Sob capas e mantos: roupa e cultura material na vila de Itu, 1765-1808

250
LIGIA SOUZA GUIDO SOB CAPAS E MANTOS: ROUPA E CULTURA MATERIAL NA VILA DE ITU, 1765-1808. Campinas 2015

Transcript of Sob capas e mantos: roupa e cultura material na vila de Itu, 1765-1808

LIGIA SOUZA GUIDO

SOB CAPAS E MANTOS: ROUPA E CULTURA MATERIAL NA

VILA DE ITU, 1765-1808.

Campinas

2015

ii

iii

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

LIGIA SOUZA GUIDO

SOB CAPAS E MANTOS: ROUPA E CULTURA MATERIAL NA

VILA DE ITU, 1765-1808.

Orientadora: Profa. Dra. Leila Mezan Algranti

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Estadual de Campinas, para

obtenção do título de Mestra em História, na área de concentração Política, Memória e

Cidade.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA LIGIA SOUZA GUIDO, ORIENTADA PELA PROFA. DRA. LEILA MEZAN ALGRANTI E APROVADA PELA COMISSÃO JULGADORA EM 11/02/2015.

CAMPINAS

2015

iv

v

vi

vii

RESUMO

O presente trabalho dedica-se ao estudo das roupas nas dimensões material e simbólica no

período que corresponde ao crescimento da produção açucareira e da consolidação do

núcleo urbano da vila de Itu, capitania de São Paulo, entre 1765 e 1808. A aparência dos

indivíduos em uma sociedade com características de Antigo Regime aliada a presença da

escravidão consistia em um elemento importante de identificação e ordenamento social. A

materialidade é compreendida através da descrição e da valoração atribuídas aos artefatos

têxteis descritos principalmente nos arrolamentos de bens dos inventários post-mortem.

Procedemos ao levantamento de informações complementares sobre os indivíduos junto aos

Maços de População (censos) e em trabalhos de genealogia. Também coletamos dados

sobre as importações de produtos realizadas pela de vila de Itu nos Mapas de Importação,

relação pertencente aos Maços de População. Através dos bens descritos na documentação

de quarenta e quatro inventariados que residiam na vila de Itu, foi possível montar um

quadro da composição material dos bens dos indivíduos e seus domicílios, vislumbrando

suas fontes de rendas, seus espaços de trabalho, de moradia, bem como os objetos que

compunham os seus pertences. No momento em que os bens eram divididos entre os

herdeiros, os objetos ou a quantia referente aos dotes ou adiantamentos de heranças eram

mencionados, evidenciando assim, a circulação de bens promovida em vida e após o

falecimento de um dos genitores. Além dos inventários da vila de Itu, foram consultados

vinte e quatro inventários póstumos da cidade de Lisboa, referentes aos mesmos anos da

amostra ituana, para efeito de comparação entre os padrões metropolitanos e coloniais

de tipos de roupas, tecidos e adereços em circulação antes da abertura dos portos brasileiros

em 1808.

Palavras-chave: Vestuário, Cultura Material, Vila de Itu (São Paulo).

viii

ix

ABSTRACT

This work is dedicated to the study of clothing considering both material and symbolic

dimensions in the period that corresponds to the growth of sugar production and to the

consolidation of the urban nucleus of the small town Itu, captaincy of São Paulo, between

1765 and 1808. The appearance of the individuals in a society during the so-called Old

Regime, combined with the presence of slavery was an important element of identification

and social ranking. Materiality is understood from the description and the rating assigned to

the textile articles described mainly in listing of goods of post-mortem inventories. The

survey was conducted for further information on individuals from the Maços de População

(census) and genealogy work. We also collected data on imports of products made by the

Itu village next to the Mapas de Importação, this relationship belonging to the Maços de

População. Through the goods described in the documentation of forty-four inventoried

residing in small town Itu, it was possible to assemble a picture of the material composition

of the assets of individuals and their homes, seeing their sources of income, their

workspaces, housing and the objects that made up their belongings. By the time the goods

were divided among the heirs, the objects or the amount related to gifts or inheritances of

advances were mentioned, thus underlining the movement of goods promoted in life and

after the death of a parent. Besides the inventories from Itu, nineteen posthumous

inventories of Lisbon were consulted, relating to the same years of Ituana sample for

comparison between metropolitan and colonial patterns of kinds of garments, fabrics and

accessories in circulation before the opening of Brazilian ports in 1808.

Key words: Clothing, Material Culture, Small town Itu (São Paulo)

x

xi

SUMÁRIO

Introdução..............................................................................................................................1

Capítulo 1 A vila do açúcar: configuração espacial e a posse de bens em Itu...............23

1.1 Aspectos históricos e populacionais de Itu.....................................................................24

1.2 Os cabedais dos ituanos nos inventários póstumos.........................................................50

1.3 O ambiente doméstico e os bens têxteis..........................................................................73

Capítulo 2 O vestuário da vila de Itu despido em detalhes.............................................85

2.1 O bens têxteis: materialidade e valor monetário.............................................................87

2.2 Os itens de vestuário nas listas de importação e no estoque da loja de Itu...................112

2.3 Uso público e doméstico dos trajes...............................................................................119

Capítulo 3 “Cerzindo” objetos e sujeitos: consumo, circulação e representação das

vestimentas na vila de Itu.................................................................................................135

3.1 Padrões cotidianos de vestuário....................................................................................135

3.2 A circulação de roupas: dotes, doações, dívidas, partilhas e arrematações..................153

3.3 O material e o imaterial nas aparências: religiosidade, representações e honra...........172

Considerações finais..........................................................................................................193

Referências bibliográficas................................................................................................197

Glossário.............................................................................................................................213

xii

xiii

Aos meus pais Wilson e Maria Luiza.

À memória do meu padrinho Reinaldo

Leopassi.

xiv

xv

AGRADECIMENTOS

Agradeço à CAPES pela bolsa concedida no período inicial do mestrado e à

FAPESP pelas bolsas de mestrado e de estágio de pesquisa no exterior (BEPE),

financiamentos imprescindíveis para a realização deste trabalho.

À minha orientadora Leila Mezan Algranti, pela confiança que depositou em mim.

Presente, atenciosa e humana, soube motivar e me guiar nesses últimos três anos.

Agradeço aos membros da minha banca de defesa de mestrado, Profa. Dra. Maria

Aparecida de Meneses Borrego e Profa. Dra. Adriana Angelita da Conceição, por toda a

contribuição e atenção que dispensaram ao trabalho, desde o exame de qualificação até a

defesa. À Profa. Dra. Milena Maranho e à Profa. Dra. Márcia Almada, sou muito grata por

comporem a suplência, dispondo de seu tempo para a leitura deste trabalho.

Aproveito para agradecer a todos os professores que contribuíram com a discussão

do projeto, ideias e debates promovidos durante as disciplinas da pós-graduação,

especialmente à Profa. Dra. Izabel Andrade Marson e à Profa. Dra. Iara Lis Schiavinatto.

Aos funcionários do Museu Republicano “Convenção de Itu” Maria Cristina, José

Renato e Alzira, da biblioteca, por toda a atenção e ajuda, à Anicleide e Giovanna do

Arquivo Histórico. Aos funcionários da biblioteca do Museu Paulista e à Profa. Dra. Teresa

Cristina Toledo de Paula, conservadora do setor de têxteis, pela indicação de valiosa

bibliografia.

Ao Prof. Dr. Carlos de Almeida Prado Bacellar e Daisy Ferraz de Bonna, por

cederem os arquivos da documentação digitalizada. Agradeço imensamente Silvana Alves

de Godoy, por disponibilizar para consulta as planilhas que confeccionou a partir dos

Maços de População da Vila de Itu.

xvi

Agradeço à Anicleide Zequini, Aline Zanatta e Michelle Tasca por toda a ajuda

quando ainda iniciava a escrita do projeto de pesquisa. As sugestões, apontamentos e

leituras foram muito importantes.

Para a confecção do banco de dados contei com a ajuda de Rosilene e Matheus do

CESOP, Profa. Dra. Milena Maranho, Daisy Ferraz e de Márcio Faria. Muito obrigada!

Durante a realização do estágio de pesquisa em Portugal contei com o apoio de

muitas pessoas. Agradeço à Universidade do Minho e à Profa. Dra. Isabel dos Guimarães

Sá pela supervisão do estágio de pesquisa. O intercâmbio foi extremamente produtivo. Fui

muito bem acolhida pela Profa. Dra. Isabel, e também pelo seu grupo de orientandos,

especialmente por Andreia Durães, que me auxiliou na seleção das fontes no Arquivo

Nacional da Torre do Tombo. Sou grata também aos pesquisadores Leonor, Bruno, Hélder,

Alice e Luciane, pelas conversas e sugestões de pesquisa.

Agradeço o empenho e ajuda que Ângela Valério, do Museu Nacional do Traje

dispensou a mim, durante a pesquisa que realizei na biblioteca desta instituição. À Profa.

Dra. Marta Lourenço do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, pelo convite

para apresentar minha pesquisa no Seminário de Estudo de Caso de Cultura Material, cujo

debate foi muito instigante.

Henrique e Michelle estiveram presentes em todas as etapas do trabalho em

Portugal, amigos para todas as horas. Agradeço à Dona Isabel, Elisabete e David a

acolhida, e à Dona Ana, Walmira, Luciane e Régia, a companhia.

Tive a ajuda de Juliana e Smirna na revisão do texto. Obrigada Mariana Bernardes

pelas correções dos textos em inglês e Danielle Siltori, pelas sugestões.

As disciplinas da pós-graduação significaram mais do que o cumprimento dos

créditos, foram realmente momentos de trocas e de aprendizado. Agradeço o

companheirismo dos meus colegas Carol, Bea, Fayga, Gabriela Assis, Gabriela Berthou,

Ana Luísa, Raíssa, Paula, Michelle, Henrique, Samuel, Felipe, Arthur, Walter, Caroline,

Eliane, Juliana, Luciana e Tiago.

xvii

Agradeço à Raíssa, Natália e Stella, pela hospitalidade durante um ano inteiro.

Tiago, Fayga, Bea, Gabe e Raíssa mostraram que é possível encarar tudo de uma maneira

divertida.

Obrigada Luciana pelas diversas leituras, sugestões e palavras de incentivo. Tenho

uma dívida imensa contigo.

Agradeço a todos os meus queridos e valiosos amigos, envolvidos direta ou

indiretamente, que me ajudaram, confortaram, dividiram as angústias e entenderam as

ausências.

Márcio Faria teve imensa paciência e interesse pelo trabalho, acompanhando de

forma próxima e atenciosa todas as etapas. Sem seu amor e companheirismo, tudo seria

mais difícil.

E finalmente, à minha família, que me apoiou incondicionalmente desde o momento

que decidi me dedicar exclusivamente ao mestrado. Palavras não expressam a minha

gratidão.

xviii

xix

Nos meses anteriores à fuga, como recordou

Madame Campan, Maria Antonieta deu uma

atenção excessiva à forma como iria vestir-se

longe de Paris, como se os seus trajes de cores

monárquicas fossem uma promessa dos

privilégios que ela acreditava estar prestes a

recuperar. Ao renegar as cores da militância

revolucionária e voltar a abraçar as cores ligadas

ao Antigo Regime, e ao reunir o seu antigo

“ministério da moda” para a vestir para o seu

triunfo iminente, Maria Antonieta indicava que,

dali para a frente, a única agenda política revelada

pelo seu vestuário era a sua. Tinha apenas mais

um vestido enganador para usar antes de ela e a

família ficarem finalmente livres.

Caroline Weber

xx

xxi

ABREVIATURAS

AESP: Arquivo Público do Estado de São Paulo

ANTT: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa

ARQ/MRCI: Arquivo Histórico do Museu Republicano “Convenção de Itu”

xxii

xxiii

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Relação entre número de fogos e habitantes da vila de Itu, 1773-1813...............38

Tabela 2 – Distribuição dos inventariados por faixas de bens, Itu, 1765-1808....................58

Tabela 3 – Roupas da casa, vila de Itu, 1765-1808...............................................................74

Tabela 4 – Matérias-primas têxteis arroladas nos domicílios ituanos, 1765-1808..........80-81

Tabela 5 – Informações sobre as peças de roupas masculinas, vila de Itu......................87-88

Tabela 6 - Objetos de uso pessoal relacionados à aparência, Itu, 1765-1808.......................96

Tabela 7 – Tipos de peças de roupas femininas, quantidades e valores, vila de Itu, 1765-

1808.......................................................................................................................................98

Tabela 8 - Composição dos bens dotados aos filhos de Inácia e José do Amaral

Gurgel..........................................................................................................................156-157

xxiv

xxv

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Distribuição das casas dos inventariados por ruas da vila de Itu, 1765-1808.....71

Quadro 2 - Bairros identificados na área rural................................................................72-73

Quadro 3 – Relação de cores e tecidos por peças de roupas masculinas, Itu........................89

Quadro 4 – Vestuário e joias pertencentes a Inácio Leite da Fonseca, 1806, Itu..................90

Quadro 5 – Vestuário e joias pertencentes a Antonio Francisco da Luz, 1805, Itu..............92

Quadro 6 – Bens de Inácio Pacheco da Costa, 1806, Itu......................................................94

Quadro 7 – Relação de cores e tecidos por peças de roupas femininas, Itu..........................99

Quadro 8 – Vestuário, objetos de uso pessoal e joias pertencentes a Ana Maria da Silveira,

1805, Itu..............................................................................................................................100

Quadro 9 – Relação das roupas femininas presentes no arrolamento de bens de José Manoel

da Fonseca Leite, 1798, Itu.................................................................................................101

Quadro 10 – Vestuário e objetos de uso pessoal pertencentes a Mariana Leite Pacheco,

1779, Itu..............................................................................................................................102

Quadro 11 - Roupas masculinas por peças, tecidos e porcentagem ao total da amostra

lisboeta.........................................................................................................................105-106

Quadro 12 - Roupas femininas por peças, tecidos e porcentagem ao total da amostra

lisboeta, 1765-1808......................................................................................................108-109

Quadro 13 - Vestuário e objetos de uso pessoal pertencentes à Angélica Perpétua Rosa

Portella, 1802, Lisboa.........................................................................................................110

Quadro 14 – Tecidos do estoque da loja de João Fernandes da Costa, 1801, Itu........115-116

Quadro 15 - Bens relacionados na dívida de Vicente Gonçalves Braga com Antônio José

Ferraz Ferreira, 1808...........................................................................................................138

Quadro 16 – Esquema genealógico da Família de José Manoel da Fonseca Leite.............145

Quadro 17 - Relação das peças de roupas inventariadas no rol de bens de José Manoel da

Fonseca Leite e sua partilha, 1798......................................................................................146

Quadro 18 - Primeiro casamento de José do Amaral Gurgel..............................................154

Quadro 19 - Segundo casamento de José do Amaral Gurgel..............................................156

xxvi

Quadro 20 - Roupas recebidas em forma de dote pelas filhas de Inácia e José do Amaral

Gurgel..................................................................................................................................157

Quadro 21 - Terceiro casamento de José do Amaral Gurgel..............................................162

Quadro 22 – Relação das roupas e herdeiros na partilha dos bens de José do Amaral Gurgel,

Itu, 1806..............................................................................................................................163

Quadro 23 – Esquema genealógico da Família Costa Aranha............................................172

xxvii

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Valor em réis dos bens totais inventariados divididos por categorias...............61

Gráfico 2 - Posse de engenho................................................................................................63

Gráfico 3 - Relação do número cativos nos espólios de Itu, 1765-1808..............................64

Gráfico 4 - Ocorrência de bens agrupados por produção açucareira....................................64

Gráfico 5 - Valor dos bens de raiz em relação ao total dos bens, Itu, 1765-1808.................66

Gráfico 6 - Materiais e técnicas construtivas dos bens de raiz da vila de Itu, 1765-1808...67

Gráfico 7 - Perfis e ocorrências de bens de raiz em Itu, 1765-1808.....................................70

Gráfico 8 – Tecidos provenientes de Lisboa importados pela vila de Itu (em peças).........113

Gráfico 9 – Tecidos provenientes do Porto importados pela vila de Itu (em peças)...........114

Gráfico 10 – Relação das meias de seda importadas por Itu provenientes de Lisboa.........117

Gráfico 11 – Número de chapéus importados por ano e o porto de origem.......................118

xxviii

xxix

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Figura por estimação da Vila de Itu, por José Custódio Sá e Faria, 1774............30

Figura 2 - Mapa Estilizado da Vila de Itu em 1830, por André Santos Luigi......................31

Figura 3 – Bairros rurais e área central da Vila de Itu, século XIX......................................34

Figura 4 - Largo de São Francisco, Miguel Dutra, 1845......................................................36

Figura 5 - Vestido Império confeccionado em cassa, 1810................................................111

Figura 6 - Uniforme de Gala, século XIX...........................................................................123

Figura 7 – Casula do século XVIII.....................................................................................125

Figura 8 – Exemplo de manto e mantilha, final do século XVIII, Portugal.......................128

Figura 9 – Penteador, século XIX.......................................................................................131

Figura 10 – Vicente Taques por Miguel Dutra...................................................................187

Figura 11 - Vicente da Costa Taques Góes e Aranha por Benedito Calixto.......................188

xxx

1

INTRODUÇÃO

Inácio Leite da Silveira foi morador da vila de Itu. Faleceu no ano de 1806, com 68

anos de idade1, deixando quatro filhos já adultos do seu primeiro matrimônio, e dois

menores, do segundo casamento com Escolástica Ferraz de Camargo. Na ocasião, um

contava dois anos e o segundo era, recém-nascido.2

Escolástica e Inácio viviam em um sítio no bairro Cajuru, próximo à estrada para a

vila de Nossa Senhora da Ponte de Sorocaba. No sítio havia três lanços de casas de parede

de taipa de mão, cobertas de telhas, um paiol e as casas de engenho do mesmo material,

tendo recebido a avaliação de 600$000 (seiscentos mil réis)3. A propriedade continha

objetos de cobre e estanho, a saber: as ferramentas para diversos usos, como serras,

martelos, ferro de marcar animais, enxadas, bem como acessórios do engenho: os tachos de

cobre, cano de alambique e escumadeiras. Na casa do sítio, dispunham de móveis como

duas mesas, três catres4, três caixas, um armário e um oratório com três imagens pequenas,

no total de 9$680 (nove mil, seiscentos e oitenta réis)5. Alguns pratos de louça fina

importada contrastavam com peças de montaria feitas de couro de onça, de preguiça e

peças de couro de veado, itens confeccionados com elementos rústicos. Também

compunham o sítio seis cativos, os animais de criação, porcos, bois e os aparatos de duas

juntas de bois6.

Possuía ainda outro imóvel, uma casa na rua do Conselho, de taipa de pilão, coberta

de telhas com quintal, no valor de 100$000 (cem mil réis). Na casa da vila, havia utensílios

domésticos como duas bacias de pé de cama, um candeeiro, um ferro de engomar, um tacho

e alguns móveis, oito caixas, uma mesa com gaveta, dois bancos, dois catres e um estrado.

1 ARQ/MRCI - GODOY, Silvana Alves de. Tabela dos Maços de População da vila de Itu. 2 ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folha 3. 3 ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folha 10. 4 Leito de pés baixos, de lona e dobrável. Vide SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da língua portuguesa.

Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. Vol. 1, p. 362. 5 ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folha 8 verso. 6 ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folhas 9 – 10.

2

Também havia dois colchões de pano de algodão no valor de $640 (seiscentos e quarenta

réis) e duas redes, sendo uma velha de varandas, outra nova, sem varandas, avaliadas cada

uma em 1$600 (mil e seiscentos réis)7. De roupas da casa, o casal possuía lençóis de

algodão e de cassa, toalha de algodão com franja, toalhinha de mãos de algodão, colcha

também de algodão pintada e um cobertor de Castela somando 9$420 (nove mil,

quatrocentos e vinte réis), objetos que expressam o padrão observado nos bens avaliados.

Porém, são nas roupas de uso pessoal e demais objetos relacionados à aparência que recai

nosso interesse: um chapéu, um par de botas, dois pares de esporas, dois pares de fivelas

para sapatos e um par de fivelas para calção avaliados em 23$200 (vinte e três mil e

duzentos réis)8. De calçados, possuía um par de botas de veado já usadas, no valor de $960

(novecentos e sessenta réis).

No total, as roupas somaram 24$400 (vinte e quatro mil e quatrocentos réis). As

peças de pano azul foram avaliadas em 9$480 (nove mil, quatrocentos e oitenta réis)

consistiam em um casacão, um fraque e um capote, de baeta azul havia um timão novo em

3$200 (três mil e duzentos réis). Ademais, encontramos duas camisas de bretanha no preço

de 2$560 (dois mil quinhentos e sessenta réis), dois pares de meias de algodão em $480

(quatrocentos e oitenta réis), um jaleco e um par de meias de fustão em $800 (oitocentos

réis) cada, um calção preto de duraque em $880 (oitocentos e oitenta réis), um lenço de

pescoço sem informar tecido no preço de $200 (duzentos réis) e um hábito de terceiro do

Carmo descrito pelo avaliador como já muito usado e com todos os seus pertences, no valor

de 6$000 (seis mil réis)9.

Todas as roupas foram confeccionadas com tecidos estrangeiros, possivelmente

algumas delas fossem importadas já prontas, apresentam semelhança com o vestuário

europeu (casaca, calção), particularmente com o português (capote) e expressa a influência

da moda inglesa (fraque) além dos tecidos (bretanha). Em menor quantidade, encontramos

7 Varandas ou barandas consistiam em “Guarnições laterais da rede, ornadas de franjas ou borlas esfiadas que

são as bonecas da varanda.” Vide CASCUDO, Luís da Câmara. Rede de dormir: uma pesquisa etnográfica.

São Paulo: Global, 2003. p. 15. 8 ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folhas 11 verso e 12.

9 ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folhas 11 verso e 12.

3

peça de uso doméstico (timão) e a indumentária dos leigos religiosos pertencentes às ordens

terceiras (hábito). As peças de roupas de Inácio revelam o padrão do vestuário ituano entre

os anos de 1765 e 1808. Este recorte compreende o período de crescimento da produção

canavieira e de concentração demográfica na vila de Itu, capitania de São Paulo. A

produção do açúcar voltada para exportação foi incentivada pelo governador da capitania,

Morgado de Mateus.10

A localidade ituana destacou-se até a década de 1830 como a maior

produtora de açúcar da capitania, constituindo a base da riqueza de muitas famílias que em

meados do século XIX se estabeleceram no oeste paulista, em Campinas, Rio Claro,

Ribeirão Preto, dedicando-se à cafeicultura.

No final do século XVIII, muitas famílias ituanas tinham nas propriedades

localizadas nos bairros rurais as benfeitorias para a produção do açúcar, plantação de

mantimentos e as casas de vivenda. Também contavam com uma casa na área central da

vila, onde guardavam os bens mais valiosos relacionados à aparência, como joias,

acessórios como chapéus, fivelas de sapatos, de calção e roupas, especialmente as de maior

valor e os hábitos de ordens terceiras. Através do arrolamento dos bens nos inventários

póstumos realizamos a análise da posse de bens e da materialidade dos artefatos. Buscamos

discutir também a questão do consumo, da circulação e dos usos das roupas, considerando a

dimensão simbólica, importante, pois tratamos de uma sociedade altamente hierarquizada,

permeada por práticas e mentalidades do Antigo Regime, onde “a ostentação pública do

lugar ocupado por cada um e de suas prerrogativas tinha importante significado político.”11

Neste sentido, as roupas constituem-se em um importante elemento da aparência.

Apresentamos de forma breve as principais obras e vertentes das ciências humanas

e, especialmente da história que versaram sobre a roupa e a moda.

De acordo com Maria Lúcia Bueno, entre o final do século XIX e início do XX,

surgiram alguns estudos que buscavam oferecer uma “chave para pensar a moda no mundo

10 BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus

em São Paulo (1765-1775). 2. Ed. São Paulo:Alameda, 2007. p. 83. 11

LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São

Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 86.

4

capitalista e industrializado, elaborado com base na teoria da distinção social”12

, uma vez

que a moda já era concebida como um elemento de “reconstrução das fronteiras sociais na

sociedade burguesa.”13

Os principais estudos dessa linha de interpretação são As leis da

imitação, de Gabriel Tarde, A teoria da classe ociosa, de Thorstein Veblen e Filosofia da

moda, de Georg Simmel.14

Segundo o filósofo Lars Svendsen, os três estudos partem da teoria do

“gotejamento”, difundida por Immanuel Kant e Herbert Spencer. Este termo gotejamento

foi empregado para explicar que a inovação da moda ocorreria primeiro em um estrato

social mais alto, passando depois para as camadas mais baixas, que se esforçariam para

igualar-se às camadas superiores através da imitação.15

A explicação clássica de difusão da

moda está amparada nesta formulação do gotejamento.16

Já na década de 1960, a proposta teórica de se tratar a moda através da Semiologia

de Fernand Saussure foi empreendida por Roland Barthes no livro Sistema da moda, cujo

objeto é “a análise estrutural do vestuário feminino tal qual ele é hoje descrito pelos jornais

de Moda.”17

Segundo o autor, o trabalho não se enquadra totalmente à Semiologia e à

Linguística, pois seu foco de investigação “não trata nem do vestuário nem da linguagem,

mas, sim, da „tradução‟ duma e da outra, contanto que a primeira já seja um sistema de

signos.”18

Lars Svendsen problematizou a abordagem estruturalista para análise da moda.

Explicou ele que

as roupas podem ser consideradas semanticamente codificadas, mas trata-se de

um código com uma semântica extremamente tênue e instável, sem quaisquer

regras realmente invioláveis. As palavras também mudam de significado de

acordo com o tempo e o lugar, mas a linguagem verbal é muito estável, ao passo

12 BUENO, Maria Lúcia. “Moda e Ciências Humanas”. In: CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe,

gênero e identidade das roupas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006. p. 10. 13 BUENO, Maria Lúcia. “Moda... p. 10. 14 TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Paris: Felix Alcan, 1890; SIMMEL, George. Philosophie de la

modernité. Paris:Payot, 2004; VEBLEN, Thorstein. A teoria da classe ociosa. Sâo Paulo: Livraria Pioneira

Editora, 1965. 15 SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 42 16 SVENDSEN, Lars. Moda... p. 46 17 BARTHES, Roland. Sistema da moda. São Paulo: Ed. Nacional: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979. p. XIX. 18 BARTHES, Roland. Sistema... p. XIX.

5

que a semântica do vestuário está em constante mudança. Esta é uma importante

razão por que a abordagem estruturalista às modas no vestuário não funciona

muito bem: esse método pressupõe significados bastante estáveis. Não por

coincidência, foi seu trabalho em O sistema da moda que levou Roland Barthes a

abandonar o estruturalismo clássico.19

Na década de 1980, o historiador Roger Chartier, elencou o conceito de

representação como um elemento chave para a história cultural, pois “a representação é

instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente através da sua

substituição por uma “imagem” capaz de o reconstituir em memória e de o figurar tal como

ele é”, definiu o autor20

. Acerca do vestuário, ao pensarmos nas relações entre a roupa e

quem a vestia, considerando as pessoas, os espaços e eventos que frequentavam, bem como

a recepção/percepção da aparência por seus contemporâneos, Chartier nos indicou

que a distinção fundamental entre representação e representado, entre signo e

significado, é pervertida pelas formas de teatralização da vida social de Antigo

Regime. Todas elas tem em vista fazer com que a identidade do ser não seja outra

coisa senão a aparência da representação, isto é, que a coisa não exista a não ser

no signo que a exibe.21

Ao estudar os aspectos simbólicos da cultura, as contribuições de Pierre Bourdieu

também são importantes referências teóricas para a análise da vestimenta enquanto

elemento simbólico. 22

Para o autor, os símbolos são os instrumentos por excelência da

„integração social‟ pois “enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação (...),

eles tornam possível o consenso acerca do sentido do mundo social que contribui

fundamentalmente para a reprodução da ordem social”23

. Na busca pela distinção e

dominação simbólica, Bourdieu apontou que as disputas “que têm o poder simbólico como

19 SVENDSEN, Lars. Moda... p. 79 20 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa/ Rio de Janeiro,

Difel/Bertrand, 1990. p. 20 21 CHARTIER, Roger. A História... p. 21 22 “Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas. (...) Mas o essencial é que, ao serem

percebidas por meio dessas categorias sociais de percepção, desses princípios de visão e de divisão, as

diferenças nas práticas, nos bens possuídos, nas opiniões expressas tornam-se diferenças simbólicas e

constituem uma verdadeira linguagem. As diferenças associadas a posições diferentes, isto é, os bens, as

práticas e sobretudo as maneiras, funcionam, em cada sociedade, como as diferenças constitutivas de sistemas

simbólicos, como o conjunto de fonemas de uma língua ou o conjunto de traços distintivos e separações diferenciais.” BOURDIEU, Pierre. Razões praticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. p. 22 23 BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 10

6

coisa em jogo, quer dizer, o que nelas está em jogo é o poder sobre um uso particular de

uma categoria particular de sinais.” 24

Ao criticar as análises baseadas na semiótica, o antropólogo Daniel Miller chamou

atenção para o peso dos artefatos sob as pessoas, pois sob a perspectiva semiológica, a

roupa “é reduzida à habilidade de significar algo que parece mais material (sociedade ou

relações sociais), como se estas coisas existissem acima ou anteriormente à sua própria

materialidade.”25

Concordamos com a crítica de Miller à semiótica, pois a roupa sozinha

emanaria um código, uma informação, e o sujeito que a veste teria nessa equação uma

participação pequena ou mesmo nula.

Miller e Ulpiano Meneses sugerem caminhos de investigação parecidos, que

contemplam a interação, ou seja, a relação entre sujeito e objeto de forma equilibrada,

considerando elementos materiais, simbólicos, sociais, psicológicos em escala de igualdade

e importância.26

O autor inglês propôs que é necessário

confrontar os trecos: reconhecê-los, respeitá-los; nos expor à nossa própria materialidade, e não negá-la. Meu ponto de partida é que nós também somos

trecos, e nosso uso e nossa identificação com a cultura material oferecem uma

capacidade de ampliar, tanto quanto de cercear, nossa humanidade.27

Assim, acreditamos ser necessário analisar de forma ponderada o peso e papel dos

sujeitos e objetos, visto que no caso da aparência, é a interação destes dois elementos, ou

seja, em todas as ações que integram o ato de vestir-se, que são cruciais para nossa

investigação.

Em relação a trabalhos descritivos e ilustrativos sobre história da moda, cabe

destacar três estudos produzidos na segunda metade do século XIX, entre eles a obra

História do Vestuário, de Carl Köhler que se distingue das demais pela grande abrangência

24 BOURDIEU, Pierre. O Poder… p. 72 25 MILLER, Daniel. Introduction. In: KÜCHLER, Susanne; MILLER, Daniel. (ed.) Clothing as material

culture. Oxford:Berg, 2005. p. 2 Tradução nossa. 26 MENEZES, Ulpiano. Prefácio In: CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e Artefato: o sistema

doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870 – 1920. São Paulo: Editora da Universidade

de São Paulo/FAPESP, 2008. p. 12. 27

MILLER, Daniel. Prefácio. Trecos, troços e coisas. Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de

Janeiro: Zahar, 2013. p. 12

7

temporal e pelo caráter técnico: inúmeros desenhos de trajes com informações detalhadas,

inclusive com moldes e fotografias28

. O segundo, a obra ilustrada de história do vestuário

mais conhecida é Le costume historique de Auguste Racinet. Publicada entre 1876 e 1886,

em vinte fascículos para assinantes, foi reeditada em 1888, em seis volumes. A edição

retratava o vestuário em uma longa duração: do Egito antigo ao início do século XIX. De

acordo com Melissa Leventon, esse trabalho “ganhou notoriedade não só pela

impressionante abrangência, mas também por ser o primeiro livro de moda para um público

amplo a utilizar a cromolitografia, técnica que se popularizou a partir da década de 1860 e

tornou a publicação de imagens coloridas mais acessível.”29

Um trabalho semelhante ao de Racinet e também da segunda metade do século XIX,

é Trachten, Haus- Feld- und Kriegsgerätschaften der Völker alter und neuer Zeit [Trajes e

utensílios da cidade, do campo e de guerra dos povos dos tempos antigos e modernos], de

autoria de Friedrich Hottenroth. Composta de duzentas ilustrações, a obra de Hottenroth

retratou o vestuário europeu até 1840, sendo publicada entre 1884 e 1891. Leventon fez

uma ressalva: apesar do grande valor histórico das imagens, devemos tomar uma série de

cuidados na avaliação dos desenhos, pois desconhecemos as fontes utilizadas, o rigor e a

precisão adotados, especialmente em relação às cores empregadas, inseridas

posteriormente, em edições diferentes.30

Já no século XX, encontramos outra importante referência: o historiador inglês

James Laver. Entre 1938 e 1959, Laver foi curador e responsável pelos departamentos de

Gravura, Desenho e Pintura do Victoria and Albert Museum de Londres. O autor tornou-se

referência para cursos de arte na Inglaterra e é considerado um dos maiores especialistas em

história das roupas. Sua obra A roupa e a moda: uma história concisa31

, publicada em 1968,

28 KÖHLER, Carl. História do Vestuário. São Paulo: Martins Fontes, 1993. (Edição original: Die Entwicklung

der Tracht in Deutschland während des Mittelalters und der Neuzeit, Nuremberg, 1877.) 29 LEVENTON. Melissa (org.). História Ilustrada do vestuário: um estudo da indumentária do Egito Antigo

ao final do século XIX, com ilustrações dos mestres Auguste Racinet e Friedrich Hottenroth. São Paulo:

Publifolha, 2009. p. 6. 30 LEVENTON. Melissa (org.). História ...p. 8 – 9. 31 A primeira edição, de 1968, A Concise History of Costume (World of Art). No Brasil, foi publicada em 1990 pela Companhia das Letras. Cf. LAVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. São Paulo:

Companhia das letras, 1989.

8

compreende o vestuário desde o Egito e Mesopotâmia da antiguidade até 1960 no mundo

ocidental.

Durante o século XX, estudos sobre vestimentas e moda surgiram em âmbito de

instituições museológicas, como o de Laver. Na história, os estudos concentravam-se em

política e economia. Na historiografia francesa, especialmente na Escola dos Annales temas

diferenciados foram abordados.

Foi a partir de Fernand Braudel, sucessor de Lucien Febvre na direção da revista dos

Annales e também da VI Seção da École des Hautes Études en Sciences Sociales que os

estudos acerca da cultura material ganharam visibilidade.32

Febvre propôs a Braudel a

escrita da história da Europa entre 1400 e 1800, em dois capítulos. O primeiro seria

dedicado ao pensamento e crença, o qual ficaria a cargo de Febvre, e o segundo, versaria

sobre a história da vida material, sob responsabilidade de Braudel.33

Lucien Febvre faleceu

antes de iniciar o projeto. No entanto, Braudel deu continuidade ao mesmo, escrevendo três

volumes sobre seu tema (volume 1: As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível;

vol. 2: Os jogos das trocas; vol. 3: O tempo do mundo), com o título Civilização Material,

Economia e Capitalismo34

. Segundo Peter Burke, Braudel partiu das “categorias

econômicas do consumo, distribuição e produção”, mas não se prendeu às fronteiras

tradicionais da história econômica (agricultura/comércio/indústria)35

. Além de suas

contribuições valiosas sobre as diferentes durações na história e sua concepção espacial

diferenciada, Braudel reintroduziu o conceito de civilização material e o cotidiano como

abordagem importante para o estudo das sociedades.36

Para nossa pesquisa, o primeiro volume da obra Civilização Material é

extremamente relevante, pois nele Braudel tratou, entre outros temas, do vestuário e da

15 BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989). São Paulo:

Editora Universidade Estadual Paulista, 1991. p. 39. 33 BURKE, Peter. A Revolução... p. 40. 34 BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. São Paulo:

Martins Fontes, 1998. 3 v. 35 BRAUDEL, Fernand. Civilização... p. 40 - 41 36

Burke aponta as referências de Braudel para o estudo do cotidiano (T.F. Troels-Lund) e para civilização

material (Oswald Spengler). BURKE, Peter. A Revolução... p. 42

9

moda. Em relação ao vestuário, ao combater possíveis críticas ao tema abordado, justificou

o seu estudo apontando caminhos de análise. Para ele o exame da vestimenta possibilita a

problematização e o entendimento: “das matérias-primas, dos processos de fabrico, dos

custos de produção, da fixidez cultural, das modas, das hierarquias sociais.”37

Desta forma,

Braudel apontou para os aspectos tradicionais nos costumes de vestir, pertencentes à longa

duração, como alguns trajes de festas, a interessante relação entre o uso de roupa interior e

a disseminação de doenças de pele, e características dos trajes camponeses. 38

Do

tradicional e do permanente, Braudel passou para as mudanças do século XIV, as quais

considerou serem as primeiras manifestações da moda39

. E ressaltou ainda mais um tema

suscitado pelas vestimentas: a produção e circulação têxtil40

. Burke teceu apenas uma

ressalva ao estudo de cultura material de Braudel: a ausência do domínio simbólico41

.

Ainda ligado à historiografia francesa, e da terceira geração dos Annales, destaca-se

o autor Daniel Roche.42

Dentre seu trabalho com história cultural e social francesa, dois

livros em especial são referências importantes para o estudo do vestuário: História das

coisas banais: nascimento do consumo (século XVII – XIX), de 1997, e A Cultura das

aparências: uma história da indumentária (séculos XVII – XVIII), de 1989.43

História das coisas banais tratou do consumo entre os séculos XVII e XIX, com o

foco na materialidade.44

Na primeira parte do livro, Roche apresentou o panorama das

transformações ocorridas no âmbito da cidade. Na segunda, destacou o ambiente

doméstico, ressaltando o impacto da iluminação, da distribuição de água, móveis e objetos,

hábitos de alimentação, entre eles, o vestuário e a aparência. No capítulo VIII, Vestuário e

aparência, o autor abordou os principais aspectos das roupas durante o Antigo Regime,

37 BRAUDEL, Fernand. Civilização... 1998a, p. 271. 38 BRAUDEL, Fernand. Civilização... 1998a, p. 273. 39 BRAUDEL, Fernand. Civilização... 1998a, p. 276. 40 BRAUDEL, Fernand. Civilização... 1998a, p. 284 41 BURKE, Peter. A Revolução...p. 42 42 Professor da Universidade de Paris I, diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales.

Durante a década de 1970, pesquisou sobre a vida cotidiana do povo de Paris (Le Peuple de Paris. Essai sur la

culture populaire au XVIIIe siècle, Paris, Aubier, 1981). 43 As publicações das edições brasileiras são respectivamente de 2000 e 2007. 44 ROCHE, Daniel. História das coisas banais: nascimento do consumo nas sociedades do século XVII ao

XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

10

como a hierarquia social, as leis suntuárias e a questão da moda modas e do vestuário entre

diferentes regiões francesas. Daniel Roche aprofundou essas questões em sua obra seguinte,

O Povo de Paris.45

No livro A Cultura das aparências, Roche desenvolveu uma análise valiosa sobre

as vestimentas e os costumes46

. Seu estudo abarcou a França, mais especificamente Paris

entre os séculos XVII e XVIII, correspondente período de governo dos reis Bourbons Luís

XIV, Luís XV e Luís XVI. Nesta obra, Roche dedicou-se exclusivamente ao universo das

roupas, evidenciando os sistemas indumentários franceses de três séculos. O autor ressaltou

os elementos da hierarquia das aparências – questão crucial para uma sociedade do Antigo

Regime, o surgimento da roupa branca, a importância dos uniformes, e toda a cadeia

produtiva, de consumo e circulação das roupas: os oficiais, os comerciantes e consumidores

parisienses. A importância do trabalho de Daniel Roche reside no fato de nos apresentar

uma sociedade através dos valores simbólicos e estéticos que estruturavam a „cultura das

aparências‟ então vigentes.

Também encontramos estudos relacionados à moda e às vestimentas na perspectiva

de uma personalidade. Isto é, através de uma pessoa é possível discutir e proporcionar todo

o debate do contexto em que ela se insere. Sob esta perspectiva, dois livros são bons

exemplos dessa opção de análise: A fabricação do rei: a construção da imagem pública de

Luís XIV, de Peter Burke, e Rainha da Moda, de Caroline Weber.47

Peter Burke realizou um estudo sobre a imagem pública de Luís XIV e seu lugar no

imaginário coletivo. O autor apontou a extensa bibliografia existente sobre este monarca,

45 No prefácio de O Povo de Paris, Roche explicou que esta obra foi produzida durante a década de 1970 e foi

publicada pela primeira vez na França em 1981. Neste livro, o autor já havia reservado um capítulo ao

vestuário popular. Portanto, os trabalhos seguintes apontam a continuação e aprofundamento do autor no

tema. Cf. ROCHE, Daniel. O Povo de Paris: ensaio sobre a cultura popular no século XVIII. São Paulo:

Editora da Universidade de São Paulo, 2004. p. 11 – 29. 46 ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: Uma história da indumentária (séculos XVII-XVIII). São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2007. 47 BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 1994; WEBER, Caroline. Rainha da Moda. A roupa que Maria Antonieta usou para a Revolução.

Oceanos: Lisboa, 2008.

11

mas a relevância deste trabalho está no enfoque à figura do rei: projeto de construção da

imagem real levado a cabo por seus homens de confiança, depois também executado pelo

próprio rei, no período do governo pessoal, e de que forma essa imagem foi recebida

contemporaneamente e na posteridade.

O livro nos chama atenção especialmente pela investigação sobre as representações

reais, buscando referências mobilizadas por Luís XIV e/ou as consolidadas a partir dele.

Burke enriqueceu sua análise ao apresentar sempre a imagem da peça a qual se referia em

seu texto. Imagens variadas: fotografias, rascunhos, esboços de estátuas, quadros,

medalhas, plantas arquitetônicas. Rainha da Moda, por sua vez, é uma obra que evidenciou

a influência estética de Luís XIV sob Maria Antonieta. Segundo Caroline Weber, há muitos

trabalhos sobre Maria Antonieta, especialmente biografias. No entanto, nenhum investigou

a fundo a relação do público com a roupa da rainha, a relação estabelecida entre a moda e a

política para esta figura pública importantíssima.

De maneira inovadora, Weber investigou como Maria Antonieta utilizou a moda

para marcar uma posição política em Versalhes, bem como sua imagem era compreendida,

tanto por membros da corte, quanto por seus súditos. Entre outras fontes, a autora utilizou

as referidas biografias de Maria Antonieta, relatos, memórias de pessoas que frequentavam

a corte e também os panfletos publicados principalmente contra a rainha.

Weber demonstrou como Maria Antonieta se serviu da moda para demarcar sua

posição política e desencadear o gosto pela moda na França: roupas, chapéus, penteados e

adereços ganhavam outra visibilidade e significados. Contemporânea e posteriormente a

rainha geralmente foi retratada de forma negativa, apontando o excesso de luxo, ou a falta

dele. O livro coloca ao leitor a dimensão e o papel da roupa para Maria Antonieta assim

como a construção da sua imagem pública.

Voltada à análise da composição e utilização dos bens que integravam os enxovais

dos membros da corte portuguesa, a pesquisa da historiadora Isabel dos Guimarães Sá

12

evidenciou a interessante utilização de objetos como estratégias de reforço de autoridade e

poder político entre os séculos XV e XVII.48

Dedicados à roupa e à moda dos séculos XIX e XX, destacamos o livro de Diana

Crane, A Moda e Seu Papel Social - Classe, Gênero e Identidade das Roupas. A autora

apresentou um panorama da moda e de padrões de vestuário da França, Inglaterra e Estados

Unidos no período pós-industrial.49

Também cabe destacar a contribuição de Gilles

Lipovetsky ao analisar a moda nas sociedades modernas e pós-modernas.50

Para a área de

curadoria de acervos têxteis em instituições, as obras The study of dress history e

Establishing Dress History de Lou Taylor são importantes referências, pois problematizam

as roupas em acervos e dialogam com a historiografia sobre moda.51

No Brasil, por sua vez, grande parte da produção acadêmica sobre vestimentas e

moda está ligada às atividades de museus. De forma geral, existem poucos trabalhos

acadêmicos sobre o tema, pois a moda e as roupas, geralmente relacionadas ao universo

feminino, foram consideradas por muito tempo assuntos menos importantes.

Em seu trabalho pioneiro, Vida e morte do bandeirante, Alcântara Machado

trabalhou com a coleção dos Inventários e Testamentos da vila de São Paulo, publicada

pelo Arquivo do Estado de São Paulo, no início da década de 1920. Através dos

inventários, Machado discorreu sobre aspectos materiais da vida dos primeiros paulistas,

antecipando temáticas e abordagens somente tratados pela historiografia muitas décadas

depois, como o estudo do cotidiano. O capítulo „Fato de vestir, joias e limpeza da casa‟ é

48 SÁ, Isabel dos Guimarães. “Coisas de princesas: casamentos, dotes e enxovais na família real portuguesa

(1480-1580)”, Revista de História da Sociedade e da Cultura 10, tomo I: 97 – 120, 2010. SÁ, Isabel dos

Guimarães. “Dressed to impress: clothing, jewels and weapons in court rituals in Portugal (1450-1650).”

Paper presented at the Conference Clothing and the Culture of Appearances in Early Modern Europe.

Research Perspectives, Madrid, Fundación Carlos Amberes/Museo del Traje. 3-4 February 2012. SÁ, Isabel

dos Guimarães. “The uses of luxury: some examples from the Portuguese Courts from 1480 to 1580”, Análise

Social 14, 192: 589 – 604, 2009. 49 CRANE, Diana. A Moda e Seu Papel Social - Classe, Gênero e Identidade das Roupas. São Paulo: Editora

SENAC São Paulo, 2006. 50 LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo:

Companhia das Letras, 1989; RIOUX, Elyette e LIPOVETSKY, Gilles. O luxo eterno: da idade do sagrado ao

tempo das marcas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 51

TAYLOR, Lou. The study of dress history. Manchester: Manchester University Press, 2002; e TAYLOR,

Lou. Establishing Dress History. Manchester: Manchester University Press, 2004.

13

dedicado à análise do vestuário, tipos de tecido, peças de roupas, preço do feitio de roupas,

joias, adereços e peças de uso doméstico.52

Inicialmente publicada no volume V da Revista do Museu Paulista em 1952, a tese

de doutoramento de Gilda de Mello e Souza, A moda no século XIX, foi orientada por

Roger Bastide ganhando projeção e reconhecimento apenas trinta e sete anos depois, o que

aponta a falta de interesse da historiografia pela temática.

Reeditada em 1987 sob o título O espírito das roupas: a moda no século

dezenove53

, a obra encontrou um ambiente acadêmico transformado especialmente pela

antropologia e pela história das mentalidades, o que permitiu a definição de novos temas e

objetos de estudo. Segundo Heloisa Pontes, a consolidação do campo da moda no Brasil –

tanto pela profissionalização, quanto como uma área de interesse acadêmico - possibilitou a

legitimação do tema e da obra de Gilda de Mello e Souza54

.

De viés sociológico, a pesquisa de Souza utilizou-se de fontes impressas e visuais:

fotografias, pranchas coloridas de moda, estudos sobre moda, romances e crônicas de jornal

foram seu escopo documental prioritário, que permitiu a autora analisar com maior riqueza

de detalhes a moda no século XIX. Outro trabalho de cunho sociológico é o livro Modos de

homem & modas de mulher de Gilberto Freyre.55

Publicado em 1987, um ano antes da obra

de Gilda de Mello e Souza, este trabalho de Freyre abordou do final do século XIX até a

década de 1980, várias questões relacionadas aos costumes e à moda no Brasil, como a

influência da moda francesa, a adaptação e criação de peças e tecidos genuinamente

brasileiros e a mudança dos padrões femininos de beleza.

52 MACHADO, Alcântara. “Fatos de vestir, joias e limpeza da casa.” In: Vida e morte do bandeirante. São

Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. 53 SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das

Letras, 1987. 54

PONTES, Heloisa. A paixão pelas formas. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, p. 87-105, 2006. p. 91 55 FREYRE, Gilberto. Modos de homem e modas de mulher. Rio de Janeiro: Record, 1987.

14

Passaremos agora a alguns trabalhos realizados no âmbito de museus ou a partir de

coleções museológicas.56

Três trabalhos estão relacionados ao acervo do Museu Paulista da

Universidade de São Paulo57

.

A tese de Teresa Toledo de Paula, Tecidos no Brasil: um hiato, conservadora do

Setor de Têxteis do Museu Paulista-USP, visa compreender a conservação dos têxteis

pertencentes ao acervo do Museu Paulista e do MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia),

ambos da Universidade de São Paulo58

, bem como a falta de informação generalizada sobre

tecidos no Brasil.

Em relação ao período colonial, a autora abordou algumas imagens de

indumentárias, fruto do romantismo do século XIX, cristalizadas até hoje no imaginário

nacional. Exemplo, a “roupa branca de Peri”, personagem de José de Alencar, na obra O

Guarani, retratado em túnica branca, elemento relacionado à civilidade, em oposição às

vestimentas de peles de animais, penas e ossos dos aimorés, denotando atraso e um estado

animalesco.59

A tese de doutorado de Rita Morais de Andrade investigou a trajetória de um

vestido da maison francesa Bouè Soeurs, durante a década de 1920 até sua incorporação à

coleção de objetos no Museu Paulista, em 1993, através da doação realizada pela filha da

proprietária do vestido. 60

A autora utilizou o vestido como principal fonte através da opção

56 Cabe ressaltar a importância do acervo bibliográfico específico de têxteis do qual o Museu Paulista da

Universidade de São Paulo é detentor. Devido à criação do Setor de Têxteis em 1994, esta instituição passou a

atuar especificamente neste ramo montando o acervo bibliográfico, com formação e treinamento da equipe,

bem como ampliando o acervo têxtil. 57 Discussão desenvolvida por nós no artigo O que a traça não comeu: reflexões sobre o trabalho histórico

com o vestuário como fonte de cultura material, disponível em:

<http://snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1371316848_ARQUIVO_ArtigoLigiaSouzaGuidoAnpuh2013o

k.pdf> 58 PAULA, Teresa Cristina Toledo. Tecidos no Brasil: um hiato. Tese (Doutorado em Ciências de

Informação). 2004. Escola de Comunicações e Artes. Universidade de São Paulo . São Paulo, 2004. p. 10. 59 PAULA, Teresa Cristina Toledo. Tecidos... p.49-50. 60

ANDRADE, Rita Morais. Bouè Soeurs RG 7091. A biografia cultural de um vestido. Tese (Doutorado em

História). 2008. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2008. p. 29-30.

15

teórica proposta na década de 1980 por Igor Kopytoff, a biografia do objeto61

, mais

especificamente, a biografia cultural de um objeto, abordagem ainda não difundida e pouco

adotada no Brasil.

Especialista de apoio à pesquisa e supervisor do Serviço de Objetos do Museu

Paulista, Adílson José de Almeida desenvolveu sua dissertação de mestrado, sobre uma

categoria específica de indumentária, os uniformes da Guarda Nacional. O recorte temporal

explorado por Almeida circunscreve o período de criação da Guarda Nacional, (1831) e o

estabelecimento do segundo plano de uniformes, época em que ocorreram várias alterações

relevantes (1852). Sua estratégia foi abordar não a totalidade da existência da associação,

mas o período mais relevante para compreender a regulamentação oficial dos uniformes.

De 80 peças entre uniformes e insígnias, o autor contou com cinco que permitiam melhor

identificação ao período de análise.

Almeida sistematizou três conceitos para empreender a análise dos uniformes: as

funções pragmáticas, diacríticas e simbólicas. A análise das funções pragmáticas foi

dividida nos seguintes itens: proteção contra choques e intempérie, regulação da

temperatura, favorecimento à mobilidade e higiene.62

Nas funções diacríticas, observou-se

a necessidade da Guarda Nacional em diferenciar-se dos uniformes civis.63

Já nas funções

simbólicas, Almeida explorou os elementos de cidadania, honra e ética, associados ao

uniforme da Guarda Nacional.64

Outro trabalho relacionado ao acervo têxtil museológico é o de Soraya Aparecida

Álvares Coppola, dedicado aos paramentos litúrgicos do Museu Arquidiocesano de Arte

61 Cf: KOPYTOFF, Igor. “A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo.” In:

APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Editora

da Universidade Federal Fluminense. 2008. 62 ALMEIDA, Adílson José de. Uniformes da Guarda Nacional: 1831 – 1852. A indumentária na

organização e funcionamento de uma organização armada. Dissertação (Mestrado em História). 1998.

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo, 1998. p. 83 63

ALMEIDA, Adílson José de. Uniformes... p. 99. 64 ALMEIDA, Adílson José de. Uniformes... p. 118.

16

Sacra de Mariana-MG65

. Como objetivo principal, a autora estabeleceu o “estudo,

conhecimento e catalogação do acervo têxtil” do referido museu, comparando o acervo

mineiro com coleções têxteis italianas. 66

Na análise dos paramentos litúrgicos, ressaltou

um tríplice ponto de vista: “a prática atual quanto a sua forma, qualidade e uso; o

desenvolvimento histórico quanto à forma, qualidade e uso; significado simbólico.”67

Coppola encontrou a maioria das vestes externas, já que as internas, de uso pessoal, eram

lavadas muitas vezes, deteriorando mais facilmente. Como existe um grande número de

paramentos remanescentes e em bom estado de conservação, a hipótese é que talvez os

religiosos possuíssem roupas próprias.

Além de um glossário, a autora disponibilizou informações importantes nos Anexos.

Relevantes não apenas para compreendermos melhor suas fontes e análises, mas também

como dados sobre tecidos para comparações em futuros trabalhos, como modelos de fichas

para catalogação, transcrição do inventário dos bens da igreja e uma compilação das

principais características dos paramentos de cada segmento pertencente à igreja católica.

Duas dissertações versaram sobre vestimentas no século XVIII e utilizaram como

principal fonte os inventários post-mortem, na região das minas.

Em sua dissertação de mestrado, Cláudia Mól abordou o cotidiano e a vida material

das mulheres forras de Vila Rica, entre 1750 e 1800.68

A autora avaliou os bens de

mulheres forras em 74 testamentos e inventários. Através dos dados obtidos, foi possível

constatar a ocupação destas mulheres, a forma de habitação, a posse e o relacionamento

com seus cativos, as relações de sociabilidades estabelecidas na participação de irmandades

religiosas, bem como o vestuário e as joias pertencentes às forras.

65 COPPOLA, Soraya Aparecida Álvares. Costurando a Memória: o acervo têxtil do Museu Arquidiocesano

de Arte Sacra de Mariana. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). 2006. Escola de Belas Artes.

Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006. p. 21 66 O trabalho de Soraya junto ao acervo têxtil se iniciou com o levantamento e a catalogação do acervo têxtil

do MAAS, pois apesar de tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), não

havia sido devidamente inventariado até então. 67 COPPOLA, Soraya Aparecida Álvares. Costurando... p. 21. 68 MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres forras: cotidiano e cultura material em Vila Rica-1750-1800. 2002. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de

Minas Gerais. Belo Horizonte. 2002.

17

A autora resgatou registros semelhantes de viajantes, como Mary Graham e Luís

dos Santos Vilhena, nos quais relatavam a grande diferença entre os trajes domésticos

(muito “à vontade”, largos, transparentes e que deixavam partes íntimas à mostra) e as

roupas utilizadas fora de casa, pois “ao se apresentar em público, essa mesma mulher

adornava-se da melhor forma possível e ostentava, tanto através dos trajes quanto das joias,

uma posição social, se não possuída, imensamente desejada.”69

Mól também apontou outro

elemento importante relacionado a vestimenta, a legislação portuguesa que regulamentava

o vestuário e a transgressão destas normas por parte das mulheres forras.

As mulheres brancas deveriam zelar por uma boa conduta, mantendo o máximo de

discrição, portando capas negras e vestindo tecidos nobres.70

Mol apontou que apesar das

proibições, “a moda, representou, assim, a oportunidade para que as mulheres negras

expressassem suas preferências estéticas, desafiando as normas vigentes na América

Portuguesa.”71

Já a dissertação de Marco Aurélio Drumond analisou o comércio, a produção e os

usos de roupas na Comarca do Rio das Velhas na primeira metade do século XVIII, período

em que houve um grande êxito da atividade mineradora.72

Como atestado pela

historiografia, a mineração atraiu um grande número de pessoas, tanto da Colônia, quanto

de Portugal. Neste sentido, o autor demonstrou a importância do vestuário para aquela

sociedade, uma vez que existia naquele espaço a convivência de diferentes camadas sociais:

funcionários reais, escravos, forros, faiscadores, clérigos e comerciantes.

Ao se dedicar ao universo da produção, Drumond teceu uma interessante análise

sobre os “oficiais da aparência”: sapateiros, alfaiates e costureiras.73

A atividade destes

oficiais era rigidamente fiscalizada e regulamentada pelas câmaras municipais. Segundo o

autor, os inventários destes oficiais analisados demonstraram através das dívidas “a

69 MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres... p. 90. 70 MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres... p. 91-92. 71 MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres... p. 92 72 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material: Produção, comércio e usos na Comarca do

Rio das Velhas (1711-1750). 2008. 217f. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2008. 73 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária... p. 70.

18

inserção social desses oficiais que, de maneira direta ou indireta à sua atividade, mantinham

relações comerciais (de crédito ou de serviço) com indivíduos de diferentes espaços da

Comarca, mesmo que distantes do seu local de morada.”74

O trabalho intitulado O símbolo indumentário: distinção e prestígio no Rio de

Janeiro (1808 – 1821), de Camila Borges da Silva, explorou o papel da cultura

indumentária no Antigo Regime português em um contexto muito peculiar, na Corte

joanina então situada na colônia.

Diferentemente de uma área dedicada à história da moda, que trata das mudanças e

transformações dos trajes, a pesquisa de Silva se insere em uma vertente mais ampla que

reconhece o potencial das roupas (em diversos suportes, tais como material, visual, escrito)

como objeto principal. Considerando a vestimenta como uma “linguagem passível de ser

lida socialmente”75

, a autora buscou a relação das peças com os significados e práticas

sociais que permeavam a sociabilidade e a cultura política lusa.

Silva investigou durante a estadia da corte portuguesa no Rio de Janeiro a presença

e oferta de produtos importados, de mão de obra especializada relacionada à aparência,

como alfaiates, costureiras e cabeleireiros, além da interessante relação travada entre a

monarquia e a elite comercial fluminense abastada que almejava títulos e comendas

nobilitantes, concedidos em troca de serviços e doações financeiras. A autora também

dedicou especial atenção aos cerimoniais de corte, atentando para a importância das vestes,

adereços e insígnias portados e exibidos publicamente.76

Também dedicado ao estudo da moda na corte, o trabalho de Joana Monteleone

intitulado O circuito das roupas: a corte, o consumo e a moda, versou sobre o período de

74 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária... p. 81. 75 SILVA, Camila Borges da. O símbolo indumentário: distinção e prestígio no Rio de Janeiro (1808 – 1821).

Rio de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2010. p. 21. 76

Cf. Capítulo 3. O Luxo e as Insígnias – estratégias de prestígio e distinção nos cerimoniais da Corte. In:

SILVA, Camila Borges da. O símbolo...

19

governo de D. Pedro II, o segundo reinado, período complexo, marcado pela combinação

de elementos aristocráticos, com traços de Antigo Regime, com a ascensão da burguesia77

.

Nos trabalhos mencionados, foi possível dimensionar a grande importância dos

ofícios ligados à aparência nas sociedades coloniais, o papel dos trajes nos momentos

festivos coloniais, bem como a necessidade de produtos importados, oriundos

principalmente da Europa. Os contextos de Minas Gerais e Rio de Janeiro são interessantes

para nosso estudo sobre Itu, pois fornecem dois padrões (ainda que muito distintos) de

contextos coloniais no início do século XVIII, para a região mineradora, e do século XIX

em dois momentos da corte carioca, como parâmetro para compararmos com o contexto

paulista, considerando com todas as particularidades e contextos.78

Para São Paulo, além do trabalho de Alcântara Machado, contamos com a pesquisa

de Luciana da Silva, Artefatos, sociabilidades e sensibilidades.79

Pautada na cultura

material, Silva analisou as redes de sociabilidade e o trânsito de objetos na vila de São

Paulo entre os séculos XVI e XVII, dedicando um tópico especificamente às vestimentas.

Como principais trabalhos no campo da cultura material que utilizam os inventários

póstumos, elencamos as dissertações de Luciana da Silva, de Nuno Luís Madureira,

Inventários - Aspectos do consumo e da vida material em Lisboa nos finais do Antigo

Regime, a investigação sobre Alimentação e Cultura Material na América portuguesa

desenvolvida por Leila Mezan Algranti80

e a terceira parte da obra Portas adentro, dirigida

77 MONTELEONE, Joana de Moraes. O circuito das roupas: a corte, o consumo e a moda (Rio de Janeiro,

1840-1889). 2013. Tese (Doutorado em História Econômica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. 78 Cabe destacar também para o contexto carioca o trabalho “Estilos de vida e consumo doméstico da elite mercantil fluminense, em 1808: uma representação da natureza simbólica dos objetos asiáticos”, de Luís

Frederico Dias Antunes. In: MARTINS, Ismênia e MOTTA, Márcia (org.) 1808: A corte no Brasil. Niterói,

RJ: Editora da UFF, 2010. Pp. 331-365. 79 SILVA, Luciana da. Artefatos, sociabilidades e sensibilidades: cultura material em São Paulo (1580-1640).

2013. Dissertação (Mestrado em História). Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas. 80 ALGRANTI, Leila Mezan. “Alimentação e Cultura material: das fontes seriadas ao estudo de caso (Rio de

Janeiro segunda metade do século XVIII).” Apresentação parte da Mesa redonda: Caminhos de pesquisa

sobre cultura material. In: V Encontro Internacional de História Colonial. UFAL, Maceió-AL, 2014. Texto

fornecido pela autora.

20

por Isabel Sá e Máximo Férnandez, dedicada aos bens de luxo, em herança e patrimônios

familiares.81

Entre os artigos, cabe destacar “Inventarios post-mortem, cultura material y

consumo em Léon durante la Edad Moderna”, de Juan Manoel Bartolomé Bartolomé, e

“Penhoristas do Porto no início do século XVII: homens, atividade e objetos”, de Andreia

Durães. Também de autoria de Durães, o artigo “The Empire Within” abordou aspectos

metodológicos e apresentou dados referentes ao consumo de bens coloniais em Lisboa.82

A principal fonte de nossa pesquisa são inventários póstumos, que consistem no

processo de levantamento, avaliação e partilha dos bens de um indivíduo entre seus

herdeiros. No arrolamento dos bens, cada objeto era descrito, algumas vezes mencionavam

seu estado de conservação e por último, recebia um valor monetário atribuído por

avaliadores. Os inventários são (até as três primeiras décadas do século XIX) a única

documentação remanescente que fornece dados sobre roupas e tecidos dos moradores da

vila ituana.

Consultamos 148 inventários post-mortem da vila de Itu, correspondente à

totalidade de documentos do recorte temporal, balizados pelas datas de 1765, que

corresponde à autonomia administrativa da Capitania de São Paulo e ao início do governo

de Morgado de Mateus, que promoveu e incentivou a produção açucareira paulista voltada

à exportação, e no ano de 1808, quando a corte portuguesa chega ao Rio de Janeiro e

ocorreu a abertura dos portos brasileiros, o que diversificou a oferta de tecidos, roupas,

acessórios e profissionais da aparência na América Portuguesa.

Os critérios para escolha dos inventariados foi a seleção de indivíduos residentes na

vila de Itu (ruas e bairros rurais, não em seus termos) e que possuíssem roupas ou itens

têxteis em seus espólios.83

Junto ao Primeiro Ofício de Justiça de Itu foram localizados

81 SÁ, Isabel dos Guimarães e FÉRNANDEZ, Máximo García (dir.). Portas adentro: comer, vestir e habitar

na Penínlsula Ibérica (ss. XVI-XIX). Valladolid: Universidad de Valladolid, Secretariado de Publicaciones e

Intercambio Editorial: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010. 82 DURÃES, Andreia. “The Empire Within: Consumption in Lisbon in Eighteenth Century and First Half of the Nineteenth Century” In: Histoire & Mesure, EHESS, Vol. XXVII, 2012, pp. 165-196. 83 A grafia foi atualizada para os padrões atuais.

21

quarenta inventários.84

No Arquivo Público do Estado de São Paulo foram localizados

quatro Autos de Contas de Testamentos (de doze documentos referentes ao recorte para Itu)

de indivíduos que preenchiam os requisitos da amostra, resultando em quarenta e quatro

casos para nosso estudo. Posteriormente foram localizados oito testamentos de ituanos da

amostra, completando assim as informações colhidas nos inventários.85

As informações

individuais foram complementadas e cruzadas com dados colhidos obra Genealogia

Paulistana, de Luís Gonzaga da Silva Leme, em conjunto com os censos da vila de Itu

(Mapas de população). Nesta última fonte, os censos, também obtivemos dados sobre as

importações realizadas em Itu, entre os anos de 1798 e 1808, nos denominados Mapas de

importação. Entre os produtos relacionados estão vinho, tecidos, chapéus e meias.

Através de um estágio de pesquisa realizado em Portugal, sob supervisão da

Professora Doutora Isabel dos Guimarães Sá, realizado na Universidade do Minho, com

duração de dois meses, coletamos dados de 24 inventários lisboetas, sendo 19

correspondentes aos mesmos anos de documentos ituanos e adicionamos cinco referentes a

comerciantes (algibebes).86

Durante o estágio, realizamos também pesquisa bibliográfica e

visitas técnicas em instituições detentoras de acervos têxteis, a fim de visualizarmos a

materialidade de artefatos do período de análise, especialmente os remanescentes do século

XVIII, indisponíveis no Brasil. A dissertação versa sobre as roupas na vila de Itu, porém

conta com os dados de natureza arquivística, bibliográfica e museológica lisboetas e de

outras localidades da América Portuguesa para análise comparativa.

O primeiro capítulo apresenta a vila de Itu através de sua materialidade, seus

espaços, suas construções e seus habitantes no momento em que a economia açucareira

apresentava crescimento econômico relevante e a riqueza se fez perceptível. Realizamos

uma breve discussão acerca dos elementos teóricos importantes para análise da cultura

84 Arquivo Histórico do Museu Republicano “Convenção de Itu”/Museu Paulista/ Universidade de São Paulo. 85 “Os processos referem-se a ações de contas de testamento que eram obrigatórias e prestadas pelo

testamenteiro para dar cumprimento às determinações de um testador após o seu falecimento.” Fundo Juízo de

Resíduos. Disponível em:

<http://www.arquivoestado.sp.gov.br/guia_ficha.php?fundo=182&palavra=testamento> . Acesso em 24

jan.2014. 86

ANTT – Fundo Geral dos Feitos Findos. Correição Cível da Cidade de Lisboa, Inventários post-mortem e

Inventários Orfanológicos.

22

material, analisamos os padrões das posses dos bens dos ituanos, bem como os bens têxteis

que compunham os domicílios, as roupas da casa e os tecidos.

O capítulo 2 é dedicado à apresentação e análise do vestuário na vila de Itu.

Analisamos a materialidade e o valor monetário atribuído aos artefatos relacionados à

aparência, de homens e mulheres da vila de Itu e da amostra lisboeta. Abordamos o

vestuário e os tecidos mencionados nas listas de importação, bem como no estoque de loja

da vila de Itu. Dedicamos o último tópico à investigação dos usos das roupas na localidade

e apresentamos algumas hipóteses de uso doméstico e público de alguns trajes.

Finalmente, o último capítulo aborda a dimensão simbólica das roupas de forma

mais profunda, buscando identificar padrões cotidianos, traços comuns observados na

documentação, mas também elementos importantes em casos individuais e familiares, no

sentido de compreender os valores e significados envolvidos na circulação dos bens têxteis.

O último tópico dedica-se à imbricação do material e do imaterial nas aparências, a partir

de um ramo da família Costa Aranha, cujos membros pertenciam à nossa amostra e possuía

grande influência e atuação na vila do açúcar.

Nossa investigação busca compreender a composição material e a dimensão

simbólica das roupas entre o final do século XVIII e início do século XIX antes da abertura

dos portos. Comparando com o padrão europeu, quais tecidos, quais peças de roupas eram

utilizadas na vila de Itu, que prosperava economicamente com a produção açucareira

voltada à exportação. A posse das roupas indicada nos inventários póstumos poderiam

sugerir um padrão de trajes masculinos e femininos? De uso? De circulação desses artefatos

entre gerações de uma família e pessoas próximas? Além da materialidade, é possível

perceber o peso da dimensão simbólica atribuídos aos objetos, principalmente às

vestimentas do período em questão? O que evidenciavam e o que ocultavam as capas e os

mantos? Essas são algumas questões que pretendemos esclarecer ao longo do trabalho nas

próximas páginas.

23

Capítulo 1 A vila do açúcar: configuração espacial e a posse de bens em

Itu

Uma passagem resgatada por Teresa Petrone nos informa que:

Viajando pelos arredores de Itu é impossível não notar que toda gente da classe

baixa tinha os dentes incisivos perdidos pelo uso constante da cana de açúcar, que

sem cessar chupam e conservam na boca em pedaços de algumas polegadas. Quer

em casa quer fora dela, não a largam e é possível que esta também seja a causa de

haver aqui mais gente gorda do que em outros lugares. A classe superior gosta

igualmente de doce, pelo que recebeu a alcunha de „mel do tanque‟ isto é, o

melhor melado produzido na fabricação do açúcar. Os próprios bois e os burros

também participam da mesma inclinação.1

A importância do açúcar para Itu e também para a capitania de São Paulo residia na

capacidade produtiva e econômica que obteve como principal mercadoria por cerca de cem

anos (entre 1765 e 1840). O açúcar produzido na vila de Itu no século XVIII não possuía

boa qualidade em relação aos produzidos na região litorânea, devido ao solo, ao clima e

também às condições de transporte até seu embarque, razão pela qual obtinha preços mais

baixos, como notou Marcelino Pereira Cleto, em 1782.2

A implantação da lavoura canavieira na região de Itu foi resultado de um processo

mais amplo de expansão demográfica no interior paulista e do incentivo agrícola realizado

por Morgado de Matheus - governador da Capitania de São Paulo, empossado em 1765 e

afinado à política fisiocrática do Marques de Pombal. De acordo com Octavio Ianni, outro

aspecto que corroborou para o sucesso da produção açucareira, foram as “bases econômico-

sociais, geográficas e demográficas que se haviam desenvolvido em Itu a partir do

bandeirismo de apresar índios e minerar metais e pedras e do comércio que as monções

propiciavam com os núcleos de mineração.”3

1 BEYER, Gustavo. Ligeiras notas de viagem do Rio de Janeiro à Capitania de São Paulo, no Brasil, no Verão

de 1813. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, vol. XII, Typ. Do Diário Official, São

Paulo, 1908. Apud PETRONE, Maria Teresa S. A lavoura canavieira em São Paulo: expansão e declínio

(1765 – 1851). São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968. p. 42-43. 2 BEYER, Gustavo. Ligeiras notas ... p. 42 3 IANNI, Octavio. Uma cidade antiga. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp, 1996. (Coleção Tempo &

Memória; 1) p. 25

24

A prosperidade econômica operou transformações sociais e materiais nítidas na

sociedade ituana setecentista. Segundo Ianni,

sobressaíam os senhores de escravos, brancos, donos de canaviais e engenhos, por um lado, e a escravaria, a mão-de-obra braçal, composta de negros e mulatos,

por outro. Mas também havia caboclos ou caipiras pobres, roceiros, sitiantes,

cultivando alguma planta, criando alguma galinha, algum porco ou outro animal,

para o gasto da família.4

Os estratos dominantes imbuídos de uma “cultura aristocrática” - assim

denominada por Ianni - buscaram “marcar posições e distâncias sociais” através dos

poderes religioso, político e econômico.5 Esta procura por distinção é o cerne da nossa

investigação sendo nosso objetivo principal procurar os elementos materiais empregados

para a distinção na aparência pessoal dos indivíduos que habitavam a vila de Itu.

Neste capítulo analisamos os aspectos materiais de maneira mais ampla, avaliando

os bens de forma geral e a composição material da vila de Itu para então no capítulo

seguinte, analisarmos os objetos relacionados à aparência.

1.1 Aspectos históricos e populacionais de Itu

A fundação de Itu deu-se no ano de 1610 dentro do processo de ocupação do

território paulista, do litoral em direção ao interior. Este processo iniciou-se na área

litorânea, em meados do século XVI, posteriormente, efetivou-se a ocupação do planalto de

Piratininga (1554) e no final do século, regiões circunvizinhas, como Santana de Parnaíba

(1580) e Itu (1610)6. Tal processo está inserido no contexto de exploração e busca de

pedras e metais preciosos, necessidade de mão de obra indígena e de novas áreas para o

cultivo agrícola. Uma vez estabelecidas, algumas famílias formaram e consolidaram o

povoamento da vila de Itu, utilizando-se “amplamente de índios para seus

4 IANNI, Octavio. Uma cidade antiga... p. 43 5 IANNI, Octavio. Uma cidade antiga... p. 22 6 Outu-Guaçu, Utu-Guaçu, Ytu e finalmente Itu, foram as denominações da localidade. De origem tupi, Ugu-

Guaçu significa cachoeira grande, em referência à queda d‟água do rio Tietê, localizado em Salto-SP.

25

empreendimentos agrícolas e parte de sua produção serviu de base para as expedições que

se dirigiam ao Guairá. Talvez isto tenha dado impulso à criação de uma relativa estrutura

agrária em Itu.”7

Durante o século XVII, Itu apresentou um crescimento populacional considerável,

obtendo os títulos de capela curada (1644), freguesia (1653) e vila (1657).8 Em

contrapartida, apresentou um desenvolvimento econômico “incipiente, tendo na atividade

de subsistência a única forma de vida.”9 Esta passagem do livro de Eni de Mesquita Samara

nos remete à discussão da penúria paulista.

A questão da pobreza, decadência e esvaziamento demográfico da Capitania de São

Paulo entre os séculos XVII e XVIII, período de grande produção aurífera em Minas Gerais

não é o foco da investigação, embora seja extremamente interessante considerá-la. Como

apontam as pesquisas de Silvana Godoy e de Milena Maranho, faz-se necessário

problematizar as imagens de pobreza e decadência de São Paulo cristalizadas ao longo do

tempo.10

Através de um estudo pormenorizado nos inventários dos moradores do Planalto de

Piratininga, Maranho apresentou um universo complexo: a percepção de uma riqueza

aparente enquanto se observa os bens arrolados era desfeita no momento em que se

listavam as dívidas, e os bens muitas vezes eram insuficientes para quitá-las. Também

significativo era o papel do crédito naquela sociedade, pois para o indivíduo sem cabedais,

as boas relações com pessoas ou famílias já estabelecidas era o meio pelo qual obtinha

crédito.

7 GODOY, Silvana Alves de. Itu e Araritaguaba na rota das monções (1718 a 1838). 2002. 239 f. Dissertação

(Mestrado em História Econômica). Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas. Campinas.

2002 p. 50 8 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu: histórico da sua fundação e dos seus principais monumentos.

Itu: Ottoni Editora, 2000b. Volume 3, p. 10 9 SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura Canavieira, trabalho livre e cotidiano. São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo, 2005. p. 68 10 GODOY, Silvana Alves de. Itu e Araritaguaba... p. 6 – 34; MARANHO, Milena Fernandes. A opulência relativizada: níveis de vida em São Paulo do século XVII (1648 – 1682). Bauru, SP: EDUSP, 2010. p. 37 –

62.

26

Godoy apontou para as relações comerciais de abastecimento das regiões

mineradoras (Minas Gerais e Cuiabá), interligando diversas localidades, contrapondo a

ideia de que a prosperidade econômica de um local necessariamente diminui ou afeta outra

região. Maria Aparecida de Menezes Borrego também questionou essa estagnação, pois

São Paulo segundo afirmam vários estudos, passava por “um momento de dinamização do

processo de mercantilização, que já vinha se desenvolvendo desde as últimas décadas do

século anterior.”11

A região com maior produção açucareira entre a segunda metade do século XVIII e

início do século XIX, era compreendida entre Mogi-Guaçu, Jundiaí, Porto Feliz e

Piracicaba, denominada por Caio Prado Júnior como Quadrilátero do Açúcar12

. Teresa

Petrone reformulou o quadrilátero, substituindo Porto Feliz por Sorocaba, “pois em

Sorocaba o cultivo da cana-de-açúcar ainda teve relativa importância e, porque, dessa

maneira, Itu, importantíssimo centro canavieiro e outras áreas produtoras de açúcar foram

decididamente enquadrados.” 13

Com base na documentação censitária, Petrone contabilizou a produção açucareira e

o número de engenhos ituanos para alguns anos. Em 1798 havia 107 engenhos, um ano

depois, 113 e em 1803, 130 engenhos. A produção de açúcar em arrobas cresceu nos

últimos anos do século XVIII, estabilizou na casa de sessenta mil arrobas entre 1800 e

1801. Aumentou consideravelmente entre 1803 e 1808, alcançando neste último ano oitenta

e uma mil e duzentas arrobas, e finalmente a produção caiu consideravelmente entre 1809 e

1810, de setenta mil para vinte mil arrobas.14

Os anos referentes às décadas de 1750, 1760,

1770 e 1780 carecem de documentação de forma geral, devido à irregularidade da

realização dos censos.

11 BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo Colonial

(1711 – 1765). São Paulo: Alameda, 2010. p. 24. 12 PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo: Brasiliense: Publifolha, 2000.

p. 75 13

PETRONE, Maria Teresa S. A lavoura canavieira... p. 24. 14 PETRONE, Maria Teresa S. A lavoura canavieira... p. 44.

27

Pablo Oller Mont Serrath com base em documentação do Arquivo Histórico

Ultramarino complementou os dados de Petrone alusivos à produção canavieira da região

serra acima entre os anos de 1793 e 1799, também com o número de escravos.15

Apesar de

contarmos com poucos dados disponíveis, podemos ter uma ideia geral da produção

agrícola da região. Entre os anos finais do século XVIII e a primeira década do século XIX,

observamos um ligeiro crescimento tanto no número de engenhos quanto da produção

canavieira.16

Em uma análise comparativa dos dados da vila de Itu com os de outras vilas

serra acima, como Porto Feliz, Piracicaba, Campinas, Jundiaí, Sorocaba, Atibaia, Cunha,

Lorena, Guaratinguetá, Pindamonhangaba e Taubaté, até 1802 a vila ituana liderava a

produção açucareira em número de engenhos, de escravos e em arrobas.17

De acordo com Eni de Mesquita Samara, “o açúcar constituía, na realidade, a base

econômica da região de Itu e grande parte da população tinha suas atividades vinculadas à

produção e comércio desse produto.” 18

Em relação à Capitania de São Paulo, Carlos

Bacellar destacou uma mudança socioeconômica significativa durante o século XVIII. Para

o autor,

o predomínio absoluto da economia de subsistência, itinerante e de trabalho

familiar, cedera espaço a uma economia de lavoura para exportação,

monocultora, estável e de trabalho escravo. Novas formas de poder pessoal são

firmadas, não mais na disponibilidade de índios em flechas, mas sim na posse de

escravos a trabalhar na lavoura.19

A produção açucareira desenvolvida na vila ituana vinculou-se a uma linha de ação

empreendida pela administração imperial lusitana, que em posse de um vasto império

ultramarino, estava comprometida com a defesa dos territórios mais ao sul da América,

garantindo sua propriedade frente às investidas espanholas, e de viabilidade econômica da

15 MONT SERRATH, Pablo Oller. Dilemas & Conflitos na São Paulo restaurada. Formação e Consolidação

da Agricultura Exportadora (1765-1802). 2007. 316f. Dissertação (Mestrado em História Econômica).

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo. 2007. p. 249. 16 PETRONE, Maria Teresa S. A lavoura canavieira... p. 44; MONT SERRATH, Pablo Oller. Dilemas &

Conflitos... p. 249. 17 MONT SERRATH, Pablo Oller. Dilemas & Conflitos... p. 249. 18 SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura Canavieira... p. 72 19 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre os senhores de engenho do Oeste paulista, 1765 – 1855. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp, 1997.

p. 28.

28

capitania de São Paulo, restaurada no ano de 1765. O declínio da atividade aurífera também

ajudou a impulsionar a agricultura como alternativa à mineração.

Considerando a vila de Itu entre os anos de 1765 e 1808, ressaltamos sua

importância na consolidação da atividade econômica mais rentável, o açúcar voltado à

exportação, mas também a vila destacou-se como um entreposto comercial entre o litoral e

localidades mais ao interior, além de atuar como uma importante unidade administrativa

imperial, pois sua jurisdição compreendia boa parte do estado paulista, chegando até a

região sul, em Curitiba.20

Os casos de indivíduos contemplados em nosso universo de análise elucidam essa

transição das atividades econômicas e também a diversificação: muitas famílias atuavam na

produção, no transporte e na venda de produtos. O açúcar era o principal elemento da

economia paulista e ituana, mas não era o único. Outras atividades desenvolviam-se

complementando a produção açucareira, como o comércio, por exemplo.

Considerando a riqueza que o açúcar proporcionou, nosso objetivo geral é averiguar

a composição material dessa localidade no momento em que prosperava, e de forma mais

específica, na aparência: quais as diferenças e distinções sociais e econômicas teriam

ocorrido no visual, se o enriquecimento fazia-se perceber através das vestes, ou era

aplicado nas unidades produtivas ou nas residências. A compreensão do espaço nos

possibilita entender melhor o local no qual as pessoas pesquisadas viveram,

desempenharam suas atividades e faleceram.

De acordo com Amílcar Torrão Filho, a cidade é “um local privilegiado para

observarem-se as relações de força que se estabelecem numa dada sociedade.”21

A análise

das vestimentas em Itu, portanto, seria incompleta sem a devida contextualização e

problematização da vila e dos indivíduos que a habitavam.

20 Em 1811 a vila de Itu foi elevada à categoria de cabeça de comarca, a terceira da Capitania de São Paulo.

Cf. NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu: histórico da sua fundação e dos seus principais monumentos. Itu:

Ottoni Editora, 2000a. Volume 1, p. 57. 21 TORRÃO FILHO, Amílcar. Paradigma do caos ou cidade da conversão?: a cidade colonial na América

portuguesa e o caso da São Paulo na administração do Morgado de Mateus (1765-1775) 2004. 338 f. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas.

Campinas. 2004. p. 17

29

Sobre o perímetro de Itu em 1765, Francisco Nardy Filho apontou que

o Convento carmelita e o Franciscano marcavam seus extremos. Além das terras

do quintal do Carmo, estendiam-se os campos do Pirapitingui; após o cercado dos

Franciscanos era já o carrascal; do pátio do Convento Franciscano e, como em

continuação à sua direita, seguia o caminho de Araritaguaba.22

Ainda nesta data, “contava a vila 658 fogos, sua população era de 3988 habitantes

assim dividida: livres, 2758, sendo 1361 homens e 1397 mulheres; escravos, 1230, sendo

640 homens e 590 mulheres.”23

Segundo João Walter Toscano, foram os primeiros

recenseamentos datados da década de 1760 que forneceram dados mais concretos sobre a

estrutura urbana de Itu, “considerada como duas áreas, vila e bairros rurais”24

.

Em cinco de outubro de 1774, o engenheiro militar José Custódio de Sá e Faria

visitou a vila de Itu, partindo anteriormente de Araçariguama e com destino à Praça de

Nossa Senhora dos Prazeres, com o objetivo de mapear os rios Tietê, Paraná e Yguatemi.25

De passagem, Sá e Faria registrou um esboço da vila de Itu, como apontou Beatriz Bueno.

Na imagem abaixo, extraída da página do diário de viagem do engenheiro, observamos com

indicação das principais construções, a região central da vila.26

22 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000e. vol. 5. p. 29. 23 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... p. 31 24 TOSCANO, João Walter. Itu/Centro Histórico. Estudos para preservação. 1981. 175 f. Dissertação

(Mestrado em Estruturas Ambientais Urbanas). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de

São Paulo. São Paulo.1981 p. 17 25 No artigo Do borrão às aguadas: os engenheiros militares e a representação da Capitania de São Paulo,

Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno disponibilizou algumas páginas completas do diário de viagem de Sá e

Faria, com as anotações de horários de partidas e chegadas, pessoas que recepcionaram a comitiva e

distâncias percorridas. O diário de Sá e Faria pertence à Mapoteca do Itamaraty, Rio de Janeiro, Cf: BUENO,

Beatriz Piccolotto Siqueira. “Do borrão às aguadas: os engenheiros militares e a representação da Capitania

de São Paulo.” In: Anais do Museu Paulista. 2009, vol.17, n.2, pp. 111-153. p. 131 - 135. 26

Esta imagem é um registro muito importante, pois carecemos de fontes iconográficas sobre a vila de Itu

nesse período.

30

Figura 1 - Figura por estimação da Vila de Itu, 1774, por José Custódio Sá e Faria.

Fonte: REIS, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo, Edusp, 2001. CD-

ROM.

A figura apresenta o eixo central ligando o convento de São Francisco, à igreja do

Bom Jesus (indicada como Matriz B. Jesus), a igreja nova e a igreja do Carmo. O único

edifício não religioso indicado é a Cadeia, à esquerda. Com base no esboço de Sá e Faria e

de Toscano, Anicleide Zequini e André Santos Luigi montaram um mapa estilizado de Itu,

compreendendo a expansão da área central até a década de 1830. De acordo com Zequini e

Luigi, entre as décadas de 1780 e 1800 “o Pátio da Matriz, a rua Direita e rua da Palma,

consideradas “área nobre” passaram a concentrar edificações formadas por belas casas e

grandiosos sobrados que refletiram a afirmação de Itu como grande produtora açucareira.”27

27

ZEQUINI, Anicleide., LUIGI, André Santos. A Vila de Itu-SP no período açucareiro (1774-1840). Texto

disponível em: <http://www.itu.com.br/colunistas/artigo.asp?cod_conteudo=6941>. Acesso em 06.jan.2014.

31

Figura 2 - Mapa Estilizado da Vila de Itu em 1830, por André Santos Luigi.

Fonte: ZEQUINI, LUIGI. A Vila de Itu-SP no período açucareiro (1774-1840). Texto disponível em:

<http://www.itu.com.br/colunistas/artigo.asp?cod_conteudo=6941>.

Este mapa parte da representação feita por Toscano de Itu em 1830, onde apresenta

o crescimento do núcleo urbano, com as designações „vila velha‟ e „vila nova‟, a partir dos

registros das ruas novas nos censos.28

Observamos o núcleo mais antigo, semelhante ao de

Sá e Faria, indicado com a cor cinza. Entre as décadas de 1770 e 1830, ocorreu a expansão

a partir de ruas no entorno do traçado antigo, em cor escura. Outro aspecto importante são

as alterações indicadas em linha pontilhada que permitiram melhor circulação próximo ao

largo da Matriz. O local pontilhado indicado como alteração, próximo à cadeia foi

denominado Rua ou Beco das Casinhas, onde instalaram as casas de comércio.

28 TOSCANO, João Walter. Itu/Centro Histórico... p. 24.

32

Em visita a Itu, Auguste de Saint Hilaire descreveu a área urbana em 1819:

a cidade é estreita e muito alongada, compondo-se de algumas ruas paralelas, de

pouca largura, mas bem alinhadas, que cortam outras ruas estreitas, em geral, e

marginadas por muros de jardins. Nas ruas principais, a frente das casas é calçada

com largas pedras lisas e compactas; as demais não são calçadas, pelo que os

transeuntes afundam os pés na areia do respectivo leito. (...) Vêem-se em Itu

várias pequenas praças; mas a em que está edificada a igreja paroquial é a única

um pouco mais notável.29

Mesmo datando do final da segunda década do século XIX, a descrição do

naturalista francês nos oferece uma ideia do padrão das construções e confirma muitos dos

dados encontrados nos inventários. A praça em que se situa a igreja matriz configurava um

espaço significativo de convívio e interação social. Sobre este aspecto, o autor ressaltou

mais adiante que “nos domingos e dias de festa, Itu tem muito movimento. Nesses dias,

como já assinalei, os proprietários da vizinhança vão à cidade a fim de assistir o serviço

divino; mas, no correr da semana, as casas principais permanecem fechadas e as ruas

mantêm-se desertas.”30

Tal característica era devido à atividade canavieira, que exigia a

presença nas unidades produtivas durante a semana toda.

Segundo Toscano, na segunda metade do século XVIII, “o „poder do açúcar‟ se faz

sentir através das residências na vila (sobrados), marcados pela presença de fazendeiros e

negociantes.”31

O calçamento das ruas ocorreu na década de 1790.32

Nesta década, as

principais ruas elencadas por Toscano eram: Rua do Conselho, da Palma, Direita (Ocidental

e Oriental), das Baratas, de Santa Rita, de Santa Cruz, da Pedra, do Engenho e o beco das

Casinhas.33

A última rua, das Casinhas era o local onde ocorria o comércio. De acordo com

Saint Hilaire, “os gêneros alimentícios são vendidos em Itu, como em São Paulo, em

29 SAINT-HILAIRE, Auguste. de. Viagem à Província de São Paulo e resumo das viagens ao Brasil,

Província Cisplatina e Missões do Paraguai. São Paulo: Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais”:

Livraria Martins, 1940. p. 232-233. Disponível em:

<https://ia600302.us.archive.org/2/items/viagemprovinci00sainuoft/viagemprovinci00sainuoft.pdf> . Acesso

em 11.fev.2014. 30 SAINT-HILAIRE, Auguste. de. Viagem... p. 235 31 TOSCANO, João Walter. Itu/Centro Histórico... p. 21 32

NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu (vol. 1) ... p. 61 33 TOSCANO, João Walter. Itu/Centro Histórico... p. 21-22

33

espécies de casinhas obscuras, que dão para uma das ruas transversais.”34

Em relação às

lojas, o viajante observou que

os habitantes abonados de Itu e dos seus arredores, tendo, por causa da colocação ou do transporte do açúcar que produzem frequentes relações com São Paulo,

nesta última cidade adquirem os objetos de que necessitam; por esse motivo, há,

em sua cidade, menos lojas do que em muitas outras de menor importância, e as

lojas que vi não são muito bem guarnecidas.35

Apesar da simplicidade das casas comerciais citadas acima, Nardy Filho apontou Itu

como centro comercial e bancário das vilas vizinhas. Em ordem de importância, São Paulo

significava comercialmente para Itu, o que esta última representava para seus termos e vilas

menores da região. Também cabe salientar que esta estrutura comercial existia desde o

século XVII, relacionada ao provimento das monções que partiam de Araritaguaba.

Para o estudo de Itu optou-se por manter a divisão encontrada nos primeiros

recenseamentos, como vila (ou área central) e bairros rurais. A região referida como „vila‟

na documentação corresponde ao núcleo antigo de ocupação demarcado pelas igrejas e seus

largos. Já os „bairros rurais‟ distanciavam-se deste núcleo central, mas ainda assim

pertenciam à vila. Ao estudar a região das minas durante o século XVIII, José Newton

Coelho Meneses definiu como “urbano, o habitante domiciliado na sede das vilas ou dos

arraiais, por menor que esses fossem. Rural é o habitante da chácara suburbana, sítio ou

fazenda.”36

Esta definição também se aplica para o período de investigação sobre a vila

ituana. Os termos da vila de Itu foram desconsiderados, pois nosso enfoque recai apenas

sobre os moradores da vila.

As regiões ou bairros rurais recorrentes na documentação são: Anhambu, Atuaú,

Apotribú, Buru, Cajuru, Caiacatinga37

, Itahim Guassú, Itahim Mirim, Pirapitingui, Pirahi,

Pouso do Bispo. Adiante, um mapa com a indicação de alguns bairros rurais.

34 SAINT-HILAIRE, Auguste. de. Viagem... p. 236. 35 SAINT-HILAIRE, Auguste. de. Viagem... p. 235. 36 MENESES, José Newton Coelho. O continente rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais

setecentistas. Diamantina, MG: Maria Fumaça, 2000. p.147. 37

Saint-Hilaire designou como ribeirão de Caracatinga no corpo do texto e adiante, esclareceu: “a palavra

caracatinga designa uma espécie de cará (o inhame dos colonos franceses, dioscoréa dos botânicos). –

34

Figura 3 – Bairros rurais e área central da Vila de Itu

Fonte: Baseado em SADER, Maria Regina C. de Toledo. Evolução... s/n.

Adaptado de Maria Regina C. de Toledo Sader, o mapa aponta alguns dos bairros

rurais existentes nos séculos XVIII e XIX na vila, com a indicação em vermelho da área

central, e em azul, o Rio Tietê.38

O mapa apresenta a distribuição dos bairros rurais até o

século XIX delimitado pela atual configuração da cidade, em cor branca, sem os termos e

de toda a sua jurisdição da vila. Neste esquema, é possível observar a distância dos bairros

em relação à área urbana, o quanto a região central significava em termos espaciais da vila,

bem como o papel do Rio Tietê na delimitação de Itu. Como Sader localizou os locais na

área atual do município de Itu que compreende aproximadamente 640 quilômetros

Müller escreveu Caiacatinga.” , SAINT-HILAIRE, Auguste. de. Viagem... nota de rodapé número 423, p.

226. 38 SADER, Maria Regina C. de Toledo. Evolução da paisagem rural de Itu, num espaço de 100 anos. 1970. Mestrado (Geografia Humana). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São

Paulo, São Paulo. 1970.

35

quadrados, que está delimitado em cor branca, é possível visualizar a distribuição dos

bairros até o século XIX, sendo que alguns ainda mantêm o mesmo nome na atualidade.39

Considerando os espaços públicos que possibilitavam a convivência, destacamos as

igrejas e as praças ou largos. Para Maurício Maiolo Lopes, “desde os primórdios do período

colonial as praças sempre se configuraram como um prolongamento da igreja (...), uma

continuação de seu adro”40

. Portanto, os largos eram espaços de encontro e sociabilidade

antes e depois da realização das celebrações religiosas nas igrejas.

Em Itu quatro largos destacavam-se: o do Bom Jesus, do Carmo, da igreja Matriz e

o de São Francisco. O primeiro, o Largo do Bom Jesus (atual Praça Padre Anchieta) é o

mais antigo, pois remonta à fundação da capela construída por Domingos Fernandes em

1610.41

Com a construção da nova igreja Matriz Nossa Senhora da Candelária em seu local

atual, a igreja do Bom Jesus foi reparada na década de 1760 e recebeu ampliações e

melhoramentos até 1800, especialmente no período em que a família Costa Aranha esteve

na tesouraria desta igreja.42

Segundo Lopes, a Igreja do Carmo, datada da década de 172043

não recebeu

reformas significativas durante o século XIX, diferentemente do seu largo, que foi cuidado

com o plantio das palmeiras imperiais Roystonea oleracea, no segundo quartel do século

XIX.44

Ainda de acordo com Lopes, a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Candelária e sua

praça, foram as mais modificadas durante o século XIX.45

Originalmente a Igreja Matriz

situava-se onde hoje se encontra a Igreja do Bom Jesus. A Matriz atual foi inaugurada em

1780, defronte a Praça Padre Miguel.

39 Informação disponível em: < http://www.itu.sp.gov.br/?area=1>. Acesso em: 17.nov.2014. 40 LOPES, Maurício Maiolo. As faces da modernidade: arquitetura religiosa na reforma urbana de Itu (1873-

1916). 2009. Dissertação (Mestrado em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) Faculdade

de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. p. 69. 41 LOPES, Maurício Maiolo. As faces da modernidade... p. 72 42 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu... (vol. 1) p. 78. 43 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu... (vol. 1) p. 111 – 114. 44 Maurício Maiolo. As faces da modernidade... p. 76-78; D'Elboux, Roseli Maria. Uma promenade nos

trópicos: os barões do café sob as palmeiras-imperiais, entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Anais do Museu

Paulista. 2006, 14 (julho-dezembro). Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=27314207> . Acesso em: 25.mar. 2014. 45 Maurício Maiolo. As faces da modernidade... p. 79 – 81.

36

O Largo de São Francisco era composto por uma igreja, um convento e um cruzeiro

em sua entrada. Segundo Nardy Filho, a igreja foi construída entre 1793 e 1802.46

Em

1907, um incêndio destruiu a igreja e demais edificações dos franciscanos. A aquarela de

1845, de autoria de Miguel Dutra, pertencente ao acervo do Museu Republicano Convenção

de Itu/USP. Na aquarela, Dutra retratou o conjunto de edificações franciscanas, cujo único

remanescente é o cruzeiro.

Figura 4 - Largo de São Francisco, Miguel Dutra, 1845

Fonte: BARDI, Pietro Maria. Miguel Dutra, o poliédrico artista paulista. (Itu, 1810- Piracicaba,

1875). São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 1981. p. 49.47

Essas quatro igrejas (com seus respectivos largos) delimitaram a região central da

vila de Itu até aproximadamente a década de 1830. São importantes referências, pois dentro

dos limites destes templos que a vila se formou, sendo possível observar nos mapas de Sá e

46

NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu... (vol. 1) p. 92. 47 Largo de São Francisco, 1845. Aquarela sobre papel, 19x 27,5cm.

37

Faria e no seguinte, apresentando as modificações operadas entre 1770 e 1830, com a

abertura da rua das casinhas.48

Entre os séculos XVIII e XIX, os espaços de sociabilidade nas vilas da América

Portuguesa eram as igrejas, durante as celebrações, as ruas, especialmente em ocasiões

festivas e, por fim, as praças e os largos. Conforme apontou a historiadora Leila Mezan

Algranti, nos momentos de celebrações, “participavam das festividades não apenas os

moradores do núcleo urbano, mas também aqueles dos sítios e fazendas dos arredores e até

mesmo de lugares mais distantes, que possuíam casas nas cidades.”49

As questões

relacionadas à configuração urbana de Itu, como o processo de crescimento, os

melhoramentos ocorridos no núcleo central, são importantes para a compreensão dos

espaços de sociabilidade na vila, pois fornecem indícios sobre os locais onde as pessoas

exibiam suas roupas de trabalho, de festa, ou do cotidiano.

São nestes espaços de interação social que o indivíduo deveria “adquirir, defender

ou ampliar o papel social que a comunidade podia tolerar.”50

Para a pesquisadora Vera

Ferlini as festas na América Portuguesa “permitiam o encontro, a visibilidade, a coesão

dentro de comemorações que recriavam os padrões metropolitanos, dando a identidade

desejada, trazendo o descanso, os prazeres e a alegria e introjetando valores e normas da

vida em grupo”.51

As festas eram celebrações relacionadas ao calendário religioso e à

efemérides ligadas ao poder do Estado, como afirmou José Ramos Tinhorão.52

Em um importante trabalho já realizado sobre a população da vila de Itu a partir dos

maços de população, Eni de Mesquita Samara compilou os dados das principais listas

48 Cf. linha pontilhada ao lado da Cadeia, figuras 1 e 2. 49 ALGRANTI, Leila Mezan. “Famílias e vida doméstica”. In: SOUZA, Laura de Mello e. História da Vida

Privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. Fernando A. Novais (coord). São Paulo:

Companhia das Letras, 1997. volume 1. p. 113. 50 ARIÈS, Philippe. “Por uma história da vida privada”. In: História da vida privada 3: da Renascença ao

Século das Luzes. Organização Philippe Ariès e Roger Chartier. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p. 9. 51 FERLINI, Vera Lúcia Amaral. “Folguedos, feiras e feriados: aspectos socioeconômicos das festas no

mundo dos engenhos.” In: IANCSÓ, Istvan. e KANTOR, Íris. (orgs.) Festa: Cultura e Sociabilidade na

América Portuguesa. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp: Imprensa Oficial,

2001. vol. I e II. (Coleção Estante USP – Brasil 500 Anos; v. 3). vol. II. p. 450. 52 TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil colonial. São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 7.

38

nominativas, indicando os dados por companhias. A seguir, reunimos a partir das tabelas de

Samara os totais por fogos e habitantes gerais entre o final do século XVIII e início do XIX.

Tabela 1. Relação entre número de fogos e habitantes da vila de Itu, 1773-1813

Ano Número de fogos Número de habitantes

1773 255 2211

1792 1317 9410

1798 894 7162

1803 1008 9411

1809 1095 9566

1813 857 5674

Fonte: SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura Canavieira... p. 79 – 90.

Os dados nos apontam um crescimento do número de habitantes considerável entre

as décadas de 1770 e 1790. Até a última década do século XVIII a vila de Itu era local de

atração populacional e, a partir da virada do século, mantêm um número médio de

habitantes, que passa a decair a partir dos anos 1810. Tal declínio populacional deve-se,

talvez, ao esgotamento das terras para a produção açucareira, região de cultivo muito

antiga, e à ereção de novas vilas que se desmembraram de Itu, como Porto Feliz, que

ganhou autonomia em 1797.53

Estes dois fatores estão relacionados à busca por novas terras

para expansão do cultivo canavieiro, rumo ao interior de São Paulo. Samara ressaltou ainda

a epidemia de varíola, que aliada à falta de médicos e recursos, atingiu uma parcela da

população entre os anos de 1798 - 1800.54

A autora também apontou outras características da população neste período. Com

base nas tabelas apresentadas por Samara, é possível acompanhar a relação entre livres,

escravos, forros e agregados. Entre 1773 e 1829, por cinco vezes nos censos, o número de

53

SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira... p. 104. 54 SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira... p. 105.

39

escravos ultrapassou o de livres: 1803, 1809, 1818, 1822 e 1829.55

Samara notou a presença

de agregados em maior número em domicílios na região central da vila de Itu, ao invés de

estarem nas fazendas ou unidades produtivas. A autora apontou também o grande número

de escravos empregados na lavoura o motivo da baixa incidência de mão de obra livre nos

trabalhos agrícolas.56

Cruzando as informações levantadas sobre os indivíduos contemplados em nossa

amostra tanto na documentação censitária, genealógica quanto na cartorária, foi possível

observar em alguns casos a ocupação e a posse de títulos de organizações militares.

De acordo com Ana Paula Pereira Costa, “a estrutura militar lusitana, que se

transferiu para o Brasil, se dividia em três tipos específicos de força: os Corpos Regulares

(conhecidos também por Tropa Paga ou de Linha), as Milícias ou Corpo de Auxiliares e as

Ordenanças ou Corpos Irregulares.”57

Os Corpos Regulares “constituíam-se no exército

„profissional‟ português, sendo a única força paga pela Fazenda Real.”58

As Milícias ou

Corpo de Auxiliares “eram de serviço não remunerado e obrigatório para os civis

constituindo-se em forças deslocáveis que prestavam serviço de apoio às Tropas Pagas.”59

E por final, os Corpos de Ordenanças, que recrutava os habitantes entre 18 e 60 anos, não

recebiam soldo nem instrução militar sistemática. Eram organizados em terços que se

dividiam em companhias.60

As Ordenanças ou Corpos Irregulares atuavam em âmbito local, cuja hierarquia (em

ordem decrescente) era: capitão, alferes, sargento, cabo e soldado. As Tropas Auxiliares

também atuavam primeiramente na localidade. Ao avaliar as ocorrências dos títulos

militares no universo da vila dentre os registros dos censos, acreditamos que a grande

55 SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira... p. 108. 56 SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira... p. 97. 57 COSTA, Ana Paula Pereira. „Organização militar, poder de mando e mobilização de escravos armados

nas conquistas: a atuação dos Corpos de Ordenanças em Minas colonial.‟ In: Revista de História Regional

11(2): 109-162, Inverno, 2006. p. 111. Disponível em:

<http://www.revistas2.uepg.br/index.php/rhr/article/viewFile/2233/1715> . Acesso em 26.mar. 2014.

Para informações mais detalhadas sobre as hiearquias militares, consulte PEREIRA FILHO, Jorge da Cunha.

Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX. Disponível em:

<http://buratto.org/gens/gn_tropas.html> . Acesso em 26.mar.2014. 58 COSTA, Ana Paula Pereira. „Organização militar, poder de mando... p. 111. 59

COSTA, Ana Paula Pereira. „Organização militar, poder de mando... p. 111. 60 COSTA, Ana Paula Pereira. „Organização militar, poder de mando... p. 112 – 113.

40

maioria dos cargos ou títulos encontrados para os ituanos eram dos dois últimos tipos de

organização militar, as Tropas Auxiliares e as Ordenanças.61

Os inventariados que

possuíam títulos militares, viviam de seu trabalho na lavoura, no comércio e da criação de

animais, o que demonstra sua importância simbólica, mais do que um recurso financeiro.

Dentre os títulos encontrados, estão os de alferes, capitão, sargento, soldado e tenente.

Através dos censos e dos inventários, foi possível notar a ascensão de dois soldados

para alferes: no caso de Antônio Antunes Pereira e Manoel Álvares Lima62

. Ambos subiram

três postos acima na estrutura militar. Enquanto Manoel declarou possuir lavoura (sem

especificar de qual gênero), Antônio, possuía como primeira ocupação viver de negócio de

fazenda seca.

Salvador Jorge Velho foi identificado na documentação censitária como capitão-

mor. Em 1766, só mencionou este cargo nas ocupações e, como atividade, declarou “viver

em favor”. Anos mais tarde, em 1775, consta a função de capitão-mor e que vivia de terras

e plantações.

Dos capitães localizados na amostra, todos possuíam outras ocupações e atividades:

lavoura, negócio de fazenda seca e senhor de engenho. Como soldados, encontramos as

seguintes descrições: soldado, soldado pé, soldado auxiliar pé e soldado cavalo. Em todos

os registros deste cargo, os homens elencaram lavoura ou planta/colhe/cria como ocupação

e atividade.

Considerando que o ganho monetário (soldo) não era o motivo do desempenho

dessas funções militares, e que apesar do alistamento compulsório muitos conseguiam fugir

à obrigação militar (a principal razão de o primeiro recenseamento existir), a atuação destes

homens deve ser observada dentro de uma perspectiva que explore o significado simbólico

e social do pertencimento a essa organização, pois

61 De acordo com Pereira Filho, “no Brasil, as Ordenanças eram organizadas em cada Vila ou Cidade, aí se

incluindo seus Arraiais e Povoados, sendo seus comandantes responsáveis diretos pela defesa local,

inicialmente escolhidos pelas Câmaras, tinham o título de Capitão-Mor, posto que corresponde hoje

aproximadamente ao de "Coronel". Seu substituto imediato era o Sargento-Mor, ou Sargento-Mayor, de que

se originou o atual posto de "Major". Mais tarde, a partir de 1709, ambos os postos passaram a ser por

nomeação privativa do Governador e Capitão General.”Cf. PEREIRA FILHO, Jorge da Cunha. Tropas

militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX. Disponível em: <http://buratto.org/gens/gn_tropas.html> . Acesso em 26.mar.2014. 62 Maços de População de São Paulo, 1765 – 1850. Vila de Itu. Arquivo Público do Estado de São Paulo.

41

pode-se dizer que os privilégios da ocupação de um posto nas Ordenanças não

representavam diretamente ganhos monetários – o que representava para a Coroa

uma economia em ganhos diretos com a administração – mas, sim, produção ou

reprodução de prestígio e posição de comando, bens não negligenciáveis no

Antigo Regime, bem como isenções de impostos e outros privilégios.63

O pertencimento a uma organização militar implicava na responsabilidade de servir

em nome da Coroa, já que era um “importante componente da administração lusa na

colônia, pois levavam a ordem legal e administrativa da Coroa para os lugares mais

longínquos de seu vasto Império”.64

Demandava a confecção das fardas e posse dos animais

a custo do próprio militar, mas como apontado por Costa na citação acima transcrita,

funcionava como elemento de distinção muito eficiente.65

De acordo com Christiane

Figueiredo Pagano de Mello, a partir da segunda metade do século XVIII, os Corpos de

Ordenanças e os de Auxiliares, tornaram-se “centros de poder local privilegiados.”66

A análise das ocupações nos maços de população aponta que treze indivíduos

declararam desenvolver duas atividades coincidentemente: lavoura e sacerdócio, negócios e

lavoura, negócios e militar, e o perfil lavoura e militar em sete casos. Entre os que

mencionaram apenas uma ocupação, sete pessoas desenvolviam apenas lavoura, temos seis

senhores de engenho, um capitão-mor, um ferreiro e uma costureira, entre os quarenta e

quatro indivíduos da amostra ituana.

Na sociedade colonial a posse de um engenho era um diferenciador social

importante. Segundo Carlos Bacellar, apenas

um restrito grupo de domicílios caracterizou-se por conseguir ascender à posse de

um engenho e de um plantel de escravos, diferenciando-se do grosso dos

domicílios que permaneciam em seu dia-a-dia de subsistência. Nos

recenseamentos, estes domicílios passaram a ter seus chefes denominados

Senhores de Engenho, e suas esposas também caracteristicamente tratadas por

“Donas”.67

63 COSTA, Ana Paula Pereira. „Organização militar, poder de mando... p. 118. 64 COSTA, Ana Paula Pereira. “Organização militar, poder local e autoridade nas conquistas: considerações

acerca da atuação dos corpos de ordenanças no contexto do império português”. Disponível

em:<http://www.revistatemalivre.com/militar12.html>. Acesso em 26.03.2014. 65 Trataremos das fardas de forma mais aprofundada no segundo capítulo. 66 MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. Forças militares no Brasil Colônia: corpos de auxiliares e de ordenanças na segunda metade do século XVIII. Rio de Janeiro: E-papers, 2009. p. 59. 67 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra... p. 28.

42

Entre os indivíduos de nossa amostra constam nos censos sete senhores de engenho

referenciados na primeira ocupação, sendo uma mulher, Ana Leite Gularte, viúva; um

padre e um tenente agregado no regimento da cavalaria ligeira.68

Destes sete senhores de

engenho, todos possuíam escravos (em quantidades bem distintas, de 9 a 36 cativos), três

tinham agregados e cinco afirmaram plantar mantimentos. Todos declararam a produção de

açúcar, quantificando cada tipo: fino, redondo e mascavo e, por fim, quatro pessoas

mencionaram a produção de aguardente69

. Esses dados nos fornecem uma ideia da

produção agrícola de cada domicílio recenseado de nossos inventariados.70

Sobre a produção açucareira, a média do açúcar total produzido e declarado nos

censos foi de 332 arrobas entre os sete senhores de engenho. A menor produção, de 100

arrobas, pertencia a José Manoel Caldeira Machado, que possuía nove escravos. Caldeira

Machado declarou também ser criador de gado, além de possuir o título de tenente acima

mencionado. Já a maior produção, de 800 arrobas, era de José do Amaral Gurgel em 1803,

sendo 700 de açúcar fino, 80 do redondo e 20 de mascavo. Deixou 20 arrobas de açúcar

fino para consumo próprio e possuía um plantel de trinta e seis escravos, além de três

agregados.

Conforme Bacellar, as esposas dos senhores de engenho eram denominadas donas.

Sobre o papel da dona na sociedade colonial, Eliana Rea Goldschmidt ressaltou que

“significava o ápice em termos de prestígio feminino na sociedade colonial, era

representante dos ideais da nobreza entre os quais estavam a ociosidade e a reclusão.”71

Em

relação à origem dessas donas, Aline Antunes Zanatta constatou que a “nobreza” poderia

ter sido herdada de seus pais, ou mesmo a mulher vinha de “um grupo não nobre que

68 AESP. Maços de População de São Paulo, 1765 – 1850. Vila de Itu. 69 Açúcar fino era o de melhor qualidade, retirado da parte superior da forma denominada pão de açúcar. O

açúcar redondo era branco, de menor qualidade em relação ao fino, era retirado da parte intermediária da

forma. E por fim, o mascavo era de qualidade inferior, mais escuro e com resíduos de mel por situar-se no

fundo da forma. 70 Utilizamos essas informações com cautela, pois sabemos que toda documentação com indicadores de

qualquer elemento relacionado à declaração de produção ou bens era comumente modificada a fim de burlar

os impostos. 71

GOLDSCHMIDT, Eliana Rea. “Famílias Paulistanas e os casamentos consangüíneos de „donas‟, no

período colonial”. Anais da 17º Reunião da S.B.P.H. São Paulo, 1997. p.151.

43

conseguiu ascender economicamente e que, consequentemente, adquiriu prestígio.” 72

Portanto,

a riqueza era apenas um dos critérios possíveis para a obtenção de nobreza, mas não uma categoria estática de definição das “Donas” paulistas, pois muitas destas

mulheres poderiam ter empobrecido e continuarem sendo identificadas como

“donas” pela sociedade em que viviam.73

Em nossa pesquisa, nos deparamos com cinco donas, todas esposas de chefes de

domicílios. Duas eram esposas de senhor de engenho, três de homens com títulos militares,

sendo que um deles era tenente agregado no regimento da cavalaria ligeira e senhor de

engenho, José Manoel Caldeira Machado. Dentre a primeira ocupação dos maridos estão as

de capitão-mor, dois senhores de engenho, lavoura, planta cana e planta/colhe/cria.74

De

todos os inventários (quarenta e quatro), apenas um casal não possuía escravos. O espólio

mais humilde destes casais era o de José Fiusa e de Dona Francisca Xavier da Fonseca,

avaliado em 446$780 (quatrocentos e quarenta e seis mil e setecentos e oitenta réis), sem

nenhum escravo, nem canavial, e apenas um sítio arrolado.75

Dois casais apresentaram uma faixa econômica semelhante: o Capitão-mor Salvador

Jorge Velho e Dona Maria da Silva Franco, em 2:345$441 (dois contos, trezentos e

quarenta e cinco mil, quatrocentos e quarenta e um réis) e o Tenente José Manoel Caldeira

Machado e Dona Maria D‟Assunção Camargo, em 2:517$240 (cinco contos, quinhentos e

dezessete mil, duzentos e quarenta réis). Ambos não possuíam canaviais.

O casal José do Amaral Gurgel, senhor de engenho e Dona Gertrudes de Campos é

o mais abastado da amostragem. Em 1806, o espólio final foi avaliado em 19:005$450

(dezenove contos, cinco mil, quatrocentos e cinquenta réis), o maior valor encontrado

dentre as pessoas investigadas.76

72 ZANATTA, Aline Antunes. Justiça e representações femininas: o divórcio entre a elite paulista (1765 –

1822). 2005. 213f. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Universidade Estadual de Campinas. Campinas. p. 38. 73 ZANATTA, Aline Antunes. Justiça e representações... p. 38 74 AESP. Maços de População de São Paulo, 1765 – 1850. Vila de Itu. 75 AESP. Maços de População de São Paulo, 1765 – 1850. Vila de Itu. 76 O casal possuía 6:823$490 (seis contos, oitocentos e vinte e três mil, quatrocentos e noventa réis) em dívidas passivas, o que resultava na quantia de 12:181$960 (doze contos, cento e oitenta e um mil, novecentos

e sessenta réis) líquido para a partilha.

44

A análise das fortunas e fazendas mais humildes (tendo como critério possuir roupas

arroladas nos bens do inventário póstumo) confirma o local de destaque que os senhores de

engenho e as donas ocupavam entre os demais, através da riqueza acumulada, da rede

familiar e econômica à qual pertenciam, bem como pela ocupação de cargos importantes,

como apontados acima.

Durante a colonização, como observou Françoise Souza, a Igreja foi a única

instituição a se estabelecer “com bastante eficácia desde os âmbitos mais humildes,

cotidianos e imediatos, como as famílias e as comunidades, até ao âmbito internacional, em

que convivia com os poderes dos reis e imperadores.”77

A Igreja desempenhava um papel importantíssimo na América Portuguesa, atuando

conjuntamente à Coroa. Sílvia Lara destacou que “a associação entre a estrutura eclesiástica

e o poder, além de ser constitutiva da sociedade portuguesa no Antigo Regime, marcava e

mesmo ordenava a vida nos núcleos urbanos coloniais.”78

O papel e a atuação dos

religiosos nos domínios coloniais excedia às tarefas e atribuições usuais, tendo influência

nos setores administrativos, políticos e na educação da população. Desta forma, pertencer

ao quadro eclesiástico denotava distinção.

Temos dois religiosos entre nossos inventariados: Manoel da Costa Aranha e

Antônio Francisco da Luz. Ambos possuíam terras dedicadas à agricultura, além do

sacerdócio. Antônio declarou-se senhor de engenho em 1800. Além disso, era proprietário

de trinta e quatro escravos, com um total de trezentos e quarenta e cinco arrobas de açúcar

produzido. Já Manoel declarou possuir lavoura nos anos de 1773 e 1775, mas não informou

qual gênero de produto cultivava.79

Os espólios finais desses dois sacerdotes são parecidos: o de Manoel somando

7:388$279 (sete contos, trezentos e oitenta e oito mil, duzentos e setenta e nove réis) e o de

Antônio contando com 8:614$430 (oito contos, seiscentos e quatorze mil, quatrocentos e

77 SOUZA, Françoíse Jean de Oliveira. Do altar à tribuna: os padres políticos na formação do Estado

Nacional brasileiro (1823 – 1841). 2010. 438 f. Tese (Doutorado) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,

Universidade do estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2010. p. 42 78 LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São

Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 58. 79

AESP. Maços de População de São Paulo, 1765 – 1850. Vila de Itu.

45

trinta réis). A comparação entre a composição dos bens de maneira geral (as posses por

categorias) também são muito semelhantes.

De acordo com Françoise Souza, em relação aos vencimentos que os sacerdotes

recebiam, as côngruas variavam muito, entre oitenta e duzentos mil réis.80

Segundo a

mesma autora, “os religiosos completavam suas rendas cobrando taxas no exercício do

ministério, como as conhecenças e pé-de-altar.”81

Ao levar em conta o valor dos espólios dos sacerdotes, os bens relacionados como

as declarações de posse de lavoura e do título de senhor de engenho, supomos que a maior

parte da riqueza acumulada pelos sacerdotes não fosse originária dos serviços religiosos.

Ao se referir aos estabelecimentos comerciais da vila de Itu no século XVIII, Nardy

Filho relatou que

importantes casas ali se estabeleceram, entre as quais era a mais importante a do

bracarense Francisco Novaes de Magalhães, que atendia aos lavradores de Itu e

vilas vizinhas fornecendo-lhes os gêneros de que necessitavam e até dinheiro para

o custeio de suas lavouras, cujos pagamentos lhe eram feitos após as colheitas em

moedas.82

Já Maria Aparecida de Menezes Borrego, em tese dedicada à atuação dos

comerciantes em São Paulo, na primeira metade do século XVIII, destacou um aspecto

importante em relação ao perfil dos homens de negócios: a atividade comercial era

considerada inferior e relacionada aos ofícios mecânicos, situação que afetava a nobilitação

do indivíduo. No entanto, muitos portugueses recém-chegados adotaram tais ocupações,

sem quaisquer reservas. 83

Quanto às estratégias de concentração e transmissão da riqueza em famílias do oeste

paulista através dos arranjos matrimoniais, Carlos Bacellar ressaltou que apesar da

preferência por uniões sanguíneas, matrimônios entre pessoas externas ao grupo familiar ou

próximo, ocorriam visando alianças economicamente vantajosas.84

Dentro desta

perspectiva, é possível compreender a presença de agentes mercantis nos laços

80 SOUZA, Françoíse Jean de Oliveira. Do altar à tribuna... p. 52. 81 SOUZA, Françoíse Jean de Oliveira. Do altar à tribuna... p. 52-53. 82 NARDY FILHO, Francisco „Evolução da cidade de Itu‟. In: O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 abr.,

1957. p. 6. 83

BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil... p. 43. 84 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra... p. 89 – 98.

46

matrimoniais de famílias tradicionais de elite no oeste paulista como uma estratégia do pai -

e senhor de engenho em incrementar seus negócios ao incluir em seu círculo familiar um

negociador ou intermediário português, facilitando assim a venda/exportação de sua

produção.

Entre nossos inventariados, encontramos um comerciante de naturalidade

portuguesa muito atuante na vila de Itu, Francisco Novaes de Magalhães, como comentado

a pouco, Nardy Filho menciona-o como o proprietário da casa comercial mais importante

da vila.85

De Francisco Novaes de Magalhães não temos seu inventário. Contamos apenas

com as contas de testamento e seu testamento. No rol de bens de 1779, são declarados dois

sítios, um com criação de gado em Itahu e outro em Anhambú. Nos censos, entre os anos de

1765 e 1808, Francisco apareceu em quatro deles: 1766, 1773, 1775 e 1776 e sempre

constou como suas ocupações negócio/loja ou negócio de fazenda seca e lavoura.86

Sobre o

comércio, Nardy Filho afirmou que “existia também por esse tempo em Itu, um outro bazar

de propriedade de José Gonçalves de Barros, (...) porém não era tão importante e de grande

movimento como o de Novaes de Magalhães.”87

Entre os bens arrolados no inventário de José Gonçalves de Barros, datado de 1779,

consta um item denominado „Fazenda da Loja‟ sucintamente descrita como “uma receita da

loja” avaliada em 297$010 (duzentos e noventa e sete mil e dez réis), além de trinta e duas

arrobas de açúcar alvo a 25$600 (vinte e cinco mil e seiscentos réis).88

Nos censos da vila

de Itu, referentes ao período estudado, Barros declarou desempenhar como ocupação

negócio de fazenda seca em dois anos (1766 e 1773), lavoura (1775), planta/colhe/cria

(1776) sendo sua produção agrícola de milho e feijão. No último ano em que ele aparece

nos censos, declarou possuir “cinco cavalos com que trabalha no caminho de Santos.”

Barros nunca foi mencionado como proprietário de cativos nos censos, mas em seu

inventário datado de 1779, isto é, três anos após aparecer no recenseamento, foram

85 NARDY FILHO, Francisco. Evolução... p. 6. 86 AESP. Maços de População de São Paulo, 1765 – 1850. Vila de Itu. Observação: no terceiro capítulo

realizaremos uma análise mais apurada de Francisco Novaes de Magalhães. 87

NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.3) p. 224 88 ARQ/MRCI. Inventário de José Gonçalves Barros, vila de Itu – 1779, caixa 10. p. 7 verso.

47

avaliados doze escravos no valor total de 860$600 (oitocentos e sessenta mil e seiscentos

réis).

Ao analisar as ocupações e atividades desenvolvidas pelos habitantes da vila de Itu

notamos uma importante questão: a relação que praticamente todos os indivíduos de nossa

amostragem tinham com a agricultura, pois quando não estavam ligados à lavoura

canavieira, dedicavam-se aos mantimentos necessários à subsistência.89

Realizamos uma

análise mais detalhada das trajetórias e fortunas dos indivíduos no terceiro capítulo.

Nos inventários póstumos e nos testamentos nos chamou atenção o pertencimento

dos indivíduos às ordens terceiras. Nos casos estudados, não encontramos nenhuma menção

às confrarias ou irmandades, apenas às ordens terceiras.90

Apenas duas ordens terceiras são mencionadas na documentação: a de São

Francisco e a do Carmo.91

Dos quarenta e quatro indivíduos investigados, trinta e três

(75%) não faziam menção a nenhuma ordem ou confraria; sete pertenciam à Ordem

Terceira do Carmo (15,9%) e quatro (9%) à de São Francisco. Nardy Filho atestou que a

Ordem Terceira do Carmo já existia anteriormente à construção da igreja e do convento, em

1706.92

Sobre a composição social desta última, o autor afirmou que “a essa Ordem

pertenciam as mais nobres e distintas famílias ituanas; grande era a devoção dos antigos

ituanos para com a Virgem do Monte Carmelo, o que prova o grande número de dádivas e

doações feitas aos Carmelitas.”93

89 No terceiro capítulo realizamos uma análise mais detalhada das trajetórias e fortunas dos indivíduos e suas

famílias. 90 Segundo Caio Boschi, a principal diferença entre ordens terceiras e confrarias é que “ao contrário das

confrarias, onde o objetivo é o de incrementar o culto público, as ordens terceiras são associações pias que se

preocupam, fundamentalmente, com a perfeição da vida cristã de seus membros.” BOSCHI, Caio César. Os

Leigos e o poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986.

p. 19. 91 De acordo com Nardy Filho, existiam além das ordens terceiras de São Francisco e do Carmo, a irmandade

Nossa Senhora do Rosário, de São Miguel das Almas, de Nossa Senhora do Pilar, do Bom Jesus, de São

Benedito, da Boa Morte, da Nossa Senhora das Dores, do Santíssimo Sacramento e a de Nosso Senhor dos

Passos. NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol. 5). p. 51. 92

NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.3) p. 52. 93 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 118-119.

48

Durante a primeira metade do século XVIII, a Ordem Terceira do Carmo foi

responsável pela manutenção de uma capela e de um convento que possuía “avultado

patrimônio em terras e escravatura, sendo também rica em alfaias e objetos de culto.”94

Já a Igreja atual do Carmo foi construída durante a segunda metade do século

XVIII. Sete imagens foram compradas no Rio de Janeiro, com as despesas a cargo da

Ordem Terceira95

. Realizavam junto ao Convento dos padres carmelitas, aulas de primeiras

letras e humanidades.96

Nardy Filho apontou que a tradição do Convento na instrução

continuou durante o século XIX e também a utilização de uma sala deste Convento para a

“segunda sessão do Júri da Câmara de Ytu”97

. A utilização do espaço interno do Convento

para atividades da comunidade ituana como o funcionamento da sessão da Câmara, denota

o envolvimento da elite nascente com a religião. Conforme apontou Octávio Ianni,

o poder religioso, o poder econômico e o poder político emergentes começaram a

assinalar posições e lugares. Começaram a construir-se igrejas e conventos que

expressavam a sobriedade dos recursos econômicos e culturais, por um lado, e a

emergência de uma cultura aristocrática, por outro. Aliás, naqueles tempos era

bastante acentuada a presença da religião na vida das famílias da aristocracia.98

Segundo Caio Boschi, “ser membro de uma ou mais ordem terceira significava ter

acesso ao interior da nata da sociedade e trânsito facilitado nela. Significava status.

Significava imediata obtenção de privilégios, graças e indulgências. Significava estar mais

próximo do poder e ter a sua proteção.”99

Considerando os significados religiosos e simbólicos importantes para a

compreensão do período, passaremos agora à análise das doações realizadas por alguns

membros às suas igrejas, ordens, santos de devoção, vislumbrando a materialidade

envolvida na religiosidade.

Nos testamentos encontramos doações às igrejas, já realizadas ou indicadas como a

vontade do testador, para assim proceder o testamenteiro no momento da partilha.

94 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 114. 95 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 119 96 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 115 97 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 116 98

IANNI, Octavio. Uma cidade antiga... p. 22 99 BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o poder... p. 20.

49

No testamento do fundador de Itu, Domingos Fernandes, encontramos alguns dados

fundamentais. Além de erigir a capela em honra a Nossa Senhora da Candelária, deixou a

referida capela como herdeira de sua terça, e mais

alguma roupa de alfaia como sobrecéu, cortinas, toalhas, um frontal usado de

tafetá verde e amarelo, uma vestimenta, casula, alva e o mais pedra de altar,

cálice com sua patena, sanguinhos, corporais, missal usado, quatro castiçais, dois

de estanho e outros dois de latão, campainha e galhetas de cobre.100

A nomeação da capela como herdeira, bem como a designação de objetos elencados

acima, indicou a preocupação do testador em prover elementos materiais necessários para a

manutenção e funcionamento da mesma. Fernandes obteve a provisão de capela curada em

1644 e, após sua morte, em 1653, foi elevada à freguesia. Além de símbolo devocional, a

capela era o elemento tangível da autoridade administrativa obtida.

Mais adiante e repetidamente em seu testamento, Fernandes instruiu sobre a

nomeação do padroeiro da capela, a fim de dar continuidade e realizar a ampliação da

mesma.101

Finalmente, o fundador registrou que sua última vontade era ser enterrado na

dita capela e que em nenhuma situação seus restos mortais deveriam ser removidos de lá.102

Entre os inventariados do nosso estudo, encontramos em alguns dos testamentos as

doações a igrejas ituanas e da região. Essas informações são interessantes e nos auxiliam a

compreender a relação da população com a constituição das igrejas, das ordens terceiras e

também vislumbrar a formação do patrimônio religioso barroco de Itu – significativo até o

presente.

João de Mello Rego, por exemplo, terceiro do Carmo, registrou sua vontade de

deixar como doação à Capela de Santa Gertrudes, o

oratório com sete palmos de alto e quatro e meio de largo, dourado e pintado,

com as imagens seguintes: um senhor crucificado de pau, uma senhora de Boa

100 Testamento de Domingos Fernandes, datado de 12 de Dezembro de 1652. Cf. NARDY FILHO, Francisco.

A Cidade de Itu... (vol.1) p. 45. 101

NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 48. 102 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 49.

50

Viagem com dois palmos, outra senhora do Carmo, Santa Bárbara, nossa senhora

da Rosa e uma imagem do menino Jesus.103

Segundo a menção do doador, seu ato visava à perpétua veneração das imagens.104

Esses dados coletados nos testamentos informam o tipo de ajuda financeira que a igreja,

irmandades e outras pessoas receberam. Auxiliam-nos a perceber quais templos estavam

em construção, reformas e melhoramentos na época de sua confecção. Sem falar nos laços

afetivos, devocionais e familiares que permeavam o testador neste momento próximo à

morte.

1.2 Os cabedais dos ituanos nos inventários póstumos

Neste tópico apresentamos primeiramente os elementos teóricos do campo da

cultura material caros à nossa pesquisa, através das proposições dos principais autores. No

segundo momento, analisamos a composição material da vila de Itu, através das categorias

de bens que utilizamos para organizar os bens arrolados nos inventários post-mortem,

apresentando os principais elementos que compunham a materialidade da vila ituana.

O campo de pesquisa da cultura material configura-se por estar em constante debate.

Ao analisarmos as publicações, grupos de pesquisa e eventos, notamos ainda o pequeno

interesse que essa área desperta. Apesar disso, trabalhos importantes surgem nos campos de

estudo da história e da antropologia. A proposta aqui não é apresentar um balanço

exaustivo das discussões sobre este campo, mas a de ilustrar as principais vertentes e

103 AESP. Autos de Contas de Testamento de João de Mello Rego, vila de Itu – 1779, caixa C00554. Juízo

dos Resíduos. p. 5. 104 AESP. Autos de Contas de Testamento de João de Mello Rego, vila de Itu – 1779, caixa C00554. Juízo

dos Resíduos. p. 9 verso.

51

indicar como tais trabalhos nos auxiliam a melhor refletir acerca do nosso objeto de

estudo105

.

O termo cultura material gera dúvidas e debates em sua tentativa de definição.

Marcelo Rede apontou que a cultura material é “a um só tempo, parte do fenômeno

histórico e fonte documental para sua compreensão.”106

Não se configura como uma

disciplina, mas mobiliza um esforço interdisciplinar para o seu estudo.

No verbete sobre Cultura Material da Enciclopédia Einaudi, de Richard Bucaille e

Jean-Marie Pesez escrito em 1989, os autores optaram por buscar o conceito através de

diversos trabalhos, aproximando e distanciando a cultura material da arqueologia, do

marxismo, dos Annales e da história da técnica. Concluem a exposição sem definir a

cultura material com segurança.107

Fernand Braudel na obra Civilização Material, Economia e Capitalismo trouxe uma

grande contribuição à história, tanto pela abordagem de novas temáticas (alimentação,

vestuário, cotidiano), como pela concepção das temporalidades. Ademais, introduziu a

dimensão material através do conceito de civilização material, que recebeu críticas nos

seguintes aspectos: o termo civilização que implicaria em hierarquias e sistema de valores

(civilizado versus incivilizado)108

; e que em sua análise faltava o domínio do simbólico.109

Em relação à interação da cultura material com a história, Marcelo Rede apontou

que “a operação historiográfica não se alterou substancialmente com a renovação do

temário; dito de outro modo, o reconhecimento da cultura material como parte essencial do

105 O balanço realizado em âmbito nacional mais recente sobre o campo da cultura material é o de Vânia

Carneiro de Carvalho. Cf . CARVALHO, Vânia Carneiro de. Cultura Material, espaço doméstico e

musealização. Vária História. (UFMG) Belo Horizonte, v. 27, p. 443 – 469, 2011. 106 REDE, Marcelo. “História a partir das coisas: tendências recentes no estudo de cultura material.” In: Anais

do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.4 p.265-82 jan./dez. 1996. p. 266 107 BUCAILLE, Richard, PESEZ, Jean-Marie. “Cultura Material.” Enciclopédia Einaudi, Lisboa, IN-CM,

1989, vol.16 - Homo — Domesticação — Cultura Material, p.11-47. p. 43. 108 BUCAILLE, Richard, PESEZ, Jean-Marie. Cultura Material. Enciclopédia... p. 43. 109

BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales ( 1929 – 1989). São Paulo:

Editora Universidade Estadual Paulista, 1991. p. 42.

52

fenômeno histórico não implicou sua inserção decisiva como documento no processo de

produção do discurso historiográfico.”110

Foi no diálogo com a antropologia que a cultura material se desenvolveu

consideravelmente. A influência da antropologia social e cultural, segundo Bucaille e Pesez

foi a de promover um conceito de cultura em âmbito coletivo.111

Elencamos o antropólogo

inglês Daniel Miller, e um grupo francês como os mais representativos do campo de cultura

material atualmente. Este último compõe-se de um grupo de trabalho reunido na

Universidade Paris V – René Descartes. Dentre vários membros, destaca-se Jean-Pierre

Warnier112

. A perspectiva de Warnier enfoca a relação entre os objetos, o corpo e as

representações mentais.113

Já o antropólogo inglês Daniel Miller possui uma postura incisiva em defesa da

cultura material, contestando cada elemento negativo que pese contra ela.

Amparado na crença religiosa da superioridade do mundo imaterial e existente há

séculos, o dualismo entre humanidade e materialidade foi apontado e questionado por

Miller em vários de seus textos. Esta seria a base para uma série de implicações contrárias à

materialidade, que culmina no repúdio completo dos objetos, ou em quem os aceita na

cultura ocidental. O aspecto interessante das religiões que menosprezam o mundo material

é o paradoxo de necessitarem da materialidade, através de monumentos de grande escala

para expressar a imaterialidade. O exemplo mais icônico são as pirâmides dos antigos

egípcios.114

Ao questionar a oposição entre coisa e pessoa, sujeito versus objeto, Miller apontou

que

quaisquer que sejam nossos medos ou preocupações ambientais com o

materialismo, não seremos ajudados por uma teoria dos trecos nem por uma

atitude que simplesmente nos oponha a eles; como se quanto mais pensássemos nas coisas como se elas fossem alienígenas ou estranhas mais nos mantivéssemos

sacrossantos e puros. A ideia de que os trecos de algum modo drenam a nossa

humanidade, enquanto nos dissolvemos numa mistura pegajosa de plástico e

110 REDE, Marcelo. “Estudos de Cultura Material: uma vertente francesa.” In: Anais do Museu Paulista. São

Paulo. N. Sér. v. 8/9. p.281-291 (2000-2001). Editado em 2003. p. 282. 111 BUCAILLE, Richard, PESEZ, Jean-Marie. Cultura Material. Enciclopédia... p.23 112 WARNIER, Jean-Pierre. Construire la culture materielle: l´homme qui pensait avec ses doigts. Paris:

Presses Universitaires de France, 1999. 113

REDE, Marcelo. Estudos de Cultura Material... p. 284 114 MILLER, Daniel (ed.).Materiality. London: Duke University Press, 2005. p.16.

53

outras mercadorias, corresponde à tentativa de preservar uma visão simplista e

falsa de uma humanidade pura e previamente imaculada.115

Em relação à aparência, o autor teceu comparações entre sua sociedade (europeia) e

a população de Trinidad. A relação desta última com as roupas e adereços demonstrou a

Miller o quanto a aparência é importante para se conhecer uma pessoa daquela comunidade.

Em nossa sociedade, entretanto, encaramos a exterioridade separada de nosso interior. O

autor denominou tal fenômeno como ontologia de profundidade. “A hipótese é que ser – o

que realmente somos – está profundamente situado dentro de nós e em oposição direta à

superfície. Um comprador de roupas é superficial porque um filósofo ou um santo é

profundo.”116

Também cabe mencionar uma publicação realizada após um seminário promovido

pelo Smithsonian Institution, congregando pesquisadores de diversos países, editado por

Steven Lubar e David Kingery, History from things: essays on material culture.117

A

preocupação central do grupo era entender como cada autor trabalhava diretamente com os

dados primários. A discussão levantada na introdução pelos autores é muito pertinente. A

principal questão é a de que os historiadores utilizam mais documentos do que artefatos

como fontes.118

Ainda pensando no peso dos documentos escritos, ao comparar as possibilidades de

análise de cultura material entre as proposições de Warnier e a postura dos historiadores,

Marcelo Rede constatou que “o próprio método histórico leva a uma documentalização dos

componentes do fenômeno estudado (textos; imagens; registro oral; cultura material…),

como a via prioritária de acesso cognitivo ao próprio fenômeno.” A grande crítica de Rede

é a de a história não propiciar um conjunto teórico-metodológico específico para tratar a

cultura material.119

115 MILLER, Daniel.Trecos, troços e coisas. Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro:

Zahar, 2013. p. 11. 116 MILLER, Daniel.Trecos... p. 28. 117 Cf. REDE, Marcelo. Estudos de Cultura Material... 118 LUBAR, Steven e KINGERY, David. History of things: essays of material culture. Washington: The

Smithsonian Institution, 1993. p. IX. 119 REDE, Marcelo. Estudos de Cultura Material... p. 282.

54

Reconhecemos o peso desta questão, especialmente porque em nossa pesquisa apenas

conseguimos acessar os objetos a partir de sua descrição na documentação escrita. Lubar e

Kingery afirmaram (e nós concordamos) que os artefatos utilizados em conjunto com

outros tipos de fontes proporcionam uma análise mais enriquecedora.120

Infelizmente para

Itu não possuímos fontes de outra natureza para complementar ou confrontar as descrições

dos bens nos inventários póstumos, tais como imagens, relatos de viagem ou mesmo os

próprios objetos. Desta forma, ao trabalharmos sem os artefatos, consideramos essencial a

formulação de Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses sobre a materialidade:

ao contrário do entendimento ainda muito comum entre nossos historiadores, os

estudos de cultura material não se caracterizam nem pelo uso determinante de

fontes materiais, nem como preocupação exclusiva com artefatos e,

eventualmente, seu contexto, como se fossem um segmento à parte da vida social

– mas pela análise da dimensão material de qualquer instância ou tempo da vida

social. É por isso que tais estudos, longe de constituírem um domínio próprio,

autônomo, podem estar presentes nos diversos campos da História. Daí a

insuficiência de se trabalhar apenas ou preponderantemente com documentação

material.121

Tal proposição é de extrema importância e peso para nossa análise, pois amplia a

percepção da cultura material, entendida na maior parte das vezes apenas pelos significados

e elementos referentes à materialidade em si. Meneses pontuou também que os artefatos

atuam como produto e vetor das relações sociais. Produtos enquanto vestígios,

remanescentes das atividades humanas, e vetor, porquê propiciam, são canais das relações

sociais.122

Outro aspecto muito debatido é o emprego da semiótica na análise da cultura

material. A grande crítica baseia-se no enfoque aos elementos simbólicos e ideológicos dos

objetos, encarando-os como veículos materiais de uma linguagem a ser decodificada. Tal

120 LUBAR, Steven e KINGERY, David. History of things ... p. IX. 121 MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. “Apresentação” In: MARTINEZ, Cláudia Eliane Parreiras

Marques. Riqueza e escravidão: vida material e população no século XIX: Bonfim do Paraopeba/MG. São

Paulo: Annablume: Fapesp, 2007. p.14 - grifo do autor. 122 MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cultura material no estudo das sociedades antigas, Revista de

História, NS n.1I5, p.103-117, 1983. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/viewFile/61796/64659> . Acesso em 23.fev.2015.

55

ponto de vista também desenvolve uma ênfase, um poder maior do objeto em relação ao

sujeito, resultando na reificação ou autonomização dos objetos.123

Concordamos com Menezes quando este afirmou que

as vertentes mais férteis e inovadoras nos estudos recentes de cultura material têm

procurado ir além das meras preocupações funcionais e semióticas, para, ao

contrário, buscar definir a capacidade, presente nos artefatos, de agir, de produzir

efeitos: os artefatos também nos moldam; não apenas nos expressam, mas,

igualmente, de formas e em graus variados, nos constituem.124

Talvez a grande dificuldade de superar a análise simbólica e efetivamente adentrar

nessa relação sujeito-objeto mais detidamente seja a ausência ou o conhecimento de um

procedimento teórico-metodológico específico, no campo histórico, como mencionado por

Rede.125

Por não ser uma disciplina efetivamente constituída, a cultura material se beneficia

da pluralidade de conceitos interdisciplinares, mas por outro lado, carece de balizas

metodológicas mais nítidas.

Em nosso caso, estudando as vestimentas especificamente, entendemos não ser

possível desconsiderar ou minimizar a importância que a análise da semiótica possa

propiciar. Se levarmos em conta a importância da imagem para a sociedade barroca do

século XVIII, é impossível desconsiderar a linguagem visual não apenas nas roupas, mas

em outros aspectos como a arquitetura e as artes.

Passamos para a análise da cultura material da vila de Itu, analisando a composição

dos bens, especialmente as residências e as unidades produtivas relacionadas à produção

açucareira.

Os inventários post-mortem nos possibilitam analisar apenas um momento das

posses de um domicílio. Por ser este contexto o da morte de um dos cônjuges, talvez cause

a impressão de que o rol de bens contenha todos os objetos que aquela pessoa adquiriu

durante a vida. Mas não existe apenas o ato de acumular. A doação, troca, empréstimo,

divisão e perda também faz parte da história de nossos pertences. O espólio final descrito e

123 MENEZES, Ulpiano. Prefácio In: CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e Artefato: o sistema

doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870 – 1920. São Paulo: Editora da Universidade

de São Paulo/FAPESP, 2008. p. 12. 124

MENEZES, Ulpiano. Prefácio In: CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero... p. 12. 125 REDE, Marcelo. Estudos de Cultura Material.... p. 282.

56

avaliado no arrolamento não corresponde, muitas vezes, à totalidade dos bens, pois alguns

objetos poderiam ser omitidos na declaração, ou mesmo, partilhados anteriormente. Mas

para a análise da composição material daquela sociedade, esta fonte propicia um aspecto

relevante: apresenta os objetos em conjunto. Podemos assim, avaliar a constituição dos

patrimônios como um todo, pensando no uso dos objetos, individual e coletivamente,

dentro daquele domicílio.

Partimos das categorias desenvolvidas por Ernani Silva Bruno para o fichário do

Museu da Casa Brasileira126

, para organizar o banco de dados no programa Microsoft

Excel:

1 - Bens de raiz (imóveis como casas, lojas, terrenos, sítios e chácaras).

2 – Ferramentas, equipamentos e apetrechos de trabalho (objetos relacionados aos

processos produtivos agrícolas, aos ofícios diversos e ao uso cotidiano nos domicílios)

3 – Animais e criações (bovinos, equinos, caprinos, suínos) .

4 – Cavalgaduras, equipamentos e acessórios de transporte (montarias, ferragens,

cangas e carros de bois).

5 – Matérias primas (todo material empregado na confecção de objetos, como botões,

tecidos, couros, linhas).

6 – Alimentos, colheitas e produção caseira (alimentos para consumo doméstico, como

sementes, legumes, etc.).

7 – Construções e materiais (materiais empregados na construção de imóveis).

8 – Escravos (cativos).

9 – Instrumentos ligados à escravidão (correntes, grilhões, cadeados).

10 – Utensílios e ornatos da casa (objetos que compunham o domicílio, utilitários ou

decorativos, como talheres, pratos, copos, bules, bacias, candeeiros, lampiões, ferro para

engomar, crucifixos, imagens de santos, oratórios).

126 O fichário foi desenvolvido pelos funcionários da seção histórica do Museu da Casa Brasileira nos anos

1970. Encontra-se digitalizado e disponível no site do museu com a denominação Equipamentos da Casa Brasileira, Usos e costumes. Disponível em: <http://antigo.mcb.org.br/ernMain.asp> . Acesso em

20.dez.2014.

57

11 – Móveis e acessórios (móveis de descanso e de organização, como catres, camas,

colchões, cadeiras, mesas, bofetes, nichos, caixas, baús, armários).

12 – Roupas da casa (roupas de cama lençóis, fronhas, cobertas, colchas, cortinados,

roupas de mesa, a saber, toalha de mesa, guardanapos, toalhas de mãos).

13 – Vestuário (roupas de uso pessoal femininas e masculinas).

14 – Objetos de uso pessoal relacionados à aparência (sapatos, chapéus, fivelas, bastões,

esporas, relógios).

15 – Joias (brincos, colares, anéis, pulseiras, cordões).

16 – Leitura e entretenimento (livros).

17 – Instrumentos musicais

18 – Armas, aparatos defensivos e acessórios

19 – Dinheiro

20 - Ouro

21 - Prata

22 - Total bens

23 - Dívida Ativa

24 - Dívida Passiva

25 - Dote

26 - Sufrágios e custos

27 - Líquido (partível)

28 - Dois terços

29 - Meação

30 - Cada herdeiro/legítima

31 - Observação

Incluímos os últimos doze itens, para diferenciar os metais preciosos e abarcar o

fechamento das contas do inventário de forma mais completa, pois interessa-nos entender

tanto a quantia do montante final, quanto o valor em dívidas a receber (ativas) e que deviam

(passiva) cada inventariado, bem como a partilha dos bens. Optamos por esta

58

sistematização, pois nos inventários póstumos os escrivães agrupavam os objetos

desordenadamente.

Para cada indivíduo inventariado foi realizada a leitura, transcrição e fichamento dos

bens, enquadrando-os nas categorias de número 1 a 21. Posteriormente, calculamos os

valores dos bens por categorias e refizemos as contas da partilha, tomando as devidas

cautelas com os valores encontrados na documentação, pois grande parte das adições estava

equivocada, demandando várias revisões.127

Em consequência, obtivemos dois valores

monetários: um que fornece a soma total dos bens e outro que aponta a quantia a ser

partilhada, ou seja, após subtrair ou adicionar as dívidas ao espólio. Para melhor

compreensão das diferentes composições dos bens dos ituanos, estabelecemos faixas de

valores em réis para distribuir as ocorrências dos indivíduos nas duas situações, antes e

após o cálculo das dívidas ativas e passivas.

Tabela 2 – Distribuição dos inventariados por faixas de bens, Itu, 1765-1808

Faixas de bens (em réis) Número de inventariados na

soma total dos bens

Número de inventariados na soma

dos bens (líquido) após subtrair as

dívidas

Valor Negativo - 1

De 0 a $500 7 6

De $501 a 1:000$000 6 6

De 1:001$000 a 5:000$000 16 13

De 5:001$000 a

10:000$000

5 2

Acima de 10:001$000 5 3

Não informa 5 13

Total 44 44

Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Inventários póstumos, vila de Itu

A tabela 2 aponta a tendência observada na maioria dos espólios, de diminuição no

valor das heranças, o que aponta a existência de dívidas a serem quitadas. O único caso em

que o valor das dívidas ultrapassou o da soma de todos os bens foi o do capitão Antônio

Pompeu Bueno, que no momento da contabilidade dos bens e dívidas, obteve o valor

negativo de 348$502 (trezentos e quarenta e oito mil e quinhentos e dois réis). Dentre os

mais abastados, cujos bens alcançavam mais de dez contos de réis, apenas três

127 Procedemos da mesma forma a coleta e análise dos dados junto aos inventários póstumos lisboetas.

59

inventariados dos cinco conseguiam permanecer na referida faixa, após descontar as

dívidas.

Seis indivíduos tiveram seus montes maiores no segundo momento, pois os valores

referentes a dívidas ou créditos que lhes eram devidos foram consideráveis e superaram o

valor que, porventura, deviam a terceiros. O exemplo mais significativo foi de Maria

Francisca Vieira, cabeça de casal, após o falecimento de seu marido, Francisco Novais de

Magalhães. De 4:579$733 (quatro contos, quinhentos e setenta e nove mil, setecentos e

trinta e três réis), o espólio foi para 21:637$732 (vinte e um contos, seiscentos e trinta e sete

mil, setecentos e trinta e dois réis). Esta diferença se deve ao fato de que Francisco atuava

como comerciante e também fornecia empréstimos aos moradores da vila de Itu e das

localidades próximas.128

O contrário também foi observado, quando a dívida passiva apresentou valor

semelhante ao montante dos bens. No caso de Bernardo de Quadros Aranha, havia 20$000

(vinte mil réis) a receber, porém, sua dívida passiva era de 3:430$101 (três contos,

quatrocentos e trinta mil, cento e um réis), quantia semelhante ao seu montante de bens, de

3:951$390 (três contos, novecentos e cinquenta e um mil, trezentos e noventa réis). Já o

padre Antônio Francisco da Luz que apresentava o espólio total de 8:614$430 (oito contos,

seiscentos e quatorze mil, quatrocentos e trinta réis), tinha a receber 4:820$859 (quatro

contos, oitocentos e vinte mil, oitocentos e cinquenta e nove réis), no entanto devia a alta

quantia de 7:913$185 (sete contos, novecentos e treze mil, cento e oitenta e cinco réis).

Os inventariados da faixa entre $501 (quinhentos e um réis) e 1:000$000 (um conto

de réis) apresentaram o mesmo número em ambas as situações. O número de indivíduos

sem indicação dos valores aumenta significativamente no segundo momento, devido à

lacuna na documentação. A faixa de bens intermediária, que contempla os patrimônios

entre os valores de 1:001$000 (um conto e mil réis) e 5:000$000 (cinco contos de réis), foi

a que concentrou o maior número de pessoas em ambas as situações, 16 e 13,

demonstrando o padrão médio monetário dos ituanos da amostra.

128 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.5) p. 223.

60

Da somatória dos bens, os cinco mais abastados são o casal Inácia Leite de Almeida

e seu marido José do Amaral Gurgel, Ana Gertrudes de Campos, José Manoel da Fonseca

Leite e Elena Maria de Souza. Esses indivíduos (ou suas esposas) estão relacionados à

produção canavieira e às ordens militares. Após a subtração das dívidas, permanecem

Inácia e Ana Gertrudes, e Maria Francisca Vieira passa a figurar no seleto grupo.129

Os

inventários com montantes gerais mais baixos, por sua vez, não são menos importantes:

estes apontam diferentes composições materiais e possibilitam-nos compreender um pouco

mais sobre o cotidiano da vila de Itu.

Dentro do universo investigado, a distribuição dos valores atribuídos aos bens por

categorias apresentou o seguinte resultado:

129 Veremos adiante no terceiro capítulo as particularidades envolvendo as famílias e seus bens.

61

Gráfico 1 – Valor em réis dos bens totais inventariados divididos por categorias

000:000$000

010:000$000

020:000$000

030:000$000

040:000$000

050:000$000

060:000$000

070:000$000

080:000$000

Bens de ra

iz

Ferramenta

s

Animais

e criaçõ

es

Cavalgaduras,

equipamentos

de transp

orte

Maté

rias p

rimas

Alimento

s, co

lheitas e

produção ca

seira

Construções e

mate

riais

Escra

vos

Instrumento

s ligados à

escravidão

Utensíl

ios e orn

atos d

a casa

Móveis

e acessó

rios

Alfaias d

a casa

Vestuário

Objetos d

e uso pess

oalJó

ias

Leitu

ra e entre

tenim

ento

Instrumento

s music

ais

Armas,

aparato

s defensiv

os e acessó

rios

DinheiroOuro

Prata

Série1

FONTE: AESP, ARQ/MRCI - Inventários

62

A somatória dos valores dos bens arrolados de nossa amostra aponta os montantes

em réis, que cada categoria alcançou. Destacam-se em ordem decrescente: os bens de raiz

em 74:874$455 (setenta e quatro contos, oitocentos e setenta e quatro mil, quatrocentos e

cinquenta e cinco réis), escravos no valor de 60:086$650 (sessenta contos, oitenta e seis

mil, seiscentos e cinquenta réis), animais e criações, avaliado em 6:873$060 (seis contos,

oitocentos e setenta e três mil e sessenta réis), ferramentas, equipamentos e apetrechos de

trabalho, em 4:517$145 (quatro contos, quinhentos e dezessete mil, cento e quarenta e

cinco réis), utensílios e ornatos da casa, somados 2:963$027 (dois contos, novecentos e

sessenta e três mil, vinte e sete réis), dinheiro, com a quantia de 2:764$561 (dois contos,

setecentos e sessenta e quatro mil, quinhentos e sessenta e um réis), alimentos, colheita e

produção caseira, avaliado em 1:838$720 (um conto, oitocentos e trinta e oito mil,

setecentos e vinte réis), ouro, no montante de 1:737$583 (um conto, setecentos e trinta e

sete mil, quinhentos e oitenta e três réis), móveis e acessórios, ao todo 1:083$100 (um

conto, oitenta e três mil e cem réis).

Abaixo de um conto de réis, estão: joias, no valor de 924$024 (novecentos e vinte e

quatro mil, vinte e quatro réis), cavalgaduras, equipamentos e acessórios de transporte, em

866$480 (oitocentos e sessenta e seis mil, quatrocentos e oitenta réis), vestuário, na quantia

de 732$780 (setecentos e trinta e dois mil, setecentos e oitenta réis), objetos de uso pessoal

relacionados à aparência, em 658$134 (seiscentos e cinquenta e oito mil, cento e trinta e

quatro réis), roupas da casa, na quantia de 628$540 (seiscentos e vinte e oito mil,

quinhentos e quarenta réis), matérias primas, no montante de 575$195 (quinhentos e setenta

e cinco mil, cento e noventa e cinco réis), leitura e entretenimento no valor de 420$810,

(quatrocentos e vinte mil, oitocentos e dez réis), armas, aparatos defensivos e acessórios,

avaliados em 349$720 (trezentos e quarenta e nove mil, setecentos e vinte réis),

instrumentos musicais, em 66$900 (sessenta e seis mil e novecentos réis), prata, no total de

59$750 (cinquenta e nove mil, setecentos e cinquenta réis), instrumentos ligados à

escravidão, em 34$320 (trinta e quatro mil, trezentos e vinte réis) e finalmente, construções

e materiais no valor de 30$760 (trinta mil, setecentos e sessenta réis).

63

Esses dados confirmam a valorização das terras e construções, bem como da mão de

obra escrava, nos séculos XVIII e XIX. Os maiores valores estão relacionados às categorias

produtivas, seguidos por dinheiro e ouro, e duas categorias que se enquadram como

“recheio da casa”: utensílios e ornatos e móveis e acessórios. Com valores inferiores, mas

não menos relevantes, figuram as demais categorias, lideradas pelas joias.

Para avaliar a composição material da vila do açúcar, empreendemos um enfoque

sobre as unidades produtivas e a principal mão-de-obra empregada na produção açucareira.

Entre os inventariados, a posse de engenhos de açúcar alcançou quase a metade dos

indivíduos, abrangendo dezenove proprietários (43,1%), um número significativo em nossa

amostra. Apenas cinco indivíduos (11,5%) não informam a posse de engenho.

Gráfico 2 - Posse de engenho

FONTE: ARQ/MRCI - Inventários.

Referente à posse de escravos nos espólios analisados, os dados estão organizados

no gráfico a seguir. Para melhor visualização, organizamos tanto o número de proprietários

quanto o de cativos por faixas, com intervalo de números pares e o número de cativos por

faixas, a seguir:

64

Gráfico 3 - Relação do número cativos nos espólios de Itu, 1765-1808

FONTE: ARQ/MRCI - Inventários.

A faixa de maior ocorrência, entre 11 e 20 escravos, obteve treze proprietários

(29,5%) dos inventários. Carlos Bacellar utilizou como critério para a seleção dos

indivíduos a posse do número de escravos, acima de quarenta cativos, para filtrar apenas o

estrato mais elevado da sociedade.216

Para compreender a composição do conjunto da unidade produtiva açucareira,

avaliamos a ocorrência de escravos, engenho e canavial nos bens arrolados.

Gráfico 4 - Ocorrência de bens agrupados por produção açucareira

FONTE: ARQ/MRCI - Inventários.

216

Esse critério foi aplicado pois sua investigação versava sobre a manutenção da riqueza nas famílias do

Oeste paulista. Cf. BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra...

65

Este gráfico agrupa até três elementos essenciais do processo produtivo açucareiro:

escravos, canavial e engenho. Mesmo considerando que os escravos exerciam diversas

outras ocupações não relacionadas ao engenho, esta avaliação nos permite observar um

padrão dos pertences dos proprietários de nossa amostra, com a quantificação de cada

elemento, em separado ou unidos.

Apesar das lacunas nos dados recolhidos na documentação, encontramos alguns

aspectos da população e de sua materialidade. Os indivíduos analisados não eram

necessariamente os mais ricos. Embora alguns inventariados sejam consideravelmente

abastados, nosso enfoque recaiu sobre as pessoas que possuíam roupas arroladas entre seus

bens, para analisarmos os diferentes padrões de posses de vestuário.

Dezenove indivíduos (43,1%) possuíam apenas escravos, um (2,2%) possuía apenas

engenho, e também um (2,2%), dispunha de escravos e canavial, dois (4,5%) eram

proprietários de escravos e engenho. Cinco inventariados (11,3%) não apresentaram

nenhum destes três elementos. Dezesseis eram donos dos três itens: cativos, engenho e

canavial, 36,3%. A comparação dos vinte inventariados mais ricos de nossa amostra com os

dezesseis do gráfico acima, revela que apenas um, João Leite Penteado, não consta entre os

vinte maiores espólios. O exame dessas três categorias confirma que a produção canavieira

é a atividade responsável por grande parte da riqueza dos ituanos analisados em nossa

amostra.

Os bens de raiz, ou imóveis somados, apresentam o maior valor dentre todas as

categorias, 74:874$455 (setenta e quatro contos, oitocentos e setenta e quatro mil e

quatrocentos e cinquenta e cinco réis). Ao confrontar com o montante dos bens, indicado no

gráfico 5, representa 46% das posses.

66

Gráfico 5 - Valor dos bens de raiz em relação ao total dos bens, Itu, 1765-1808

074:874$455

160:821$330

000:000$000

020:000$000

040:000$000

060:000$000

080:000$000

100:000$000

120:000$000

140:000$000

160:000$000

180:000$000

Bens de raiz TOTAL BENS

FONTE: ARQ/MRCI - Inventários.

Através das descrições contidas principalmente nos inventários póstumos, é possível

reunir dados interessantes sobre os bens de raiz, ou imóveis da vila de Itu no período

pesquisado. Atualmente, na região central da cidade localizam-se algumas construções de

taipa, datadas de meados do século XVIII. Já em relação ao início do século XIX existe um

maior número de imóveis. Ainda que exista uma série de problemas relacionados à

conservação e à valorização do conjunto arquitetônico ituano, este se configura como um

dos poucos núcleos urbanos paulista com edificações representativas dos três últimos

séculos (XVIII, XIX e XX).217

Em relação à composição material dos bens de raiz arrolados na documentação,

organizamos o gráfico 6 com os materiais e técnicas construtivas.

217 O conjunto arquitetônico da região central de Itu foi tombado pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa

do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo) em 06 de novembro de

2003, processo número 26907/89. Informação disponível em:

<http://www.cultura.sp.gov.br/portal/site/SEC/menuitem.bb3205c597b9e36c3664eb10e2308ca0/?vgnextoid=91b6ffbae7ac1210VgnVCM1000002e03c80aRCRD&Id=69a58ed99a1ac010VgnVCM2000000301a8c0____

> Acesso em 10.maio.2014.

67

Gráfico 6 - Materiais e técnicas construtivas dos bens de raiz da vila de Itu, 1765-1808

0

2

4

6

8

10

12

14

coberta de

telhas

não consta não

menciona

taipa de

mão

taipa de

mão e

coberta de

capim

taipa de

mão e

coberta de

telhas

taipa de

mão e palha

taipa de

mão, taipa

de pilão e

cobertas de

telhas

taipa de

pilão e

coberta de

telhas

FONTE: ARQ/MRCI - Inventários.

O item „não consta‟ consiste nos casos em que os inventariados não possuem

nenhum bem de raiz. Já o campo „não menciona‟ são os indivíduos que possuem bens de

raiz, mas sem indicação do material. Respeitamos as descrições encontradas na

documentação, agrupando apenas os dados idênticos, para melhor visualização. Sete

indivíduos eram proprietários, mas não havia identificação dos materiais de seus imóveis, e

cinco (11,3%) não possuíam nenhum bem de raiz.

A forma de cobertura de casas mais utilizada era a de telhas. Provavelmente a

produção de telhas era local e, em algumas situações, caseira. Dentre as ferramentas

arroladas de João Leite Penteado, consta “uma grade de fazer telha”218

, também “uma grade

de ferro de fazer telha” no espólio de Antônio Antunes Pereira219

. Inácia Leite de Almeida e

José do Amaral Gurgel possuíam um sítio no Buru “com olaria de fazer telhas”220

.

Segundo Carlos Lemos, “a arquitetura paulista é caracterizada pela taipa de pilão,

técnica baseada na terra pisada entre taipas que, pela sua natureza, determina muros

contínuos extremamente sensíveis à umidade, de insignificante resistência à tração e de

218 ARQ/MRCI - Inventário de João Leite Penteado, 1795, caixa 5. folha 3 verso. 219

ARQ/MRCI - Inventário de Antonio Antunes Pereira, 1802, caixa 16. folha 6 verso. 220 ARQ/MRCI - Inventário de Inácia Leite de Almeida, 1801, caixa 15. folha 19 verso.

68

difícil revestimento à vista da superfície frágil ao risco.”221

Em nossos dados, a ocorrência

de construções em taipa de pilão foi menor (oito menções), mas também algumas são

híbridas, de taipa de pilão e de mão.

Sobre a distinção destes dois tipos construtivos, Alberto Nasiasene comentou que

em

São Paulo colonial, as casas dos mais abastados na cidade, por exemplo, em sua

maioria, também era construída em taipa de mão, ou pau-a-pique e só as

construções mais importantes é que eram de taipa de pilão; ou, como também era comum, havia um hibridismo entre as duas técnicas porque era comum que as

casas grandes das fazendas, depois que o café começou a trazer prosperidade, na

primeira metade do século XIX, tivessem as paredes externas construídas em

taipa de pilão e as internas em taipa de mão.222

A taipa de mão foi a técnica mais recorrente no período colonial. Conhecido

também como pau-a-pique “recebe o nome porque é feito com estrutura de madeira roliça,

disposta vertical e horizontalmente, amarrada com cipó ou cravo e depois preenchida com

barro socado.”223

Segundo Nilson Cardoso de Carvalho,

os bandeirantes do ciclo da caça ao índio e do ciclo do ouro levaram a taipa de

pilão para Mato Grosso e Goiás. Em Minas Gerais, o processo não deu resultado

devido à inclinação dos terrenos montanhosos, nos quais as enxurradas

provocavam a erosão das paredes de taipa. Os mineiros inventaram, então, a

técnica da taipa de mão, ou, pau-a-pique, introduzida por eles em São Paulo,

quando para cá migraram, ao final do ciclo do ouro. A técnica da taipa de pilão

era muito simples e resistente quando bem construída, encontrando-se, ainda,

exemplares deste tipo de edificação com mais de duzentos anos.224

Não sabemos precisar se a técnica da taipa de mão realmente veio para São Paulo de

Minas Gerais, como afirma Carvalho. O que pudemos depreender é que nessa

amostragem, tal técnica obteve um número superior de uso em relação à taipa de pilão.

Também ocorreram seis casos em que foram empregadas as duas técnicas juntas em uma

mesma edificação.

221 LEMOS, Carlos. A casa brasileira. São Paulo: Contexto, 1989. p. 41 222 NASIASENE, Alberto. Taipa de pilão e o estilo colonial paulista. Disponível em: <

http://www.rotamogiana.com/2012/01/taipa-de-pilao.html>. Acesso em 28.jan.2014. 223 Informação disponível em: < http://www.museudacidade.sp.gov.br/taipadepilao.php> . Acesso em

28.jan.2014. 224 CARVALHO, Nilson Cardoso de. Arquitetura em taipa. Disponível em: <http://www.promemoria.indaiatuba.sp.gov.br/arquivos/galerias/arquitetura_em_taipa.pdf>. p. 2 Acesso em

27.jan.2014.

69

Os sobrados eram diferentes da definição que hoje utilizamos às edificações: “o

termo primitivamente designava o espaço sobrado ou ganho devido a um soalho suspenso.

Portanto, o sobrado tanto podia estar acima desse piso como embaixo dele, dependendo das

circunstâncias.”225

Carlos Lemos advertiu que “nem sempre os sobrados mencionados nas

descrições são aqueles que hoje identificamos por aquela palavra.”226

Na documentação são mencionadas casas designadas como sobrados ou

assoalhadas. Como sobrados, temos alguns exemplos: “Uma morada de casas de sobrados

citos nesta vila, na rua do Carmo, de três lanços, paredes de taipa de pilão com duas [-] e

seu corredor, coberta de telhas bem danificadas com seu quintal até a rua das Baratas (...)

avaliado em 300$000 (trezentos mil réis)”227

. Ou então “Uma morada de casas com um

sobrado que se achavam por acabar de forrar e por gelosias (...) com os fundos pertencentes

citas no pátio da Matriz desta vila em 600$000 (seiscentos mil réis)”228

. Dois sobrados de

um mesmo proprietário: “Uma morada de casas de sobrado de dois lanços na Rua da Palma

(...) com uma Capelinha no interior dela, seu quintal competente na forma em que se acha

fazendo o fundo com umas moradas na rua do Conselho.” Ainda encontramos “Uma

morada de casas de sobrado de três lanços com seus corredores na Rua do Conselho

entrando a metade que foi do falecido Coronel José Florêncio de Oliveira, entrando uma

moradinha pequena térrea, (...) cobertas de telha com seu quintal em 100$000 (cem mil

réis).”229

Através desses exemplos de sobrados, nota-se a variação dos preços estabelecidos

pelos avaliadores, entre 100$000 (cem mil réis) e 600$000 (seiscentos mil réis), de acordo

com sua composição e estado.

225 LEMOS, Carlos. A casa brasileira... p. 32-33 226 LEMOS, Carlos. A casa brasileira... p. 33 227 ARQ/MRCI - Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, 1798, caixa 8. folhas 18 – 18 verso. 228

ARQ/MRCI - Inventário de Inácia Leite de Almeida, 1801, caixa 15 . folha 21 verso. 229 ARQ/MRCI - Inventário de Vicente Gonçalves Braga, 1808, caixa 17B. folha 18 verso.

70

A casa de sobrado mais valiosa é a de Ana Gertrudes de Campos, que se localizava

no Pátio da Matriz, sendo constituída de “paredes de taipa de pilão, parte feita, e parte por

acabar” e avaliada em 1:400$000 (um conto e quatrocentos mil réis).230

Em relação aos tipos de bens de raiz encontrados, apenas cinco inventários não

mencionavam o perfil dos imóveis.

Gráfico 7 - Perfis e ocorrências de bens de raiz em Itu, 1765-1808

FONTE:ARQ/MRCI - Inventários.

Observamos no gráfico 7 o perfil dos bens imóveis dos inventariados de nossa

amostra. A maioria possuía ao mesmo tempo uma casa na vila e um sítio em um bairro

rural, com 17 ocorrências (38,6%). Em seguida, quatro pessoas que possuíam apenas casa

ou sítio cada uma (9%). Pelos dados em geral, observando-se as ocorrências de menores

valores parece-nos que a descrição de Saint-Hilaire em 1819 é válida também para um

230 ARQ/MRCI - Inventário de Ana Gertrudes de Campos,1808, caixa 17B . folha 7.

71

período anterior. Em sua descrição já citada anteriormente, afirma que os senhores de

engenho passavam a maior parte do tempo em suas fazendas, indo à cidade aos domingos e

dias de festas. Para essa camada, pode ser possível essa mobilidade. No entanto, existia

uma gama social muito mais complexa, composta por “grandes e pequenos proprietários,

lavradores, moradores da vila com ofícios diversos, tropeiros, camaradas, escravos,

agregados”, como ressaltou Eni Samara231

.

Em alguma medida, o padrão observado na posse dos bens de raiz demonstra a

necessidade de possuir um pedaço de terra, mesmo que fosse um quintal para o cultivo de

mantimentos, independentemente da ocupação ou atividade desempenhada pelo

proprietário. Como no caso do Alferes Antonio Antunes Pereira, que possuía uma morada

de casas na rua das Baratas, com uma loja anexa, além de um quintal na rua de Santa Rita,

com plantas de café e um sítio no bairro de Caiacatinga.232

Até a década de 1830, as ruas da região central da vila ituana eram as das Baratas,

do Carmo, o Beco das Casinhas, do Conselho, Direita, da Palma, Santa Cruz, Santa Rita e o

Pátio da Matriz.

Quadro 1 - Distribuição das casas dos inventariados por ruas da vila de Itu, 1765-1808

Ruas Ocorrências

Bom Jesus 1

Baratas 5

Carmo 3

Casinhas 4

Conselho 4

Direita 5

Palma 6

Pátio da Matriz 4

Santa Cruz 2

Santa Rita 2

Não Menciona 14

Total 50

FONTE: ARQ/MRCI - Inventários.

231

SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira... p. 161. 232 ARQ/MRCI - Inventário de Antonio Antunes Pereira, 1802, caixa 16. folha 11 verso.

72

Apesar da lacuna na identificação de quatorze bens imóveis (28%), sem menção da

rua na qual se localizavam, podemos inferir as ruas com maior número de casas em nossa

amostragem. Em primeiro lugar, a rua da Palma com seis casas, (12%). Em segundo lugar,

a rua Direita e das Baratas com cinco casas (10%). Em terceiro, temos com quatro

ocorrências (8% cada) a rua das Casinhas, do Conselho e do Pátio da Matriz. Optamos por

manter separadamente as ocorrências de mais de um endereço quando o mesmo indivíduo

possuía mais de uma casa na área urbana, pois é possível visualizar as preferências e não

apenas quantificar por ruas.

A mesma avaliação foi empregada para a verificação dos bairros recorrentes nos

inventários de nossa amostra.

Quadro 2 - Bairros identificados na área rural.

Bairros Ocorrências

Anhambu 4

Apotribu 2

Atuau 2

Buru 6

Caiacatinga 3

Cajuru 2

Engordador 1

Itahim-Mirim 1

Itahu 1

Itaim-Guassu 3

Itupuru 1

Jacaraupava 1

Jacuhu 1

Pirahi 1

Pirahi de Cima 1

Pirapitingui 1

73

Não Menciona 17

Total 48

FONTE: ARQ/MRCI - Inventários.

Novamente o número de imóveis sem indicação da localização é alto: 17 bens

(35,4%). Se contabilizarmos juntas as ocorrências de bairro Anhambu, somam quatro

propriedades, (8,3%), lideradas pelo bairro do Buru (ou Boiri), com seis casos (12,5%). A

inventariada Inácia Leite de Almeida, por exemplo, falecida em 1801, possuía oito

propriedades, sendo seis no bairro do Buru: três sítios e três terrenos, todos adquiridos por

meio de compra.233

Desta forma, temos a distribuição das propriedades rurais por bairros da

vila.

Os imóveis e os escravos foram as categorias de bens que alcançaram os maiores

valores nos inventários ituanos. As propriedades mais valiosas eram as que possuíam

benfeitorias ou estavam relacionadas à produção açucareira, dado que confirma o

enriquecimento e a valorização desta atividade na localidade e no período investigado.

1.3 O ambiente doméstico e os bens têxteis

As roupas de casa, ou roupas brancas são os itens têxteis que compunham os

ambientes domésticos, ou eram empregados em atividades cotidianas. Como apontou

Luciana da Silva, as alfaias, “tinham por finalidade proporcionar conforto, ora por aquecer

e secar, como cobertores e toalhas de mãos, ora por ornar e esconder a rusticidade de

móveis velhos e desgastados pelo tempo, como as toalhas de mesa.”234

Entre as peças presentes nos inventários de Itu estão as cobertas, colchas, lençóis,

fronhas, cortinados, guarda camas, tapetes, toalhas, toalhas de mesa, guardanapos, toalhas

233 ARQ/MRCI - Inventário de Inácia Leite de Almeida, 1801, caixa 15 . folhas 19 – 20. 234 SILVA, Luciana da. Artefatos... p. 102.

74

de mãos e itens, que identificamos como de uso religioso. Elencamos as peças de roupas

detalhando suas informações na tabela 3.

Tabela 3 – Roupas da casa, vila de Itu, 1765-1808

Peça Tecido Quantidade Valor

Alfaias litúrgicas Não informa(4) Tafetá (1) 5 5$080

Coberta Baetão, castela, chita, papa,

serafina

27 64$040

Colcha Algodão, baetão, chita, damasco 41 167$940

Cortinado Algodão, chita, fustão, riscado,

seda

8 46$000

Fronha Algodão, Bretanha, linho 61 14$020

Guarda cama Algodão (1), não informa (2) 3 2$120

Guardanapo Algodão, Guimarães, linho 48 6$120

Lençol Algodão, Bretanha, cassa,

estopa/estopinha, linho, riscado

158 180$380

Não informa Algodão, chita, damasco 13 42$100

Tapete Não informa (4), Pano azul (1) 5 9$440

Toalha Algodão, Bretanha, linho 19 10$560

Toalha de mãos Algodão, Bretanha, cassa, linho 69 36$380

Toalha de mesa Algodão, fustão, Guimarães,

linho, riscado

53 59$320

Total 510 643$500

Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Contas de testamento e inventários

Os lençóis são os itens mais numerosos, no total de cento e cinquenta e oito peças,

presentes em vinte e sete inventários. Lideram também com o valor de 180$380 (cento e

oitenta mil e trezentos e oitenta réis). Eram mais comuns os de algodão, com sessenta e seis

ocorrências e de linho, com sessenta e duas, seguidos de quatorze de bretanha, oito de

cassa, três de estopa e cinco não informavam o tecido. Olanda Vilaça também mencionou

que o lençol foi a roupa de casa mais inventariada em sua amostragem.235

235 VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material e património móvel no mundo rural do Baixo Minho em finais do Antigo Regime. 2012. Tese (Doutorado em História). Instituto de Ciências Sociais. Universidade do

Minho. Braga, 2012. p.297.

75

Quanto às cobertas, podiam ser de tecidos variados. Em um total de vinte e sete,

nove eram de Castela, oito de papa, cinco de chita, uma de baetão, uma serafina e três não

identificadas.236

Duas destas cobertas de chita despertam atenção pelo detalhamento, pois uma era

“coberta de rede de chita forrada de baeta branca, no valor de novecentos e sessenta réis.”

Havia também outra mais cara, grande, “de chita da Índia de algodão fina nova, em oito mil

réis.”237

Pela forma como foi descrita, a primeira seria utilizada para se cobrir quando se

repousava em rede. Já a segunda nos indica a diversidade de tecidos que circulavam já na

década de 1770 em terras paulistas. As colchas mais comuns eram feitas de algodão e chita,

com o valor médio de 2$000 (dois mil réis) para peças em bom estado. As exceções são as

de tecido adamascado.

Um exemplo é o inventário de Antônio Francisco da Luz, que possuía seis colchas

de damasco, no valor de 30$800 (trinta mil e oitocentos réis). Outro caso representativo é o

de Ana Gertrudes de Campos, que dispunha de sete colchas, três no sítio e quatro na casa

da vila. Das quatro colchas, duas eram de baetão, uma muito usada, avaliada em $640

(seiscentos e quarenta réis), outra em 2$560 (dois mil, quinhentos e sessenta réis), uma de

algodão pintada, 1$600 (mil e seiscentos réis), e uma colcha de damasco com o valor de

20$000 (vinte mil réis), equiparada ao preço de um cativo. Ana Gertrudes possuía

cinquenta escravos avaliados entre 204$800 (duzentos e quatro mil, oitocentos réis) e

20$000 (vinte mil réis).

Em relação às roupas de cama mencionadas nos inventários de nossa amostra da

cidade de Lisboa, predominavam os lençóis de linho, em menores ocorrências, os de estopa

e bretanha. Os cobertores mais comuns eram de chita, papa e damasco. Em menores vezes,

236 Cobertor de papa era uma coberta confeccionada de lã. Vide SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da

língua portuguesa. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. Vol. 2, p. 392. A chita consiste em um tecido de

algodão, caracterizado por estampas coloridas. Vide COSTA, Manoela Pinto da. Glossário de termos têxteis e

afins. Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Património. Porto, I Série, vol. III. Pp. 137-

161, 2004. p. 143. A baeta poderia ser de lã ou de algodão, característica ser grosseira e felpuda. Vide

COSTA, Manoela Pinto da. Glossário... p. 139. Serafina era um tecido de lã geralmente aplicado em forros e cortinas. Vide SILVA, Antonio Moraes. Diccionario... vol. 2, p. 691. 237 ARQ/MRCI – Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A. folha 6.

76

apareceram de seda, cetim e serafina. Nas fronhas assim como nos lençóis predominavam o

linho, e nas cortinas, duas das quatro eram de chita, uma de serafina e uma de damasco.

Para o norte de Portugal, Vilaça encontrou poucas ocorrências de peças de damasco,

sendo inacessível a maior parte da população, “a não ser que estas peças de roupa tivessem

sido herdadas ou legadas por outrem e permanecessem de forma simbólica no património

das famílias.”238

Já as peças mais modestas observadas em Itu, as fronhas, eram

predominantemente de linho e bretanha. A média de valores era de $100 (cem réis) para

fronhas de linho e $300 (trezentos réis) para as de bretanha.

Ainda em relação às camas, encontramos três referências de guarda cama e oito de

cortinados. Dos oito cortinados encontrados, não foi possível precisar se todos eram

utilizados em camas. Os três cortinados pertencentes ao padre Manoel da Costa Aranha

eram de cama, pois foram avaliados junto com as mesmas, fazendo referência inclusive à

cabeceira, forrada de tecidos semelhantes.239

O cortinado de chita com renda, avaliado em

12$000 (doze mil réis), e o de seda encarnada com babados de tafetá, de 8$000 (oito mil

réis), eram da casa na vila, enquanto que no sítio, havia apenas o cortinado velho de pano

riscado de Hamburgo, no preço de 1$600 (mil e seiscentos réis).240

Neste exemplo, é

possível observar a preferência em privilegiar a residência na região central da vila em

detrimento do sítio. A qualidade da cama que o sacerdote repousava fazia jus ao seu

cortinado, pois dentre as três camas que possuía, uma era de “jacarandá, pés de cabra e

cabeceira de damasco”, avaliada em 32$000 (trinta e dois mil réis).241

As toalhas que encontramos na documentação foram mencionadas como: toalha de

mesa, toalha de água às mãos e apenas toalha. Estas últimas, sem menção ao seu uso

específico, contabilizaram dezenove peças no valor total de 10$560 (dez mil, quinhentos e

sessenta réis).

238 VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material... p. 294. 239 ARQ/MRCI – Inventário de Manoel da Costa Aranha, 1801, caixa 15. folha 3 verso. 240

ARQ/MRCI – Inventário de Manoel da Costa Aranha, 1801, caixa 15. folha 3 verso, folha 8. 241 ARQ/MRCI – Inventário de Manoel da Costa Aranha, 1801, caixa 15. folha 3 verso.

77

As toalhas de mesa, presentes em vinte e três inventários eram em sua maioria de

algodão. As peças confeccionadas com os panos de Guimarães são encontradas em

guardanapos e toalhas de mesa. Cinco inventariados possuíam toalhas de Guimarães. De

acordo com Olanda Vilaça, a produção do linho em Guimarães existe pelo menos desde o

século XI.242

Já os bordados famosos desta localidade foram documentados no final do

século XIX.243

Ainda segundo Vilaça, “a indústria do linho e do fio em Guimarães chegou

a constituir uma importante riqueza concelhia; a forte exportação para Espanha e Brasil

levou à prosperidade de muitos mercadores vimaranenses.”244

Em alguns inventários havia o conjunto de toalha de Guimarães com seis

guardanapos, avaliadas em 5$000 (cinco mil réis), 3$000 (três mil réis) e 2$000 (dois mil

réis).245

Outras duas toalhas apareceram de forma unitária com menores valores, avaliadas

em 1$600 (mil e seiscentos réis) e 1$000 (mil réis).246

Bernardo de Quadros Aranha possuía

além de uma toalha de Guimarães, avaliada em 3$000 (três mil réis), outra “toalha de mesa

com seis guardanapos de pano de algodão fino, bordada e rendada com quase nenhum uso,

no valor de 2$4000 (dois mil e quatrocentos réis). Algranti observou que essas toalhas

adornadas “oferecem indícios de serem peças estimadas naquela sociedade, quer pela

decoração (franjas, rendas, brocados), ou seja, pelo trabalho investido no objeto, quer pelo

seu caráter simbólico de ornamento de luxo.”247

Empregar uma toalha de qualidade

superior ou adornada em uma recepção doméstica, em uma localidade em que nem todos

tinham a possibilidade de adquiri-la, denotava além de higiene, acesso aos códigos de

civilidade e poder econômico.

242 VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material... p. 213 243 FERNANDES, Maria Isabel. (coord.) Bordado de Guimarães. Renovar a tradição. p. 8 Disponível em:

<http://www.bordadodeguimaraes.pt/site/uk/publicacoes/livrobdg.pdf> . Acesso em: 10.mar.2014. 244 VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material... p. 214. 245ARQ/MRCI – Inventário de Manoel da Costa Aranha, 1801, caixa 15. folha 3 verso, Inventário de João

Fernandes da Costa, 1801, caixa 15. folha. 5, Inventário de Bernardo de Quadros Aranha, 1808, caixa 17B.

folha 6. 246 ARQ/MRCI – Inventário de Antonio Antunes Pereira, 1802, caixa 16. folha. 8 verso, Inventário de

Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A. folha 9 verso. 247 ALGRANTI, Leila Mezan. "Artes de mesa: espaços, rituais e objetos em São Paulo Colonial" trabalho

apresentado no I Seminário Internacional Elementos Materiais da Cultura e Patrimônio realizado pelo Programa de Pós Graduação em História ,FAFICH/ UFMG - Belo Horizonte, novembro de 2011. Texto

fornecido pela autora. p. 8.

78

Os guardanapos foram registrados em conjunto com toalhas de mesa, como

mencionado acima, como as de Guimarães, ou separadamente. Desta última forma, foram

registradas quarenta e oito peças, distribuídas em oito inventários, sendo que o maior

número foi o de dezoito guardanapos de algodão de José Manoel da Fonseca Leite.248

Confeccionados a grande maioria em algodão, também registrou-se guardanapos de linho.

As toalhas de água as mãos eram utilizadas para higiene no momento das refeições.

De acordo com Olanda Vilaça, no período moderno os manuais de civilidade pregavam

maior asseio, inclusive em relação às mãos.249

Leila Algranti e Luciana da Silva

encontraram toalhas de água às mãos nos inventários paulistanos dos séculos XVII e

XVIII.250

As toalhas de mãos estão presentes em vinte e três inventários ituanos de nossa

amostra (52%). A maioria era de algodão e, algumas indicavam, se era de algodão mais

grosso ou fino, com valores entre $160 (cento e sessenta réis) e $350 (trezentos e cinquenta

réis) por peça. Toalhas de tecidos mais finos como a cassa, obtiveram o valor de $960

(novecentos e sessenta réis), assim como uma toalha de algodão bordado, de Antonio

Francisco da Luz, também com $960 (novecentos e sessenta réis).251

Para a vila de Itu

predominaram as toalhas de mãos de algodão, enquanto que Vilaça observou para o norte

de Portugal que a maioria das toalhas deste tipo eram de linho.252

Em nosso universo de análise, encontramos cinco tapetes, sendo que apenas um

informa o tecido, de pano azul. Dois deles registrados como “tapetes de senhora”. Outras

treze peças não foram possíveis de identificar e somam 42$100 (quarenta e dois mil e cem

réis).

Para a vila de São Paulo entre os séculos XVI e XVII, as roupas da casa mais

comuns eram de pano de algodão. Comum para a vila de Itu no século XVIII, as peças de

248ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, 1798, caixa 8, folha. 9. 249 VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material... p. 309-310. 250 ALGRANTI, Leila Mezan. "Artes de mesa... p. 18; SILVA, Luciana da. Artefatos... p. 103, 153. 251

ARQ/MRCI – Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A. folha 9 verso. 252 VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material... p. 310.

79

linho em São Paulo nos séculos anteriores eram valiosas e atestavam refinamento, como

observou Luciana da Silva.253

Alcântara Machado descreveu muitas peças com bordados de

rendas, com franjas, atestando a ornamentação das peças. Segundo ele, “é na baixela e nas

alfaias de cama e mesa que a gente apotentada faz timbre em ostentar a sua opulência.”254

Olanda Vilaça observou para os três conselhos portugueses (Barcelos, Guimarães e

Póvoa de Lanhoso) que a partir da década de 1780 houve uma “tendência para investir no

leito e na mesa, tornando-os mais asseados”.255

Na amostra lisboeta consultada, constam

em igual número toalhas de mesa de linho e adamascada, com menor incidência, de olho de

perdiz, de algodão, de Guimarães e de estopa.256

Já as toalhas de mão mais comuns eram de

linho, mas havia também as de bretanha, cavalim e estopinha. Os guardanapos apareceram

em dois inventários póstumos, um de algodão, e um adamascado, tecido muito recorrente

para as toalhas de mesa.

Nos inventários ituanos, observamos grande aumento no número de roupas brancas

a partir da virada do século, bem como aumento nos valores das peças, de forma geral.

Sobre a diferença entre os padrões europeus e os paulistas, Leila Algranti ressaltou que

certamente entre o luxo e o fausto dos festins das cortes da Renascença e do

Barroco europeu, e as refeições dos paulistas, mesmo os mais abastados, havia

uma diferença imensa; mas isso não equivale a dizer que essas não possuíam sua

dose de ritualidade e de signos de identidade social, os quais foram se

constituindo ao longo do tempo.257

As alfaias litúrgicas eram as peças têxteis utilizadas nas cerimônias religiosas.

Juntamente com os paramentos litúrgicos, como casula e sobrepeliz, o padre Antônio

Francisco da Luz possuía objetos que compunham, provavelmente, a capelinha que existia

no interior de sua casa, na rua da Palma.258

São imagens, oratórios, objetos como cálices,

castiçais, jarrinhas, galhetas, e até um ferro de fazer hóstias.259

Os itens têxteis foram

agrupados como Alfaias litúrgicas no momento da classificação das roupas de casa,

253 SILVA, Luciana da. Artefatos... p. 103. 254 MACHADO, Alcântara. Vida... p. 104. 255VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material ...p. 297. 256 Cf. olho de perdiz no Glossário ao final. 257 ALGRANTI, Leila Mezan. "Artes de mesa... p. 5. 258

ARQ/MRCI – Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A. folha 18verso. 259 ARQ/MRCI – Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A. folha 8 verso.

80

respeitando sua função. Essas peças são duas bolsas de corporais $480 (quatrocentos e

oitenta réis), dois corporais novos arrendados 1$600 (mil e seiscentos réis) e um frontal de

branco e encarnado feito de tafetá, galão e fita de retrós amarelo 1$000 (mil réis).260

Observando a relação da posse dos móveis e das roupas da casa, constatamos que

doze indivíduos da amostra ituana possuíam mesa e toalha de mesa, três dispunham de

mesa com a sua respectiva toalha e guardanapos, seis tinham toalhas de mão e de mesa sem

possuir mesa, dois apenas as toalhas de mão e quatro possuíam apenas os móveis, sem

nenhuma peça de roupa da casa. Já em relação à roupa de cama, havia seis conjuntos de

roupa de cama completos (lençol, fronha e coberta) e colchão e catres, quatro completos

com cama e colchão. Sete pessoas possuíam catre e lençol e três pessoas, cama com

colchão e lençol e uma, um estrado e lençol. Uma pessoa possuía peças de roupa de cama e

de mesa mas nenhum móvel, e cinco não possuíam nem móveis nem roupas da casa.

Nos inventários encontramos tecidos e materiais empregados para confecção de

vestimentas e de roupas da casa arrolados nos domicílios ituanos.

Tabela 4 – Matérias-primas têxteis arroladas nos domicílios ituanos, 1765-1808

Material Quantidade

Algodão em rama 4

Pano de Algodão 1

Pano de Algodão e seda 1

Pano de Algodão grosso 1

Fio de Algodão grosso 2

Fio de Algodão entrefino 1

Fio de Algodão fino 1

Baeta 3

Bretanha de Hamburgo 1

Brilhante de lã 1

Chamalote 1

Chita 3

Linho 3

Linho fino 1

Ruão 1

Tafetá 1

260 Corporal é um “tecido em forma quadrangular sobre o qual se coloca o cálice com o vinho”. <http://www.ahoradamissa.com/doc_glossario.html> . O Frontal é um “paramento que cobre a frente do altar.

< http://www.priberam.pt/dlpo/frontal> . Acesso em 07.ago.2014.

81

Total 26

Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Contas de testamento e inventários, vila de Itu

Os pedaços de tecidos de linho, chita e baeta constam em três inventários. Embora

em pequena quantidade, os itens de algodão, em rama, fios de algodão e panos figuram

entre os materiais pertencentes aos lares ituanos. O pano de algodão e seda relacionado

acima está descrito como “um corte de saia de algodão e seda, avaliado em oito mil réis”,

descrição interessante pois indica a peça de vestuário que seria confeccionada com aquele

corte de tecido de posse do sacerdote Antônio Francisco da Luz.261

Apenas dois teares foram registrados na vila de Itu, sendo um “de fazer rede”, e o

outro, “um tear ordinário de tecer algodão, avaliado em $640 (seiscentos e quarenta

réis).”262

O conjunto mais completo relacionado à atividade de fiação e tecelagem

algodoeira, figurou dentre os bens de Antônio Antunes Pereira, que consistia em “um

escaroçador de descaroçar algodão, $160 (cento e sessenta réis); uma roda de fiar algodão

desconcertada, $640 (seiscentos e quarenta réis); uma roda de fiar melhor com seus

desconcertos, 1$000 (mil réis); um pente com seu [-] de tecer pano de algodão em $400

(quatrocentos réis).”263

Igor Renato Machado de Lima apontou a importância da atuação feminina de

senhoras e cativas, denominadas “cunhãs tecedeiras” no cultivo, fiação e tecelagem de

panos de algodão nos domicílios do Planalto de Piratininga, entre os séculos XVI e

XVII.264

De acordo com Lima, dentre os produtos confeccionados com o algodão da terra,

estavam “os gibões, as toalhas de mesa, de banho e de lavar as mãos, assim como as redes

de dormir”265

. A produção não estaria voltada apenas ao uso doméstico, mas também era

vendida com a finalidade de gerar renda.266

O autor observou que a década de 1630 foi

261 ARQ/MRCI - Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A . folha 24 verso. 262 ARQ/MRCI - Inventário de Teresa Jesus Barbosa, 1791, caixa 1. folha 3; Inventário de Ana Leite Gularte,

1808, caixa 17B . folha 7verso. 263 ARQ/MRCI - Inventário de Antonio Antunes Pereira, 1802, caixa 16. folha 9. 264 LIMA, Igor Renato Machado de. O fio e a trama: trabalhos e negócios femininos na vila de São Paulo

(1554-1640). Dissertação (Mestrado em História Econômica). 2006. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas. Universidade de São Paulo, 2006. p. 157 265

LIMA, Igor Renato Machado de. O fio e a trama... p. 136 266 LIMA, Igor Renato Machado de. O fio e a trama... p. 139

82

marcada pelo crescimento da produção de algodão e tecidos domésticos.267

Já na segunda

metade do século XVII, Lima apontou que “quando a produção algodoeira expandia-se

juntamente com a pecuária, havia uma retração na lavoura de trigo. Nesse processo, os

homens senhoriais assumiam a produção e a organização algodoeira.”268

Na amostra ituana, são poucos os registros de teares e de pano de algodão, o que

não significa que não havia produção local de algodão. Talvez os teares e demais acessórios

estejam relacionados em bens de pessoas com menor cabedal, ou nem tenham sido

inventariados, dados os baixos valores com que eram estimados, como o citado acima, que

foi avaliado em $640 (seiscentos e quarenta réis). Nos inventários de nossa amostra,

constam majoritariamente os tecidos importados de variadas qualidades e preços.

Para a vila de São Paulo entre os séculos XVI e XVII, Luciana da Silva apontou que

armazenar estes tecidos para futuramente mandar confeccionar roupas novas,

significava ter à sua disposição materiais requintados e, geralmente de difícil

acesso, que poderiam representar altos valores acrescidos no patrimônio. Como

no caso de Belchior Carneiro, falecido em 1609 no sertão, cuja fazenda somava

200$850 (duzentos mil, oitocentos e cinqüenta réis) entre os quais 8$110 (oito

mil, cento e dez réis) eram referentes mais ou menos 12 côvados de gorgorão

vermelho e mais ou menos nove côvados e meio de tafetá da Índia.269

Para a documentação ituana pesquisada, o valor e a porcentagem que os tecidos

possuídos representavam em relação ao total de bens era muito pequena: 0,05%, 0,4%,

chegando até a 2%. Mesmo avaliando o corte de tecido mais caro, o de Antonio Francisco

da Luz, mencionado acima, no valor de 8$000 (oito mil réis), representa apenas 0,09%,

pois seu espólio total é de 8:614$430 (oito contos, seiscentos e quatorze mil, quatrocentos e

trinta réis).

Entre o final do século XVIII e início do século XIX, a composição material dos

domicílios ituanos aponta a grande diferença em relação à feição rústica das casas e objetos

mencionados nos inventários do Planalto de Piratininga nos séculos XVII e início do

267 LIMA, Igor Renato Machado de. O fio e a trama... p. 135 268 LIMA, Igor Renato Machado de. "Habitus" no Sertão: gênero, economia e cultura indumentária na Vila de

São Paulo (1554-C.1650). Tese (Doutorado em História Econômica). 2011. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2011, p. 299. 269 SILVA, Luciana da. Artefatos... p. 71

83

XVIII, já sinalizando a tendência que mais adiante se afirmará com a chegada da corte

portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808, da adoção de elementos europeus na forma de

viver e de se relacionar de maneira mais sistemática. A mudança ocorrida a partir de

meados do século XVIII transformou a composição dos domicílios, bem como as formas de

sociabilidade e os costumes domésticos, como apontou Leila Algranti.270

Desta forma, foi possível observar a valorização dos tecidos importados em

detrimento dos panos de algodão de produção local, o aumento significativo de consumo de

produtos estrangeiros. A proibição das manufaturas em terras coloniais estreitou ainda mais

os vínculos comerciais entre colônia e metrópole, introduzindo de forma acentuada os

produtos ingleses na América Portuguesa mesmo antes da abertura dos portos, em 1808.271

Este capítulo buscou apresentar a vila de Itu em seus aspectos materiais e sua

composição social de forma mais ampla para o entendimento das vestimentas e da

aparência, objeto principal de nosso estudo, dando por isso algum destaque aos bens têxteis.

A vila de Itu se expandiu durante a segunda metade do século XVIII devido

principalmente à lavoura canavieira. Os indícios materiais de Itu como as construções de

casas, igrejas, fazendas e engenhos atestam a riqueza do período.

Nosso estudo centrou-se em uma amostra dos habitantes da vila. Dentre os

indivíduos estudados, estão pessoas de diferentes níveis econômicos, como por exemplo,

senhores de engenho, lavradores, comerciantes, oficial de ferreiro e costureira. A amostra

da população ituana indicou a complexidade e a diversidade social. Também foi possível

analisar aspectos da religiosidade dos ituanos através dos testamentos. Essa documentação

fornece elementos de devoção e fé, bem como a materialidade envolvida no processo, com

o registro das doações dos fiéis às igrejas e capelas.

270 ALGRANTI, Leila Mezan. “Famílias... p. 153. 271 MONTELEONE, Joana de Moraes. O circuito das roupas: a corte, o consumo e a moda (Rio de Janeiro,

1840-1889). 2013. Tese (Doutorado em História Econômica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. p. 13.

84

Apresentamos alguns aspectos teóricos importantes do campo da cultura material,

ressaltando os autores e as possibilidades viáveis de análise da materialidade. Em seguida,

passou-se à análise dos bens arrolados na documentação, avaliados por categorias.

A análise da população e das categorias de bens de forma mais ampla, evidenciou a

riqueza do açúcar através dos altos valores investidos em escravos e nas unidades

produtivas, pertencentes à categoria bens de raiz. Os recheios das casas não alcançaram

valores avultados como as categorias acima mencionadas, mas de maneira geral, apontam

padrões diversificados de consumo e conforto domésticos, inclusive de produtos

importados. Tanto os bens quanto as informações pessoais disponíveis na documentação

consultada nos indicam a heterogeneidade dos indivíduos e as das atividades que

desenvolviam.

85

Capítulo 2 O vestuário da vila de Itu despido em detalhes

Entre os séculos XVIII e XIX, em cidades como Paris e Londres, o grande número

de pessoas que migrou do espaço rural para o meio urbano não permitiu mais que todos os

habitantes se conhecessem, ocasionando, muitas vezes, o não cumprimento das distinções

visuais necessárias pregadas pelo Antigo Regime, como apontou Richard Sennett.1 Em

Portugal, assim como na França, os tecidos, as cores, as insígnias foram regulamentadas

por leis suntuárias, que objetivavam a clara diferenciação social, resguardando à

aristocracia elementos exclusivos2. O luxo, se por um lado era “condenável porque

estabelece a confusão das classes na república, por outro, já é aceitável quando distingue as

pessoas nobres”3.

Segundo Andrea Miranda, “honra, reputação e reverência são quase sinônimas nas

práticas barrocas. É a opinião que confere honra ou não a uma representação social.

Portanto, a mesma é mantida através do reflexo das aparências, como moral da aparência e

aparência moral”4. A valorização recaía no que era visível: por essa razão a aparência era

elemento tão importante, pois era crucial para a organização e ordenamento social.

A sociedade sobre a qual nos debruçamos, embora distante das cortes europeias, era

permeada pelos valores aristocráticos. Um dos aspectos dessa sociedade é o consumo de

prestígio, como ressaltou Norbert Elias5. “Alguém que não pode mostrar-se de acordo com

o seu nível perde o respeito da sociedade.”6 O consumo de prestígio demandava a aquisição

de itens correspondentes ao status daquela camada social para a exibição e manutenção da

1 SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das

Letras, 1988. p. 92 2 ROCHE, Daniel. A cultura das aparências... p.62 – 64. 3 DIAS, Luís Fernando de Carvalho. Luxo e Pragmáticas no pensamento econômico do século XVIII.

Separata do Boletim de Ciências Econômicas da Faculdade de Direito de Coimbra. v. IV, número 2-3, 1955,

número 1-2-3, 1956. p. 27. 4 MIRANDA, Andréa Cristina Lisboa de. O traje dominante. Do papel social da indumentária no Barroco

Joanino enquanto forma expressiva de comunicação. 1998. 259 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais).

Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998. p. 86. 5 ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ., 2001. p. 86. 6 ELIAS, Norbert. A sociedade corte... p. 86.

86

mesma, enquanto o ethos burguês, de poupança ou gasto restrito aos rendimentos era

desprezado pelos aristocratas.

Na América Portuguesa a sociedade de ordens foi adaptada devido ao contexto

diverso, como destacou Vera Ferlini, “a plantação escravista transformou e ampliou as

tradicionais categorias, transformando em pessoas de mor-qualidade muitos que não

poderiam assim ser chamados em Portugal”7. Dada a diversidade social,

não bastava ser livre e possuir escravos, pois o princípio estamental dessa

sociedade exigia os signos formais e as manifestações externas que

comprovassem ser “homem bom”, “um dos principais da terra”, “limpo de

sangue”, viver “à lei da nobreza” e “não padecer de acidentes mecanismos”.8

Os inventários post-mortem nos proporcionam a possibilidade de avaliar o conjunto

de posses de um indivíduo ou de sua família como um todo em uma dada situação. A

descrição e a avaliação dos bens realizadas por avaliadores e registrada pelo escrivão

carregam elementos subjetivos, pois passaram pelo julgamento desses sujeitos por

comporem o rol de bens a ser partilhado entre os herdeiros. Nosso contato com a

vestimenta do período se dá através apenas da descrição realizada pelo escrivão.

Dentro de nossa análise, o valor monetário atribuído a uma peça de roupa é um

indicativo da importância desta, devido à sua raridade, novidade ou representatividade.

Mas, além da importância monetária, cabe-nos a questão de compreender a importância da

dimensão material e simbólica da vestimenta para os ituanos.

No presente capítulo iremos analisar a posse de peças de roupas e demais acessórios

empregados nos trajes dos moradores da vila de Itu, conforme apontam seus arrolamentos

de bens póstumos, comparando com outras localidades da América Portuguesa e da cidade

de Lisboa, através de uma amostra colhida na mesma fonte documental, os inventários

orfanológicos. A comparação com os dados de outros locais nos fornece um panorama

interessante para compreender o padrão de vestuário encontrado para os ituanos.

7 FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Açúcar e colonização. São Paulo: Alameda, 2010. p. 19.

8 FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Açúcar e colonização... p. 20.

87

A vila de Itu representava para a Capitania de São Paulo no período analisado uma

localidade próspera devido à produção canavieira destinada à exportação. Mas os

produtores ou comerciantes ituanos não alcançaram o padrão das fortunas do nordeste

açucareiro9. Através dos inventários post-mortem foi possível observar as qualidades e

origens de produtos de diversas localidades que circulavam no Império português.10

2.1 O bens têxteis: materialidade e valor monetário

Os homens da vila de Itu trajavam-se dentro do padrão europeu, com o traje

composto por calções, véstia, colete e casaca, conjunto denominado vestido11

. Na tabela 5 é

possível observar a relação das peças de roupas.

Tabela 5 – Informações sobre as peças de roupas masculinas, vila de Itu, 1765-

1808

Peça Quantidade Média

valor unitário Valor total

Calção 9 1$048 9$440

Calção e colete 4 2$850 11$400

Camisa 15 1$333 17$340

Capa 1 1$920 1$920

Capote 7 5$114 35$800

Casaca 1 1$280 1$280

Casacão 4 5$500 22$000

Ceroula 6 $800 1$600

Chambre 1 1$000 1$000

Colete 12 $736 8$840

Farda 9 10$208 91$880

Fraque 2 1$120 2$240

Gabinardo 1 4$000 4$000

9 FERLINI, Vera Lucia Amaral. “Uma capitania dos novos tempos: economia, sociedade e política na São

Paulo restaurada (1765-1822).” In: Anais do museu paulista. v.17, n.2, p. 237-250, 2009. p. 242. 10 Russelwood apresentou uma relação detalhada dos produtos com origem e destino. In: RUSSELWOOD, A.

J. R. Um Mundo em Movimento, 2006, p. 430. Apud PEREIRA, Ana Luiza Castro. “Uma saia de seda, um

cordão de ouro e um sinete de marfim”: apontamentos sobre a circulação de pessoas e objetos no Mundo

Atlântico Português. XXVIII Encontro da APHES. 2008. p. 4. 11

Durante o século XVIII, o termo vestido era sinônimo de roupa, traje masculino. Quando se referia a

vestidos femininos, geralmente eram registrados como vestido de mulher, roupa de mulher.

88

Hábito 9 6$084 54$760

Jaleco 1 $800 $800

Manto 2 3$200 3$200

Meia 6 $693 4$160

Opa 5 2$080 10$400

Ponche 1 2$000 2$000

Rodaque 4 1$390 5$560

Timão 4 3$600 14$400

Véstia 8 1$415 11$320

Véstia e Calção 2 1$560 3$120

Vestido 5 7$564 37$820

Total 118 444$160

Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Contas de testamento e inventários póstumos

A fim de não perder o sentido do conjunto, optamos por não desmembrar as peças

de roupas, mesmo que com tecidos diversos, para a análise dos trajes. Talvez essas

vestimentas fossem utilizadas separadas ou combinadas com outras, mas consideramos que

para o avaliador inventariá-las juntas poderia ter um sentido de unidade no traje.

De forma geral, os itens masculinos mais comuns nos arrolamentos foram as

camisas e os coletes, seguidos dos calções e véstias. Já os maiores valores alcançados nas

avaliações foram para os conjuntos, como as fardas, os vestidos, e para peças de roupas

como os hábitos, os capotes e os casacões.

Os casacões utilizados para proteção contra chuva também poderiam ser

denominados sobrecasaca, pois eram maiores e de tecido mais pesado, utilizados sobre a

casaca que, por sua vez, era utilizada por cima da véstia12

.

O quadro 3 apresenta as cores e os tecidos empregados para cada peça de roupa do

universo masculino.

12 Casaca era uma “vestidura que hoje se traz por cima da veste; com botões nas mangas, portinholas, etc.”, e

casacão: “casaca grande, que se veste sobre a casaca, por causa de evitar a chuva, etc.” Vide SILVA, Antonio

Moraes. Diccionario da língua portuguesa. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. Vol. 2, p. 392. Já em

Bluteau, casaca recebeu a definição: “vestidura com mangas e abas grandes”, e casacão, uma “vestidura com

mangas, mais larga que casaca.” Vide BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 -1728. 8 v. vol. 2, p.

175.

89

Quadro 3 – Relação de cores e tecidos por peças de roupas masculinas, Itu

Peça Cores Tecidos

Calção Preto, amarelo, não

informa

Berbete, bretanha, casemira, cetim, droguete, fustão,

ganga, pano azul, rapão, riscado, veludo

Calção e colete n.i., escarlate Droguete, ganga

Camisa n.i. Bretanha, linho, riscado

Capa n.i. Camelão

Capote Azul, n.i. Baetão, pano azul

Casaca Azul Cetim, pano azul entrefino

Casacão Azul, n.i. Baeta, pano azul, pano azul entrefino

Ceroula n.i. Linho

Chambre n.i. Riscado

Colete Azul, encarnado,

pintadinho, pardo, roxo,

verde

Bretanha, camelão, cetim, chita, droguete, fustão, ganga,

linho, pano azul entrefino, riscado

Farda Azul, branca, n.i. Cetim, fustão, pano azul, pano azul fino

Fraque Azul, n.i. Pano azul, n.i.

Gabinardo n.i. Lemiste

Hábito Parda Camelão, durante

Jaleco n.i. Fustão

Manto n.i. Casemira, seda

Meia Pérola, branca, n.i. Algodão, fustão, seda

Opa Carmesim, n.i. Cambraia, tafetá

Ponche Azul Pano azul

Rodaque Listra, n.i. Ganga, pano azul

Timão Cor de rosa, pintado, n.i.,

azul

Baeta, baetão, chita, pano azul

Véstia Branca, azul, roxa, n.i. Cetim, chita, ganga, pano azul entrefino, veludo

Véstia e calção n.i. n.i.

Vestido Preta, escarlate, azul e

branca, azul, azul e preta

Belbutina, chita, lemiste, pano azul, pano azul entrefino,

seda, veludo

Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Autos de Contas de Testamento, Inventários póstumos

Analisando a amostra masculina, o tecido com maior ocorrência dentre todas as

peças foi o pano azul, seguido pelo cetim e pano azul entrefino13

. Já as peças que

apresentaram a maior variedade de tecidos foram os coletes e os calções.

As roupas utilizadas por cima das demais, para proteção contra o frio, a chuva,

como as capas e os capotes eram confeccionadas com tecidos resistentes, como o camelão e

o baetão, enquanto que as peças de uso próximo à pele, como os coletes, as véstias eram

comuns de cetim, chita e ganga.

13 Entrefino designa um pano nem grosso, nem fino, intermediário. Vide COSTA, Manoela Pinto da. Glossário de termos têxteis e afins. Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Património.

Porto, I Série, vol. III. p. 137-161, 2004. p. 139.

90

As roupas usadas em contato direto com a pele eram de bretanha, linho e pano

riscado para as camisas, e apenas uma de linho foi identificada para ceroula14

. A

inexistência de peças de algodão de uso íntimo nessa amostra nos suscita algumas hipóteses

e dúvidas. Havia mais peças, porém pelo baixo valor não entraram na avaliação? Os

inventariados ituanos seguiram a tendência portuguesa do século XVIII em utilizar

majoritariamente peças de pano de linho? Pois o emprego sistemático do algodão em

substituição ao linho iniciou-se no final do século XVIII e se estabeleceu definitivamente

no século XIX. Nuno Madureira apontou uma recomendação feita em 1784, onde as

vantagens do pano de algodão seriam que este “ensopa o suor sem esfriar o corpo”, menos

se suja e é melhor de lavar15

. Mesmo sem a ocorrência de teares, de produção caseira nos

domicílios inventariados, o pano de algodão de qualidade inferior poderia ser adquirido e

com ele confeccionado as vestimentas dos cativos.

Inácio Leite da Fonseca era senhor de engenho, faleceu no ano de 1806. Entre

diversos bens, destacamos três categorias, de acordo com o Quadro 4:

Quadro 4 – Vestuário e joias pertencentes a Inácio Leite da Silveira, 1806, Itu

Categoria de

bem Descrição

Avaliação

(em réis)

Valor percentual no

espólio dos

inventariados

Roupas Hábito de terceiro do carmo com todos

seus pertences, lenço, par de meia de

algodão, camisas de bretanha, casacão,

fraque, timão e capote de pano azul, par

de meia de fustão, calção de duraque

24$400 1,0

Objetos de uso pessoal

relacionados à

aparência

Chapéu de sol, espora de prata, fivelas de calção de prata, fivelas de sapato de

prata, botas de veado

24$160 1,0

Joias Par de brincos e anéis 8$960 0,4

Total 57$520 2,4

Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Fonseca

14 Para os tecidos denominados pano azul e pano riscado não foi possível identificar suas matérias-primas.

Supomos que o pano azul pudesse ser de algodão. 15 MADUREIRA, Nuno Luís Monteiro. Inventários: aspectos do consumo e da vida material em Lisboa nos finais do Antigo Regime. 1989. Dissertação (Mestrado) em Economia e Sociologia Históricas. Faculdade de

Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1989, p. 93.

91

Inácio possuía além do hábito carmelita, dois dos seis pares de meia da amostra,

camisas de bretanha e um calção de duraque. De pano azul, um casacão, um capote e um

timão. O fraque de pano azul usado, avaliado em 1$280 (mil duzentos e oitenta réis) não foi

o único encontrado, pois em data anterior (1798), constou um fraque usado no rol de bens

de Felisberto Ferraz Leite, no valor de $960 (novecentos e sessenta réis).16

Esta roupa

aponta que a influência inglesa se fez sentir também nas peças, além dos tecidos.17

Inácio dispunha também de um chapéu de sol, esporas e fivelas de prata para calção

e sapatos. O par de botas já usado, de veado, no preço de $960 (novecentos e sessenta réis),

juntamente com o par de botas já usados, avaliadas em 1$000 (mil réis) de Francisco Paes

de Siqueira, formam os dois únicos pares de calçados masculinos da amostra18

.

Os poucos sapatos registrados nos inventários ituanos contrastam com as 41

ocorrências de fivelas de sapatos e 29 de esporas. Se existem fivelas de sapatos, podemos

supor que se não existiam pares de sapatos no momento do inventário, mas em algum

momento havia. Outras possibilidades eram a doação ainda em vida, depois da morte, ou

mesmo a divisão entre familiares próximos antes da confecção do inventário e partilha.

Marco Aurélio Drumond localizou, na comarca de Rio das Velhas, pares de sapatos

em 24 de 160 inventários, perfazendo um total de 15%. De 24 inventariados, 16 tinham

monte mor (soma total dos bens) acima de 1:900$000 (um conto e novecentos mil réis)19

.

Cláudia Mól observou sobre o sapato que

em terras coloniais, tornou-se restrito a um pequeno número de “gentes de

qualidade”, só aparecendo em maiores quantidades no fim do século XVIII.

Sérgio Buarque identificou, nas zonas rurais, o hábito de só se calçar os sapatos

para entrar nas Vilas. Talvez pela sua importância, o sapato tenha-se tornado,

16 ARQ/MRCI – Inventário de Antônio Francisco da Luz, Inventário de Felisberto Feraz Leite. 17 “Vestir à inglesa, sobretudo para os homens, passa a ser o toque e o paradigma dos europeus. Usado ainda

sobre um calção, surge, criado por Lord Brummel, o célebre ´frac´ preto que se mantém até hoje, com

algumas variantes de pormenor.” GAMA, Luís Filipe Marques da. , TEIXEIRA, Madalena Braz. (org.) Traje

palaciano: Século XVIII – Império. Mafra: Câmara Municipal, 1986. p. 9 18 ARQ/MRCI – Inventário de Francisco Paes de Siqueira, 1799, caixa 9, folha 5 verso. 19 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material: Produção, comércio e usos na Comarca do Rio das Velhas (1711-1750). 2008. 217f. Dissertação (Mestrado) em História. Faculdade de Filosofia e

Ciências humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008, p. 114.

92

para o forro, símbolo de sua liberdade, uma vez que a alforria dava, ao negro, um

direito negado quando escravo: o de andar de pés calçados.20

Os calçados são, indiscutivelmente, elementos simbólicos importantes durante os

séculos XVIII e XIX, como já mencionado, mas também eram artefatos de grande utilidade

que conferiam proteção. Dessa forma, ao considerar os valores obtidos pelas avaliações das

botas e o valor total dos bens de Inácio, 2:228$070 (dois contos, duzentos e vinte e oito mil

e setenta réis) e o de Francisco, 416$670 (quatrocentos e dezesseis mil, seiscentos e setenta

réis), os calçados, ou pelo menos as botas não eram itens inacessíveis neste período, visto

que Francisco tinha um espólio bem mais humilde que Inácio, mas ambos tinham um par

de botas, no mesmo estado e com preços muito semelhantes.

Para melhor compreender o padrão dos bens de Inácio, arrolamos no Quadro 5 os

objetos de outro senhor de engenho, o padre Antonio Francisco da Luz, cujo total de bens

era de 8:614$430 (oito contos, seiscentos e quatorze mil, quatrocentos e trinta réis).

Quadro 5 – Vestuário e joias pertencentes a Antônio Francisco da Luz, 1805,

Itu

Categoria de

bem Descrição

Avaliação

(em réis)

Valor

percentual no

espólio dos

inventariados

Roupas Camisas de bretanha, colete e roupa de cetim

pintadinho, colete e timão de chita, camisa, ceroula e

colete de linho, gabinardo de lemiste, rodaque e

calção de ganga, vestido curto, véstia e calção de

veludo, timão comprido e capote de baetão, vestido,

rodaque, casacão e capote de pano azul, vestido de

belbutina, colete roxo de camelão, calção de rapão

72$280 0,8

Objetos de uso

pessoal

relacionados à

aparência

Bastão de prata, bengala de cana da índia com

ponteira de prata, chapéu de rua coberto de tafetá

verde, espora, fivela de calção, fivela de sapato,

relógio de algibeira, óculos de armação de molas de prata

32$830 0,3

Joias Dois pares de brinco de prata 12$000 0,1

Total 117$110 1,2

Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de Antônio Francisco da Luz, 1805, folhas 5 verso – 20 verso

20 MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres forras: cotidiano e cultura material em Vila Rica-1750-1800. 2002. Dissertação (Mestrado) em História Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de

Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002, p. 116.

93

Em relação a Inácio, Antônio tinha maior diversidade de peças e em quantidade,

sem contabilizar aqui a indumentária religiosa. Em comum, camisas de bretanha, timão,

capote. A principal diferença entre as duas relações de roupas, é a presença de três vestidos

no espólio do padre: um vestido curto de veludo em 6$000 (seis mil réis), um de belbutina

no valor de 2$200 (dois mil e duzentos réis) e um vestido curto de pano azul velho na

quantia de 1$000 (mil réis)21

.

José Gonçalves de Barros possuía três conjuntos. São eles: um vestido de casaca de

lemiste, véstia e calção de veludo preto, tudo velho, avaliado em 1$920 (mil, novecentos e

vinte réis), um vestido de casaca de pano escarlate com seu calção e véstia sem mangas de

seda da fábrica, tudo novo, em 14$500 (quatorze mil e quinhentos réis), e uma casaca de

pano azul com véstia de cetim branco, sem informar o estado, em 2$600 (dois mil e

seiscentos réis)22

. Já o tenente José Manoel Caldeira Machado dispunha de um “vestido de

pano azul com calção e colete de cetim também azul, com bastante uso, por 6$000” (seis

mil réis)23

.

No inventário da primeira esposa do alferes Luciano Francisco Pacheco, Ana

Gertrudes de Campos, consta uma casaca nova de pano azul fino com véstia e calção de

cetim preto, avaliada em 12$800 (doze mil e oitocentos réis)24

.

Nos cinco trajes mencionados acima, observamos a diferença na composição do

traje, sendo a casaca feita de um tecido mais encorpado em comparação ao tecido

empregado na véstia, calção ou colete. As combinações são lemiste e veludo, pano escarlate

e seda, e pano azul e cetim25

. Exceto o primeiro traje de Barros, os outros calções, coletes e

véstias eram de cetim ou seda. Os panos escarlate e azul são razoavelmente recorrentes na

21 ARQ/MRCI - Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A . folha 10 22 ARQ/MRCI - Inventário de José Gonçalves de Barros, 1779, caixa 10 . folha 5 verso. 23 Inventário de José Manoel Caldeira Machado, 1809, caixa 17B . folha 7 verso 24 Inventário de Ana Gertrudes de Campos, 1808, caixa 17B . folha. 5 25 Lemiste era um pano de lã, muito fino, que vem de Inglaterra. Vide BLUTEAU, Raphael. Vocabulario... v.

5, p. 77. O veludo poderia ser de lã, seda ou algodão. Vide COSTA, Manoela Pinto da. Glossário... p. 160. Já

a seda é feita a partir da “substância filamentosa, produzida pela larva de um insecto chamado bicho-da-seda

(esp.bombyx mori)”. Vide COSTA, Manoela Pinto da. Glossário... p. 157. Feito a partir do mesmo material, o cetim é um pano de seda lustroso e fino. Vide COSTA, Manoela Pinto da. Glossário... p. 142.

94

documentação, mas não indicam sua matéria-prima. Supomos que poderiam ser de algodão,

pela oferta e por serem tecidos bastante citados.

Os valores dos vestidos variavam de acordo com o estado e principalmente pelo

tecido empregado, como exemplo, dois vestidos pertencentes à Inácio Pacheco da Costa,

em que um vestido de ganga recebeu o valor de $800 (oitocentos réis) e um de droguete,

2$000 (dois mil réis).

Quadro 6 – Bens de Inácio Pacheco da Costa

Categoria de

bem Descrição

Avaliação

(em réis)

Valor percentual

no espólio dos

inventariados

Roupas

Hábito de terceiro do carmo velho, vestido de

ganga, vestido de droguete escarlate com calção e

colete, vestido de pano azul, calção e colete de

ganga, calças e coletes de riscado

10$600 0,9

Joias Dois pares de brincos de ouro 4$640 0,4

Total 15$240 1,3

Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Pacheco da Costa

Inácio possuía um sítio no bairro do Atuaú, com uma morada de casas, avaliado em

25$600 (vinte e cinco mil e seiscentos réis). Se compararmos com os valores dos bens

discriminados no Quadro 6, a diferença não é tão grande. Já a casa na vila, localizada na rua

das Casinhas, valia 200$000 (duzentos mil réis), o que evidencia a valorização do espaço

da vila em relação ao bairro rural, especialmente neste caso em que Inácio não possuía

nenhuma benfeitoria relacionada à atividade açucareira.

Entre seus bens, constam ainda dois pares de brincos de ouro (que provavelmente

eram de sua esposa Maria Ribeiro), que perfazem 0,4% do total de seus bens, mas que são

importantes simbolicamente, pois são adornos de ouro, material muito valorizado. Já

Antônio Dias de Matos, não apresentou nenhuma joia ou adereço de uso pessoal, apenas

duas peças de roupas, a saber: um capote de baetão azul avaliado em 3$000 (três mil réis), e

95

uma véstia de pano azul no valor de 2$400 (dois mil e quatrocentos réis), que somados,

5$400 (cinco mil e quatrocentos réis), equivalem a 2,4% dos bens.26

O caso de Antônio é um interessante exemplo de presença de roupas em um

inventário póstumo com poucos bens. Quando faleceu em 1800, Antônio deixou um filho

solteiro e uma filha viúva que tivera em seu primeiro matrimônio, e sua segunda esposa,

Maria Leme, grávida de quatro meses e um filho de dez anos. Possuíam uma casa na rua

Direita, defronte o portão de São Francisco, e um sítio em que viviam, com terras, uma

rodinha e prensa de ralar mandioca e um oratório. Dispunham de poucos móveis, dois

catres, dois bancos e duas caixas, uma rede e duas toalhas de algodão. Cinco ferramentas,

enxadas, foices e machados, duas juntas de bois, dois cavalos e a escrava Escolástica que

contava com 50 anos, avaliada em 30$000 (trinta mil réis)27

. Sem grandes somas em bens

de raiz ou escravaria, as roupas representavam 2,4% de seus bens, valor maior dos casos

acima mencionados. Os bens de Antônio comprovam o padrão observado quando

calculamos os bens sem os valores de imóveis e escravos, situação que aponta um

percentual maior das roupas em relação ao total.

Além das peças de roupas, faz-se necessário avaliar os objetos de uso pessoal

relacionados à aparência. São objetos associados à higiene pessoal, como as navalhas de

barba, utilizados para adorno, ou com alguma função específica, como as bengalas, bastões,

esporas, óculos, mas que juntamente com as roupas contribuem na composição da

aparência. Mesmo possuindo uma função utilitária, como a proteção de raios solares,

chuva, os chapéus também poderiam ter a função de adorno, principalmente quando

composto por tecidos finos, galões e fitas douradas. Neste sentido, também as fivelas de

sapatos, de calção, de gravata, de pescocinho, que primeiramente servem para unir, fechar,

mas por ficarem aparentes, adornavam também. Na tabela 6, reunimos os dados sobre esses

objetos.

26

ARQ/MRCI – Inventário de Antônio Dias de Matos, 1800, caixa 14B. 27 ARQ/MRCI – Inventário de Antônio Dias de Matos, 1800, caixa 14B, folhas 3 – 4 verso.

96

Tabela 6 - Objetos de uso pessoal relacionados à aparência, Itu, 1765-1808

Objetos Quantidade Valor (em réis)

Bastão 6 15$600

Bengala 3 6$400

Cabeleira 1 $080

Chapéu 32 59$260

Dragonas Não informa 4$000

Escova 1 $160

Espora 29 135$450

Fivela 19 51$530

Fivela de calção 22 20$040

Fivela de gravata 3 1$680

Fivela de pescocinho 2 $950

Fivela de sapato 41 140$325

Navalha 3 $400

Óculos 2 2$000

Relógio 9 132$960

Sapato 6 2$960

Total 179 573$795

Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Contas de testamento, inventários

Os objetos associados à higiene encontrados são uma escova e três navalhas de

barba. A escova não foi descrita em detalhes, nem sua função específica.

No espólio de Maria Francisca Vieira consta a única cabeleira da amostra. A

descrição informa que era pequena, e foi avaliada pelo baixo valor de $080 (oitenta réis)28

.

João Fernandes da Costa não possuía a cabeleira, mas sim duas cabeças para cabeleiras,

$480 (quatrocentos e oitenta réis) e uma boceta de cabeleiras, $200 (duzentos réis). Olanda

Vilaça encontrou duas cabeleiras no norte de Portugal, uma em Barcelos, entre 1750-1760,

e uma em Póvoa de Lanhoso entre 1801-181029

. Drumond localizou em Rio das Velhas na

primeira metade do século XVIII duas cabeleiras: uma escura e outra com sua cabeça30

.

Dentre os inventariados da amostra, encontramos 32 chapéus, totalizando 59$260

(cinquenta e nove mil, duzentos e sessenta réis). Doze desses, 37,5%, foram caracterizados

como “de sol”, uma denominação relacionava ao seu uso, de proteção ao calor do sol31

.

Drumond encontrou os seguintes tipos, chapéu fino, entre fino, de sol e de Braga para

28 ARQ/MRCI – Inventário de Maria Francisca Vieira, 1796, caixa5. 29 VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material ... p. 457. 30 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material... p. 154. 31

“artificioso defensivo do calor do sol”. Vocábulo chapéu. Vide BLUTEAU, Raphael. Vocabulario... v.. 2,

p. 275. Disponível em: < http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/1/chapeu>. Acesso em: 10.nov.2014.

97

Minas Gerais. Nas lojas, o chapéu grosso da terra era comercializado a $600 (seiscentos

réis) enquanto os finos, custavam até 2$000 (dois mil réis)32

.

Na vila de Itu, em média, tanto um chapéu confeccionado com ganga quanto com

holanda apresentaram valor de 2$000 (dois mil réis). Os tecidos empregados mais comuns

eram olanda, ganga, senão feitos inteiramente, pelo menos cobertos com um desses dois

tecidos.

As fivelas poderiam ser registradas com seus usos, como de calção, de gravata, de

pescocinho ou de sapatos. Os itens redigidos sem especificação foram contabilizados

separadamente, contabilizando 19 pares de fivelas, avaliados no total em 51$530 (cinquenta

e um mil, quinhentos e trinta réis). As mais recorrentes foram as fivelas de sapato (47,1%),

seguidas das de calção (25,2%), as fivelas sem indicação de uso (21,8%), as de gravata

(3,4%) e, por fim, as de pescocinho (2,2%). As fivelas, em sua grande maioria, eram de

prata, que na época, era avaliada em $100 (cem réis) a oitava33

.

A charneira, “peça com que se segura a fivela prendendo-a com as orelhas do

sapato”34

, apesar de mencionada em sapato era mais comum em fivela de calção. O padrão

observado foi o de fivela de prata, com a charneira em ferro, na média de 1$000.

De modo geral também as esporas seguiam o mesmo padrão das fivelas,

confeccionadas em prata. Uma apenas foi descrita como de metal amarelo, no valor de

$620 (setecentos e vinte réis)35

.

O bastão estava relacionado ao uso militar, “só por insígnia, e distintivo militar” ou

também como as bengalas, para apoio, conforme registrou Moraes Silva36

. Embora com

características funcionais, poderia contribuir com a boa aparência de quem o portava,

32 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material... p. 111. 33 Oitava era uma unidade de medida, que correspondia à 1/8 de onça, 0,112 gramas. Informação disponível

em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Antigas_unidades_de_medida_portuguesas>. Acesso em: 30.ago.2014. 34 Vocábulo charneira. Vide PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira. Typographia de

Silva, 1832. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/3/charneira> . Acesso em: 24.ago.2014. 35 ARQ/MRCI - Inventário de José Leme de Oliveira, 1800, caixa 14A, folha 4 verso. 36

Vocábulo bastão. Vide SILVA, Antônio Moraes. Diccionario... vol. 1, p. 268. Disponível em:

<http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/2/bast%C3%A3o> . Acesso em 01.set.2014.

98

especialmente quando empregados metais preciosos como a prata, ou adornadas. Os

proprietários de bastões do nosso universo de análise tinham títulos militares e um era

sacerdote.

Os bastões não indicavam o material com o qual foram confeccionados, mas

mencionavam apenas que possuíam a ponteira de prata, em cinco de seis ocorrências. Já as

três bengalas eram uma de cana da Índia, no valor de 4$000 (quatro mil réis), e duas de

madeira da terra, ambas avaliadas em 1$200 (mil e duzentos réis)37

. Passamos agora a tratar

as roupas femininas.

Dos 44 inventariados de nossa amostra, 15 são mulheres e um casal foi inventariado

junto. Em alguns casos em inventários de chefes de família foi possível identificar objetos

de uso feminino, como joias ou peças de roupas descritas como capote de mulher.

Reunimos os dados referentes ao vestuário feminino na Tabela 7 e no Quadro 7.

Tabela 7 – Tipos de peças de roupas femininas, quantidades e valores, vila de

Itu, 1765-1808

Peça Quantidade Média valor

unitário Valor total (em réis)

Avental 1 8$000 8$000

Camisa 1 1$600 1$600

Capote 1 12$800 12$800

Cinto 1 2$000 2$000

Espartilho 1 5$000 5$000

Manteleta 1 4$000 4$000

Manto 1 3$200 3$200

Marcelina 1 2$000 2$000

Meias 1 $640 $640

Penteador 2 1$000 2$000

Rasgão 2 4$640 9$280

Roupa 1 18$000 18$000

Roupa com avental 1 14$400 14$400

Roupa com manto 2 14$400 28$800

Roupinha de cabeça 1 1$280 1$280

Saia 15 3$710 70$500

Vestido 1 20$000 20$000

Sem identificação 1 2$000 2$000

Total 35 189$420

37

ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Francisco da Luz, Ana Gertrudes de Campos e José Manoel Caldeira

Machado.

99

Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Contas de testamento e inventários

Na média, o valor da peça de roupa feminina é aproximadamente 44% maior que as

masculinas, devido ao emprego de tecidos finos, consequentemente mais caros do que os

que compõem as peças masculinas no geral. O item mais comum do vestuário feminino, a

saia, contou 15 ocorrências. Penteador, rasgão e roupa com manto apareceram duas vezes, e

as demais 13 peças foram encontradas apenas uma vez.

De forma geral, as roupas que caracterizam trajes completos como vestido, roupa e

suas variações com manto, com avental, e apenas uma peça, o capote, obtiveram os maiores

valores monetários, entre 12$000 (doze mil réis) e 20$000 (vinte mil réis).

Quadro 7 – Relação de cores e tecidos por peças de roupas femininas, Itu

Peça Cores Tecidos

Avental Branca Cabaia

Camisa Não informa Bretanha

Capote Encarnada n.i.

Cinto Branca Cabaia

Espartilho Carmesim Veludo

Manteleta Listrada com renda de ouro Cetim

Manto Não informa Seda

Marcelina Branca Cassa

Meias Não informa Seda

Penteador Não informa n.i.

Rasgão Não informa Brilhante, veludo

Roupa Rosa seca Cabaia

Roupa com avental

Preta Cabaia

Roupa com

manto

Preta Cassa, veludo

Roupinha de

cabeça

Não informa n.i.

Saia Pérola, preta, azul, amarela Algodão, baeta, brilhante, cassa, chita, droguete,

durante, guingão, linho, pano azul, seda, veludo

Vestido Branca com raminhos de ouro Cabaia

Sem identificação Não informa Baeta

Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Contas de testamento e inventários

Os tecidos mais empregados em peças de nossa amostra foram o veludo, em

espartilho, rasgões, saias e roupas com mantos, e a cabaia, em cintos, roupas, roupas com

avental e vestidos. Curiosamente, de linho e de algodão só constam saias, as camisas eram

100

de bretanha. Para as meias femininas encontramos apenas de seda, diferente das masculinas

que, além de seda, poderiam ser de algodão e de fustão.

A inventariada que apresentou o maior número de saias foi Ana Maria da Silveira,

que possuía sete saias, no valor total de 13$280 (treze mil, duzentos e oitenta réis). A saia

mais valiosa, de droguete preto com pouco uso foi avaliada em 4$800 (quatro mil e

oitocentos réis), valor médio para as saias da amostra, que do mesmo tecido poderia valer

9$600 (nove mil e seiscentos réis).

Quadro 8 – Vestuário, objetos de uso pessoal e joias pertencentes a Ana Maria

da Silveira, 1805, Itu

Categoria de

bem Descrição

Avaliação

(em réis)

Valor percentual

no espólio do

inventariado

Roupas Uma [-] de baeta, camisa de bretanha, saia de

droguete preto, saia aberta de pano azul, saia de

brilhante, saia de chita, saia de baeta azul, saia

de guingão, saia de pano de linho, par de meias

de seda

17$520 2,7

Objetos de uso

pessoal relacionados à

aparência

Par de fivelas de sapatos 1$500

0,2

Joias Par de brincos, um laço, um crucifixo 2$700 0,4

Total 21$720 3,3

Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de Ana Maria da Silveira, folha 4 – 4 verso

Ana Maria possuía ainda a única camisa relacionada às vestes femininas, de

bretanha com pouco uso de gola arrendada, e uma peça de baeta sem identificação.

Completam seus bens dois pedaços de tecidos (linho e chita), três toalhas de algodão, sendo

uma de mesa, um par de lençóis de algodão já usados, uma caixa, três vacas e um boi, que

somam 19$420 (dezenove mil, quatrocentos e vinte réis). Os maiores valores do seu

inventario concentram-se no sítio, 340$000 (trezentos e quarenta mil réis) e nos dois

cativos, 265$000 (duzentos e sessenta e cinco mil réis)38

. Teresa Jesus Barbosa, por sua

38 ARQ/MRCI – Inventário de Ana Maria da Silveira, 1805, caixa 16B, folha 3 verso.

101

vez, possuía apenas uma saia de algodão, usada avaliada em $500 (quinhentos réis),

arrolada em seu inventário39

.

As roupas confeccionadas com cabaia eram as mais valiosas, a saber: uma roupa cor

de rosa, 16$000 (dezesseis mil réis), uma roupa inteira de cabaia rosa seca com flores,

18$000 (dezoito mil réis), um vestido de mulher branco com raminhos de ouro, 20$000

(vinte mil réis), e uma roupa inteira de mulher cor de rosa, com avental de seda branca,

tudo guarnecido com galões de ouro, 28$000 (vinte e oito mil réis), que pertencia à Josefa

Maria Góes40

. Josefa possuía além da referida roupa com avental, as demais peças,

conforme Quadro 9.

Quadro 9 – Relação das roupas femininas presentes no arrolamento de bens de

José Manoel da Fonseca Leite, 1798, Itu

Categoria de

bem Descrição

Avaliação

(em réis)

Valor percentual

no espólio do

inventariado

Roupas Uma roupa inteira de mulher de cabaia cor de rosa,

com avental de seda branca, tudo guarnecido de

galões de ouro, uma roupa inteira de mulher de

cetim preto com seu manto, uma roupa inteira de

mulher de veludo com seu manto usado, uma saia

de seda amarela usada, uma marcelina de pano fino

encarnado, bordado de cetim azul, uma marcelina

inferior, uma saia de cetim azul usada

98$400 0,6

Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 16 verso

A roupa de cabaia cor de rosa tinha o avental em seda de cor branca, toda

ornamentada de galões de ouro, adorno que incrementou a roupa feminina mais valiosa da

amostra ituana. Diferentes da primeira, as outras duas roupas inteiras de Josefa eram de um

tecido apenas, e possuíam manto, uma de cetim preto e outra de veludo, avaliadas em

16$000 (dezesseis mil réis) e 12$800 (doze mil e oitocentos réis), respectivamente. Josefa

contava ainda com duas saias, uma de seda amarela usada, 5$000 (cinco mil réis) e uma de

cetim azul também usada, 6$000 (seis mil réis), além de duas marcelinas, uma de cetim

bordada, 25$600 (vinte e cinco mil e seiscentos réis), e outra inferior, no valor de 6$000

39 ARQ/MRCI – Inventário de Teresa Jesus Barbosa, 1791, caixa 1, folha 3 verso. 40

A cabaia era um tecido de seda muito leve, já a cambraia, era fina e transparente, feita de linho ou algodão.

Vide COSTA, Manoela Pinto da. Glossário... p. 141 – 142.

102

(seis mil réis)41

. Os valores das peças de roupas se equiparavam ao de armas de fogo, como

consta no mesmo inventário, uma arma estrangeira em bom uso, avaliada em 5$000 (cinco

mil réis), valor considerável.42

Outra peça de roupa que não foi possível determinar, o rasgão, consta na relação dos

bens de Maria Leite Pacheco.

Quadro 10 – Vestuário e objetos de uso pessoal pertencentes a Mariana Leite

Pacheco, 1779, Itu

Categoria de bem Descrição Avaliação

(em réis)

Valor percentual

no espólio do

inventariado

Roupas Um rasgão de brilhante, um rasgão de

veludo, uma saia de veludo, um manto

de seda, uma saia de seda de matizes, um

espartilho carmesim

45$280 4,1

Objetos de uso

pessoal relacionados

à aparência

Um par de sapatos de seda 1$000 0,09

Total 46$280 4,2

Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de Mariana Leite Pacheco, folha 4

Além da saia mais cara: uma saia de seda de matizes avaliada em 15$000 (quinze

mil réis), Mariana possuía o único espartilho e o único par de sapatos mencionado na

amostra feminina. Mesmo de seda, os sapatos não alcançaram um valor alto na avaliação,

1$000 (mil réis), se compararmos com o valor de 3$200 (três mil e duzentos réis) atribuído

ao seu manto de seda. Já o espartilho de veludo carmesim, valia 5$000 (cinco mil réis),

quantia considerável. Exceto o rasgão de brilhante, as peças de Mariana eram de veludo ou

de seda. O valor das roupas de Mariana foi maior do que os móveis, 9$440 (nove mil,

quatrocentos e quarenta réis), ferramentas e apetrechos de trabalho, 35$360 (trinta e cinco

mil, trezentos e trinta e seis réis) e matérias-primas, $680 (seiscentos e oitenta réis). Só foi

abaixo das categorias já esperadas: escravos, 783$400 (setecentos e oitenta e três mil e

quatrocentos réis), animais e criações, 74$560 (setenta e quatro mil e quinhentos e sessenta

réis) e bens de raiz, 130$000 (cento e trinta mil réis).

41 Não foi possível determinar como era uma marcelina, pois não encontramos menção em obras de referência

nem em outras pesquisas do mesmo período. 42

ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 7 verso.

103

Observando o outro extremo, dos inventários mais humildes, Teresa Jesus Barbosa

possuía apenas uma saia de algodão usada avaliada em $500 (quinhentos réis) arrolada em

seu inventário43

. Já a costureira Quitéria de Oliveira, tinha três saias de baeta: azul, $480

(quatrocentos e oitenta réis), preta velha, $640 (seiscentos e quarenta réis) e outra preta por

1$600 (mil e seiscentos réis). As roupas representavam 0,86% dos bens de Quitéria, seus

brincos de ouro 2,5%, sua escrava, 46,2% e as três barras de ouro, 37,4% do total.

Desta forma, a saia foi a peça de roupa mais presente nas relações dos bens

femininos, sendo então mais acessível e presente nos espólios pesquisados, tanto nos

abastados quanto nos mais humildes. Já os vestidos ou roupas inteiras, figuraram em

poucos e valiosos inventários. Elemento distintivo em Paris, a popularização dos vestidos

entre a camada assalariada ocorreu no final do século XVIII, de acordo com Daniel

Roche44

. Mas apenas na capital, pois, comparando os inventários de outra localidade, mais

ao interior, o vestido continua um item inacessível à maior parte da população45

. No caso

da América Portuguesa, Cláudia Mól observou que “usar saia e camisa é mais adequado ao

clima quente”46

. Além da questão do clima, o vestido feminino demandaria mais recursos

para sua confecção se considerarmos a quantidade maior de pano empregada. Marco

Aurélio Drumond também encontrou o padrão de saia e camisa adotado pelas mulheres na

comarca de Rio das Velhas, na primeira metade do século XVIII.47

No Arquivo Nacional da Torre do Tombo pesquisamos uma amostragem de

inventários lisboetas, correspondente a cada ano que havia informações para Itu.

Selecionamos 19 inventários nos anos correspondentes e mais cinco de comerciantes, para

avaliar os estoques de algumas lojas de Lisboa.

A amostragem de inventários portugueses fornece um pequeno parâmetro do

vestuário e tecidos utilizados em Lisboa, importante entreposto comercial, na recepção e

envio de mercadorias entre a Europa e a América Portuguesa. Desta forma, é possível

43 ARQ/MRCI – Inventário de Teresa Jesus Barbosa, 1791, caixa 1, folha 3 verso. 44 ROCHE, Daniel. A cultura das aparências... p. 152. 45 ROCHE, Daniel. A cultura das aparências... p. 152. 46

MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres forras... p. 113. 47 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material... p.125.

104

comparar a presença de tecidos no contexto metropolitano e colonial no período anterior à

abertura dos Portos brasileiros, 1808, bem como a circulação de peças de vestuário antes da

chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro.

Organizados a partir dos mesmos critérios que utilizamos para a vila de Itu, os bens

lisboetas contabilizados apresentaram, em geral, o seguinte perfil: os bens de raiz compõem

50,86% dos bens, seguidos dos estoques das lojas, 20,22% e de dinheiro em espécie,

13,69%. O vestuário alcançou apenas 1,34%. As categorias relacionadas à aparência,

vestuário, joias e objetos de uso pessoal somam 3,61% dos bens. Eminentemente urbano, o

perfil da amostragem lisboeta não apresenta nenhuma ocorrência de animais ou criações,

construções e materiais, instrumentos ligados à escravidão e ouro (em barras). Os escravos

configuram apenas 0,13%48

.

Com relação às roupas, durante a primeira metade do século XVIII, D. João V

(1707-1750) afrancesou a corte portuguesa ao seguir a moda de Luís XIV, inclusive

importando itens franceses como camisas e cabeleiras49

. A partir de 1750, “com a

preocupação pombalina da nacionalização do vestuário, entraram na Moda os tecidos

grosseiros, o briche, a saragoça, o crespo de Lamego, o sorobeque de Vizeu e outros

„panos da terra‟ que até aí só eram usados pelo povo”50

. Já no final do século XVIII, as

mudanças nos trajes ocorridas a partir da Revolução Francesa após 1789 não repercutiu em

Portugal51

. “O conservantismo natural das classes pobres, a distância e a falta de

comunicações que então havia defenderam o povo do caos suntuário proveniente da

48 Um aspecto observado na documentação portuguesa é o emprego de oficiais na avaliação dos bens arrolados em inventários. No início ou ao final do inventário estão os recibos e assinaturas de mestres

carpinteiros para avalição dos móveis, alfaiates para as roupas, ourives para joias, etc. Na vila de Itu para os

anos entre 1765 e 1808 não observamos esta característica. 49 Cf. Capítulo V, HISTÓRIA DO TRAJO EM PORTUGAL. Encyclopedia pela imagem. Porto: Livraria

Chardron, (1920). p. 46 – 52; SUCENA, Berta de Moura. Corpo, moda e luxo em Portugal. 2007.

Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de Letras. Universidade de Lisboa. Lisboa, 2007. p. 3; SILVA,

Alberto Júlio. Modelos e modas – traje de corte em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Revista da Faculdade

de Letras – Línguas e Literaturas. Anexo V – Espiritualidade e Corte em Portugal, sécs. XVI – XVIII. Porto,

1993. p. 182. Disponível em: < http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigo8151.pdf> . Acesso em 11. out.

2013. 50 HISTÓRIA DO TRAJO EM PORTUGAL. Encyclopedia pela imagem. Porto: Livraria Chardron, (1920). p.

47 51

HISTÓRIA DO TRAJO EM PORTUGAL. Encyclopedia pela imagem. Porto: Livraria Chardron, (1920).

p. 52.

105

revolução.”52

Também se fez sentir a influência inglesa nos cortes e cores mais sóbrios a

partir das duas últimas décadas do século XVIII.

Os trajes lisboetas e ituanos apresentam muitas semelhanças no geral. Apresentamos

os dados referentes ao vestuário masculino e feminino da cidade de Lisboa correspondente

aos mesmos anos observados na amostra ituana. As 631 peças foram elencadas por tipo,

tecidos e porcentagem.

Quadro 11 - Roupas masculinas por peças, tecidos e porcentagem ao total da

amostra lisboeta, 1765-1808

Peças de roupas Tecidos Porcentagem em relação

ao total de roupas

Balandrau Sarja 0,1

Barretes Linho 1,1

Calção Belbute, cetim, ganga, lã, sarja, seda, setineta

veludo

2,3

Calção e camisa Lã 0,1

Calção e casaca Ganga, pano fino e veludo 0,4

Calção e colete Cetim 0,1

Camisa Cambraia, cavalim, esguião, linho, olanda, não

informa

27,2

Camisote Cavalim 1,1

Capa Seda, não informa 0,6

Capote Baetão, brixe, barregana, ruão, não informa 1,4

Casaca Algodão, barregana, chita, casemira, lemiste,

seda, pano fino, pano verde, pano azul, saragoça, não informa

2,8

Casaca com véstia Lemiste, nobreza, saragoça, veludo, pano fino,

não informa

2,5

Ceroula Linho, não informa 6,3

Colete Baeta, cetim, fustão, linho, olanda, não informa 4,1

Gola Pele 0,1

Gravata Algodão, cassa, chamalote 3,6

Hábito Camelão, não informa 0,3

Josezinho Baetão 0,3

Lenço Bretanha, algodão, não informa Quantidade indeterminada

Luva Linho, pelica 1,4

Manto (ordem de

cristo)

Cavalim 0,1

Meias Algodão, linho, seda, lã, não informa 25,1

Penteador Algodão, bretanha, cavalim, linho, não informa 2,2

Pescocinhos Bretanha, cambraia, não informa 11,8

Sobrecasaca Baetão 0,6

52

HISTÓRIA DO TRAJO EM PORTUGAL. Encyclopedia pela imagem. Porto: Livraria Chardron, (1920). p.

52

106

Soleiros Cambraieta, linho 1,4

Véstia e calção Chita, entrefino, fustão e pano azul 0,9

Vestido Brilhante, nobreza, seda, veludo 0,9

Fonte: ANTT – Inventários Orfanológicos e Correição Cível da Cidade de Lisboa, Inventários post mortem,

Lisboa, 24 inventários, 1765-1808.

Em relação às peças de roupas, o traje masculino não apresenta diferença em relação

ao padrão calção, véstia, colete e casaca. As peças de roupas masculinas que não foram

registradas na vila de Itu foram barrete, balandrau, camisote, gola, gravata, luva,

pescocinho e soleiro.53

O barrete consistia em uma “cobertura de cabeça, antiga, usada ainda pelos tempos

d‟el-Rei D. João III e pouco depois.”54

O balandrau era “vestidura com mangas e capuz de

que usam hoje os homens da tumba da Misericórdia”.55

Não foi possível encontrar

definições precisas para soleiro. O pescocinho, uma espécie de capuz, foi descrito como

uma peça de uso de sacerdotes, juntamente com a batina, porém Marco Aurélio Drumond

localizou uma imagem de José Wasth Rodrigues com a legenda “pescocinho ou gravata”

para um laço no pescoço do uniforme de um oficial, o que mostra que não era de uso

restrito de religiosos56

. A maioria dos pescocinhos era de cambraia e os soleiros, de

cambraieta ou linho.

Os dois únicos hábitos da amostra lisboeta pertenciam a Antônio João da Luz,

falecido em 1804. Um dos hábitos da Ordem Terceira do Carmo foi avaliado em 1$600

(mil e seiscentos réis), sem informação do tecido, e o outro, de camelão pardo era

acompanhado de seu cordão e pertencia à Ordem Terceira de São Francisco, em preço de

53 Na documentação ituana, não houve registro da peça de roupa denominada pescocinho, mas apareceram duas fivelas de pescocinho, como apontamos na tabela 2, o que indica que não era um item desconhecido, ou

restrito, já que Marco Aurélio Drumond também observou a presença desta peça em Minas Gerais. 54 Verbete Barrete. Vide SILVA, Antônio Moraes. Diccionario... v. 1, p. 267. Disponível em:

<http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/2/barrete>. Acesso em 13.ago.2014. 55 Verbete balandrau. Vide PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario... Disponível em:

<http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/3/balandrau>. Acesso em: 12.ago.2014. 56 Pescocinho foi descrito como “Debrum branco, móvel existente nas lobas e batinas dos sacerdotes.

Cabeção, coleira dos padres.” Vide Dicionário Caldas Aulete. Disponível em:

<http://www.aulete.com.br/pescocinho> . Acesso em: 03. nov. 2013. DRUMOND, Marco Aurélio.

Indumentária e Cultura Material... p. 165.

107

2$000 (dois mil réis). É provável que ambos pertencessem ao inventariado e que este fosse

membro das duas ordens terceiras.

Em maior número, as camisas contaram 172 peças e em sua maioria, feitas de linho,

e também as ceroulas (34 de linho e 6 sem informar tecido).

Capotes, nove ocorrências, três de baetão, sendo um destes descrito com mangas.

Quanto às casacas, estas foram registradas sozinhas, com calções ou com véstias, quando

feitos do mesmo tecido. Em número de 18, as casacas presentes nos inventários de Lisboa

consultados atingiram valores variados de acordo com o tecido com o qual eram

confeccionados, desde $600 (seiscentos réis) em uma de barregana, até 2$000 (dois mil

réis) para uma casaca de pano azul.

Na vila de Itu notamos que existiu ocorrência de casacão, mas nenhuma

sobrecasaca. Na amostragem de Lisboa, por sua vez, não consta casacão, apenas

sobrecasaca. Acreditamos tratar-se de um tipo semelhante de casaco, com denominação

diversa nas duas localidades.57

Os lenços foram as peças do vestuário masculino mais difíceis de determinar a

quantidade, pois na maioria dos registros são mencionados apenas no plural “lenços” ou

mesmo como “lenços de várias qualidades”, dificultando a identificação do material. Foi

possível verificar que eram de algodão e bretanha e, ao todo, constam em 15 dos 23

inventários consultados para Lisboa.

O penteador e as meias são, em sua maioria, de linho, tanto masculinos quanto

femininos. Entre os bens analisados, a quantidade de pares de meias elencadas no

inventário de Antonio Ferreira Themudo: 75 pares, entre meias de linho, de linha fina e

57 Casacão era uma “casaca grande para se vestir por cima da casaca que por isso lhe chamam também

sobrecasaca.” Vide PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira por Luiz Maria da Silva Pinto, natural da Provincia de Goyaz. Na Typographia de Silva, 1832. Disponível em: <

http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/3/casaca> . Acesso em: 17.nov.2014.

108

crua, de seda, totalizando 34$520 (trinta e quatro mil, quinhentos e vinte réis), ou seja,

27,1% de toda sua vestimenta58

.

A principal diferença notada nos trajes masculinos entre Lisboa e Itu foi em relação

aos tecidos empregados para a confecção das roupas: na amostra pequena de Lisboa,

encontramos 50 tipos de tecidos, enquanto para todos os inventários com têxteis do recorte

na vila de Itu surgiram 31 tecidos diferentes. Com relação às peças utilizadas em conjunto,

em Itu era comum calção e colete do mesmo tecido, ao passo que em Lisboa usava-se a

casaca e a véstia semelhantes.

Reunimos as vestimentas femininas que constavam da amostra lisboeta de 161

peças na Quadro 12, conforme o tipo, os tecidos e a porcentagem que representavam em

relação ao total.

Quadro 12 - Roupas femininas por peças, tecidos e porcentagem ao total da

amostra lisboeta, 1765-1808

Peça Tecidos Porcentagem em relação ao

total de roupas

Anágua Bretanha, cambraieta 1,4

Avental Cassa, não informa 12,4

Baque Baetão 0,6

Camisa Cavalim, linho 2,4

Capa Cetim, baetão, veludo, nobreza e seda 3,1

Capuchinho Cetim, não informa 2,4

Espartilho Não informa 0,6

Josezinho Baetão 1,2

Lenço Cassa, cambraia 6,2

Manto Cetim, seda, não informa 3,1

Mantilha Lemiste, veludo, tafetá, não informa 3,7

Meia Linho, seda, não informa 1,8

Penteador Linho 0,7

Roupão Baetão 0,7

Roupinha Baeta, baetão, baetilha, cetim, chita, droguete,

ganga, seda

15,6

Saia Algodão, baeta, baetão, brilhante, cassa, cetim, chita, droguete, durante, ganga, gobelim,

nobreza

19,8

Vestido Baetilha, cassa, cetim, chita, droguete, fustão,

gobelim, gorgorão, lemiste, nobreza, secezias,

seda, veludo

23,7

Xale Chita 0,6

58 ANTT - Inventário de Antonio Ferreira Themudo, 1789, folhas 41v – 43v.

109

Total 100

Fonte: ANTT – Inventários Orfanológicos e Correição Cível da Cidade de Lisboa, Inventários post mortem,

Lisboa, 24 inventários, 1765-1808.

Apesar de pequena, a amostra lisboeta nos forneceu uma ideia sobre as peças bem

como os tecidos empregados no vestuário feminino em Lisboa de forma geral. As roupas

femininas semelhantes em ambas às localidades são: avental, camisa, espartilho, manto,

meia, penteador, saia e vestido.

A partir de 1750 foi costume utilizar de forma caseira “e não em trajo de cerimônia,

o avental de holandilha ou de cambraia enfeitado de rendas”59

. Para a amostra lisboeta, o

número de 20 aventais encontrados é considerável. Foi possível perceber esse costume de

utilização do avental também na vila de Itu.

O número e tipos de peças de uso caseiro ou roupas „de baixo‟ também são restritos

em Lisboa: apenas duas anáguas, um espartilho, um penteador e um roupão. A proporção

de vestidos em relação às saias, 38 para 32, aponta uma distribuição equilibrada desses

trajes entre as mulheres lisboetas, diferente das ituanas que possuíam mais saias.

Um padrão observado para as roupas lisboetas, tanto masculinas quanto femininas

foi o emprego de tafetá para forro em sua maioria. Existem peças forradas de seda, de

baeta, de cetim, de durante, capas forradas de peles, mas a maior parte das peças são

forradas de tafetá.

O inventário de Angélica Perpétua Rosa Portella enquadra-se em um padrão médio

tanto de roupas quanto de valor, a seguir.

59 HISTÓRIA DO TRAJO EM PORTUGAL. Encyclopedia pela imagem. Porto: Livraria Chardron, (19-). p.

47.

110

Quadro 13 - Vestuário e objetos de uso pessoal pertencentes à Angélica

Perpétua Rosa Portella, 1802, Lisboa

Categoria

de bem Descrição

Avaliação

(em réis)

Valor

percentual no

espólio do

inventariado

Roupas Um vestido [-] gobelem lavrado com 2 panos de fora,

Um vestido de nobreza preto com seu manto de seda à

portuguesa com sua renda, uma mantilha de tafetá preto

guarnecido de renda, uma saia de gobelem de nobreza com folho do mesmo mais claro, uma saia e roupinha de

droguete pano roxo, uma saia de nobreza com seu folho,

com sua capa de nobreza preta com capuz guarnecida de

renda, uma capa de nobreza preta com seu [-] de seda e 2

mantos franceses com [-] de renda, uma saia de algodão

riscado de 4 panos, um vestido de fustão branco de

riscas, um vestido de cassa de riscas, uma saia de cassa,

umas roupinhas azuis sem mangas, três aventais de cassa,

um de ramos e 2 de folhas, uma manta de cassa com

listras roxas e franja, avental em peça de cassa bordada e

outro liso de cassa ordinária, dois lenços novos de

homem bordados para o pescoço, quatro lenços de cassa que servem para a cabeça, lisos, dois lenços e uma tira

para o pescoço, quatro lenços, sete camisas de mulher de

várias qualidades, cinco anáguas, uma de folhos e 5 de

vários panos e feitios, umas ceroulas, quatro roupinhas

brancas e de chita, uma saia de chita verde e ramos, uma

saia de chita desmaiada, saia de cassa de riscas miúdas

com retalho, um Josézinho de baetão roxo lavrado, três

pares de meias

30$000 14,3

Objetos de

uso pessoal

relacionados

à aparência

Um par de brincos de cabeça e pingente com 40 topázios

amarelos e 8 cristais brancos

$960 0,4

Total 30$960 14,7

Fonte: ANTT – Inventário de Angélica Perpétua Rosa Portella, 1802, Lisboa

Para algumas peças há a indicação de uso, como os lenços para o pescoço, lenços

para cabeça. As peças mais valiosas de Angélica eram a capa, saia e vestido de nobreza, um

tecido de seda. As peças de cassa não tinham altos valores como em Itu, pois um vestido de

cassa valia 1$200 (mil e duzentos réis) em Lisboa, enquanto em Itu duas saias de cassa

valiam 3$600 (três mil e seiscentos réis)60

. Deste tecido, encontramos um vestido em

exposição no Museu Nacional do Traje em Lisboa, datado de 1810.

60

ARQ/MRCI – Inventário de Antônio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A, folha 24 verso.

111

Figura 5 - Vestido Império confeccionado em cassa, 1810

Fonte: Acervo da autora/Museu Nacional do Traje e da Moda, Lisboa

Esta é uma peça original, confeccionada de cassa de algodão branco bordado com

lâminas de prata, datada de 1810. Em sentido horário, o vestido inteiro, e detalhes da parte

superior e do bordado na barra, configura-se como um exemplar da moda Império,

caracterizada pelo emprego de tecidos leves e até transparentes e um corte reto, que lembra

as túnicas gregas e romanas.

112

O vestuário masculino e feminino nas amostras ituanas e lisboetas são semelhantes,

tanto em relação aos tipos de peças de roupa, quanto aos tecidos. Como esperado, em

Lisboa a oferta de tecidos era maior, e o valor médio das roupas também era superior.

2.2 Os itens de vestuário nas listas de importação e no estoque da loja de Itu

Nos maços de população, documentação censitária confeccionada entre 1760 e

1830, existe para alguns anos a relação dos produtos importados pela vila de Itu, bem como

os produtos produzidos ali, especificando a quantidade consumida e exportada.61

Para a vila

ituana, estão disponíveis os dados referentes aos anos 1798, 1800, 1801, 1802, 1803, 1804,

1805 e 1808. Os itens importados são vinho, pano de linho, pano de lã, pano de algodão,

chapéu, meia de seda, tecido de seda e sal, provenientes de Lisboa e da cidade do Porto.

Organizamos as ocorrências dos tecidos importados em dois gráficos, um de Lisboa e outro

do Porto para melhor visualização dos dados.

61 Tabelas denominadas “Mappas da importação dos produtos e manufacturas do Reino, dos outros Portos do Brazil, e dos Paízes Estrangeiros na Paróchia da Vila de Itu no ano ...”. De acordo com ano, poderiam vir no

início, ou no final da listagem do censo.

113

Gráfico 8 – Tecidos provenientes de Lisboa importados pela vila de Itu (em

peças)

0

50

100

150

200

250

300

350

400

450

500

1798 1800 1801 1802 1803 1804 1805 1808

Tecidos Lisboa Linho Lã Algodão Seda

2206

Fonte: AESP - Maços de população, Vila de Itu

Neste gráfico referente aos tecidos provenientes do porto de Lisboa, observamos a

variação dos números de peças de tecidos importados pela vila de Itu. O traço comum

observado para os quatro tecidos foi a diminuição dos itens a partir de 1805.

O tecido que apresentou os maiores números foi o algodão. Em 1798 foram

importadas 2206 peças de pano de algodão, cifra expressiva que precisou ser indicada

numericamente no gráfico, pois não dimensionava os outros valores menores. O pano de lã

apresentou tendência semelhante ao do algodão, mas em menor escala, decresceu entre

1798 e 1801, aumentou em 1802 e 1803 e decresceu em 1804 e 1805.

Os panos de linho não constaram nos dois primeiros anos, mas apresentaram entre

30 e 60 peças entre 1801 e 1803, aumentaram para 130 e 120 peças em 1804 e 1805,

respectivamente, e decaíram para apenas 10 peças em 1808. A seda apresentou números

baixos porém constantes, de 12 a 22 peças entre 1798 e 1804. Em 1805, foi impostado o

maior número de peças, 60, para em 1808 voltar à média de 16 unidades.

Já os panos provenientes do Porto vieram em menor quantidade em relação aos de

Lisboa.

114

Gráfico 9 – Tecidos provenientes do Porto importados pela vila de Itu (em

peças)

Fonte: AESP - Maços de população, Vila de Itu

A concentração da produção de linho no norte de Portugal refletiu-se nos dados de

importação ituana: o maior número de peças de pano de linho, 576 em 1798, enquanto

chegaram 130 peças de Lisboa. O número de peças apresentou um grande declínio até

1801, depois estacionou entre 40 e 60 unidades. A importação das peças de lã também

decaiu entre 1800 e 1801, crescendo e mantendo uma média de 110 peças entre 1802 e

1805, e caindo em 1808. Já os tecidos de algodão e seda não constam nos primeiros anos de

análise, prevalecendo 210 de peças de algodão e apenas 80 de seda, ambos com queda em

1808.

Os dados dos gráficos 8 e 9 confirmam o papel de Lisboa como o “vértice

estratégico do triângulo Portugal-Brasil-Europa”, conforme frisou Nuno Madureira62

. E a

característica produção de linho e lã do norte português, escoada pela cidade do Porto.

Na documentação censitária, na mesma página em que encontramos os mapas de

importação, ao final estão contabilizados os valores das importações e exportações da vila.

62 MADUREIRA, Nuno Luís Monteiro. Inventários... p. 85

115

Curioso notar que um dos itens consiste na “importação dos outros portos do Brasil”, cada

ano com seu valor referente, mas não houve descrição ou menção dos produtos oriundos de

outras localidades.

Em seu trabalho Estrutura industrial e mercado colonial, onde investigou as

relações entre Portugal e Brasil, Jorge Pedreira observou que

Em 1776-1777, os tecidos de algodão remetidos para o Brasil provinham quase

todos (mais de 90%) da Ásia e a parte restante vinha de países europeus: a

indústria nacional, neste sector, era quase inexistente. Os tecidos de linho – as

cambraias, as bretanhas, as holandas, os ruões – procediam da Alemanha (através

do porto de Hamburgo), da França e da Holanda. Os lanifícios eram ainda

principalmente de origem inglesa e as sedas eram francesas ou italianas. No seu

conjunto, os tecidos portugueses formavam menos de um terço das exportações

de têxteis e a variedade dos produtos era diminuta. Entre os artigos nacionais, só

algumas espécies de sedas, os panos de linho e os chapéus (cuja importação estava proibida) eram exportados em quantidades assinaláveis.63

A proveniência dos tecidos em alguns casos era perceptível pelo nome, como os

quatro tipos de linho: a holanda, a holandilha, a bretanha e a bretanha de Hamburgo64

.

Esses entre outros tecidos foram arrolados no estoque da loja de João Fernandes da Costa,

conforme Quadro 14.

Quadro 14 – Tecidos do estoque da loja de João Fernandes da Costa, 1801, Itu

Quantidade Descrição Preço (em réis)

3 côvados Tafetá amarelo mofado $900

2 côvados Tafetá carmezim $800

5 e 1/3 côvados Durante amarelo 1$493

14 côvados Droguete azul meia cor 4$480

8 côvados Baeta azul meia cor 5$120

8 côvados Holanda amarela 2$240

1 côvado Holanda cor de rosa seca $280

1 vara Bretanha $480

8 côvados Ganga azul 2$560

½ côvado Baeta azul $300

3 menos ¾ côvados Droguete alvadio 1$200

7 côvados Chita encarnada 4$480

63 PEDREIRA, Jorge Miguel Viana. Estrutura industrial e mercado colonial. Portugal e Brasil (1780-1830).

Linda-a-Velha: Difel, 1994. p. 55. 64 A Holanda era um “tecido de linho muito fino e fechado ou tapado, que se fabrica na Holanda.” Ainda

segundo Manoela Pinto, “havia holandas finas, ordinárias, grossas, frisadas, riscadas, largas e por vezes,

produzidas com seda.” Já a holandilha, era “tecido grosso de linho, usado principalmente em entretelas. //

Imitação do tecido da Holanda, fabricado na Silésia.” Vide COSTA, Manoela Pinto da. Glossário... p. 149. A Bretanha era a “lençaria de linho fina, que se trazia de Bretanha; a imitação dizem da lençaria desta sorte

Bretanhas de França, de Suécia.” Vide SILVA, Antonio Moraes. Diccionario... v. 1. p. 300.

116

[-] Baeta azul $150

2 menos ¾ côvados Camelão azul com a vara $330

3 peças Bretanha de Hamburgo $680

1 peça Brim riscado $120

1 e ¾ côvados Holandilha $350

6 côvados Holanda parda 1$680

2 e 1/3 côvados Durante azul $653

5 e ½ côvados Camelão azul $880

1 menos 1/3 côvados Brilhante dourado de lã $213

11 côvados Brilhante de lã de flores 2$640

5 paus Lã escarlate $300

Total 32$329

Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de João Fernandes da Costa, folhas 6 verso – 7

Os panos com os maiores preços no estoque de João Fernandes foram a baeta azul e

a chita encarnada, a $640 (seiscentos e quarenta réis) o côvado65

. Curioso os dois tecidos de

algodão e lã serem mais valorizados, pois geralmente os panos de seda como o droguete e o

tafetá eram mais valiosos. Os dois tecidos de droguete receberam o preço de $320

(trezentos e vinte réis) o côvado, o tafetá, $400 (quatrocentos réis) o côvado do carmesim, e

$300 (trezentos réis) o amarelo que se encontrava mofado. As baetas, bretanhas, holandas,

camelão e durante foram avaliados entre $300 (trezentos réis) e $200 (duzentos réis),

valores intermediários. Já o tecido de lã escarlate apresentou o menor valor, $160 (cento e

sessenta réis).66

Além dos tecidos, o estoque contava com um par de meias de seda cor de pérola,

4$480 (quatro mil, quatrocentos e oitenta réis), 5 pares de meia de sarja preta, 4$[-]

(deteriorado), 3 lenços encarnados, 1$200 (mil e duzentos réis), 2 chapéus do Porto, $640

(seiscentos e quarenta réis) e botões de estanho, de casquinha, alguns indicando para

casaca, para véstia e ligas de retrós67

.

Já em relação aos produtos importados, possuímos informações sobre pares de

meias de seda e chapéus.

65 O côvado, antiga medida de comprimento, equivale a 66 centímetros. Vide SÁ, Isabel dos Guimarães.

Glossário Portas Adentro. Disponível em: <http://www.portasadentro.ics.uminho.pt/c.asp> . Acesso em

04.ago.2014. Já a vara, corresponde a 110 centímetros. 66 A lã escarlate e o brim apresentaram valores baixos, mas como estão com as medidas de peça e de pau, não foi possível dimensionar os tecidos e avaliar seu preço. 67 ARQ/MRCI – Inventário de João Fernandes da Costa, 1801, caixa 15, folha 7.

117

Gráfico 10 – Relação das meias de seda importadas por Itu provenientes de

Lisboa

Fonte: AESP - Maços de população, Vila de Itu

A importação de meias de seda no geral segue o padrão observado para as peças de

tecidos de Lisboa e do Porto, com a queda das importações entre o final do século XVIII

até 1802, apresentou certa estabilidade nos dois anos seguintes, um aumento no quinto ano

e sem informações dos anos 1806 e 1807, até o declínio no ano de 1808, final de nosso

recorte temporal. Os dados do gráfico referem-se às meias provenientes do porto lisboeta.

Da cidade do Porto, apenas dois pares do ano de 1805 foram registrados.

Os chapéus foram divididos pela sua origem (Cidade do Porto ou Lisboa)

118

Gráfico 11 – Número de chapéus importados por ano e o porto de origem

Fonte: AESP - Maços de população, Vila de Itu

O número de chapéus provenientes da cidade do Porto é significativo, tendo

alcançado mais de mil chapéus em quatro anos, enquanto Lisboa exportou um número bem

inferior, nos dois únicos anos que aparece. Nesses dados não existem informações sobre os

tecidos e materiais que compunham os chapéus.

Na amostra de inventários orfanológicos que consultamos em Lisboa, um destes, do

ano de 1808, relaciona os produtos de uma loja de chapéus, pertencente à Ana Maria da

Conceição e Domingos José de Pinho. Na loja, havia chapéus designados grossos e finos. O

preço dos grossos variava de $340 (trezentos e quarenta réis) a 1$400 (mil e quatrocentos

réis), enquanto os finos, em média, custavam 3$000 (três mil réis)68

. Além dos artigos

prontos, havia na loja peças de tecido, copas, arcos para chapéus, escovas, papel, botões e

presilhas.69

Os Mapas de importação nos permitem observar a procedência e a quantidade de

mercadorias importadas pela localidade, através dos dados oficiais. Os dados confirmam a

68

ANTT - Inventário de Ana Maria da Conceição, 1808, folhas 20v – 30v 69 ANTT - Inventário de Ana Maria da Conceição, 1808, folhas 27v – 29v.

119

importância de Lisboa como entreposto comercial, e dos produtos produzidos pela região

norte de Portugal, confirmando a tradição na produção do linho e dos chapéus.

2.3 Uso público e doméstico dos trajes

Os homens que compunham os cargos de comando nos corpos de ordenanças eram

escolhidos entre os principais da terra que, por sua vez, recrutavam as tropas a partir de sua

clientela, fortalecendo ainda mais a camada dos grandes proprietários70

. A farda,

juntamente com as insígnias, paramentava o indivíduo possuidor do título e indicava o seu

pertencimento a um grupo seleto que o vinculava ao poder régio. Subordinados às

determinações da Coroa, a este grupo “cabia a reprodução e perpetuação da ordem social e

econômica”71

.

O tenente José Manoel Caldeira Machado era natural da região das Minas Gerais,

foi casado com Dona Maria da Assumpção Camargo, descendente de um importante ramo

da família Camargo da vila de Sorocaba, era uma das poucas mulheres dentre as

pesquisadas que sabia assinar seu nome72

. Proprietário de um engenho de açúcar no bairro

Atuaú e de terras em Capivary (localidade próxima à vila de Itu), José Manoel pertenceu à

Cavalaria de Coritiba, como aponta sua “farda de pano azul fino agaloada de uniforme da

Cavalaria de Coritiba, em bom uso, com calção e colete de fustão branco, avaliada em

12$000 (doze mil réis)”73

. O valor atribuído à farda é tão significativo, que equivale ao

dobro de um traje completo composto de casaca do mesmo pano azul e de colete e calção

de cetim, e também à metade do valor de uma arma de fogo, pertencentes ao espólio de

José Manoel74

.

70 FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Açúcar e colonização... p. 22. 71 FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Açúcar e colonização... p. 23. 72 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel Caldeira Machado, 1808, caixa 17B, folha 1. 73

ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel Caldeira Machado, 1808, caixa 17B, folha 7 verso 74 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel Caldeira Machado, 1808, caixa 17B, folhas 6 verso – 7 verso

120

Caldeira Machado possuía o único ponche (ou poncho) da documentação consultada

da vila de Itu, confeccionado de pano azul, o mesmo tecido da farda, descrito como muito

usado e avaliado em 2$000 (dois mil réis)75

. Segundo Paulo César Garcez Marins,

peça hoje associada exclusivamente aos gaúchos, o poncho era, na primeira

metade do século XIX, sinal característico também dos paulistas. Muito mais

longos que os usados atualmente, os ponchos cobriam quase todo o corpo,

aproximando-se de uma capa. Quando não havia necessidade de proteção contra a chuva e o frio, tinham suas laterais dobradas sobre os ombros, o que tornava

imponente o porte do tropeiro.76

Como o tenente possuía uma farda da Cavalaria de Coritiba, a posse do poncho não

causa estranheza, uma vez que a região de Itu e Sorocaba mantinha intenso contato com a

região sul através das tropas77

.

Assim como José Manoel, José Fiusa possuía o título de tenente, e sua esposa, Dona

Francisca Xavier da Fonseca também sabia assinar seu nome. Seu inventário está

incompleto, mas indica possuir mais de um imóvel, pois próximo da lacuna o escrivão

indicou os bens, que estavam em um sítio78

. Fiusa possuía duas fardas, uma comprida de

pano azul forrada de amarelo, em 32$000 (trinta e dois mil réis) e outra farda curta do

mesmo tecido, avaliada em 3$000 (três mil réis)79

. A presença de duas fardas diferentes

talvez correspondesse a uma diferenciação para ocasiões, a mais simples, para uso

cotidiano e a mais refinada para ocasiões solenes, tal como indicou Camila Silva para os

uniformes utilizados na corte joanina nas primeiras décadas do século XIX80

.

75 ARQ/MRCI - Inventário de José Manoel Caldeira Machado, 1808, caixa 17B, folha 6 verso. 76 MARINS, Paulo César Garcez. Modos de vida dos paulistas: identidades, famílias e espaços domésticos.

Disponível em:

<http://www.terrapaulista.org.br/costumes/vestuario/saibamais.asp#link3> . Acesso em 18.jul.2014. 77 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver em uma vila colonial. Sorocaba, séculos XVIII

e XIX. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. p. 21-41. 78 Nos inventários post-mortem em que o inventariado possuía mais de um imóvel, a avaliação respeitava a

distribuição dos bens por imóvel, indicando o local, como Bens no sítio, Bens na vila antes de arrolar os

objetos. No inventário de Fiusa, primeiro estão arrolados os bens localizados na vila, porém quando inicia o

rol do sítio o inventário termina. 79

ARQ/MRCI – Inventário de José Fiusa, 1804, caixa 16B, folhas 9 – 9 verso. 80 SILVA, Camila Borges da. O símbolo indumentário... p. 91.

121

Analisando o valor monetário que as fardas representavam dentre todas as roupas

que ambos possuíam, compunham os significativos valores de 34% do valor (35$000 de

102$760) para Fiusa, e para Machado, 41% (12$000 de 29$000).

O ferreiro Vicente Gonçalves Braga era também soldado de sertanejas, morador na

rua de Santa Rita, possuía uma farda de uniforme, no valor de 1$600 (mil e seiscentos réis)

e um capacete que foi arrematado em 2$300 (dois mil e trezentos réis)81

. Em relação ao

valor total das roupas, de 5$280 (cinco mil, duzentos e oitenta réis) a farda equivale a 30%

do valor, percentual semelhante ao de Fiusa, o que aponta para uma representação

significativa da farda dentro do espólio têxtil do indivíduo, mesmo em padrões diferentes.

Para a vila de Itu, não encontramos nenhuma menção de farda à venda nos estoques

de lojas. Neste caso, poderiam ser confeccionadas sob encomenda ou mesmo compradas

em São Paulo. Na primeira metade do século XVIII para a comarca de Rio das Velhas,

Drumond encontrou registros de que “os uniformes eram confeccionados em Portugal e

repassados ao soldado periodicamente, que tinha de arcar com o seu custo, uma vez que o

valor era descontado do soldo”82

. A farda de Vicente tinha um custo correspondente ao seu

cargo de soldado, enquanto as de tenente de Fiusa e de Machado deveriam ser mais

refinadas, ainda mais deste último, por pertencer à cavalaria, posto que demandava a posse

de um animal.

O tecido mais comumente empregado para as fardas de nossa amostra foi o

designado pano azul. Dois tenentes e outros dois inventariados que não indicaram seu cargo

possuíam farda deste tecido. Drumond encontrou uma farda de pano azul em Minas Gerais,

e na relação de uma loja também havia fardas de pano denominado apenas entre-fino e

saragoça83

. A farda do alferes Luciano Francisco Pacheco era branca. A do soldado de

sertanejas não foi descrita com o tecido ou a cor. José Fiusa possuía uma farda curta e outra

81 ARQ/MRCI – Inventário de Vicente Gonçalves Braga, 1818, caixa 17B, folhas 15, 17. 82 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material: Produção, comércio e usos na Comarca do

Rio das Velhas (1711-1750). 2008. 217f. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia e

Ciências humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2008. p. 158. 83

DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material ...p. 160 e p. 78.

122

comprida, diferença que não foi possível observar em outros trabalhos do período. Em

relação aos valores estabelecidos para estes uniformes, podemos observar uma gama grande

de preços, que variavam de acordo com o estado de conservação, tecidos e demais

ornamentos, como as dragonas e galões, como descrito nas fardas de José Manoel da

Fonseca Leite e José Manoel Caldeira Machado.

As fardas eram incumbência dos próprios indivíduos, pois não lhes eram fornecidas

pelo Estado. No caso de membros de baixa patente como Vicente Gonçalves Braga que

apresentou um espólio humilde, providenciar e manter uma farda e demais acessórios

poderia constituir em tarefa custosa e um grande encargo, onerando o soldado. Nestes

casos, o pertencimento a uma organização militar talvez representasse mais um fardo do

que um privilégio.

No Museu Nacional dos Coches em Lisboa, estão expostos alguns exemplos de

librés – uniformes utilizados por criados em casas de nobres, datadas do século XIX.

123

Figura 6 - Uniforme de Gala, século XIX

Fonte: acervo da autora/Museu Nacional dos Coches, Lisboa.

Este uniforme de gala à inglesa era de Cocheiro mor da Casa Real, composto de

casaco, calção de lã vermelha, colete azul agaloado, chapéu tricórnio com pluma e sapato

de polimento com fivela. A cor vermelha predominante no uniforme está relacionada à

Casa Real portuguesa. No capítulo X da Lei Pragmática de 1749, está a menção à cor: “Hei

por bem reservar a cor encarnada para as casacas, capotes, e reguingotes das librés da Casa

Real; e nenhum particular poderá mais usá-la nas librés dos seus criados, exceto em

124

canhões, forros, meias, e vestias”84

. A legislação abrangia todos os territórios de domínio

português, entretanto Silvia Lara apontou diferentes registros de autoridades relatando a

desobediência nos trajes em terras brasileiras85

.

Considerando a importância da participação dos moradores nas solenidades e

celebrações religiosas, analisamos a indumentária religiosa arrolada no inventário do padre

Antônio Francisco da Luz, e os hábitos de ordens terceiras que os ituanos leigos

dispunham.

Morador da vila de Itu, o padre Antônio no momento de sua morte, possuía vestes

religiosas, como sobrepeliz e casula. A primeira consistia em uma veste branca, utilizada

sobre as roupas. Antônio possuía quatro peças, uma com o colarinho bordado, outra com

detalhes em rendas, avaliadas em 1$200 (mil e duzentos réis) a mais simples e usada, e em

4$800 (quatro mil e oitocentos réis) a mais adornada e nova. O sacerdote possuía também

um vestido comprido de gala com cabeção e barrete, avaliado em 8$640 (oito mil,

seiscentos e quarenta réis) e uma casula de damasco branco e encarnado, no valor de 6$400

(seis mil e quatrocentos réis). Do período, existem remanescentes de casulas como o

exemplar de fio de ouro e seda pertencente ao Museu de Évora, Portugal:

84 Appendix to "Ordenacoẽs e leys do reyno de Portugal, confirmadas, e estabelecidas pelo senhor rey D. Joao

IV. Novamente impressas, e accrescentadas com tres colleccoẽs: a primeira, de leys extravagantes; a segunda,

de decretos, e cartas; e a terceira, de assentos da Casa da Supplicacao e Relacao do Porto." Lisboa: No

Mosteiro de S. Vicente de Fora, Camara Real de Sua Magestade, 1747. Capítulo X. Disponível em: <http://archive.org/stream/appendixdasleyse00port#page/n38/mode/1up> . Acesso em 03.ago.2014. 85 LARA, Sílvia Hunold. Fragmentos setecentistas... p. 91-113.

125

Figura 7 – Casula do século XVIII

Fonte: < http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=13613> .

Acesso em: 10.set.2014

Confeccionada em seda vermelha, possui bordado em fios de ouro e aplicação de

galão dourado. Já a casula do padre Antônio era branca e encarnada. Teresa Pacheco

Pereira referindo-se ao simbolismo das cores ressaltou que “o branco e vermelho aparecem

muitas vezes associados e denotam a dupla missão espiritual e temporal”86

. O vermelho, de

acordo com a autora,

é universalmente considerado como símbolo de vida, cor do fogo e do sangue.

Fabricado a partir de corantes sempre muito dispendiosos, foi, talvez como

reminiscência da púrpura romana, a cor dos trajes de festa, dos mantos reais.

Tornar-se-á a cor das vestes dos cardeais e permanecerá como símbolo da

majestade e glória.87

John Gage assinalou que “quase sempre, foi apenas no contexto das cerimônias

públicas que a cor alcançou a população como um todo: a hierarquia das cores como um

sistema de valores, no qual o vermelho é o topo.”88

O emprego de tecidos luxuosos, mais

86 PEREIRA, Teresa Pacheco. Sobre o trilho da cor. Para uma rota dos pigmentos. Lisboa: Ministério da

Cultura/Instituto dos Museus e da Conservação, 2010. p. 15. 87 PEREIRA, Teresa Pacheco. Sobre o trilho da cor... p. 15 88THE SIGNIFICANCE OF RED. In: GAGE, John. Colour as meaning: art, science and symbolism. London:

Thames&Hudson, 2001 Apud PAULA, Teresa Cristina Toledo de. Reflexões sobre a cor na conservação/restauração. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 6/7, p. 149-159 (1998-1999). Editado em

2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v6-7n1/07.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2014.

126

nobres nos paramentos litúrgicos não são empregados ao acaso, pois como Soraya Coppola

frisou,

no universo religioso, os tecidos formam o principal meio através do qual se apresenta o Teatrum Sacrum, onde se materializa a devoção e o culto, fruto da

identificação cultural, religiosa e social da coletividade. É preciso que os gestos e

palavras adquiram um sentido cerimonial, formando códigos precisos que fazem

parte de um ritual, resultando na celebração do rito religioso.89

Somados os valores dos trajes religiosos do padre Antônio, a quantia de 28$240

(vinte e oito mil, duzentos e quarenta réis), era mais que o dobro que possuía em joias,

12$000 (doze mil réis), mas mesmo sendo alto, este valor correspondia à apenas 0,32% do

total de bens, que se encontrava na faixa de oito contos de réis, devido aos altos valores dos

bens de raiz e escravos90

.

Em celebrações religiosas os leigos membros de irmandades ou ordens terceiras

também aparentavam o pertencimento ao grupo através dos hábitos. Dos sete hábitos

arrolados nos inventários pesquisados em nossa amostra, cinco eram da Ordem Terceira do

Carmo. Nardy Filho observou que a ordem carmelita era composta por membros das

famílias tradicionais ituanas91

. Ao observar as avaliações dos hábitos, os valores apontam

para a distinção, pois um hábito com túnica e escapulário novo valia 8$000 (oito mil réis), o

dobro do valor de um capote de baetão usado, 4$000 (quatro mil réis) e representava 32,2%

de suas roupas.92

Eram poucas as pessoas que poderiam dispor de uma quantia próxima a

dez contos de réis para um hábito, quanto mais para adentrar no seleto círculo de uma

ordem com essa característica elitista.

89 COPPOLA, Soraya Aparecida Álvares. Costurando a Memória: o acervo têxtil do Museu Arquidiocesano

de Arte Sacra de Mariana. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). 2006. Escola de Belas Artes.

Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006. p. 9. 90 ARQ/MRCI – Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A. 91

NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 118-119 92 ARQ/MRCI – Inventário de José Leme de Oliveira, 1800, caixa 14A.

127

Um hábito do Carmo muito usado valia 6$000 (seis mil réis), como nos bens de

Inácio Leite da Silveira e um velho chegava ao preço de 3$200 (três mil e duzentos réis),

como o que pertenceu a Inácio Pacheco da Costa93

.

No rol dos bens do capitão José Manoel da Fonseca Leite, existiam dois hábitos, um

de terceiro do Carmo no valor de 12$000 (doze mil réis) e um da Ordem de São Francisco,

avaliado em 2$560 (dois mil, quinhentos e sessenta réis). Este foi o único hábito

franciscano arrolado em inventários, pois em quatro testamentos os testadores declararam

pertencer à ordem franciscana, mas em seus bens não havia menção da posse de tal

artefato94

.

Além dos hábitos, outra peça de vestuário empregada por confrarias religiosas eram

as opas, vestes sem mangas usadas sob o traje civil95

. Em nosso universo, encontramos

quatro opas, todas da cor carmesim e sem menção à ordem ou irmandade a qual

pertenciam96

.

Do universo feminino, os mantos e mantilhas foram registrados por viajantes que

visitaram Portugal no final do século XVIII, como o autor da Figura 8, James Murphy.

93 ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17A, folha 11 verso; inventário de Inácio

Pacheco da Costa, 1806, caixa 16A, folha 8. 94 Neste capítulo abordamos os valores monetários e a questão utilitária dos hábitos de ordens terceiras. No

terceiro capítulo analisamos de forma mais aprofundada a questão simbólica dos hábitos. 95 Vocábulo Opa. Vide SÁ, Isabel dos Guimarães. Glossário Portas Adentro, disponível em:

<http://www.portasadentro.ics.uminho.pt/o.asp> . Acesso em 03.set.2014. 96

ARQ/MRCI - Inventários de João Leite Penteado, Mariana Leite Pacheco, Antonio Antunes Pereira e José

Manoel Caldeira Machado. Caixas 5, 10, 16, 17B.

128

Figura 8 – Exemplo de manto e mantilha, final do século XVIII, Portugal.

Fonte: “A Portuguese Merchant with his wife and maid servant”. MURPHY, James. Travels in

Portugal. Londres, A. Strahan, T. Cadell Jr e W. Davis, 1795, p. 204. Retirado de: <http://myneighborwellington.blogspot.com.br/2013/09/portuguese-costume-and-society-in.html> . Acesso

em 01.dez.2014.

Como apontou Sílvia Lara, a esposa do mercador distingue-se da sua criada por

vestir uma mantilha, véu fino cobrindo o rosto, enquanto a criada trajava-se com o manto,

com a cabeça descoberta97

. O hábito de trajar um longo manto inclusive cobrindo a cabeça

é uma tradição herdada do cerimonial aristocrático português, como frisou Paulo César

Garcez Marins98

.

Na vila de Itu todos os mantos eram de seda, ao passo que em Lisboa, eram de seda,

de nobreza, de cetim e algumas vezes levavam rendas. Já em Lisboa as mantilhas podiam

97 LARA, Sílvia Hunold. Fragmentos setecentistas... p. s/n, fólio colorido. 98 MARINS, Paulo César Garcez. “Modos de vida dos paulistas: identidades, famílias e espaços domésticos”.

In: SETUBAL, Maria Alice (coord.). Modos de vida dos paulistas: identidades, famílias e espaços domésticos. Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura Ação Comunitária, São Paulo: CENPEC,

Imprensa Oficial do estado de São Paulo, 2004. v. 2. p. 125

129

ser de veludo, lemiste, cetim e tafetá. Em Itu havia uma manteleta, “espécie de lenço

grande, com que as mulheres de Castro Laboreiro cobrem a cabeça”99

Os mantos são peças importantes do vestuário feminino para uso público, além de

indicarem distinção, pois nos exemplos observados são confeccionados com tecidos nobres,

estão relacionados à tradição, ao hábito de se cobrir a cabeça e grande parte do corpo

quando circulavam em espaços públicos100

.

Richard Sennett apontou para uma mudança importante em relação ao vestuário

entre o final do século XVII e meados do século XVIII na Europa, quando passa a vigorar

uma diferença entre a roupa a ser vestida na rua e a do espaço doméstico. Segundo o autor,

no ambiente doméstico do século XVIII “roupas folgadas e simples ganhavam a preferência

de todas as classes”101

.

O timão foi relacionado ao uso feminino por Márcia Pinna Raspanti: “para ficar em

casa e até receber as visitas, as mulheres adotavam um traje bem simples e bem mais

liberal: um tipo de camisolão ou camisa de mangas curtas, de tecido leve e transparente,

decotado. Eram chamados de „timão‟ ou „lavapeixe‟”102

. Já Marco Aurélio Drumond

localizou esta peça para ambos os sexos103

. Cláudia Mol identificou 14 peças de timão

dentre as vestimentas das mulheres forras104

. De acordo com Mary Del Priory, o timão era

“espécie de confortável camisolão branco em tecido leve, ocupavam-se nas atividades

domésticas”105

.

99 Verbete manteleta, Vide Dicionário Aulete. Disponível em:

<http://www.aulete.com.br/manteleta#ixzz3LvQboJLT> . Acesso em 04.dez.2014. 100 No terceiro capítulo abordaremos de forma mais aprofundada a questão simbólica que envolve a utilização

dos mantos. 101 SENNETT, Richard. O declínio do homem público... p. 91 102 RASPANTI, Márcia Pinna. O Brasil sob a perspectiva da Moda. Disponível em:

<http://historiahoje.com/?p=1891> . Acesso em 28.jul.2014. 103 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material ...p. 112, 124. 104 MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres forras...p. 165. 105 DEL PRIORY, Mary. “Mulheres de açúcar: Vida cotidiana de senhoras de engenho e trabalhadoras da

cana no Rio de Janeiro, entre a Colônia e o Império.” In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 169, p. 57-90, 2008. p. 78.

130

Em nossas fontes, encontramos quatro timões: dois pertencentes ao padre Antonio

Francisco da Luz, um no inventário de Inácio Leite da Silveira e um no espólio de José

Gonçalves de Barros. Apesar de relacionado apenas ao uso feminino por Márcia Raspanti e

Mary Del Priory, pelos registros na documentação ituana, nos parece que era uma

vestimenta para ambos os sexos.

O timão de baeta era cor-de-rosa, estava em bom uso e foi avaliado em 3$200 (três

mil e duzentos réis), de José Gonçalves de Barros. O que consta no inventário de Inácio

Leite da Silveira era de pano azul, avaliado também em 3$200 (três mil e duzentos réis).

Nos bens do padre Antonio Francisco da Luz, está arrolado um timão comprido de baetão

pintado e um timão de chita106

. Outras peças de uso doméstico encontradas foram o

chambre e o penteador.

Francisco Paes de Siqueira possuía um chambre de pano riscado de fora, avaliado

em 1$000 (mil réis).107

O penteador consistia em uma peça “que se põe ao redor do

pescoço, e com que se cobrem os ombros, por não sujar o vestido com cabelos, ou carepa

quando alguém se penteia.”108

106 ARQ/MRCI - Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A . folha 2. 107 ARQ/MRCI – Inventário de Francisco Paes de Siqueira, 1799, caixa 9, folha 4 verso 108

Carepa, segundo o mesmo dicionário, é uma caspa miúda. Vide BLUTEAU, Raphael. Vocabulario... v. 6,

p. 402. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/1/penteador>. Acesso em: 2 ago. 2014.

131

Figura 9 – Penteador, século XIX

Fonte: Acervo da autora, Museu Nacional do Traje/Lisboa

O penteador da Figura 9 pertence ao acervo do Museu Nacional do Traje de Lisboa,

é datado do final do século XIX, de tafetá de linho e algodão branco com entremeios de

renda de bilros. Na amostra de Lisboa havia 15 penteadores, de algodão, bretanha, cavalim,

linho. Em Itu, apenas dois sem informação de seu tecido.

O inventário póstumo fornece como uma fotografia, a relação dos bens do indivíduo

no momento de sua morte. Relação não fidedigna, pois alguns pertences poderiam ter sido

distribuídos, doados entre a convalescência e o óbito. As poucas vestimentas refletem um

longo período de enfermidade, onde o inventariado estivesse possivelmente acamado,

situação em que as peças gastas não foram repostas nem adquiridas mais novas. Os casos

em que não existem registros de roupas dos cônjuges nos inventários, bem como nenhuma

peça de roupa de criança fortalece a hipótese de ser uma prática disseminada ocultar as

vestes de viúvos e menores, para não entrarem na partilha ou irem a leilão nos casos

extremos.

132

De forma geral, os dados coletados nos inventários post-mortem da vila de Itu e de

Lisboa nos permitem observar um padrão semelhante nos trajes, tanto masculino quanto

feminino. A diferenciação percebida foi em relação aos tecidos empregados, mais refinados

e variados os lisboetas, por exemplo, a nobreza, um tecido de seda não constou nenhuma

vez na amostra ituana.

O diferencial dos dois espólios mais ricos em relação aos demais foram as peças de

roupas confeccionadas com cetim e cabaia. A seda, apesar de valiosa, era razoavelmente

comum em Itu e os valores atribuídos não foram tão significativos quanto à cabaia e o

cetim.

A roupa masculina na vila de Itu seguia o padrão europeu, das três peças: casaca,

véstia e calção. Observaram-se algumas variações para peças de roupas e nomenclaturas,

como, por exemplo, para tipos de casaco, havia o rodaque, casaca e casacão; capote e

gabinardo para as peças com capuz. Além do poncho, que indicou a influência da

vestimenta da região sul do território. As duas peças que mais apresentaram diversidades de

tecidos empregados foram o colete e o calção.

A amostra de roupa feminina, embora numericamente inferior que a masculina,

apresentou um valor considerável em relação aos preços do vestuário dos homens. O

vestido e as roupas (com manto ou avental) foram avaliados com valores consideráveis, o

que causou impacto na média dos valores monetários obtido pelas roupas femininas em

geral. Tanto o número quanto a diferença entre os valores de saias e vestido ou roupas

completas apontam o padrão dos trajes no período, onde as saias eram mais acessíveis e,

consequentemente, mais comuns que as roupas inteiras. Como esperado, poucas roupas “de

baixo” foram registradas, para ambos os sexos.

As cores mencionadas nas descrições das roupas acompanharam a tendência

francesa de cores variadas e diversos matizes, de tons escuros, claros e “meia-cor”,

utilizados na Europa em meados do século XVIII, diminuindo gradativamente até 1780,

com o emprego de tons mais sóbrios e escuros. Na vila de Itu, durante a primeira década do

século XIX as roupas masculinas eram as mais coloridas.

133

Os objetos de uso pessoal, relacionados à aparência e à higiene dos inventariados

apareceram regularmente na documentação. Os seis pares de sapatos contrastam com as 41

fivelas de sapatos, indicativos da presença de calçados em algum momento. Além das

fivelas específicas de sapatos, constam também as de calção e de gravata em número

razoável. O chapéu foi o item mais comum na amostra, tanto para homens quanto para

mulheres, enquanto apenas uma cabeleira foi registrada.

Em relação à porcentagem que as vestimentas representavam nos inventários

póstumos, tanto para a amostra da vila de Itu quanto para a de Lisboa, os números no geral

são semelhantes, pois 47% dos inventariados tinham as roupas representando abaixo de 2%

do valor total de bens.

No capítulo seguinte procedemos à análise individual, buscando compreender

melhor a relação entre os sujeitos e seus pertences.

134

135

Capítulo 3 “Cerzindo” objetos e sujeitos: consumo, circulação e

representação das vestimentas na vila de Itu

O presente capítulo busca analisar a importância da materialidade dos artefatos no

cotidiano da sociedade de Itu entre os anos de 1765 e 1808, considerando as práticas de

sociabilidade específicas da América Portuguesa enriquecida pela atividade canavieira.

Como pontuou Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, a dimensão material é considerada

como uma plataforma de observação da sociedade do passado, ou seja, permite avaliar a

relação entre sujeitos e objetos de forma mais aprofundada.1 Observamos a família por

meio do domicílio, tomado como ponto de partida para a compreensão do conjunto de bens,

pois o inventário póstumo reúne o conjunto de objetos de que dispunham no momento da

morte de um familiar.

Investigaremos os padrões de consumo, buscando compreender o uso de peças de

roupas a partir dos dados presentes nos inventários póstumos e dos testamentos. Partindo

por exemplo, da propriedade de imóveis, traçamos as possíveis localidades de sociabilidade

e frequência dos personagens de nossa amostra. Evidenciamos através dos indivíduos

ituanos, padrões de consumo, de uso, de transferência das vestimentas, bem como alguns

dos significados simbólicos que perpassavam as vestimentas nos séculos XVIII e XIX.

3.1 Padrões cotidianos de vestuário

O inventário póstumo dos bens que um indivíduo dispunha em seu domicílio a

princípio nos induz a considerá-lo como uma relação de todos os bens acumulados durante

sua vida. Entretanto, da mesma forma que adquirimos, também nos desfazemos, trocamos,

vendemos, doamos e perdemos objetos em muitas ocasiões. Os inventários post-mortem

1 MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. “Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares.” In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, nº 45, pp. 11-

36, 2003.p. 26.

136

que dispomos para análise da cultura material dos séculos dezoito e dezenove nos fornecem

uma gama de dados sobre um momento específico não apenas de um indivíduo, mas de sua

família e de sua casa, pois todos os bens móveis e imóveis eram arrolados e avaliados a fim

de garantir a sobrevivência dos filhos menores quando da morte de um genitor.

Neste sentido, a definição de consumo dos antropólogos Mary Douglas e Baron

Isherwood refere-se a “um uso de posses materiais que está além do comércio” e é central

para analisarmos a posse, a utilização e a circulação dos objetos enquanto materialidade da

cultura.2 Os objetos arrolados nos inventários post-mortem foram adquiridos em algum

momento da vida daquele indivíduo, apresentam, às vezes, vestígios de uso (quando

descritos como velhos, gastos) e até ali faziam parte do conjunto de bens de um domicílio.

Depois da partilha, muitas vezes a unidade desse conjunto de objetos era desfeita, sendo

estes repartidos entre o cônjuge e herdeiros. Também parte era direcionada à arrematação

pública, para ser convertida em dinheiro com o intuito de quitar as dívidas.3

Como salientou Daniel Miller, na qualidade de objetos mais pessoais, a vestimenta

“desempenha papel considerável e atuante na constituição da experiência particular do eu,

na determinação do que é o eu.”4 As roupas são necessárias para proteção do corpo, atuam

como indicadores de status, e são compreendidas como artefatos que nos compõem.

Observamos através dos inventários póstumos o consumo de roupas com o intuito de

compreender como essas peças eram utilizadas pelo seu proprietário em vida, e após sua

morte, de acordo com os registros de partilha e arrematação. Elegemos alguns personagens

do universo ituano para evidenciar algumas questões envolvendo os sujeitos e suas roupas.

2 DOUGLAS, Mary, ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de

Janeiro: Editora UFRJ, 2004. p. 102-114 3 Nos inventários post-mortem após a descrição e avaliação dos bens, os valores atribuídos a estes eram

somados, denominado Monte-mor. Somadas as dívidas a receber (ativas) e subtraídas as dívidas a pagar

(passivas), resta o Monte-menor, dividido em duas partes, denominadas meação. Se o inventariado possuísse

um cônjuge, este receberia a Meação (metade) e a outra meação seria dividida em duas partes menores, um

terço do valor (chamada Terça) era destinada a livre deliberação do inventariado, geralmente registrada como

últimas vontades nos testamentos. E finalmente, dois terços do valor eram destinados aos herdeiros. 4 MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro:

Zahar, 2013. p. 63.

137

Em 1803 o oficial ferreiro e soldado de sertanejas, Vicente Gonçalves Braga

declarava ao Capitão Eufrázio de Arruda Botelho, seu recenseador, viver de ferragens e não

possuir nenhum bem.5 Ele e sua esposa Ana Maria da Silva eram pardos e viviam em uma

casa na Rua de Santa Rita, região central ituana.

Quando Vicente faleceu em 1808, a soma de seus bens era de aproximadamente

200$000 (duzentos mil réis) e sua dívida, contava em torno de 70$000 (setenta mil réis).

No exercício da função de soldado, Vicente dispunha de uma farda, um capacete e uma

espada. Normalmente o ferreiro trajava uma véstia de chita e um par de calças de ganga ou,

poderia optar pelo conjunto de colete e calças de bretanha verde. Este último conjunto,

avaliado em seu inventário na quantia de 1$760 (mil e setecentos e sessenta réis), apresenta

valor semelhante à farda, no valor de 1$600 (mil e seiscentos réis), e à soma de outras duas

peças mencionadas, 1$920 (mil novecentos e vinte réis).

Somadas as peças de roupas, o valor de 5$280 (cinco mil, duzentos e oitenta réis),

ainda é menor do que o de suas armas que foram a leilão: uma espada arrematada em 2$000

(dois mil réis) e uma espingarda por 4$000 (quatro mil réis).6 As roupas também valem

menos do que as cinco fivelas de prata do inventariado, avaliadas em 10$980 (dez mil,

novecentos e oitenta réis). A sua casa, porém, foi avaliada em 100$000 (cem mil réis).

Contabilizando o valor da roupa, este corresponde a 2,63% de seus bens. De forma geral, o

valor das peças de roupas não alcançou na média 3% do valor total dos bens de Vicente. Os

valores das categorias bens de raiz e escravos impactam na representação das roupas no

espólio. Desta forma, quando somamos as demais categorias e excluímos imóveis e

escravaria, as roupas passam a ocupar de 3,4% até 23% dos espólios em geral.

Ao final do inventário de Vicente, encontramos uma relação de itens que ele devia a

Antônio Jose Ferraz Ferreira, possivelmente um mercador, mencionado como morador da

vila de Itu.7 Vejamos os itens arrolados:

5AESP, Maços de População de Itu, 1803, lata 74. Apud. SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura Canavieira,

trabalho livre e cotidiano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. p. 83. 6 ARQ/MRCI - Inventário de Vicente Gonçalves Braga, 1808.

7 Não foi possível precisar se Antônio José Ferraz Ferreira era comerciante.

138

Quadro 15 - Bens relacionados na dívida de Vicente Gonçalves Braga com

Antônio José Ferraz Ferreira, 1808

Categoria de bem Descrição Avaliação

(em réis)

Ferramentas 1 lima número 14, 1 lima número 11,

1 lima grande.

$800

Objetos de uso

pessoal relacionados

à aparência

Um chapéu de Braga

2$400

Matérias-primas

Meia vara de cassa, uma meada de linho, uma vara de

fita, um côvado de baeta, meia vara de cadaço,

resto de 3 côvados de baeta, retrós azul

2$770

Total 5$970

Fonte: ARQ/MRCI, Inventário de Vicente Gonçalves Braga, folha 20.

A relação de bens apresenta três ferramentas (limas), um chapéu importado de

Braga, tecidos em quantidades variadas a saber: cassa, linho, baeta, e outros componentes

empregados nas costuras, como fita, retrôs e cadaço, que consiste em uma fita de linho

branco ou de cor, segundo Moraes Silva8. Também consta um item R

el em conserto, apenas

com o valor de $220 (duzentos e vinte réis) referentes às peças de roupas que o

inventariado teria enviado para reparos.9 A relação da dívida indica os materiais

consumidos por Vicente e sua família para a confecção de roupas, exceto as três limas.

Vicente dispunha de tecidos comuns, como linho, baeta e cassa, além de retrós e fitas para

encomendar peças ao alfaiate ou costureira da vila, pois nas dívidas existe menção a

conserto de roupas.

Outra moradora da Rua de Santa Rita era Quitéria de Oliveira, recenseada em 1803

e inventariada no ano seguinte. No censo, contava com 74 anos, solteira, costureira, sendo

que residia com uma escrava em sua casa.10

Seu espólio era modesto, no valor de 313$560

(trezentos e treze mil, quinhentos e sessenta réis). Relacionado ao ofício, Quitéria possuía

em sua casa uma vara e meia de ruão, no valor de $720 (setecentos e vinte réis) e retalhos

8 SILVA, Antonio Moraes. Dicionario da língua portuguesa, vol. 1. p. 317. Disponível em: <

http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/2/cadar%C3%A7o> . Acesso em 17/10/2014. 9 ARQ/MRCI - Inventário de Vicente Gonçalves Braga, 1808. 10

ARQ/MRCI - Inventário de Quitéria de Oliveira; AESP - Maços de População da vila de Itu, microfilme,

rolos 85, 87, 88, 89, 90, 91.

139

de pano de linho avaliados em $600 (seiscentos réis). De roupas, possuía três saias de baeta,

duas pretas e uma azul. Uma destas saias preta era velha e foi avaliada em $640 (seiscentos

e quarenta réis), a azul, em $480 (quatrocentos e oitenta réis) e a segunda preta mais nova,

em 1$600 (mil e seiscentos réis). Em relação a objetos de uso pessoal, além das referidas

saias, Quitéria contava com dois pares de brincos de ouro.11

Quitéria teve como herdeiros cinco sobrinhos. Alguns de seus bens foram

arrematados: sua escrava, sua casa, seus brincos de ouro, um tacho, um prato, uma caixa, e

enxadas. Até itens de baixos valores foram levados a pregão, porém, suas saias e as roupas

de casa compostas de sete toalhas de algodão e linho, e uma fronha de algodão não foram

conduzidas a leilão. Quitéria possuía um mínimo de objetos de variadas categorias,

necessários à sua sobrevivência. Os itens que chamam a atenção são três barras de ouro,

numeradas, avaliadas em 59$242 (cinquenta e nove mil, duzentos e quarenta e dois réis),

33$686 (trinta e três mil, seiscentos e oitenta e seis réis) e 24$482 (vinte e quatro mil,

quatrocentos e oitenta e dois réis), respectivamente, as quais correspondiam a 37,4% de

seus bens.

A princípio podemos considerar as joias, os adereços e peças de ouro e prata apenas

como itens importantes para a aparência, complementando o traje. No entanto Nuno

Madureira ressaltou que os objetos de ouro e prata possuem um “estatuto duplo: são, por

um lado, bens com valor de uso pessoal – adornos e adereços -, e, por outro, formas de

entesouramento.”12

Além do valor material, a posse de ouro e prata estava associada a um

valor simbólico relacionado à boa conduta e sucesso na administração dos bens familiares,

materializada na transmissão destes entre as gerações. O autor apontou também que a

acumulação de peças de ouro e prata correspondia a uma espécie de seguro contra

inesperados, situação na qual se conseguia converter rapidamente os metais preciosos em

papel moeda.

11 ARQ/MRCI - Inventário de Quitéria de Oliveira, folha 3 verso. 12 MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários: Aspectos do consumo e da vida material em Lisboa nos finais do Antigo Regime. Dissertação de Mestrado em Economia e Sociologia Históricas, século XV – XX. Faculdade

de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. 1989. p. 65

140

Em relação à classificação dos inventários póstumos analisados em nossa

amostragem, não empregamos o conceito de pobreza, riqueza e decadência. Conforme

sugeriu Milena Maranho, estes conceitos não são palavras neutras, portanto, não possuem

significados estáveis.13

Pela perspectiva antropológica, Mary Douglas tratou a pobreza a

partir da sua relação com o contexto social e não como a ausência ou falta de posses.14

Nuno Madureira ao trabalhar com inventários póstumos lisboetas assinalou que “a

ideia de pobre veiculada pelos depoimentos é a da canalização de todos os recursos para as

despesas do dia-a-dia sem hipótese de acumulação de reservas de valor. Não ter o suficiente

equivale a não ter dinheiro para poupar.”15

O autor considerou dois valores em seu trabalho

como critérios: os espólios inferiores a $400 (quatrocentos réis) foram denominados como

pobres e aqueles menores de $200 (duzentos réis) considerados como miseráveis.16

Optamos por não empregar uma classificação baseada em valores, pois é importante

observar a composição dos bens além das somas monetárias. Quitéria seria considerada

pobre pela classificação que utiliza a soma do espólio, empregada por Madureira, mas as

barras de ouro e a escrava que a costureira possuía são indicativas da variedade de padrões

de bens que existiam. Consideramos inviável adotar uma classificação, indicando um

indivíduo como pobre, se este possuía dois dos bens mais significativos no período:

escravaria e metais preciosos. Por menores que fossem os valores atribuídos aos bens,

como no caso da escrava de Quitéria, a carga simbólica que representavam é muito

importante para ser desconsiderada, ao se privilegiar os valores monetários na avaliação.

Para efeito de análise, adotamos então a comparação entre os próprios inventariados da

amostra ituana.

A principal documentação utilizada contempla os domicílios mais abastados ou pelo

menos os que possuíam um mínimo de bens a ser avaliado e cuidado para que os herdeiros

13 Sobre a discussão sobre a decadência econômica da vila de São Paulo no período da mineração aurífera, Cf.

MARANHO, Milena Fernandes. A opulência relativizada: níveis de vida em São Paulo do século XVII (1648 – 1682).

Bauru, SP: EDUSP, 2010, capítulos I e II e BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil:

negócios e poderes em São Paulo Colonial (1711 – 1765). São Paulo: Alameda, 2010. p. 35-54. 14 DOUGLAS, Mary, ISHERWOOD, Baron. O mundo...p. 35. 15

MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários...p. 17-18. 16MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários...p. 18

141

menores não fossem prejudicados na partilha ou com espoliação antes desta. Apesar de

representar uma amostra da população, os inventários nos permitem avaliar os diferentes

padrões de consumo entre indivíduos de diferentes faixas econômicas. Vejamos um outro

domicílio ituano.

Manoel Antônio Leite perdeu no ano de 1806 seu pai Inácio Leite da Silveira, e sua

esposa Ana Maria da Silveira, com quem tinha um filho de dois meses, Antônio. Inácio

possuía um sítio de vivenda com engenho no bairro do Cajuru e uma casa na rua do

Conselho. O casal provavelmente vivia no sítio já que no censo de 1803 o senhor de

engenho Inácio declarou viver com três filhos e na partilha de bens de Ana Maria, cabia a

Antônio parte do referido sítio de seu avô Inácio.

Além dos itens têxteis, Ana Maria dispunha de poucos bens: dois escravos, três

vacas e um boi, uma caixa. O que notamos é que apesar de escassos, os bens de Ana Maria

eram relevantes, ou seja, de considerável valor econômico. Quanto às roupas da casa,

dispunha de três toalhas de algodão, sendo uma de mesa, um par de lençóis de algodão já

usado, contabilizando 2$980 (dois mil, novecentos e oitenta réis). Ainda encontramos dois

pedaços de pano de linho e de chita, no valor de 1$520 (mil, quinhentos e vinte réis) e sete

saias de tecidos variados: droguete, pano azul, brilhante, chita, baeta, guingão e linho,

avaliadas em 15$080 (quinze mil e oitenta réis), uma camisa de Bretanha com gola

rendada, 1$600 (mil e seiscentos réis) e, por fim, uma peça de baeta sem identificação, em

2$000 (dois mil réis). Também possuía um par de brincos, um laço e um crucifixo no valor

de 2$700 (dois mil e setecentos réis) e um par de fivelas de sapato com o preço de 1$500

(mil e quinhentos réis).

Ao analisar pelos valores, a proporção das roupas em relação ao total de bens de

Ana Maria é de 2,7%. Excluindo os escravos e bens de raiz, as vestimentas perfaziam

44,7% dos pertences de Ana Maria. A inventariada possuía 646$140 (seiscentos e quarenta

e seis mil, cento e quarenta réis) em bens, mais 73$000 (setenta e três mil réis) em dívidas a

receber, totalizando 719$140 (setecentos e dezenove mil, cento e quarenta réis). Esta

comparação monetária evidencia a importância das vestimentas frente aos demais bens.

142

Ana Maria mostrou-se mais abastada em relação a Vicente e Quitéria. Porém, se

observarmos os três personagens em relação à composição dos bens que possuíam, notamos

mais semelhanças do que diferenças. A diferença no caso de Ana Maria foi contabilizar

parte do sítio que seu sogro (senhor de engenho) possuía, no valor de 340$200 (trezentos e

quarenta mil e duzentos réis). Os bens se assemelham ao número reduzido de escravos,

joias e roupas da casa. Quitéria e Ana Maria possuíam peças de roupas de um padrão muito

semelhante, composto de saias e camisas. Porém, na variedade, Ana Maria e Quitéria

dispunham de quantidade e peças distintas, considerando também o estado e os tecidos de

suas roupas.

Um dos conjuntos de vestuário feminino mais representativo da amostra ituana foi o

de Mariana Leite Pacheco, composto por manto e saia de seda, avaliados em 3$200 (três

mil e duzentos réis) e 15$000 (quinze mil réis) respectivamente, saia e espartilho de veludo

nos valores de 12$800 (doze mil e oitocentos réis) e 5$000 (cinco mil réis) nessa ordem,

duas peças identificadas como rasgão17

, um de brilhante outro de veludo em 4$800 (quatro

mil e oitocentos réis) e 4$480 (quatro mil, quatrocentos e oitenta réis) e um par de sapatos

de seda, avaliado em 1$000 (mil réis).18

O vestuário de Mariana, avaliado no total por

45$280 (quarenta e cinco mil, duzentos e oitenta réis) era composto por tecidos nobres, e

um item incomum para a amostra, o espartilho.

O domicílio do capitão José Manoel da Fonseca Leite, mais abastado do que os

inventários acima mencionados, indica-nos dados também interessantes.

Em 1772, José Manoel casou-se com Josefa Maria de Góes, filha do capitão-mor

Antônio Pacheco da Silva. Natural de Itu registrou seu testamento em 1785, tendo falecido

quatro anos depois, em 1789. Seu espólio consta entre os cinco maiores da amostra, e

estava dividido entre a propriedade no bairro do Pirapitingui e em um sobrado localizado na

rua do Carmo.19

No Pirapitingui, a propriedade era formada por duas casas, plantação de

cana, casa de engenho e de moinho, sendo avaliada em 6:000$000 (seis contos de réis). No

17 Não foi possível identificar o que seria rasgão. 18

ARQ/MRCI – Inventário de Mariana Leite Pacheco, 1779. Folha 4. 19 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, 1798.

143

sítio havia dez pares de lençóis de linho, quatro de algodão e um par de bretanha. Quatro

pares de fronhas de linho, todas com rendas, seis pares de bretanha, um cortinado de cama

de algodão, quatro toalhas de mão, quatro toalhas de mesa, seis toalhas sem especificar o

uso, sendo três de linho, e três de algodão, duas colchas de chita forradas com durante e três

cobertores de papa. De uso pessoal, um casacão de baeta azul e dois chapéus de sol, um

coberto de holanda, outro de ganga.

No sobrado da Rua do Carmo, havia vinte e seis itens de ouro, quarenta e dois de

prata, três relógios de algibeira, louças finas, móveis e roupas. As roupas arroladas

pertenciam ao casal, uma exceção observada em nossa amostra. Notamos também que

constam poucas roupas de casa: um par de lençóis de linho com babados, um cobertor de

papa velho, quatro toalhas de mão de linho ou bretanha. De uso pessoal, encontramos

dezenove itens: dois penteadores, dois conjuntos de veste e calção, dois hábitos, duas

fardas, uma opa e três vestidos masculinos. Do universo feminino, destacamos: três roupas

inteiras, duas saias e duas marcelinas. Josefa possuía “uma roupa inteira de mulher de

cabaia cor de rosa, com avental de seda branca, tudo guarnecido de galões de ouro, avaliada

em 28$000 (vinte e oito mil réis); uma dita de cetim preto com seu manto, 16$000

(dezesseis mil réis); uma dita de veludo com seu manto usado, 12$800 (doze mil e

oitocentos réis).”20

Se na propriedade do Pirapitingui estavam os bens relacionados à produção, no

sobrado da vila foram arrolados os objetos importantes para a aparência do casal. Além das

roupas acima mencionadas, foram inventariados dois hábitos: um de terceiro do Carmo

com todos os seus pertences, no valor de 12$000 (doze mil réis) e outro, de S. Francisco,

calculado em 2$560 (dois mil, quinhentos e sessenta réis).21

Provavelmente o hábito de

terceiro do Carmo serviu de mortalha a José Manoel, pois conforme consta em seu

testamento, as disposições mencionavam seu pertencimento à ordem carmelita e o desejo

de ser sepultado na capela da referida ordem.

20

ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 16 verso. 21ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 16 verso.

144

Como capitão, José Manoel envergava possivelmente duas fardas: uma farda de

pano azul fino com suas dragonas de fios de prata, com véstia e calção, em bom uso,

avaliada em 8$000 (oito mil réis), e outra do mesmo tecido, porém sem dragonas, com

véstia e calção, no valor de 4$000 (quatro mil réis).22

Em testamento de 1785, José Manoel declarou que possuía um engenho de açúcar e

algumas benfeitorias em terras aforadas no bairro Pirapitingui, que pertenciam aos

religiosos do Carmo da vila de Itu. Segundo o testador, este usufruía da propriedade

com a condição de eu não poder vender: mas sim, que poderia eu doá-las com

todas as benfeitorias aos meus parentes; por isso – Declaro, que de toda esta

propriedade, assim como possuo, faço inteira e total doação; quanto possa, e me

for em Direito permitido à dita minha mulher Josefa Maria de Góes, e todos os

meus filhos e filhas, para que vivam na dita Propriedade, e possuam igualmente,

para o que eu os declaro, e instituo meus legítimos herdeiros assim dela como do

remanescente da minha terça. Declaro, porém que se a dita minha mulher, depois

que eu morrer, se casar segunda vez, neste caso desde já a dou por deserdada

assim da dita propriedade, como do remanescente da minha terça23

De acordo com as Ordenações Filipinas, José Manoel estava seguindo corretamente

a lei, nomeando em testamento os parentes que herdariam o direito ao usufruto da

propriedade aforada, inclusive de forma igualitária entre seus filhos e esposa. José Manoel

era dono de um patrimônio avaliado em 14:554$662 (quatorze contos, quinhentos e

cinquenta e quatro mil, seiscentos e sessenta e dois réis), o quarto maior espólio da amostra.

Em 1785 quando escreveu seu testamento, o homem já demonstrava certa

preocupação em relação à propriedade na qual possuía o engenho de açúcar e as

benfeitorias. A disposição de deserdar sua mulher da referida propriedade caso contraísse

matrimônio novamente, baseava-se apenas na vontade do testador, (ou no costume, pela

tradição), pois não encontramos menção a uma situação semelhante na legislação.24

A

preocupação em relação à administração dos bens legados às viúvas era comum, pois o

título 107 do quarto livro das Ordenações Filipinas é dedicado às “viúvas que alheam como

22ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 16 verso. 23AESP - Autos de contas de Testamento de José Manoel da Fonseca Leite. Folha 3. Disponível em:

<http://www.arquivoestado.sp.gov.br/revolucao_frameset1.php?imagem=BR_SP_APESP_JR_C05487_D011> . Acesso em 1.out.2014. 24 Cf. Livro IV , Ordenações Filipinas.

145

não devem e desbaratam seus bens”.25

Pela lei, o testador poderia dispor livremente apenas

em relação à terça. Sua esposa Josefa não se casou novamente, e não é possível saber se

caso contraísse matrimônio pela segunda vez, se a disposição de José Manoel teria efeito

pelo costume, já que pela legislação não havia amparo.

Quando da morte do marido, Josefa recebeu 1:400$000 (um conto e quatrocentos

réis) dos 2:000$000 (dois contos) das benfeitorias do Pirapitingui.26

No Tombamento dos

bens rústicos, censo realizado especialmente em propriedades rurais em 1817, Josefa de

Góes consta no registro número 317, como:

Dona, foreira de uma fazenda denominada Pirapitingui, pertencente ao Hospício

Nossa Senhora do Carmo (havida por doação), medindo 300x1500 braças (90 alqueires), possui 30 escravos, reside na fazenda, atividade/produção: tem

engenho e fábrica de açúcar, planta cana e mantimentos.27

Até quando faleceu em 1824, Josefa Góes possuía a propriedade no Pirapitingui e

produzia açúcar em seu engenho, contando com canavial e as demais benfeitorias. Na vila,

manteve a mesma residência, na rua do Carmo, com poucos móveis arrolados, como

bofetes, catres, caixas, dez cadeiras e uma meia cômoda.28

Permaneceu viúva até seu

falecimento. Na capa de seu inventário, consta como “inventariante de si mesma”. Não

encontramos nenhuma peça de roupa arrolada entre seus bens em 1824, nem menção à

existência de testamento.

Quadro 16 – Esquema genealógico da Família de José Manoel da Fonseca Leite

25 Ordenações Filipinas, título 107, Livro IV, p. 1015. Disponível em:

<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p1015.htm> . Acesso em 2.out.2014. 26 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 46. 27 ALMEIDA, Leandro Antonio de. Senhores de Terra da Vila de Itu em 1817. Revista da ASBRAP, São Paulo, v. 7, p. 7-77, 2001. p. 35 28 ARQ/MRCI – Inventário de Josefa Maria de Góis Pacheco, 1824, caixa 29b.

146

Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 2 verso.

Com relação às roupas que foram inventariadas no momento da morte de José

Manoel, as peças masculinas foram divididas entre a inventariante e os dois filhos mais

velhos, José e Antonio. À época, o filho Joaquim contava com apenas sete anos e talvez,

por esta razão, não tenha entrado na partilha de roupas. A filha Ana, de dezesseis anos

dividiu com sua mãe as peças de roupas femininas, divisão incomum para a documentação

pesquisada. Esta partilha das roupas femininas ocorreu de maneira diferenciada em relação

aos outros inventários da amostra, pois mesmo quando a roupa do viúvo ou viúva entra no

rol de bens, na distribuição, as peças entram em sua meação, ou seja, continuam em sua

posse.

Quadro 17 - Relação das peças de roupas inventariadas no rol de bens de José

Manoel da Fonseca Leite e sua partilha, 1798

Herdeiro Peças de roupas Valor (em réis)

Tenente José Manoel da

Fonseca, 21 anos, casado.

Uma farda de pano azul fino com suas dragonas de fios de

prata, com véstia e calção em bom uso, 8$000,

Um vestido de pano azul novo, 8$000

16$000

Antonio Pacheco da

Fonseca, 18 anos

Uma opa de tafetá nova, 2$560,

Um vestido de sedinha azul usado, 6$000,

Um vestido de pano azul forrado de cabaia branca, 6$400

14$960

Ana, 16 anos Uma roupa inteira de mulher de cabaia, cor de rosa, com

avental de seda branca, tudo guarnecido de galões de ouro,

28$000,

Uma roupa inteira de mulher de cetim preto com seu

manto, 16$000.

44$000

Inventariante, a viúva

Josefa

Uma farda [-] sem dragonas com véstia e calção, 4$000,

Uma véstia e calção de cetim usados, 1$200,

Uma roupa inteira de mulher de veludo com seu manto

usado, 12$800,

Uma saia de seda amarela usada, 5$000,

Uma marcelina de pano fino encarnado, bordado de cetim

azul com suas [-], 25$600

Uma marcelina dita inferior, 5$000,

Uma saia de cetim azul usada, 6$000.

59$600

Fonte: ARQ/MRCI –Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folhas 16 verso - 17

A partilha das roupas do casal sinalizou uma distribuição razoavelmente utilitária,

cedendo ao filho tenente uma das fardas do pai capitão, vestidos para o filho Antonio,

147

nenhuma peça para o irmão caçula de sete anos, já que não lhe serviriam as peças do pai e

duas das roupas para a filha Ana.

Na obra Genealogia Paulistana, consta que os irmãos José, Maria Josefa e

Francisca haviam se casado em 1797, um ano antes do falecimento do pai.29

José casou-se

com vinte anos de idade, Maria Josefa com dezoito anos e Francisca, com apenas doze

anos. As duas irmãs não entraram na partilha acima tratada, provavelmente por terem

recebido peças de roupas em seus dotes.

Dona Francisca Xavier da Fonseca recebeu em roupas, “um vestido de mulher de

cetim preto, 4$000 (quatro mil réis); um dito de seda de flores cor de rosa, 12$800 (doze

mil e oitocentos réis); uma saia de cetim cor de rosa, barra de [-] de ouro com sua [-] do

mesmo cetim, 6$400 (seis mil e quatrocentos réis).”30

Sua irmã Maria Josefa, foi dotada

com “um vestido de mulher de cetim preto, 4$000 (quatro mil réis), uma saia de cetim cor

de rosa seca, 6$400 (seis mil e quatrocentos réis), um vestido de mulher de seda de flor cor

de rosa seca, 12$800 (doze mil e oitocentos réis).”31

Ambas receberam roupas muito

semelhantes, um vestido de cetim preto, um vestido de seda com motivos florais ou cor de

rosa e uma saia de cetim cor de rosa. José, o irmão mais velho entrou na partilha das

roupas provavelmente por ter recebido um dote de 310$400 (trezentos e dez mil,

quatrocentos réis) muito abaixo do valor recebido por suas irmãs Maria Josefa e Francisca,

que receberam cada uma, como meio dote o significativo valor de 1:027$565 (um conto,

vinte e sete mil, quinhentos e sessenta e cinco réis).32

Segundo Muriel Nazzari, a tendência observada no século XVII era de que a

opinião do patriarca deveria ser respeitada por toda a família, inclusive nos casos em que as

filhas recebessem dotes generosos, que afetassem os demais irmãos no momento da

partilha. Isto ocorria, provavelmente, uma vez que não seriam forçadas a retornar o valor à

29 LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana... p. 96 -99. Vol. III. Disponível em: <

http://www.arvore.net.br/Paulistana/Prados_1.htm> . Acesso em 10. ago.2014. 30 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 37. 31

ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 38 verso. 32ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 45

148

colação.33

Já no século XVIII, porém, ocorreu uma diminuição da influência do patriarca,

conforme notado por Nazzari em São Paulo, quando observou que os irmãos “com ajuda de

advogados e juízes, procuravam fazer cumprir as disposições da lei relativas à igualdade

entre herdeiros.”34

Observamos que os três irmãos foram à colação para a divisão dos bens.35

No que se

refere ao balanço dos bens, o monte-mor considerável de 16:597$760 (dezesseis contos,

quinhentos e noventa e sete mil, setecentos e sessenta réis) reduziu-se à quantia de

11:143$468 (onze contos, cento e quarenta e três mil, quatrocentos e sessenta e oito réis),

ao se retirar o valor das dívidas.

Na relação das dívidas consta o nome do credor e o valor, sem discriminar o motivo,

ou o objeto de tal valor. Na maior parte, as dívidas eram compostas de valores baixos. Entre

as de valores intermediários e consideráveis, encontramos uma de 20$000 (vinte mil réis) à

Ordem Terceira de S. Francisco, outra dirigida ao Coronel José Florêncio de Oliveira, com

valor de 426$305 (quatrocentos e vinte e seis mil, trezentos e cinco réis) e duas com somas

expressivas: 1:072$290 (um conto, setenta e dois mil, duzentos e noventa réis) ao coronel

José Manoel de Sá, e 2:893$074 (dois contos, oitocentos e noventa e três mil e setenta e

quatro réis) “por escritura” ao capitão Antônio de Barros Penteado.36

Diferentemente de

outros inventários, neste, os bens foram separados e os herdeiros pagos. A viúva recebeu

todos os demais bens, incluindo as dívidas, mas não as quitou. Quanto aos recibos, há

apenas o referente ao pagamento de cada legítima de seus filhos. Não encontramos

nenhuma indicação de como seria saldada a grande dívida, nem indicação de arrematação

de bens para este fim.

33 Colação era o retorno dos bens ou do valor dos bens recebidos pelos herdeiros através de dotes ou

adiantamentos no momento da partilha dos bens dos pais. O herdeiro poderia trazer ou não os bens à colação.

Se viesse à colação, seus bens eram somados à herança e redivididos entre todos os herdeiros. Caso contrário,

abria mão da herança. Cf. NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote. Mulheres, família e mudança

social em São Paulo, Brasil, 1600 – 1900. São Paulo. Companhia das Letras, 2001.p. 126-127. 34 NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote... p. 128. 35

ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 45. 36ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folhas 19 – 20.

149

A família de José Manoel indica um traço observado em outros inventários

analisados. Alguns dos inventariados que possuíam imóveis em bairros rurais e casa na vila

tiveram seus bens arrolados conforme estavam distribuídos entre seus bens de raiz. Nestes

casos, foi possível notar um padrão dos objetos localizados na vila e em sítios um pouco

mais distantes da região central da vila de Itu.37

Oito de treze inventários, apresentaram a

maior parte dos objetos relacionados à aparência nas propriedades da vila de Itu e não nos

bairros rurais. Não consideramos que esses bens fossem estáticos, que não circulassem e

não fossem utilizados nos sítios e chácaras no entorno da vila, mas que a concentração de

joias, objetos de uso pessoal, principalmente de roupas na área central ituana indica um

padrão de uso conforme a necessidade. Assim, podemos considerar a importância dos

artefatos relacionados à aparência para o uso na região central da vila de Itu, onde as

sociabilidades eram mais acentuadas devidas às atividades religiosas, principalmente.

Outro exemplo deste padrão é o de Ana Gertrudes de Campos, falecida no ano de

1808. Deixou seu marido o alferes Luciano Francisco Pacheco e onze herdeiros, três já

casados, contando o caçula Joaquim com apenas quatro meses.38

A fortuna do casal foi

estabelecida acima de quinze contos de réis, proveniente da produção açucareira

desenvolvida em dois sítios próximos ao rio Tietê.39

No sítio, a única peça de vestuário mencionada foi uma saia de seda cor de pérola,

avaliada em 5$120 (cinco mil, cento e vinte réis). Havia ainda algumas peças de roupa de

casa, como lençóis de pano de linho, toalhas de mesa de algodão, três colchas de algodão e

chita 6$400 (seis mil e quatrocentos réis) e um cobertor de papa, de Castela, 2$560 (dois

mil e quinhentos e sessenta réis), na quantia total de 16$960 (dezesseis mil, novecentos e

sessenta réis)40

. De joias, encontraram-se cordões com contas de ouro, somados 37$880

(trinta e sete mil, oitocentos e oitenta réis). Na categoria de objetos de uso pessoal,

37 De vinte e um inventários que traziam propriedades em bairros rurais e na vila, treze não apresentaram

divisão dos bens pelos avaliadores, e finalmente oito registraram os objetos conforme os encontraram nos

imóveis. 38ARQ/MRCI – Inventário de Ana Gertrudes de Campos, folha 3. 39ARQ/MRCI – Inventário de Ana Gertrudes de Campos, folhas 13-13 verso. 40

Cobertor de papa era uma coberta confeccionada de lã. Vide SILVA, Antonio Moraes. Diccionario... Vol.

2, p. 392. Neste caso, era uma coberta proveniente de Castela.

150

elencaram dois pares de fivelas de esporas, avaliadas em 5$300 (cinco mil e trezentos

réis).41

Assim como os demais inventários, este tem como característica concentrar a

maioria de bens relacionados à produção agrícola e açucareira nas propriedades da região

rural. Essa característica aponta para a questão utilitária dos artefatos, pois se encontravam

no local onde teriam função e seriam utilizados. Logicamente que as roupas de uso pessoal

eram usadas nas propriedades dos bairros rurais, mas as peças de roupas mais

significativas, tanto monetária quanto simbolicamente estavam guardadas na casa da vila.

Como exemplo desse tipo de procedimento, podemos pensar nos hábitos de ordens

terceiras, utilizados em missas e procissões realizadas no núcleo central da vila, no qual se

encontravam os principais edifícios religiosos da localidade.

Na casa de Ana Gertrudes localizada no pátio da Matriz, isto é, na região central

ituana, as joias somaram 150$720 (cento e cinquenta e nove mil, oitocentos e vinte réis),

entre anéis de ouro com topázio, ou com pedras falsas, cordões de ouro e cinco pares de

brincos de ouro, que representavam 1,0% do montante total de bens. Tais adereços superam

os encontrados no sítio, tanto na variedade, como no valor, pois em joias, havia 37$880

(trinta e sete mil, oitocentos e oitenta réis) no sítio. Os objetos de uso pessoal no sítio

somaram 5$300 (cinco mil e trezentos réis) referentes a dois pares de esporas, já na vila,

somaram 24$000 (vinte e quatro mil réis), entre os quais havia fivelas de esporas e de

sapatos, uma bengala feita de madeira da terra e prata e três chapéus, avaliados em 6$000

(seis mil réis), 4$000 (quatro mil réis) e 3$200 (três mil e duzentos réis), respectivamente.

As roupas de casa apresentam um valor menor, de 26$800 (vinte e seis mil e

oitocentos réis) em relação às do sítio, porém a qualidade dos itens parece ser muito

superior, como por exemplo, a colcha de damasco carmesim em bom uso, avaliado em

20$000 (vinte mil réis).42

As vestimentas arroladas e avaliadas em 70$880 (setenta mil,

oitocentos e oitenta réis) pertenciam ao casal. Do seu marido Luciano, consta a farda com

véstia de cetim branco bordada de ouro e calção de casimira branca no valor de 20$000

(vinte mil réis) e uma casaca nova de pano azul fino, com véstia e calção de cetim preto,

41

ARQ/MRCI – Inventário de Ana Gertrudes de Campos, folhas 13 – 13 verso. 42ARQ/MRCI – Inventário de Ana Gertrudes de Campos, folha 14.

151

12$800 (doze mil e oitocentos réis). Da inventariada, umas roupinhas de cabeça azul, no

valor de 1$280 (mil duzentos e oitenta réis), uma manteleta de cetim listrada com renda de

ouro, 4$000 (quatro mil réis), um capote de mulher de pano encarnado fino, 12$800 (doze

mil e oitocentos réis), até um vestido de mulher confeccionado em cabaia branca com

raminhos de ouro em bom uso, avaliado em 20$000 (vinte mil réis).43

O valor total das

roupas 76$000 (setenta e seis mil réis) é muito semelhante ao dos móveis, de 77$620

(setenta e sete mil, seiscentos e vinte réis), e correspondem a 0,5% do total de bens.

Ana Gertrudes apesar de contar com muito mais cabedal do que Quitéria ou

Mariana, também possuía saia entre seus bens, porém de tecido nobre, de seda, no valor de

5$120 (cinco mil, cento e vinte réis). A farda, elemento crucial na identificação dos

indivíduos que gozavam de títulos militares, estava presente nos espólios abastados, como

o uniforme de cetim branco bordado de ouro, de Luciano, marido de Ana Gertrudes, ou a

farda de 1$600 (mil e seiscentos réis), dentre os poucos bens de Vicente Gonçalves Braga.

As fardas constituíam-se na representação do poder real. Assim, quem a envergava,

distinguia-se em relação aos demais súditos, pois pertencia a um restrito e seleto grupo na

América Portuguesa.44

Pablo Mont Serrath frisou ser “frequente que oficiais das

ordenanças, tendo baixa ou por velhice ou por outro motivo, seguissem usando as insígnias

e galões de seus postos, ainda que essa prática fosse proibida.”45

Conforme observado no capítulo 2 do nosso estudo, o acesso a tecidos de origem

estrangeira era comum na vila ituana. A diversidade de panos na época analisada é

relativamente ampla quando comparada com os tecidos observados em nossa amostra para

Portugal, bem como em séculos anteriores na vila de São Paulo. Luciana da Silva

confirmou o dado de Alcântara Machado de que o material mais empregado nas

vestimentas encontradas na vila de Piratininga, no século XVII era o algodão ali

43ARQ/MRCI – Inventário de Ana Gertrudes de Campos, folhas 5 – 5 verso. 44 SILVA, Camila Borges da. O símbolo indumentário: distinção e prestígio no Rio de Janeiro (1808-1821).

Rio de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2010. p. 91 –

107. 45 MONT SERRATH, Pablo Oller. Dilemas & Conflitos na São Paulo restaurada. Formação e consolidação da agricultura exportadora (1765-1802). 2007. 316 f. Dissertação (Mestrado em História Econômica).

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo. p. 159.

152

confeccionado.46

Beatriz Ricardina de Magalhães também apontou a diversificação dos

tecidos disponíveis na comarca de Ouro Preto entre as décadas de 1740 e 1770:

É difícil dizer que a escolha dos tecidos era condicionada pelo clima, pois encontramos sedas, baetas, veludos, tafetás, gorgorões, panicos, lãs, rendas, etc. É

tão grande sua variedade, que chegamos a computar, em um só inventário de

Manoel de Miranda Fraga, mais de setenta tipos diferentes. A maior parte dos

tecidos era importada e tinha alto custo.47

Nas regiões mineradoras observou-se uma grande variedade de tecidos, roupas, joias

e objetos pessoais. De acordo com Magalhães, havia maior investimento de joias em

relação às vestimentas.

As peças de roupas mencionadas na documentação ituana correspondem ao padrão

de vestimentas europeu, mais especificamente ao padrão lisboeta, conforme abordado no

capítulo anterior, seja em relação às peças masculinas e femininas, seja em relação aos

tecidos empregados, todos de proveniência estrangeira. As mulheres mais abastadas

dispunham de vestidos, além de adornos vistosos de ouro, prata e pedras. Com base nos

registros de posse de bens, pode-se dizer que o modelo mais comum de vestimenta

feminina em Itu era caracterizado por saia e camisa. Quanto aos homens vestiam-se, ao que

tudo indica, com veste, colete, calção e casaca de tecidos muito semelhantes aos homens

lisboetas, porém com cores bem variadas.

Os moradores da vila de Itu que dispunham de sítios para a vivenda ou como

unidade produtiva açucareira em bairro rural e de uma casa na região central, deixavam as

roupas, as joias e demais objetos como chapéus, bastões, fivelas mais caros, em maior

quantidade e de melhor qualidade nas casas da vila. Já os moradores com os menores

cabedais, que residiam na área central ou mesmo nos bairros, envergavam trajes menos

abastados mas não tão distintos dos demais.

46SILVA, Luciana da. Artefatos...p. 76; 47

MAGALHÃES, Beatriz Ricardina de. “A demanda do trivial: vestuário, alimentação e habitação.” In:

Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n.º 65, pg. 151 – 197, julho/ 1987. p. 172-173.

153

3.2 A circulação de roupas: dotes, doações, dívidas, partilhas e arrematações

A partir dos testamentos e dos inventários póstumos foi possível verificar a

composição das vestimentas disponíveis na vila de Itu, e em alguma medida, compreender

como as peças de roupas seriam destinadas após a morte do inventariado. Este tópico busca

compreender a circulação das roupas entre pessoas próximas e parentes dos inventariados

em momentos diversos do ciclo de vida e após a sua morte. Entre os exemplos, inclui-se o

dote, entregue ainda em vida pelos pais aos seus filhos, as disposições testamentárias

indicando as doações a serem realizadas após a morte, bem como a relação das roupas que

constavam nas dívidas, além as peças encaminhadas aos pregões públicos para rápida

conversão em dinheiro, a fim de quitar as dívidas.

Neste amplo cenário, encontramos o inventário de José do Amaral Gurgel, homem

que constituiu uma extensa família, casando-se três vezes. Era neto de Bento do Amaral

Gurgel, “sargento-mor no Rio de Janeiro, ouvidor e corregedor da capitania de S. Paulo”.

Residiu na região das Minas, depois adquiriu um sítio próximo aos rios Pinheiros e Tietê.48

Em 1730, José casou-se com Escolástica de Arruda Leite Ferraz, filha de um juiz ordinário

da vila de Itu. José recebeu o mesmo nome do pai, tendo apresentado uma variação, José de

Arruda Gurgel, na genealogia de Silva Leme.49

48 NARDY FILHO, A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c. vol. 5. p. 168. 49

LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana... p. 123, volume VI. Disponível em:

<http://www.arvore.net.br/Paulistana/Godoys_3.htm> . Acesso em: 14/10/2014.

154

Quadro 18 - Primeiro casamento de José do Amaral Gurgel

Fonte: Genealogia Paulistana50

Seu primeiro casamento ocorreu em 1758, com Gertrudes de Araújo. A mãe da

noiva, Ana de Campos, a qual também pertence à nossa amostra, faleceu em 1780. De

acordo com Silva Leme, o genro José do Amaral Gurgel se casou pela segunda vez em

1768.51

Este fato, no entanto, não o inviabilizou de ser o inventariante de Ana, o que

demonstra que ele acompanhou sua sogra até a morte, mesmo tendo contraído novo

matrimônio.

Ana faleceu em sua casa e os bens foram repartidos entre os dois filhos que José

teve com Gertrudes, sua primeira esposa: Vicente do Amaral Campos e Ana de Campos

(mesmo nome da avó). A sogra devia ao genro 146$140 (cento e quarenta e seis mil, cento

e quarenta réis) referente à parte de um sítio que estava quitando. Esse valor correspondia a

16,8% de todos os seus bens e foi abatido da herança dos netos, que se constituía de onze

escravos, móveis, imagens e um oratório, quatro colchões, redes, quatro toalhas de mãos de

linho e algodão, uma toalha de mesa de algodão, duas colheres de prata velhas e vinte e

nove animais, entre vacas, bois e novilhas.52

50 Esquema genealógico baseado em dados de LEME, Genealogia Paulistana. p. 123, volume VI. Disponível

em: <http://www.arvore.net.br/Paulistana/Godoys_3.htm> . Acesso em: 14.out.2014. Os indivíduos inscritos

dentro de retângulos e destacados em negrito são inventariados que compõem a amostragem de nossa

pesquisa. 51 LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana... p. 123, volume VI. Disponível em: <http://www.arvore.net.br/Paulistana/Godoys_3.htm> . Acesso em: 14/10/2014. 52 ARQ/MRCI – Inventário de Ana de Campos, folhas 2 verso – 4.

155

Os sufrágios para a alma da falecida Ana foram custeados com parte do valor de um

escravo que a mesma possuía e que foi arrematado por Bento Dias Pacheco.53

Os recibos

referentes ao sufrágio são muito detalhados e interessantes, pois envolvem outros

indivíduos de nossa amostra. No documento constam dois recibos do padre Manoel da

Costa Aranha, nos quais atestou receber do inventariante dois valores para celebração de

missas em intenção da alma de Ana de Campos.54

Francisco Novais de Magalhães assinou

um documento denominado “Conta do que despendi com o enterro da defunta Ana de

Campos por ordem do Senhor José do Amaral Gurgel.” Adiante elencou: o valor de 4$480

(quatro mil, quatrocentos e oitenta réis) em missas de corpo presente no Convento de S.

Francisco, 6$000 (seis mil réis) de hábito para mortalha, 6$880 (seis mil, oitocentos e

oitenta réis) a saber: “a fábrica de sepultura ao pé das grades” em 2$560 (dois mil,

quinhentos e sessenta réis), 4$000 (quatro mil réis) de tumba, e $320 (trezentos e vinte réis)

de cruz, 4$640 (quatro mil, seiscentos e quarenta réis) em velas e $180 (cento e oitenta réis)

em uma vara e meia de fita roxa.55

Francisco pertencia à ordem terceira de São Francisco,

razão pela qual pode ter sido incumbido de tratar da sepultura de Ana de Campos. Os

gastos com o ofício religioso não eram acessíveis a toda a população, como no caso de Ana,

que a quantia gasta foi de 45$000 (quarenta e cinco mil réis), valor que correspondia à

metade do valor do escravo, um dos bens mais valiosos no período.56

Os objetos que restaram foram partilhados entre seus netos Vicente e Ana. Cada um

herdou 458$280 (quatrocentos e cinquenta e oito mil, duzentos e oitenta réis) em bens.

Vicente recebeu de itens têxteis duas redes e duas toalhas de algodão de mãos. Ana também

recebeu duas redes, duas toalhas de mão, mas uma era de linho e o diferencial foi uma

toalha de mesa de algodão.57

53O escravo Marcos foi arrematado pelo valor de 102$500 (cento e dois mil e quinhentos réis), sendo 45$000

(quarenta e cinco mil réis) destinados aos sufrágios de sua alma, e 51$060 (cinquenta e um mil e sessenta réis)

ao pagamento do funeral. O restante, 6$440 (seis mil, quatrocentos e quarenta réis) foi dividido entre os seus

herdeiros, 3$270 (três mil, duzentos e setenta réis) pagos a Vicente, e 3$170 (três mil cento e setenta réis) à

Ana. ARQ/MRCI – Inventário de Ana de Campos, folhas 7 verso - 12. 54ARQ/MRCI – Inventário de Ana de Campos, folhas 13 e 22. 55ARQ/MRCI – Inventário de Ana de Campos, folha 23. 56

ARQ/MRCI – Inventário de Ana de Campos, folha 7 verso. 57 ARQ/MRCI – Inventário de Ana de Campos, folhas 8 verso – 9 verso.

156

Quadro 19 - Segundo casamento de José do Amaral Gurgel

Fonte: Genealogia Paulistana58

Inácia Leite de Almeida, segunda esposa de José faleceu em 1801, e neste mesmo

ano José se casou pela terceira vez.59

Da união entre José e Inácia que durou trinta e três

anos, nasceram sete filhos. No inventário de Inácia foram arrolados muitos bens, compostos

em sua maioria das ferramentas e apetrechos de trabalho ligados à atividade açucareira,

benfeitorias, canaviais e engenho. Dos nove bens de raiz seis localizavam-se no bairro do

Buru, região atualmente pertencente à cidade de Salto, vizinha a Itu. No que se refere aos

itens têxteis, encontramos apenas um par de lençóis de pano de linho e uma colcha de chita

forrada de baeta vermelha, cada item avaliado em 6$400 (seis mil e quatrocentos réis),

valor semelhante ao dos móveis, 13$200 (treze mil e duzentos réis), que corresponde

apenas a 0,07% do total de bens.60

Tabela 8 - Composição dos bens dotados aos filhos de Inácia e José do Amaral

Gurgel

Maria Escolástica Francisca Inácia José

Ano em que

casou

1791 1796 1797 1801 1798

Escravos 336$000 171$200 226$400 465$800 128$000

Vestimenta 41$760 34$200 29$400 49$600 Não consta

Roupa da casa 13$920 5$440 Não consta 11$200 Não consta

Móveis 1$280 3$200 3$200 2$000 Não consta

Utensílios

domésticos

3$620 $800 5$300 20$600 Não consta

58 Esquema genealógico baseado em dados de LEME, Genealogia Paulistana. p. 123, volume VI. Disponível

em: <http://www.arvore.net.br/Paulistana/Godoys_3.htm> . Acesso em: 14.out.2014. 59 LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana... vol. 1, p. 270. Disponível em:

<http://www.arvore.net.br/Paulistana/Camrg_2.htm> . Acesso em 18.set.2014. 60 ARQ/MRCI – Inventário de Inácia Leite de Almeida, folha 15.

157

Ferramentas Não consta Não consta Não consta $560 Não consta

Animais 6$400 6$400 Não consta 16$000 8$000

Selas 9$000 4$000 6$000 Não consta Não consta

Objetos de uso

pessoal

Não consta Não consta Não consta 7$050 3$200

Joias 2$000 4$000 4$000 20$000 Não consta

Terras 150$000 150$000 150$000 Não consta Não consta

Matéria prima

ou produção

caseira

41$120 1$300 7$500 $960 Não consta

Dinheiro Não consta 400$000 600$000 Não consta Não consta

Total 605$100 780$540 1:031$800 593$770 139$200

Fonte: Inventário de Inácia Leite de Almeida, folhas 29-40, Genealogia Paulistana, v. 4 , p. 123-125

A tabela acima evidencia a composição dos dotes recebidos pelos irmãos, com os

anos dos respectivos casamentos e valores. Embora os valores apresentem disparidade, os

dotes eram compostos dos mesmos objetos. As três primeiras filhas que se casaram

receberam parte de uma propriedade no mesmo valor, 150$000 (cento e cinquenta mil réis).

Como roupas da casa constam alguns lençóis, coberta e toalhas, já em joias, todas

receberam brincos de ouro. Os outros dois irmãos João Batista e Bento eram solteiros. O

único irmão homem casado, José, recebeu um valor inferior aos das irmãs. José é o único

caso em que observamos um filho receber dote.61

E também figura como um dos poucos

casos onde um filho recebe dote em nossa amostra. É notável que houve uma preocupação

do pai em dotar as filhas de modo semelhante em relação às vestimentas:

Quadro 20 - Roupas recebidas em forma de dote pelas filhas de Inácia e José

do Amaral Gurgel

Peça Maria Escolástica Francisca Inácia

Capa Não consta De cassa grossa,

4$000

De cassa grossa

branca, 3$000

De cassa grossa

branca, 4$000

Manto De seda preto,

6$400

De seda preto,

10$000

De seda preto, 6$400 De seda preto,

6$400

Roupa

inteira

De cetim preta,

15$360

De cetim preta,

13$800

Não consta De cetim riscado,

20$000

Saia De cetim riscado de flores, 20$000

De cetim branca e a barra azul, 6$400

De cetim riscado de flores, 20$000

De cabaia cor de rosa, 19$200

Total 41$760 34$200 29$400 49$600

Fonte: Inventário de Inácia Leite de Almeida, folhas 29-37.

61 Na relação dos herdeiros, consta a anotação ao lado do nome (dotada) para as filhas e também para o filho

José. ARQ/MRCI – Inventário de Inácia Leite de Almeida, folha 4.

158

Os pais seguiram um padrão para determinar as vestimentas para as filhas na

ocasião do casamento. A escolha pelas peças acima mencionadas talvez se pautasse por se

constituírem em um padrão de vestimenta para uso externo ao domicílio, em eventos ou

espaços públicos. Mantos pretos de seda e saias constam em todos os dotes, com variação

do tecido para Inácia, que recebeu uma saia de cabaia enquanto suas irmãs receberam de

cetim, com variação nas cores e estampas. A principal variação foi que Francisca não

recebeu uma roupa inteira de cetim e Maria não ganhou uma capa de cassa, como suas

irmãs. Apesar da diferença monetária observada nos dotes de uma para outra filha, o padrão

de peças é muito semelhante. Em outros inventários, encontramos registros de roupas nos

bens doados em dotes. Vejamos alguns casos:

Quando suas filhas Luzia e Isabel se casaram, respectivamente em 1749 e 175062

,

João de Mello Rego as dotou de forma muito semelhante: escravos, terras, animais, alguns

móveis como camas, bofetes, catres, e utensílios domésticos, entre os quais bacias e

colheres. Ambas receberam colchão, lençóis de linho e algodão, algumas toalhas, e um

cobertor cada uma. A diferença entre os dotes das irmãs pode ser observada na presença de

alguns itens mais valiosos: Luzia recebeu um par de brincos pequenos de ouro e “um manto

de seda que se comprou para o seu dote”.63

Para Isabel, o diferencial foi “um cortinado de

algodão fino, todo quarteado de rendas”.64

A família gozava de uma boa situação

econômica e quando as filhas se casaram, os pais quiseram proporcionar às mesmas

comodidade e alguns mimos, cedendo bens diversificados de uso doméstico, semelhante ao

padrão de dotes que Nazzari observou para o século XVIII em São Paulo, composto por

peças de enxoval, de uso pessoal e de joias.

Luzia, e as quatro filhas de José do Amaral Gurgel, receberam um manto em seus

dotes. Paulo Garcez Marins ressaltou o registro desta peça pelos viajantes no início do

século XIX em terras paulistas. “Landseer, Debret e Hildebrandt retrataram mulheres de

elite e do povo com mantilhas e rebuços de baeta, que serviam para o recato herdado do

62LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana...Disponível em:

<http://www.arvore.net.br/Paulistana/ABotelhos_4.htm> .p. 155. 63

AESP - Auto de contas de testamento de João de Mello Rego, folha 4 verso 64AESP - Auto de contas de testamento de João de Mello Rego, folha 5

159

cerimonial aristocrático português.”65

Segundo Bluteau, o manto era “uma espécie de véu,

com que cobre a mulher a cabeça, e ás vezes o rosto, ao sair fora de casa.”66

Além dos

mantos, encontramos também mantilha, que de acordo com o mesmo autor “uma espécie de

véu ou capa sem cabeção nem talho, à medida do pescoço, que se põem sobre a cabeça ou

ombros(...) é mais comprida que a capinha e menos autorizada do que o manto (...) era

também uma espécie de banda traçada, que traziam as mulheres em lugar dos capotes, e

hoje só as usam as mulheres do povo, e em lugar de mantos na Beira.”67

No capítulo O mito da dona ausente, Maria Odila Leite da Silva Dias atestou que

durante o século XVIII e até meados do século XIX, “as grandes e raras damas não se

deixavam ver quase nunca e, quando o faziam, era com grande ostentação de roupas.”68

O

uso do manto escondia o rosto e boa parte do corpo da senhora, mas por outro lado,

atestava a distinção e evidenciava sua condição, de honra por cobrir-se e de riqueza quando

o manto era de um tecido valioso e ornamentado. Mas para os governantes portugueses,

esse hábito das senhoras causava estranhamento, pois em 1775 Martim Lopes reclamou

sobre a discrição das paulistas e em 1810, Franca e Horta instituiu um alvará proibindo o

uso de rebuços e baetas negros, com o intuito de “forçar a adoção de costumes mais

burgueses.”69

Em Itu, até o ano de 1808 a posse de mantos e capas foi recorrente na

documentação, indicando semelhança com os costumes da vila de São Paulo.

A utilização do manto, mantilha e capas por mulheres na América Portuguesa

estava, portanto, relacionada à tradição portuguesa, na qual a mulher deveria cobrir seu

rosto e boa parte do corpo ao sair de casa, ou ao participar de algum evento que

demandasse respeito, recato. Dotar a filha com um manto mais do que providenciar uma

65MARINS, Paulo César Garcez. “Modos de vida dos paulistas: identidades, famílias e espaços domésticos”.

In: SETUBAL, Maria Alice (coord.). Modos de vida dos paulistas: identidades, famílias e espaços

domésticos. Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura Ação Comunitária, São Paulo: CENPEC,

Imprensa Oficial do estado de São Paulo, 2004. volume 2.p. 125 66 BLUTEAU, Raphael. VocabularioPortuguez... p. 302-303. Disponível em:

<http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/1/manto> . Acesso em 25.set.2014. 67 Vocábulo mantilha, Vide BLUTEAU, Raphael. VocabularioPortuguez... p. 301-302. Disponível em: <

http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/1/mantilha> . Acesso em 03.nov.2014. 68 “O mito da dona ausente” In: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no

século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 98. 69 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano... p. 100.

160

peça de roupa, poderia também significar um desejo de demarcação social, de comunicar

perante a sociedade seu novo estado de mulher casada e exigir respeito.

Muriel Nazzari apontou uma significativa mudança na composição dos dotes entre

os séculos XVII e XVIII em São Paulo. No primeiro, os dotes eram compostos de meios de

produção e índios, e no segundo, passaram a ter objetos ligados ao enxoval e joias.70

Para

Itu, os poucos registros de dotes que encontramos confirmam essa mudança no perfil dos

objetos dotados. Embora eventualmente aparecessem algumas ferramentas, a impressão é

de que os pais tentavam garantir um mínimo de conforto às filhas, cedendo além de roupas

de casa, um ou dois escravos. A posse de escravos permitia ao proprietário não

desempenhar atividades manuais, menos nobilitantes.

Dona Maria Paula, filha de Salvador Jorge Velho, por ocasião de seu casamento,

recebeu alguns pratos, colheres, uma bacia de arame, um candeeiro, três escravas, um

cavalo cego de um olho, um xairel e capelada de pano encarnado, e um pano de cortina de

algodão e forro. Xairel consistia em uma “Cobertura que se põe sobre a anca de

cavalgadura, feita de tecido ou de couro, sobre a qual se põe a sela, evitando-se, assim, que

haja ferimento por atrito. O mesmo que gualdrapa, sobreanca.”71

Nazzari observou que cavalos entravam com frequência nos dotes, mas que não

poderiam ser considerados “meios de produção, pois frequentemente eram cavalos de

montaria destinados ao uso da noiva.”72

Por incluir o xairel e outros adereços de montaria

como a capelada, provavelmente o cavalo que Salvador doou à filha era para seu uso

pessoal.

Outra categoria de bens presente em todos os dotes das filhas de José do Amaral

Gurgel foram as joias. Maria, Francisca e Escolástica receberam um par de brincos de ouro

com pedras encarnadas, que valiam entre 2$000 (dois mil réis) e 4$000 (quatro mil réis).

Inácia do Amaral por sua vez, recebeu “um par de brincos com seu laço de ouro com

70 NAZZARI, Muriel. O desaparecimento... p. 122. 71

Informação disponível em: <http://www.dicionarioinformal.com.br/xairel/> . Acesso em 04. mar.2014. 72 NAZZARI, Muriel. O desaparecimento... p. 123.

161

pedra”, avaliado em 12$000 (doze mil réis).73

Luzia também recebeu um par de brincos

pequenos de ouro. Nestes dois casos, os itens dos dotes são muito semelhantes. As joias

legadas em dote serviam de adorno para as filhas mas também como ressaltado por

Madureira, como reserva de valor, para remediar alguma situação adversa.

Nas dívidas devidas ao monte de Inácia e José do Amaral Gurgel, observamos que

todas eram créditos, nos quais várias pessoas deviam dinheiro ao casal, contabilizando a

expressiva quantia de 4:213$743 (quatro contos, duzentos e treze mil, setecentos e quarenta

e três réis).74

Só o capitão Bernardo de Quadros Aranha, presente em nossa amostra,

possuía um crédito já vencido no valor de 1:600$000 (um conto e seiscentos mil réis)75

.

Nuno Madureira ressaltou que “para suportar a demora na realização de lucros sobre as

verbas avançadas é indispensável uma certa disponibilidade financeira. Assim, apenas as

pessoas com níveis de riqueza muito elevados se deixam tentar por este tipo de

investimentos.”76

Este era o caso de José do Amaral Gurgel, pois a maioria dos créditos

arrolados já estavam vencidos.

Milena Maranho ressaltou o papel crucial dos créditos em São Paulo durante o

século XVII, cuja característica também pode ser observada no século XVIII na vila ituana.

Segundo a pesquisadora,

o crédito era como uma promessa monetária, o empréstimo que o efetivara servia como mediador nas relações entre credores e devedores, ou seja, crédito e dívida

eram elementos inseparáveis que regulamentavam as „boas relações‟, tendo em

vista a ostentação de bens e um nome conhecido por parte do devedor, aquele que

obtinha o crédito frente ao credor. Esse era o papel do crédito enquanto forma de

viver em sociedades onde o costume era considerar o lucro dos empréstimos, as

boas relações e a posição social, mantida também pela situação de credor77.

Na partilha dos bens do casal José e Inácia, somando-se os meios-dotes citados, o

monte-mor foi expressivo: 21:671$220 (vinte e um contos, seiscentos e setenta e um mil,

duzentos e vinte réis). José recebeu quase onze contos de meação, e cada um dos herdeiros,

1:818$814 (um conto, oitocentos e dezoito mil, oitocentos e quatorze réis).

73 ARQ/MRCI – Inventário de Inácia Leite de Almeida. 74 ARQ/MRCI – Inventário de Inácia Leite de Almeida, folhas 22 verso – 23 verso. 75 ARQ/MRCI – Inventário de Inácia Leite de Almeida, folha 23. 76

MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários...p. 60. 77 MARANHO, Milena Fernandes. A opulência... p. 155.

162

Nas dívidas do casal, constam 16$000 (dezesseis mil réis) ao Reverendo presidente

do Carmo, José França, referente ao “hábito e capa com que foi amortalhada sua

inventariada mulher”78

. Assim como fez para a sogra de seu primeiro casamento, José

providenciou a mortalha para sua segunda esposa no momento do sepultamento.

Como mencionado acima, José do Amaral Gurgel contraiu terceiro matrimônio no

mesmo ano em que Inácia faleceu. Com Gertrudes de Camargo Penteado foi casado entre

1801 e 1806, teve uma filha, Ana Antonia.

Quadro 21 - Terceiro casamento de José do Amaral Gurgel

Fonte: Genealogia Paulistana79

José do Amaral Gurgel faleceu em 1806, com testamento e inventário, aos 74 anos,

segundo dados dos maços de população.80

Irmão professo da Ordem Terceira Carmelita,

Gurgel pediu para ser amortalhado com o hábito da ordem e que sua missa de corpo

presente fosse celebrada “por todos os sacerdotes que houverem”.81

No testamento deixou

alguns escravos forros, e instruiu para que sua terça fosse dividida entre sua esposa

Gertrudes e sua última filha, Ana Antonia.

O inventário póstumo de José Gurgel apresenta uma grande lacuna, de

aproximadamente setenta páginas. O arrolamento dos bens iniciou-se pelos objetos

pertencentes ao sítio do Buru, cuja maioria relacionava-se ao engenho, ferramentas,

animais, escravos, armas. No que se referem aos objetos têxteis, possuía roupas de casa

como toalhas, fronhas, lenços, cobertor, seis redes de algodão e 54 sacos de pano de

78 ARQ/MRCI – Inventário de Inácia Leite de Almeida, folha 24 verso. 79 LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana... vol. VI, p. 127. Disponível em: < http://www.arvore.net.br/Paulistana/Godoys_3.htm> . Acesso em 10. dez. 2014. 80

Em 1773 foi declarado com 41 anos. Cf. AESP - Maços de população, vila de Itu. 81 ARQ/MRCI – Inventário de José do Amaral Gurgel, folha 2.

163

algodão.82

Da avaliação do sítio até a partilha está a lacuna no documento. Pelo padrão da

documentação em geral, adiante os avaliadores estariam mencionando os bens localizados

na vila. No pagamento das legítimas aos herdeiros, foi possível determinar alguns dos bens

que José e Gertrudes tinham na vila, como as peças de roupas e outra propriedade, situada

na vila de São Carlos. A seguir, as roupas encontradas na partilha.

Quadro 22 – Relação das roupas e herdeiros na partilha dos bens de José do

Amaral Gurgel, Itu, 1806.

Peça/Herdeiro Gertrudes Neta de

Gertrudes,

casada com João

Evangelista do

Amaral

Neto Estanislau Neto

Rafael

Filha Maria

do Amaral

casada com

Manoel Vaz

Botelho

Calção Não consta De veludo preto,

1$600

Não consta Não consta Não consta

Calção e colete Não consta De fustão, 2$600 Não consta Não consta Não consta

Casaca Não consta Encarnada, 2$000 De chita, 5$000 De cetim azul,

4$800

De droguete preto, 4$000

Chambre Não consta Não consta Não consta Não consta De chita,

2$500

Meia Dois pares de

algodão,

1$140

Não consta Não consta Não consta Não consta

Total 1$140 6$200 5$000 4$800 6$500

Fonte: ARQ/MRCI - Inv. José do Amaral Gurgel, folhas 112-123 verso.

A viúva Gertrudes herdou as roupas da casa e os dois pares de meias algodão.83

As

roupas de uso pessoal de José foram divididas entre a viúva, a filha e os netos. Observa-se

uma preferência pelos netos em detrimento dos filhos e genros, embora figure a filha Maria

e o marido Manoel recebendo uma casaca e um chambre. Qual critério seria utilizado para

partilha de roupas quando não havia indicações nos testamentos? Apenas o valor? A

possibilidade de a peça servir a determinado herdeiro poderia pesar na escolha? Talvez

fosse um critério conceder alguma peça de roupa do inventariado a um herdeiro que já não

tivesse recebido dote, como é o caso da maioria dos herdeiros relacionados, excetuando a

filha Maria dotada. Os demais herdeiros receberam uma parcela da produção de açúcar.84

82 ARQ/MRCI – Inventário de José do Amaral Gurgel, folha 14. 83

ARQ/MRCI – Inventário de José do Amaral Gurgel, folhas 113 – 117. 84ARQ/MRCI – Inventário de José do Amaral Gurgel, folhas 124 – 130 verso

164

Se considerarmos o padrão observado na forma de arrolar os bens nos inventários, as

roupas de José ficavam na casa na vila.

Além do sítio Boa Vista, localizado no bairro do Buru, José possuía um sítio e

engenho na vila de São Carlos (atual Campinas).85

No censo de 1803, ele apresentou como

produção 800 arrobas de açúcar produzido em seu engenho, sendo 700 de açúcar fino, 80

de redondo e 20 de mascavo, maior quantidade registrada pelos senhores de engenho da

amostra.

O caso de José do Amaral Gurgel sinaliza a tendência observada por Bacellar no

início do século XIX, no que concerne às aquisições de propriedades nas regiões próximas

à cidade de origem realizada por famílias ituanas tradicionais, localidade denominada

Frente Pioneira, que mais tarde abrigariam as principais fazendas cafeeiras: Campinas,

Limeira, Rio Claro, adentrando mais ao interior. Mas o investimento de Gurgel foi diferente

do padrão geral apontado por Bacellar, de jovens que venderam sua parte da propriedade

paterna, ou receberam dote ou adiantamento da herança e investiram em terras no sertão,

mais acessíveis do que na vila de origem e iniciaram seus negócios com recursos

reduzidos.86

José era um senhor na casa dos setenta anos na década de 1800, na altura, já

era um reconhecido senhor de engenho na vila ituana, sendo também investidor em um

engenho na vila vizinha, contando na ocasião, com grande capital.

Seu monte-mor foi calculado em 26:187$980 (vinte e seis contos, cento e oitenta e

sete mil, novecentos e oitenta réis). Retirando-se 6:823$490 (seis contos, oitocentos e vinte

e três mil, quatrocentos e noventa réis) de dívidas, restaram 19:364$490 (dezenove contos,

trezentos e sessenta e quatro mil, quatrocentos e noventa réis) líquido para a partilha.

Gertrudes herdou 9:682$245 (nove contos, seiscentos e oitenta e dois mil, duzentos e

quarenta e cinco réis). A outra metade de igual valor, acrescidos os meios dotes e repartida,

gerou a herança no valor de 882$616 (oitocentos e oitenta e dois mil, seiscentos e dezesseis

85ARQ/MRCI - Inventário de José do Amaral Gurgel, folhas 121 – 129 verso. 86 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre os senhores de engenho do Oeste paulista, 1765 – 1855. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp, 1997.

p. 160.

165

réis) para cada herdeiro. A legítima foi de um valor baixo pois o número de herdeiros era

grande.

Em relação à partilha dos bens de raiz, observamos que o sítio de São Carlos foi

dividido entre os filhos e genros, com uma grande diferença de valores atribuídos a cada

herdeiro: de 33$139 (trinta e três mil, cento e trinta e nove réis) a 185$158 (cento e oitenta

e cinco mil, cento e cinquenta e oito réis).87

Porém, o único filho que herdou parte do sítio

do Buru foi o tenente José do Amaral Gurgel, que também recebeu a maior parte do

engenho de São Carlos. Não sabemos se a escolha de José ocorreu devido aos valores dos

bens em partilha, ou se havia uma estratégia de concentrar neste herdeiro a posse e a

incumbência de continuar os negócios do seu pai. José não era o primogênito, mas sim o

sétimo filho, da união de Gurgel com Inácia. Talvez este filho tenha demonstrado mais

habilidade ou competência para dar continuidade aos negócios iniciados pelo pai, ou pelos

valores já herdados pelas filhas nos dotes (mesmo trazendo à colação), coube ao irmão a

maior parcela da propriedade.88

Carlos Bacellar ressaltou duas alianças entre membros desse ramo Amaral Gurgel

com a influente família sorocabana Aires de Aguirra: o casamento de Américo Antonio

Aires com Francisca do Amaral Gurgel, e do tenente José do Amaral Gurgel com Gertrudes

Eufrosina Aires. Ambas as uniões constituíram riqueza, com engenhos e grande

escravaria.89

Podemos observar a atuação de ramos da família em vilas próximas a Itu,

através da aquisição de terras em São Carlos (Campinas) ou realizando alianças com

famílias de destaque de Sorocaba, visando à manutenção e à prosperidade dos negócios.90

De acordo com Bacellar, na América Portuguesa, os casamentos eram importantes

estratégias de manutenção de riquezas entre os senhores de engenho e grandes proprietários

87ARQ/MRCI - Inventário de José do Amaral Gurgel, folhas 112 – 130 verso. 88 Em alguns casos os filhos não recebiam todo o valor da legítima quando o primeiro genitor falecia,

recebendo apenas na herança posteriormente, no falecimento do segundo genitor, motivo de haver tamanha

diferença de valores herdados entre irmãos. Este não era o caso de José, pois no inventário de sua mãe em

1801, recebeu a mesma legítima materna, de seus irmãos, no valor de 1:818$814 (um conto, oitocentos e

dezoito mil, oitocentos e quatorze réis). ARQ/MRCI – Inventário de Inácia Leite de Almeida, 1801, vila de

Itu, folhas 94 verso – 96 verso. 89

BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver...p. 107-108. 90BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver...p. 107-108

166

do Oeste Paulista. No trabalho sobre a vila de Sorocaba durante a década de 1790, o autor

notou uma tendência interessante entre as famílias sorocabanas em estabelecer alianças

através do casamento com “famílias do oeste paulista, que, naquele exato momento

enriqueceram rapidamente.”91

Para Bacellar, “essa união com as famílias do açúcar

permitiu aos sorocabanos penetrar nos restritos círculos dos grandes senhores de engenho.

Foi através desses casamentos que ascenderam, em sua maior parte, às titulações da

nobreza imperial.”92

No testamento de Simão de Godoy Moreira, três filhos deviam para o seu espólio.

Manoel de Godoy Ribeiro devia 496$000 (quatrocentos e noventa e seis mil réis) mais

juros, Gaspar de Godoy Moreira, 6$000 (seis mil réis). Já Feliz de Godoy devia um escravo

no valor de 150$000 (cento e cinquenta mil réis), um cavalo, um par de pistolas, um item

ilegível no valor de 4$000 (quatro mil réis), um capote de pano avaliado em 2$000 (dois

mil réis) e um cobertor de papa em 3$200 (três mil e duzentos réis).93

O pai registrou que o

valor desses bens deveria ser abatido de sua legítima.

Quanto à doação de roupas, em nossa amostragem apenas dois testadores fizeram

alguma referência às roupas para doação. Francisco Novaes de Magalhães, importante

comerciante da vila de Itu, delegou à sua testamenteira (sua esposa) a distribuição de

“roupas e necessários para os pobres desta vila”, no valor de 400$000 (quatrocentos mil

réis).94

E o seu cunhado, o padre Manoel da Costa Aranha igualmente registrou: “declaro

que as roupas, isto é, a de vestir se reparta pelos pobres desta Vila.”95

Aliás foi o próprio

Manoel Aranha quem redigiu o testamento de Francisco. Pelas disposições de ambas as

doações serem idênticas, o padre pode ter influenciado Francisco Magalhães em tal decisão.

Curiosamente, eles não tinham roupas arroladas em seus inventários. Talvez suas

vestimentas tenham sido doadas logo após a morte. No entanto, no testamento de Francisco

havia menção para que fosse sepultado com o hábito de São Francisco.

91 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver em uma vila colonial: Sorocaba, séculos XVIII

e XIX. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2001. p. 109. 92 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver...p. 109. 93 AESP - Auto de contas de testamento de Simão de Godoi Moreira, folha 4 94

AESP - Testamento de Francisco Novaes de Magalhães, folha 6 95ARQ/MRCI - Testamento de Manoel da Costa Aranha, folha 6.

167

A princípio, a doação de roupas parece uma decisão simples. No ato de testar, o

indivíduo enfermo ou considerando a iminência da morte poderia (desde que em perfeito

juízo) deliberar sobre o destino de seus bens.96

Nos dois exemplos em que encontramos o

desejo de que as roupas fossem doadas aos pobres da vila, precisamos atentar a um aspecto

importante. Considerando que no caso o indivíduo tivesse roupas, provavelmente algumas

peças não seriam doadas pelo alto valor, ou pelo elemento que determinada roupa pudesse

significar. Por exemplo, não seria viável doar uma farda, um hábito de ordem terceira,

qualquer elemento que demarcasse uma posição ou pertencimento a um grupo social

restrito.

No caso de Francisco, que indicou a doação de roupas ou necessários em um valor

específico, consta ao final do Auto de Contas de Testamento, vários recibos de pagamento

de esmolas, em dinheiro.97

Manoel Aranha indicou o desejo de ser sepultado com vestes

sacerdotais, e que era “sacerdote do habito de São Pedro”.98

Para os pobres de outras

freguesias, deixou doação em dinheiro99

. Ao final do seu inventário, constam papéis de

arrematação de açúcar e de escravos, porém sem condição de leitura.

Avaliando o processo de arrematação dos bens, necessários em alguns casos de

partilhas e quitação de dívidas, Luciana da Silva pontuou para São Paulo, na primeira

metade do século XVII, que

Os leilões de bens de órfãos colocavam em circulação uma quantidade

significativa de objetos e bens, que passavam da condição de itens do patrimônio

familiar ao estado de mercadorias. Esses artefatos eram avaliados no momento da feitura do rol de bens de cada inventário, sendo essa avaliação o preço mínimo

pelo qual deveriam ser vendidas tais coisas em praça pública. Os leilões atendiam

às necessidades diversas do cotidiano dos compradores, como roupas, alfaias,

móveis, e permitiam adquirir meio para incrementar a fazenda, por meio da

aquisição de animais, equipamentos de trabalho, materiais de construção e

ferramentas.100

96 Cf. Título 81, Livro 4 das Ordenações Filipinas. Disponível em:

<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p908.htm> . Acesso em 3.nov.2014. 97AESP - Auto de Contas de Testamento de Francisco Novaes de Magalhães, folhas 8 – 23 verso. 98ARQ/MRCI - Testamento de Manoel da Costa Aranha, folha 4. 99

Cf. páginas 177 e 178. 100 SILVA, Luciana da.Artefatos... p. 158

168

O leilão de objetos era uma oportunidade de reunir verba para o espólio,

principalmente quando algum item obtinha um valor maior do que o mínimo estabelecido

pelo avaliador, como no caso da escrava de Quitéria de Oliveira, que primeiramente havia

sido avaliada em 128$000 (cento e vinte e oito mil réis), mas foi arrematada por 145$000

(cento e quarenta e cinco mil réis.)101

Ao analisar o perfil dos bens, notamos que a maioria dos itens que iam à

arrematação eram escravos. Talvez pela demanda e pelos valores mais altos em relação a

outras categorias de bens, destinavam-se a leilão antes de outros objetos, como móveis,

roupas, ferramentas.

Antônio de Aguiar da Silva deixou dezesseis herdeiros, onze do primeiro casamento

com Maria Bicudo Chassim e cinco da união com Gertrudes Ferraz de Campos, sua

segunda esposa e inventariante. Alguns bens foram à arrematação antes de proceder à

partilha. As duas peças de roupas, um vestido de lemiste preto e um requelo102

de pano azul

usado estavam com os nomes de dois filhos ao lado do preço na avaliação, mas foram

levadas ao pregão.103

Existe apenas o registro da arrematação dos escravos, com os valores

e nomes, dos outros objetos, inclusive das roupas nada consta.

Neste caso, não foi possível repartir os bens entre os herdeiros. Devido ao grande

número de filhos, foi necessário levar uma parte dos bens a pregão. Como a legítima foi

pequena, 12$745 (doze mil, setecentos e quarenta e cinco réis), muito dificilmente

encontra-se bens em valores baixos nessa faixa para todos os herdeiros.

Em inventários de indivíduos casados, muitas vezes, localizamos apenas as roupas

do falecido, não do casal e de seus filhos. Pela legislação, deveriam constar todos os bens

do casal. Nuno Madureira apontou que na documentação portuguesa o vestuário dos

menores era considerado propriedade pessoal não partível, sendo ignorados pelos

101 ARQ/MRCI - Inventário de Quitéria de Oliveira, folhas 3 verso e 16. 102 Não foi possível identificar o que seria um requelo. 103 É comum observar nos inventários póstumos ituanos a escrita de nomes dos herdeiros ao lado da descrição dos objetos ainda no arrolamento, realizada pelo escrivão. Nos parece um esboço da divisão que será

registrada mais adiante.

169

avaliadores.104

Em relação aos inventários da vila de São Paulo entre os séculos XVI e

XVII, Luciana da Silva observou que quando apenas são arrolados os bens do cônjuge

falecido e nenhum do viúvo, em uma situação econômica não muito favorável, os bens

muito provavelmente seriam levados a pregão para arrecadar dinheiro para partilha e para

saldar as dívidas. Desta forma, se fossem arroladas as roupas da viúva ou viúvo, as mesmas

teriam que ser leiloadas, deixando a referida pessoa sem roupa alguma. Nesses casos,

parece-nos que os avaliadores respeitavam essa condição e não relacionavam as roupas de

viúvos e menores no espólio.105

O inventário do capitão Antônio Pompeu Bueno, é um caso único de nossa amostra.

Ao encerrar as contas, seu espólio apresentou um valor negativo. Em bens, o casal possuía

aproximadamente 697$000 (seiscentos e noventa e sete mil réis), mas em dívidas, possuíam

1:045$602 (um conto, quarenta e cinco mil, seiscentos e dois réis). Provavelmente Antônio

foi enterrado com o seu hábito de terceiro do Carmo, como era costume. Outra roupa que

ele possuía era a farda, de pano de fustão. No documento não foi arrolada nenhuma peça de

roupa de Dona Antônia de Arruda Góis, nem de seus filhos.106

Todos os bens do casal

foram levados a leilão.107

A situação de Dona Antônia era delicada, pois possuía quatro

filhos com idade entre dois e doze anos, além de estar grávida no momento em que seu

esposo veio a falecer. Em 1795, um ano após o falecimento de Antônio, Dona Antônia

casou sua primeira filha Anna então com treze anos com Antônio de S. Paio Góis.108

Tal

enlace seria uma opção viável para a filha. A morte do chefe de família geralmente alterava

a composição material do domicílio, bem como a composição familiar, especialmente em

relação aos órfãos.109

104MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários... p. 14. 105 Luciana da Silva observou em alguns inventários de moradores da vila de São Paulo esse costume do

avaliador não arrolar as roupas do cônjuge no momento do inventário póstumo. SILVA, Luciana

da.Artefatos...p. 213. 106 ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Pompeu Bueno. 107 Os recibos das arrematações constam às folhas 5 – 7. ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Pompeu Bueno. 108 LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia paulistana, p. 393. Disponível em: <http://www.arvore.net.br/Paulistana/Camrg_5.htm> . Acesso em: 30. set.2014. 109 SILVA, Luciana da.Artefatos...p. 158

170

O português Antônio Antunes Pereira contraiu o primeiro matrimônio com Rita

Victoria de Santana, com quem teve três filhos. Na segunda união, com Francisca Xavier

de Almeida, teve cinco filhos. Antônio e Francisca pertencem à nossa amostragem. Antônio

possuía o título de alferes e seu inventário dá indícios de que possuía uma loja, mas não

encontramos dados que confirmem essa ocupação na obra de Nardy Filho, nem em Silva

Leme.110

Antônio faleceu em 1802 e Francisca, em 1805.

Comparando os dois inventários, foi possível observar que os principais bens

continuaram com Francisca, apesar da partilha de Antônio contemplar os filhos de seu

primeiro casamento. Pela meação, Francisca ficou com os oito escravos que possuíam, dois

dos três bens de raiz, e mais alguns bens de valores menores, como livros e imagens

religiosas. As roupas do inventariado foram divididas de forma equânime entre seus filhos

homens.

Antônio, o filho mais velho de 23 anos, herdou uns calções de ganga branca

açucarada, forrado às dianteiras de pano de linho novo, 2$000 (dois mil réis) e uma véstia

também de ganga forrada de linho, mas já usada, no valor de 1$280 (mil duzentos e oitenta

réis).111

Francisco Cipriano, de 18 anos, recebeu uma véstia de pano azul entrefino, 2$000

(dois mil réis) e um capote jozesinho de pano azul usado, 1$600 (mil e seiscentos réis). Do

segundo casamento, o filho José, então com 12 anos de idade, ficou com o “casacão de

pano azul entrefino novo com espeguilha na gola e canhões [-] abotoadura amarela, 10$000

(dez mil réis)”. Ao seu irmão João, de apenas 8 anos, coube um colete de pano azul

entrefino e um vestido do mesmo tecido novo, avaliados respectivamente em 1$000 (mil

réis) e 4$000 (quatro mil réis).112

José recebeu apenas uma peça de roupa, diferente de seus irmãos que herdaram duas

peças. Porém, o casaco que lhe coube era novo, tinha vários detalhes, era composto de um

tecido de boa qualidade, tendo recebido um valor alto, 10$000 (dez mil réis) em

110 Na descrição de seus bens de raiz, junto às moradas de casas na Rua da Baratas, havia “armação da loja”

de três lanços, que vão até o Beco das Casinhas. Inventário de Antonio Pompeu Bueno, folha 11 verso. 111

ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Antunes Pereira, folha 8. 112ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Antunes Pereira, folha 8.

171

comparação com outros itens. Em relação às demais categorias de bens, o vestuário de

Antônio valia 38$280 (trinta e oito mil, duzentos e oitenta réis), valor significativo, pois as

roupas da casa somaram 10$560 (dez mil, quinhentos e sessenta réis), os móveis

alcançaram 17$200 (dezessete mil e duzentos réis), mas representava 9,7% do valor da

escravaria que era de 393$200 (trezentos e noventa e três mil e duzentos réis).

Para a meação da viúva, além do tapete e das toalhas, guardanapos e colcha,

encontramos alguns calções de pano azul forrados de Holanda já usados, $800 (oitocentos

réis) e o hábito e capa de camelão pardo, novos, avaliados em 10$000 (dez mil réis).113

Destas roupas, apenas o tapete parece constar em ambos arrolamentos. Apesar da

semelhança, não podemos afirmar com certeza que o “tapete encarnado com ramos novo,

de 2$560 (dois mil, quinhentos e sessenta réis)”114

poderia ser o mesmo “tapete de senhora,

em bom uso, avaliado em 2$000 (dois mil réis)115

, três anos depois, pois esta última

descrição não menciona a cor encarnada.

Embora os valores avaliados possam ser tomados em conta para determinar a

identificação da mesma peça, os critérios eram subjetivos, e variavam de pessoa para

pessoa. Mesmo se tratando de um profissional, como ocorria em Lisboa, onde se contratava

um oficial marceneiro para avaliar os móveis, alfaiates para avaliar as roupas, ourives para

as joias e assim por diante. Na vila de Itu, não observamos essa prática, apesar de encontrar

alguns oficiais, como o ferreiro Vicente Gonçalves Braga.

Em nosso universo de análise, a circulação das roupas depois da morte do indivíduo

ocorreu na partilha dos bens inventariados, realizada pelas autoridades competentes, como

o juiz de órfãos e tutores no caso em que envolvia menor, e acompanhada de perto pelos

herdeiros e pessoas próximas ao falecido. Em geral, notamos nas partilhas a atribuição de

peças de roupas a herdeiros de acordo com a sua utilidade, condizentes a sua idade, para

melhor aproveitamento dos bens. Em vida, a preocupação em prover bens e principalmente

algumas peças de roupas importantes às filhas no momento em que casavam e formavam

113ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Antunes Pereira,folhas 8 – 8 verso. 114

ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Antunes Pereira, folha 8 verso. 115ARQ/MRCI - Inventário de Francisca Xavier de Almeida, folha 10.

172

um novo domicílio ficou evidente nas relações de alguns bens concedidos em dotes. Outra

característica importante foi a ausência de peças de roupas de crianças e da grande maioria

dos viúvos relacionadas no rol de bens, uma garantia caso todos os bens fosse à leilão

público.

3.3 O material e o imaterial nas aparências: religiosidade, representações e honra

Neste tópico partimos do ramo da família Aranha para discutir alguns aspectos

relacionados à materialidade dos bens e à aparência, especialmente importantes no século

XVIII e início do XIX.

De proeminência na vila de Itu, a família Aranha atuou em diversas atividades e

ramos, como no comércio local, ocupando cargos na administração, produção açucareira e

sacerdócio. Os elementos observados através da documentação de quatro membros desta

família são reveladores de aspectos importantes da sociedade de características de Antigo

Regime, tais como as crenças e práticas relativas à religiosidade.

No esquema abaixo, estão indicados em negrito os membros da família de João da

Costa que pertencem a nossa amostragem.

Quadro 23 - Família Costa Aranha

Fonte: Genealogia Paulistana

João da Costa Aranha foi casado duas vezes. De 1714 a 1740 sua esposa foi Maria

Francisca Vieira, com quem teve sete filhos, sendo dois inventariados de nossa amostra:

173

uma filha, batizada com o mesmo nome de sua esposa, e o padre Manoel da Costa

Aranha.116

Já com Gertrudes de Araújo Cabral, teve cinco filhos, dentre estes, o Capitão-

mor Vicente da Costa Taques Góes e Aranha.

Segundo Francisco Nardy Filho, João “era natural de S. João da Foz, cidade e

bispado do Porto, Portugal. Foi morador em Itu, onde serviu os honrosos cargos de

vereador, almotacé, alferes das ordenanças e capitão das mesmas.117

O autor registrou que

João da Costa Aranha era “possuidor de avultada fortuna”, mas não encontramos seu

inventário póstumo, apenas os Autos de Contas de Testamento. Neste documento, consta

como posse de João ouro em barra e dinheiro. Grande parte do documento trata dos bens

pertencentes ao sequestro do Sargento-mor João de Souza Rodrigues.118

Sua filha Maria Francisca Vieira casou-se com Francisco Novaes de Magalhães no

ano de 1743.119

Natural de Braga, Portugal, Francisco mudou-se para Itu e trabalhou com

comércio.120

Deste casal, localizamos o inventário e o testamento de Maria, de seu marido

Francisco, os autos de contas de testamento. Neste último, não foi mencionado estoque de

loja, mas a seguinte menção: “declaro que tenho tido vários negócios, dos quais se me estão

devendo quantias, que hão de contar dos créditos”.121

De acordo com Nardy Filho, na loja de Francisco “se abasteciam os fazendeiros de

então, aos quais também Novaes de Magalhães servia de banqueiro, e os quais com ele

saldavam suas dívidas no fim da safra de açúcar, gênero com qual Novaes de Magalhães

negociava, costumando receber em arrobas de açúcar ou algodão.”122

Outros inventariados

da amostra também realizavam negócios com Francisco, a saber, João de Mello Rego

116 LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana... Disponível em:<

http://www.arvore.net.br/Paulistana/PBarros_2.htm> . Acesso em 19.set.2014. 117 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu: histórico da sua fundação e dos seus principais monumentos. Itu:

Ottoni Editora, 2000a.vol. 1. p. 77. 118 AESP - Autos de Contas de Testamento de João da Costa Aranha. 119 LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana...p. 493. Disponível em:

<http://www.arvore.net.br/Paulistana/PBarros_2.htm> . Acesso em: 19.09.2014. 120 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3. p. 223 121

AESP - Autos de Contas de Testamento de Francisco Novais de Magalhães, folha. 4 122 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3. P. 22

174

registrou em seu testamento que devia 40$000 (quarenta mil réis), e Ana de Campos,

22$180 (vinte e dois mil, cento e oitenta réis).

No inventário de Maria Francisca Vieira de 1796, constam as dívidas que muitas

pessoas contraíram com Francisco Novais de Magalhães, falecido em 1779. Pelo montante,

confirma a informação de Nardy Filho de que Novais exercia a atividade de banqueiro, pois

lhe deviam a soma de 20:154$653 (vinte contos, cento e cinquenta e quatro mil, seiscentos

e cinquenta e três réis).123

O capitão João Fernandes da Costa, (cunhado de Maria Francisca Vieira) outro

proprietário de loja, era também português, natural de Viana.124

Carlos Bacellar assinalou

que fazia parte da estratégia de construção e manutenção de fortunas do grande agricultor

paulista realizar alianças matrimoniais de seus filhos com pessoas envolvidas no comércio:

tropeiros, comerciantes de açúcar, negociante de escravos, pois “neste jogo, o parentesco –

de sangue ou de compadrio – era usado como uma garantia a mais para a boa conclusão do

negócio.”125

O comércio era associado aos ofícios mecânicos, tarefa depreciada entre a sociedade

local, mas desempenhada por portugueses recém-chegados cada vez mais numerosos na

capitania paulista.126

Como observou Maria Aparecida de Menezes Borrego, uma vez

inseridos na sociedade colonial, os comerciantes da vila de São Paulo buscavam

primeiramente através de casamentos com filhas de famílias tradicionais e posteriormente,

participando de irmandades, confrarias e cargos na administração local o poder e a

distinção social.127

Irmão de Maria Francisca Vieira, Manoel da Costa Aranha realizou “os seus

primeiros estudos em sua terra natal com os franciscanos, do Convento de São Luís;

seguindo depois para São Paulo, onde iniciou os seus estudos eclesiásticos, tendo recebido

123 ARQ/MRCI - Inventário de Maria Francisca Vieira, folhas 6 verso – 10. 124 LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana... p. 499. Disponível em:

<http://www.arvore.net.br/Paulistana/PBarros_2.htm> . 125 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra... p. 97. 126

BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil... p. 43 127 BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil... Cf. capítulo 3

175

as sagradas ordens a 29 de setembro de 1754”.128

Em Araçariguama foi vigário entre 1758 e

1764.129

Em 1764 foi nomeado vigário da vara da câmara eclesiástica de Itu, e em 1777,

vigário encomendado da paróquia de Itu. De acordo com Nardy Filho, Manoel exerceu o

paroquiato até 1790.130

Se analisarmos o inventário de Manoel da Costa Aranha pelo valor dos bens que

possuía, 8:314$722 (oito contos, trezentos e quatorze mil, setecentos e vinte e dois réis)

líquido, era um número considerável, mas não entra nas cinco maiores fortunas da amostra.

Nem em relação ao número de objetos, era o arrolamento com mais itens. Porém em

qualidade, os bens que o padre possuía em sua casa ao lado da Igreja do Bom Jesus são

muito significativos. O escrivão criou o tópico Damascos para arrolar as peças

confeccionadas com este tecido. Em nenhum outro inventário da amostra utilizou-se esse

critério para arrolar os bens. Neste tópico, que os bens somam 57$200 (cinquenta e sete mil

e duzentos réis), correspondente a 0,6% do total131

, constam de

Uma colcha de damasco grande forrada de tafetá amarelo, 14$000; uma dita de

damasco pequena para cama, 10$000; uma bolsa de damasco com borlas e

cordões de retrós carmesim, 3$200; três portadas de damasco com galão falso,

18$000, três ditas do dito mais pequeno (sic) com a mesma guarnição, 12$000.132

De acordo com Silva Pinto, portada era uma “porta grande com ornato. Portada de

cortinas são duas cortinas e uma sanefa para ornar uma porta.”133

Como as de Manoel eram

de damasco, pensamos se tratar de cortinas, conforme segunda definição acima. Sobre a

bolsa, não foi possível determinar o seu emprego. A colcha de damasco combinava com a

cama de jacarandá que tinha pés de cabra e cabeceira do mesmo tecido, avaliada em

128 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3. p. 28 129 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3. 130 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3. 131 Retirando os valores referentes aos imóveis e escravos, as peças de damasco representavam 3,5% dos bens

do padre Manoel. 132 ARQ/MRCI - Inventário de Manoel da Costa Aranha, folha 3 verso. 133 PINTO, José Maria Silva. Vocábulo Portada, disponível em: < http://www.brasiliana.usp.br/pt-

br/dicionario/3/portada>. Acesso em: 01.out.2014.

De acordo com Bluteau, sanefa era “um pedaço ou tira de pano, que se estende sobre a parte superior de uma cortina, etc.”, p. 469, disponível em :< http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/1/sanefa> . Acesso em

01.out.2014.

176

32$000 (trinta e dois mil réis).134

Manoel tinha ainda outras duas camas, mais modestas: de

madeira da terra, nos preços de 3$200 (três mil e duzentos réis) e $960 (novecentos e

sessenta réis). Duas das camas contavam com cortinados: um confeccionado com chita e

rendinha, em bom uso no valor de 12$000 (doze mil réis), e um cortinado de seda

encarnada com babados de tafetá, 8$000 (oito mil réis).135

Conforme apontado no espólio

do padre Manoel, as camas eram itens valiosos em nossa amostra, pois os catres eram mais

comuns e seus valores dificilmente ultrapassavam o valor mil réis, enquanto que as camas

valiam até doze vezes mais, de acordo com os acessórios e os materiais empregados.

Oito das trinta e uma cadeiras, e uma poltrona de Manoel possuíam assentos de

damasco. Manoela Pinto da Costa registrou que além de um “tecido de seda com desenhos

acetinados em fundo não brilhante”, damasco também poderia ser um “estofo de lã, linho

ou algodão imitando o damasco de seda.”136

Pelo preço alcançado nas avaliações, as sete

cadeiras de campanha feitas de jacarandá com assentos de damascos em 14$000, a dois mil

réis cada, ou a “cadeira de braços de pau preto e assento de damasco amarelo em 3$200”

(três mil e duzentos réis), nos faz acreditar que tratavam-se de estofamentos confeccionados

com o tecido de damasco, não imitação. Mas como era um tecido de apelo visual muito

grande e não acessível, compreendemos os esforços para criar imitações com matérias-

primas mais comuns que o fio de seda.

O padre Manoel da Costa Aranha, de acordo com o que foi possível observar de seu

inventário póstumo, usufruía de um padrão considerável de conforto dentre os

inventariados da amostra ituana. Além de seus vencimentos como pároco, seu sítio com

engenho produzia açúcar e aguardente, contando com a mão de obra de dezenove escravos.

Continuando os esforços de seu pai como tesoureiro da Igreja do Bom Jesus, não apenas

desempenhando a função de sacerdote, Manoel investiu em construções na área em torno

da Igreja do Bom Jesus e do Convento franciscano, que compunham três casas: duas

134 ARQ/MRCI - Inventário de Manoel da Costa Aranha, folha 3 verso. 135

ARQ/MRCI - Inventário de Manoel da Costa Aranha, folha 3 verso. 136 COSTA, Manoela Pinto da. Glossário... p. 144.

177

“pegadas” à Igreja e uma de frente a ela, com quintais, avaliadas no total em 1:700$600

(um conto, setecentos mil e seiscentos réis).137

Na rua Direita, tem mais uma morada de casas, que está descrita como vizinha à

casa de seu irmão por parte de pai, o Capitão-mor Vicente da Costa Taques Góes e Aranha,

avaliada em 153$600 (cento e cinquenta e três mil e seiscentos réis).138

Porém no

testamento escrito no mesmo ano de falecimento, Manoel comentou que seu irmão Vicente

morava em uma de suas casas, térrea. Com não possuímos o inventário do Capitão-mor,

não foi possível avaliar qual informação procede. Nardy Filho comentou que Vicente teria

falecido em uma situação próxima da miséria. Se assim foi, esta situação talvez explique

viver em casa de seu irmão e a inexistência de um inventário póstumo. Mas como um

homem influente e atuante por tantos anos no cargo de capitão-mor, Vicente muito

provavelmente teria ao menos um documento mesmo sem bens, mas com créditos ou

dívidas. Segundo Bacellar, Vicente foi um exemplo de acumulação de capital através da

arrecadação de impostos, pois um ofício menciona que atuou juntamente com dois sócios

como arrematante do contrato de dízimos entre os anos de 1780-1783.139

Manoel dispunha da única liteira mencionada em toda a amostra, arrolada entre os

bens das casas da vila, descrita como “uma liteira preparada em 40$000 (quarenta mil

réis).”140

Além a importância simbólica de possuir e circular pelos espaços públicos em

uma liteira, o valor é superior à uma casa nova de dois lanços que Manoel possuía em seu

sítio, avaliada em 25$600 (vinte e cinco mil e seiscentos réis)141

.

A posse de cadeiras por si só já apontam um nível de distinção, mas o estofamento

de damasco presente em parte das peças retrata uma situação de luxo e de conforto, pois

uma cadeira estofada proporciona sensação de bem estar muito maior que uma sem. E seu

estofamento não era de qualquer material, era feito com um dos tecidos mais caros

disponíveis na vila. O damasco era um padrão frequente nos móveis e alfaias do sacerdote,

137ARQ/MRCI - Inventário de Manoel da Costa Aranha, folha 6. 138ARQ/MRCI - Inventário de Manoel da Costa Aranha, folha 6. 139BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra...p. 171. Cf. nota 240. 140

ARQ/MRCI - Inventário de Manoel da Costa Aranha, folha 4. 141 ARQ/MRCI - Inventário de Manoel da Costa Aranha, folha 7 verso.

178

presente em colchas e na guarda cama principal também. Manoel investiu em itens

luxuosos para conforto doméstico, mas nas ruas da vila poderia desfrutar de uma distinção

que poucos poderiam, carregado em sua liteira.

Outro padre presente na nossa amostragem foi Antônio Francisco da Luz. Não

encontramos nenhuma menção a seu nome ou algum cargo que tenha ocupado na vila de

Itu. Antônio possuía uma capelinha em sua casa na Rua da Palma, mencionada na avaliação

deste imóvel. No item Imagens, vasos, ornamentos e mais pertences estão arrolados bens

que provavelmente pertenciam à capela que ele mantinha em sua casa. A capela era

formada por dois oratórios, duas imagens de Cristo crucificado, nove imagens de santos,

dois anjos, toalhas, alfaias litúrgicas (frontal, corporais), um missal, um ferro de fazer

hóstias. Antônio possuía uma casula de damasco branca e encarnada para realizar os ofícios

religiosos, avaliada em 6$400 (seis mil e quatrocentos réis). O objeto mais caro, porém, era

um cálice de prata, colher dourada e a capa do mesmo avaliados em 20$850 (vinte mil,

oitocentos e cinquenta réis), mas também havia duas jarrinhas de louça fina para flores em

2$000 (dois mil réis) e duas galhetas de estanho em $600 (seiscentos réis).142

A capela nos

fundos de sua casa contava então com os principais adereços decorativos e funcionais,

como o ferro de fazer hóstias. O padre Antônio dispunha do espaço e dos objetos

necessários para realizar cerimônias religiosas – ainda que para um número reduzido de

pessoas.

3.3.1 A Família Costa Aranha e a Igreja do Bom Jesus

O envolvimento de João da Costa Aranha com a igreja do Bom Jesus refletiu

diretamente na composição material da mesma. O pai e seus dois filhos foram os

responsáveis pela manutenção e ampliação do templo durante meados do século XVIII e as

duas primeiras décadas do século XIX, como apontou Nardy Filho. Nos inventários e

testamentos dos membros da nossa amostra também observamos um estreito vínculo entre a

família Costa Aranha e a Igreja do Bom Jesus, edificada no local da primeira capela erigida

pelo fundador Domingos Fernandes.

142ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Francisco da Luz, folhas 8 – 9.

179

Entre os anos de 1763 e 1765, João da Costa Aranha foi tesoureiro e protetor da

igreja. Segundo Nardy Filho, reedificou-a as suas próprias custas, pois a igreja encontrava-

se em ruínas.143

O padre Manoel da Costa Aranha substituiu seu pai no cargo de

“tesoureiro-protetor da igreja do Senhor Bom Jesus, à qual muito beneficiou, devendo-se a

ele a construção do sobrado anexo a essa igreja para servir de residência ao seu capelão.”144

Durante o seu paroquiato foram inauguradas a igreja Matriz (1780) e a igreja do Carmo

(1782).145

Após a morte de Manoel, seu irmão por parte de pai, o Capitão-mor Vicente da

Costa Taques Góes e Aranha assumiu o cargo de zelador e tesoureiro da igreja do Bom

Jesus.146

Nos testamentos dos membros da família é possível observar as doações feitas a

diversas igrejas. Maria Francisca Vieira, em seu testamento datado de 1788 deixou 4$000

(quatro mil réis) para a igreja Matriz, a saber, 3$000 (três mil réis) para o douramento e

pintura, “quatrocentos réis que dei já para os ornamentos que mandei vir para a mesma

Matriz assim como também deixo para o frontispício da mesma Matriz o dinheiro que me

deve e assistiu o defunto meu marido para a fábrica dela.”147

Adiante, deixou 100$000

(cem mil réis) para a capela do senhor Bom Jesus.148

Francisco Novaes de Magalhães, marido de Maria registrou em seu testamento que

deixava 3$000 (três mil réis) para o douramento e pinturas do altar-mor da Matriz,

descontando $300 (trezentos réis) que já havia doado para obras. Depois das doações para

familiares, registrou a doação de 200$000 (duzentos mil réis) para a Ordem Terceira de S.

Francisco, já para a capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, e para a capela de

Santa Rita, deixou 50$000 (cinquenta mil réis). Destinou 400$000 (quatrocentos mil réis) à

capela do Bom Jesus, além dos 3$000 (três mil réis) acima citado, deixou mais 200$000

143NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu: histórico... p. 77-78. 144NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3. p. 28 145NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3.p. 28 146NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu: histórico...p. 78-79. 147AESP - Autos de contas de testamento de Maria Francisca Vieira, p. 2. Disponível em:

<http://www.arquivoestado.sp.gov.br/revolucao_frameset1.php?imagem=BR_SP_APESP_JR_C05484_D009

> . Acesso em: 14. Mar.2014. 148 AESP - Autos de contas de testamento de Maria Francisca Vieira, p. . Disponível em: <http://www.arquivoestado.sp.gov.br/revolucao_frameset1.php?imagem=BR_SP_APESP_JR_C05484_D009

> . Acesso em: 14.mar.2014.

180

(duzentos mil réis) para ornamentos da Matriz.149

A soma das doações às igrejas e ordens

terceiras (quantia de 903$000, novecentos e três mil réis) corresponde ao valor que

possuíam em escravos quando Maria Francisca faleceu, que era de 946$000 (novecentos e

quarenta e seis mil réis), quantia considerável.150

Em relação às disposições do padre Manoel, para as igrejas ituanas doou 250$000

(duzentos e cinquenta mil réis) para a Matriz, 500$000 (quinhentos mil réis) para ornato da

capela de Santa Rita e 50$000 (cinquenta mil réis) para a de Santa Gertrudes. Além dos

templos ituanos, Manoel doou 150$000 (cento e cinquenta mil réis) para ser dividido da

seguinte forma, 100$000 (cem mil réis) para a igreja de Nossa Senhora da Penha de

Araçariguama e 50$000 (cinquenta mil réis) para os pobres, e 50$000 (cinquenta mil réis)

para ser repartido igualmente entre a igreja e os pobres da freguesia de São Roque.151

Em

seu testamento feito em 1801, o padre lembrou-se das igrejas e da população que assistiu

nas décadas de 1750 e 1760, a freguesia de Araçariguama, e a vizinha, São Roque.

Manoel ordenou que com o dinheiro de seus bens se continuassem as obras na

capela do Senhor Bom Jesus, “fazendo nela o forro da capela mor em primeiro lugar, para o

qual já está pronto o taboado (...) com tribunas na capela mor e no corpo da igreja, mandar

fazer a porta principal, preparar a sacristia (ilegível) que ao testamenteiro parecer

conveniente”.152

João da Costa Aranha e seus dois filhos Manoel e Vicente desempenharam o cargo

de tesoureiro e protetor da igreja do Bom Jesus de forma sucessiva, além dos

melhoramentos que realizaram nas construções. O envolvimento da família com a igreja

deu-se no desempenho dos cargos de tesoureiros do pai e dos dois filhos sucessivamente,

149AESP - Testamento de Francisco Novais de Magalhães, Folha 3 verso. No testamento de Francisco existe

referência à posse de bens de raiz do casal, mas sem menção aos valores. Não dispomos de seu inventário

póstumo, mas o de sua esposa, Maria Francisca Vieira, que faleceu sete anos depois, em 1796. 150 ARQ/MRCI – Inventário de Maria Francisca Vieira, folha 6. 151AESP - Testamento de Manoel da Costa Aranha, folhas 4 verso e 5. Disponível em:

<http://www.arquivoestado.sp.gov.br/revolucao_frameset1.php?imagem=BR_SP_APESP_JR_C05484_D004

> . Acesso em: 21.mar.2014. 152AESP - Testamento de Manoel da Costa Aranha, folha 6. Disponível em: <http://www.arquivoestado.sp.gov.br/revolucao_frameset1.php?imagem=BR_SP_APESP_JR_C05484_D004

> . Acesso em: 21.mar.2014.

181

mas também no financiamento de melhorias e ampliação do templo e adjacências com

recursos próprios. A filha e o genro também doaram dinheiro para a igreja do Bom Jesus,

mas ajudaram com maiores valores a igreja Matriz. Como atestou Octavio Ianni, “o poder

religioso, o poder econômico e o poder político emergentes começaram a assinalar posições

e lugares.”153

Acerca da imaterialidade, Daniel Miller apontou para uma regra geral observada: a

de que quanto mais a humanidade desenvolve a conceituação do imaterial, mais importante

se tornam suas formas de materialização.154

Este seria o paradoxo da imaterialidade,

segundo Miller, pois esta só pode expressar-se através da materialidade.155

É sobre esse

viés que pensamos a religiosidade ituana, pois existiam cinco igrejas somente na área

central da vila, construídas e mantidas não apenas pelos religiosos, mas principalmente

pelos seus fiéis.

No momento da morte, a igreja que os fiéis tanto estimavam e frequentavam durante

a vida e os hábitos das irmandades religiosas, identificação vestida durante os ritos,

serviam-nos de sepultura e mortalha respectivamente.

Em testamento, Manoel indicou que seu corpo deveria ser sepultado na capela mor

da igreja do Bom Jesus, com suas vestes sacerdotais.156

Maria era irmã terceira da Ordem

de São Francisco e pediu em seu testamento para ser enterrada na capela e amortalhada

com o hábito da mesma Ordem.157

Segundo o historiador João José Reis, as mortalhas

carregavam uma carga simbólica importante,

embora não tenhamos informações precisas sobre os múltiplos sentidos atribuídos

às mortalhas por nossos antepassados, o certo é que não era um elemento neutro.

Seu uso exprimia a importância ritual do cadáver na integração do morto ao outro

mundo e sua ressureição no fim deste mundo. Era uma representação do desejo

153IANNI, Octavio. Uma cidade antiga… p. 22. 154 MILLER, Daniel (ed.). Materiality. London. Duke University Press, 2005. p. 28 155MILLER, Daniel (ed.). Materiality... 156AESP - Testamento de Manoel da Costa Aranha, folhas 4 verso e 5. Disponível em:

<http://www.arquivoestado.sp.gov.br/revolucao_frameset1.php?imagem=BR_SP_APESP_JR_C05484_D004

> . Acesso em 14.mar.2014. 157AESP - Testamento de Maria Francisca Vieira. Folhas 1 e 2. Disponível em: <http://www.arquivoestado.sp.gov.br/revolucao_frameset1.php?imagem=BR_SP_APESP_JR_C05484_D009

> . Acesso em 20.mar.2014.

182

de graça junto a Deus, especialmente a mortalha de santo, que de alguma forma

antecipava a fantasia de reunião à corte celeste. Ao mesmo tempo que protegia,

com a força do santo que invocava, ela servia de salvo-conduto na viagem rumo

ao Paraíso. Pode-se até pensá-la como um disfarce de pecador. Seja qual for o

ângulo, ela representa a glorificação do corpo em benefício da glorificação do

espírito, uma das evidências mais fortes da analogia que se fazia entre o destino

do cadáver e o destino da alma. Vestir o cadáver com a roupa certa podia

significar, se não um gesto suficiente, pelo menos necessário à salvação.158

Desta forma, concordamos com o autor, pois observamos em Itu a preocupação dos

testadores em registrar com qual hábito gostariam de ser sepultados, o esforço da família

em providenciar um hábito para amortalhar seu ente falecido quando não o possuía, além

do grande número de hábitos relacionados nos inventários.

O marido de Maria, Francisco também era irmão da referida ordem e indicou o

mesmo desejo de enterro, com detalhe para o local: “em sepultura que do Presbítero para

baixo estiver desocupada”.159

Já Simão de Godoi Moreira pediu para ser enterrado em local

de destaque na Matriz: “na porta travessa defronte ao altar de Nossa Senhora do

Rosário”160

. Por fim, o padre Antônio Francisco da Luz pediu que fosse levado para a igreja

do Carmo sem solenidade alguma, e sepultado “ao pé do altar da Gloriosa Santa Ana.”161

Toda a preparação do funeral tinha muita importância, desde as vestes, a missa de

corpo presente, a quantidade de pessoas acompanhando, bem como o local de

sepultamento. De acordo com a tradição religiosa, todos poderiam ser enterrados dentro da

igreja. João Reis apontou, entretanto, que a diferença estava na localização: no corpo, área

interna, era local de distinção, enquanto que no adro, área externa, o sepultamento era de

graça, geralmente escravos eram ali enterrados.162

A indicação de Francisco para ser

enterrado na primeira sepultura vaga abaixo do presbítero, denota sua influência e poder

aquisitivo não só perante à irmandade, mas à sociedade no geral, pois quanto mais próximo

ao altar, maior a importância do indivíduo.163

158 REIS, João José Reis. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São

Paulo. Companhia das Letras, 1991. p. 123-124. 159 AESP - Auto de contas de testamento de Francisco Novais de Magalhães, folha 3 160 AESP - Auto de contas de testamento de Simão de Godoi Moreira, folha 3 verso. 161ARQ/MRCI - Inventário e testamento de Antônio Francisco da Luz, folha 2. 162

REIS, João José Reis. A morte é uma festa...p. 175. 163REIS, João José Reis. A morte é uma festa... p. 176.

183

O capitão João de Mello Rego pediu para ser amortalhado com o hábito e capa da

Ordem terceira do Carmo, bem como sepultado na capela da mesma ordem. Descreveu com

muitos detalhes seu desejo, sendo

corpo depositado na Igreja Matriz, com ofício de corpo presente, de três lições

com a música de cantochão pelos sacerdotes que assistirem ao dito ofício, e missa

cantada [ilegível] e na mesma matriz se me cantará um memento com música do

Mestre de capela, e daí, será meu corpo levado para a dita capela da Nossa Senhora do Carmo na tumba e acompanhado dos irmãos, vigário e sacerdotes.164

A nosso ver, o hábito era um elemento chave tanto durante a vida, quanto na morte

do indivíduo. Em vida, indicava à sociedade e seus pares, o pertencimento à determinada

irmandade, que dependendo de qual fosse, era referência de alto poder aquisitivo e/ou

relações próximas à estratos sociais importantes. Na morte, conforme frisou Reis,

sinalizava a fé e o desejo de salvação da alma. Se o indivíduo não possuía o hábito, no

momento do enterro era providenciado junto às irmandades, como atestaram os exemplos

da sogra e da segunda esposa de José do Amaral Gurgel.

Maria Lucília Viveiros Araújo apontou uma mudança importante na estrutura dos

testamentos entre os séculos XV e XIX: de preparação do funeral e salvação da alma,

perdeu a finalidade espiritual e passou a tratar dos bens materiais.165

Nos testamentos

consultados na amostra, observamos que tratam de ambos, indicando tanto a preocupação

com as missas (recomendando quantidades para a própria alma, de familiares e de

escravos), quanto mencionando, ainda que de forma breve, os bens que possuíam e

deixando alguma instrução para destinar certos objetos.

Dois exemplos de disposições sobre oratórios são muito interessantes. João do

Mello Rego indicou que o “oratório com a imagem do Senhor crucificado o deixo de

esmola a capela de Santa Gertrudes para que lhe coloque na sacristia ou lugar que melhor

parecer ao Rev. Vigário na mesma Igreja, para que fique com perpétua veneração.”166

164AESP - Autos de contas de testamento de João de Mello Rego, folha 3 verso. 165ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. “Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica com os

testamentos” In: Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo do Estado. Edição número 6 de outubro de 2005.

Disponivel em:

<http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao06/materia01/texto01.pdf> . Acesso em: 19.set.2014. 166AESP - Auto de contas de testamento de João do Mello Rego, folha 9 verso

184

Francisca Xavier de Almeida, registrou em testamento: “quero que o meu oratório e

imagens não sejam vendidos, e se incorporem as casas para todos os meus filhos o

gozarem.”167

Estes dois oratórios tiveram destinos diferentes: um doado para uma capela,

com o intuito de que mais pessoas o venerassem, e o segundo, a testadora proibia a venda,

visando a veneração das imagens sagradas apenas para os seus pares. Ambos sugerem uma

relação muito íntima dos proprietários com seus oratórios, sendo que utilizaram de sua

autoridade no momento da confecção do testamento para determinar o destino dos objetos

sagrados, cada um de forma diferente. Isto é, de forma pública para João, e de maneira

familiar para Francisca, buscando manter talvez a fé ou adoração em determinados santos

de sua preferência entre seus familiares e herdeiros. Nesses momentos de rituais de

passagem, Luciana da Silva ressaltou a importância dos objetos, quando

a cultura material sob propriedade e posse de um indivíduo serviria como um

meio através do qual este poderia garantir sua salvação. (...) ou, pelo menos, uma

estadia mais curta no Purgatório. Os objetos e bens dispostos nos testamentos

seriam, portanto, de grande importância para a alma do testador. Seu sossego

estaria associado com o cumprimento do destino dado a estes objetos em suas

cláusulas testamentárias. 168

O cumprimento dos testamentos pelos testamenteiros estava sujeito à fiscalização

das justiças civil e religiosa, porém, nem sempre a vontade do testador poderia ser colocada

em prática devido a regulamentações específicas presentes nas Ordenações Filipinas.169

Para o caso de Itu, por meio dos recibos que geralmente constam na documentação,

é possível observar que a maioria das disposições era realizada. Os recibos que dispomos

são geralmente dos herdeiros atestando que receberam os bens ou o valor correspondente

em dinheiro, e também são comuns recibos de padres ou irmãos terceiros recebendo valores

referentes às missas encomendadas para a alma do falecido e pela mortalha fornecida para o

enterro.

Luciana da Silva observou que na vila de Piratininga as roupas eram uma das

categorias de bens que mais circulava entre parentes e amigos do falecido. As peças mais

167ARQ/MRCI - Testamento de Francisca Xavier de Almeida. Folha 11 168

SILVA, Luciana da. Artefatos... p. 185. 169 SILVA, Luciana da. Artefatos... p. 185.

185

caras, de melhor qualidade eram deixadas para parentes ou pessoas próximas através das

disposições da terça170

, e as peças de tecidos ordinários, como o algodão da terra eram

doados aos escravos.171

Para a vila de Itu entre meados do século XVIII e início do XIX, ao

menos para os testadores da amostra, as roupas não foram objeto de grande preocupação,

pois não encontramos disposições específicas sobre a quem os testadores destinariam suas

vestimentas. No caso das filhas, esta ausência talvez estivesse relacionada ao fato de os pais

já terem providenciado peças de roupas de uso pessoal e de casa nos respectivos dotes.

Vimos a importância e a estreita relação entre a religiosidade e a materialidade nas

doações aos templos e na utilização dos hábitos das ordens terceiras, através de um ramo a

família Costa Aranha. Trataremos agora de um episódio envolvendo o membro mais

conhecido da referida família, o Capitão-mor Vicente da Costa Taques Góes e Aranha.

3.3.2 A farda do Capitão-mor de Itu

O capitão-mor Vicente da Costa Taques Góes e Aranha, faleceu em 1825. Segundo

Nardy Filho, Vicente exerceu o cargo de Capitão-mor por quase cinquenta anos, entre 1775

e 1825.172

“Até o censo de 1825, com exceção do ano de 1809, o responsável pela primeira

companhia da vila era Vicente da Costa Taques Goes e Aranha, que se distinguiu no

exercício do seu comando pela precisão no desempenho de seus deveres.”173

Além do

destacado cargo ter sido desempenhado por tanto tempo, Vicente foi retratado diversas

vezes devido a um episódio marcado por uma desavença com D. Pedro I, devido

especialmente por sua indumentária.

170 O espólio de um indivíduo casado e com herdeiros era dividido em duas partes, chamada meação. Uma

parte cabia ao cônjuge, e a parte do inventariado, era dividida em três partes, sendo que 2/3 era repartido entre

os herdeiros, chamada legítima e 1/3, chamada terça, poderia ser dividida, ou doada de forma livre pelo

indivíduo, caso registrasse suas últimas vontades em testamento. 171SILVA, Luciana da.Artefatos...p. 205. 172

NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3.p. 58. 173 SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura ...p. 78

186

Quando o príncipe regente D. Pedro esteve em São Paulo, em agosto de 1822,

Vicente Taques correu ao encontro de Sua Alteza. Apresentou-se no Palácio do

Governo trajado de grande gala, envergando um vistoso fardão vermelho, casaca

de rabo e calção, meias brancas, sapatos de fivela, penteado com grande cabeleira

de rabicho e empunhando o bastão simbólico de seu "capitanato". A sua

aparência exótica causou a maior surpresa e curiosidade. O príncipe regente,

mocinho ainda, soltou enorme gargalhada.174

Esse episódio foi retratado no filme Independência ou Morte, de 1972, dirigido por

Carlos Coimbra.175

Na cena, logo em seguida ao insulto, o imperador já condecora o

Capitão com as Ordens de Cristo e do Cruzeiro. A cena retratou o deboche do imperador, o

qual percebendo o mal-estar causado, prontamente o solucionou, concedendo ao velho

capitão duas comendas honoríficas no mesmo momento.

Na iconografia sobre a independência, Vicente possui dois registros: uma aquarela

de Miguel Dutra e um quadro de Benedito Calixto. De acordo com Paulo César Garcez

Marins, o retrato de Vicente de autoria de Benedito Calixto chegou ao Museu Paulista em

1902: “o retrato do líder ituano, célebre pela refrega com o príncipe-regente, que tentou

ridicularizá-lo em 1822, apresenta-o em traje formal de acordo com a aquarela de Miguel

Arcanjo Assunção, o Miguelzinho Dutra, realizada por volta da década de 1840.” 176

Entre os anos de 1835 e 1855, Dutra retratou diversas localidades, edificações e

tipos humanos.177

Segundo Jonas Soares de Souza, “pode-se dizer que a sua obra é fruto de

uma tradição regional bem caracterizada, na qual um realismo espontâneo e original

174 SOUZA, Jonas Soares de. Miguelzinho Dutra e a iconografia oitocentista de São Paulo. p. 5-6. Disponível

em:

<http://www.academia.edu/3537966/Miguelzinho_Dutra_e_a_iconografia_paulista> . Acesso em

01.ago.2013. 175Independência ou morte! Produção de Oswaldo Massaini, Direção de Carlos Coimbra. São Paulo:

Cinedistri, 1972. Disponível no endereço:

<http://www.youtube.com/watch?v=cRuCgVOi3wo> . Acesso em 01.ago.2013. 176MARINS, Paulo César Garcez. Nas matas com pose de reis: a representação de bandeirantes e a tradição da

retratística monárquica européia . Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 44, p. 77-104, fev.

2007. ISSN 2316-901X. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/34563>. Acesso em:

20.out.2014. 177 Miguel Arcanjo Benício da Assunção Dutra (1810-1875), de acordo com Ruth Tarasantchi foi “autodidata

na pintura, descobriu o uso da aquarela por si mesmo. Vivia no interior e não tinha acesso aos produtos de

pintura, por isso, sua paleta era reduzida. Usava sempre o azul para as árvores, matas e águas; tons ocres e

castanhos para as construções e outros detalhes. Raramente aparecia o vermelho e, mais dificilmente, o verde.

Como ele mesmo preparava suas tintas, é de admirar seu bom estado e o fato de não terem perdido a intensidade da cor.” In: TARASANTCHI, Ruth Sprung. “Obras desconhecidas de Miguelzinho Dutra.” In:

Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v. 10/11. p. 149-166 (2002-2003). p. 150.

187

aparece entrelaçado com soluções formais tradicionalmente barrocas.”178

A seguir, o retrato

póstumo que Miguel Dutra retratou o Capitão-mor.

Figura 10 – Vicente Taques por Miguel Dutra

Fonte: BARDI, Pietro Maria. Miguel Dutra... p. 95.179

Localizamos algumas obras que reúnem as aquarelas de Dutra, mas apenas

comentam sobre a trajetória do artista, a título de ilustração, carecendo de uma análise

profunda e pormenorizada da obra. A imagem de Dutra aponta o desgaste e a questão

colocada por Ruth Tarasantchi, pois a cor da casaca é de um vermelho fraco. Apesar da

dificuldade, é possível observar que na imagem o capitão mor enverga uma casaca e um

178 SOUZA, Jonas Soares de. Miguelzinho Dutra: traços e troças da Itu oitocentista. Artigo disponível em:

<http://www.itu.com.br/colunistas/artigo.asp?cod_conteudo=6890> . Acesso em 14.out.2014. 179 Acervo Museu Republicano Convenção de Itu, de Miguel Dutra. Capitão –mor de Itu Vicente da Costa

Taques Góes e Aranha. Aquarela sobre papel, 16x10,5cm, s/d.

188

colete vermelhos com alguns detalhes dourados, calção amarelo ou bege, meias brancas,

sapatos pretos com fivelas. Pelo volume nas mangas, aparenta ser uma renda

provavelmente de uma camisa branca usada por baixo do colete, e na cintura, havia um

cinto. Nas mãos, apoia-se com um bastão e segura um chapéu preto, bicórnio ou tricórnio.

A figura 11 refere-se ao retrato de Vicente por Benedito Calixto.

Figura 11 - Vicente da Costa Taques Góes e Aranha por Benedito Calixto

Fonte: Acervo Museu Paulista. Retrato do Capitão-mor de Itu Vicente da Costa Taques Góes e Aranha, Óleo

sobre tela, de Benedito Calixto, s/d.

De acordo com Paulo César Garcez Marins, o retrato de Vicente de autoria de

Benedito Calixto chegou ao Museu Paulista em 1902. Segundo Marins,

189

esta aquarela, hoje pertencente ao acervo do Museu Republicano Convenção de

Itu, foi muito provavelmente a mesma examinada por Calixto, conforme o

mesmo declara em carta de 1919, em que descreve sua tela como “cópia fiel” da

aquarela “obtida pelo Dr. Antônio Piza”.180

Produzida no final do século XIX, a tela que retrata Vicente está relacionada ao

movimento de exaltação ao passado vicentino e bandeirante, como apontou Marins.181

As

publicações e reedições das obras genealógicas Nobiliarquia paulistana e Genealogia

paulistana atestam esse interesse pelas figuras ilustres do período colonial. No quadro de

Calixto, o capitão-mor aparece de forma muito semelhante à aquarela, com a diferença na

postura, com o chapéu bicórnio na outra mão junto com o bastão. As principais diferenças

em relação à aquarela, é que na tela de Calixto, Vicente está portando uma espada e foi

ambientado em um cômodo, com uma estante, mesa e cadeira de madeira torneada. A data

mencionada no quadro, 1779 faz referência ao ano que Vicente assumiu o posto de capitão-

mor da vila ituana.

Em outra referência, o Capitão Vicente também foi retratado como uma pessoa de

boa vontade e de hábitos antiquados, pelo menos ao ver de Auguste de Saint-Hilaire

quando visitou a vila de Itu em 1819. Segundo o viajante francês,

Quando as plantas recolhidas durante o dia foram por mim analisadas, saí com o

capitão a fazer um passeio pela cidade e ver o que a mesma possuía de mais

notável; fiz também uma visita ao capitão-mor, que me cunhou de gentilezas já

fora de uso desde muito tempo, ao norte da Europa, mas a que os portugueses

ainda não haviam renunciado.182

Os registros feitos de Vicente e sobre o episódio com o imperador cristalizaram uma

memória sobre sua carreira, sua atuação e até mesmo sobre sua postura severa e leal à

monarquia. Para Vicente a sua farda antiga representava o orgulho de ter desempenhado

por quarenta e seis anos o cargo de capitão mor. O escárnio do imperador atestou a

defasagem da vestimenta do velho capitão-mor que havia servido D. José I, D. Maria I, D.

João VI e também a D. Pedro I, até sua morte em 1825.183

180MARINS, Paulo César Garcez. Nas matas...p. 90. 181MARINS, Paulo César Garcez. Nas matas... p. 90-91. 182 SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem....p. 225. 183

BARBAS, Manoel Valente. “A família Costa Aranha na vila de Itu do século XVIII e início do XIX.” In:

Revista da ASBRAP, São Paulo, n.6, p. 139-168, 1999. p. 151.

190

Roger Chartier destacou que em uma “sociedade antiga, a posição “objetiva” de

cada indivíduo como estando dependente do crédito atribuído à representação que ele faz

de si próprio por aqueles de quem espera reconhecimento; quando compreende as formas

de dominação simbólica, por meio do „aparelho‟ ou do „aparato‟.184

Desta forma, os

significados que o velho capitão-mor compreendia estar mobilizando quando trajava sua

antiga farda vermelha de galões e botões dourados não foram codificados, ou reconhecidos

da mesma forma pelo jovem imperador, que o julgou antiquado. Como ressaltou Sandra

Pesavento, “a força da representação se dá pela sua capacidade de mobilização e de

produzir reconhecimento e legitimidade social. As representações se inserem em regimes

de verossimilhança e de credibilidade, e não de veracidade.”185

Entre os séculos XVIII e XIX a aparência era um elemento crucial para as

sociedades de Antigo Regime. Sua atuação se dava no âmbito individual, constituindo o

indivíduo, e de forma mais ampla, inserindo-o em uma comunidade. O grande desafio que

o tema suscita é o de compreender quais os códigos que regiam a percepção sobre os trajes

nestes séculos, para além de saber se esta ou aquela tendência era adotada. Com base nos

bens arrolados nos inventários póstumos, foi possível avaliar para a sociedade da vila de

Itu, que as vestimentas eram elementos importantes para a exteriorização da ordenação ou

distinção social. Para aqueles que possuíam uma casa na região central da vila além da

propriedade em um bairro rural, reservavam algumas das principais peças de roupas e joias

para uso nos espaços de sociabilidade da vila.

Se no momento da partilha dos bens aparentemente a divisão das peças de roupas e

demais objetos relacionados à aparência segue uma divisão equânime entre os herdeiros,

nas relações dos objetos transferidos na forma de dotes para as filhas no momento do

casamento, notamos uma preocupação dos pais em proporcionar um padrão mínimo de

comodidade ou mesmo de prover com alguns objetos o início do domicílio dos filhos. As

roupas da pessoa falecida continuavam a vestir e proteger outros corpos, sendo doadas,

arrematadas em leilão ou herdadas por filhos, netos ou pessoas próximas.

184 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa/ Rio de Janeiro, Difel/Bertrand, 1990. p. 22 185PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 41

191

Por outro lado, algumas peças de roupas eram importantes tanto na vida quanto na

morte, como atestam os hábitos de ordens terceiras. Estes indicavam e materializavam a fé,

o pertencimento a um grupo social restrito e atuavam como ingresso à salvação no céu.

192

193

Considerações finais

O século XVIII foi o período que transformou as feições da vila ituana, com casas,

sobrados e templos erguidos e ornados com recursos provenientes da riqueza gerada pela

produção canavieira. Em meados do século XIX, considerada polo de atração demográfica,

a vila de Itu foi palco da construção inicial de fortunas que se estabeleceram e prosperaram

no ramo cafeeiro no oeste paulista.

As famílias e indivíduos que investigamos através de seus inventários possuíam

padrões de bens diversos. Desde apenas uma saia até vestidos de tecidos finos bordados

com fios de ouro, a documentação nos permitiu observar as diferentes composições dos

pertences têxteis, bem como os demais. Nos inventários de proprietários de engenho de

açúcar, nomeadamente os indivíduos que possuíam escravaria, o valor das roupas

representava entre 0,02 e 2,0% do total de bens. Ao excluir os valores dos bens de raiz e

dos escravos, a porcentagem das roupas em relação ao total de bens aumentava e o seu

valor se equiparava aos utensílios domésticos e aos móveis.

Dentro das casas ituanas, grande parte dos lençóis, toalhas, fronhas e guardanapos

eram de algodão. O linho e em menor número, a bretanha, também compunham as peças de

uso doméstico. Os tecidos mais valiosos, como droguete, damasco e a cassa marcavam a

distinção nos domicílios mais abastados. O item com maior valor monetário observado foi

a colcha, especialmente as confeccionadas em chita e damasco.

Os espólios mais abastados estavam relacionados às atividades de produção

canavieira (toda a produção ou parte), a saber: a plantação do canavial, a produção do

açúcar nos engenhos e, consequentemente, a sua comercialização. Os sacerdotes Antônio

Francisco da Luz e Manoel da Costa Aranha eram senhores de engenho com os bens

avaliados na faixa de 8:000$000 (oito contos de réis), um valor bem considerável para a

época, sendo que seus maiores rendimentos eram provenientes da atividade canavieira e

não das côngruas (remuneração eclesiástica). Da mesma forma, que os títulos militares não

remunerados que propiciavam prestígio e distinção aos enriquecidos senhores de engenho.

194

Em inventários de proprietários com mais de um imóvel, o padrão observado foi o

da distribuição dos bens em imóveis localizados na vila e no bairro rural. Em doze

inventários de indivíduos que possuíam propriedades em bairros rurais e na vila de Itu,

notamos que nesta última, se concentravam as roupas de casa com bordados, as de tecidos

mais finos, a maior parte das roupas de uso pessoal, principalmente os hábitos de terceiros

do Carmo, bem como as joias e demais adereços como relógios de algibeira. A distribuição

de bens mais caros e relacionados à aparência nas casas da vila em detrimento das

propriedades dos bairros rurais nos indica a necessidade ou a utilidade destes artefatos no

espaço da vila, local de sociabilidade privilegiada neste período, pois ali era o espaço onde

se celebravam os ritos festivos relacionados ao Estado, à religião, as trocas comerciais na

rua das Casinhas, os leilões e arrematações próximo à Casa de Câmara e Cadeia, as igrejas

e seus largos, ou seja, os espaços que promoviam os encontros.

As roupas femininas arroladas nos inventários da vila de Itu em geral são

semelhantes ao padrão observado para outra localidade da América Portuguesa, a comarca

de Rio das Velhas, em Minas, e também na amostra lisboeta. O traje mais comum eram as

saias, utilizadas juntamente com camisas, cujo valor era mais baixo do que os vestidos,

também presentes na documentação, porém em menor número.

O traje masculino padrão, também semelhante à Europa, era composto por calções,

véstia, colete e casaca. Enquanto o casaco mais largo, utilizado por cima da casaca recebia

o nome casacão em Itu, em Lisboa era denominado de sobrecasaca. O fraque de influência

inglesa foi mencionado em dois inventários: um dado interessante, já que era uma peça de

uso contemporâneo na Europa. Em relação aos tecidos empregados nas vestimentas em Itu,

era comum o uso de calção e colete do mesmo tecido, enquanto em Lisboa a casaca e a

véstia eram semelhantes. Sob uma análise comparativa entre a cidade de Lisboa e Itu,

notamos que a roupa feminina valia mais do que a masculina, e o valor médio atribuído às

roupas na Metrópole era superior ao ituano.

Não podemos tomar a não ocorrência de algum objeto no momento do arrolamento

como um indicador do desconhecimento daquele artefato na localidade. Como exemplo, a

195

peça de roupa denominada pescocinho, comum no universo lisboeta, em Itu, não foi

relacionada. Porém, dois pares de fivelas de pescocinho foram arrolados nos inventários de

José Manoel da Fonseca Leite e de Elena Maria de Souza, o que aponta para uma

ocorrência mais restrita, porém existente. Assim também observamos em relação aos

calçados, com seis ocorrências, cinco de homens e um par feminino. Entretanto, entre os

quarenta e quatro inventariados registramos quarenta e um pares de fivelas de sapatos,

número considerável que indica a posse de calçado em algum momento.

Em relação aos tecidos das roupas e os disponíveis nos estoques das lojas ituanas,

exceto o algodão mais grosseiro utilizado em vestimentas de cativos, todos eram

importados. A presença dos tecidos de algodão em substituição aos panos de linho confirma

a tendência geral do final do século XVIII, em ocorrência equânime tanto em relação às

peças de uso pessoal, quanto às roupas da casa. Também para os Mapas de Importação da

vila de Itu, notamos a mesma disposição que aponta o grande volume de tecido de algodão

importado até 1804, proveniente de Lisboa, enquanto da região norte, vinha maior

quantidade de panos de linho. Em Portugal a estamparia de tecidos de algodão provenientes

da Ásia ganhou impulso no período, fornecendo tecidos como a chita estampados e muito

coloridos, além dos próprios tecidos indianos.

Consideramos o valor monetário atribuído ao artefato no momento do inventário

póstumo um indicador importante, pois reflete a importância da matéria-prima, da técnica,

do estado de conservação e mesmo da relevância daquele objeto em questão, passando,

obviamente, pela subjetividade do avaliador. Quando comparadas com as demais categorias

em conjunto, não alcançaram altas somas, pois algumas peças - como os vestidos femininos

- receberam valores semelhantes ao preço de um escravo, mão-de-obra indispensável nas

atividades agrícolas, domésticas e também por isentar o seu proprietário das atribuições

manuais, motivo de desonra perante a sociedade do Antigo Regime.

As roupas não figuraram como os bens mais valiosos e também não foram

mencionadas de forma recorrente nas disposições testamentárias. Isto nos indica uma

preocupação menor, ou mesmo nula, desses sujeitos em garantir que determinado ente

196

recebesse uma roupa, denotando o grau de valorização daquele artefato, diferentemente

como ocorria no século anterior. Entretanto, nos casos de José do Amaral Gurgel e de João

de Mello Rego, notamos a atenção dos pais em dotar as filhas de forma equânime no

momento de seus matrimônios, com peças de roupas condizentes ao novo estado civil de

casadas. Simbolicamente, porém, tais objetos representavam elementos importantes para

exibição/aparência perante os demais indivíduos da localidade. Nestes casos, o manto era

uma peça essencial para o uso feminino: atuava na ocultação do rosto, respeitando a

tradição portuguesa, de que as mulheres honradas não deveriam sair desacompanhadas e

desprovidas de uma peça que lhe ocultasse sua face, além é claro do traje em geral.

As fardas e os hábitos de membros de ordens terceiras também apontaram para a

grande importância simbólica que carregavam, ao indicarem visual e materialmente o

pertencimento do indivíduo que os vestia aos grupos restritos e de prestígio social. Neste

universo de reverencias e mercês, salientava-se o hábito mais do que a farda. O hábito tinha

uma força simbólica entre o Céu e a Terra, a vida e a morte: nos códigos e crenças da

sociedade do Antigo Regime sua posse e uso garantiam ao fiel o acesso ao paraíso. À vida

eterna.

A posse de bens está relacionada à necessidade utilitária dos objetos, mas também à

demanda simbólica. Em relação ao vestuário, este proporciona a proteção contra o calor, o

frio, e também atua na constituição da imagem e da identidade do indivíduo, mobilizando

significados e elementos simbólicos através dos tecidos, dos modelos de roupas, dos

adornos utilizados. No contexto investigado, a aparência constituía socialmente o sujeito,

revelando através do seu traje o pertencimento ou não a grupos de prestígio e distinção

social como as ordens militares, as irmandades religiosas.

Nesse sentido, a posse de capas e mantos é um importante indicador social: ao

ocultar os rostos e corpos com tecidos valiosos, distinguiam as senhoras de respeito

publicamente, mas também serviam para encobrir a pobreza dos trajes das menos

favorecidas.

197

Referências bibliográficas

Fontes

Fontes Manuscritas

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa

Fundo Geral dos Feitos Findos.

Correição Cível da Cidade de Lisboa, Inventários post mortem

Antônio de Abreu Martins, 1793, maço 135, n.1, caixa 227

Antônio José de Freitas, 1796, maço 133, n.8, caixa 223

Francisco Soares Cardoso da Veiga, 1797, maço 207, n.6

Francisco José Guerra, 1799, maço 207, n.5

Feliciana Teresa, 1801, maço 207, n.8

Antônio João da Luz, 1804, maço 32, n. 5, caixa 56

Anselmo José da Silveira, 1805, maço 125, n.4, caixa 209

Antônio Gonçalves de Barros, 1806, maço 132, n. 14, caixa 222

Inventários Orfanológicos, Lisboa.

Antônia Maria Rita, 1769, maço 64, n. 4.

Manoel Francisco de Campos, 1774, maço 181, n.4

Ana Joaquina de São José, 1775, maço 44, n.3, caixa 80.

Agostinha Maria, 1779, maço 160, n. 14, caixa 248.

Antônio Alvares de Abreu, 1779, maço 62, n.4

Antônio Coelho Amado, 1780, maço 134, n.5, caixa 226

Ana Maria de São José, Luísa Maria, 1791, maço 67, n.9

Ana Victoria Joaquina de Andrade, 1791, maço 34, n.4, caixa 60

Antônio José dos Santos, 1794, maço 141, n.17

198

Antônio José Ribeiro, 1795, maço 34, n.9, caixa 61

Antônio Ferreira Themudo, 1798, maço 188, n.5, caixa 286

Amaro Monteiro da Cunha, 1798, maço 43, n.2, caixa 78

Antônio Vietas Lurio, 1798, maço 6, n. 6, caixa 10

Antônio Rodrigues, 1800, maço 110, n.2

Angélica Perpétua Rosa Portella, 1802, maço 45, n.3

Ana Maria da Conceição, 1808, maço 85, n.7

Arquivo Público do Estado de São Paulo

Juízo dos Resíduos. Autos de Contas de Testamentos.

João da Costa Aranha, 1769, caixa C00733

Simão de Godoy Moreira, 1779, caixa C00554

João de Mello Rego, 1779, caixa C00554

Francisco Novaes de Magalhães, 1789, caixa C00557

Maria Francisca Vieira, 17881

José Manoel da Fonseca Leite, 1785

Manoel da Costa Aranha, 1801

Antônio Antunes Pereira, 1802

Inácio Pacheco da Costa, 1805

Francisca Xavier de Almeida, 1805

Maços de População da Vila de Itu, micro-filme.

Rolo 85, 1766-1775

1 Os últimos seis documentos foram consultados on-line. Disponíveis em:

<http://www.arquivoestado.sp.gov.br/a_juizoresiduos_digitalizados.php> . Acesso em 20. Jul. 2013.

199

Rolo 87, 1793-1798

Rolo 88, 1800-1803

Rolo 89, 1804-1806

Rolo 90, 1807-1808

Arquivo Histórico do Museu Republicano “Convenção de Itu”

Fundo Arquivo Central da Comarca de Itu. Primeiro Ofício de Justiça.

Inventários e testamentos

Ana de Campos, 1780, caixa 1

Luzia Pedroza, 1791, caixa 1

Teresa Jesus Barbosa, 1791, caixa 1

Salvador Jorge Velho, 1793, caixa 2

Manoel Alvares Lima, 1793, caixa 3

Antônio Pompeu Bueno, 1794, caixa 4

João Leite Penteado, 1795, caixa 5

Maria Francisca Vieira, 1796, caixa 6

Maria Forquim Pacheco, 1797, caixa 7

Antônio de Aguiar da Silva, 1798, caixa 8

José Manoel da Fonseca Leite, 1798, caixa 8

Felisberto Ferraz Leite, 1798, caixa 8

Francisco Paes de Siqueira, 1799, caixa 9

Mariana Leite Pacheco, 1779, 10

José Gonçalves de Barros, 1779, caixa 10

Mariana Cardoso de Campos, 1779, caixa 13

200

José Leme de Oliveira, 1800, caixa 14A

Antônio Dias de Matos, 1800, caixa 14B

Elena Maria de Souza, 1800, caixa 14B

Manoel da Costa Aranha, 1801, caixa 15

Ana da Costa, 1801, caixa 15

Inácia Leite de Almeida, 1801, caixa 15

João Fernandes da Costa, 1801, caixa 15

Antônio Antunes Pereira, 1802, caixa 16

Inácio Pacheco da Costa, 1806, caixa 16A

Antônio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A

João Ferraz de Campos e Rosa Maria da Siqueira, 1804, caixa 16B

José Fiusa, 1804, caixa 16B

Quitéria de Oliveira, 1804, caixa 16B

Ana Maria da Silveira, 1805, caixa 16B

José Leme de Alvarenga, 1805, caixa 16B

Francisca Xavier de Almeida, 1805, caixa 16B

Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17A

José do Amaral Gurgel, 1806, caixa 17A

Ana Leite Gularte, 1808, caixa 17B

Vicente Gonçalves Braga, 1808, caixa 17B

José Alves Lima, 1808, caixa 17B

Bernardo de Quadros Aranha, 1808, caixa 17B

Ana Gertrudes de Campos, 1808, caixa 17B

José Manoel Caldeira Machado, 1808, caixa 17B

201

Josefa Maria de Góis Pacheco, 1824, caixa 29b

GODOY, Silvana Alves de. Tabela dos Maços de População da vila de Itu, planilha em

Excel.

Fontes Impressas

ALMEIDA, Cândido Mendes de (org.). Código filipino ou ordenações do reino de

Portugal, recompilados por mandado de el rei d. Filipe I (1603). Rio de janeiro. Do Instituto

Filomático, 1870. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p1015.htm> .

Acesso em: 02. out. 2014.

Appendix to "Ordenacoẽs e leys do reyno de Portugal, confirmadas, e estabelecidas pelo

senhor rey D. Joao IV. Novamente impressas, e accrescentadas com tres colleccoẽs: a

primeira, de leys extravagantes; a segunda, de decretos, e cartas; e a terceira, de assentos da

Casa da Supplicacao e Relacao do Porto." Lisboa: No Mosteiro de S. Vicente de Fora,

Camara Real de Sua Magestade, 1747. Capítulo X. Disponível em:

<http://archive.org/stream/appendixdasleyse00port#page/n38/mode/1up> . Acesso em 11.

fev. 2014

LEME, Luiz Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana. São Paulo, SP: Duprat, 1903-05.

11 Volumes. Disponível em: < http://www.arvore.net.br/Paulistana/> . Acesso em: 20. nov.

2014

Obras de referência

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico.

Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 -1728. 8 v. Disponível em: <

http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/edicao/1> . Acesso em: 27. dez. 2014.

COSTA, Manoela Pinto da. Glossário de termos têxteis e afins. Revista da Faculdade de

Letras. Ciências e Técnicas do Património. Porto, I Série, vol. III. Pp. 137-161, 2004.

PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira por Luiz Maria da Silva

Pinto, natural da Provincia de Goyaz. Na Typographia de Silva, 1832. Disponível em: <

http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/edicao/3> . Acesso em 27. dez. 2014.

SÁ, Isabel dos Guimarães (coord). Glossário Portas Adentro. Disponível em:

<http://www.portasadentro.ics.uminho.pt/c.asp> . Acesso em: 20. dez. 2014.

202

SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da língua portuguesa. Lisboa: Typographia

Lacerdina, 1813. Disponível em: < http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/edicao/2>

. Acesso em 22. dez. 2014.

Artigos, livros e teses

ACAYABA, Marlene Milan (Coord.); GUERRA, José Wilton; SIMÕES, Renata da Silva;

ZERON, Carlos Alberto (Org.). Equipamentos, usos e costumes da casa brasileira. São

Paulo: Museu da Casa Brasileira, Imesp, Edusp, 2001, 4 vols.

ALGRANTI, Leila Mezan. “Alimentação e Cultura material: das fontes seriadas ao estudo

de caso (Rio de Janeiro segunda metade do século XVIII).” Apresentação parte da Mesa

redonda: Caminhos de pesquisa sobre cultura material. In: V Encontro Internacional de

História Colonial. UFAL, Maceió-AL, 2014. Texto fornecido pela autora.

______. "Artes de mesa: espaços, rituais e objetos em São Paulo Colonial" trabalho

apresentado no I Seminário Internacional Elementos Materiais da Cultura e Patrimônio

realizado pelo Programa de Pós Graduação em História ,FAFICH/ UFMG - Belo

Horizonte, novembro de 2011. Texto fornecido pela autora.

______. “Famílias e vida doméstica”. In: SOUZA, Laura de Mello e. História da Vida

Privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. Fernando A. Novais

(coord). São Paulo: Companhia das Letras, 1997. volume 1.

ALMEIDA, Adílson José de. Uniformes da Guarda Nacional: 1831 – 1852. A

indumentária na organização e funcionamento de uma organização armada. Dissertação

(Mestrado em História). 1998. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Universidade de São Paulo. São Paulo, 1998.

ALMEIDA, Leandro Antonio de. Senhores de Terra da Vila de Itu em 1817. Revista da

ASBRAP, São Paulo, v. 7, p. 7-77, 2001.

ANDRADE, Rita Morais. Bouè Soeurs RG 7091. A biografia cultural de um vestido. Tese

(Doutorado em História). 2008. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo,

2008.

APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva

cultural. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense. 2008.

ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. “Contribuição metodológica para a pesquisa

historiográfica com os testamentos” In: Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo do

Estado. Edição número 6 de outubro de 2005. Disponivel em:

<http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao06/materia01/text

o01.pdf> . Acesso em: 14. fev. 2013.

203

ARIÈS, Philippe. “Por uma história da vida privada”. In: História da vida privada 3: da

Renascença ao Século das Luzes. Organização Philippe Ariès e Roger Chartier. São Paulo.

Companhia das Letras, 1991.

BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório

entre os senhores de engenho do Oeste paulista, 1765 – 1855. Campinas: Área de

Publicações CMU/Unicamp, 1997.

______. Viver e sobreviver em uma vila colonial: Sorocaba, séculos XVIII e XIX. São

Paulo: Annablume, Fapesp, 2001.

BARBAS, Manoel Valente. “A família Costa Aranha na vila de Itu do século XVIII e

início do XIX.” In: Revista da ASBRAP, São Paulo, n.6, p. 139-168, 1999.

BARDI, Pietro Maria. Miguel Dutra, o poliédrico artista paulista. (Itu, 1810- Piracicaba,

1875). São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 1981.

BARTHES, Roland. Sistema da moda. São Paulo: Ed. Nacional: Ed. da Universidade de

São Paulo, 1979.

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do

Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). 2. Ed. São Paulo: Alameda, 2007.

BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São

Paulo Colonial (1711 – 1765). São Paulo: Alameda, 2010.

BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o poder. Irmandades leigas e política colonizadora em

Minas Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986.

BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

______ . Razões praticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.

BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII.

São Paulo: Martins Fontes, 1998. 3 v.

BUCAILLE, Richard, PESEZ, Jean-Marie. Cultura Material. Enciclopédia Einaudi,

Lisboa, IN-CM, 1989, vol.16 - Homo — Domesticação — Cultura Material, p.11-47.

BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Do borrão às aguadas: os engenheiros militares e a

representação da Capitania de São Paulo. Anais do museu paulista. 2009, vol.17, n.2, pp.

111-153.

BUENO, Maria Lúcia. “Moda e Ciências Humanas”. In: CRANE, Diana. A moda e seu

papel social: classe, gênero e identidade das roupas. São Paulo: Editora Senac São Paulo,

2006.

204

BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.

______. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989). São

Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991.

CARVALHO, Vânia Carneiro de. “Cultura Material, espaço doméstico e musealização.”

In: Vária História. (UFMG) Belo Horizonte, v. 27, p. 443 – 469, 2011.

______. Gênero e Artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São

Paulo, 1870 – 1920. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/FAPESP, 2008.

CARVALHO, Nilson Cardoso de. Arquitetura em taipa. Disponível em:

<http://www.promemoria.indaiatuba.sp.gov.br/arquivos/galerias/arquitetura_em_taipa.pdf>

. Acesso em: 27. jan.2014.

CASCUDO, Luís da Câmara. Rede de dormir: uma pesquisa etnográfica. São Paulo:

Global, 2003.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa/ Rio de

Janeiro, Difel/Bertrand, 1990.

COPPOLA, Soraya Aparecida Álvares. Costurando a Memória: o acervo têxtil do Museu

Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). 2006.

Escola de Belas Artes. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006.

COSTA, Ana Paula Pereira. “Organização militar, poder de mando e mobilização de

escravos armados nas conquistas: a atuação dos Corpos de Ordenanças em Minas colonial.”

In: Revista de História Regional 11(2): 109-162, Inverno, 2006.

CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. São

Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006.

D'ELBOUX, Roseli Maria. Uma promenade nos trópicos: os barões do café sob as

palmeiras-imperiais, entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Anais do Museu Paulista. 2006,

vol.14, número 2 (julho-dezembro). pp. 193-250.

DEL PRIORY, Mary. Mulheres de açúcar: Vida cotidiana de senhoras de engenho e

trabalhadoras da cana no Rio de Janeiro, entre a Colônia e o Império. Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 2008, v. 169, p. 57-90.

DIAS, Luís Fernando de Carvalho. Luxo e Pragmáticas no pensamento econômico do

século XVIII. Separata do Boletim de Ciências Econômicas da Faculdade de Direito de

Coimbra. v. IV, número 2-3, 1955, número 1-2-3, 1956.

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São

Paulo: Brasiliense, 1995.

205

DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material: Produção, comércio e usos

na Comarca do Rio das Velhas (1711-1750). 2008. 217f. Dissertação (Mestrado em

História). Faculdade de Filosofia e Ciências humanas da Universidade Federal de Minas

Gerais. Belo Horizonte. 2008.

DOUGLAS, Mary, ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do

consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.

DURÃES, Andreia. “The Empire Within: Consumption in Lisbon in Eighteenth Century

and First Half of the Nineteenth Century” In: Histoire & Mesure, EHESS, Vol. XXVII,

2012, pp. 165-196.

ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da

aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2001.

FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Açúcar e colonização. São Paulo: Alameda, 2010.

______. “Folguedos, feiras e feriados: aspectos socioeconômicos das festas no mundo dos

engenhos.” In: IANCSÓ, Istvan. e KANTOR, Íris. (orgs.) Festa: Cultura e Sociabilidade

na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo:

Fapesp: Imprensa Oficial, 2001. vol. I e II. (Coleção Estante USP – Brasil 500 Anos; v. 3).

______. Uma capitania dos novos tempos: economia, sociedade e política na São Paulo

restaurada (1765-1822). Anais do museu paulista. 2009. v.17, n.2, pp. 237-250.

FERNANDES, Maria Isabel. (coord.) Bordado de Guimarães. Renovar a tradição.

Disponível em: <http://www.bordadodeguimaraes.pt/site/uk/publicacoes/livrobdg.pdf>

FREYRE, Gilberto. Modos de homem e modas de mulher. Rio de Janeiro: Record, 1987.

GAMA, Luís Filipe Marques da. , TEIXEIRA, Madalena Braz. (org.) Traje palaciano:

Século XVIII – Império. Mafra: Câmara Municipal, 1986.

GODOY, Silvana Alves de. Itu e Araritaguaba na rota das monções (1718 a 1838). 2002.

239 f. Dissertação (Mestrado em História Econômica). Instituto de Economia da

Universidade Estadual de Campinas. Campinas. 2002.

GOLDSCHMIDT, Eliana Rea. “Famílias Paulistanas e os casamentos consanguíneos de

„donas‟, no período colonial”. Anais da 17º Reunião da S.B.P.H. São Paulo, 1997.

GUIDO, Ligia Souza. “O que a traça não comeu: reflexões sobre o trabalho histórico com o

vestuário como fonte de cultura material.” In: XXVII Simpósio Nacional de História

“Conhecimento histórico e diálogo social” da ANPUH, 2013, Natal-RN, Anais do XXVII

Simpósio Nacional de História. Disponível em: <

http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1371316848_ARQUIVO_ArtigoLigiaSo

uzaGuidoAnpuh2013ok.pdf> . Acesso em: 10 set. 2014.

206

HISTÓRIA DO TRAJO EM PORTUGAL. Encyclopedia pela imagem. Porto: Livraria

Chardron, (1920).

IANNI, Octavio. Uma cidade antiga. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp,

1996. (Coleção Tempo & Memória; 1).

KÖHLER, Carl. História do Vestuário. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

KOPYTOFF, Igor. “A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo.” In:

APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva

cultural. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense. 2008.

KÜCHLER, Susanne; MILLER, Daniel. (ed.) Clothing as material culture. Oxford: Berg,

2005.

LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América

portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

LAVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. São Paulo: Companhia das letras,

1989.

LEMOS, Carlos. A casa brasileira. São Paulo: Contexto, 1989.

LEVENTON. Melissa (org.). História Ilustrada do vestuário: um estudo da indumentária

do Egito Antigo ao final do século XIX, com ilustrações dos mestres Auguste Racinet e

Friedrich Hottenroth. São Paulo: Publifolha, 2009.

LIMA, Igor Renato Machado de. "Habitus" no Sertão: gênero, economia e cultura

indumentária na Vila de São Paulo (1554-C.1650). Tese (Doutorado em História

Econômica). 2011. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de

São Paulo, 2011

______. O fio e a trama: trabalhos e negócios femininos na vila de São Paulo (1554-1640).

Dissertação (Mestrado em História Econômica). 2006. Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2006.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas.

São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

LOPES, Maurício Maiolo. As faces da modernidade: arquitetura religiosa na reforma

urbana de Itu (1873-1916). 2009. Dissertação (Mestrado em História e Fundamentos da

Arquitetura e do Urbanismo) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São

Paulo, São Paulo, 2009.

LUBAR, Steven e KINGERY, David. History of things: essays of material culture.

Washington: The Smithsonian Institution, 1993.

207

MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Imprensa Oficial do

Estado de São Paulo, 2006.

MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários: Aspectos do consumo e da vida material em

Lisboa nos finais do Antigo Regime. Dissertação de Mestrado em Economia e Sociologia

Históricas, século XV – XX. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade

Nova de Lisboa. 1989.

MAGALHÃES, Beatriz Ricardina de. “A demanda do trivial: vestuário, alimentação e

habitação.” In: Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n.º 65, pg. 151 –

197, julho/ 1987.

MARANHO, Milena Fernandes. A opulência relativizada: níveis de vida em São Paulo do

século XVII (1648 – 1682). Bauru, SP: EDUSP, 2010.

MARINS, Paulo César Garcez. Modos de vida dos paulistas: identidades, famílias e

espaços domésticos. Disponível em:

<http://www.terrapaulista.org.br/costumes/vestuario/saibamais.asp#link3> . Acesso em: 18.

jul. 2014.

______. Nas matas com pose de reis: a representação de bandeirantes e a tradição da

retratística monárquica europeia. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n.

44, fev. 2007. pp. 77-104. Disponível em:

<http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/34563>. Acesso em: 20. out. 2014.

MARTINEZ, Cláudia Eliane Parreiras Marques. Riqueza e escravidão: vida material e

população no século XIX: Bonfim do Paraopeba/MG. São Paulo: Annablume: Fapesp,

2007.

MARTINS, Ismênia e MOTTA, Márcia (org.) 1808: A corte no Brasil. Niterói, RJ: Editora

da UFF, 2010.

MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. Forças militares no Brasil Colônia: corpos de

auxiliares e de ordenanças na segunda metade do século XVIII. Rio de Janeiro: E-papers,

2009.

MENESES. José Newton Coelho. O continente rústico: abastecimento alimentar nas Minas

Gerais setecentistas. Diamantina, MG: Maria Fumaça, 2000.

MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cultura material no estudo das sociedades

antigas. In: Revista de História, NS n.1I5, p.103-117, 1983. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/viewFile/61796/64659> . Acesso em

23.fev.2015.

______. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas

cautelares. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, nº 45, pp. 11-36,2003.

208

______. Prefácio In: CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e Artefato: o sistema

doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870 – 1920. São Paulo: Editora

da Universidade de São Paulo/FAPESP, 2008.

MILLER, Daniel (ed.). Materiality. London: Duke University Press, 2005.

______. Trecos, troços e coisas. Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de

Janeiro: Zahar, 2013.

MIRANDA, Andréa Cristina Lisboa de. O traje dominante. Do papel social da

indumentária no Barroco Joanino enquanto forma expressiva de comunicação. 1998. 259 f.

Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio

Grande do Sul, Porto Alegre, 1998.

MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres forras: cotidiano e cultura material em Vila Rica-1750-

1800. 2002. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de Filosofia e Ciências

Humanas Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2002.

MONTELEONE, Joana de Moraes. O circuito das roupas: a corte, o consumo e a moda

(Rio de Janeiro, 1840-1889). 2013. Tese (Doutorado em História Econômica) - Faculdade

de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

MONT SERRATH, Pablo Oller. Dilemas & Conflitos na São Paulo restaurada. Formação

e Consolidação da Agricultura Exportadora (1765-1802). 2007. 316f. Dissertação

(Mestrado em História Econômica). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Universidade de São Paulo. São Paulo. 2007.

NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu. Itu: Ottoni Editora, 2000. 5v.

______. „Evolução da cidade de Itu‟. In: O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 abr., 1957.

NASIASENE, Alberto. Taipa de pilão e o estilo colonial paulista. Disponível em: <

http://www.rotamogiana.com/2012/01/taipa-de-pilao.html>. Acesso em: 28. jan. 2014.

NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote. Mulheres, família e mudança social em

São Paulo, Brasil, 1600 – 1900. São Paulo. Companhia das Letras, 2001.

PASTOUREAU, Michel. O pano do diabo: uma história das listras e dos tecidos listrados.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

PAULA, Teresa Cristina Toledo. Tecidos no Brasil: um hiato. Tese (Doutorado em

Ciências de Informação). 2004. Escola de Comunicações e Artes. Universidade de São

Paulo . São Paulo, 2004.

PEDREIRA, Jorge Miguel Viana. Estrutura industrial e mercado colonial. Portugal e

Brasil (1780-1830). Linda-a-Velha: Difel, 1994.

209

PEREIRA, Ana Luiza Castro. “Uma saia de seda, um cordão de ouro e um sinete de

marfim”: apontamentos sobre a circulação de pessoas e objetos no Mundo Atlântico

Português. XXVIII Encontro da APHES. 2008.

PEREIRA, Teresa Pacheco. Sobre o trilho da cor. Para uma rota dos pigmentos. Lisboa:

Ministério da Cultura/Instituto dos Museus e da Conservação, 2010.

PEREIRA FILHO, Jorge da Cunha. Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e

XIX. Disponível em: <http://buratto.org/gens/gn_tropas.html>. Acesso em: 26.mar.2014.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica,

2008.

PETRONE, Maria Teresa S. A lavoura canavieira em São Paulo: expansão e declínio

(1765 – 1851). São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968.

PONTES, Heloisa. “A paixão pelas formas.” Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, p. 87-

105, 2006.

PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo: Brasiliense:

Publifolha, 2000.

RASPANTI, Márcia Pinna. O Brasil sob a perspectiva da Moda. Disponível em:

<http://historiahoje.com/?p=1891> . Acesso em: 28.jul.2014.

REDE, Marcelo. Estudos de Cultura Material: uma vertente francesa. Anais do Museu

Paulista. São Paulo. 2003. v. 8/9. pp.281-291.

______. História a partir das coisas: tendências recentes no estudo de cultura material.

Anais do Museu Paulista. São Paulo. 1996. v.4 , jan./dez. pp.265-82.

RIOUX, Elyette e LIPOVETSKY, Gilles. O luxo eterno: da idade do sagrado ao tempo das

marcas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

REIS, João José Reis. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do

século XIX. São Paulo. Companhia das Letras, 1991.

REIS, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo, Edusp,

2001. CD-ROM.

ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: Uma história da indumentária(séculos XVII-

XVIII). São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007.

______. História das coisas banais: nascimento do consumo nas sociedades do século

XVII ao XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

______. O Povo de Paris: ensaio sobre a cultura popular no século XVIII. São Paulo:

Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

210

SÁ, Isabel dos Guimarães e FÉRNANDEZ, Máximo García (dir.). Portas adentro: comer,

vestir e habitar na Península Ibérica (ss. XVI-XIX). Valladolid: Universidad de Valladolid,

Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial: Imprensa da Universidade de

Coimbra, 2010.

SÁ, Isabel dos Guimarães. “Coisas de princesas: casamentos, dotes e enxovais na família

real portuguesa (1480-1580)”, Revista de História da Sociedade e da Cultura 10, tomo I:

97 – 120, 2010.

______. “Dressed to impress: clothing, jewels and weapons in court rituals in Portugal

(1450-1650).” Paper presented at the Conference Clothing and the Culture of Appearances

in Early Modern Europe. Research Perspectives, Madrid, Fundación Carlos Amberes

/Museo del Traje. 3-4 February 2012.

______. “The uses of luxury: some examples from the Portuguese Courts from 1480 to

1580”, Análise Social 14, 192: 589 – 604, 2009.

SADER, Maria Regina C. de Toledo. Evolução da paisagem rural de Itu, num espaço de

100 anos. 1970. Mestrado (Geografia Humana). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo. 1970.

SAINT-HILAIRE, Auguste. de. Viagem à Província de São Paulo e resumo das viagens ao

Brasil, Província Cisplatina e Missões do Paraguai. São Paulo: Empresa Gráfica da

“Revista dos Tribunais”: Livraria Martins, 1940. p. 232-233. Disponível em:

<https://ia600302.us.archive.org/2/items/viagemprovinci00sainuoft/viagemprovinci00sainu

oft.pdf> . Acesso em 11.fev.2014.

SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura Canavieira, trabalho livre e cotidiano. São Paulo:

Editora da Universidade de São Paulo, 2005.

SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo:

Companhia das Letras, 1988.

SETUBAL, Maria Alice (coord.). Modos de vida dos paulistas: identidades, famílias e

espaços domésticos. Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura Ação

Comunitária, São Paulo: CENPEC, Imprensa Oficial do estado de São Paulo, 2004.

SILVA, Camila Borges da. O símbolo indumentário: distinção e prestígio no Rio de Janeiro

(1808 – 1821). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura: Arquivo Geral da Cidade

do Rio de Janeiro, 2010.

SILVA, Luciana da. Artefatos, sociabilidades e sensibilidades: cultura material em São

Paulo (1580-1640). 2013. Dissertação (Mestrado em História). Departamento de História

do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.

Campinas, 2013.

211

SILVA, Alberto Júlio. Modelos e modas – traje de corte em Portugal nos séculos XVII e

XVIII. Revista da Faculdade de Letras – Línguas e Literaturas. Anexo V – Espiritualidade

e Corte em Portugal, sécs. XVI – XVIII. Porto, 1993.

SIMMEL, George. Philosophie de la modernité. Paris:Payot, 2004.

SOUZA, Françoíse Jean de Oliveira. Do altar à tribuna: os padres políticos na formação do

Estado Nacional brasileiro (1823 – 1841). 2010. 438 f. Tese (Doutorado) Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.

2010.

SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo:

Companhia das Letras, 1987.

SOUZA, Jonas Soares de. Miguelzinho Dutra: traços e troças da Itu oitocentista.

Disponível em: <http://www.itu.com.br/colunistas/artigo.asp?cod_conteudo=6890> .

Acesso em: 14. out. 2014.

______. Miguelzinho Dutra e a iconografia oitocentista de São Paulo. Disponível em:

<http://www.academia.edu/3537966/Miguelzinho_Dutra_e_a_iconografia_paulista> .

Acesso em 01.ago.2013.

SUCENA, Berta de Moura. Corpo, moda e luxo em Portugal. 2007. Dissertação (Mestrado

em História) Faculdade de Letras. Universidade de Lisboa. Lisboa, 2007.

SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

TAYLOR, Lou. Establishing Dress History. Manchester: Manchester University Press,

2004.

______. The study of dress history. Manchester: Manchester University Press, 2002.

TARASANTCHI, Ruth Sprung. Obras desconhecidas de Miguelzinho Dutra. In: Anais do

Museu Paulista. São Paulo. 2002/2003. v. 10/11. pp. 149-166.

TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Paris: Felix Alcan, 1890.

TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil colonial. São Paulo: Ed. 34, 2000.

TORRÃO FILHO, Amílcar. Paradigma do caos ou cidade da conversão?: a cidade

colonial na América portuguesa e o caso da São Paulo na administração do Morgado de

Mateus (1765-1775) 2004. 338 f. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia

e Ciências Humanas da Universidade de Campinas. Campinas. 2004.

TOSCANO, João Walter. Itu/Centro Histórico. Estudos para preservação. 1981. 175 f.

Dissertação (Mestrado em Estruturas Ambientais Urbanas). Faculdade de Arquitetura e

Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo.1981.

212

VEBLEN, Thorstein. A teoria da classe ociosa. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1965.

VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material e património móvel no mundo rural do Baixo

Minho em finais do Antigo Regime. 2012. Tese (Doutorado em História). Instituto de

Ciências Sociais. Universidade do Minho. Braga, 2012.

WARNIER, Jean-Pierre. Construire la culture materielle: l´homme qui pensait avec ses

doigts. Paris: Presses Universitaires de France, 1999.

WEBER, Caroline. Rainha da Moda. A roupa que Maria Antonieta usou para a Revolução.

Oceanos: Lisboa, 2008.

ZANATTA, Aline Antunes. Justiça e representações femininas: o divórcio entre a elite

paulista (1765 – 1822). 2005. 213f. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2005.

ZEQUINI, Anicleide e LUIGI, André Santos. A Vila de Itu-SP no período açucareiro

(1774-1840). Disponível em:

<http://www.itu.com.br/colunistas/artigo.asp?cod_conteudo=6941>. Acesso em:

06.jan.2014.

Sites consultados

< http://www.itu.sp.gov.br/?area=1>. Acesso em: 17.nov.2014

<http://www.ahoradamissa.com/doc_glossario.html> . Acesso em 07.ago.2014

< http://www.priberam.pt/dlpo/frontal> . Acesso em 07.ago.2014.

<http://pt.wikipedia.org/wiki/Antigas_unidades_de_medida_portuguesas>. Acesso em:

30.ago.2014.

<http://www.terrapaulista.org.br/costumes/vestuario/saibamais.asp#link3> . Acesso em

18.jul.2014.

<http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=13613

> . Acesso em: 10.set.2014.

<http://myneighborwellington.blogspot.com.br/2013/09/portuguese-costume-and-society-

in.html> . Acesso em 01.dez.2014.

<http://acervotextil.blogspot.com.br/2012/03/olho-de-perdiz.html> . Acesso em 03.

mar.2015.

213

GLOSSÁRIO

Compilamos as definições dos tecidos e das peças de roupas recorrentes na

documentação. Quando a referência for de livros ou artigos, estará indicada de forma

completa em nota de rodapé, já entre parênteses, ao final da definição, está a indicação da

referência consultada em dicionários e/ou obras de referências com suas respectivas siglas,

a saber:

AMS – Antônio Moraes Silva

DA – Dicionário Caldas Aulete

LMSP – Luiz Maria da Silva Pinto

MPC - Manoela Pinto da Costa

GPA – Glossário Portas Adentro

RB – Raphael Bluteau

A

Anágua: saia de lenço que se coloca pela camisa. Vestidura de pano de linho que as

mulheres usam sobre a camisa. Saiote fino. (GPA)

Avental: pano de estopa que põe as mulheres, pasteleiros, cozinheiros e outros oficiais

mecânicos: serve de cobrir e conservar os vestidos por diante, da cintura por baixo. (RB).

Pano de lençaria para resguardar a saia. (LMSP)

Azul Ferrete: azul muito carregado, quase preto. (DA)

B

Baeta: tecido que poderia ser de lã ou de algodão, caracterizava-se por ser grosseira e

felpuda. (MPC)

214

Balandrau: vestidura com mangas e capuz de que usam hoje os homens da tumba da

Misericórdia. (LMSP)

Barandas ou Varandas: eram “Guarnições laterais da rede, ornadas de franjas ou borlas

esfiadas que são as bonecas da varanda.” 2

Barrete: cobertura de cabeça, antiga, usada ainda pelos tempos d‟el-Rei D. João III e pouco

depois. (AMS)

Bretanha: pano de linho fino, que se trazia de Bretanha; a imitação dizem da lençaria desta

sorte Bretanhas de França, de Suécia. (AMS)

Brilhante: tecido de seda.3

Brim: tecido de muitas espécies ou variedades. (MPC). Tecidos de linho ou algodão forte.4

C

Calções: parte do vestido do homem, que cobre desde a cintura até os joelhos. (AMS)

Camelão: tecido de origem animal, estofo grosseiro, impermeável, feito primitivamente

com pêlos de camelo, depois substituído por pelo de cabra, lã e seda. Tecido de lã em

trama. Pano de pelo de cabra. (MPC)

Camisa: peça de roupa que se trazia debaixo de outros vestidos, logo a seguir ao corpo, de

comprimento até aos joelhos e com mangas. Roupa de tecido leve. (GPA)

Camisote: camisa curta de cambraia, que se vestia sobre a outra. (RB)

Capa: vestidura, que se traz por cima das outras, e fora de casa; no Verão serve de adorno,

e no inverno de amparo. (RB)

2 CASCUDO, Luís da Câmara. Rede de dormir: uma pesquisa etnográfica. São Paulo: Global, 2003. p. 15. 3 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material: Produção, comércio e usos na Comarca do

Rio das Velhas (1711-1750). 2008. 217f. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2008. P. 200. 4 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária... p. 200.

215

Capote: espécie de manto de que usam os homens, comprido até os pés, com cabeção.

(LMSP). Capa comprida e larga com capuz. (GPA).

Casaca: vestidura com mangas e abas grandes. (RB). vestido com mangas, grandes abas,

etc, que se usa por cima da veste. (LMSP). vestidura que hoje se traz por cima da veste;

com botões nas mangas, portinholas, etc. (AMS)

Casacão: vestidura com mangas, mais larga que casaca. (RB) casaca grande para se vestir

por cima da casaca que por isso lhe chamam também sobrecasaca. (LMSP) casaca grande,

que se veste sobre a casaca, por causa de evitar a chuva, etc. (AMS)

Ceroulas: vestuário interior de pano de linho em forma de calças ou calções com o intento

de cobrir o corpo dos homens desde a cinta aos joelhos e por vezes até mais abaixo. (GPA)

Chambre: vestido caseiro, fraldado até abaixo do joelho (do francês robe de chambre,

roupa de câmara, de estar no seu quarto). (AMS)

Chita: pano de algodão, característica por suas coloridas estampas. (MPC)

Cobertor de Castela: coberta proveniente de Castela. (AMS)

Cobertor de papa: coberta confeccionada de lã. (AMS)

Colete: veste curta sem mangas. (AMS)

D

Droguete: tecido de seda do séc. XVIII, com pequena repetição de desenho, fabricado com

técnicas diversas (MPC)

Durante: tecido de lã, o durante, caracterizava-se por ser lustroso como o cetim. (GPA)

E

Espartilho: Espartilho de mulher: faziam-se com barbas de baleia, para apertar o corpo.

(RB).

216

Colete de mulher feito de barbas de baleia entre o forro e a peça. (LMSP)

F

Fustão: tecido feito de algodão e linho, geralmente o urdume (fios dispostos na vertical) era

de fio de linho e a trama (sentido horizontal) de algodão.5 De acordo com Manoela Pinto, o

fustão também poderia ser de lã ou seda, “tecido em cordão mais ou menos grosso.” (MPC)

G

Gabinardo: capote com mangas compridas, uma variação de gabão, “capote com capelo e

mangas, de que usam os rústicos.” (RB)

Ganga: tecido de algodão loiro, azul, ou preto, que se traz da Ásia, estreito, basto, e de boa

dura (AMS)

H

Hábito, Hábito de religioso: o vestido que se usa em qualquer religião. Por um hábito se

entende capa e roupeta. (RB)

J

Jaleco: vestidura, como colete, que se aperta pelas ilhargas com colchetes. Comumente se

usa só no inverno. (RB)

Jozesinho, Josezinho: capote de pouca roda sem mangas e sem cabeção. (...) Este capote foi

usado em fins do século XVIII pelas mulheres. Morais diz que o Josezinho não tem mangas

5 PAULA, Teresa Cristina Toledo. Tecidos no Brasil: um hiato. Tese (Doutorado em Ciências de

Informação). 2004. Escola de Comunicações e Artes. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2004. p.51.

217

(João Ribeiro, Curiosidades Verbais, 90 também define “Josézinho” „como capote sem

mangas‟.); contudo há uma figura feminina (Em História do Trajo em Portugal, 38, figura

27), do livro “Costumes of Portugal” por H. L´Evêque, que apresenta um “Josézinho” pelas

costas com mangas e largos punhos. Embora esse desenho pertença ao séc. XIX não deve

deixar de ser útil para o estudo dessa peça de vestuário. Pela abonação de Nicolau

Tolentino e pelo desenho de que falo podemos concluir que o “Josézinho” era

indistintamente vestuário masculino e feminino.6

L

Lã: material têxtil proveniente do velo dos ovídeos e outros animais. (GPA)

Lanio: cobertor, vestido ou capa de lã. (GPA)

Linho: planta têxtil, com cujas fibras se produzem tecidos de diversas qualidades, designa

também o tecido confeccionado com seu fio. (MPC). Os linhos portugueses são de

proveniência indígena, sendo os mais recorrentes o galego (Braga, Vila Real e Viana do

Castelo), o mourisco (a sul do Tejo) e o riga nacional (Guarda e Minho). (GPA).

Quatro tipos de linho levam em seus nomes o país de sua procedência, como a Holanda,

“tecido de linho muito fino e fechado ou tapado, que se fabrica na Holanda.” Ainda

segundo Manoela Pinto, “havia holandas finas, ordinárias, grossas, frisadas, riscadas, largas

e por vezes, produzidas com seda.” Já a holandilha, era “tecido grosso de linho, usado

principalmente em entretelas. // Imitação do tecido (?) da Holanda, fabricado na Silésia.”

(MPC)

6 CRUZ, Maria Emília Nogueira Soares e. Designações de vestuário, séculos XVII-XVIII. Dissertação para

licenciatura em Filosofia Românica. Universidade de Lisboa, 1955. p. 200-201.

218

M

Manteleta: espécie de lenço grande, com que as mulheres de Castro Laboreiro cobrem a

cabeça. (DA)

Manto: espécie de véu, com que cobre a mulher a cabeça, e as vezes o rosto, ao sair fora de

casa. (RB). Vestidura larga e sem mangas com que as mulheres abrigam a cabeça e o corpo

até à cintura por cima do vestido. Grande véu preto que chegava a arrastar pelo chão usado

antigamente pelas senhoras nobres em ocasião de luto. Espécie de capa com cauda e roda e

presa nos ombros usada pelas pessoas reais e pelos cavaleiros. (GPA)

O

Olho de perdiz: Antigo tecido misto de lã e seda, com leve efeito geométrico em seu

padrão, que imita os olhos de perdiz.7

Opa: manto amplo e comprido que chegava a arrastar pelo chão, provido de aberturas

laterais das quais pendiam os braços. Nos trajes femininos, eram as opas golpeadas, o que

permitia ver o vestuário que elas cobriam. Aida Dias especifica que era um manto de

fazenda, de seda ou de brocado, adornado algumas vezes por peles no forro. Vestes justas

ao corpo, sem mangas usada pelos membros das confrarias religiosas sobre o vestuário

civil; é de cor preta e com um galão a orlar as mangas. A opa real é uma veste rica usada

pelos reis no dia e momento da sua sagração ou durante cerimónias públicas. (GPA)

7 Informação disponível em: <http://acervotextil.blogspot.com.br/2012/03/olho-de-perdiz.html> . Acesso em

03. mar.2015.

219

P

Penteador: pano de linho, que se põe ao redor do pescoço, e com que se cobrem os ombros,

por não sujar o vestido com cabelos, ou carepa quando alguém se penteia. (RB). Pano, com

que se cobre o que se penteia, do pescoço até o joelho. (AMS).

Pescocinho: Debrum branco, móvel existente nas lobas e batinas dos sacerdotes. Cabeção,

coleira dos padres. (DA)

Ponche: peça hoje associada exclusivamente aos gaúchos, o poncho era, na primeira

metade do século XIX, sinal característico também dos paulistas. Muito mais longos que os

usados atualmente, os ponchos cobriam quase todo o corpo, aproximando-se de uma capa.

Quando não havia necessidade de proteção contra a chuva e o frio, tinham suas laterais

dobradas sobre os ombros, o que tornava imponente o porte do tropeiro.8

R

Rodaque: tipo de casaco de homem, espécie de sobrecasaca já em desuso: "...Olhou para as

calças de brim surrado e o rodaque cerzido..." (Machado de Assis, Quincas Borba) (DA)

S

Saia: túnica ou hábito de religioso. (GPA). Vestidura de mulher da cintura para baixo. (RB)

Sarja: tecido de seda, lã ou algodão, entrançado cuja técnica era caracterizada pelos efeitos

oblíquos obtidos pela deslocação de um fio para a direita ou para a esquerda, em todos os

cruzamentos de passagem de trama. (MPC)

Sobrecéu, Sobrecéu da cama: O pano estendido por cima, que prende nas quatro colunas do

leito. (...) Sobrecéus também se chamam uns panos, que se tem lugar de dóceis, para ornato

dos altares frontais. (RB)

8 MARINS, Paulo César Garcez. Modos de vida dos paulistas: identidades, famílias e espaços domésticos. Disponível em:

<http://www.terrapaulista.org.br/costumes/vestuario/saibamais.asp#link3> . Acesso em 18.jul.2014.

220

T

Tafetá: tecido lustroso feito de fios de seda retilíneos e bem tapado. (MPC)

V

Véstia: vestidura de homem com mangas, chega até o joelhos. (RB) Parte dos vestidos, que

cobre o tronco do corpo, com mangas, ou sem elas, traz-se por baixo da casaca. (AMS)

Vestido: vestidura. Um vestido, isto é, uma casaca, véstia e calções. Um vestido de mulher,

consta das peças ordinárias, roupa, saia, etc. (AMS)

X

Xale: peça de vestuário que as mulheres usam sobre os ombros. (GPA)

Observação: os termos fraque, soleiro, baque, rasgão, requelo e marcelina não foram

localizados para o período em questão.