SEGUINDO O COELHO BRANCO: LEWIS CARROLL E A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL INGLESA
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SEGUINDO O COELHO BRANCO: LEWIS CARROLL E A
REVOLUÇÃO INDUSTRIAL INGLESA
Mirian Regina Mendes1
RESUMO: Este trabalho estuda o livro de Lewis Carroll, Aliceno País das Maravilhas, contrastando-o com certos aspectos daRevolução Industrial Inglesa ocorrida na Era Vitoriana. Focam-se relações histórico-culturais, mostrando novaspossibilidades para a área linguística, trazendo o assuntosobre novo viés crítico. Busca-se responder a questão: qual arelação entre a personagem Coelho Branco e a velocidade daprodução da Revolução Industrial Inglesa? Analisam-se livros etrabalhos acadêmicos que previamente trataram do assunto,mostrando, a partir de uma pesquisa exploratória eexplicativa, os motivos que podem respaldar uma possívelcrítica ao período em que Carroll está inserido.
PALAVRAS-CHAVE: Lewis Carroll; Alice no País das Maravilhas;Literatura Vitoriana; Revolução Industrial Inglesa.
1 ENTRANDO NA TOCA DO COELHO: UM BREVE RELATO ENTRE A
SOCIEDADE VITORIANA, LEWIS CARROLL E SUA OBRA
A Era Vitoriana compreendida entre os anos 1837 e 1901,
foi um período de grandes contrastes e avanços tecnológicos.
Enquanto a Revolução Industrial expandia o poderio inglês,
fazendo com que a Inglaterra fosse reconhecida mundialmente,
ela também transformava a vida dos trabalhadores, visto que a
manufatura foi substituída pelas máquinas e que os mesmos
1 Especialização em Literatura Inglesa pela Universidade Cidade de SãoPaulo. São Paulo- SP, Brasil. E-mail do autor:[email protected]: Professora Siderly do Carmo Dahle de Almeida Barbosa
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deveriam se submeter aos donos das fábricas, deixando de ser
seus próprios patrões.
Com todas essas mudanças acontecendo, a moralidade rígida
e puritana continuava comandando a sociedade, que seguia um
rígido código moral influenciado pela rainha Vitória.
(...) o comportamento e o estilo de vida da rainhaVitória viriam a influenciar a sociedade fazendocom que a era vitoriana se tornasse sinônimo depontualidade, sobriedade e sofisticação, até hojecaracterísticas associadas ao povo inglês. (SILVA,2006, p. 224).
O século XIX trouxe consigo a rapidez das mudanças, a
incerteza do futuro e o medo do novo. Desta forma, os
escritores eram vistos como profetas e o romance (novel) era
utilizado como entretenimento para as famílias, embora só
podiam ser publicados se exaltassem os valores morais.
Inserido neste contexto encontra-se Charles Lutwidge
Dodgson, mais conhecido como Lewis Carroll. Em sua obra, Alice
no País das Maravilhas, Carroll não apenas critica o período
em que vive, como se mostra complacente com as crianças, ao
criar uma personagem que desbrava corajosamente um mundo
totalmente novo. Analisando atentamente, percebemos que Alice
é uma narrativa que trás inúmeras ligações com a era
vitoriana, criticando-a, através do mundo da fantasia.
2 A LITERATURA VITORIANA
Levando o mesmo nome da monarca de maior destaque do
período, a era vitoriana (período entre 1837 e 1901) foi uma
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era de grandes contrastes. O domínio do império se espalhou
por todo o globo terrestre, onde a Inglaterra era a líder,
graças a Revolução Industrial. Porém, os vitorianos “parecem
obcecados com questões que pertencem exclusivamente a eles”
(BURGUESS, 1999, p. 214): os problemas sociais e políticos.
Havia diferenças abissais em Londres, como a alienação do
indivíduo na sociedade, o choque entre o campo e a cidade, que
representam, respectivamente, o atraso e a modernização, o
trabalho quase escravo de homens, mulheres e crianças. Os
problemas políticos traziam, entre outros, a Reforma
Parlamentar – “uma representação mais genuína dos interesses
do povo, menos corrupção e cinismo do que aquela que animava
os políticos” (BURGUESS, 1999, p. 214). Tais aspectos acabaram
se refletindo na literatura do período.
Na literatura da época, é natural que Londres dominevários romances escritos entre 1850 e 1900. A riqueza ea diversidade de sua vida social eram uma bênção para osromancistas, seja na descrição de um determinado bairrocom sua atmosfera social própria, seja na visão deconjunto (...) (MARX, R. & CHARLOT, M., 1993, p. 101).
As novels (romances) foram o estilo literário mais
apreciado e geralmente publicado semanalmente em fascículos,
que entretinham as famílias, mas que precisavam estar de
acordo com os padrões éticos e morais do período, influenciado
“pelo comportamento e estilo de vida da rainha Vitória”
(SILVA, 2006, p. 224), o que abrange seus valores morais e
religiosos. As virtudes da época se traduziam em disciplina,
seriedade, trabalho árduo, patriotismo e religião. “Os jogos,
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as bebidas e por vezes o fumo se tornaram impróprios para
cavalheiros” (SILVA, 2006, p. 225).
O puritanismo, com seus ideais, contribuíram para o
período, com uma moralidade convencional.
grandes famílias em que o pai era uma espécie de chefedivino, e a mãe, uma criatura submissa (...). Amoralidade rígida, o caráter sagrado da vida em famíliaera, devidos em grande parte ao exemplo da própriarainha Vitória(...). (BURGUESS, 1999, p. 215).
Desta forma, encontramos na literatura da época, os
reflexos do que a sociedade viveu. A literatura era
pedagógica, pois primava pelo ensinamento dos mais diversos
assuntos, desde a postura que uma pessoa deveria ter perante a
sociedade, como aconselhamentos com relação à saúde e a
educação dos filhos, para criar uma sociedade virtuosa. Toda a
literatura deveria trazer uma moral para que pudesse ser
aceita e publicada.
Uma das mais famosas obras publicadas no período foi
“Wuthering Heights” de Emily Brontë. Os temas inclusos na mesma
explicitam a fase moralista da literatura, tratando da posição
da mulher, que consistia no casamento, criar os filhos
providos deste e servir; a aversão ao estrangeiro; a casa como
uma redoma e o contraste entre as classes sociais.
A obra de Charles Dickens, Oliver Twist, mostra o que o
próprio Dickens viveu, trazendo à tona a condição dos pobres
por detrás da rica sociedade, revelando a verdadeira vida
humana inglesa, com o propósito de eliminar tal situação.
A fase moralista da literatura vitoriana pode ser chamada
também de realista, visto que apontava o que acontecia a sua
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volta, caracterizada por “seu objetivo altamente moral aliada
a uma técnica romântica: a linguagem é rica e bastante
ornamental (...)” (BURGUESS, 1999, p. 215).
Podemos perceber que os escritores da época se preocupavam
com esse caráter moralizante, contudo, as obras de Lewis
Carroll se distanciavam desta característica. Analisando Alice
No País das Maravilhas, notamos a ausência tanto do caráter
moralizante quanto do caráter pedagógico, podendo ser
interpretado como uma crítica ao período em que Carroll estava
inserido.
Desta forma, concluímos que a literatura tinha a função
não apenas de entreter, como a de moralizar, de trazer a tona
o que acontecia no período e, como veremos na obra de Lewis
Carroll, a princípio direcionada ao público infantil, a
abordagem de uma forte crítica ao período vitoriano que se
encontra escondida nas entrelinhas do romance.
2 A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E A SOCIEDADE
Dividida em dois períodos e impulsionada pelo motor a
vapor de Watt, a Revolução Industrial, que se iniciou na
Europa ocidental, transformou não só a Inglaterra, como todas
as regiões do planeta.
Antes da Revolução (iniciada na segunda metade do século
XVIII), as atividades eram artesanais e os trabalhadores
trabalhavam por conta própria. As etapas do processo produtivo
aconteciam nas casas dos artesãos, que eram os responsáveis
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por todo o processo, desde a matéria prima, até a
comercialização do produto.
A partir da Revolução Industrial, os trabalhadores foram
submetidos ao processo de funcionamento da maquinaria, sendo
responsáveis apenas por uma parte do processo, obedecendo aos
capitalistas, que, como donos do capital, eram responsáveis
pelas fábricas que substituíram as oficinas. “No lugar das
fontes de energia tradicionais, como água, vento e força
humana e animal, vieram o carvão e a eletricidade. Onde
existia campo, grandes fábricas surgiram” (SILVA, 2006, p.
222).
A Primeira Revolução Industrial, ocorrida entre 1760-1860,
ocorreu na Inglaterra, país “(...) que obteve uma vantagem de
cinquenta anos, graças à sua precoce revolução industrial
(...)” (MARX, R. & CHARLOT, M., 1993, p. 24). O avanço se deu
na indústria de tecido e algodão, através de criação de
máquinas de fiar, que substituíram a roda de fiar e reduziram
o número de fiandeiras.
(...) invenções como a spinning jenny – máquina de fiarprimitiva –, de James Hardgreaves. Inventada em 1974(...) Em 1779, a water frame de Richard Arkwright – umamáquina que produzia um fio de algodão mais resistenteque a jenny –, transformou a fiação em um processoindustrial. (...) Arkwright adaptou sua invenção paraque trabalhasse automaticamente, primeiro a água edepois a vapor. (SILVA, 2006, p. 222-223).
Arkwright, juntamente com outros empresários, começaram a
instalar essas máquinas em oficinas, o que impulsionou a
escala de produção e deu inicio às fábricas.
Em sua segunda fase (1860-1900), a Revolução Industrial se
espalhou para outros países, onde o avanço tecnológico
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contribuiu para o desenvolvimento da indústria. O petróleo e a
eletricidade passaram a ser utilizados como fonte de energia,
a invenção do telégrafo, do telefone, da locomotiva elétrica,
do motor a gasolina e do motor a diesel, bem como a produção
do aço, “que substituiu em grande parte o uso do ferro”
(SILVA, 2006, p. 223). Tal processo levou à expansão naval
inglesa, que era a responsável por vender os produtos para
outros países.
Embora a fábrica fosse, na época, uma forma revolucionária
de trabalho, os trabalhadores relutavam em trabalhar nas
mesmas, pois a exploração do trabalhador imperava. Os
trabalhadores perderam sua independência e os capitalistas
preferiam contratar mulheres e crianças.
A industrialização edificou fábricas de móveis e roupas,mas também fez com que marceneiros hábeis e organizadosse transformassem em trabalhadores sub-remunerados egerou aqueles exércitos de costureiras e camiseirasfamintas e tuberculosas que comoviam a opinião da classemédia mesmo naquela época extremamente insensível.(HOBSBAWM, 2000, p. 67).
Os salários e as condições de trabalho dependiam dos
contratos que eram estabelecidos. Os trabalhadores podiam
perder o emprego a qualquer momento e só podiam recorrer a
suas economias, seu crédito junto aos lojistas locais,
vizinhos, amigos e família, penhoristas ou a Lei dos Pobres,
uma espécie de previdência social. “(...) o seguro ou planos
de pensão só existiam para alguns.” (HOBSBAWM, 2000, p. 144).
Concluímos que a Revolução Industrial não apenas alterou a
expansão capitalista da Inglaterra, com seus avanços
tecnológicos, levando o país a ser uma grande potência, mas
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influenciou muito a sociedade do período bem como a sociedade
atual. O ritmo veloz da produção levou os cidadãos a terem uma
vida tanto quanto ou mais veloz do que ela. O aumento da
poluição, do desemprego, o crescimento desordenado das cidades
e o êxodo rural, foram conseqüências nocivas para a sociedade.
3 LEWIS CARROLL
Nascido em 27 de janeiro de 1832, em Cheshire, Charles
Lutwidge Dodgson foi o terceiro dos onze filhos. Sua mãe
faleceu quando ainda era jovem e Charles Lutwidge Dodgson
seguiu os passos de seu pai, pároco e professor em Christ
Church, revelando-se um exímio matemático. Em 21 de junho de
1868, quando seu pai faleceu, Charles se tornou o responsável
pela família, se preocupando não apenas com as finanças, mas
também com suas seis irmãs solteiras.
Além de professor de matemática, Charles, que era muito
religioso, começou a pregar sermões frequentemente, mas acabou
desistindo “Ah, se eu fosse mais adequado para pregar aos
outros!” (COHEN, M., 1995, p. 328). Possuidor dos valores
vitorianos, como a religiosidade e a moral, aos 24 anos
expressava o desejo de se livrar do orgulho e do egoísmo,
tanto que chegou a alimentar crianças pobres, ajudar suas
amigas a realizar seus sonhos e contribuiu com somas de
dinheiro para a viúva de seu primo William Wilcox.
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Charles nunca se casou. Dedicou sua vida ao trabalho e a
buscar amizade com crianças, meninas, na realidade, por achar
que elas
personificavam a essência do romantismo: admirava suabeleza natural; valorizava suas declarações espontâneas;apreciava sua ilimitada inocência, e dedicava seu tempo,energia e imaginação a entretê-las e a edificá-las.Gostava de fazê-las rir, inventava brincadeiras juntocom elas, encorajava-as, dava-lhes inúmeros presentes,fotografava-as – enfim, simplesmente as idolatrava”.(COHEN, M., 1995, p. 15).
Desde criança, Charles gostava de escrever. Colecionava
artigos de revistas e produziu, junto com os irmãos e pai, uma
revista da família. Apesar de surdo do ouvido direito e da
gagueira, apresentava trabalhos brilhantes, contando com mais
de trezentos itens publicados, como tratados matemáticos,
poéticos e jogos de lógica, além de ser um exímio fotógrafo.
Fotografou, inclusive, o filho mais novo da rainha Vitória e o
príncipe herdeiro da Dinamarca.
Em 25 de fevereiro de 1856, Charles conhece a família do
reitor, mas foi apenas durante o primeiro semestre de 1857 que
conheceu Alice Liddell, durante uma sessão de fotos na
reitoria. Em seu diário, encontra-se o seguinte registro:
As três meninas [Alice, Lorina e Edith] permaneceram otempo todo no jardim, e nós ficamos muito amigos:tentamos agrupá-las no primeiro plano da foto, mas asmodelos mostraram-se muito impacientes. Esse foi um diapara não esquecer. (COHEN, M., 1995, p. 87).
Sua amizade com Alice Liddell se tornava cada vez mais
forte. Charles costumava frequentar a casa do reitor e a
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passear com a família. Certa vez, eles foram passear de barco,
e Alice pediu que Charles lhe contasse uma história. Deram-se
início as aventuras de “Alice no País das Maravilhas”, que, também a
pedido de Alice Liddell, foram escritas e posteriormente
publicadas sob o pseudônimo de Lewis Carroll “a fim de evitar
toda e qualquer publicidade pessoal” (COHEN, M., 1995, p.
233).
Em seu diário não há nenhum registro sobre, mas o fato é
que Charles e a família Liddell romperam ligações. A partir de
então, Charles fizera muitas outras amizades, com meninas,
pois ele não gostava de meninos. Sua amizade consistia em
passeios, envio de cartas e fotografias.
“Alice no País das Maravilhas” se tornou um sucesso não apenas na
Inglaterra, bem como em outros países. Foi traduzido para o
alemão e francês pela primeira vez em 1869, data em que
Charles lançou “Alice Através do Espelho”. “Charles enviou a Beatrice,
filha mais nova da rainha, um exemplar de “Alice” autografado
e especialmente encadernado” (COHEN. M., 1995, p. 348).
“Alice” também foi adaptada para o teatro. Em 24 de
janeiro de 1867, Charles assistiu à peça no Haymarket Theatre.
“Para ele foi um espetáculo ‘muito além de qualquer coisa que
já vi executada por crianças” (COHEN. M., 1995, p. 506).
Outras obras como “Sílvia e Bruno” também foram publicadas por
Lewis Carroll e foi em 01 de janeiro de 1886 que sofreu seu
primeiro ataque epiléptico, seguido de depressão.
Minhas jovens amigas estão todas se casando (...) Mas,para um jovem solteiro, incurável, sozinho e abandonado,é sem dúvida reconfortante ver que algumas, mesmo quandocomprometidas, continuam assinando suas cartas‘afetuosamente sua’ (COHEN. M., 1995 p. 544).
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Charles recusava os convites de casamento de suas amigas.
Enquanto viajava, Alice casou-se em 15 de setembro de 1880.
“Perto do Natal de 1883. Charles enviou à Alice um exemplar de
‘Rhyme? and Reason?’ dedicado à ‘Sra. Hargreaves’ assinando
‘Sinceramente seu’”. (COHEN. M., 1995 p. 584).
Charles faleceu em 14 de janeiro de 1898 com problemas
pulmonares. Seu funeral foi “simples e pouco dispendioso”
(COHEN. M., 1995 p. 606) conforme desejara.
Charles Ludwidge Dodgson, ou Lewis Carroll, deixou sua
marca na literatura vitoriana a partir da criação de uma obra
feita para uma garotinha, mas que trazia em suas entrelinhas
uma crítica ao período que vivenciou. Embora seja classificado
como um romance non-sense, muitos fundamentos da sociedade
vitoriana serão encontradas em suas personagens, que serão
analisados em seguida.
4 ANÁLISE DE “ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS”
Criado por Lewis Carroll, a história de Alice, uma
garotinha que ao perseguir um Coelho Branco acaba adentrando
um mundo fantástico, expressa muito mais do que realmente
aparenta. Em uma análise mais minuciosa, apontaremos diversas
passagens que contrastam com a realidade da era vitoriana
“(...) através de alusões e referências (...) prontamente
identificáveis para qualquer inglês vitoriano, mesmo para as
crianças”. (CARROLL, Lewis, 1977 p. 8).
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Quase todas as personagens tratavam Alice com perplexidade
e desprezo:
O Coelho confunde-a com a empregada e grita-lhe ordens,a Lagarta contradiz o tempo todo, a Duquesa a repreende,o Chapeleiro critica o comprimento dos seus cabelos, aLebre de Março corrige sua linguagem, o Grifo a humilha,a Rainha de Copas grita ‘Cortem-lhe a cabeça’.” (COHEN,M., 1995, p. 177)
Há também violência: o temor da queda de Alice na toca do
Coelho, o pontapé que ela dá em Bill, o lagarto quando este
adentra a casa do Coelho Branco pela chaminé com o intuito de
retirar o monstro de lá (monstro este que era a Alice, em sua
forma de gigante), a cozinheira atirando coisas na Duquesa, e
a ordem da Rainha de cortar cabeças.
Além disso, há os clichês vitorianos: A Duquesa que quer
encontrar uma moral para tudo, a Lagarta que ordenava à Alice
que mantivesse a calma e as repreensões que esta levava do
Papagaio “Sou Mais velho que você, e devo saber mais”.
(CARROLL, Lewis., 2002 p. 27).
Outros fatores importantes são encontrados: no capítulo
“Pela Toca do Coelho” Alice encontra uma chave de ouro que
fora utilizada para abrir uma porta misteriosa. Tal objeto era
comum na literatura vitoriana e pode ser encontrado em
diversas obras como “Ballade of the Bookworm” de Andrew Lang.
Em seguida, Alice encontra um frasco escrito “Beba-me”.
Ela fica em dúvida se deveria beber ou não “Não, primeiro vou
olhar, disse, e ver se está escrito ‘veneno’”. (CARROLL,
Lewis., 2002 p. 16), pois o frasco do remédio vitoriano era
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similar, com uma tampa de arrolhar e um rótulo de papel fixado
ao gargalo.
Encontramos na obra, inclusive, referências políticas no
capítulo “Uma Corrida em Comitê e uma História Comprida”. Uma
corrida em comitê ou caucus-race é um termo americano que foi
adotado na Inglaterra referindo-se a um
sistema de organização partidária extremamentedisciplinada por comitês. Em geral era usado por umpartido como um termo injurioso aplicado à organizaçãode um partido adversário. Carroll pode ter pretendidoque sua ‘corrida em comitê’ simbolizasse o fato de queos membros de comitês geralmente correm muito emcírculo, sem chegar a lugar algum, todos almejando umprêmio político. (CARROLL, Lewis. apud Martin Gardner.2002 p. 28).
O dedal, no mesmo capítulo, que fora tomado de Alice pelo
Dodô e depois devolvido, pode simbolizar a forma como o
governo tomava o dinheiro do povo e depois o devolvia na forma
de projetos políticos.
O Chapeleiro Maluco é o exemplo de como os chapeleiros
daquela época enlouqueciam devido ao mercúrio utilizado para
preparar o feltro, que possuía efeitos alucinógenos e
psicóticos, além de envenenamento.
No capítulo “A História da Tartaruga Falsa”, Alice diz:“(...) a camomila, que as torna amargas(...)”. (CARROLL,Lewis., 2002 p. 87). O fato é que “a camomila era umremédio amargo amplamente utilizado na InglaterraVitoriana” (CARROLL, Lewis. apud Martin Gardner. 2002 p.28).
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Mais adiante, no mesmo capítulo, há a sopa de tartaruga
falsa, que nos remete a sopa de tartaruga verde, feita com
vitela, um dos pratos vitorianos.
No capítulo “A Quadrilha da Lagosta”, a Tartaruga Falsa
explica o que era a quadrilha da lagosta, que nos remete a uma
dança de salão vitoriana, a quadrilha, que era moda na época.
Desta forma percebemos que Lewis Carroll escreveu tudo o
que viveu:
(...) os livros de Alice passam a ser um registro dainfância de Charles, dos golpes desferidos contra elepor pais, professores e demais adultos de sua roda. Mausmodos e violência eram elementos comuns na épocavitoriana, mas se, por um lado, a ênfase e a frequenciacom que aparecem nesses livros capturam o espírito daépoca, mostram, por outro, a cota de hostilidade queCharles deve ter acumulado nas várias fases de sua vida,seja em casa, seja no colégio, seja em Oxford. (COHEN,M., 1995 p. 175).
Alice vivia momentos de profunda incerteza com relação ao
presente e ao futuro, com tantas mudanças que aconteciam à sua
volta: a agilidade da Revolução Industrial, a grandiosidade da
expansão financeira da Inglaterra, a sociedade “dual”: bairros
nobres e pardieiros, o altar da moda, a criminalidade
londrina, entre outros fatores.
O livro de Alice “diz à criança que alguém a entende (...)
oferecendo-lhe uma esperança de sobrevivência na passagem da
infância para a vida adulta(...)” (COHEN, M., 1995 p. 177).
5 ANÁLISE DO COELHO BRANCO
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Personagem de suma importância na história de “Alice no
País das Maravilhas”, o Coelho Branco, que perambula o País
das Maravilhas com um relógio de bolso e sempre com pressa,
possui um forte simbolismo relacionado à Revolução Industrial,
período em que a manufatura deu lugar ao funcionamento da
maquinaria e da produção em larga escala.
As transformações ocorridas com a Revolução Industrial
afetaram diretamente a vida dos ingleses, que passaram a ter
um ritmo de vida veloz e a se preocuparem com o tempo, tanto
que
a preocupação de Charles com o tempo iniciou-se mais oumenos aos 18 anos e foi registrada em dois ensaioschamados ‘Difficulties’, onde ele discorre sobre fusos-horários, algo que sempre lhe interessou e que setornaria assunto de aulas e artigos. Uma de suascharadas mais famosas é relacionada ao tempo: ‘doisrelógios: um está parado, o outro atrasa um minuto pordia. Qual é o melhor?’ resposta: ‘o relógio que atrasaum minuto por dia está certo apenas uma vez a cada doisanos, mas o relógio quebrado está certo duas vezes pordia’. (COHEN, M., 1995 p. 49).
A velocidade na narrativa de Alice “(...) se inicia com a
corrida do Coelho para dentro da toca”. (CANTON, K. & PELIANO,
2010, p. 19): (...) O Coelho murmurou para si mesmo: - Ai, meu Deus!Ai, meu Deus! Vou chegar muito atrasado! – (...) oCoelho tirou um relógio do bolso do colete e deu umaespiada, apressando-se em seguida (...) (CARROLL, 1977p. 41).
A personagem Coelho Branco está totalmente ligada à
velocidade da Revolução Industrial em sua natureza, por ser um
animal de incrível agilidade e astúcia. A personagem, dentro
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do texto, está sempre preocupada com o tempo: “(...) O Coelho
Branco ainda estava à vista, andando apressado (...)”
(CARROLL, 1977, p. 43), “- Ai, a Duquesa, a Duquesa! Vai ficar
uma fera se eu a fizer esperar!“ (CARROLL, 1977, p. 49),
“(...) Corra até lá em casa, depressa, e me traga um par de
luvas e um leque! Rápido, vamos! (...)” (CARROLL, 1977, p.
61).
Tal pressa nos remete a
(...) Londres, em 1851, ao organizar sua ExposiçãoUniversal, aparece como a revelação da superioridadeesmagadora do Reino Unido. Esta é a ‘primeira naçãoindustrial’ (...) A capital, cidade gigante da Europa jána aurora dos séculos, constitui então uma megalópole,avançando em todas as direções, graças a umdesenvolvimento dos transportes (...). (MARX, R. &CHARLOT, M., 1993, p. 13).
A partir da era da Revolução Industrial, os empregados
eram subordinados ao poder dos donos das indústrias e podemos
relacionar, no seguinte fragmento, a simbologia contida nas
personagens da Duquesa e do Coelho Branco. A Duquesa
representaria os donos do poder industrial e o Coelho, o povo,
ao qual devia se submeter.Era o Coelho Branco, caminhando de volta, devagar,olhando ansioso para todos os lados como se tivesseperdido alguma coisa; e ela o ouviu murmurar consigomesmo: “A Duquesa! A Duquesa! Oh, minhas patas queridas!Oh, meu pêlo e meus bigodes! Vai mandar me executar, tãocerto quanto doninhas são doninhas! Onde posso tê-losdeixado cair? me pergunto!”. (CARROLL, 2002, p. 35).
Nota-se uma preocupação do Coelho Branco ao mencionar as
doninhas. Isto ocorre, pois tal espécie é inimiga da espécie
dos coelhos.
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Outra passagem relacionada com a Revolução Industrial
encontra-se no capítulo “Porco e Pimenta”, onde a Duquesa
grita para a Alice: “Por falar em revolução, cortem-lhe a
cabeça!” (CARROLL, 2002, p. 59). Podemos apontar aqui, o medo
do Coelho Branco, do povo, em ser cortado da linha de
produção, ou seja, perder o emprego.
A disciplina e a rotina estavam sempre presentes na era
das fábricas, sendo expressas na cena do julgamento, onde o
Coelho Branco segue o protocolo:
Imediatamente o Coelho Branco soprou três vezes atrombeta e, desenrolando o pergaminho, leu o que sesegue:A Rainha de Copas fez umas tortasCerto dia de verãoO Valete de Copas roubou as tortasSem hesitação.- Pensem no veredicto – disse o Rei ao júri.- Ainda não, ainda não! – interrompeu, apressado, oCoelho Branco – Ainda há muito que fazer antes disso!(CARROLL, 1977, p. 120).
Percebemos, desta forma que “(...) os significados das
histórias de Alice tem referencialidade histórica, com uma
participação consciente decisiva do autor (...)” (CARROLL,
1977, p. 9) e podemos relacionar os personagens e a história
em si, como uma crítica ao período vitoriano, onde a vida
inglesa se transformou totalmente devido a Revolução
Industrial, criando uma névoa de incerteza com relação ao
futuro.
6 SAINDO DA TOCA DO COELHO
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A agilidade inserida pela amotinadora Revolução
Industrial, que influiu não apenas no modo de trabalho como no
dia a dia da sociedade, serviu como pano de fundo para a
criação de um dos maiores clássicos vitorianos: Alice no País das
Maravilhas.
A preocupação com o tempo também é demonstrada pelo
Chapeleiro Maluco, que exemplifica o fato do tempo ser algo
importante, relacionando-o a algo vivo, mostrando que não deve
ser desperdiçado de qualquer forma: “Se você conhecesse o
tempo tão bem quanto eu conheço – disse o Chapeleiro – não
falava em gastá-lo como se ele fosse uma coisa. Ele é alguém”.
(CARROLL, 1977 p. 88).
Em outra passagem, a Rainha, que aqui pode estar
relacionada com os donos do capital, evidencia sua raiva ao
perceber que o Chapeleiro, que aqui pode estar relacionado com
os empregados das fábricas, está deixando de produzir para
descansar, ou seja, está “matando o tempo” que poderia ser
empregado para produção: “Bom, eu mal tinha acabado o primeiro
verso – continuou o Chapeleiro – quando a Rainha saltou e
vociferou: - Ele está aqui matando o tempo! Cortem-lhe a
cabeça!”. (CARROLL, 1977 p. 89).
A primeira fase da literatura vitoriana, a fase moralista
(1830-1870) “tenta oferecer entendimento sobre as
transformações e erosão dos valores da sociedade inglesa ou
novos valores para que a sociedade possa ser compreendida”
(SILVA, 2006, p. 235). Contudo, Alice no País das Maravilhas não pode
ser considerada como uma obra moralizante e nem pedagógica e
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como exemplo disto, temos a seguinte passagem, onde Alice não
se importa com o fato de ter ou não uma moral:
(...) Não posso lhe dizer já qual é a moral disso, masdaqui a pouco me lembrarei.- Talvez não tenha nenhuma – arriscou-se Alice a dizer.- Ora, ora, minha filha! – disse a Duquesa – Tudo temuma moral, é só você procurar bem (...). (CARROLL, 1977p. 103).
Enquanto a Duquesa se preocupa em encontrar uma moral “Ah,
perfeito! (...) disse a Duquesa – e a moral disso é... Cuide
do sentido, e os sons cuidarão de si mesmos” (CARROLL, 1977 p.
104), Alice se preocupa em entender o mundo em que vive,
passando por diversas mudanças pessoais que são afetadas pelo
mundo exterior.
Embora a obra seja vista como um romance non-sense ou até
mesmo do gênero infantil, notamos que “muitos fundamentos da
sociedade vitoriana serão encontrados em suas personagens”
(COHEN, 1995, p. 177). Alice no País das Maravilhas questiona os
padrões sociais da época, à medida que avança pelo país
desconhecido escondido na toca do Coelho Branco e mostra a
vontade de mudar o período em que vive, visto que se mostra
insatisfeita com as mudanças que estão ocorrendo: “Como todas
essas mudanças desorientam!” (CARROLL, 1977 pg. 53).
O leitor desatento fará uma leitura ingênua da obra,
classificando-a como literatura infantil.
As histórias de Carroll, estão, pois, inscritas numcircuito fechado de referências (histórico-linguisticas)e, em muitos pontos necessitam de uma decodificação parauma perfeita compreensão do que dizem e que sentido temsuas alusões (...) (CARROLL, 1977, p. 17).
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Porém, após uma análise mais atenta aos simbolismos
contidos na obra, perceberemos toda a riqueza nela contida e
entenderemos que, uma história que se inicia com a queda na
toca de um Coelho Branco está suscetível a interpretações
muito mais profundas do que a simples ideia de um passeio em
um país mágico.
REFERÊNCIAS
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