente contexto. "Eu" também se
enquadra como Pai no Abismo (CAMPBELL, 1999; p. 126-144) detentor da versão última do
poder do Doutor (sua longevidade e conhecimento), aos olhos de quem deve se redimir. Ela
expõe o caráter destrutivo e extremo da relação da companion que mimetiza o Doutor e do
22 Arquétipos do faroeste disponíveis em - https://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Main/WesternCharacters (eminglês)
37
Doutor que encontra numa companion um espelho seu, uma companion que traz nele o seu
pior ao invés do melhor como de praxe, que o faz acreditar em demasiado no potencial de ter
um igual que com ele compartilhe da eternidade literal. O Híbrido temido pelos Senhores do
Tempo é dessa forma a combinação do Doutor com Clara. A solução é que devem se separar,
e pelo menos um deve prescindir da memória do outro - Clara deve se livrar dos vestígios do
Doutor para que Universo a permita retomar sua vida comum, o Doutor dos de Clara retornar
a seu eu prévio. A memória é enfatizada como existência. Ambos decidem escolher na sorte
quem terá a mente apagada.
Um fator importante na contextualização de Hell Bent (2015) é sua moldura narrativa
- o enredo entrecorta as seções em Gallifrey com cenas numa lanchonete num deserto
norte-americano, numa extensão da estética de faroeste para aquela do faroeste
contemporâneo, na qual o Doutor e Clara conversam mas aparentemente sem reconhecerem
um ao outro, com Clara na posição de garçonete emigrada do velho mundo (a Inglaterra) e o
Doutor na do cliente viajante, flâneur, os quais são "andarilhos ociosos motivados apenas pela
libido da curiosidade apática"23 (CHARLES, 2013; p. 95), posição tradicional a qual retorna
após a obstinação exacerbada desta e da última história e da renovação do propósito da busca
pela casa no especial de 50 anos. Diz Charles (2013; p. 95) do Doutor como flâneur, que "ele
passa de diversão em diversão em suas aventuras episódicas, sem qualquer senso de
compromisso contínuo."24 Com uma guitarra aos ombros, o alienígena reconta os eventos da
outra metade do episódio como um velho contador de histórias. Junto a esse recontar é
esclarecido que foram do Doutor as memórias apagadas, não as de Clara, que apenas finge
não reconhecê-lo. Ele elabora que, a despeito de ter as memórias, os detalhes, destruídos,
"quando algo desaparece, você sempre consegue reconstruí-lo pelo buraco que deixou".25
Tudo o que resta de Clara é justamente uma história, mas o Doutor mais cedo no episódio
declara que "Toda história já contada realmente aconteceu. Histórias são para onde memórias
vão quando são esquecidas".26 O episódio então visualmente revela ao espectador, mas não ao
Doutor, que a lanchonete é apenas o disfarce da nova e recém-roubada TARDIS. Clara assim
completa sua transformação numa duplicata do Doutor, iniciando suas aventuras com
26 Tradução livre - "every story ever told really happened. Stories are where memories go when they'reforgotten."
25 Tradução livre - "when something goes missing, you can always recreate it from the hole they've left."
24 Tradução livre - "he moves from diversion to diversion in his episodic adventures without any sense ofongoing commitment."
23 Tradução livre - "idle wanderers motivated only by the libido of listless curiosity."
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"Eu"/Ashildr como companion, seu estado de suspensão temporal a concedendo
"imortalidade temporária", contanto que eventualmente retorne ao evento de sua morte.
Temáticas semelhantes haviam ocorrido no final da 5.ª temporada, The Pandorica
Opens/The Big Bang (2010), que envolve a personagem de River Song, o universo é
consumido por rachaduras no tempo decorrentes de uma explosão da TARDIS. O único
planeta remanescente, a Terra, sobrevive numa linha do tempo alternativa em que sempre foi
sempre o único corpo celeste a existir - um mundo sem estrelas, que gradativamente tem mais
de sua história apagada, e assim se encontra à beira da extinção. O Doutor sacrifica sua
própria existência num processo em que utiliza resquícios do mundo anterior para restaurar o
Universo. Revivendo seu passado enquanto tem sua linha do tempo desatada, o Doutor
reencontra a versão criança de Amy/Amelia e recita a ela uma auto-eulogia, enfatizando o
papel de memórias, e a transformação delas em histórias, como caminho para uma metafórica
sobrevivência post-mortem. Profere a Amy que "somos todos histórias no fim", e lhe suplica
que faça da dela uma boa.27 São essas memórias que, no campo do fantástico de Doctor Who,
permitem que a "história" do Doutor volte a ser parte da realidade diegética após a Amy
adulta lembrar dele, influenciada pelo diário de River. Como no ciclo-cosmogônico descrito
por Joseph Campbell (1999; p. 261-262), o mundo e seus personagens são restaurados por
"sonhos", histórias abstratas mal lembradas, que permitem após uma fase de trevas que aquilo
que foi assimilado sobrou do mundo tome nova forma no mundo renascido. Charles (2011; p.
20) escreve sobre este momento que "a história do doutor não é menos real que a narrativa de
qualquer uma de nossas vidas."28
Moffat retoma a temática da 5.ª temporada de histórias como forma de vida eterna
para contextualizar a ressurreição de Clara. Ao completar sua transformação no "arquétipo"
do próprio Doutor, ela também se transforma em apenas uma história também para o Doutor
como para o espectador - Clara sai de sua vida por completo - e de nossas telas - seus
vestígios do passado existentes apenas como reconstruções fictícias na psique do
protagonista.
28 Tradução livre - "the story of the Doctor is no less real than the narrative of any of our lives"27 Tradução livre - "We're all stories in the end"
39
Ao não encontrar sua companhia definitiva e igual em Clara como esperava, esta
agora, como o próprio eu Doutor, é mais uma vez destacada o lado solitário do flâneur no
personagem, associado por Charles ao do trickster junguiano (CHARLES, 2013), já que
"quanto mais essa figura busca significado e plenitude, mais esses fenômenos lhe escapam"
(CHARLES, 2013; p. 96). Para servir como uma representação encarnada da multiplicidade e
variabilidade dos arquétipos enquanto define as jornadas heróicas de seus companions (e
potencialmente dos espectadores) o personagem deve retornar a seu paradoxal estado
inconstante, e Moffat leva o Doutor a estágios não antes explorados de sua própria jornada
para demonstrá-lo - o ultrapassar do Doutor de sua função comum é tratado como corrosivo à
virtude inerente à jornada do herói. Embora mudança seja natural ao Doutor, ao shapeshifter,
e à sobrevivência de um signo em si no storytelling, certos padrões devem ser mantidos -
assim como o eu e a sombra de Jung, e do ficcional e do real nas obras de Steven Moffat, o
movimento se dá na tensão de forças opostas. Conformemente, Heaven Sent (2015)
demonstra como a imagem estranha e fantástica que o Doutor assume para seus companions é
parte do que diegeticamente faz o personagem lidar com sua solidão, e consequentemente
peça do seu motor de ação. "Eu não sou nada sem uma audiência"29, ele comenta. A solidão,
todavia, esse seu destacamento da sociedade, não pode ser suprimida: "O flâneur está ao
mesmo tempo dentro e fora da multidão, um pária, um estranho (...) Mas a multidão não
alivia sua solidão; o contraste entre as massas abundantes e seu eu solitário agrava isso" 30
(CHARLES, 2013; p. 96).
O Doutor recebe certo consolo à sua solidão no após Hell Bent (2015) ao reencontrar
River Song em The Husbands of River Song (2015). Tal episódio termina com o Doutor tendo
que compartilhar seu último encontro com River antes desta caminhar para sua morte na
Biblioteca em Silence in the Library (2008) (tratado no capítulo anterior). River o conforta
fazendo-o repensar como avalia a eternidade que deseja desfrutar com outros. River
argumenta que "felizes para sempre não significa sem um fim, significa apenas tempo."31
Aqui ele se prova digno de receber a dádiva da Deusa após seu encontro com ele na forma de
"Eu"/Ashildr em Hell Bent (2015), a "bênção do amor(...) que é a própria vida, aproveitada
como invólucro da eternidade" (CAMPBELL, 1999; p. 119). Joseph Campbell (2009; p. 238)
também comenta que
31 Tradução livre - "Happily ever after doesn't mean forever. It just means time."
30 Tradução livre - "The flâneur is at once within and outside the crowd, an outcast, an alien (...) But the crowddoes not relieve his loneliness; the contrast between the teeming masses and his solitary self exacerbates it."
29 Tradução livre - "I'm nothing without an audience."
40
quando a imortalidade é mal compreendida, como se fosse um corpo duradouro,isso se torna um ato desvirtuado. Por outro lado, quando a imortalidade écompreendida com o que há de eternidade em sua vida de agora, então aí sim vocêtem algo de valioso.
Na próxima temporada, a sobrevivência de Bill Potts em The Doctor Falls (2017) é
mais uma instância de vida eterna atingida no tornar-se eco do Doutor - afinal, Bill termina
sua jornada de apenas uma temporada no programa transformando-se em algo, no sentido
bio-molecular, não-humano, partindo para uma vida de aventuras pelo Universo e com sua
namorada como companion. Ao fazê-lo, todavia, ela se posiciona além do Doutor, ao mesmo
modo que "Eu" na temporada anterior, já tendo aceitado a mudança, e age como a divindade
através da qual o Doutor relutante a se regenerar recebe a "benção" campbelliana do
recomeço. O arco heroico pessoal de Bill é concluído quando esta ascende a um literal estado
divino posterior a seu sacrifício, porém um cuja forma assemelha-se a de sua antiga persona,
e portanto capaz de adentrar o seu mundo comum novamente como dominante de ambos
(CAMPBELL, 1999; p. 225).
Na história final de Moffat e Capaldi, Twice Upon a Time (2017), o já mencionado
retorno do personagem do 1.º Doutor conclui a tendência do autor de por o Doutor em frente
a um espelho para ressaltar sua natureza arquetípica é levada a sua versão máxima. O roteiro
põe em relevo o como a versão original do personagem não havia ainda se moldado na figura
heroica associada ao "Doutor" na atualidade enquanto ambos evitam sua regeneração. Uma
conversa com o Testemunho (descritos no capítulo anterior) na forma de Bill Potts, o 1.º
Doutor confessa uma das razões pelas quais deixou Gallifrey - compreender qual a força
misteriosa que mantém o bem no universo. Esse tipo de força, "fonte última ou causa das
energias do mistério do Universo" (CAMPBELL, 2009; p. 217) recai aos mitos às
divindades, que Campbell chama "máscaras da eternidade" (p. 217-22). A resposta de Bill
sugere indiretamente o próprio Doutor, noutro exemplo característico a Moffat de fazer Who
refletir sobre si próprio - da nossa perspectiva como espectadores, daquilo que vemos daquele
universo, o Doutor é realmente a causa primária do bem. Diegeticamente, assim como o
nome do Doutor inspirou a palavra Doutor por conta da movimentação atemporal e presença
eterna de seu portador, essa fonte emanante de bem consegue se aplicar ao espaço-tempo
como um todo. A maneira como Bill descreve essa fonte é notável em sua casualidade -
41
"talvez seja só um cara"32. Ao contrastar o Doutor de carne e osso com uma potencialidade
mais condizente a uma entidade metafísica, a personagem de Bill usa do metatexto para
reforçar o Doutor enquanto, símbolo, arquétipo, e indiretamente referenciar sua competência
inspiratória a outros - tanto diegética quanto extra-diegeticamente. "As imagens do mito são
reflexos das potencialidades espirituais de cada um de nós. Ao contemplá-las, evocamos os
seus poderes e nossas próprias vidas" (CAMPBELL, 2009; p. 217). Na novelização de The
Day of the Doctor (MOFFAT, 2013; p. 230), a personagem do Momento fala ao Senhor do
Tempo: "Você não faz ideia de quão necessário você é (...) Sério, Doutor. Se você não
existisse teríamos que sonhá-lo".33
A relutância dos Doutores em se regenerar é uma recusa do retorno (CAMPBELL,
1999; p. 195-197), sob a interpretação não somente do antigo "mundo do desconhecido" (o
Universo) como o novo "mundo comum" do Doutor, mas também do novo mundo comum
como a própria renovação de sua função como o Doutor perante o mundo, o próprio ciclo, a
própria inconstância como um ponto final e inicial interminável. A recusa do retorno é dessa
forma simultânea à recusa do chamado, ao recomeço da jornada; a inconstância entre
encarnações o novo mundo comum, a próxima encarnação individual o novo desconhecido.
Segundo Campbell (1999; p. 123), "o aventureiro deve ainda retornar com o seu troféu
transmutador da vida. O círculo completo, a norma do monomito, requer que o herói inicie
agora o trabalho de trazer os símbolos da sabedoria (...) de volta ao reino do humano". Sua
atuação como Doutor é tal símbolo da sabedoria, e seu exercê-lo perante o Universo em sua
vastidão, não apenas Gallifrey, demonstra este universo antigamente desconhecido como
novo comum.
Se para o Doutor de Capaldi a recusa trata-se de um desejo de falecer no mesmo
"êxtase celeste" que outros heróis que recusam retornar, para o Primeiro Doutor trata-se de
uma dúvida da possibilidade de se "comunicar a mensagem de sua realização" (CAMPBELL,
1999; p. 123).
O Doutor de Capaldi finalmente decide se regenerar após observar a mesma decisão
por parte de seu passado, num momento que como na presença do Curador de Tom Baker
33 Tradução livre - "You have no idea how necessary you are(...) Truly, Doctor. If we didn't exist we would haveto dream you"
32 Tradução livre - "maybe it's just a bloke"
42
evoca um olhar extra-diegético (HILLS, 2014; p. 107-108), tornando-se então o Senhor dos
Dois Mundos no entendimento do mundo desconhecido como seu novo lar, quando
compreende e valoriza o ciclo e a repetição da eternidade e sua responsabilidade de
compartilhar seus dons.
A 12.ª encarnação em seus minutos finais reafirma positivamente o "Doutor" herói,
arquetípico, como âncora entre todas as suas identidades, repetindo a promessa associada
para o "Doutor" futuro em terceira pessoa (no caso a "Doutora" de Jodie Whittaker). O
conhecimento que ele põe em virtude do Universo como Senhor dos Dois Mundos
(CAMPBELL, 1999; p. 225) é resultado da soma de todos das experiências nos mundos
desconhecidos de todas as suas encarnações passadas. Ainda sobre o Senhor dos Dois
Mundos, Campbell discorre (1999; p. 231):
O indivíduo, por meio de prolongadas disciplinas espirituais, renunciacompletamente aos vínculos com suas limitações e idiossincrasias, esperanças etemores pessoais, já não resiste à auto-aniquilação, que constitui o pré-requisito dorenascimento na percepção da verdade, e assim fica pronto, por fim, para a grandesintonia. Suas ambições pessoais estão dissolvidas, razão por que ele já não tentaviver, mas simplesmente relaxa diante de tudo o que venha a se passar nele; ele setorna, por assim dizer, um anônimo (...) Muitas são as figuras (...) que representamesse estado último de presença anônima. Os sábios dos retiros de eremitas e osmendigos vagantes (...) ou o Deus mascarado (...) eis alguns exemplos.
Diria Nietzsche (2008; p. 201-202), referindo-se à recorrência eterna do mesmo,
"como te seria necessário amar a vida e amar a ti mesmo para não desejar outra coisa que
essa suprema e eterna confirmação, esse eterno e supremo selo." Se a recorrência eterna é da
própria mudança, entretanto, recordar as variações é crucial para atingir tal amor-próprio. O
11.º Doutor (Matt Smith) declarou antes de se regenerar: “Todos nós mudamos, quando você
pensa sobre isso. Somos todos pessoas diferentes ao longo de nossas vidas. E tudo bem, isso
é bom, você tem que continuar se movendo, contanto que você se lembre de todas as pessoas
que você costumava ser.”34
A sobrevivência indefinida do indivíduo por mudança, em conjunto com uma
identidade sintetizada por rememoração dos eus passados, se aproxima do tropo "Moffatiano"
da sobrevivência através de histórias, de ficções criadas a partir do como recordamos algo,
cuja abstração em arquétipos permite remodelações diversas. É também outro comentário
34 Tradução livre - “We all change, when you think about it. We’re all different people all through our lives. Andthat’s OK, that’s good, you gotta keep moving, so long as you remember all the people that you used to be.”
43
metatextual seu, como as confissões em Heaven Sent (2015), à própria necessidade de seu
auto-analisar para se poder transformar e seguir em frente.
4. Conclusão
Neste artigo, foram exploradas as ocorrências do pós-vida em Doctor Who, em
especial nos episódios escritos por Steven Moffat. Suas manifestações do pós-vida ocorrem
através de quatro diferentes artifícios sci-fi, como as realidades virtuais em Silence in the
Library (2008), Dark Water/Death in Heaven (2014) e Twice Upon a Time (2017);
metamorfoses corporais como as tradicionais regeneração dos Senhores do Tempo e
conversão cibernética dos Cybermen, além dos nanorrobôs que criam as crianças ocas em The
Empty Child/The Doctor Dances (2005); e deslocamentos temporais proporcionados por
viagem no tempo - como aqueles envolvendo seres imagéticos que escapam o próprio tempo,
os Weeping Angels. Demonstrou-se que as ocorrências estão correlatas ao protagonista do
Doutor em si, à atemporalidade que emana pessoalmente de sua longevidade extrema, quase
imortal, e relacionamento não-linear com o tempo quando comparado a vidas normais e,
assim, da solidão e destacamento do mesmo, do peso que a morte o traz, e de sua posição
como herói salvador que proporciona as vidas estendidas ou combate versões sinistras delas.
Foi elucidado que em Moffat, a evolução para além do contexto de existência regular
como forma de extensão de vida e a redefinição da própria morte, consideram o papel da
memória e recordação em fazê-lo, além da aplicação de valor à vida extendida só ocorrer
quando a identidade humana é preservada. Portanto, tais representações são análogas à
sobrevivência de algo via seu tomar parte em histórias - auto-referenciando o status fictício e
imaginário do seu objeto - uma forma de sobrevivência, embora abstrata nesse seu ser, que já
é realidade e também atemporal. O Doutor é, nesses termos, descrito como alguém que
desgosta dos finais de histórias, já que a sua não apresenta um. Como diz Charles (2011; p.
15), "Moffat avança um borrão entre realidade e fantasia e, portanto, entre vida e morte."35
Levando em conta essa natureza metanarrativa e reflexiva das narrativas de Moffat,
e a relação estabelecida entre a vida estendida com o personagem do Doutor herói, cuja
35 Tradução livre - "Moffat advances a blurring between reality and fantasy, and thereby between life and death."
44
regeneração (a dele e do próprio programa) denotam sobrevivência por mudança, o texto
examina como Moffat desconstrói Doctor Who ao fazê-lo refletir de maneira singular e
autoconsciente conceitos típicos a histórias sem fim - o monomito (ou jornada do herói)
definido por Joseph Campbell e os arquétipos descritos por Carl Jung, padrões que se
manifestam numa miríade permutações, como os objetos deste artigo fazem numa
micro-escala. Foi descoberto que o Doutor nunca chega aos estágios finais do retorno no
mito, repetindo o ciclo monomítico de forma irregular ao tornar o mundo do desconhecido e
o ato de se transformar em si o seu novo mundo comum, afirmando positivamente a vida
como repetição eterna após roteiros como Hell Bent (2015) o desviarem de seu caminho
comum. Tratando de roteiros como The Day of the Doctor (2013) e The Magician's
Apprentice/The Witch's Familiar (2015), concluiu-se que a sobrevivência estendida do
indivíduo é compreendida em Moffat como endêmica à figura arquetípica, heroica e
"mágica", do Doutor. O roteirista separa o Doutor arquétipo da figura diegeticamente real do
Doutor, condição da qual o protagonista meta textualmente reconhece de maneira análoga aos
conceitos de persona e seu si-mesmo. Parte da representação com a qual Moffat o faz é por
meio de outros personagens que simulam o Doutor-arquétipo quando interagem com o
verdadeiro, como Clara, Missy, e "Eu"/Ashildr, ou outras encarnações do mesmo em enredos
multi-Doutor - por vezes o excedendo em sua sobrenaturalidade mítica (Ashildr), por vezes
falhando em atingi-la (Clara), com resultados positivos ou negativos. Também
compreende-se que o arquétipo do Doutor se iguala a de uma personalidade-mana,
simultaneamente intra e extra diegeticamente, através do qual se domina ou perde suas
habilidades fantásticas. Em todos esses casos (especialmente no da morte e eventual
ressurreição de Clara, apartada do Doutor até mesmo em memórias para tanto), a ênfase é no
Doutor como ficção dentro da ficção de forma a ressaltar o potencial dos arquétipos (e das
histórias) como espécie de metamorfose e consequente conquista da morte quando rememora
e reflete abstratamente a nós humanos para além dos limites do tempo.
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THE Three Doctors. Roteiro: Bob Baker e Dave Martin. Reino Unido: BBC, 1972-1973.
Son., color. Série Doctor Who.
PLANET of the Spiders. Roteiro: Robert Sloman. Reino Unido: BBC, 1974. Son., color.
Série Doctor Who.
THE Deadly Assassin. Roteiro: Robert Holmes. Reino Unido: BBC, 1976. Son., color. Série
Doctor Who.
THE Five Doctors. Roteiro: Terrance Dicks. Reino Unido: BBC, 1983. Son., color. Série
Doctor Who.
PLANET of Fire. Roteiro: Peter Grimwade. Reino Unido: BBC, 1984. Son., color. Série
Doctor Who.
THE Mark of the Rani. Roteiro: Pip e Jane Baker. Reino Unido: BBC, 1985. Son., color.
Série Doctor Who.
DOCTOR Who: The Curse of Fatal Death. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido:
BBC/Comic Relief, 1999. Son., color.
48
THE Empty Child/The Doctor Dances. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2005.Son., color. Série Doctor Who.
RISE of the Cybermen/The Age of Steel. Roteiro: Tom MacRae. Reino Unido: BBC, 2006.
Son., color. Série Doctor Who.
BLINK. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2007. Son., color. Série Doctor Who.
UTOPIA. Roteiro: Russell T. Davies. Reino Unido: BBC, 2007. Son., color. Série Doctor
Who.
SILENCE in the Library/Forest of the Dead. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC,2008. Son., color. Série Doctor Who.
THE Stolen Earth/Journey's End. Roteiro: Russell T. Davies. Reino Unido: BBC, 2008. Son.,color. Série Doctor Who.
THE Eleventh Hour. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2010. Son., color. SérieDoctor Who.
THE Time of Angels/Flesh and Stone. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2010.Son., color. Série Doctor Who.
THE Pandorica Opens/The Big Bang. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2010.Son., color. Série Doctor Who.
THE Impossible Astronaut/Day of the Moon. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC,2011. Son., color. Série Doctor Who.
A Good Man Goes to War. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2011. Son., color.Série Doctor Who.
THE Wedding of River Song. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2011. Son., color.Série Doctor Who.
ASYLUM of the Daleks. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2012. Son., color. SérieDoctor Who.
49
THE Angels Take Manhattan. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2012. Son., color.Série Doctor Who.
THE Snowmen. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2012. Son., color. Série DoctorWho.
THE Bells of Saint John. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2013. Son., color. SérieDoctor Who.
THE Name of the Doctor. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2013. Son., color.Série Doctor Who.
THE Night of the Doctor. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2013. Son., color.Série Doctor Who.
THE Day of the Doctor. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2013. Son., color. SérieDoctor Who.
THE Time of the Doctor. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2013. Son., color. SérieDoctor Who.
DEEP Breath. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2014. Son., color. Série DoctorWho.
DARK Water/Death in Heaven. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2014. Son.,color. Série Doctor Who.
THE Magician's Apprentice/The Witch's Familiar. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido:BBC, 2015. Son., color. Série Doctor Who.
THE Girl Who Died. Roteiro: Jamie Mathieson e Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2015.Son., color. Série Doctor Who.
THE Woman Who Lived. Roteiro: Catherine Tregenna. Reino Unido: BBC, 2015. Son.,
color. Série Doctor Who.
FACE the Raven. Roteiro: Sarah Dollard. Reino Unido: BBC, 2015. Son., color. Série Doctor
Who.
50
HEAVEN Sent. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2015. Son., color. Série Doctor
Who.
HELL Bent. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2015. Son., color. Série Doctor
Who.
THE Husbands of River Song. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2015. Son., color.
Série Doctor Who.
THE Pilot. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2017. Son., color. Série Doctor Who.
WORLD Enough and Time/The Doctor Falls. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC,
2017. Son., color. Série Doctor Who.
TWICE Upon a Time. Roteiro: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2017. Son., color. Série
Doctor Who.
PRESS Gang. Reino Unido: BBC, 1989-1993. Son., color.
COUPLING. Reino Unido: BBC, 2000-2004. Son., color.
SHERLOCK. Reino Unido: BBC, 2010-2017. Son., color.
JEKYLL. Reino Unido: BBC, 2007. Son., color.
DRÁCULA. Reino Unido: BBC/Netflix, 2020. Son., color.
AS Aventuras de Tintin. Direção de Steven Spielberg. EUA/Nova Zelândia:
Paramount/Columbia, 2011. Son., color.
STAR Trek: A Nova Geração. EUA: Paramount, 1987-1994. Son., color.
MARY Poppins. Direção de Robert Stevenson. EUA: Walt Disney Productions, 1964. (139
min.), son., color.
51
OS Imperdoáveis. Direção de Clint Eastwood. EUA: Warner Bros, 1992. (131 min.), son.,
color.
Abstract
This article explores the concepts of the afterlife through the prism of science fiction in
episodes of the British series Doctor Who, the various ways in which and why it manifests
itself in the object episodes, framing it in 4 different types of sci-fi afterlife, and later
investigates the treatment of eternity and stories in the work of the same author from the
perspective of Joseph Campbell's monomyth (Hero's Journey) and Carl Jung's archetypes.
The text demonstrates through several examples how these portrayls in Moffat's stories take
place in a metatextual and self-reflective way, elucidating within the show's diegesis the
material's nature as a work of fiction, correlated to the timeless and fluid nature of the stories
and the patterns represented in them. The article also explains how the narrative act of
observing itself in Moffat is used as part of the process of survival as a story.
Keywords: Doctor Who; Steven Moffat; afterlife; never-ending stories; monomyth;
arqchetypes; sci-fi
Anexo
Lista de Episódios de Doctor Who Escritos por Steven Moffat
The Empty Child/The Doctor Dances (T1E9/10, 2005)
The Girl in the Fireplace (T2E4, 2006)
Blink (T3E10, 2007)
Silence in the Library/Forest of the Dead (T4E8/9, 2008)
The Eleventh Hour (T5E1, 2010)
The Beast Below (T5E2, 2010)
52
The Time of Angels/Flesh and Stone (T5E4/5, 2010)
The Pandorica Opens/The Big Bang (T5E12/13, 2010)
A Christmas Carol (Especial de Natal, 2010)
The Impossible Astronaut/Day of the Moon (T6E1/2, 2011)
A Good Man Goes to War (T6E7, 2011)
Let's Kill Hitler (T6E8, 2011)
The Wedding of RIver Song (T6E13, 2011)
The Doctor, the Widow and the Wardrobe (Especial de Natal, 2011)
Asylum of the Daleks (T7E1, 2012)
The Angels Take Manhattan (T7E5, 2012)
The Snowmen (Especial de Natal, 2012)
The Bells of Saint John (T7E6, 2013)
The Name of the Doctor (T7E13, 2013)
The Day of the Doctor (Especial de Aniversário de 50 Anos, 2013)
The Time of the Doctor (Especial de Natal, 2013)
Deep Breath (T8E1, 2014)
Into the Dalek (T8E2, 2014, com Phil Ford)
Listen (T8E4, 2014)
Time Heist (T8E5, 2014, com Stephen Thompson)
The Caretaker (T8E6, 2014, com Gareth Roberts)
Dark Water/Death in Heaven (T8E11/12, 2014)
Last Christmas (Especial de Natal, 2014)
The Magician's Apprentice/The Witch's Familiar (T9E1/2, 2015)
The Girl Who Died (T9E5, 2015, com Jamie Mathieson)
The Zygon Inversion (T9E8, 2015, com Peter Harness)
Heaven Sent/Hell Bent (T9E11/12, 2015)
The Husbands of River Song (Especial de Natal, 2015)
The Return of Doctor Mysterio (Especial de Natal, 2016)
The Pilot (T10E1, 2017)
Extremis (T10E6, 2017)
The Pyramid at the End of the World (T10E7, 2017, com Peter Harness)
World Enough and Time/The Doctor Falls (T10E11/12, 2017)
Twice Upon a Time (Especial de Natal, 2017)