Repensando a crítica do sistema penal no tempo da Great Recession [2015]

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FAE Centro Universitário Revista Justiça e Sistema Criminal Modernas Tendências do Sistema Criminal Rev. Justiça e Sistema Criminal Curitiba v. 6 n. 10 p. 1-246 2014

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Revista Justiça e Sistema CriminalModernas Tendências do Sistema Criminal

Rev. Justiça e Sistema Criminal Curitiba v. 6 n. 10 p. 1-246 2014

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Revista Justiça e Sistema Criminal. v. 1, n. 1, jul./dez. 2009 - Curitiba: FAE Centro Universitário, 2009 - v. ilust.

Semestral ISSN 2177 - 4811

1. Direito penal - Periódicos. I. FAE Centro Universitário

CDD 341.5

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Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 6, n. 10, jan./jun. 2014

Apresentação

Chegamos ao décimo volume de nossa revista. Já existe, claramente, a consolidação de como um dos mais importantes veículos de difusão especializados em matéria penal do país. Este volume, especialmente, mostra o crescimento do Grupo de Pesquisas Modernas Tendências do Sistema Criminal e sua interação com o que de melhor se produz em criminologia, direito penal e processo penal em todo o mundo. O Grupo se integra com produções conjuntas e traduções de autores estrangeiros consagrados, elevando consideravelmente o nível do que antes já era muito bom.

O volume 10 abre com um trabalho do Catedrático de Valência Emiliano Borja Jiménez, escrito originalmente para o Livro Homenagem a Marino Barbero Santos, traduzido por mim para o português, em que se faz uma abordagem interessantíssima sobre as relações entre ação, imputação, norma e função ideológica do Direito Penal. O trabalho põe em evidência as vantagens, não só práticas, mas também ideológicas do modelo significativo, ao culminar com uma abordagem resumida das propostas do Prof. Vives Antón.

Da Espanha também vem as contribuições dos professores Manuel Cancio Meliá e Marisa Cuerda Arnau. O primeiro trata de um tema que tem preocupado o cenário europeu do Direito Penal: a harmonização dos dispositivos incriminadores. No caso, toma por base a questão do terrorismo, que igualmente ocupa, cada vez mais, um lugar de destaque nas preocupações político-criminais da união europeia. O segundo, da professora titular da Universitat Jaume I, de Castellón, trata da responsabilidade em comissão por omissão, que é seguramente um dos temas mais intrincados do arcabouço dogmático. A base, novamente, é a teoria do Prof. Vives Antón, demonstrando uma vez mais a difusão e o avanço que vem tendo o modelo de filosofia da linguagem aplicado ao Direito Penal.

Completa a seção internacional o texto do consagrado criminólogo cultural David Garland, uma das maiores autoridades da criminologia pós-crítica, traduzido por Leandro França. O artigo destaca as observações críticas de fenômenos atuais a partir dos quais começa uma história do presente, prestando particular atenção ao conceito de “dispositivo” de Foucault e seu método de problematização, tomando por ilustração as análises feitas por Foucault do Panóptico de Bentham, das origens disciplinares da prisão moderna e da tecnologia da confissão.

Se as traduções mostram a integração do grupo com importantes autores internacionais, o que dizer então do trabalho de Fábio Bozza em conjunto com o importante criminólogo espanhol José Ángel Brandariz García, que analisa criticamente o sistema penal associando a gestão da prisão à emergência da crise financeira e mostrando a afetação do sistema penal a partir da conjuntura histórica econômica.

Ao lado destes importantes trabalhos com viés internacional, que marca nossa revista, é farta também a produção de membros do grupo e de convidados nacionais.

FAE Centro Universitário

Fernando Antônio C. Alves de Souza, professor da Universidade Maurício de Nassau em Pernambuco, produziu juntamente com o Dr. José Arlindo de Aguiar Filho, da Universidade Estadual da Paraíba, uma análise associativa entre a filosofia de Agamben, o terrorismo e a ideia de Direito penal do inimigo.

Iuri Machado oferece interessante estudo de Direito comparado a respeito da inviolabilidade domiciliar, do ponto de vista do processo penal, para denunciar a relevância das inúmeras violações a direitos fundamentais que compõem o cenário forense brasileiro neste campo.

Michelle Gironda Cabrera apresenta uma análise da função político-criminal do Direito Penal como elemento fundamental do sistema analítico de crime, entrecruzando seu tema com o artigo de abertura da revista, focada, porém, no impacto de tal concepção especificamente nos crimes culposos.

Bruno Cortez mostra a realidade axiológica do conceito de dolo, demonstrando como esta figura da teoria do delito foi se convertendo de uma categoria associada a uma dimensão psicológica para uma dimensão exclusivamente normativa.

O professor José Roberto Wanderley de Castro apresenta um debate em torno do bem jurídico vida e de suas fórmulas de incriminação no nosso ordenamento jurídico, com especial foco nas incriminações da eutanásia e do aborto, questões extremamente polêmicas envolvidas na reforma do Código penal brasileiro.

Fecha o volume, preservando a tradição, mais uma importante resenha de Michelangelo Corsetti, comentarista dos clássicos trabalhos em matéria penal (seção resenha dos clássicos), complementando o debate neokantiano de culpabilidade que inaugurou no volume 9, com o comentário sobre o estudo A concepção normativa da culpabilidade, de James Goldschmidt.

O grupo renova o agradecimento à direção da FAE Centro Universitário, na pessoa do Dr. Karlo Vetorazzi, por abrigar as atividades de nosso Grupo e de nossa Revista e permitir que mais este volume seja concluído.

Curitiba, dezembro de 2014.

Paulo César Busato

Editor e Coordenador do Grupo de Pesquisas Modernas

Tendências do Sistema Criminal

FAE Centro Universitário

Índice

Ação, Norma, Imputação e Função Ideológica no Sistema Penal(Emiliano Borja Jiménez)___________________________________________________________________ 7

El Derecho Penal Antiterrorista Español y la Armonización Penal en la Unión Europea(Manuel Cancio Meliá) ____________________________________________________________________ 45

O que Significa Escrever uma “História do Presente”? A abordagem Genealógica de Foucault Explicada(David Garland _ Tradução de Leandro Ayres França ____________________________________________ 73

Limites constitucionales de la comisión por omisión(María Luisa Cuerda Arnau) ________________________________________________________________ 97

A Filosofia de Agamben, o Terrorismo de Bin Laden e o Direito Penal do Inimigo: Um Estudo de Fronteiras entre a Proteção e a Punição(Fernando Antônio C. Alves de Souza, José Arlindo de Aguiar Filho) _______________________________ 121

Inviolabilidade Domiciliar: Novas Perspectivas a Partir do Direito Comparado(Iuri Victor Romero Machado) ______________________________________________________________ 135

Repensando a Crítica do Sistema Penal no Tempo da Great Recession(José Ángel Brandariz García, Fábio da Silva Bozza) _____________________________________________ 167

A Função Político-Criminal do Direito Penal como Ideia Fundante do Sistema Analítico de Crime e o Impacto nos Crimes Culposos(Michelle Gironda Cabrera) ____________________________________________________________ 183

O Dolo como Realidade Axiológica e a Superação das Teorias Ontologicistas da Ação

(Bruno Cortez Torres Castelo Branco) ________________________________________________________ 199

O Direito Penal e a Vida Humana: um Debate em Torno da Legitimação dos Tipos Penais Incriminadores que Protegem o Bem Jurídico Vida(José Roberto Wanderley de Castro) _________________________________________________________ 215

Resenha dos Clássicos: A Concepção Normativa da Culpabilidade (James Goldschmidt)(Michelangelo Corsetti) ___________________________________________________________________ 237

7Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 6, n. 10, p. 7-44, jan./jun. 2014

Emiliano Borja Jiménez1

1 Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência (Espanha). Tradução de Paulo César Busato.

RESUMO

Tradicionalmente, o fundamento sobre o qual se estrutura o sistema penal se situou na concepção da ação, da norma ou da imputação do comportamento ao sujeito conforme a regra jurídica. O edifício sistemático se construiria sobre uma destas bases previamente concebida e assentada. Na presente investigação se questiona que o método na elaboração do sistema atue deste modo. A função ideológica que se atribui ao Direito Penal determina o objeto eleito para desenvolver sua elaboração dogmática. Em outros casos, uma sistemática, já perfilada técnica e ideologicamente, muda de objeto para alcançar uma maior coerência e consistência. Ambas assertivas são corroboradas analisando distintas metodologias na evolução do Direito Penal. E assim fica referendado nos modelos considerados: a teoria imperativa ou da dupla função da norma penal, as concepções final ou significativa da ação, e as propostas funcionalistas psicológicas ou sociológicas.

Palavras-chave: Direito Penal. Dogmática Penal. Política Criminal. Ação Penal. Norma Penal. Imputação Objetiva.

ABSTRACT

Traditionally, the foundation on which structure the penal system was compiled was the concept of action, or rule, or charge for subjective behavior according to the rule of law. The systematic building is build on one of these previously designed bases and seated. In this investigation is questioned the method in preparing the system to act in this way. The ideological function which assigns criminal law determines the object chosen to develop its dogmatic development. In other cases, a systematic, profiled and technique already ideologically, change of object to achieve greater coherence and consistency. Both probes are confirmed by analyzing distinct methodologies in the evolution of criminal law. And so is countersigned in the models considered: imperative or theory of the dual function of criminal standard, the final or signify conceptions of action, and psychological or sociological functionalists proposals.

Keywords: Criminal Law. Criminal Dogmatics. Criminal Policy. Criminal Action. Criminal Rules. Objective Charge.

AÇÃO, NORMA, IMPUTAÇÃO E FUNÇÃO IDEOLÓGICA NO SISTEMA PENAL

FAE Centro Universitário8

INTRODUÇÃO

Ao longo do presente trabalho, será exposto, com toda a brevidade que seja possível, alguns modelos metodológicos com o fim de destacar a relação existente entre a configuração da Ciência jurídico-penal, os componentes básicos que integram o direito Penal à mesma tarefa que se assinala a este setor do ordenamento jurídico. Pretende-se, pois, colocar em conexão a função do Direito Penal, o objeto do Direito Penal, metodologia e sistemática no Direito Penal. Também queria destacar alguns aspectos ideológicos que em certa medida explicam esse conjunto de vinculações. Mas essa reflexão ideológica ficará mais nitidamente expressa no último tópico deste trabalho.

Foi destacado por um número considerável de autores que o edifício sistemático desenhado pelas diferentes concepções penais se apoia frequentemente no conceito prévio de norma penal da qual se parte, ou no de ação. Aqui queria, sem rechaçar esta ideia, lançar também argumentos a favor da afirmação inversa: isto é, que as concepções da regra jurídico--penal e da conduta criminal foram de igual forma tributárias das conotações sistemáticas derivadas da Teoria do Delito e da própria função que se assinala ao Direito Penal.

Ou seja, com alguns exemplos de construções sistemáticas, pretendo mostrar na evolução das diferentes concepções teóricas como jogam os diversos elementos fundamentais das mesmas em atenção aos fins que se outorga ao sistema penal. A norma jurídica ou o conceito de ação podem ser o pressuposto teórico fundamental sobre o qual se estrutura a Teoria Jurídica do Delito em uma época determinada. Mas essas mesmas instituições aparecem, em diferente contexto histórico, já não como pedra angular do edifício sistemático, mas como consequência de uma estrutura teórica previamente elaborada. E estas mudanças de posição tão relevantes são fomentadas notavelmente pelos fins que se assinala ao Direito Penal, que não são alheios à influência do pensamento político de cada época. Vamos ver alguns exemplos.

1 NORMA PENAL, ESTRUTURA DO DELITO, SISTEMA E FUNÇÃO DO DIREITO PENAL

Começarei com a análise da norma jurídica em suas relações com o Direito Penal. E vou referir-me agora especialmente à concepção imperativa da norma penal, continuando depois com a teoria da dupla função. Este tópico finalizará com uma exposição de um sistema de Direito Penal que se fundamenta na tese da motivação da norma.

A concepção imperativa, em seus postulados originais, parte da premissa de que o ordenamento jurídico se integra por manifestações de vontade do legislador que se impõem

9Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 6, n. 10, p. 7-44, jan./jun. 2014

ao querer dos cidadãos particulares, exigindo deles um determinado comportamento.2 Tal comportamento se regula através da vinculação do destinatário da norma com o dever jurídico que emana dela e que se estabelece em uma relação de exigência com base na consequência jurídica daquela. O dever, neste sentido, é a expressão técnica do submetimento do sujeito a uma vontade superior (da comunidade jurídica, do legislador ou do Estado) que se dirige a uma conduta humana, descrita de forma geral e abstrata na maioria dos casos. Tal conduta vem desta forma determinada e submetida ao império daquela vontade superior.3 Daí se depreende que a norma seja um imperativo e o dever represente o correlato de tal imperativo. O ordenamento jurídico é assim concebido como um complexo de imperativos.

A concepção imperativa da norma foi inicialmente formulada por Thon4 e Bierling5, se bem que existem claros precedentes em Merkel.6 Com posterioridade esta teoria foi seguida na Alemanha, com notáveis variações, por um importante setor doutrinário7.

Por sua vez, o vínculo da determinação da conduta e a norma se estabelece externamente através de duas formas: a ordem, que representa a imposição do dever de atuar positivo, e a proibição, que constitui a prescrição negativa da conduta dirigida à abstenção de um determinado comportamento. As ordens e as proibições do direito nem sempre aparecem expressos de uma forma clara e manifesta, mas se depreendem

2 JESCHECK, Hans Heinrich. Lehrbuch des Strafrechts: Allgemeiner Teil. 4. ed. Berlin: Duncker & Humblot, 1988. p. 200.

3 “É claro que todos os imperativos têm uma determinada validade, à qual se dirigem, pois estes, de fato, não querem ser outra coisa além da expressão de uma vontade, que dirige sua lança não, ou não ao menos, contra o mero submetido, mas essencialmente contra outro e sempre de alguma forma contra alguém determinado”. BIERLING, Ernst Rudolph. Juristische Prinzipienlehre. Tomo I. Nova reimpressão da edição aparecida entre 1894 e 1917; Aalen: Scientia Verlag, 1961. p. 26 e 27.

4 THON, August. Rechtsnorm und subjektives Recht. Nova reimpressão da edição de Weimar 1878. Aalen: Scientia Verlag, 1964.

5 BIERLING, Ernst Rudolph. Zur Kritik der Juristiche Grundbegriffen. Reimpressão da edição de Gotha, 1877-1883, Aalen: Scientia Verlag, 1965.

6 Merkel concebeu o injusto como lesão do direito, ou seja, como rebelião contra o poder espiritual do Direito. Por sua vez, a violação do direito como infração do poder espiritual pressupõe a capacidade de imputação do homem, de tal forma que só os capazes de ação podem ser culpáveis. Por outro lado, em sua concepção o injusto e a culpabilidade ainda não encontram uma clara distinção. MERKEL, Adolf. Kriminalistische Abhandlungen. Tomo I. Leipzig: Breitkopf und Härtel, 1867. p. 5ss. Vide, a respeito, a exposição de ROXIN, Claus. Strafrecht. Allgemeiner Teil. Tomo I. München: Beck, 1992. p. 199, n. 91.

7 A respeito, JESCHECK, op. cit., p. 213, nota 20. Na Alemanha é possível citar como autores que admitem esta concepção da norma penal, entre outros, Engisch, H. Mayer, Armin Kaufmann, Stratenwerth, Welzel o Zippelius.

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indiretamente das consequências da aplicação da norma, como é o caso das disposições privativas de direitos.8

O imperativismo explica, em sua versão mais ortodoxa, o ordenamento jurídico como um conjunto de ordens e proibições. Admite-se, claro está, disposições que não são nem preceitos nem interdições, mas, como assinalou Bustos Ramirez9, “estas outras regras que não são imperativos tem por função criar os pressupostos para o surgimento ou desaparição de um imperativo ou para anulá-lo total ou parcialmente”.

Esta proposta também afeta o aspecto funcional que se outorga ao Direito Penal. Desde uma concepção imperativa da norma, o fim que pretende para o sistema jurídico-punitivo é dirigir a vontade do indivíduo no sentido de atuar conforme o direito com anterioridade à comissão de uma ação que possa considerar-se antijurídica.10 A valoração, em tal sentido, não seria inerente à norma penal, pois aquela teria guiado o legislador no processo de elaboração da lei, mas perderia sua virtualidade quando se tratasse de determinar o marco de atuação da norma de sua eficácia.11 Eficácia que se persegue por meio de uma coação psicológica dirigida à generalidade dos destinatários através da ameaça do castigo. Desta forma, se leva a cabo a direção da conduta do sujeito, e por isso, este modo de conceber a disposição penal se denomina também norma de determinação.12

8 “Com frequência tampouco querem aparecer externamente como tal as proibições e as ordens do direito e se tem que determinar de forma indireta a partir de suas consequências com as que se ameaça para o caso de sua infração. Conceitualmente, portanto, existe em toda proposição jurídica um imperativo, um praeceptum legis, ou, como hoje estamos obrigados a dizer, uma norma”. THON, op. cit., p. 2 e 3.

9 BUSTOS RAMIREZ, Juan. Introducción al Derecho penal. Bogotá: Temis 1986. p. 46. Esta ideia foi modernamente desenvolvida por Engisch: “[...] Tanto as disposições legais conceituais como também as permissões somente são, portanto, proposições dependentes. Estas só tem sentido em relação a imperativos que as esclarecem ou as limitam, como, visto passivamente, esses imperativos só podem chegar a completar-se tendo em mente os esclarecimentos por meio das definições legais e os limites, tanto através de permissões como por certas exceções” ENGISCH, Karl. Einführung in das jusistische Denken. 7. ed. Stuttgart; Berlin, Köln e Mainz: Kohlhammer, 1977. p. 23.

10 JESCHECK, Hans Heinrich. Tratado de Derecho penal: parte general. Tomo I. Trad. da 3. ed., adicionada e anotada por MUÑOZ CONDE, Francisco e MIR PUIG, Santiago. Barcelona: Bosch, 1981. p. 320.

11 JESCHECK, Ibidem. MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del Derecho Penal. Barcelona: Bosch, 1976. p. 57.

12 Porém, nem para todos os autores, a norma de determinação se identifica com imperativo. Neste sentido Larenz diferencia entre ordem e determinação. A primeira se dirigiria à vontade do destinatário para ordenar ou proibir algo, a segunda se dirigiria a uma comunidade indeterminada e ampla de pessoas e viria representado como uma pretensão de validade geral. A este segundo caso corresponderiam disposições como esta que assinala que a capacidade jurídica da pessoa começa com o nascimento. LARENZ, Karl. Der Rechtssatz als Bestimmungssatz. Festschrift für Karl ENGISCH zum 70. Geburtstag. Frankfurt am Mainz: Klostermann, 1969. p. 155.

11Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 6, n. 10, p. 7-44, jan./jun. 2014

Agora me interessa destacar que a doutrina imperativista da norma penal tem também, em princípio, repercussões no âmbito da teoria do delito.13 Como assinalou Mir Puig, a consequência dogmática mais importante da concepção imperativa da norma penal é a necessidade de incluir no centro do injusto o momento subjetivo de desobediência, o dolo, pois este representa a negação acabada do imperativo da norma: a vontade negadora da proibição ou ordem expressas pela norma.14 A antijuridicidade, portanto, se contempla desde parâmetros subjetivos porque o centro da contradição à norma não é a lesão ou colocação em perigo de um bem jurídico impessoalmente considerado, mas a vontade rebelde que não se submete ao preceito.15

Esta fórmula original da norma como imperativo encontrou algumas dificuldades no desenvolvimento da teoria do delito, entre as que cabe destacar a básica diferenciação entre injusto e culpabilidade16 ou a ausência de consequência jurídica alguma para os fatos ilícitos cometidos por incapazes.17

Com efeito, a distinção entre injusto e culpabilidade se torna difícil quando a antijuridicidade se fundamenta na atitude de rebeldia e desobediência do sujeito à norma, de caráter eminentemente subjetivo. De outro lado, na medida em que a norma jurídica foi concebida nesta primeira época como ordem ou proibição dirigida a todos os cidadãos, só podem transgredi-la seus autênticos destinatários, isto é, aqueles que podem compreender a proibição e a ordem, ou seja, os indivíduos que têm capacidade de ação. Tinha-se que chegar a pouco convincente conclusão de que os inimputáveis não podiam cometer atos antijurídicos. Portanto, os problemas que supunha manter uma coerente sistematização da estrutura do delito, junto ao fato da distinta tarefa que se pretendia assinalar ao próprio Direito Penal, atuaram como causas relevantes na variação do rumo seguido na configuração da essência da norma penal.

13 Entretanto, assinalou Bacigalupo que se bem o conceito de norma penal influiu nas distintas formulações da teoria do delito, hoje em dia não existe uma relação necessária entre concepção da norma penal e estrutura da infração punível. BACIGALUPO, Enrique. La función del concepto de norma en la dogmática penal. Estudios de derecho penal en homenaje al Profesor Luis Jimenez de Asua. Monográfico da Revista de la Facultad de derecho de la Universidad Complutense de Madrid, Madrid, n. 11, 1986. p. 73 e 74.

14 MIR PUIG, Santigo. op. cit., p. 58.15 Sobre as consequências derivadas da formulação original da concepção imperativa da norma na

antijuridicidade e na culpabilidade; BACIGALUPO, op. cit., p. 64.16 Se bem que é certo que na formulação inicial de Thon a norma se dirige também ao incapaz de ação na medida

em que este pode cometer um fato antijurídico, nos ulteriores desenvolvimentos, especialmente no de Hold von Ferneck, a ordem só tem como destinatários aos imputáveis. Com efeito, se a imputação subjetiva consistia desde Von Liszt na normal determinabilidade conforme motivos, o imperativo não se poderia dirigir a alguém que carecia das condições básicas para dirigir sua conduta conforme uma norma cujo sentido era incapaz de compreender. Daí que antijuridicidade e injusto se voltem de novo a confundir. Neste sentido, HOLD VON FERNECK, Alexander. Die Rechtswidrigkeit. Tomo I, Jena: Fischer, 1903. p. 98ss.

17 Neste sentido, BACIGALUPO, op. cit., p. 64 e 65.

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A mudança de orientação, como visto, se produz também no próprio aspecto funcional do Direito Penal. No final do século XIX e começo do século XX o ponto de vista a respeito do fim que persegue o Direito Penal se modifica e se dirige à proteção da sociedade através da proteção dos bens jurídicos, obrigando assim aos teóricos juristas a buscar um conceito de norma que outorgasse proeminência ao aspecto objetivo da lesão de interesses relevantes para a coletividade. Aparece assim uma mais nítida distinção entre antijuridicidade e culpabilidade: a primeira, como juízo objetivo e despersonalizado de desvalor do fato; a segunda, como juízo de desvalor da personalidade do autor. A nova concepção filosófica neokantiana que ressaltou o aspecto valorativo na forma de apreender a realidade, impulsionou à nova direção metodológica.18

E é precisamente esta mudança de perspectiva nos fundamentos da teoria do delito o que agora abonaria, por sua vez, o campo do qual nasceria uma nova concepção da norma penal mais de acordo com as modificações estruturais na sistemática do Direito Penal. A concepção da norma penal é agora deduzida do modelo teórico derivado da estrutura do delito. A nova proposta optaria, sem esquecer o aspecto determinante da disposição jurídico-penal, por dar maior relevância ao seu aspecto valorativo da mesma.

18 Esta mudança de concepção na teoria del delito se observa já em uma época anterior no próprio Von Liszt. Na 3ª edição de seu tratado (Berlin e Leipzig, 1888) o autor alemão estrutura claramente o injusto com base na concepção imperativa da norma, e, por exemplo, a antijuridicidade a entende como um ataque dirigido contra o ordenamento jurídico, contra a força vinculante que impõem as ordens e as proibições que o próprio estabelece (p. 131 e 132). Na 4ª edição desta mesma obra (Berlin, 1891) já não se diz tão somente que a antijuridicidade suponha o ataque ao ordenamento jurídico ou a desobediência a suas ordens e proibições. Se segue mantendo que o injusto consiste em um menoscabo ou lesão do Direito, uma infração de preceitos estatais, mas o mais importante é que pela primeira vez assinala o professor alemão, dentro do tópico da antijuridicidade, que todo delito compreende um ataque a interesses protegidos juridicamente, e que tal ataque consiste bem na lesão de um bem jurídico ou bem em sua colocação em perigo (p. 145). Mais ainda, no marco do injusto, o imperativo fica deslocado a um segundo plano como se depreende das seguintes palavras: ‘Todo ataque ao bem juridicamente protegido é, em si mesmo, antijurídico, sem que isto requeira uma especial proibição do ordenamento jurídico. O conceito de bem jurídico encerra em si mesmo necessariamente a proibição de toda perturbação” (p. 145).

De igual forma, no plano da culpabilidade se observa uma importante mudança. Na terceira edição esta fida relegada à pura capacidade biopsíquica de imputação e a suas formas (o dolo e a culpa). A capacidade de imputação se define assim como um estado normal de determinabilidade conforme motivos (p. 150). Na quarta edição se introduz novos elementos definidores da culpabilidade em correspondência com uma melhor distinção realizada no plano da antijuridicidade. Define-se a culpabilidade (coisa que não ocorre na anterior edição) e se diz, por exemplo: “Culpabilidade é responsabilidade pelo resultado causado através de um movimento corporal voluntario”. Também se assinala que a capacidade de culpabilidade é a capacidade para ser responsável por uma ação antijurídica. O aspecto pessoal e subjetivo da culpabilidade frente à objetivização da antijuridicidade se acentua quando nesta edição aparece como pressuposto da responsabilidade jurídico-penal a determinabilidade da vontade através da própria conduta e pessoalidade do sujeito derivada do conjunto de representações que a conformam, da religião, da moral, do Direito, inteligência, cultura, etc.(pág. 160).

13Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 6, n. 10, p. 7-44, jan./jun. 2014

E assim, nas primeiras décadas do Século XX se imporia uma corrente doutrinária representada cronologicamente por Nagler, Gosldschmidt e Mezger que na afirmação de uma concepção objetiva e material do Direito, e de sua contradição, isto é, a antijuridicidade; os levaria a propor uma nova definição da norma penal.19

Nagler parte da ideia do direito em sua função primária como ordem objetiva da vida social e como regulamentação externa da convivência humana no âmbito da comunidade. A antijuridicidade vem determinada precisamente com base no menoscabo dessas condições de convivência externa dos membros da comunidade.20

Gosldschmidt não combateu a teoria dos imperativos no âmbito do Direito Penal, ainda que sua posição constitua o germe da teoria da dupla função da norma penal.21 Em sua concepção, no injusto objetivo depende das valorações abstratas do Direito, ou dito de outra forma, de estados objetivos e externos nos quais qualquer um pode reconhecer a conduta correspondente. Isto ocorre quando um concreto pressuposto de fato corresponde com o âmbito dessa norma abstrata. Junto a essa, se encontra a norma de dever que exige uma conduta interna.22 O dever jurídico aparece assim como imperativo. Esta primeira norma objetiva que obriga a todos, imputáveis e inimputáveis, conduz, por sua vez, a uma segunda norma (se bem que esta goza de certa independência frente àquela) que se dirige ao indivíduo em particular, a sua conduta interna, para que determine seu comportamento externo conforme as exigências do ordenamento jurídico. Enquanto que a primeira norma proibiria a causação do resultado e desta forma fundamentaria o injusto objetivo, a segunda norma, ou norma de dever, se dirigiria à determinação da conduta do indivíduo a favor do cumprimento da legalidade e fundamentaria a culpabilidade.23

A formulação da dupla função da norma penal, depois destes precedentes, encontra uma primeira completa elaboração com Mezger24. O citado autor alemão, em

19 Uma exposição sobre este ponto em ROXIN, op. cit., p. 199, n. 92.20 NAGLER, Johannes. Der heutige Stand der Lehre von der Rechtwidrigkeit. Festschrift für Karl Binding

zum 4. juni 1911. Reimpressão da edição de Leipzig, 1911. Aalen: Scientia Verlag, 1974. p. 213ss.21 GOLDSCHMIDT, James. Der Notstand, ein Schuldproblem. Österreichische Zeitschrift für Strafrecht,

Wien, p. 129ss, 1913.22 A tese de Goldschmidt está muito próxima à de Mezger. A diferença fundamental se encontra em que para

este último autor, a norma de determinação deriva da norma de valoração, enquanto que naquele uma norma se encontra junto à outra. MEZGER, Edmund. Tratado de Derecho penal. Traduzido e revisado por Arturo Rodriguez Muñoz. Madrid: Editora Revista de Derecho Privado, 1955, p. 346, n. 6.

23 Uma valoração da posição de Goldschmidt em relação ao que representa o desvalor de ação e o desvalor de resultado se encontra em ZIELINSKY, Diethart. Handlungs- und Erfolgsunwert im Unrechtsbegriff. Berlin: Duncker und Humblot, 1973, p. 22 e 23.

24 MEZGER, Edmund. Die subjektiven Unrechtselemente. Der Gerichtssaal, Stuttgart, n. 89, p. 207ss, 1924.

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seu intento de encontrar uma nítida distinção entre antijuridicidade e culpabilidade, estabelece um conceito do injusto claramente diferente do propugnado por Thon ou Hold von Ferneck.

Injusto é, portanto, tudo aquilo que se encontra em contradição com a vontade do ordenamento jurídico, não só o menoscabo de suas ordens e proibições, mas também toda organização das condutas externas, que se opõem a seus princípios reconhecíveis. Antijurídico é, portanto, não apenas o culpável, mas também o não culpável ataque dos imputáveis aos bens jurídicos.25

O direito é concebido como uma ordem objetiva da vida, e o injusto, correspondentemente, como a lesão desta ordem objetiva. Daí que o autor alemão mencione que

não é imaginável o direito como ‘norma de determinação’ sem o direito como ‘norma de valoração’, o direito como norma de valoração é pressuposto lógico e incondicional do direito como norma de determinação... se alguém quer determinar algo, tem que saber anteriormente o que quer determinar, tem que ‘valorar’ algo em um determinado sentido positivo. Um prius lógico do direito como norma de determinação é, sobretudo, o direito como norma de valoração, como ‘ordem objetiva da vida’... Para a consideração cognitiva do dever ser do Direito, para a constatação do conceito de Direito, a concepção do direito como norma de valoração resulta como necessidade apriorística.26

Mas, como é evidente, uma norma que só seja concebida como juízo de valor não pode deixar de ser nada mais do que uma declaração de boas intenções. A norma tem também pretensão de eficácia, ainda que venha dirigida à afirmação e à manutenção real dos valores que protege o próprio Direito. A tese da norma como norma de determinação não é abandonada, mas trasladada a um segundo plano, pois o próprio conceito que encerra a mesma obriga à necessária referência do destinatário da norma. Dirá então Mezger que enquanto que o ordenamento jurídico é um complexo de normas que como tal (ou seja, como integrantes desse ordenamento jurídico) só podem ser concebidas sem destinatário algum; a realização e colocação em prática desse conjunto normativo só pode ser levada a cabo através dos imperativos, ordens e proibições, que não se identificam diretamente com a norma, mas somente são levadas em consideração a partir de suas consequências como o meio necessário para sua imposição ou colocação em prática.

25 Ibid., p. 218.26 Ibid., p. 240 e 241.

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O imperativo, na tese mezgeriana, não constitui a norma mesma, mas tão só um meio de sua realização, que não se confunde com aquela: “Desde o ponto de vista lógico é um erro pensar na norma e no meio de realização da norma (imperativo), como unidade, se trata de coisas diferentes. O conceito abstrato da norma é independente da concreta circunstância de sua subjetiva relação normativa”.27 O que ele entende como norma em si mesma considerada é uma concreção do dever ser impessoal que descreve um determinado estado da vida social, que não vai dirigido a destinatário algum. O imperativo, ou, para empregar seus termos, o meio de realização da norma, deriva da norma objetiva de valoração e se dirige a um destinatário, individual ou genérico, expressando o dever pessoal que a ele corresponde em razão da vinculação originada no direito objetivo. De consequência, o próprio Mezger expressa com meridiana clareza o núcleo básico de sua teoria da norma penal:

A norma é, em sua evidência conceitual só imaginável como dever ser impessoal no

qual o destinatário não é nenhum requisito essencial. As normas do direito são normas

de valoração dirigidas a um determinado e objetivo estado social, antes de que estas

conservem, em um amplo processo lógico, o caráter de normas de determinação. Esta

separação entre norma e imperativo é pressuposto ideal necessário para uma clara e pura

separação entre determinadas proposições que se referem à norma em sua independência

abstrata, daquelas outras que se referem ao meio de realização da norma dos imperativos.28

Similar posição em torno da concepção da dupla função da norma penal mantém Eberhard Schmidt29.

Esta formulação do caráter e da essência da norma penal permitiu fundamentar una clara distinção entre a antijuridicidade e a culpabilidade. O injusto, concebido como lesão do Direito, consiste na infração da norma propriamente dita, isto é, como norma objetiva de valoração. A antijuridicidade é objetiva no sentido de que esta consiste em um juízo de desvalor impessoal, sem referência alguma ao sujeito ativo da infração penal. Desta norma objetiva de valoração se depreende a norma subjetiva de determinação, que atua como juízo de reprovação da conduta do concreto autor em relação ao fato cometido. Ou seja, a infração da norma de dever dirigida ao sujeito estabelece o fundamento da culpabilidade.30

27 MEZGER, op. cit., p. 245.28 Idem.29 Em VON LISZT, Frank; SCHMIDT, Eberhard. Lehrbuch des Deutschen Strafrechts, Tomo I. Berlin e Leipzig:

de Gruyter, 1932. p. 174.30 “Se então nós fazemos frente na ‘antijuridicidade objetiva’ e na ‘juridicidade objetiva’ ao direito em sua

função como norma de valoração, de igual forma terá que interessar-nos ainda mais dentro da teoria da culpabilidade em sua função como norma de determinação”. SCHMIDT, op. cit., p. 176. no mesmo sentido,

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Esta é, a grandes rasgos, a evolução da teoria da norma penal em suas duas concepções básicas, como imperativo e em referência a sua dupla função, valorativa e determinativa. Em uma primeira aproximação, se pode destacar a relação existente entre concepção da norma e teoria do delito. Porém, este processo não se desenvolveu de forma uniforme e homogênea. Com efeito, da teoria dos imperativos em sua formulação inicial derivou um conceito eminentemente subjetivo da antijuridicidade e difícil de distinguir dos casos de imputação subjetiva. Precisamente, e como se apontou anteriormente, foram problemas dogmáticos na estruturação da teoria jurídica do delito os que determinaram uma mudança na concepção da norma. A necessidade de atribuir consequências jurídicas também aos atos antijurídicos perpetrados pelos inimputáveis e de levar a cabo uma nítida distinção dos planos de antijuridicidade e culpabilidade, desembocaram, depois de uma longa evolução, na teoria da dupla função da norma penal. Uma vez perfilada nitidamente esta concepção, foi possível fundamentar de novo, aperfeiçoando-a, a teoria jurídica do delito derivada desta proposição.

Seria possível apresentar mais exemplos em relação à conexão existente entre função do Direito Penal, método de pesquisa, norma penal e estrutura do delito. Entretanto, vou limitar--me a expor brevemente as teses do funcionalismo psicológico de Gimbernat, em sua versão original, como uma representação desta vinculação interna entre os pressupostos assinalados.

A pretensão do autor se dirige a buscar um critério de racionalidade que explique de forma lógica as diferentes instituições que estruturam o sistema de Direito Penal. Pretende-se, assim, abandonar todo vestígio ético ou moral nos conceitos ou pressupostos desse sistema de Direito Penal. Daí que se parte de um entendimento psicoanalítico das relações sociais, que explicaria o seguimento das regras jurídicas mercê da inibição psicológica que produz a ameaça da sanção correspondente para o caso de que o cidadão as infrinja.31 Se é assim que funciona o comportamento do indivíduo em relação ao respeito às normas de convivência social, os fins que persegue o Direito Penal devem ir encaminhados a “[...] reforçar o caráter inibidor de uma proibição. Criar e manter nos cidadãos uns controles que devem ser mais rigorosos quanto maior seja a nocividade

MEZGER, op. cit., p. 343: “...o deslinde conceitual entre a norma jurídica como norma de valoração que se dirige ‘a todos’ e a norma de dever como norma de determinação que se dirige ‘só’ ao pessoalmente obrigado, torna possível, em consequência, o necessário e claro contraste entre os dois pressupostos básicos do delito, entre a antijuridicidade objetiva e a reprovabilidade pessoal”.

31 GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. ¿Tiene un futuro la Dogmática jurídicopenal? Estudios de Derecho pe-nal. Madrid: Tecnos, 1976. p. 64 ess. Existem posteriores edições desta obra, nas quais também estão contidos este e outros artigos que mencionaremos ulteriormente. Mas, dado que o conteúdo dos mesmos não variou, seguiremos citando a primeira edição.

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social de um comportamento”.32 A pena é concebida deste modo como um importante instrumento de política social. É um meio de encaminhamento de condutas através da compulsão psicológica que produz no indivíduo a ameaça do mal que repre senta a sanção. Por esta razão, se atribui à sanção punitiva uma finalidade quase exclusivamente preventiva geral, tendente a motivar todos os cidadãos, através da ameaça do castigo, para que não cometam delitos. E como toda pena implica um sacrifício de bens e direitos do cidadão de grande relevância, sua aplicação se limitará estritamente a manter a prevenção geral. A necessidade de pena se constitui assim em princípio geral de toda a construção siste-mática do autor citado.

Do assinalado linhas atrás se deduz que, para Gimbernat, a norma penal é funda-mentalmente norma de motivação. A partir desta consideração em relação ao dito em matéria de consequência jurídica, extrai todos os pressupostos sobre os quais estrutura sua teoria jurídica do delito.

Desta forma, o tipo se define em atenção à sua função, função motivadora que determina seu próprio âmbito conceitual: “[...] nele tem lugar todos aqueles elementos que integram a descrição da conduta cuja não comissão se quer motivar. A problemática de o que pertence ao tipo é a problemática de qual é a conduta que o legislador quer evitar”.33 Daí segue que, se o legislador quer evitar comportamentos intencionais que lesionam um de terminado bem jurídico, o elemento volitivo se tenha que encontrar dentro do marco objeto da proibição e, portanto, “o dolo é um elemento do tipo dos delitos dolosos, já que é ele mento essencial da descrição da conduta proibida”.34 É assim como, por via distinta do fi nalismo, se chega à conclusão de que o dolo se encontra dentro do tipo. Este mesmo fio ar gumentativo é trasladado ao delito imprudente, e de igual forma, na medida em que a pena pode inibir o comportamento negligente mediante a ameaça do mal que a mesma representa, o dever de cuidado se inclui também na tipicidade. Isto é reforçado com a ideia que constan temente gira em toda sua proposta sistemática: “não são causações de resultados _ só constatáveis ex post _, mas condutas dolosas ou imprudentes o único que a ameaça com uma pena pode inibir e _ desta maneira _ prevenir; por isso, só a conduta dolosa e _ se o legislador quer ampliar ainda mais o âmbito de proteção do bem jurídico _ a imprudente pode ser objeto racional de tipificação: a cuidadosa é impune por falta de

32 GIMBERNAT ORDEIG, op. cit., p. 70 e 71.33 GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. El sistema de Derecho penal en la actualidad. Estudios de Derecho penal.

Madrid: Tecnos, 1976. p. 94. Em outra passagem deste mesmo trabalho o autor assinala: “Sabemos já em que consiste e qual é o tipo penal. Consiste na descrição da conduta proibida e seu fim é o de motivar _ mediante a ameaça com uma pena _ para que tal conduta não se cometa”.

34 Ibid., p. 95.

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tipicidade”.35 Partindo deste conceito am plo de tipo de injusto como descrição do proibido, se leva a cabo ainda uma extensão maior ao considerar que o mesmo está integrado pelo tipo em sentido estrito (positivo) e pela ausên cia das causas de justificação, que, coerente com sua posição, ficam definidas como ele mentos negativos do tipo.36

O setor da antijuridicidade se define em atenção ao âmbito do que o legislador deter minou que quer proibir. Ou seja, antijurídico é aquilo que o direito deseja proibir erga omnes. Daí que os casos de inexigibilidade, que não são ameaçados com pena, não porque esta não resultasse eficaz, mas pelo simples fato de que o legislador não pretende inibir de forma geral a conduta lesiva ao bem jurídico em determinadas circunstâncias, sejam considera dos como causas de justificação e não de exculpação.37 O sector da culpabilidade, pelo contrário, se delimita, não com base em um juízo de reprovação, como se definiu por causalistas, finalistas ou partidários da concepção social da ação, mas por meras razões de prevenção geral e especial em direta relação com o princípio de necessidade de pena. Neste setor da culpabilidade se estabelece certos limites ao poder punitivo do Estado na medida em que se re quer, para que o sujeito possa ser castigado pela comissão de um comportamento antijurídico, que tenha podido ter acesso à chamada da motivação da norma através de sua consequência jurídica. Ou seja, se exige que o sujeto seja uma pessoa imputável, bem perma nentemente, bem no momento da perpetração do fato; ou que no espaço temporal da realização do ilícito tenha estado em condições, de igual forma, de ter podido conhecer a proibição determinada pela norma penal, e com isso, ter sido suscetível de ser influenciado por esta.38 A ausência de pena nos casos de falta de “culpabilidade” (e se coloca entre aspas o substantivo, posto que o autor rechaça o conceito tradicional de culpabilidade) se justificaria, de forma mediata, por essa impossibilidade de motivação da norma no sujeito que comete o in justo, mas, diretamente, a razão fundamental está unida a critérios de prevenção geral.39 A imputação subjetiva (equivalente ao que a maioria

35 Ibid., p. 97 e 98, n. 40.36 GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. Introducción a la Parte general del Derecho penal español. Madrid:

Universidad Complutense, 1979. p. 34.37 GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. Estado de necesidad: un problema de antijuridicidad. Estudios de Derecho

penal. Madrid: Tecnos, 1976. p. 116ss.38 Ibid., p. 114ss.39 São muitas as passagens na obra de Gimbernat nas quais diretamente se conectam fins da pena e

culpabilidade, fundamentalmente em atenção a critérios de necessidade de pena. Trazemos à colação uma das tantas referências a respeito: “Desde o ponto de vista da manutenção da ordem social, proceder com uma pena frente aos enfermos mentais e menores é intolerável e abusivo porque é também desnecessário: pois que seu comporta mento delitivo fique impune não diminui em nada o caráter inibitório geral das proibições penais” (GIMBERNAT ORDEIG, E. ¿Tiene un futuro la dogmática... cit., p. 77).

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da doutrina denomina juízo de reprovação) ficaria assim reduzida a dois momentos fundamentais: a imputabilidade e o conhecimento da antijuridicidade.40

São muitas as peculiaridades da concepção sistemática de Gimbernat, nas quais não podemos agora nos deter. No que interessa agora resta sublinhar que o autor mantém um espe cífico conceito causal de ação (entendido de forma geral, que compreende tanto o fazer ativo como omissivo, e que ele denomina “comportamento”), mas não em razão de uma metodolo gia naturalista, mas fundamentado em atenção a seu ponto de partida ancorado na teoria psica nalista da conduta humana. Assim, define o comportamento como “a relação do Eu consciente e fisicamente livre com o mundo exterior manejando processos causais (isto é: incidindo em ou alterando os processos causais ou deixando que estes sigam seu curso ou que não se iniciem)”.41

De tudo o que foi exposto com relação ao autor espanhol, quisesse destacar agora a forma na qual se estruturam e conectam entre si os diferentes pressupostos e consequências de sua proposta metodológica. Busca-se uma explicação racional do Direito Penal que evite recorrer a critérios e conceitos carregados de conotação ética ou moral, e se encontra uma fundamentação em um entendimento psicoanalítico das relações humanas. Desde este ponto de partida, a norma penal é concebida, com atenção à sua incidência no comportamento humano, como norma de motivação e se elude assim toda referência ao clássico aspecto valorativo da norma. E a própria função do Direito Penal não pode consistir, por este prisma, na tradicional tarefa que a doutrina costuma assinalar-lhe de tutela de bens jurídicos. Esta seria uma missão ideal e trascendental que se encontraria fora dos parâmetros de constatação empírica que agora se lhe podem atribuir à solução dos problemas humanos. Em troca, a evitação dos delitos, impedir que em um futuro se alcance uma cifra desorbitada na estadística criminal, aparece como uma possível contribuição real do Direito Penal à manutenção da coexistência social. Por isso se explica que se assinale ao setor punitivo do ordenamento jurídico a função de prevenção geral:

40 GIMBERNAT ORDEIG, E. Introducción a la Parte general del Derecho penal... cit., p. 69ss.41 GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. Sobre los conceptos de omisión y comportamiento. ADPCP, núm. XL

(1987); p. 579 ess., 587. Não obstante, tampouco se pode confundir este conceito com o de ação definido causalmente em sentido estrito, pois como o mesmo autor assinala, em sua tese renuncia ao requisito conceitual da voluntariedade porque não está em condições de abarcar os comportamentos automatizados nem falidos. Outra di ferença fundamental reside em que se considera ausência de comportamento quando, ainda existindo essa voluntarie dade, não há um condicionamento físico do próprio comportamento. Assim, não havia omissão “quando por incapaci dade do sujeito ou pelos dados objetivos da situação era fisicamente impossível a execução de um movimento”. p. 606. Em relação ao conceito de ação de Gimbernat e sua proposição geral do Direito Penal, BORJA JIMÉNEZ, Emiliano. Funcionalismo y acción. Tres ejemplos en las contribuciones de JAKOBS, ROXIN e GIMBERNAT. Estudios penales y criminológicos, XIV. Santiago de Compostela, p. 9-61, 1994.

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através da ameaça do castigo, a norma motiva à generalidade da cidadania, mediante mecanismos de inibição, ao acatamento das regras jurídicas. E deste modo se vinculam intimamente um pressuposto metodológico (que pretende fugir tanto das teses valorativas como ontológicas), a concepção da norma penal (como norma de motivação) e a função do Direito Penal (prevenção general). A teoria do delito, como não poderia ser de outra forma, constitui uma coerente consequência destes pressupostos gerais.

E se o Direito Penal persegue motivar aos cidadãos para que não delinquam, a tipicidade abarcará aquele setor do comportamento humano que o legislador deseja proibir e que pode evitar através da ameaça penal (tanto o comportamento doloso como, em alguns casos, o imprudente). O âmbito da imputação subjetiva já não se fundamenta no livre arbítrio, mas na capacidade de motivação do sujeito e nas necessidades preventivo gerais... o sistema se ordena coerentemente desde seus pressupostos fundamentais até suas últimas consequências.

2 CONCEITO DE AÇÃO, FUNÇÃO DO DIREITO PENAL, ESTRUTURA DO DELITO E SISTEMA DE DIREITO PENAL

Metodologia do Direito, função do Direito Penal e estrutura do delito se puseram em comunicação não só mediante o componente fundamental da norma jurídica, mas também através da ação. O finalismo de Welzel levou a cabo uma proposta metodológica na qual se pode observar claramente a conexão entre todos estes fatores.

Na opinião deste autor, a ciência do Direito penal não pode construir-se a partir de conceitos e princípios estritamente jurídicos, ordenados, explicados e sistematizados com base em critérios exclusivamente normativos. Esta forma de desenvolver a investigação jurídico-penal operaria com um produto artificial uma vez que desconheceria os acontecimentos, os fenômenos e as estruturas da realidade que são prévias a toda regulação jurídica.42 O ponto de partida filosófico, como é fácil adivinhar, já não é a doutrina neokantiana dos valores, mas, pelo contrário, se toma em consideração as correntes ontológicas e fenomenológicas “para mostrar as distintas leis estruturais do ser humano e tentar conformar a partir daqui a base das Ciências que se ocupam do homem”.43

42 WELZEL, Hans. Naturalismus und Wertphilosophie im Strafrecht. Mannheim-Leipzig-Berlin: Dt. Druck- und Verlagshaus, 1935. p. 64ss.

43 ROXIN, op. cit., p. 112, n. 17. Sobre os pressupostos filosóficos da doutrina da ação final, é importante tomar em consideração as próprias apreciações de WELZEL, Hans. Das neue Bild des Strafrechtssystems. 4. ed. Göttingen: Schwartz, 1961. p. IX-XII. Existe versão castelhana El nuevo sistema de Derecho penal. Una introducción a la doctrina da acción finalista. Trad. e notas de José Cerezo Mir. Barcelona: Ariel, 1964.

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Em correspondência a esta primeira proposta teórica, o autor alemão assinala que nas estruturas lógico-objetivas que marcam e dão pleno sentido através da convivência humana ao mundo, existe una combinação de relações ontológicas e axiológicas, representativas dos planos do valor e da realidade, que não foram percebidas nem pelo pensamento científico--natural do naturalismo jurídico-penal (em seu exame da realidade livre de toda valoração) nem pelo método axiológico neokantiano (em uma excessiva normativização e relativização de sua teoria do conhecimento). Segundo esta concepção, essas estruturas lógico-objetivas venderiam determinadas, em última instância, por constantes antropológicas que lhe são dadas previamente ao direito e que não podem ser transformadas por este, e, em consequência, tem que ser levadas em conta também pelo legislador, de tal forma que essas denominadas estruturas lógico-objetivas “representam os tijolos físicos do mesmo sistema de direito penal prévio à regulação jurídica”.44 A inovação metodológica foi, a todas luzes, transcendental.45

A estrutura lógico-objetiva fundamental que está na base de todo direito penal é a ação humana. Agora, enquanto estrutura lógico-objetiva, sua significação básica para o sistema jurídico não pode ser distinta da que subjaz no marco da realidade. Por esta razão, e, segundo Engisch, o conceito de ação de Welzel, seguindo a Nicolai Hartmann, e como base da teoria jurídica do delito, é equivalente ao de atividade final humana.46 À

44 SCHÜNEMANN, Bernd. Einführung in das strafrechtliche Systemdenken. Grundfragen des modernen Strafrechtssystems. Berlin-New York: de Gruyter, 1984. p. 34. Existe tradução ao castelhano: El sistema moderno del derecho penal: cuestiones fundamentales. Traduzido por SILVA SANCHEZ, Jesús María. Madrid, 1991. Segundo este autor, a concepção de Welzel representa, dentro do âmbito filosófico-jurídico, um compromisso entre o direito natural e o relativismo valorativo.

45 A concepção metodológica de Welzel se pode resumir em umas poucas linhas, tomando palavras do próprio autor: “O ordenamento jurídico determina por si mesmo que elementos ontológicos quer valorar e vincular a eles consequências jurídicas. Mas não pode modificar os elementos mesmos, se os acolhe nos tipos. Pode designá-los com palavras, destacar seus caracteres, mas eles mesmos são o elemento individual, material, que constitui a base de toda valoração jurídica possível. Os tipos só podem «refletir» este material ontológico, previamente dado, descreve-lo linguística e conceitualmente, mas o conteúdo dos «reflexos» linguísticos e conceituais pode ser só destacado mediante uma compreensão penetrante da estrutura essencial, ontológica do elemento material mesmo. Disso se deduz para a metodologia, que a Ciência do Direito penal tem que partir sempre, sem dúvida, do tipo [...] mas tem que transcender logo do tipo e descender à esfera ontológica, previamente dada, para compreender o conteúdo das definições e para... compreender também corretamente as valorações jurídicas [...] Este método, «vinculado ao ser ou às coisas»... que constitui um dos aspectos essenciais da doutrina da ação finalista, deveria ser designado con a palavra «ontológico», sem que com isso se optasse por um sistema ontológico determinado” (El nuevo sistema del Derecho penal... cit., p. 13 e 14). Sobre toda a problemática proposta em relação às estruturas lógico-objetivas na Espanha, cf. CEREZO MIR, José. La polémica en torno a la doctrina da acción finalista en la Ciencia del Derecho penal española. Problemas fundamentales del Derecho penal. Madrid: Tecnos, 1982. p. 105ss.

46 Dizia Hartmann: “A pessoa, enquanto configura e transforma seus desejos em fins, e realiza estes valendo-se dos meios previstos para isso, dirige o suceder real ao desejado, e precisamente este dirigir mediante a inserção dos próprios componentes determinativos é a «ação». A respeito, o grande trabalho de RODRIGUEZ MUÑOZ, José Arturo. La doctrina da acción finalista. 2. ed. Valencia: Tirant lo blanch, 1978. p. 84. Ainda que exista grande similitude entre os pontos filosóficos de Hartmann e os pressupostos da doutrina da ação de WELZEL, este mesmo autor nega a influencia daquele (El nuevo sistema de Derecho penal... cit., p. 12 e 13).

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ação pertence, portanto, tudo aquilo que o querer do sujeito estabelece como meio para alcançar um determinado fim. Porém, de um ato de vontade podem surgir muitos efeitos, dos quais não todos vão a pertencer à ação. Nesta determinação limitativa, o autor segue também um postulado metodológico hegeliano, ao tentar deslindar aquelas consequências que serão imputadas à ação, daqueles efeitos “cegos” acessórios e distantes.47 Chega assim a conceber a ação, como assinalávamos, em sua consideração como atividade humana final. Assim dirá o autor: “A ação humana é exercício da atividade final. O próprio e genuíno do ato do homem consiste em antecipar na esfera do pensamento determinadas metas, em selecionar os meios necessários para sua consecução e aplicá-los depois, de modo planificado, para lograr a realização daquelas... em virtude de seu saber causal, a vontade é o fator objetivo da ação, dirige de modo planificado a ação à consecução da meta (realização da vontade)”.48

A consequência sistemática mais importante e revolucionária que deriva desta concepção da ação foi expressada por el próprio Welzel nitidamente: “Por isso pertence o dolo à ação como o fator configurador subjetivo da mesma”.49 Não cabe dúvida que a translação do dolo do âmbito da culpabilidade à ação é uma das inovações mais importantes na teoria jurídica do delito que tiveram lugar no século XX.

Até aqui, expus de forma descritiva a proposta metodológica que tradicionalmente se atribui ao autor alemão. Gostaria de acrescentar agora um fator relevante sobre o qual não se prestou tanta atenção, e é este que faz referência à função que persegue o Direito Penal e sua relação com esta proposta metodológica.

Frente às teorias clássica e neoclássica que estabeleciam como missão do Direito Penal a proteção dos bens jurídicos essenciais para a convivência humana, as teses finalistas de Welzel determinam uma missão mais profunda e positiva do Direito Penal, uma missão de natureza ético-social. O Direito Penal prescreve e castiga a inobservância efetiva dos valores fundamentais da consciência jurídica. Deste modo, outorga vigência aos valores positivos de fato, dá forma ao juízo ético-social dos cidadãos e fortalece sua consciência de permanente fidelidade ao Direito. Para Welzel, portanto, a missão do Direito Penal consiste fundamentalmente na tutela dos valores elementares de consciência, de caráter ético-social, e só por inclusão, a proteção dos bens jurídicos particulares.

A ulterior sistematização da teoria do delito no finalismo, de todos conhecida, não é alheia nem à função do Direito Penal que seu fundador estabelece, nem tampouco é

47 RODRIGUEZ MUÑOZ, op. cit., p. 85.48 WELZEL, Hans: Das deutsche Strafrecht in seinen Grunzügen. Berlin: de Gruyter, 1949. p. 20ss. Tomamos

a tradução e a citação de RODRIGUEZ MUÑOZ, op. cit, p. 32 e 33.49 Idem.

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indiferente aos pressupostos filosóficos que lhe servem de base. Com efeito, o finalismo estabelece como função primordial do Direito Penal a manutenção dos valores ético- -sociais, dos valores de consciência para preservar, em segundo termo, os bens jurídicos mais relevantes da comunidade. A imposição geral dos valores de consciência, de fidelidade ao direito com o fim de preservar a convivência social, teria seus limites. E é aqui onde se estabelece a metodologia ontológica do tecido de estruturas lógico-objetivas prévias à regulamentação legal e de obrigatória observação por parte do legislador. O que se quis foi evitar assim, a crítica ao excessivo voluntarismo que envolve todo o seu modelo teórico.

E tampouco é casual a incorporação da estrutura lógico-objetiva fundamental, a ação final, na teoria jurídica do delito. É possível afirmar que a subjetivização que se traduz em toda a doutrina welzeliana do ilícito mercê da inclusão e exame do conteúdo do querer dentro da conduta humana (conceito pessoal do injusto, normativização e redução da culpabilidade, etc.) é o resultado de algo mais que una mera consequência técnica pelo fato de ter partido deste pressuposto ontológico essencial. Precisamente toma Welzel a ação final como ponto de partida de sua sistemática porque esta casa perfeitamente com a função outorgada ao Direito Penal: a manutenção da vigência dos valores ético-sociais com vistas à conservação do respeito aos bens jurídicos fundamentais. Dentro destas coordenadas, o enfrentamento a essa missão atribuída ao Direito Penal vem encarnada pela atitude interna que provoca o juízo a respeito destes valores de consciência social. O momento de desobediência, o momento de rebeldia à assunção dos criterios éticos comunitários se constitui no aspecto mais relevante da negação do direito e por esta razão Welzel toma como estrutura lógico-objetiva essencial a ação final e não qualquer outra. As repercussões que teve este câmbio metodológico na estrutura do delito são de sobra conhecidas e estão intimamente relacionadas tanto com o pressuposto metodológico como o ideológico. Especialmente sua concepção da antijuridicidade volta a refletir este pensamento apontado.

Assim, para Welzel o ordenamento jurídico pretende estabelecer com suas normas e preceitos uma ordem valiosa da vida social. A realização antijurídica do tipo, em consequência, reflete sempre uma conduta que contradiz esta ordem valiosa. A antijuridicidade, pois, na tese welzeliana, se contempla como um juízo “objetivo” (no sentido de que vem determinado por critérios gerais) de desvalor. Mas, como tal juízo tem como objeto una conduta humana, e esta vem configurada tanto por componentes externos como internos, estes últimos, ou seja, os elementos anímicos do sujeito, vão ter grande importância na fundamentação do juízo de desvalor.50

50 WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Parte general. 11 ed. Traduzida por BUSTOS RAMIREZ, Juan e YAÑEZ PEREZ, Sergio. Santiago de Chile: Editorial Jurídica de Chile, 1970. p. 79.

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O dolo também se inclui no injusto, como é lógico, mas este, ademais, já não aparece desconectado da pessoa do autor:

[...] a ação é antijurídica só como obra de um autor determinado: o fim que o autor estipulou para o fato, a atitude segundo a qual o cometeu, os deveres que lhe obrigavam a este respeito, tudo isso determina de modo decisivo o injusto do fato junto à eventual lesão do bem jurídico. A antijuridicidade é sempre a desaprovação de um fato referido a um autor determinado. O injusto é injusto da ação referido a um autor, é injusto ‘pessoal’.51

Desta forma, a antijuridicidade e sua substantivização, o injusto, adquirem um grau de subjetivização desconhecido até então tanto na concepção causal do delito como na neokantiana. Buscou-se assim reafirmar a natureza ético-social do Direito Penal que por sua vez inspira toda a concepção jusfilosófica do autor alemão e isto se pretende conseguir outorgando primazia ao desvalor de ação frente ao desvalor de resultado.52

A mudança operada na teoria da culpabilidade, também é reflexo não só da coerência com o pressuposto dogmático de partida, mas também deste aspecto ideológico assinalado.

As repercussões sistemáticas do finalismo alcançaram, como apontei, o juízo de culpabilidade, que toma em consideração as circunstâncias próprias da ação em relação à realização do comportamento proibido.

Se o dolo se transferiu da culpabilidade para a ação, desaparecia do âmbito daquela o componente psicológico que até então lhe tinha prestado certo suporte material. A culpabilidade viria assim determinada desta forma com base em componentes quase exclusivamente normativos. E, neste sentido, o suporte ontológico vem refletido pela própria consideração ao ser humano, como pessoa capaz de dirigir livremente seu destino, de obrigar-se e, portanto, de atuar conforme as exigências do Direito. Pode-se dizer que a ideia de ser humano como pessoa responsável é a estrutura lógico-objetiva que no sistema de Welzel parece residir no campo da culpabilidade.53 Esta fica reduzida a um juízo de reprovação que se formula ao autor na medida em que, podendo atuar o sujeito, na situação concreta, em conformidade com os preceitos da norma jurídica, optou por dirigir seu comportamento contra o Direito.54

51 WELZEL, op. cit., p. 92.52 Assim se expressa BUSTOS RAMIREZ, op. cit., p. 183.53 Esta parece ser a opinião de BUSTOS RAMIREZ, op. cit., p. 184.54 “Neste ‘poder em lugar disso’ do autor a respeito da configuração de sua vontade antijurídica, reside

a essência da culpabilidade; ali está fundamentada a reprovação pessoal que se formula no juízo de culpabilidade ao autor por sua conduta antijurídica. A teoria da culpabilidade tem que expor os pressupostos pelos quais se reprova ao autor a conduta antijurídica”. WELZEL, op. cit., p. 197.

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Em face desta consideração geral, os componentes que configuram o conteúdo da culpabilidade são determinados em atenção a sua atitude como objeto da reprovação que se dirige ao autor pelo fato cometido. A estrutura desse juízo de reprovação se desenvolve através de três momentos fundamentais: imputabilidade, ou seja, comprovação existencial da capacidade do sujeito de compreender o injusto realizado e de dirigir sua conduta de acordo com essa compreensão55; possibilidade de compreensão do injusto, isto é, determinação das condições do sujeito imputável em razão do reconhecimento da significação antijurídica do fato cometido ou da possibilidade de ter chegado a esta compreensão56; e, finalmente, exigibilidade, em virtude da qual o juízo de reprovação requer que na situação concreta ao autor imputável com conhecimento do injusto do seu fato se pudesse exigir, em face do conjunto de circunstâncias concorrentes em tal situação dada, um comportamento distinto àquele que ele levou a cabo.57

A forte normativização da culpabilidade, responde, por um lado, a uma exigência de tentar manter um mínimo conteúdo dos aspectos pessoais do autor em relação ao fato antijurídico realizado. Pois a elaboração do conceito final de ação e do tipo pessoal de injusto determinavam um traslado desses componentes pessoais do juízo de reprovação ao setor da antijuridicidade. Mas, de outro lado, a excessiva subjetivização de toda sua sistemática implicava em que a culpabilidade se sustentasse também em uma estrutura lógico-objetiva que evitasse uma possível e excessiva intromissão do poder punitivo nos elementos de consciência do cidadão. E essa estrutura lógico-objetiva neste campo vem representada pelo livre arbítrio.

Em conclusão, como se foi esboçando ao longo destas linhas, a proposta jusfilosófica do finalismo e a subjetivização de todos os componentes da teoria do delito não pode considerar-se, como assinalado, em uma mera consequência técnica deduzida de um pressuposto teórico puramente ontológico, mas sim, pelo contrário, tal subjetivização sistemática se encontrava predeterminada pela função ideológica atribuída ao Direito Penal na determinação de sua tarefa fundamental.

55 Ibid., p. 216.56 Ibid., p. 221.57 Ibid., p. 248.

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4 IMPUTAÇÃO OBJETIVA, FUNÇÃO DO DIREITO PENAL E SISTEMA DE DIREITO PENAL

Gostaria de oferecer dois exemplos de propostas sistemáticas nos quais se relacionam metodologia do Direito, função da norma penal e imputação objetiva, que se encontram em um plano intermediário aos dois casos anteriormente apontados (sistema e norma penal, sistema e ação). Refiro-me ao modelo funcionalista defendido por JAKOBS, do qual passo a ocupar-me em primeiro lugar; e à recente proposta da concepção significativa da ação de Vives Antón, que finalizará este tópico.

Jakobs, junto com outros penalistas que se encontram nesta corrente, criticam à dogmática tradicional a perda de contato com a realidade, consequência da utilização de metodologias que se fundamentam em pressupostos naturalísticos, normativistas ou ontológicos. As tendências tradicionais do Direito Penal se consagraram particularmente à teoria dos valores, olvidando a função que costumam cumprir esses valores em um determinado sistema social. Se rechaça, nesta linha argumentativa, a missão que se costuma atribuir ao Direito penal, e que consiste na proteção de bens jurídicos. Pois o relevante não é a seleção e tutela de estados ideais, mas a função que prestam as diversas instituições penais. Ao contrário, para a doutrina tradicional, a questão sobre a tarefa representada por esses valores seria, segundo os partidários do funcionalismo, um tabu incontestável como tudo aquilo que fica fora da capa do direito positivo. Seria expulsa à moral, à religião ou à política. Assim, se acon selha ao Direito Penal que se olvide do exame da problemática sobre a natureza do valor fundamental para que desenvolva sua atividade de pesquisa na vida social.58

A proposta de Jakobs parte assim dos pressupostos da teoria dos sistemas sociais de Parsons59 e da aportação científica de Luhmann60 no marco da Ciência do Direito.

58 A respeito, a exposição de AMELUNG, Knut. Rechtsgüterschutz und Schutz der Gesellschaft. Frankfurt: Athenäum, 1972. p. 350ss. RUDOLPHI, Hans Joachim. Die verschiedenen Aspekte des Rechtsgutsbegriffs. Festschrift für Richard M. Honig. Göttingen: Scharwtz, 1970. p. 151ss. Um resumo dos pressupostos que guiam este pensamento em meu trabalho El bien jurídico protegido en el delito de allanamiento de morada. Estudios Jurídicos en Memoria del Prof. Dr. D. José Ramón Casabó Ruiz. Vol. I. Valencia: Tirant lo blanch, 1998. p. 247ss.

59 PARSONS, Talcott. The social system. 4. ed. New York: Free Press, 1968. LUHMANN, Niklas. Zweckbegriff und Systemrationalität. Tübingen: Mohr Siebeck, 1973. Do mesmo, Rechtssoziologie, 2 Tomos. Hamburgo: Rowohlt, 1972. Uma completa referência bibliográfica e análise sobre seus pressupostos em MIR PUIG, op. cit., p. 295ss. LUZON PEÑA, Diego Manuel. Medición de la pena y sustitutivos penales. Madrid: Instituto de Criminología de la Universidad Complutense , 1979. p. 9ss.

60 JAKOBS, Günther. Strafrecht. Allgemeiner Teil. 2. ed. Berlin-New York: de Gruyter, 1991. p. 6ss, n. 4ss, expresamente en notas 7 e 8. Esta mesma proposta foi antecipada em seu trabalho Schuld und Prävention. Tü bingen: Mohr, 1976. p. 9ss. Uma clara, concisa e completa exposição em SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al Derecho Penal contemporáneo. Barcelona: Bosch, 1992. p. 69ss, n. 4ss.

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Como pressuposto, parte-se de uma concepção da sociedade na que esta se contempla como um complexo organismo harmônico onde cada um dos membros que a integram desenvolve uma específica função que permite a coerência do sistema e contribui ao desenvolvimento di nâmico daquela, mantendo assim sua estrutura básica. Neste contexto, o Estado só pode castigar aquelas ações que apresentam certa lesividade social, de tal forma que o Direito Penal tem encomendada a tarefa de dirigir sua atividade em função do estabelecimento e proteção das condições necessárias que possibilitam a manutenção da vida humana em comunidade. Mas, diz-se, ali onde a convivência de uma pluralidade de indivíduos em uma determinada sociedade só é possível sob certos pressupostos, não é suficiente contar unicamente com estados de valor dignos de proteção, mas, para que o Direito Penal possa cumprir sua função, se há de atender aos problemas organizativos necessitados de solução com vistas à conservação e asseguramento das condições de existência dos cidadãos que convivem nessa sociedade61. Ou seja, em consideração aos sempre complexos pressupostos sociais, que desde este ponto de vista se entende como conformados sob fiáveis expectativas de comportamento e que se projetam em ações, o direito já não tem que delimitar nem proteger determinados valores, mas sim deve assegurar a estrutura do sistema social e garantir sua capacidade de função.

Em sua visão do Direito Penal, pois, se nega a tarefa clássica que a ele se atribui e que se circunscreve à mera proteção de bens jurídicos, na medida em que a lesividade social compreenderia algo mais que a violação de valores ideais. O Direito Penal, pelo contrário, deve contribuir à funcionalidade do sistema, à manutenção de sua capacidade de organização, à distribuição e asseguramento de competências, ao cumprimento individual de cada um dos róis assinalados ao cidadão.

Com esta concepção como ponto de partida, o autor define todas as categorias do delito com atenção à contribuição que es tas prestam à manutenção da respectiva estrutura social62. Daí que o objetivo que se atribui ao setor do ordenamento punitivo explique que toda a elaboração dogmática do ilícito se estruture em torno à instituição da imputação objetiva.

E com efeito, se disse, e com razão, que a teoria da imputação objetiva propugnada por Jakobs se insere em uma dogmática cuja pretensão é, sobretudo, a de explicar o sistema de atribuição que vige em uma determinada sociedade em um momento dado, e por isso sua teoria em ocasiões recebeu o nome de sociológica63.

61 Tese fundamental da qual parte a obra de AMELUNG, op. cit., p. 351.62 Neste sentido, e expondo alguns exemplos, SCHÜNEMANN, op. cit., p. 54, n. 133.63 JAKOBS, Günther. La imputación objetiva en Derecho Penal. Estudio preliminar de CANCIO MELIÁ,

M./SUÁREZ GONZÁLEZ, C. Trad. Manuel Cancio Meliá. Madrid: Civitas, 1996. p. 62. Estes autores, e especialmente o primeiro, contribuíram notavelmente à difusão da obra do autor alemão na maioria dos países de fala hispana, e daí que suas apreciações sempre tenham que ser tomadas muito a sério por seu valioso conhecimento da complicada estrutura dogmática deste grande penalista.

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Não é um acaso, portanto, que o autor tome como ponto de partida de sua teoria do delito a imputação objetiva, pois do que se trata é de estabelecer uma relação entre o comportamento de um sujeito e a violação do rol que lhe corresponde com atenção à distribuição de competências que leva a cabo a norma infringida, de tal forma que o evento lesivo aparece como obra de seu autor.64

A norma jurídica refletiria assim o critério reitor de ordenação que estabelece e diversifica os distintos róis a favor do funcionamento do sistema social. A lesão a sua vigência, em consequência, representa a lesão à função e constitui assim o primeiro motivo da incriminação. Explica-se deste modo, como reiteradamente venho apontando, que o Direito Penal já não persiga a mera proteção de bens jurídicos, pois agora centra sua atenção na manutenção da vigência da norma, da confiança no Direito. Todos os componentes do delito vem desta forma fundamentados desde o marco de sua plasmação e incidência na norma penal, entendida sob este pressuposto de critério reitor de determinação de competências.

A conduta criminal se caracteriza como uma forma de expressão com sentido que é imputada ao agente conquanto este exteriorize uma representação de ruptura de uma ordem vigente.65 E essa expressão de sentido jurídico-penalmente consistirá na inseparável tomada de posição a respeito da vigência da norma: o sujeito agente não vê nenhuma norma que o obstaculize, quer seja porque não conhece a correspondente norma, quer seja porque a conhece e apesar disso se propôs a infringi-la.66

A ação se constitui por sua vez, em causa de um resultado, definido este como lesão da vigência da norma, isto é, e entendendo norma como critério reitor de orde-nação comunitária, como menoscabo de uma determinada função social.67 Em outras palavras, o autor é coerente com a concepção funcionalista de toda sua posição na medida em que se concebe o injusto de um delito como a frustração do cumprimento de um rol assinalado ao sujeito em uma comunidade dada, e neste sentido, a norma,

64 “Com o dito creio que fica claro o que é objetivo na imputação objetiva do comportamento: se imputa as desviações a respeito daquelas expectativas que se referem ao portador de um rol. Não são decisivas as capacidades de quem atua, apenas as de um portador de rol, referindo-se a denominação ‘rol’ a um sistema de posições definidas de modo normativo; ocupado por indivíduos intercambiáveis; trata-se, portanto, de uma instituição que se orienta em atenção a pessoas”. JAKOBS, op. cit. p. 97.

65 JAKOBS, Günther. El concepto jurídico-penal de acción. Conferencia proferida no CEU de Madrid en maio de 1992. Traduzida por Manuel Cancio Meliá. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, Centro de Investigaciones de Derecho Penal y Filosofía del Derecho, 1996. p. 14. Do mesmo, Strafrecht. Allgemeiner Teil... cit., p. 136ss, n. 20ss.

66 JAKOBS, Günther. Der strafrechtliche Handlungsbegriff: Kleine Studie. München: Beck, 1992. p. 33 e 34. Tomo aqui vários parágrafos de forma quase literal para expressar mais genuinamente o pensamento do autor.

67 JAKOBS: El concepto jurídico-penal de acción... cit., p. 20 e 21.

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enquanto supõe a definição dos papeis que cada cidadão joga na sociedade, representa o mecanismo supremo de organização da mencionada comu nidade. A lesão à sua vigência, em consequência, refletira a lesão à função e se constituiria assim no primeiro motivo da incriminação. De tudo isto se deduz por que o autor chega a definir a ação com base neste resultado e por que caracteriza à mesma como causação da lesão da vigência da norma. O resultado se define assim como o não reconhecimento da validade da norma. Ou, elaborado de outra forma, se vai assinalar que quem expressamente mantém que a norma para ele não conforma atualmente máxima alguma, atua, se a expressão se realiza através de uma atividade corporal, e omite, quando toma expressão a não realização de uma determinada atividade.

O conceito de ação, pois, já não constitui o fundamento sobre o qual se edifica o sistema penal do autor, mas o componente básico da imputação objetiva que vem definido por sua própria relação com a norma jurídica. Desta forma se explica que perca certas características individuais em favor de uma compreensão mais sociológica.

E esta ausência de individualidade, de perspectiva pessoal nas diferentes categorias do delito, se vai plasmar também na instituição que tradicionalmente revela com maior força esses componentes individuais e pessoais: a culpabilidade.

No sistema de Jakobs, a pena cumpre uma fun ção fundamentada na prevenção geral positiva, que em sua particular terminologia significa neces sidade de manutenção das expectativas da fidelidade ao ordenamento jurídico. Essa fidelidade ao ordenamento jurídico se debilita quando o sujeito que se encontra em perfeitas condições para prever e dominar a realidade planificada (no sentido de cumprimento de seu rol pessoal a favor do desenvolvimento equilibrado do sistema), sendo possível uma atuação conforme a a expec-tativa que tal rol inspira na crença dos demais; leva a cabo uma atuação contrária à norma. Assim se entende a afirmação “a função da culpabilidade é estabilizar a norma débil”, ou esta outra similar “o fim que determina diretivamente a culpabilidade é a estabilização da confiança na ordem jurídica perturbada pelo comportamento delitivo”.68 Pois na defrau dação da expectativa que representa a norma por parte do sujeito que leva a cabo a conduta sob condições normais, ou seja, em seu comportamento sob condições volitivas e intelecti vas suscetíveis de ser interpretadas com sentido em um determinado contexto social, se nega a vigência dessa norma jurídica e com isso se debilita sua afirmação e sua atitude funcional de

68 JAKOBS, Günther. El principio de culpabilidad. Conferência proferida na Facultad de direito da Univer sidad Complutense de Madrid en maio de 1992. Trad. Manuel Cancio Meliá. Madrid: Civitas, p. 29. Também em Schuld und Prävention. Tübingen: Mohr, 1976. p. 31 (Als der die Schuld leitend bestimmende Zweck erwies sich hierbei die Stabilisie rung des durch das deliktische Verhalten gestörten Ordnungsverhaltens [...])

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equi líbrio no desenvolvimento da comunidade. Pois se as regras da natureza não necessitam afirmar sua vigência, pois esta não periga se alguém pretende atuar contra as mesmas, isso não ocorre no ordenamento jurídico, que ao não constituir um sistema absoluto necessita ressarcir-se contra as violações de seus preceitos para manter sua firmeza.

Nos casos de exclusão da cul pabilidade, pelo contrário, a defraudação da expectativa que representa a conduta infiel à determinação dos preceitos legais não se produz, posto que ninguém espera que a criança, o louco, ou aquele que desconhece a significação antijurídica do fato cometido, cumprisse com esta exigência de fidelidade ao Direito, ou dito em palavras que utilizaria o próprio Jakobs, a ausência de san ção nestes casos, não perturba a função estabilizadora de expectativas em que consiste o Direito69. A culpabilidade, portanto, não depende das específicas circunstâncias do sujeito. Não está fundamentada com base em um critério de limitação do poder punitivo do Estado em favor do reconhecimento de uma garantia fundamental do indivíduo, mas sim tão somente em atenção às necessidades derivadas da pena em sua função mediata de prevenção geral.

Esta compreensão do sistema penal na teoria do delito é coerente tanto com a proposta metodológica adotada como com os fins que se aponta para a pena. Parte-se da prevenção geral positiva como cri tério decisivo de orientação da sanção jurídica, ou seja, que a pena supõe a consequência racional e sincronizada do fato punível do autor, enquanto que este com o delito co munica seu esboço da realidade. Tal fato se entende não tanto como ato psicofísico, mas, sobretudo, como representação de um esquema social rechaçado pelo ordenamento jurídico. A pena su põe outra comunicação em sintonia com o ilícito: reflexo de que não se quer manter esse esboço da realidade apresentado pelo autor com seu comportamento. Em consequência, a prevenção geral é positiva posto que não só se pretende dar à sociedade uma visão negativa da consequência do delito, mas também se deseja impor uma determinada visão da realidade. Isto reflete-se nas seguintes palavras do autor:

O fim da pena que acabo de es boçar se denomina atualmente prevenção geral positiva; prevenção geral, porque se pre tende produzir um efeito em todos os cidadãos; positiva, porque este efeito não se pretende que consista em medo ante a pena, mas em uma tranquilização no sentido de que a norma está vi gente, de que a vigência da norma, que se viu afetada pelo fato, voltou a ser fortalecida pela pena; no século passado se falava de maneira plástica de eliminação do ‘dano intelectual do delito.70

Em que pese as distâncias existentes entre mestre e discípulo, entre Welzel e Jakobs, o paralelismo em sua estrutura metodológica resulta, a todas luzes, evidente. Para aquele, missão

69 Ibid., p. 39.70 Ibid., p. 34. Em outra passagem assinala, em consonância com o expre ssado no texto, que a prevenção

geral não se entende no sentido de intimidação, mas não de exercício da confiança no Direito: “Dies ist Generalprävention nicht im Sinne von Abschreckung, sondern von Einübung in Rechtstreu”. (Schuld und Prävention... cit.; p. 10). Também em Strafrecht. Allgemeiner Teil... cit., p. 13, n. 15.

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do direito Penal é manter vigentes os valores de consciência jurídica; para este, conservar a confiança no direito, no funcionamento sincronizado do sistema social. Welzel conforma toda sua sistemática em torno ao conceito final de ação porque representa a estrutura lógico-objetiva fundamental como vontade que se opõe ao submetimento de fidelidade aos valores de consciência jurídica. Jakobs, ao contrário, fundamenta todo seu modelo teórico na imputação objetiva, ou melhor, em um conceito amplo de ação por meio do qual se põem em comunicação conduta do sujeito, ruptura da norma e culpabilidade. A razão dessa prioridade radica, porém, no fato de que todos estes momentos representam casos de menoscabo ou debilitação da vigência da norma, frustração de expectativas, desajuste no desempenho dos róis socialmente assinalados, e em última instância, desfuncionalidade social.

A diferença fundamental encontramos no fato de que em Welzel o momento substancial de fundamento do injusto se encontra na ação final enquanto que em Jakobs a antijuridicidade, enquanto frustração de róis, vem diretamente relacionada com o menoscabo da vigência da norma, e a ação fica relegada a um segundo plano, ou melhor, encoberta no momento fundamental da imputação objetiva.

O conceito de ação, do mesmo modo que um dia ocorreu com a norma penal, sofre, portanto, uma inversão em correspondência com o método. A ação nas tendências funcionalistas tem agora assinalada a função, não de fundamentar a sistemática do Direito Penal que se defende, mas a de revalidar a atitude e a coerência desse sistema a respeito de todos seus componentes substanciais.

O último modelo metodológico que vou expor, também brevemente, é a recente proposição formulada por Vives Antón. É verdade que nem em seus pressupostos nem em suas consequências tem similitude alguma com o sistema funcionalista de Jakobs. Mas existe algum paralelismo no modo de conceber os fundamentos do Direito Penal, e por esta razão, se escolheu como lugar sistemático o tópico dedicado às relações entre imputação objetiva e sistemática penal.

Com efeito, o autor apresenta novamente a ação como fundamento da elaboração da teoria do ilícito penal. Porém, na medida em que a essência deste componente se encontra no significado que adquire conforme regras e normas externas, a formulação jurídica do delito se edifica tomando como pedra angular a imputação objetiva, pois em última instância à disciplina punitiva corresponde como tarefa mediata determinar se um certo comportamento humano é atribuível a um sujeito com atenção aos pressupostos estabelecidos na norma jurídica.71

71 “Sair da garrafa implica neste caso liberar-se dessa confusão. O delito não é um objeto real e, por conseguinte, à estrutura do sistema não corresponde nenhuma estrutura objetiva. E a dogmática não é uma classe de ciência mas um modo de argumentar ao redor de uns tópicos que não são mais que determinações do que entendemos por ação e do que entendemos por norma, e do processo em virtude do qual podemos julgar as ações desde as normas jurídicas”. VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos del sistema penal. Valencia: Tirant lo blanch, 1996. p. 482.

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Tomando como pressuposto ação e norma, e a forma com que aquela se concebe desde esta, o autor elabora todo o sistema penal sob um prisma quase exclusivamente normativo. Creio, ainda que possa equivocar-me, que de todas as propostas metodológicas que existem na atualidade na Europa, não encontramos um sistema tão fortemente normativizado (quase tanto como o de Jakobs, mas com uma fundamentação totalmente distinta) como o que nos apresenta o professor espanhol. Vou expor algumas reflexões nas que se aprecia esta característica assinalada.

A originalidade dos fundamentos do sistema de Direito Penal de Vives Antón começa pelos pressupostos filosóficos dos quais parte, que tomam como base a filosofia da linguagem de Wittgenstein com certa influência de Habermas. Também creio que é a primera formulação das bases do Direito Penal que se sustenta na obra, entre outros, destes autores. E, como tentarei demonstrar mais adiante, esse câmbio radical em tais fundamentos, tampouco é um acaso.

Neste processo de normativização, todas as categorias que o autor reelabora vêm caracterizadas pela ausência de todo elemento ou componente fático, naturalístico, material ou psicológico. Pelo contrário, as diferentes instituições do Direito Penal adquirem relevância pelo sentido, o significado, a interpretação que delas se pode extrair conforme regras ou normas externas. Com este critério reitor como referência, apresenta sua concepção significativa da ação e o resto das categorias subordinadas a ela.

A determinação do conceito de ação depende do significado, do sentido que se depreende dos atos humanos. Concebe-se a ação, pois, como unidade de sentido, interpretável no marco social por ajustar-se ao seguimento de uma regra. A essência da ação já não se encontra, portanto, nem no movimento corporal, nem na finalidade subjetiva, mas no significado que adquirem certos acontecimentos do homem no contexto social na medida em que aqueles seguem umas pautas compreensíveis em tal contexto social. Logo o componente ontológico da ação não é o aspecto mais relevante da mesma. Ou seja, a ação já não consiste no substrato que logo adquire um sentido, mas no sentido que através das diferentes regras sociais dá vida ao substrato.72 Entende-se agora por que nos encontramos ante uma teoria fortemente normativizada da ação e também

72 VIVES ANTÓN, op. cit., p. 245ss. Desde esta perspectiva, a ação como significado atribuído socialmente _ juridicamente _ a certos movimentos corporais ou a certa ausência deles, tende a objetivar-se. Tal objetivização da ação se produz mediante seu reconhecimento nas regras sociais. Ao longo de toda sua obra, o autor insiste na ideia de que em matéria de ação não estamos ante processo físico algum, mas ante casos de interpretação da conduta pública, isto é, de compreensão do seu sentido.

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compreende-se agora sua denominação da mesma, concepção significativa da ação73. Mas esse processo de eliminação, de fuga de toda compreensão fática dos elementos estruturais do delito será produzida no conjunto do sistema.

A pretensão metodológica, como assinalei, busca os componentes valorativos e significativos do delito e expulsa qualquer elemento material, seja físico, seja psicológico, do sistema penal.

Desta forma o dolo, que agora se entende como dolo neutro, isto é, como intenção de realizar o fato antijurídico (ficando a consciência da ilicitude na pretensão de reprovação), já não é concebido como um componente claramente psicológico, que reside no âmbito interno da pessoa. O dolo, que, repito, é contemplado fundamentalmente como intenção, já não vem definido como impulso da vontade que se constitui em causa do movimento corporal nos delitos de ação, mas, pelo contrário, vem regido também por códigos externos, por regras sociais.74 Daí que se redefina a categoria fora do âmbito propriamente psicológico para adequá-la aos novos parâmetros valorativos. E desta forma o dolo é identificado agora sob o prisma da existência no autor, no caso concreto, de um compromisso de atuar, posto que, em última instancia, o critério da aceitação da consequência lesiva é constatável desde o ponto de vista externo.75 Com toda coerência, também os elementos subjetivos do

73 Não podemos explicar agora todas as derivações sistemáticas da original proposta do autor. Assim, se distingue entre aparência de ação e tipo de ação. Este último conceito adquire relevância preeminente no sistema penal. “As ações não resultam, pois, inteligíveis por referências a estruturas objetivas (físicas ou lógicas) situadas fora delas, mas sobre a base de que se entrelaçam em práticas, em plexos regulares de interação que determinam o sentido. Com base no papel que jogam nesses plexos podemos falar de diferentes tipos de ação. E tais tipos de ação _ que não são mais que a expressão das diferentes funções sociais _ constituem o dado primário de nosso conhecimento da ação [...] Assim, pois, cabe afirmar, em consequência, que a ação típica é o constituiens real do tipo de delito e o tipo de ação seu primeiro constituens lógico”. VIVES ANTÓN, op. cit., p. 266.

74 Não se nega que a capacidade da ação exija certa possibilidade de criar intenções e vontades, mas ao contrário a determinação da ação mesma não só depende da intenção mas do código social estabelecido mediante o qual se extrai seu sentido e significado. E o próprio exame do querer do agente não se subtrai a este requisito assinalado de submissão a regras externas. VIVES ANTÓN, op. cit., p. 214.

75 “Em consequência, para determinar se uma ação é ou não intencional havemos de atender, não a inverificáveis processos mentais, a desejos e propósitos, mas a se na ação realizada se põe ou não de manifesto um compromisso de atuar do autor. Esse compromisso não é senão a imagem da relação que une a intenção a seu objeto (a ação) com a “dureza do dever ser lógico”. Deste modo, a intenção, inacessível como processo psicológico, se mostra em uma dupla dimensão normativa. Em primeiro termo, nas regras que a identificam e a tornam possível e cognoscível e; em segundo lugar, na relação entre o autor e a ação: através do significado de seus atos, das competências que cabe atribuir-lhe, e do entramado dos estados intencionais que se plasmam em sua vida imputamos, _ ou não _ uma determinada intenção ao autor”. VIVES ANTÓN, op. cit., p. 232 e 233.

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injusto perdem todo caráter psicológico e se convertem em categorias significativas cuja essência se encontra no componente valorativo.76

Enfim, com a pretensão de não estender-me em demasia na explicação é preciso apontar que as mesmas consequências se aplicam a duas instituições que até este momento eram fundamentais no sistema do Direito Penal: a relação de causalidade e o tipo de injusto.

Na medida em que as teorias da relação de causalidade pretendem, desde o ponto de vista objetivo e material, determinar se um concreto resultado lesivo e proibido pela norma penal é atribuível à ação de um sujeito por meio de critérios gerais e universais, se está recorrendo ao método “cientificista”, que, ainda que seja parcialmente, pretende resolver o problema mediante o recurso do desvelamento de leis de causa e efeito. Mas, claro está, semelhante metodologia opera com processos derivados da uniformidade da natureza, longe dos cursos pelos quais discorre a aplicação das normas de direito. Por essa razão se rechaça toda pretensão de elaborar teorias uniformes e generalizadoras, como as representadas pelas que procedem da problemática da relação de causalidade, e se traslada a questão às práticas jurisprudenciais, à interpretação, ao consenso doutrinário, etc.77 E por estas mesmas razões se rechaça o tipo de injusto como categoria básica do sistema penal, por estar sobrecarregado de elementos materiais, normativos e descritivos. Se substitui desta maneira o tipo de injusto pelo tipo de ação.78

76 Ibid., p. 257: “Se isso é assim, os elementos subjetivos devem configurar-se e ser entendidos não como processos internos semelhantes aos físicos _ como coisas que ocorrem no fundo da alma _, mas como momentos da ação, como componentes de um sentido exteriorizado, de algo que não é _ nem pode ser _ secreto”.

77 Ibid., p. 310. O autor assinala que estabelecer critérios universais que recorrem a fundamentos naturalísticos, valorativos ou mistos para a temática da adscrição ao tipo nos delitos de resultado, é um erro. E seria um erro porque definitivamente a adscrição típica nesta classe de delitos não teria porque ser diferente do resto. Não há que recorrer a teorias científicas para estabelecer a relação causal do resultado com relação à ação porque se nos apresentem uma série de casos que a encerram seria uma dificuldade. Seria melhor tratar de resolver estes casos com atenção à interpretação geral da ação dentro do tipo de ação. Por isso não é nas teorias da relação de causalidade onde se deve pôr o acento, mas nos critérios gerais de interpretação, nas práticas, no precedente, na criação de regras hermenêuticas que nos ofereçam possibilidades de certeza jurídica. É que em última instancia o resultado não se encontraria fora da ação, mas na própria ação.

78 VIVES ANTÓN, op. cit., p. 272: “E o que não parece, ao contrário, metodologicamente correto é edificar um sistema sobre uma categoria básica multiforme e sobrecarregada. Pois ao tipo de injusto, tal e como o concebe hoje a doutrina, pertencem momentos da configuração da ação que não tem mais sentido que delimitar sua relevância penal (ou sua específica relevância penal); outros nos quais reside a lesividade do ato; e finalmente outros nos que radica sua contrariedade ao dever. Assim as coisas, a teoria do delito se converteu na teoria do injusto, de categoria básica passou a ser categoria hegemônica, na qual ulteriormente se distinguem estratos diversos (tipo objetivo e tipo subjetivo). E cabe afirmar que essa distinção ulterior nem sempre se leva a cabo com critérios valorativamente unívocos nem funcionalmente úteis”.

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A ulterior proposta de explicação do resto da teoria do delito do autor espanhol é ainda muito provisória e por esta razão não vou realizar nenhuma análise pormenorizada.79 Somente gostaria de acrescentar que todas as categorias se estruturam como momentos que estão em conexão com a norma jurídica a fim de determinar a exigência de responsabilidades penais em relação ao sujeito de um ato delitivo.80

Interessa-me destacar agora as razões da mudança metodológica operada na proposta do autor e que o movem a voltar sobre o conceito de ação como fundamento do sistema penal.

Creio que no pensamento de Vives Antón late uma necessidade de voltar a situar no centro da discussão do sistema penal aspectos antropológicos que abertamente quis evitar a doutrina convencional por sua “falta de constatação científica”, como a liberdade ou a justiça.81 Por isso rechaça o método “cientificista” com o qual operaram até agora

79 Esta forte normativização de toda a teoria do delito já se podia perceber na obra elaborada junto com o Professor Cobo Del Rosal. Os mencionados autores partiam de um pressuposto metodológico totalmente deontológico, ou seja, “[...] a análise da infração não adotará uma configuração que tome como eixo a estru tura real do atuar humano constitutivo de delito, mas atenderá primariamente à diversifi cação do juízo normativo em virtude do qual um fato da vida social passa a ser qualificado como delito pelas leis penais”. Em consequência, “a estrutura do delito ficará assim divi dida, essencialmente, em duas partes: uma, relativa ao juízo de antijuridicidade na qual se determina se o fato é ou não contrário ao direito de modo relevante para a lei penal e outra, relativa ao juízo de culpabilidade, na qual se determina se o fato tipicamente antijurídico é pessoalmente reprovável ao seu autor”. COBO DEL ROSAL, Manuel; VIVES ANTÓN, Tomás Salvador: Derecho penal. Parte general. 3. ed. Valencia: Tirant lo blanch, 1990. p. 210.

80 VIVES ANTÓN, op. cit., p. 484ss. A apresentação do sistema proposto percorre o seguinte caminho: em primeiro lugar se fala da pretensão de validade da norma penal, que por sua vez se subdivide em várias pretensões. Dentro desta subdivisão encontramos a pretensão de relevância, e aqui é preciso determinar a existência de um tipo de ação, nos termos definidos, e que seja um tipo de ação lesiva, isto é, que ponha em perigo ou lesione um bem jurídico determinado. A pretensão de validade se desdobra em um segundo momento que o autor denomina pretensão de ilicitude, isto é, que ademais de encontrar-nos ante um tipo de ação lesiva deve consistir em uma realização do proibido ou não realização do ordenado, ou seja, há de contrariar a norma entendida como diretiva de conduta. A ação que concorre com o dolo ou a imprudência será em si mesma já, ilícita. Esta ilicitude pode ser excluída pelas leis permissivas que outorguem um direito ou permissão forte (causas de justificação), ou se limitem a tolerar a ação estabelecendo um permissão fraca (escusas ou causas de exclusão da responsabilidade pelo fato). O terceiro momento é constituído pela pretensão de reprovação. O juízo de reprovação é necessário para tomar em consideração o autor como ser racional, e não como mero objeto. A estrutura da pretensão de reprovação viria determinada pela imputabilidade e pelo conhecimento da ilicitude (que tenha atuado conhecendo ou podendo conhecer o significado antijurídico de sua ação). A pretensão de reprovação se ventila no juízo de culpabilidade, que junto com a pretensão de relevância e de ilicitude esgotam o conteúdo “material” da infração. O último momento da pretensão de validade vem determinado pela necessidade de pena, que a nível abstrato entra em jogo quando tiveram lugar as três pretensões anteriores. Aquela, porém, ficará excluída no caso concreto quando se demonstre que a pena resulta desnecessária, o que é o mesmo que dizer que toda imposição de pena inútil é por sua vez, imposição injusta.

81 Em um de seus artigos mais próximos no tempo a esta obra Fundamentos del sistema penal (VIVES ANTÓN, T. S. Principios penales y dogmática penal. Estudios sobre el Código penal de 1995. Estudios de Derecho Judicial. Madrid: Escuela Judicial del CGPJ, 1996. p. 39ss.), o autor sublinha o seguinte: “O princípio de legalidade e as construções dogmáticas entram em conflito quando estas, em vez de ater-se ao texto da lei, o deformam ou esgotam desde categorias materiais. O recurso a criterios materiais é, desde logo, legítimo e, às vezes, pode ser útil. Mas deve respeitar “o livro de figuras” escrito pelo legislador” (p. 70 e 71).

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as diferentes dogmáticas penais, e postula por um saber prático mais apropriado para solucionar os problemas da justiça penal.82

E precisamente até o momento presente, as propostas metodológicas fugiram de todo discurso próprio do saber prático. A razão desta “fuga” é dupla. Por um lado, se entendeu que o raciocínio em termos de “dever ser” era demasiado fraco e difuso para elaborar categorias e instituições que fundamentassem solidamente o sistema penal. E por outra parte, se acreditou que a utilização de conceitos próprios da linguagem da razão prática aproximava o Direito Penal perigosamente a caminhos próprios da Ética, com o perigo de que se voltasse a confundir Direito e Moral.

Corro o perigo de equivocar-me seriamente, mas me aventuraria a dizer que esta proposta pretende situar de novo o ser humano como centro do Direito, como sujeito e não como mero objeto, avançando um passo mais em direção a um normativismo antropológico. Trata-se, pois, de contemplar o direito como disciplina da pessoa, e por esta razão entendo que se substitui a pretensão de certeza científica por uma pretensão de certeza prática. Porque só desde esta última é possível personalizar o Direito Penal, dado que a dogmática “forte” destes últimos anos ficou absolutamente vazia de conteúdo antropológico. Por isso se apresenta à pessoa como capaz de liberdade e não como um mero elemento da natureza, como ser racional que participa na vida social e não como componente físico objeto de estudo por leis universais.83

82 São várias as passagens nas quais se pode perceber este constante rechaço pela utilização do modelo “cientificista” na dogmática penal. “Pois bem, o que aqui se propõe é justamente um câmbio de método. Igualmente ao significado das palavras, o das ações não depende de objetos da mente _ acerca dos quais nada podemos saber _, mas de práticas sociais. E não se desentranha mediante a estratégia científica, mas, principalmente, mediante a estratégia intencional. O significado social _ objetivado em regras e práticas _ é o que dá sentido às ações. E assim como a estratégia científica pressupõe certa uniformidade da natureza, a estratégia intencional pressupõe certa estabilidade dessas regras e práticas, de modo que se essa estabilidade baixasse mais além de um mínimo, deixaríamos de entender-nos com as palavras e não poderíamos saber o que significam as ações” (p. 247). “Pois fora da lógica não há um ‘saber’ que exclua o erro. E como a lógica não diz nada do mundo, tanto nos tribunais como na ciência temo de nos conformar com um saber menos forte, ou seja, temos que renunciar ao conhecimento irrefutável e operar com a certeza prática” (p. 248). E, finalmente: “Se consegui meu propósito, sequer minimamente, terá ficado claro porque a dogmática penal não pode ser ciência; a saber, porque não trata de como temos que conceber o mundo, mas de como temos que atuar nele. Percorreu-se os caminhos pelos que transitaram as diversas dogmáticas penais e, com eles, ficaram assinalados os limites da razão teórica no campo do Direito penal. Se algo ficou comprovado é que a autocompreensão cientificista, que tão frequentemente acompanha o que fazer da dogmática, não é senão um véu que oculta aos olhos do penalista o objetivo de sua reflexão. Essa reflexão (se o dito até agora tem algum sentido) deve inscrever-se no discurso da razão prática, por difuso e débil que seja. E, se isso é assim, o futuro da dogmática não reside em nenhuma classe de aperfeiçoamento científico, mas naquela forma de aperfeiçoamento que sirva para realizar mais e melhor a função de Carta Magna que von Liszt atribuía ao Direito Penal” (p. 488).

83 “[...] a dogmática penal equivocou, em minha opinião, em suas pretensões. A pretensão de retidão ou correção (de justiça) que naturalmente deveria acompanhar suas formulações conceituais, foi substituída, mais ou menos perceptivelmente, por uma pretensão de verdade. Esta confusão de pretensões é, sem dúvida, uma fonte de erros” VIVES ANTÓN, op. cit., p. 481.

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Mas é difícil e complicado elaborar uma fundamentação do sistema penal desde estes critérios. E aqui se compreende que o autor recorra a Wittgenstein e a Habermas, pois com estes pressupostos filosóficos se define a ação como significado, como exteriorização do aspecto comunicativo do homem, como seguimento das regras. Critérios que permitem uma sólida elaboração da teoria da justiça no marco do Direito Penal.

Isto explicaria, igualmente, que se voltasse a estruturar o sistema com base em dois conceitos fundamentais, a ação e a norma jurídica, ou melhor, a ação contemplada desde a regra de direito. Pois agora se concebe a função do Direito Penal como prática da justiça, e daí que a exigência de responsabilidades penais se proponha desde a perspectiva da pretensão da norma de tornar efetivo esse valor fundamental partindo da existência de uma ação lesiva84. Desta forma se põem em comunicação, se explicam as relações entre ação, norma jurídica, método e função do Direito Penal.85

A TÍTULO DE REFLEXÃO FINAL

Ao longo do presente trabalho, pretendi refletir sobre as relações existentes entre os fundamentos e o método no sistema penal, desde a perspectiva ideológica do fim que se assinala ao ordenamento jurídico-punitivo. Evidentemente, só se tomou em consideração alguns modelos nos quais claramente ficava representado este conjunto de relações. E quis manifestar que nem sempre a estrutura da teoria jurídica do delito depende do conceito prévio de norma ou de ação do qual se parte. Pois, em ocasiões, a concepção da regra punitiva, da conduta humana ou de qualquer outro parâmetro que se toma em consideração, representa uma consequência adaptada a um modelo sistemático previamente concebido. Mas, nem sequer a opção metodológica está livre

84 Também a liberdade está agora presente em toda a formulação conceitual. Esta, como capacidade de escolha, é pressuposto da própria ação: “[...] sem liberdade não há ação, nem razões, nem maneira alguma de conceber o mundo: ou não há linguagem, nem regras, nem significado nem ação”. VIVES ANTÓN, op. cit., p. 320. E como capacidade de determinação se encontra na base da pretensão de reprovação da norma, que requer a afirmação do poder atuar de outro modo.

85 Creio conveniente apontar uma passagem, a qual já recorri parcialmente, e na qual se põe claramente de manifesto essa relação entre ação, norma jurídica, sistema penal e fim do Direito Penal, e que gira em torno ao valor justiça: “E a dogmática não é uma classe de ciência mas um modo de argumentar ao redor de uns tópicos que não são senão determinações do que entendemos por ação e do que entendemos por norma, e do processo em virtude do qual podemos julgar as ações desde as normas jurídicas e aos valores que as normas jurídicas servem de veículo. Sempre podemos aludir para caracterizar esses valores dos que a norma pretende ser expressão, à justiça. E desde logo a justiça é valor central de todo ordenamento. Mas sua materialização deve satisfazer outros requisitos: segurança jurídica, liberdade, eficácia, utilidade, etc. que não são senão aspectos parciais da ideia central de justiça que o ordenamento jurídico pretende instaurar” VIVES ANTÓN, op. cit., p. 482.

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dessa ideia transcendental que se plasma no ponto de vista político-criminal que se atribui ao Direito Penal. Muito pelo contrário: perspectivas ideológicas se uniram aos argumentos metodológicos, de tal forma que, atendendo a esses parâmetros, se optou por um ou outro objeto em torno ao qual se construiu o respectivo sistema penal.

Assim, em uma difícil etapa histórica na Alemanha (a finais do século XIX), caracterizada por um debilitamento do exercício do poder público, houve propostas que consideraram as relações entre o indivíduo e o Estado sob critérios autoritários de sujeição e submissão. E é então quando aparece a teoria imperativa da norma, que concebe o ordenamento jurídico como conjunto de preceitos que impõem uma determinada diretiva de conduta à generalidade dos cidadãos, ainda contemplados como súditos. O delito é entendido como infração e sua estrutura se levanta em torno ao momento de rebeldia, de desobediência, de não acatamento à vontade do preceito, e, por fim, do legislador. Evidentemente, este modelo supunha problemas de fundamentação e de caráter sistemático, como a dificuldade procedente da mera distinção entre os âmbitos da antijuridicidade e da culpabilidade.

Precisamente esses obstáculos facilitaram o abandono destas teses e a entrada em cena da teoria da dupla função da norma penal. O Estado liberal propugnava pela necessidade de respeitar a liberdade e a consciência do cidadão, e incidir só nos aspectos externos do comportamento do indivíduo que afetassem à convivência social. E igualmente que se defende uma clara separação entre o poder político e o poder religioso, impõe-se como critério metodológico a necessidade de não confundir direito e moral. Sob essas ideias, é lógico perceber uma mudança de proposição no fim último que se assinala ao ordenamento penal: frente ao critério subjetivo e pessoalizado da direção da vontade do cidadão, agora se impõe o pensamento que estabelece como tarefa prioritária a proteção de bens jurídicos. E por isso se impõe a necessidade de distinguir entre o aspecto lesivo do acontecimento humano concebido de forma geral e objetiva (a antijuridicidade), das circunstâncias pessoais que concorrem no autor no momento de realização do fato (culpabilidade). E também resulta evidente que, sob estes pressupostos, a teoria da dupla função da norma penal deveria ser a consequência lógica da nova proposta. É possível, pois, que esta vez a tese da regra jurídica dependesse das novas necessidades de estruturação do delito e do novo vento ideológico que soprava na teorização dos fins do Direito Penal.

Na época mais negra da recente História europeia, na que imperou na Alemanha e na Itália um totalitarismo belicista que afogou toda consideração individual e humana do cidadão, originou-se a teoria ontológica das estruturas lógico-objetivas de Welzel e sua concepção final da ação. Não restou ainda claro qual pode ser a implicação do prestigioso jurista neste regime do terror. Entretanto, a este respeito duas conclusões são absolutamente constatáveis. Por um lado, que o autor foi professor na Faculdade de Direito na Universidade Alemã durante a etapa nacional-socialista, o que significa, ao menos, que não destacou por ser um opositor ideológico. Mas, por outro lado, não se encontra em sua obra uma fundamentação das teses oficiais da nova ordem política, como

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tinha sido o caso dos autores pertencentes à Escola de Kiel. Este cuidadoso equilíbrio se observa também em seus postulados fundamentais.

A função do Direito Penal de impor os valores de consciência, de interiorizar critérios éticos de respeito aos bens jurídicos, pode entender-se como uma ingerência do Estado no âmbito pessoal do cidadão. Os conceitos final de ação e pessoal de injusto também podem ser interpretadas sob a explicação de fundamentação de um Direito Penal que tomava em consideração os aspectos anímicos e internos do indivíduo que revelam seu caráter dissidente frente ao poder estabelecido. Mas da mesma forma se entendeu que sua teoria da vinculação do legislador às estruturas lógico-objetivas representava a tentativa de estabelecer conceitualmente um limite ao poder estatal. Mais ainda, inclusive se quis ver na autonomia da pessoa uma das primeiras dessas estruturas lógico-objetivas, e que no âmbito da culpabilidade se traduzia em sua forte defesa do livre arbítrio como critério de determinação desta instituição. Evidentemente, a teoria jurídica do delito constitui um reflexo destes postulados, e desta forma se impregna de componentes ontológicos (conceito de ação), subjetivos (a referência final do comportamento humano, conceito pessoal de injusto...) e normativos (culpabilidade como juízo de reprovação).86

O Direito Penal autoritário tinha se caracterizado, entre outros, por perseguir fins de caráter ético ou moral. É compreensível, portanto, que depois da Segunda Guerra Mundial se desenvolvessem no panorama dogmático tendências que tentam liberar de todo vestígio ético ou moral suas propostas metodológicas. As propostas funcionalistas representam um bom exemplo dessa busca do critério “científico” na elaboração do sistema penal, expulsando para fora do seu seio qualquer vestígio “eticista” ou “moralista”.

Assim, se recorreu à teoria da motivação da norma para fundamentar o sistema penal desde uma perspectiva material e psicológica, como é a forma de atuação humana ante a ameaça do castigo. E desde este mesmo plano argumentativo, se outorgou ao direito Penal uma missão mais “real” e menos “ideal”, qual é a diminuição do índice de criminalidade através da prevenção geral. Desde outro funcionalismo, o sociológico, a missão que se atribui

86 Frente a uma opinião bastante generalizada na doutrina penal alemã, que interpretou a obra de Welzel como um enfrentamento ideológico ao Direito Penal autoritário da época nacional-socialista; Frommel entende que os fundamentos do sistema do citado autor pretenderam legitimar com uma metodologia distinta o pensamento político do poder nacional-socialista: “O direito penal sempre reflete a imagem da sociedade à qual serve e não pode prescindir das necessidades pré-jurídicas que reclamam o castigo. Vistas assim as coisas, o ‘Direito penal da vontade’ e a fundamentação filosófico-valorativa que Welzel propugnava em 1935, não eram mais que as últimas consequências de um clima político-criminal que reclamava ‘maior dureza’, ignorando as consequências que estas posturas podiam ter. Haverá quem considere que, em todo caso, estas consequências não incumbem ao ‘jurista’”. FROMMEL, Monika. Los orígenes ideológicos da teoría final da acción de Welzel. Traducido por MUÑOZ CONDE, Francisco. ADPCP, Madrid, n. XLII, p. p. 631 e 632, 1989..

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ao Direito Penal vem representada pela contribuição ao desenvolvimento equilibrado do sistema social através da observância e acatamento individual da respectiva competência atribuída conforme uma regra geral. De novo a norma jurídica, como critério social de atribuição dessas competências, adquire relevância prioritária com relação à determinação do ajuste ou desajuste do sujeito ao rol que tem que cumprir. E isto explica que a instituição da imputação objetiva se constitua em uma das bases da elaboração da teoria jurídica do delito.

Mas a estas dogmáticas “cientificistas” também se lhes achaca uma nova ideologia em sua pretensão de afastamento da influência “eticista” que teria estado presente na construção dos diferentes sistemas penais. Descreveriam como atua realmente o Direito Penal no marco do comportamento humano ou da sociedade em geral. Mas esta explicação do fenômeno criminal e punitivo deixaria de lado o dever ser das instituições jurídico--penais e o aspecto valorativo de suas regulamentações, com o conseguinte perigo de perda de capacidade crítica a respeito do modelo legislativo e judicial examinado. E isso determinaria a possibilidade de legitimação de todo sistema penal.

Mas não é esta, desde meu ponto de vista, a objeção fundamental. A elaboração de uma disciplina desde parâmetros exclusivamente lógicos ou materiais, recorrendo à metodologia técnica, vem influenciada por outra ideologia caracterizada por impor, como critério de solução dos problemas humanos, a razão científica. E isto implica que os procedimentos e métodos idealizados para resolver esses problemas humanos, sejam cada vez mais complexos, mais técnicos, mais desenvolvidos, mas também, mais difíceis de manejar, de controlar e de compreender. E os conflitos, individuais ou sociais, deixam de ser questões a resolver pelo cidadão (que não pode solucioná-los) para transferir-se ao especialista. A razão científica substitui assim a razão prática.

Como resposta a esta forma de conceber os fundamentos do Direito Penal, surge uma proposta que intenta explicar o sistema penal desde a teoria da justiça. Assim, os modelos funcionalistas e o que propõe Vives Antón, se apresentam como diametralmente opostos em muitos pontos. Enquanto que um elabora sua concepção dogmática recorrendo à estratégia científica, outro fundamenta o sistema recorrendo à estratégia intencional. Por isso uns partem de conceitos e elementos de caráter psicológico ou sociológico (teoria da motivação ou teoria da imputação objetiva) e outro rechaça toda fundamentação material para optar por um conceito absolutamente normativizado e objetivo da ação. E de igual forma se explica que uns outorguem ao Direito Penal una função instrumental, palpável e tangível (motivação da cidadania através do castigo ou manutenção da fidelidade ao Direito, para prevenir de forma geral o delito), e outro, ao contrário, atribui ao Direito Penal, e ao direito em geral, uma missão mais transcendental como é esta que faz referência à concreção de valores relacionados com a justiça.

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E chego assim ao final de minha reflexão. A dogmática penal, em seu afã de constante aperfeiçoamento, de alcançar um sistema fechado capaz de responder a todos os problemas que propõem as instituições penais desde o ponto de vista da lógica e da coerência interna, terminou contemplando a si mesma. Pretendeu, como disse um famoso penalista, repartir um pelo pela metade e deixou de lado o aspecto humano do Direito Penal.

Os juristas, especialmente os penalistas, nos preocupamos tanto pelo método, pela sistematização das categorias, por sua aptidão para ajustar perfeitamente cada peça na complicada engrenagem dogmática, que esquecemos os verdadeiros fundamentos de todo ordenamento jurídico. Nessa busca da universalidade, da irrefutabilidade, da constatação lógica, para resolver problemas estritamente humanos, recorremos aos parâmetros do pensamento “cientificista”. E de tanto complicar nossa disciplina, substituímos o Direito Penal das garantias pelo Direito Penal do sistema. E já ninguém nos entende. E pervertemos os fundamentos e a própria razão de ser da elaboração teórica no marco punitivo. É necessário, portanto, que apareçam novas propostas metodológicas que nos permitam recuperar as funções que, segundo Roxin, seguindo parcialmente a Gimbernat, atribuem à dogmática penal: facilitar a resolução de casos penais, ordenar o sistema como pressuposto de aplicação equitativa e diferenciada do Direito, simplificar e proporcionar uma maior condutibilidade do direito e estabelecer uma orientação e melhora da formação jurídica nas universidades87. Tudo isso para alcançar uma mais justa aplicação do Direito Penal.

87 ROXIN, Claus. Strafrecht. Allgemeiner Teil. Tomo I. Grundlagen der Aufbau der Verbrechenslehre. 3. ed. Munich: Beck, 1997. p. 158ss.

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45Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 6, n. 10, p. 45-72, jan./jun. 2014

Manuel Cancio Meliá1

1 Professor catedrático de Direito penal da Universidad Autónoma de Madrid. Advogado.

RESUMEN

El Derecho penal antiterrorista español es, por razones históricas, uno de los más extensos e intensos de Occidente, y, más allá de ello, cuenta con una amplia historia aplicativa en los tribunales. Por ello, en los últimos años el ordenamiento español apenas ha recibido estímulos de la evolución internacional de regulación del terrorismo producida a partir de los ataques del 11.9.2001; en particular, la DM 2002 no tuvo repercusión alguna en la regulación española. Sin embargo, en el marco de la reforma habida en 2010, el legislador español ha tomado la DM 2008 como excusa para ampliar aún más – haciendo la regulación difícilmente aplicable – el alcance de determinadas infracciones periféricas, en materia de colaboración (adoctrinamiento), financiación y propaganda. El resultado es una regulación muy ambigua, técnicamente defectuosa y que supera en varios puntos los límites del régimen constitucional.

Palabras Clave: Delitos de Terrorismo en el CP Español. Derecho Penal de la Unión Europea (Decisiones Marco 2002 y 2008). Reforma del CP Español de 2010. Delitos de Preparación y de Organización en la Nueva Regulación.

ABSTRACT

The Spanish anti-terrorist criminal law is, for historical reasons, one of the largest and most intense of the West, and, beyond that, has an extensive applicative story in case law. Therefore, in recent years the Spanish criminal law didn’t change because of the international developments produced after the terrorist attacks of 9/11/2011; in particular, the European Union 2002 FD had no impact on the Spanish regulation. However, in the context of the reform given in 2010, the Spanish legislator has taken the 2008 FD as an excuse to further expand the regulation amplifying the scope of certain peripheral offenses for collaboration (indoctrination), financing and propaganda. The result is a very ambiguous regulation, technically flawed and at several points exceeding the limits of a constitutional regime under the rule of law.

Keywords: Terrorism offenses in Spanish Criminal Code. Criminal Law of the European Union (Framework Decisions 2002 and 2008). Spanish reform 2010. Precursor Crimes and Collaboration Crimes of Terrorism in the New Regulation.

EL DERECHO PENAL ANTITERRORISTA ESPAÑOL Y LA ARMONIZACIÓN PENAL EN LA UNIÓN EUROPEA

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INTRODUCCIÓN

A partir de los atentados ejecutados el 11 de septiembre de 2001 en los Estados Unidos, los delitos de terrorismo entraron de lleno en el elenco de materias jurídico-penales a armonizar en el seno de la Unión Europea: una primera Decisión Marco, aprobada en el año 2002, sentó las bases de un terreno común de las regulaciones nacionales, ocupándose de las definiciones fundamentales de la tipificación penal. La segunda Decisión Marco en la materia, aprobada en el año 2008, se refiere, por el contrario, a supuestos de hecho muy específicos, de lo que se puede llamar conductas periféricas a los delitos nucleares de terrorismo, y puede comprenderse como reacción a las características de las actividades de determinadas organizaciones terroristas en los últimos años.2

Estos dos instrumentos de armonización han tenido un impacto muy diverso en la regulación española: mientras que la DM 2002 no generó modificación alguna, la más reciente reforma penal en España – llevada a cabo mediante LO 5/2010 –, que introduce notables novedades en los delitos de terrorismo, pretende justificar esos cambios sobre todo invocando la DM 2008. Como se verá, lo primero – la ausencia de toda reacción legislativa española a la primera Decisión Marco – se explica por el hecho de que la regulación antiterrorista española es una de las más amplias – como se verá, en extensión e intensidad conceptual – de los países europeos. Lo segundo, la notable repercusión de la segunda Decisión Marco, como se expondrá, no responde en realidad a otra razón que a la pretensión del legislador de 2010 de ocultar bajo el parapeto de la DM 2008 la intención de llevar a cabo un nuevo adelantamiento de las barreras de incriminación – mucho más allá de lo demandado por la norma europea – respecto de conductas que cabría calificar sobre todo de propaganda y adhesión en relación con actividades terroristas.

En lo que sigue, se ofrecerá primero una síntesis de los contenidos de la DM 2002/475/JAI y de la regulación de tres países centrales de la UE, acompañada de una breve caracterización del ordenamiento antiterrorista español, lo que explica la ausencia de toda modificación en los tipos españoles debida a la DM 2002 (infra II.). A continuación podrá entrarse en el análisis de la reforma de los delitos de terrorismo llevada a cabo por la LO

2 Determinadas conductas próximas a la colaboración, a la apología y a la provocación, intentando aprehender fenómenos como las páginas web radicales, las prédicas incendiarias de determinados clérigos o la asistencia a cursos de entrenamiento en campos ubicados en Pakistán, fenómenos que han generado una intensa atención y polémica en diversos países europeos, especialmente, por no estar aprehendidas jurídico-penalmente algunas de estas conductas; vid. por todos CANO PAÑOS, Miguel Ángel. Los delitos de terrorismo en el Código Penal español después de la reforma de 2010. La Ley Penal: revista de derecho penal, procesal y penitenciario, n. 86, p. 2, 2011.

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5/2010 invocando la DM 2008/919/JAI (infra III.), concluyendo con una breve valoración del impacto de la armonización penal europea sobre la regulación antiterrorista española y del significado de ésta (infra IV.).

1 EL DERECHO PENAL ANTITERRORISTA ESPAÑOL Y LA DM 2002

Para poder ubicar la regulación española en un plano comparado, conviene esbozar – aunque sea con mucha brevedad – algunas consideraciones respecto de la evolución internacional relativos al terrorismo, así como sobre los elementos esenciales de la DM 2002, por un lado, y algún dato extraído del Derecho comparado más próximo en la UE, por otro, con el fin de generar un trasfondo ante el cual poder delinear las características de la regulación española.

1.1 EL PLANO INTERNACIONAL

La preocupación por el terrorismo en el plano internacional, como es evidente, no es nueva. Existen desde hace tiempo convenios internacionales – entre los cuales hay que destacar el del Consejo de Europa del año 19773 – dedicados a la materia, cuyo rasgo quizás más sobresaliente es la preocupación de muchos Estados por la posibilidad de que la represión del terrorismo pueda afectar a aquellos actos de resistencia armada estimados, en cada caso, legítimos.4 Por ello, no puede hablarse de una normativa internacional en materia de terrorismo.5 Sin embargo, a partir de los atentados del 11 de septiembre de

3 Cfr. sobre este instrumento sólo ASÚA BATARRITA, en: LH Lidón, p. 57ss.; ha sido sustituido por una Convención, en la misma línea que la anterior, aprobada en Varsovia con fecha de 16.5.2005.

4 Cfr. la descripción de esta situación en el marco de las discusiones en las Naciones Unidas respecto del actual proyecto de Convenio general de terrorismo en GARCÍA RIVAS, RGDP, n. 4, p. 7, 2005. En todo caso, las cosas han cambiado mucho en este ámbito después de la implosión del bloque socialista en Europa (cfr. al respecto ASÚA BATARRITA, en: LH Lidón, p. 44 ss.; CALAMITA REMEZAL, Mario. Análisis de la legislación penal antiterrorista. Madrid: Colex, 2008. p. 28 ss.); respecto de la situación anterior, vid. sólo LÓPEZ GARRIDO, Diego. Terrorismo, política y derecho: la legislación antiterrorista en España, Reino Unido, República Federal de Alemania, Italia y Francia. Madrid: Alianza, 1987. p. 12ss.; TERRADILLOS BASOCO, Juan. Terrorismo y derecho: comentario a las LL.OO. 3 y 4/1988, de reforma del Código Penal y de la Ley de Enjuiciamiento Criminal. Madrid: Tecnos, 1988. p. 49ss.

5 Y tampoco parece que la decisión del Tribunal Internacional para el Líbano de 2011 de afirmar que el Derecho penal internacional consuetudinario conoce ya un delito de terrorismo vaya a poder consolidarse; vid. KIRSCH, Stefan; OEHMICHEN, Anna. Die Erfindung von Terrorismus als Völkerrechtsverbrechen durch den Sondergerichtshof für den Libanon, en: ZIS 10/2011, p. 800ss.

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2001 antes aludidos6 se ha producido un cambio de velocidad apabullante en la actividad en este contexto, que permite hablar de una verdadera efervescência. Aún así, los trabajos más importantes – los referidos a una definición de terrorismo – no acaban de concluir en un convenio7: en suma, hay mucha actividad (o activismo), pero en lo que aquí interesa – un concepto internacional de terrorismo que tomar como referencia para evaluar la opción de la legislación española – nada se ha avanzado.

1.2 LA DM 2002

Sin embargo, sí ha habido un decidido impulso en el marco europeo, como antes se decía, para definir algún que otro elemento de la regulación concreta en materia de terrorismo: en un primer paso, se aprobó la Decisión Marco sobre Terrorismo de 13.6.20028. Sintéticamente, ésta contiene los siguientes elementos:

En el art. 1 se establece un catálogo de delitos de terrorismo “[…]que por su naturaleza o

su contexto puedan lesionar gravemente a un país o a una organización internacional…”.

6 Destacan la especificidad simbólica de las repercusiones de estos atentados, entre otros muchos, CHOCQUET, Christian. Le terrorisme est-il une menace de défense?, Culture & Conflicts, n. 44, p. 1 2001. JAKOBS, Günther. Terroristen als Personen im Recht? In: JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo. 2. ed. Madrid: Thomson Civitas, 2006. p. 41; FARALDO CABANA, Patricia. Un derecho penal de enemigos para los integrantes de organizaciones criminales: la Ley Orgánica 7/2003, de 30 de junio, de medidas de reforma para el cumplimiento íntegro y efectivo de las penas. In: ______ (Dir.). BRANDARIZ GARCÍA, José Ángel; PUENTE ABA, Luz María (Coord.). Nuevos retos del derecho penal en la era de la globalización. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. p. 302; MUÑOZ CONDE, Francisco. El nuevo derecho penal autoritario. In: LOSANO, Mario G.; MUÑOZ CONDE, Francisco (Coord.). El Derecho ante la globalización y el terrorismo. ‘cedant arma togae’. Actas del Coloquio internacional Humboldt, Montevideo, abril 2003, 2004. p. 167ss.; RAMOS VÁZQUEZ, José Antonio. Símbolos y enemigos: algunas reflexiones acerca de la nueva lucha antiterrorista. In: PÉREZ ALVAREZ, Fernando (Ed.). Serta in memoriam Alexandri Baratta. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2004. p. 1430ss.; SCHEERER, Sebastian. Die Zukunft des Terrorismus: drei Szenarien. Lüneburg: zu Klampen, 2002. p. 59ss.; COBO DEL ROSAL, : idem, PE2, p. 65; GONZÁLEZ CUSSAC, José Luis. El Derecho Penal frente al terrorismo. Cuestiones y perspectivas. In: GÓMEZ COLOMER, Juan Luis; GONZÁLEZ CUSSAC, José Luis (Coord.). Terrorismo y proceso penal acusatorio. Valencia: Tirant lo Blanch, 2006. p. 79ss.; vid. también la información en ÁLVAREZ CONDE, Enrique; GONZÁLEZ, Hortensia. Legislación antiterrorista comparada después de los atentados del 11 de septiembre y su incidencia en el ejercicio de los derechos fundamentales. Análisis (ARI), n. 7, 2006. Disponível em: <http://www.realinstitutoelcano.org/analisis/891/891_Alvarezcondegonzalez.pdf>. Acesso em: 30 out. 2014. y HOLMES, Stephen. The matador’s cape: America’s reckless response to terror. Cambridge: Cambridge University, 2007. p. 20ss., 40ss., 45ss.

7 Cfr. sólo BASSIOUNI, M. Cherif (ed.). La cooperazione internazionale per la prevenzione e la repressione della criminalitá organizzata e del terrorismo. Milano: Giuffrè, 2005.

8 Vid. sólo GARCÍA RIVAS, RGDP. n. 4 , nov. 2005.

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Se estiman por tales delitos aquellos que se cometen con el fin de

a) Intimidación grave a una población,

b) Obligar a los poderes públicos u organización internacional a realizar un acto o a

abstenerse de hacerlo,

c) Desestabilizar gravemente o destruir las estructuras constitucionales, económicas o

sociales de un país u organización internacional mediante atentados contra la vida de

las personas o su integridad física, secuestro o tomas de rehenes, destrucciones masivas

gubernamentales, apoderamiento de aeronaves o buques, fabricación, tenencia,

adquisición, transporte, suministro o utilización de armas de fuego, explosivos, armas

nucleares, biológicas…, provocación de incendios o inundaciones, interrupción en los

suministros esenciales de agua, de electricidad u otro recurso fundamental con riesgo

para la vida humana, así como la amenaza de cometer tales acciones.

También se prevé la sanción para los directivos del grupo terrorista y los participantes. Se sanciona en el art. 4 la inducción, complicidad y tentativa, y en el art. 5 se solicita que los Estados castiguen estas acciones con penas efectivas, proporcionadas y disuasorias.

En el art. 1 k) se fija el concepto de organización:

“[…] A los efectos del presente apartado, se entenderá por grupo terrorista todo grupo

estructurado de más de dos personas, establecido durante cierto tiempo, que actúe de manera

concertada con el fin de cometer actos terroristas. Por grupo estructurado se entenderá un

grupo no formado fortuitamente para la comisión inmediata de un acto terrorista sin que

sea necesario que se haya asignado a sus miembros funciones formalmente definidas, ni que

haya continuidad en la condición de miembro o una estructura desarrollada [...]

2 TRES ORDENAMIENTOS EUROPEOS: ALEMANIA, FRANCIA, ITALIA

Intentando ofrecer un contexto para esta primera norma de armonización -y teniendo en cuenta que en un amplio número de ordenamientos europeos no había regulación específica alguna – conviene llevar a cabo una brevísima consideración de la regulación en tres de los ordenamientos de nuestro entorno: los de Alemania, Francia e

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Italia9. Su función será tan sólo la de establecer un marco de comparación con el alcance de la tipificación en el Código penal español.

En Alemania la aprehensión del terrorismo tiene lugar a través de las figuras de intervención en una asociación terrorista, regulada en el § 129a StGB; el § 129b StGB contiene una extensión de la punibilidad a las organizaciones terroristas ubicadas en el extranjero. Las características esenciales de la tipicidad de la infracción son las siguientes10: en primer lugar, no se mencionan, en principio, finalidades políticas de la organización terrorista como elemento típico; en segundo lugar, se contemplan dos modalidades de asociación terrorista, definidas por un respectivo catálogo de hechos delictivos, que indica la distinta gravedad de las asociaciones. En la asociación terrorista del segundo número del § 129a StGB – orientada a la comisión de hechos menos graves que la del número primero – se incluye una descripción de la finalidad de intimidar a la población, doblegar la voluntad de un órgano estatal o internacional o remover las estructuras básicas de la organización del Estado; según parece, esta redacción está inspirada en la DM 2002. No hay ya apenas aplicación de la infracción en los últimos años.

9 La selección de estos tres países a modo de muestra no sólo viene determinada por la importancia de su cultura jurídica y su gran peso dentro de la UE, sino porque son aquellos países de nuestro entorno (jurídico-continental) en los que (aunque sin alcanzar los niveles de España) se ha registrado mayor actividad terrorista. Después de los atentados del 11.9.2001, muchos países de Occidente han creado ex novo o han ampliado su legislación criminal en materia de terrorismo; información sucinta aparece en ÁLVAREZ CONDE; GONZÁLEZ, op. cit.; interesante resulta también el informe (por el punto de vista global (práctico y normativo) adoptado) emitido por el Ministro de Asuntos Exteriores británico Straw en octubre de 2005, referido a diversos países; respecto de Gran Bretaña, vid. p. 311ss., 318ss.; CANCIO MELIÁ, Manuel; PETZSCHE, Anneke. Terrorism as a criminal offence. In: MASFERRER, Aniceto: WALKER, Clive (Ed.). Counter-terrorism, human rights and the rule of law: crossing legal boundaries in defence of the State. Cheltenham: E. Elgar, 2013., y directamente la Terrorism Act del año 2006; sobre las modificaciones en muy diversos puntos de la legislación en los EE.UU. conocida – a través de un acrónimo alambicado – como USA Patriot Act informan, por ejemplo, VERVAELE, John A. E. La legislación antiterrorista en Estados Unidos. ¿Inter arma silent leges? Buenos Aires: Estudios del Puerto, 2007. p. 25ss. y passim; SALAS, en: GÓMEZ COLOMER; GONZÁLEZ CUSSAC, Op. cit., p. 255ss.; WONG, Kam C. The USA patriot act: a policy of alienation. Michigan Journal of Race & Law, n.12 , p. 161-202, 2006.; sobre esta legislación desde el prisma sociológico de la excepcionalidad, cfr. SAN MARTÍN SEGURA, David. La excepción material y los contornos de lo ordinario: a propósito de la USA Patriot Act. In: PUENTE ABA, Luz María. (Dir.).; ZAPICO BARBEITIO, Monica; RODRÍGUEZ MORO, Luiz (Coord.). Criminalidad organizada, terrorismo e inmigración: retos contemporáneos de la política criminal. Granada: Comares, 2008. p. 339ss., 349ss.

10 Vid. sólo FÜRST, Martin. Grundlagen und Grenzen der §§ 129, 129a StGB. Zu Umfang und Notwendigkeit der Vorverlagerung des Strafrechtsschutzes bei der Bekämpfung krimineller und terroristischer Vereinigungen. Frankfurt: Peter Lang, 1989. OSTENDORF, Heribert. Comentario a los §§ 123ss. In: KINDHÄUSER, Urs; NEUMANN, Ulfrid; PAEFFGEN, Hans-Ullrich (Ed.). Nomos–Kommentar Strafgesetzbuch. 2. Aufl. Baden-Baden: Nomos, 2005. v. 1. § 129a; PERRON, In: GÓMEZ GÓMEZ COLOMER; GONZÁLEZ CUSSAC, op. cit., p. 239ss.

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En Francia, la regulación – muy reciente: tiene su origen en el año 1986– en materia de terrorismo11 está contenida, por un lado, en el art. 421–1 CP, que define el concepto de terrorismo por referencia a infracciones comunes, o llamado, en la doctrina, “actos terroristas por finalidad”12: “[…] aquellas actuaciones individuales o colectivas cuyo objetivo sea alterar gravemente el orden público empleando la intimidación o el terror”, y constituyan determinadas infracciones incluidas en un catálogo. Por otra parte, el art. 421–2 CP regula los actos de “terrorismo por naturaleza”: por un lado, se pena – desde el año 1996 – la mera pertenencia a una organización terrorista (“constituye asimismo un acto de terrorismo la participación en un grupo formado o en una organización creada para la preparación, revelada por uno o varios hechos materiales, de uno de los actos de terrorismo mencionados en los artículos anteriores”; art. 421–2–1 CP). Por otro lado, existen otras dos disposiciones específicas, referidas a una modalidad de comisión de estragos mediante envenenamiento masivo y a la financiación de actos de terrorismo (art. 421–2–2 CP). Finalmente, desde el año 2003, forma parte de la regulación un delito de incapacidad de justificar los ingresos correspondientes a un determinado tren de vida, siempre que se esté en relación habitual con una o varias personas que hayan cometidos otros delitos de terrorismo (art. 421–2–3 CP). En general, la regulación francesa muestra con claridad que aún está en sus comienzos. Llama la atención la posibilidad de incluir en el ámbito de tipificación conductas individuales; también se aprecia la ausencia de un diseño general del sector, como muestra la incorporación sucesiva de diversas infracciones con criterio exclusivamente casuístico.

En Italia, la última ley antiterrorista13 fue aprobada en julio de 2005: en lo que se refiere al alcance de la tipificación, criminaliza cualquier conducta relacionada con el entrenamiento terrorista. El Código penal italiano no contiene un capítulo específico dedicado al terrorismo. En el art. 270 CP se aprehenden las “asociaciones subversivas”: por un lado, asociaciones destinadas a instituir una “dictadura de una clase sobre otra”; otras asociaciones típicas buscan la supresión violenta del ordenamiento político y jurídico de la sociedad. El art. 270 bis CP regula las asociaciones con finalidad terrorista y de subversión del orden democrático. El art. 272 CP se refiere a la propaganda o apología subversiva, y de destrucción del orden social. En el art 280 CP se regula la figura del atentado con

11 Vid., por ejemplo, MALABAT, Valérie. Droit pénal spécial. Paris: Dalloz, 2005. n. 865ss.; VÉRON, Michel. Droit pénal spécial. 11ème. éd. Paris: Dalloz, 2006, n. 521ss.

12 MALABAT, Op. cit., n. 868ss.; VÉRON, Op. cit., n. 522 lo denomina “acto terrorista por referencia”..13 Sobre la regulación vid. sólo RESTA, Federica. Enemigos y criminales: las lógicas del control. In: CANCIO

MELIÁ, Manuel; GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. Derecho penal del enemigo: el discurso penal de la exclusión. Madrid: Edisofer, 2006. v. 2. p. 735ss., 752ss.; y VIGANÒ, Francesco. Terrorismo, guerra e sistema penale. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Milano, v. 49, p. 648-703, abr./jun. 2006.

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finalidades terroristas. En esta regulación destaca, en primer lugar, el especial acento que se pone en la determinación de los fines políticos perseguidos14; en segundo, la dispersión de los distintos tipos de asociación, debida a la ausencia de una reforma sistemática del sector, que mantiene figuras provenientes de muy diversos orígenes históricos y difícilmente compatibles entre sí.

Reteniendo estos pocos datos extraídos de la DM 2002 y de los tres ordenamientos esbozados, después de una breve consideración inicial de la regulación española que sigue a continuación podrá evaluarse qué papel puede jugar la comparación con otros sistemas normativos y el marco de armonización de la UE para el análisis del ordenamiento español.

3 LA REGULACIÓN ESPAÑOLA DEL CP 1995: PANORAMA

a) Una consideración inicial de los distintos tipos de terrorismo contenidos en el momento actual en el Código penal español puede llevar a la impresión de que, en comparación con la regulación anterior – introducida materialmente en la LO 8/198815 –, el tratamiento de estos delitos en el CP 1995 no ofrece en el fondo novedades de carácter material, incluso frente a la regulación de la dictadura16: en efecto, si se examina delito por delito lo que era punible en este ámbito antes y después de la entrada en vigor del nuevo Código – excepción hecha del art. 577 CP, y, desde el año 2000, del art. 578 CP –, todo parece estar más o menos como antes.17 Los cambios, entonces, parecen sobre todo ser de técnica menor, en el sentido de una organización más racional de las infracciones. Sin embargo, esta impresión no se ve del todo confirmada si se examina la regulación actual atendiendo a determinados aspectos generales de su diseño, y no al número las infracciones individualmente consideradas.

14 La Suprema Corte (Cass., Sezione Seconda Penale, n. 24994, 25.5.–19.7.2006) ha proclamado la tolleranza zero frente a las organizaciones próximas a Al Qaida, considerando que la mera “adhesión ideológica” al ideario yihadista más una ideación más o menos difusa basta para la condena.

15 Momento en el que la regulación de excepción “se ‘cronifica’” (ROLDÁN BARBERO, Horacio. Los GRAPO: un estudio criminológico. Granada: Comares, 2008. p. 122).

16 LAMARCA PÉREZ, Carmen. Tratamiento jurídico del terrorismo. Madrid: Ministerio de Justicia, 1985, p. 708.17 En este sentido, la regulación actual hunde sus raíces en la LO 3/1988, que (re)incorporó las infracciones

de terrorismo al CP TR 1973.

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Frente a la regulación anterior al CP 1995, que contenía en los arts. 57 bis y 174 bis b) CP TR 1973 sendas claúsulas de agravación de la pena, genérica la primera y más específica la segunda, y el delito de colaboración con banda armada (art. 174 bis a) CP TR 1973), el CP 1995 optó18 por una regulación que se puede calificar – aparte de más concentrada en cuanto a su ubicación – de más extensa e intensa. Más extensa, al establecer una serie de tipos que agravan las penas previstas para ciertos delitos comunes cuando éstos sean cometidos “perteneciendo, actuando al servicio o colaborando” con las organizaciones de índole terrorista (arts. 571, 572, 573 CP), junto con un tipo de recogida que abarca (potencialmente) cualquier infracción criminal (art. 574 CP). También se establece una infracción, referida a los delitos patrimoniales, cuyo encuadre resulta algo más difícil, pero que debe considerarse como de colaboración (art. 575 CP); a continuación se incorpora el delito genérico de colaboración con banda armada (art. 576 CP). En tercer lugar, se introduce una infracción – desconocida en la regulación anterior – que suele denominarse de “terrorismo individual” (art. 577 CP). El artículo 578 CP tipifica conjuntamente – desde la LO 7/200019 – dos infracciones distintas, una consistente en el enaltecimiento o justificación de las infracciones de terrorismo y de sus autores, y la otra, en diversas formas de injuria frente a las víctimas de tales infracciones o a sus familiares. En los arts. 579 y 580 CP se regulan, respectivamente, por un lado, los actos preparatorios (art. 579.1 CP), la pena especial de inhabilitación absoluta (art. 579.2 CP) y la cuestión de los autores arrepentidos (art. 579.3 CP) y, por otro, la llamada reincidencia internacional (art. 580 CP). Por lo demás, la mera pertenencia a una de las organizaciones referidas estaba prevista en los artículos 515.2 y 516 CP.

Esto es lo que podría parecer una mera reorganización racional del material normativo frente a la situación anterior al CP 1995, a la que hay que sumar, aparte del “redondeo” de figuras periféricas y en materia de menores de la LO 7/2000, los cambios en materia de cumplimiento de penas (destinados de modo evidente sobre todo a los presos de ETA) que introdujo la LO 7/2003.20

18 Y las reformas habidas desde 1995 que han afectado a las infracciones de terrorismo no alteran la estructura general de la sección; en el plano de la definición típica, hay que señalar, como antes se decía, la introducción de las conductas de manifestación del (actual) art. 578 CP y la reformulación del art. 577 CP, además de las nuevas figuras incorporadas en la LO 5/2010 a las que después se aludirá.

19 Vid. CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo y delitos de terrorismo. Algunas consideraciones sobre la regulación de las infracciones en materia de terrorismo en el Código penal español después de la LO 7/2000. Jueces para la Democracia, n. 44, p. 19-26., jul. 2002.

20 Vid. sólo FARALDO CABANA, op. cit., p. 299ss.

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Más allá de esto, sin embargo, la regulación nueva era también (mucho) más intensa conceptualmente, porque incluye elementos definitorios generales que en la tipificación anterior no existían, ya que ésta se limitaba a enunciar las “bandas armadas” y los “elementos terroristas o rebeldes”21: por un lado, opta por la reincorporación del término “terrorismo” al rótulo de la sección; por otro, lo define, en los arts. 571 y s. CP, como aquel actuar realizado con la “finalidad de subvertir el orden constitucional o alterar gravemente la paz pública”. Como se verá, esta mayor densidad de regulación en la definición general puede servir para aportar criterios al análisis del alcance típico de las distintas infracciones.

b) Ya con la sintética caracterización de las infracciones de terrorismo acabada de hacer, queda clara la doble especificidad de la regulación española de 1995: por un lado, no sólo contenía infracciones de adelantamiento o creación de nueva punibilidad22 (arts. 515.2 y 516, 575, 576 CP), sino también una agravación general – heredera de 174 bis b) y 57 bis a) CP TR 1973 –, para todas las demás infracciones, con tal de que exista la conexión con la organización terrorista (arts. 571, 572, 577, con la clausula de cierre – recogida omnicomprensiva [“cualquier otra infracción”] del art. 574 CP); es decir, se trata de una regulación extraordinariamente severa y amplia.23 Por otro lado – y ésta es la novedad decisiva en el Código Penal de 1995 –, contiene una caracterización muy específica de cuáles son los elementos diferenciales, lo específicamente terrorista de estas infracciones.

Parece claro desde un principio que estos delitos son en el sistema de incriminación español diseñado en 1995 bastante más que una mera regla de medición de la pena (agravatoria respecto de los delitos comunes). La modificación en cuanto a la intensidad que supuso la nueva regulación del CP 1995 determina, con toda claridad, desde el punto de vista aquí adoptado, que se trata de infracciones con sustantividad propia.

21 La fase de “despolitización” anterior de estas infracciones se inició en el peculiar contexto de la transición española, en 1978 (L 82/1978); vid. al respecto sólo SOLA DUEÑAS, Angel de. Delitos de terrorismo y tenencia de explosivos (sección segunda del capítulo VIII del título XVIII del libro II de la Propuesta de Anteproyecto de nuevo Código penal de 1983. In: Documentación Jurídica 37/40, Monográfico dedicado a la PANCP, vol. 2 (1983), p. 1224 ss., pp. 1221 y ss., con un criterio muy vacilante: en el breve período de funcionamiento de la L 82/1982, se gestaba el PLOCP, que volvía a la opción por la incorporación de una sección expresamente dedicada a los delitos de terrorismo, al igual que posteriormente la PANCP (vid. DE SOLA DUEÑAS, op. cit., p. 1.223, 1.232ss.); vid. también, en sentido crítico, LAMARCA PÉREZ, op. cit., p. 162ss.; GARCÍA SAN PEDRO, José. Terrorismo: aspectos criminológicos y legales. Madrid, Centro de estudios judiciales, 1993. p. 220ss.; ASÚA BATARRITA, en: LH Lidón, p. 71ss.

22 También aquí ocupa el ordenamiento español una posición de vanguardia; decía ya, por ejemplo, GÓMEZ BENÍTEZ (CPC 16 [1982], p. 64) que “[e]s precisamente en el terreno del adelantamiento del momento punitivo, es decir, de la punición de los actos preparatorios y en la proliferación de categorías de ‘partícipes’… en donde la ‘política penal del orden público’ se muestra más ilimitada en España”.

23 Contempla, por lo tanto, las tres modalidades específicas de reacción frente a formas organizadas de criminalidad que identifica SILVA SÁNCHEZ, Jesus Maria. In: L. H. Ruiz Antón, p. 1.069ss. como posibles: infracciones específicas, agravación de infracciones comunes y la pertenencia a la organización en sí misma.

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Ya el esbozo del contenido de las infracciones de terrorismo en el CP español antes hecho, puesto en relación con el contenido de la DM 2002 y el esquema de la regulación en el Derecho de los países más próximos, muestra con toda claridad que ninguno de estos ordenamientos presenta un alcance comparable al que determina la configuración típica de los delitos de terrorismo en el Derecho penal español: éste se encuentra en una posición de aislada vanguardia, tanto en lo que se refiere a su “Parte Especial” (las conductas concretamente incriminadas) como en relación con su “Parte General” (la definición general de lo que es jurídico-penalmente “terrorismo”). Esta sencilla constatación es esencial para evaluar la posible relevancia de las normas europeas de armonización: el ordenamiento español es especialmente amplio en este sector de regulación, como se reconoce también en la jurisprudencia:

Tenemos que partir de una premisa de crucial importancia: Nuestra legislación penal en materia de terrorismo es una de las más avanzadas y completas del mundo, por lo que aquí no hay nada que crear. Se trata tan solo de interpretar adecuadamente la legislación que tenemos”.24

c) Así las cosas, no parece sorprendente que la DM 2002 no condujera a cambio alguno en la regulación antiterrorista española: sencillamente, no había margen para ninguna modificación porque el CP 1995 contaba ya _ contando con las ulteriores reformas, tanto de 2000 como de 2003 _ con un elenco de figuras delictivas perfectamente capaces de “absorber” todas las necesidades de tipificación y de definición planteadas por la norma europea.

4 LA DM 2008 Y LA REFORMA DE LA LO 5/2010

Las cosas fueron muy distintas respecto de la segunda DM, aprobada en el año 200825: invocando de modo prácticamente exclusivo la norma europea, la amplia reforma que introduce la Ley Orgánica 5/2010 en el ordenamiento penal español afectó también a los delitos de terrorismo26, y ello en tres ámbitos:

por un lado, se produce una reubicación de algunas de las infracciones – debida a

24 SAN 36/2005 (secc. 3ª) 26.9.2005.25 Vid. sobre lo que sigue también CANO PAÑOS, op. cit., II. ss. y ya CANCIO MELIÁ, Manuel. The Reform of

Spain’s Antiterrorist Criminal Law and the 2008 Framework Decision. In: GALLI, Francesca; WEYENBERGH, Anne (Ed.). EU counter-terrorism offences: what impact on national legislation and case-law? Brussels: Ed. de l’Université Libre de Bruxelles, 2012., p. 99ss.

26 Vid. una primera aproximación a este sector de la reforma en CANCIO MELIÁ, 1997, op. cit., p. 521ss.; sintéticamente, CANCIO MELIÁ, Manuel. Delitos de terrorismo. In: MOLINA FERNÁNDEZ, Fernando (Coord.). Memento Penal 2011. Francis Lefebvre: Madrid, 2011, n.m. 18.959, 18.982, 19.015, 19.035ss., 19.050, 19.080.

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la nueva configuración de los delitos de organización comunes, eliminando el tratamiento de la organización terrorista de los delitos de asociación ilícita (recogida en los antiguos arts. 515.2 y 516) –, pasando el art. 571 a recoger las conductas de pertenencia a una organización terrorista (siendo este precepto el contenido de una nueva sección primera, quedando los delitos instrumentales [arts. 572 y ss.] en la sección segunda), mientras que el art. 572 incluye ahora, además de los delitos terroristas contra las personas que ya antes se tipificaban en él, también los que estaban incluidos en el antiguo art. 571 (estragos e incendios).

Este cambio de ubicación de algunos tipos se ve acompañado, por otro lado, de algunas modificaciones puntuales en la regulación:

a) se modifica la descripción de las conductas de pertenencia a la organización terrorista (art. 571.1 y 2);

b) se introduce una definición expresa de organización y grupo terrorista (bajo remisión al nuevo régimen general de los delitos de organización), eliminando la noción de “banda armada” (art. 571.3);

c) se amplía el concepto de la colaboración con organización terrorista, identificando como nuevas conducta típicas las de “captación, adoctrinamiento, adiestramiento o formación” (art. 576.3);

d) se define un nuevo delito de financiación del terrorismo, incluyendo tanto conductas dolosas como imprudentes, y estableciendo la posibilidad de penar a personas jurídicas (art. 576 bis);

e) se tipifica una nueva figura de propaganda, consistente en la difusión pública de “mensajes y consignas dirigidos a provocar, alentar o favorecer” la comisión de delitos terroristas (art. 579.1 II).

Finalmente, en tercer lugar, se introduce para los delitos de terrorismo (art. 579.3) la nueva consecuencia jurídica de la libertad vigilada (art. 106).27 Por otra parte, también se han establecido algunos supuestos de imprescriptibilidad para estas infracciones.28

5 ORGANIZACIÓN O GRUPO TERRORISTA

a) Cambio de ubicación

La profunda reordenación de los delitos de organización que la reforma llevó a cabo afecta también, como no podía ser de otro modo – el terrorismo es la forma más

27 Sobre su aplicación a los delitos de terrorismo – en relación con el AP 2008 – cfr. el completo análisis crítico de SANTANA VEGA, Dulce María. La pena de libertad vigilada en delitos de terrorismo. Estudios penales y criminológicos, n. 29, 2009, p. 447 ss., pp. 447 ss., 474 ss.; vid. también CANO PAÑOS, Op. cit., VII.1.

28 Vid. sólo id., VII.2.

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grave de delincuencia organizada29 – a las infracciones en materia de terrorismo. Una de las consecuencias de esa reordenación es que se eliminó la separación que existía entre el delito de pertenencia a organización terrorista (que se regulaba en la secc. 1ª [delitos cometidos con ocasión del ejercicio de los derechos fundamentales y de las libertades públicas garantizados por la Constitución] del cap. IV [delitos relativos al ejercicio de los derechos fundamentales y libertades públicas], dentro de los delitos de asociación ilícita, arts. 515.2 y 516) y las demás infracciones de terrorismo (recogidas en la antigua secc. 2ª [delitos de terrorismo] del antiguo cap. V [tenencia, tráfico y depósito de armas, municiones o explosivos y delitos de terrorismo] del tít. XXII [delitos contra el orden público]): ahora, ambos segmentos de la regulación se encuentran reunidos en el nuevo cap. VII (organizaciones y grupos terroristas y delitos de terrorismo) del título dedicado a los delitos contra el orden público, aunque en dos secciones separadas.

La nueva ubicación no resulta adecuada. Por un lado, porque se ha desaprovechado la oportunidad de la reforma para colocar en el lugar que corresponde a los delitos de terrorismo (y a todos los delitos de organización): entre los delitos contra la Constitución30. Por otro lado, la inclusión de la pertenencia a organización terrorista entre los delitos de terrorismo supone una involución frente a la situación anterior. El hecho de convertir en una infracción criminal la mera integración en un colectivo – es decir, los delitos de organización – supone una reacción excepcional frente a determinadas organizaciones, organizaciones que presentan un injusto específico. En consecuencia, parece conveniente regular conjuntamente todas las formas de delitos de organización; de hecho, la inclusión de la organización terrorista en el delito general de asociación ilícita en el CP 1995 fue saludada como muestra de “normalización” por la doctrina. 31 En efecto, no parece que sea conveniente desgajar la pertenencia a una organización terrorista de la disciplina general de la integración en una organización criminal. Si el miembro de una organización criminal que trafica con drogas es aprehendido por la regulación general de la organización criminal, pero en el caso del terrorismo, la regulación se ubica en otro lugar, lo que el legislador subraya es lo especial del terrorismo en el plano simbólico – un mensaje inconveniente para un ordenamiento que asume el carácter de delito común (y no excepcional o político) del acto terrorista.

29 Vid., por ejemplo, también en este sentido MUÑOZ CONDE, PE18, p. 921ss.; SÁNCHEZ GARCÍA DE PAZ, Isabel. GÓMEZ TOMILLO, Manuel (Dir.). Comentarios al Código penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010. p. 1936ss.

30 Vid. la argumentación en CANCIO MELIÁ, Los delitos de terrorismo, p. 77ss., 80ss.; IDEM, EN DÍAZ-MAROTO VILLAREJO, JULIO. Estudios, p. 668ss.

31 Cfr. CANCIO MELIÁ, 2010b, Op. cit. p. 194ss.

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b) Conductas de pertenencia (art. 576.1 y 2).

La descripción de los niveles directivos – pertenencia cualificada – se simplifica y se enriquece con las conductas de constituir u organizar, además de promover y dirigir.

La conducta de mera pertenencia32 se describe ahora con más detalle que en la regulación antecesora, en el art. 516.2 CP, que sólo se refería al “integrante” sin más. Sin embargo, la formulación utilizada puede dar la impresión – aún más que la regulación anterior – de que se puede “formar parte” sin “participar activamente” en una organización terrorista (al contraponer a los que participen activamente frente a los que formen parte). Esta regulación desconoce la realidad de las organizaciones terroristas, en la que no hay nada parecido a una “militancia pasiva”.

La nueva descripción puede contribuir – intensificando ciertas tendencias en este sentido en la jurisprudencia de los últimos años33 – a llevar al delito de pertenencia, castigado con penas severísimas, a una especie de delito de adhesión, de identificación con el ideario, y resulta por ello rechazable34, ahora igual que antes.

c) Concepto de organización o grupo (art. 571.3)

Respecto de la definición de la organización o grupo terrorista cabe destacar dos cuestiones: por un lado, la eliminación del término “banda armada”; por otro, la remisión a las definiciones generales de “organización” y “grupo” en los delitos de organización comunes. Estas modificaciones afectan al llamado elemento estructural de la noción de organización terrorista, sin alterar el concepto típico en lo que se refiere al programa colectivo de la organización o a la definición del elemento instrumental del terrorismo.

aa)El término “banda armada” (presente junto con la organización y el grupo terrorista en la regulación del CP 1995), de larga tradición en la legislación especial antiterrorista española, resultaba potencialmente perturbador, al abrir la puerta a la consideración de que también una “banda armada” dedicada a la delincuencia común pudiera ingresar en el concepto típico (recuérdese, por ejemplo, que en el caso de Santiago Corella El Nani35, la detención policial que dio lugar a la desaparición se hizo al amparo de la legislación especial – que

32 Vid. el análisis de ese comportamiento típico en CANCIO MELIÁ, L. H. Mir Puig, p. 987ss.; IDEM, FS Puppe, p. 1.449ss.

33 CANCIO MELIÁ, 2010b, Op. cit., p. 212ss.34 Vid. también CANO PAÑOS, op. cit., III., con ulteriores referencias; LLOBET ANGLÍ, Mariona. Delitos de

terrorismo. ORTIZ DE URBINA GIMENO, Iñigo (Coord.). Memento Experto Reforma Penal 2010. Madrid, 2010. (n.m. 6.039) considera inconstitucional esta interpretación.

35 STS 25.6.1990.

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comprendía también las “bandas armadas” – de la LO 11/1980), es decir, podía desdibujar los contornos típicos del concepto de terrorismo. En este sentido, su eliminación resulta positiva.36

Sin embargo, lo cierto es que ese riesgo de indefinición había sido ya conjurado por la jurisprudencia, constitucional y ordinaria37, que había establecido una interpretación estricta de la noción de “banda armada”, incluyéndola dentro del concepto de organización terrorista.

bb)Permanece inalterada la descripción típica del programa de la organización terrorista (subversión del orden constitucional o alteración grave de la paz pública; tampoco queda afectado el elemento – no escrito – del terrorismo instrumental [producción de intimidación masiva mediante delitos graves contra las personas]38), pero se modifica profundamente la caracterización de la organización terrorista en sí misma, es decir, su definición estructural: aunque la regulación anterior incluía ya, junto con la banda armada, a la organización y al grupo terrorista, no ofrecía ningún elemento para definir esas tres alternativas, sino se limitaba a enunciarlas. De hecho, parece que la nueva regulación de los delitos de organización comunes, que distingue entre un tipo de organización delictiva en sentido estricto (la “organización criminal”, art. 570 bis) y esa especie de tipo de recogida u organización delictiva de menor cuantía que es el “grupo criminal” del art. 570 ter, de algún modo se inspira – junto con figuras próximas, pero no de necesaria inclusión en las normas internacionales – en la regulación existente en el CP 1995 para las infracciones de terrorismo.

Al margen de lo inadecuado y vaporoso de la distinción entre estas dos figuras, si se pretende que ese nuevo modelo sea una adaptación de la descripción típica en materia de terrorismo, se ignora la jurisprudencia del TS al definir los conceptos de organización y grupo terrorista (que no la “respuesta penal” de la que habla el legislador39), ya que siempre se ha identificado en ella ambas menciones, subrayando que tratándose de un mismo concepto (caracterizado, además de por un programa político terrorista, por la presencia de las notas de permanencia, división de tareas y estructura funcional), la inclusión del “grupo” sólo debía servir para poner en claro que las dimensiones numéricas de la organización no

36 Vid. también CANO PAÑOS, Op. cit., III., y la DA 1ª LO 5/2010, que extiende la eliminación – aspecto olvidado en el AP– a los preceptos no afectados por la reforma.

37 Cfr. STC 199/1987; STS 2/1998 (29.7.1998); vid. también STS 1127/2002 (17.7.2002); 1541/2004 (30.12.2004); 556/2006 (31.5.2006); en detalle, CANCIO MELIÁ, Manuel. Los delitos de terrorismo: estructura típica e injusto. Madrid: Reus, 2010a., p. 162ss., con ulteriores referencias.

38 Ibid., p. 154ss., 167ss., 176ss.; IDEM, L. H. Gimbernat Ordeig t. II, p. 1.879ss., con ulteriores referencias.39 Preámbulo, XXIX, párrafo segundo.

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resultaban decisivas para su calificación40. Además, cuando el legislador alude – buscando de modo ostentoso sintonía con lugares comunes propios de cierta opinión publicada –, para justificar su ocurrencia, a las peculiaridades de “determinados grupos o células terroristas de relativamente reciente desarrollo en el plano internacional”41, desconoce que no ha habido dificultades en la aprehensión típica de estos grupos – como muestra un somero repaso de la jurisprudencia42 – : el comando –unidad que ejecuta atentados o labores de información o aprovisionamiento – en el que por necesidades operativas siempre se integran los autores de delitos terroristas – también en las nuevas formas de organización, aunque mantengan conexiones superficiales, en red, con la organización matriz – cumple perfectamente con los requisitos del concepto de organización, y de hecho, hay ya cierto número de condenas en España por pertenencia a este tipo de células. No era necesario diluir el concepto unitario de organización terrorista43.

Por lo tanto, la diferenciación entre organización y grupo que ahora ordena el art. 571.3, aplicando la nueva definición general, es un curioso boomerang que golpea no sólo a la definición de los colectivos de criminalidad organizada común44, sino también a la regulación de las infracciones de terrorismo: derivado de una comprensión errónea de lo que la doble mención ha significado en los delitos de terrorismo, además de una lectura interesada y expansionista de las normas internacionales y de la UE, una vez exportada a los delitos de organización comunes, retorna al terrorismo para desordenar y confundir una noción que estaba perfectamente establecida en la jurisprudencia en lo que se refiere a los elementos estructurales del concepto de organización. Nada hay en la DM 2008, ni tampoco en la nueva fenomenología del terrorismo, que justifique este deterioro en la descripción legal.

6 COLABORACIÓN

En cuanto a los comportamientos de colaboración con una organización terrorista, la reforma incorporó dos nuevas incriminaciones: por un lado, se ha introducido en el art.

40 CANCIO MELIÁ, 2010a, Op. cit., p. 157, p. 158ss., 161.41 Preámbulo, XXIX, párrafo tercero.42 Vid., por ejemplo, SAN 36/2005 (secc. 3ª) 26.9.2005; 6/2007 (secc. 1ª) 7.2.2007).43 CANCIO MELIÁ, 2010a, Op. cit., p. 161.44 Vid. CANCIO MELIÁ, Manuel. Die Mitgliedschaft in einer terroristischen Organisation im spanischen

Strafrecht. In: PAEFFGEN, Hans-Ullrich et al. (Ed.). Strafrechtswissenschaft als Analyse und Konstruktion. Festschrift für Ingeborg Puppe zum 70. Geburtstag, 2011. p. 668ss.

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576 un nuevo número tercero, que tipifica – con las mismas penas que las alternativas de comportamiento previstas en los dos primeros números – los comportamientos de captación, adoctrinamiento, adiestramiento o formación, cuando éstos estén dirigidos a la incorporación de otros a una organización terrorista, o a la comisión de algún delito de terrorismo. Por otro lado, se resucita el art. 576 bis (que incluyó fugazmente un delito de desobediencia por financiación de grupos políticos ilegales o disueltos, hasta su derogación mediante LO 2/2005) para incorporar comportamientos de provisión o recolección de fondos destinados a actividades terroristas.

a) Captación, adoctrinamiento, adiestramiento o formación (art. 576.3)

La nueva regulación pretende cerrar los contornos típicos del delito de colaboración en cuanto a lo que podría denominarse agitación, propaganda, proselitismo y formación de las organizaciones terroristas, orientada tanto a la incorporación de nuevos miembros como, en general, a la comisión de delitos terroristas. Se invocan aquí por el legislador de modo central, como se verá, las necesidades de tipificación planteadas por la DM 2008.

Esta adición resulta innecesaria, redundante y perturbadora. En primer lugar, la tipificación es innecesaria por razones de hecho: las conductas de captación, adiestramiento y formación de sujetos para su integración en una organización terrorista son conductas típicas de los miembros de la propia organización, como es lógico –no es común que una organización terrorista encargue esta actividad a personas que no son de su máxima confianza, es decir, que la integran – y, por lo tanto, se encuentran ya perfectamente abarcadas, por este lado, por el delito de pertenencia a organización terrorista. En segundo lugar, si en alguna ocasión pudiera haber un outsourcing de esa actividad a personas que no son miembros de la organización, todas las modalidades de comportamiento se hallaban ya tipificadas en cuanto conductas de colaboración, desde el principio, en los números primero y segundo del art. 576.45 Como muestra una lectura superficial del texto del art. 576.2, que contiene la mención expresa “la organización de prácticas de entrenamiento o la asistencia a ellas”, junto con una cláusula general que incluye “cualquier otra forma equivalente de cooperación, ayuda o mediación”, es claro que la tipificación de este nuevo número es completamente innecesaria: resulta evidente que si la organización de un entrenamiento, o incluso la participación en éste, es colaboración, tanto más lo

45 Así también GARCÍA ALBERO, Ramón. La reforma de los delitos de terrorismo, arts. 572, 573, 574, 575, 576, 576 bis, 577, 578, 579 CP. In: QUINTERO OLIVARES, Gonzalo (Dir.). La reforma penal de 2010: análisis y comentarios. Navarra; Aranzadi: Thomson Reuters, 2010, p. 376; LLOBET ANGLÍ, Op. cit., n.m. 6.106.

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será la captación de miembros, el adiestramiento o la formación.46 En tercer lugar, la nueva regulación resulta muy perturbadora por su cuarta vertiente de comportamiento. La conducta identificada como “adoctrinamiento” abre la vía a que se incriminen aquí meras manifestaciones de opinión. ¿Cómo definir el adoctrinamiento, distinguiéndolo de la libre expresión de ideas? ¿Cómo diferenciarlo de las conductas de “justificación” de los delitos terroristas o de sus autores, amenazadas con pena muy inferior en el art. 578? ¿Qué significa que el adoctrinamiento está “dirigido” a la comisión de delitos de terrorismo (recuérdese: sin que sea constitutivo de proposición o provocación, ya incriminadas en el art. 579.1 I47)? Los problemas de interpretación y concursales no tienen fin. El principio de legalidad – en su expresión en el mandato de determinación– se vulnera gravemente48.

Finalmente, debe constatarse que el legislador no se ajusta a la realidad cuando se refiere49 a la Decisión Marco de la UE 2008/919/JAI para explicar la nueva tipificación50: la DM no menciona en ningún momento el “adoctrinamiento” – sólo se refiere a la “provocación a la comisión de un delito terrorista” (además de a la captación y el adiestramiento, ya incluidos, como se acaba de indicar, en el art. 576.1) –, y, en cambio, sí establece (considerando 14) que “la expresión pública de opiniones radicales, polémicas o controvertidas sobre cuestiones políticas sensibles, incluido el terrorismo, queda fuera del ámbito de la presente Decisión marco, y, en especial, de la definición de la provocación a la comisión de delitos de terrorismo.” ¿Qué tiene esto que ver con el “adoctrinamiento” de la reforma española? En este sentido, los misteriosos – por no explicitados – “problemas de encaje legal”51 a los que alude el legislador en esta materia o no existen (ya estaban aprehendidas las conductas relevantes en el antiguo art. 576) o son problemas de encaje con un Estado de Derecho52. La UE no es responsable de este exceso, sólo sirve –una vez más– de superficial pretexto.

46 Vid., por ejemplo, STS 800/2006 (13.7.2006); 16.2.1999; AAN (secc. 4ª) 8.2.2001; cfr. CANCIO MELIÁ, Manuel. Los límites de una regulación maximalista: el delito de colaboración con organización terrorista en el Código penal español. In: CUERDA RIEZU, Antonio; JIMÉNEZ GARCÍA, Francisco (Dir.). Nuevos desafíos del derecho penal internacional: terrorismo, crímenes internacionales y derechos fundamentales. Madrid: Tecnos, 2009. p. 76ss.; CANCIO MELIÁ, 2010a, op. cit., p. 229ss., 248ss., con ulteriores referencias.

47 Así también LLOBET ANGLÍ, Op. cit., n.m. 6.110ss.48 En esta línea también MUÑOZ CONDE, PE18, p. 929 ss.; VIVES ANTÓN, Tomás S.; CARBONELL MATEU,

Juan Carlos. Organizaciones y grupos criminales. In: VIVES ANTÓN, Tomás S. et al. Derecho penal: parte especial. 3. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010. p. 792ss.

49 Preámbulo, XXIX, párrafo cuarto.50 Así también GARCÍA ALBERO, Op. cit., p. 374ss.51 Preámbulo, XXIX, párrafo cuarto.52 Nótese que, de nuevo, se ignora ostensiblemente la doctrina sentada en la STC 136/1999, en la que se declaró

inconstitucional, por desproporcionada, la inclusión en el delito de colaboración con organización terrorista de comportamientos muy diversos en un mismo marco penal; vid. LLOBET ANGLÍ, op. cit., n.m. 6115.

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b) Financiación (art. 576 bis);

La reforma presentó una segunda novedad en materia de colaboración: la tipificación de comportamientos relacionados con la financiación de las organizaciones terroristas. En el número primero del art. 576 bis se incrimina la provisión o recolección de fondos; en el número segundo, una conducta imprudente en relación con la financiación dolosa, y se establece la responsabilidad de las personas jurídicas en el tercero.

En la modalidad dolosa, el comportamiento – realizado “por cualquier medio, directa o indirectamente” – consiste en proveer o recolectar fondos para la comisión de delitos terroristas, o para una organización terrorista. Como aclara el propio texto, basta con que la conducta se realice “con la intención de que se utilicen, o a sabiendas de que serán utilizados”, es decir, que no es necesario que se produzca un efectivo allegamiento de los fondos. El delito pasa, entonces, a girar en torno de los elementos subjetivos “con la intención” y “a sabiendas”, con todas las dificultades probatorias que ello conlleva. Esta definición de la conducta reproduce sin más – en una importación directa sin reconversión o adaptación – la definición contenida en el art. 2 del Convenio para la represión de la financiación del terrorismo de 9.12.1999 (entrada en vigor 9.5.2002).

En todo caso, también aquí estamos ante una tipificación completamente innecesaria y redundante.53 Las conductas de apoyo económico efectivo incluidas en el nuevo texto están ya contempladas como forma de colaboración con organización terrorista en el art. 576 – o en el preexistente e igualmente redundante54 art. 57555 –, de modo que no tiene sentido su nueva tipificación.

Cuando se trata del mero acto de recolectar “con la intención de que se utilicen”, pero sin entrar en contacto efectivo con la organización, la tipificación supone castigar sólo la intención, y, además, con la misma pena que a quien averigua los datos personales de un sujeto, o quien provee armas o fondos, es decir, quien realiza las conductas más graves de colaboración del art. 576.1: de nuevo, el legislador ignora por completo la STC 136/1999 (caso mesa nacional Herri Batasuna), que advertía acerca de la inconstitucionalidad de una tipificación sin límite e indiscriminada. La confusión hoy existente entre el art. 576 y el 575 (que subsiste), que ha dado lugar a que casos exactamente iguales reciban penas dispares, se verá incrementada por esta nueva figura completamente innecesaria. El legislador estaba advertido: ya el informe del Consejo General del Poder Judicial sobre el

53 Así también MUÑOZ CONDE, PE18, p. 930.54 Vid. en detalle CANCIO MELIÁ, 2010a, Op. cit., p. 256ss.55 Así también GARCÍA ALBERO, Op. cit., p. 377.

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AP de 2007 (de 2.2.2009) indicaba que, en todo caso, la sede para este precepto era una cláusula aclaratoria en el art. 576.2, so pena de generar “absurdos problemas concursales”56.

La modalidad imprudente se refiere a la Ley 10/2010, de 28 de abril, de prevención del blanqueo de capitales y de la financiación del terrorismo, que a su vez responde a la Directiva 2005/60/CE del Parlamento Europeo y del Consejo, de 26 de octubre de 2005, relativa a la prevención de la utilización del sistema financiero para el blanqueo de capitales y para la financiación del terrorismo. Con independencia de la valoración de este mecanismo legal, parece claro que esta infracción no debería haber sido incluida entre los delitos de terrorismo: el injusto de esta infracción es el del blanqueo de capitales – ubicación elegida, por ejemplo, por el legislador alemán. En todo caso, no se trata de un delito de terrorismo, ya que carece de los elementos esenciales de estas infracciones, que son necesariamente dolosas.

7 DELITO DE PROPAGANDA

Finalmente, la reforma incorpora en el segundo párrafo del art. 579.1 un nuevo tipo residual que cabe calificar de delito de propaganda, ya que las conductas típicas aprehendidas son las de distribuir o difundir – por cualquier medio – “mensajes o consignas” dirigidos a provocar, alentar o favorecer” delitos terroristas, “[…] generando o incrementando el riesgo de su efectiva comisión”. Se trata, entonces, de una infracción de peligro: los mensajes o las consignas deben estar directamente vinculados con el riesgo de comisión.

La nueva redacción debe ser calificada como tipificación profundamente errada y claramente inconstitucional, que generará importantes dificultades de aplicación. El legislador continúa aquí con una deriva que conduce a la criminalización de la adhesión ideológica57.

En cuanto a lo primero, aunque la referencia a la génesis del riesgo es una especie de guiño la STC 235/2007 (en la que el TC declaró constitucional el delito de justificación de un genocidio – e inconstitucional la incriminación de la mera negación – si ésta se entendía como incitación indirecta a cometer los hechos), además de una pequeña importación parcial de la DM 2008/919/JAI, lo cierto es que en su conjunto, no parece que este texto pueda considerarse conforme a la Constitución. En el presente caso, se trata lisa y llanamente de la tipificación de la adhesión ideológica, es decir, algo que incluso es menos

56 Vid. también LLOBET ANGLÍ, Op. cit., n.m. 6.139.57 CANCIO MELIÁ, 2010a, Op. cit., p. 248ss., con ulteriores referencias.

65Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 6, n. 10, p. 45-72, jan./jun. 2014

que la apología o la justificación58 (también el Consejo de Estado señaló en su informe al AP que la figura necesitaba una restricción).59 Si se suman la presente infracción, la nueva modalidad de “adoctrinamiento” en el art. 576.3, el delito de amenazas terroristas del art. 170.2 y el actual delito de enaltecimiento del art. 57860 , se obtiene en el plano del derecho sustantivo una extensión de la tipificación de delitos terroristas hasta la mera manifestación de opinión61, y en el procesal, una preocupante batería de posibilidades de intervención del aparato de persecución penal abierta por los delitos de manifestación. Parece claro que se ha cruzado el umbral de lo que la Constitución de un Estado de Derecho permite62. También debe subrayarse, finalmente, que el legislador falta a la verdad, de nuevo, cuando invoca63 la Decisión Marco de la UE 2008/919/JAI como justificación de la introducción de esta figura.64 La DM sólo demanda la inclusión de la “provocación a la comisión de un delito de terrorismo”, entendida como difusión de mensajes destinados a inducir a la comisión de delitos terroristas, un comportamiento que ya estaba tipificado en el CP y que es distinto del que ahora ha incluido la reforma: una cosa es inducir, y otra alentar o favorecer.

En cuanto a lo segundo, mediante una tipificación vaporosa – lesiva del principio de legalidad65 –, se abre la puerta, también aquí, a interminables confusiones concursales e interpretativas y, potencialmente, a efectos contraproducentes en la práctica: ¿”alienta” la “perpretación” de delitos terroristas gritar “gora ETA militarra”? ¿O no era una conducta de exaltación del art. 578? ¿O quizás una provocación del art. 579.1 I? ¿O puede pensarse que implica “reclamar públicamente la comisión de acciones violentas” por parte de la organización terrorista, conducta prevista en el art. 170.2? ¿“Provoca” en el sentido de la presente disposición la comisión de esas infracciones gritar “gora Euskal Herria askatuta”? ¿Y “favorece” el terrorismo llevar una camiseta con la imagen de Osama Bin Laden? ¿De Arnaldo Otegi? ¿Del Che Guevara? ¿De Onésimo Redondo? ¿De Espartaco?

58 En palabras de VIVES ANTÓN; CARBONELL MATEU; MIRA BENAVENT, op. cit., p. 795, se castigan “actos preparatorios de actos preparatorios”.

59 García Albero, La reforma, p. 377, denomina a la figura “provocación impropia”.60 Vid. los esfuerzos de delimitación de LLOBET ANGLÍ, op. cit., n.m. 6.177ss.61 Vid. también la enmienda nº 217 en el Senado (Grupo Parlamentario Entesa Catalana de Progrés): “mera

adhesión ideológica”, “delito de opinión que excede claramente del castigo de actos preparatorios”.62 Así también MUÑOZ CONDE, PE18, p. 935.63 Preámbulo, XXIX, párrafo cuarto.64 Así también GARCÍA ALBERO, op. cit., p. 377; PORTILLA CONTRERAS, Guillermo. La reforma de los actos

preparatorios y favorecimiento de delitos de terrorismo, art. 579 CP. In: QUINTERO OLIVARES, Gonzalo (Dir.). La reforma penal de 2010: análisis y comentarios. Navarra; Aranzadi: Thomson Reuters, 2010. p. 381.

65 En este sentido también la enmienda nº 5 en el Senado (Sampol i Mas PSM-EN).

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¿Es parte de una política criminal racional detener y procesar por un delito de terrorismo a los sujetos que incurran en este tipo de manifestaciones? El legislador alemán – que fue muy lejos en este terreno en los años setenta y ochenta del siglo pasado – suprimió la incriminación de las conductas de propaganda en el año 2001, limitándola a los supuestos en los que son integrantes de la organización quienes utilizan la conducta para captar miembros. Que el legislador español de 2010 hable aquí – con un lenguaje impropio, pero muy revelador – de “caldo de cultivo”66 advierte acerca de las posibilidades de criminalizar a todo tipo de simpatizantes o supuestos simpatizantes – un fenómeno de acción-reacción67 que no por conocido deja de ser promovido mediante esta nueva tipificación.

CONCLUSIONES

1. Una primera consideración la merece la ubicación sistemática de los delitos de organización en su conjunto. Estas infracciones – y los delitos de terrorismo, de modo especial – se caracterizan porque ponen en cuestión el monopolio de la violencia del Estado68, y mediante las infracciones de terrorismo, como el propio Código señala, se pretende, además, “subvertir el orden constitucional”.69 Por ello, el lugar sistemático que corresponde a los delitos de organización en la Parte Especial es el de los delitos contra la Constitución.70

2. Por otro lado, la valoración de la reforma de la tipificación de los diferentes delitos de terrorismo que antes se ha expuesto resulta sencilla: se la puede caracterizar sintéticamente como justo lo contrario de la “profunda reordenación y clarificación del tratamiento penal” que el legislador reivindica para su trabajo respecto de estas infracciones.71 Como deriva de lo expuesto en las páginas anteriores, el legislador – sin mejorar ninguno de los múltiples defectos que presentaban estas infracciones ya antes –, desordena (una regulación ya hecha

66 Preámbulo, XXIX, párrafo cuarto.67 Vid. sólo CANCIO MELIÁ, 2010a, Op. cit., pp. 62ss., 72ss., 77, con ulteriores referencias.68 CANCIO MELIÁ, F. S. Jakobs, p. 27ss., 48ss.; CANCIO MELIÁ, Manuel. El injusto de los delitos de organización:

peligro y significado. Revista Regional de Derecho Penal, n. 8, nov. 2007, p. 22ss., 40ss.; logra una sintética y clara descripción de las diversas opciones de fundamentación SÁNCHEZ GARCÍA DE PAZ, op. cit. p. 1.922ss..

69 O, en palabras del Preámbulo de la LO 5/2010: estas infracciones atentan “directamente contra la base de la democracia” (XVII, párrafo cuarto), respecto de los delitos de organización comunes, o, respecto de los delitos de terrorismo, suponen “la mayor amenaza para el Estado de Derecho” (XXIX, párrafo tercero)..

70 Así ya CANCIO MELIÁ, Manuel. A las disposiciones transitorias 1ª a 6ª. In: RODRÍGUEZ MOURULLO, GONZALO (Dir.).; JORGE BARREIRO, Agustín. Comentarios al Código penal. Madrid: Civitas, 1997. p. 1.272ss., 1285, 1385; SÁNCHEZ GARCÍA DE PAZ, Op. cit., p. 1923, con ulteriores referencias.

71 Preámbulo (XXIX, primera frase).

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sin mucho criterio, y reformada con menos aún) y confunde (un elenco de normas que ya tenía muchas zonas oscuras). Con una factura técnica lamentable, los contenidos de la reforma en este ámbito basculan entre lo innecesario y redundante y lo claramente inconstitucional. La regulación antiterrorista más extensa y severa de Europa sufre un nuevo deterioro, creando nuevos problemas a los órganos judiciales llamados a aplicar las normas creadas con tanta ligereza.

En primer lugar, la reforma desdibuja, como se acaba de decir, el concepto de organización terrorista – hasta banalizarlo – al introducir el régimen general de diferenciación entre organizaciones y grupos criminales, y erosiona la definición típica de la conducta de pertenencia. En segundo lugar, se produce – con una técnica redundante y defectuosa – una extensión insoportable de los confines de la colaboración con una organización terrorista y de los actos preparatorios. Todo ello, invocando como un mantra la DM 2008/919/JAI para justificar reformas que nada tienen que ver con lo que esa norma establece.72 El impacto de la DM 2008 puede calificarse, por tanto, de servir de pretexto para una ampliación de la regulación española.

La conclusión que se impone es que en este ámbito, el único objetivo de los agentes políticos que la han impulsado era la reforma por la reforma, o, más exactamente, la reforma por el hecho de poder comunicar que se había ampliado “algo” en materia de terrorismo, estableciendo un marco de regulación en el que cualquier proximidad ideológica con los planteamientos de terrorismo permitirá una persecución selectiva de un “entorno” vaporoso de las organizaciones terrorismo. En este sentido, la nueva formulación es agua sobre el molino de los terroristas.

72 A título de ejemplo cabe mencionar que la transposición de la DM en Alemania (un país con un Derecho penal antiterrorista que cabe calificar de severo), operada mediante la introducción en 2009 de los nuevos §§ 89a, 89b y 91 StGB – que ha generado en la doctrina de ese país una reacción muy crítica: así, por ejemplo, habla el autor de la monografía de referencia en la materia de que la reforma supone la “bienvenida a Absurdistán”, ZÖLLER, GA 11/2010, pp. 607 ss. con ulteriores referencias – supone aprehender conductas que ya se consideraban incluidas en España en los arts. 576 o 579 (vid. también sobre la reforma en aquel país GAZEAS/GROSSE-WILDE/KIEßLING, NStZ 2009, p. 593 ss.; ampliamente PETZSCHE, Die CANCIO MELIÁ, Manuel. A las disposiciones transitorias 1ª a 6ª. In: RODRÍGUEZ MOURULLO GONZALO (Dir.); JORGE BARREIRO, Agustín. Comentarios al Código penal. Madrid: Civitas, 1997. strafrechtliche Bekämpfung). El Derecho de la UE como coartada, pero con ignorancia provinciana del Derecho comparado.

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David Garland1

Tradução de Leandro Ayres França2

1 PhD em Estudos Sócio-Jurídicos pela University of Edinburgh. Doutor honoris causa pela Free University of Brussels. Mestre em Criminologia pela University of Sheffield. Em 2012, a American Society of Criminology lhe conferiu o Edwin H. Sutherland Prize por suas excelentes contribuições à teoria e à pesquisa criminológicas. Autor de diversos livros premiados, dentre os quais Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies (1985); Punishment and Modern Society: A Study in Social Theory (1990); The Culture of Control: Crime and Social Order in Contemporary Society (2001); e Peculiar Institution: America’s Death Penalty in an Age of Abolition (2010), nos quais se reconhece sua distinta abordagem sociológica no estudo das instituições jurídicas. Editado em português, encontra-se disponível A Cultura do Controle: Crime e Ordem Social na Sociedade Contemporânea, publicado em 2008 pela Editora Revan. É professor de Sociologia da New York University School of Law.

2 Doutorando e Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Advogado criminalista. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Modernas Tendências do Sistema Criminal. Mais informações disponíveis em <www.ayresfranca.com>. Tradução: revista por Noyelle Neumann das Neves. Nota do Tradutor: No caso de textos republicados em língua portuguesa, utilizaram-se colchetes para as referências, datas e páginas das traduções. Optou-se pela transcrição das citações que se encontram disponíveis nas edições já traduzidas para o português; em casos de textos não traduzidos, as citações foram traduzidas e adaptadas pelo tradutor, a partir das publicações utilizadas pelo autor (em inglês).

RESUMO

Neste artigo é explicado o método de escrever uma “história do presente”, de Michel Foucault, junto com seus objetivos críticos e suas diferenças quanto à historiografia convencional. Também é discutida a mudança de Foucault de um estilo de pesquisa e análise históricas concebido como “arqueologia” para um estilo entendido como “genealogia”, demonstrando-se como a história do presente implementa a investigação genealógica e a revelação de conflitos e contextos encobertos como um meio de reavaliar o valor de fenômenos contemporâneos. O artigo destaca as observações críticas de fenômenos atuais a partir dos quais começa uma história do presente, prestando particular atenção ao conceito de “dispositivo” de Foucault e seu método de problematização. As análises feitas por Foucault do Panóptico de Bentham, das origens disciplinares da prisão moderna e da tecnologia da confissão são discutidas a título de ilustração.

Palavras-chave: Foucault. História do Presente. Genealogia. Arqueologia. Dispositivo. Problematização.

O QUE SIGNIFICA ESCREVER UMA “HISTÓRIA DO PRESENTE”? A ABORDAGEM GENEALÓGICA DE FOUCAULT EXPLICADA

WHAT DOES IT MEAN TO WRITE A “HISTORY OF THE PRESENT”? FOUCAULT’S GENEALOGICAL APPROACH EXPLAINED

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ABSTRACT

In this article Michel Foucault’s method of writing a “history of the present” is explained, together with its critical objectives and its difference from conventional historiography. Foucault’s shift from a style of historical research and analysis conceived as “archaeology” to one understood as “genealogy” is also discussed, showing how the history of the present deploys genealogical inquiry and the uncovering of hidden conflicts and contexts as a means of re-valuing the value of contemporary phenomena. The article highlights the critical observations of present-day phenomena from which a history of the present begins, paying particular attention to Foucault’s concept of “dispositif” and his method of problematization. Foucault’s analyses of Bentham’s Panopticon, of the disciplinary sources of the modern prison, and of the technology of confession are discussed by way of illustration.

Keywords: Foucault. History of the Present. Genealogy. Archaeology. Dispositif. Problematization.

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INTRODUÇÃO

Michel Foucault certa vez comentou que ele preferia evitar citação, discussão e reconhecimento elaborados de autores cujas ideias tinham influenciado seu trabalho.3 Ao invés de citar as obras de Marx, Kant, Nietzsche ou Althusser e explicar como suas ideias correspondiam a (ou se diferenciavam de) suas próprias, ele simplesmente utilizava os instrumentos conceituais que esses escritores forneceram, frequentemente transformando-os no processo. “Quanto a mim, eu prefiro utilizar os escritores dos quais gosto. O único tributo válido a pensamentos como o de Nietzsche é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo gemer e protestar” (FOUCAULT, 1980, p. 53-54).

Comparado às normas acadêmicas comuns de citação e referência acadêmicas, isso, tal como muito mais na oeuvre de Foucault, poderia ser visto como levemente escandaloso. Mas é mais esclarecedor pensar nisso como um aspecto da abordagem definitivamente pragmática de Foucault ao desenvolvimento teórico e ao uso de conceitos. Essa abordagem levou-o a considerar “teoria” como uma caixa com ferramentas úteis, cada instrumento conceitual projetado como um meio de trabalhar em problemas específicos e de promover certas investigações e não como um fim intelectual em si ou como um tijolo para um grande edifício teórico. Uma consequência dessa atitude pragmática é que não há “teoria foucaultiana” que surja da oeuvre de Foucault: nenhum sistema teórico já pronto que possa ser “aplicado” por outros. No lugar disso, o que Foucault nos disponibiliza é uma série de análises bastante específicas e precisamente teorizadas, cada uma mobilizando uma metodologia personalizada projetada para tratar um problema teoricamente definido a partir de um ângulo estratégico de investigação. Essa mesma abordagem resolutiva de problema – juntamente com a extraordinária fertilidade do pensamento de Foucault – é o que o levou a desenvolver novos (ou extensivamente revisados) conceitos para cada novo projeto em que ele embarcou e para cada novo tipo de fenômenos que ele procurou explicar.

Tomemos por exemplo o conceito de poder. Ainda que questões de poder tenham sido um interesse recorrente por todo o seu corpo de trabalho, desde Folie et Deraison: Histoire de la folie a l’age classique, de 1961, até Le Souci de soi, de 1984, as conceituações que ele mobilizou apresentaram uma tendência distinta de desenvolvimento e evolução.

3 “Frequentemente eu cito conceitos, textos e frases de Marx, mas sem me sentir obrigado a adicionar a etiqueta de autenticidade de uma nota de rodapé com uma frase laudatória para acompanhar a citação” e, depois, na mesma entrevista: “Eu prefiro permanecer calado quanto a Nietzsche” (FOUCAULT 1980, p. 52-53).

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Assim, conforme seu olhar analítico moveu-se do confinamento do irracional, no início da era moderna, para a prisão disciplinar, a sexualidade moderna, as antigas práticas de autogoverno e, finalmente, para práticas modernas de governar a economia e a população, sua análise do poder igualmente se move de um conceito de poder entendido como uma exclusão ou uma “prática divisora” para um conceito mais positivo de poder como “produtivo”; para a formulação híbrida do “poder-saber”; para o poder como incitamento ou excitação envolvendo “espirais de poder e prazer”; para poder como “ação sobre outra ação” e “a conduta da conduta”; e finalmente para poder como produtor de sujeitos e produtor de verdade.4 Em vez de uma única teoria foucaultiana, há múltiplas teorizações foucaultianas, cada uma concebida para atender um fenômeno definido no curso de uma investigação específica.

É verdade que, em uma ocasião, em A Arqueologia do Saber, de 1969, Foucault empenhou-se em dar uma explicação geral de sua metodologia, e, neste sentido, de sistematizar e “fixar” seus conceitos. Mas esta tentativa deve ser considerada um fracasso. Não só o livro reformulou as ideias que ele supostamente apresentava, emendando-as no processo de exposição, mas, como uma declaração da teoria e da metodologia de Foucault, o livro tornou-se obsoleto logo após ter sido publicado. Por quê? Porque, assim que Foucault resumiu seu considerável trabalho histórico, suas novas pesquisas incitaram-no a revisar seus métodos e seus conceitos novamente, tornando, desse modo, redundante A Arqueologia (ver Dreyfus e Rabinow [1995]).5

Contudo, apesar desses ajustes e revisões pragmáticos, há uma preocupação contínua que direciona todas as histórias de Foucault, especialmente a partir de “Vigiar e Punir”, que é a ideia de usar a história como um meio de engajamento crítico com o presente – uma preocupação expressa em suas concepções de “genealogia” e “história do presente”. Uma vez que nenhuma dessas ideias é simples, e porque ambas têm sido retomadas por estudiosos que trabalham a penalidade contemporânea, leitores da “Revista Justiça e Sistema Criminal” podem considerar útil ter essas ideias, e suas metodologias associadas, elaboradas e explicadas.6 Nesse breve ensaio exegético, procuro explicar o que significa escrever uma “história do presente” e destacar os tipos de trabalho conceitual e metodológico que esta abordagem implica. Minha exposição distinguirá as obras

4 Para uma visão geral, ver os excertos colhidos em Foucault (2000). 5 cf. Gary Gutting: “A peculiaridade de Foucault como um historiador do pensamento repousa menos em

sua invenção de novos métodos do que em sua vontade de empregar quaisquer que sejam os métodos que pareçam necessários por sua matéria específica” (GUTTING, 2006, p. 14).

6 Para tentativas de se escrever uma “história do presente” no que diz respeito à criminologia e à pena, ver Garland (1992; 1994; [2008]; 2010), Rose (1999) e Harcourt (2011).

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arqueológicas de Foucault de suas genealógicas; contrastará a história do presente com a história convencional; e explicará a relação entre “genealogia” e “história do presente”. Mais importante, identificarei alguns aspectos despercebidos do método genealógico de Foucault, que envolvem a prévia especificação do problema de pesquisa a ser tratado, uma explicação descritiva do “dispositivo” dentro do qual o fenômeno é construído e experimentado atualmente, e uma específica “problematização” do fenômeno – todos os quais servem para guiar sua genealogia ao “diagnosticar” e definir “o presente” do qual ela é para ser uma história. Qualquer um que desejar adotar a abordagem de Foucault deve estar consciente do trabalho preliminar de diagnóstico, conceitualização e problematização do qual a efetiva genealogia necessariamente procede.

1 UMA HISTÓRIA DO PRESENTE

A ideia de uma “história do presente” soa paradoxal, em princípio, e, de certa forma, provocativa. Para estudiosos não familiarizados com (ou antipáticos a) o trabalho de Foucault, a expressão sugerirá uma forma de “presentismo”: um tipo de escrita histórica que aborda o passado utilizando os conceitos e os interesses do presente. E, naturalmente, tal abordagem, para os historiadores, implica um erro de método fundamental – o pecado mortal do anacronismo – na medida em que ela projeta valores e significados contemporâneos sobre um passado que pode ter sido constituído muito diferentemente. Mas Foucault não está ocupado com o “presentismo” Ele não está interpretando os arranjos sociais ou os significados culturais hodiernos de volta à história e alegando descobrir esses mesmos fenômenos em épocas anteriores com os mesmos significados e caráter que eles têm hoje. Tampouco Foucault está meramente fazendo o que a maioria dos historiadores muito autoconscientemente fazem, a saber, usando um interesse contemporâneo como estímulo para questionar o passado de novas maneiras. Escrever a história do presente é outra questão. Como Dreyfus e Rabinow observam. “Esta abordagem começa de forma explícita e autorreflexiva com um diagnóstico da situação atual. Há uma orientação contemporânea inequívoca e impertubável” ([1995, p. 132]). Ou, como Foucault explicou a um entrevistador em 1984: “Eu parto de um problema expresso nos termos correntes de hoje e eu tento resolver sua genealogia. Genealogia significa que eu começo minha análise a partir de uma questão disposta no presente” (FOUCAULT, 1988a, p. 262).

Meu palpite é que Foucault pretendia provocar. Uma vez, ele se apresentou para um público de historiadores dizendo “Eu não sou um historiador profissional: ninguém é perfeito” (MEGILL, 1987, p. 117). E ele certamente tencionava distinguir o tipo de projeto histórico com o qual ele estava comprometido das histórias-padrões escritas pela maioria

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dos historiadores.7 Então, deixe-me tomar alguns momentos para explicar o que se entende por essa ideia um tanto estranha e contraintuitiva.8

Embora haja algumas ocasiões anteriores nas quais Foucault explica que suas pesquisas históricas foram empreendidas no intuito de perturbar nossas concepções atuais, não é senão nos meados de 1970 que ele adotou o legado de Nietzsche e sua abordagem genealógica orientada para o presente.9 A expressão “história do presente”, e a concepção para a qual ela aponta, aparece primeiro no final do capítulo de abertura de Vigiar e Punir, de 1975 (FOUCAULT [2002]). Foucault escreve ali que ele passou a ver a prisão moderna como um aspecto da “tecnologia política do corpo”, não no curso do estudo da história penal, mas ao observar as muitas revoltas de prisioneiros que estavam ocorrendo no período contemporâneo – revoltas que eram, ele afirma, “ao nível dos corpos, contra o próprio corpo da prisão” (FOUCAULT [2002, p. 29]). O que estava em questão nessas revoltas, diz ele, não era se as prisões eram muito rudes, ou muito rudimentares. O que estava em jogo era a “materialidade [da prisão como] instrumento e vetor de poder” (FOUCAULT [2002, p. 29])10.

Essa conceitualização – ou “diagnóstico” – provocou Foucault a escrever uma explicação do nascimento da prisão moderna, como todos os seus investimentos políticos do corpo, e a escrevê-la com um propósito particular em mente. Seu objetivo era revelar algo importante – porém, oculto – em nossa experiência contemporânea; algo sobre nossa relação com as tecnologias de poder-saber que era mais claramente visível no cenário prisional que em outros lugares, mas que era, mesmo assim, um aspecto constitutivo, geral, dos indivíduos modernos e de suas experiências. Ele via a prisão como uma incorporação de uma racionalidade específica – um “panoptismo” de vigilância constante e regulação individualizada, próxima – que ele passou a ver como constitutiva de sociedades “disciplinares”, contemporâneas tal como a sua própria.

7 O trabalho de Foucault tem sido um tema de muita controvérsia e considerável mal-entendido entre historiadores: ver Megill (1987) e Goldstein (1994). Uma notável exceção é o colega de Foucault no Collège de France, o historiador Paul Veyne. Vide a entusiástica e esclarecida discussão sobre o método histórico de Foucault em Veyne ([2009]).

8 Para outras análises, ver Roth (1981) e Poster (1987/1988). Ver também History of the Present: A Journal of Critical History, disponível em: <www.historyofthepresent.org>.

9 Em 1967, Foucault falou de suas histórias como compromissos diagnósticos com o presente: “Ao tentar fazer um diagnóstico do presente no qual vivemos, nós podemos isolar como já pertencentes ao passado certas tendências que ainda são consideradas contemporâneas [...]”, apud Williams (2005).

10 No início da década de 1970, Foucault estava ativo no Groupe Information sur les Prisons (GIP) e ele atribuiu alguns dos insights de “Vigiar e Punir” a essa experiência. Ver também Foucault (1974). No entanto, a maioria dos temas desenvolvidos neste livro já está presente, até certo ponto, em trabalhos anteriores, como “História da Loucura na Idade Clássica” e “O Nascimento da Clínica” (FOUCAULT, [2010]; [2008a]).

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Por que escrever uma história da prisão? Ele pergunta. “Por puro anacronismo? Não, se entendemos com isso fazer a história do passado nos termos do presente. Sim, se entendermos com isso fazer a história do presente”. (FOUCAULT [2002, p. 29]). Assim, “Vigiar e Punir” é apresentado ao leitor como uma “história do presente”, mas Foucault não se aprofunda no significado desse termo, seja nesse livro ou em outro lugar. No entanto, nós podemos inferir desta análise do livro um pouco do que envolve uma “história do presente” e como ela se diferencia da análise histórica convencional. Nós também podemos inferir algo do significado do termo a partir de uma mudança explícita na autocompreensão acadêmica de Foucault, que ele realizou na mesma época: a saber, a mudança da “arqueologia” pela “genealogia.” Eu começo por descrever essa mudança.

2 ARQUEOLOGIA

Antes da publicação de “Vigiar e Punir”, Foucault repetidamente descreveu seu trabalho como um tipo de “arqueologia”. De fato, ele utiliza esse termo distintivo em vários títulos de livros, bem como no estudo metodológico – “A Arqueologia do Saber” – que descreve sua distinta abordagem de fazer o que ele denominou de “a história dos sistemas de pensamento” (e o que nitidamente diferencia seu trabalho da “história das ideias”, como convencionalmente realizado). Portanto, nós temos O nascimento da clínica: uma arqueologia da percepção médica, de 1963; As palavras e as coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas, de 1966; e A arqueologia do saber, de 196911. E o título que ele inicialmente planejara para o livro que se tornou História da sexualidade I: A vontade de saber fora “Sexo e verdade: Uma arqueologia da psicanálise”12.

Arqueologia foi o termo de Foucault para um método de pesquisa e análise na história do pensamento que ele próprio havia desenvolvido: um método que escava o passado, descobrindo os traços discursivos de distintos períodos históricos e os remontando, como tantos distintos estratos ou camadas, cada um exibindo seu próprio padrão estruturado de afirmações, sua própria ordem de discurso. Em uma série de trabalhos, culminando em As palavras e as coisas, ele submeteu os discursos dos períodos Renascentista, Clássico e Moderno, particularmente os discursos das ciências humanas, a um tipo de análise

11 NT: No texto original, Garland refere as datas das primeiras traduções em inglês: “The Birth of the Clinic: An Archaeology of Medical Perception” (1973); “The Order of Things: An Archaeology of the Human Sciences” (1970) e “The Archaeology of Knowledge” (1972).

12 Ver Foucault ([1999b, p. 122]), onde ele escreve: “A história do dispositivo da sexualidade, assim como se desenvolveu a partir da época clássica, pode valer como arqueologia da psicanálise”.

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kantiana que visava revelar as condições epistemológicas de possibilidade – o “a priori histórico” – sobre as quais esses discursos eram baseados.13 Para cada período histórico e cada “nível arqueológico” havia, ele argumentou, uma estrutura epistemológica distinta – uma “episteme” – que governava como pensadores pensariam, como enunciados eram feitos, e como discursos eram formados, sem intrometer-se diretamente na consciência dos próprios pensadores. Como Foucault afirmou numa entrevista, em 1971:

O que eu estou tentando fazer é compreender os sistemas implícitos que determinam nosso comportamento mais familiar sem que o saibamos. Eu estou tentando descobrir sua origem para mostrar sua formação, a restrição que eles nos impõem; eu estou, portanto, tentando me colocar a uma distância deles e mostrar como alguém poderia escapar. (FOUCAULT apud SIMON, 1971, p. 201).

E outra vez: “Meu problema é essencialmente a definição dos sistemas implícitos nos quais nos encontramos presos: o que eu gostaria de entender é o sistema de limites e exclusão que nós praticamos sem o saber; eu gostaria de tornar aparente o inconsciente cultural [...]” (FOUCAULT apud SIMON, 1971, p. 198).

Um exemplo concreto pode ajudar a esclarecer o que significa tudo isso. Em “As palavras e as coisas” (originalmente intitulado Les mots et les choses), com base em uma detalhada e compreensiva análise de uma série de discursos que se desenvolveram na Europa do século XVI em diante e que eventualmente dariam origem às ciências humanas modernas, Foucault faz uma série de alegações. Ele argumenta, em especial, que as formas de conhecimento características do Renascimento, aquelas características do período Clássico, e aquelas características do período Moderno, eram, cada uma, estruturalmente distintas, envolvendo diferentes “epistemes” e diferentes modos de ordenar o pensamento e produzir o discurso. A primeira era organizada em torno de “semelhanças” entre coisas capturadas na linguagem; a segunda era baseada em “representação” por meio de um discurso que refletia o mundo; e a terceira era organizada em torno da figura do “homem”, uma figura que se coloca simultaneamente dentro e fora do conhecimento, como sujeito que conhece e objeto do conhecimento.

Os discursos sobre a vida, a linguagem e o trabalho que se desenvolveram ao longo do tempo, e que eventualmente deram origem às modernas Biologia, Linguística e Economia, são descritas para cada uma dessas três épocas e, de acordo com a explicação de Foucault, demonstram ter mais em comum uns com os outros dentro de cada um dos

13 Sobre o a priori histórico, ou “a história daquilo que torna necessário uma certa forma de pensamento”, Foucault, apud Megill (1979:459). Foucault utiliza o termo “epistemes” por todo “As palavras e as coisas “e o discute brevemente em “A arqueologia do saber”.

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diferentes períodos epistemológicos do que cada um tinha com os discursos sobre o mesmo tema que os sucederam ou os precederam. Em outras palavras, os padrões estruturais que ligavam os diferentes discursos dentro dos períodos Renascentista, Clássico ou Moderno eram mais fortemente aparentes do que as continuidades internas que caracterizaram qualquer um desses discursos na medida em que se desenvolveram no tempo. Similaridades sincrônicas através das disciplinas no mesmo período de tempo eram mais aparentes que similaridades diacrônicas dentro das disciplinas ao longo do tempo.

Segundo Foucault, essa notável constatação seria melhor entendida ao se colocar uma forte estrutura de pensamento subjacente – uma ordem de palavras e coisas – que formataram discurso e experiência em um período particular, mas que foi sujeita a transformações fundamentais e descontinuidades históricas, levando à emergência de novos sistemas de pensamento e novas maneiras de experimentar o mundo. Em cada era histórica, uma poderosa “episteme” ou estrutura geral de pensamento impõe sua padronização sobre discursos daquele período, e assim o faz de formas que são mais vigorosas do que o tema ou a matéria – vida, linguagem, trabalho – que liga cada um desses distintos discursos enquanto cada qual se desenvolve ao longo do tempo. A distinta tarefa do arqueólogo, como Foucault o descreve, não é traçar processos de mudança – a tarefa do historiador convencional – mas sim distinguir essas épocas históricas e traçar a lógica diferencial de cada uma de suas estruturas. Uma escavação de discursos específicos de cada um desses períodos históricos parece, desse modo, como tantos estratos arqueológicos, cada qual nivelado sobre o outro e revelando seus próprios padrão e estrutura distintos.

Nessa fase arqueológica de seu trabalho, as análises de Foucault, por toda sua originalidade e distinção, estão reconhecidamente participando de uma consagrada tradição francesa na história da ciência tal como desenvolvida por Gaston Bachelard, Georges Canguilheim e Louis Althusser: uma tradição que caracteristicamente enfatiza a existência de “problemáticas” estruturalmente distintas ou enquadramentos conceituais; descontinuidades históricas radicais ou “rupturas epistemológicas”; e estilos distintos de raciocínio ou “racionalidades”. Superficialmente, as ideias de Foucault também se assemelham àquelas de Thomas Kuhn ([1982]), cuja famosa teoria das “revoluções de paradigmas” na história da ciência igualmente salienta a descontinuidade e a diferença estrutural. Contudo, enquanto Kuhn foca em modelos científicos e os entendimentos compartilhados que atrelam comunidades de cientistas em processos sociais de aculturação e replicação, as análises de Foucault concentram-se na operação inconsciente de estruturas epistemológicas historicamente específicas que funcionam como as impensadas condições de possibilidade de específicas maneiras de pensar e de gerar afirmações.

“Vigiar e Punir” representa uma ruptura com este trabalho arqueológico anterior e a tradição da história da ciência da qual ele emergiu. Vão-se a “arqueologia” com suas

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implicações estruturalistas e sua ênfase na descontinuidade e, em seu lugar, é estabelecido um conceito novo, mais nietzschiano: aquele da genealogia14. A partir de meados da década de 1970, Foucault designou seu trabalho como genealógico, como uma nova “genealogia da moral”, sinalizando, desse modo, seu novo objetivo e também sua dívida com o trabalho de Friedrich Nietzsche15. E é nessa abordagem genealógica histórico-crítica que nós podemos apreciar melhor o que Foucault exprime quando ele fala de escrever uma “história do presente”.

A virada de Foucault à genealogia e à história do presente apareceu relativamente tarde em sua carreira, sucedendo a quatro livros importantes sobre um modelo “arqueológico” bastante diferente. Todavia a reestruturação do pensamento de Foucault é, de algum modo, menos radical e abrupta do que parece, em princípio. Devemos notar, por exemplo, que o objetivo “genealógico” de usar a pesquisa histórica para perturbar concepções contemporâneas e contribuir para provocar mudança também teve lugar em suas arqueologias, ainda que tenha sido muito menos proeminente. Assim, por exemplo, em “O nascimento da clínica”, ele observa que: “A pesquisa aqui empreendida implica [...] o projeto deliberado de ser ao mesmo tempo histórica e crítica, na medida em que se trata [...] de determinar as condições de possibilidade da experiência médica, tal como a época moderna a conheceu” (FOUCAULT [2008a, p. XVI]). Já em “As Palavras e as Coisas” ele escreve: “Tentando trazer à luz esse profundo desnível da cultura ocidental, é a nosso solo silencioso e ingenuinamente imóvel que restituímos suas rupturas, sua instabilidade, suas falhas; e é ele que se inquieta novamente sob nossos passos.” (FOUCAULT [1999, p. XXII]). Em 1971, quando estava trabalhando em “A Ordem do Discurso”, Foucault contou a um entrevistador:

Eu estava interessado [nos temas de suas arqueologias] porque eu via neles maneiras de pensar e se comportar que ainda estão conosco. Eu tento expor, baseado em suas fundação e formação históricas, aqueles sistemas que ainda são nossos hoje, e no interior dos quais nós estamos presos. É uma questão, basicamente, de apresentar uma crítica de nosso próprio tempo, fundamentado em análises retrospectivas (SIMON, 1971, p. 192).

Assim, apesar de suas outras diferenças, arqueologia e genealogia compartilham certo objetivo crítico com respeito ao presente, embora cada método busque seus objetivos histórico-críticos de maneira distinta. A arqueologia pretende apresentar a ordem estrutural,

14 A aula inaugural de Foucault no Collège de France já havia anunciado esta mudança ([1999a]). Ver também “Nietzsche, a genealogia e a história”, que data do mesmo ano (reeditada em Foucault [1984]).

15 Em 1975, Foucault diz “se eu quisesse ser pretensioso, eu daria ‘a genealogia da moral’ como o título geral ao que estou fazendo” (FOUCAULT 1980, p. 15).

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as diferenças estruturais e as descontinuidades que demarcam o presente de seu passado. A genealogia, por sua vez, visa expor a “proveniência” e como as contingências deste processo continuam a formatar o presente.

Foucault continuou a buscar esse engajamento crítico com o presente até o final de sua vida, mesmo quando seus estudos se concentraram na Antiguidade Clássica e na primitiva igreja cristã. Porém, enquanto seus estudos genealógicos do final da década de 1970 eram de inspiração explicitamente nietzschiana, no período final de sua vida Foucault retorna a suas raízes kantianas, citando o artigo de Kant “O que é o esclarecimento?” como um texto fundador na tradição filosófica que questiona “o que acontece hoje? O que acontece agora? O que é esse ‘agora’ dentro do qual estamos todos, e que é o lugar, o ponto [do qual] escrevo?” (FOUCAULT [2010a, p. 12]). Foucault descreve seu trabalho como preocupado em entender nossa realidade presente e as formas de verdade e subjetividade às quais o presente dá causa:

O que é a atualidade? Qual é o campo atual das nossas experiências? [...] Não se trata, nesse caso, de uma analítica da verdade. Tratar-se-ia do que poderíamos chamar de uma ontologia do presente, uma ontologia da atualidade, uma ontologia da modernidade, uma ontologia de nós mesmos” (FOUCAULT [2010a, p. 21]).

3 GENEALOGIA

Então, a genealogia e a história do presente não eram totalmente novos interesses no trabalho de Foucault; mas o que elas implicam exatamente? A “genealogia” era, para Foucault, um método para escrever uma história crítica: uma maneira de utilizar materiais históricos para produzir uma “revalorização de valores” no período presente. A análise genealógica delineia como práticas e instituições contemporâneas surgiram de específicos conflitos, lutas, alianças e exercícios de poder, muitos dos quais estão esquecidos atualmente. Desse modo, ela permite que o genealogista sugira – não por meio de argumento normativo, mas, em vez disso, por um resgate histórico de associações e linhagens problemáticas – que instituições e práticas que nós atualmente avaliamos e tomamos como certas são, em verdade, mais controversas, ou mais “perigosas” do que ao contrário parecem.

A questão da genealogia não é uma busca por “origens”. Tanto Foucault quanto Nietzsche estão bem cientes da lacuna que separa os usos e significados originais de um

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fenômeno dos sentidos e propósitos posteriores que ele adquire.16 Ela é, antes, como seu nome sugere, uma busca por proveniência. A ideia não é conectar o fenômeno hodierno a sua origem, como se alguém estivesse mostrando um edifício a repousar sobre suas fundações, um edifício solidamente enraizado no passado e confiantemente projetado ao futuro. Em vez disso, a ideia é traçar o processo errático e descontínuo pelo qual o passado se tornou o presente: um trajeto descendente, amiúde aleatório, que sugere a contingência do presente e a abertura do futuro. A genealogia é, neste sentido, “história efetiva” porque sua intenção é desafiar o presente através da revelação das relações de poder sobre as quais ele depende e os processos contingentes que o trouxeram à existência.17 Como Foucault ([2003, p.21]) escreve: “A pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo.”

O objetivo da genealogia é traçar as lutas, os deslocamentos e os processos de redefinições a partir dos quais emergiram práticas contemporâneas, e mostrar as condições históricas de existência das quais dependem as práticas atuais.18 Ela também se interessa, ao menos em alguns usos de Foucault, pelas históricas lutas de poder e seus efeitos sobre o corpo. A genealogia considera o processo de proveniência como o resultado de lutas de poder e batalhas por dominação, o uso e o significado. A atualidade, portanto, foi formatada por complexas lutas e relações de poder: “A genealogia restabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência antecipadora de um sentido, mas o jogo casual das dominações” (FOUCAULT [2003, p. 23]).

Finalmente, a genealogia também se interessa pelo corpo, que é conceitualizado como uma superfície material, como uma carne em que as microfísicas do poder deixam suas marcas. Esse aspecto é especialmente salientado em “Vigiar e Punir”: “O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos [...]. A genealogia, como análise da proveniência, está portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo.” (FOUCAULT [2003, p. 22]).

16 “[...] pois não há princípio mais importante para toda ciência histórica do que este, [...] o de que a causa da gênese de uma coisa e a sua utilidade final, a sua efetiva utilização e inserção em um sistema de finalidades, diferem toto coelo [totalmente]; de que algo existente, que de algum modo chegou a se realizar, é sempre reinterpretado para novos fins, requisitado de maneira nova, transformado e redirecionado para urna nova utilidade, por um poder que lhe é superior [...]” (Nietzsche [2007, p. 65-66]).

17 Ver Dean (1994).18 A noção de Foucault sobre uma “superfície de emergência” descreve o conjunto de condições históricas a

partir das quais emergem práticas específicas. Assim, por exemplo, as penitenciárias modernas formaram a superfície de emergência para a ciência da criminologia e o ensino clínico foi a superfície de emergência que tornou possível a moderna medicina positiva.

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Ao reconectar práticas contemporâneas (ou corpos contemporâneos) com as lutas históricas e os exercícios de poder que modelaram seus caracteres, o genealogista leva--nos a pensar mais criticamente sobre o valor e o significado desses fenômenos. Como Foucault expôs, em 1979: “a experiência tem me ensinado que a história de várias formas de racionalidade é, por vezes, mais efetiva para abalar nossas certezas e nosso dogmatismo do que a crítica abstrata” (FOUCAULT, 1988, p. 83). E, novamente, no mesmo ano: “pode haver certo número de efeitos políticos importantes, podemos dizer preciosos, em fazer análises históricas [...] O problema é deixar agir o saber do passado sobre a experiência e a prática do presente” (FOUCAULT [2008c, p. 180-181]).

É dentro desse enquadramento genealógico que opera uma “história do presente”. Uma história do presente começa por identificar uma prática atual que é tanto tomada por certa como ainda, em certos aspectos, problemática ou de certo modo ininteligível – a prisão reformadora, na década de 1970, por exemplo, ou a pena de morte americana, hoje –, e, então, procura traçar as lutas de poder que a produziram19. A genealogia não é motivada por uma inquietação histórica em entender o passado – embora quaisquer afirmações históricas que se faça devam ser válidas e verificáveis20 –, porém, antes, por um interesse crítico em compreender o presente. Ela objetiva traçar as forças que deram causa as nossas práticas atuais e identificar as condições históricas das quais elas ainda dependem. Sua questão não é pensar historicamente sobre o passado, mas, em vez disso, usar materiais históricos para repensar o presente. Como Michael Roth (1981, p. 43) explica, “Escrever uma história do presente significa escrever história no presente; escrever autoconscientemente num campo de relações de poder e de luta política.” Ou, como Nietzsche – o principal crítico da história convencional – insistiria, significa engajar-se com as forças ativas no presente, em vez de preocupar-se com os inanimados antiquários de outra época.21

19 Foucault ([2002]) trata do primeiro. Garland (2010) trata do segundo. Ian Hacking (1990) implementa um método similar de análise histórica no intuito de dar sentido a conceitos filosóficos que, em nossas discussões contemporâneas, parecem opacos ou ininteligíveis. Sua hipótese – que deve tanto a Wittgenstein quanto a Foucault – é de que muitos de nossos enigmas filosóficos são o resultado de mudanças históricas, em significado e contexto: somente ao traçar seu desenvolvimento genealógico nós podemos dar sentido a esses enigmas contemporâneos. Ver também Skinner (2010) sobre o conceito do estado e dos complicados processos históricos por meio dos quais ele se desenvolveu ao longo do tempo.

20 Como observa Robert Castel (1994, p. 252), numa discussão sobre o método genealógico de Foucault: “O direito de escolher os materiais de alguém e de os reorientar à luz de um assunto atual, de os dispor em categorias diferentes, por exemplo – não é uma permissão para reescrever a história. Cometer equívocos históricos, que podem ser entendidos como afirmações sobre a história que um historiador poderia refutar, não é um direito”.

21 Ver Megill (1979, p. 492).

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Nós podemos ilustrar essa abordagem da “história do presente” e sua diferença da historiografia padrão por meio de dois exemplos extraídos de “Vigiar e Punir”: (i) o tratamento que Foucault dá ao Panóptico de Jeremy Bentham; e (ii) o lugar que Foucault confere às “disciplinas” em sua genealogia da prisão moderna.

4 O PANÓPTICO – NA HISTÓRIA E NA GENEALOGIA

Ao projeto de Jeremy Bentham para uma prisão panóptica (uma casa de inspeção anular com celas abertas e iluminadas à contraluz, dispostas num perímetro circular em torno de uma torre de vigilância central), primeiramente publicado na última década do século XVIII, é dado um lugar central na explicação de Foucault.22 “Vigiar e Punir” trata o Panóptico como o modelo, o projeto programático, não só para as penitenciárias do final do século XVIII e início do século XIX, mas para a prisão moderna como tal – e, certamente, para a moderna sociedade “panóptica”, em geral. Na análise de Foucault, o projeto do Panóptico de Bentham é um elemento histórico de significado sem paralelo.

Em resposta à argumentação de Foucault, historiadores têm levantado uma série de objeções. Como uma questão de fato histórico, salientam eles, a prisão projetada por Bentham jamais foi construída porque o governo britânico considerou-a impraticável e excessivamente cara. Eles insistem que Bentham quase faliu em seus esforços para realizar seu plano, que seu projeto radical foi raramente copiado por construtores de prisões em outros lugares, e que, em geral, Foucault dá demasiada importância ao que os contemporâneos de Bentham consideraram como um projeto excêntrico que acabou em fracasso23. Contudo, essas críticas – ainda que bastante válidas em seus próprios termos – perdem o ponto. De fato, há um tipo de equívoco categórico em tratar o estudo de Foucault como um trabalho de pesquisa histórica convencional que simplesmente acrescenta ao que já sabemos da historiografia prisional existente, quando, em verdade, o tratamento dos materiais históricos feito por Foucault é completamente diferente em seu enquadramento e sua intenção.

O objetivo de Foucault não é a preocupação padrão dos historiadores de estabelecer o significado e a sorte do projeto de Bentham, como compreendido dentro de seu contexto social e intelectual original. Em vez disso, seu propósito é demonstrar o papel que o Panóptico desempenhou em formatar nosso presente. Como insiste Foucault, na história

22 Bentham 1843 [2008].23 Ver Sempel (1993), Perrot (1980) e Himmelfarb (1968). Para uma interessante discussão, ver Smith (2008).

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convencional, “só se reconhece [no Panoptismo] uma pequena utopia estranha, o sonho de uma maldade [...] E, entretanto, tinha-se aí a fórmula abstrata de uma tecnologia bem real, a dos indivíduos” ([2002, p. 185]). E, em outro lugar em “Vigiar e Punir”, ele escreve que

O esquema panóptico, sem se desfazer nem perder nenhuma de suas propriedades, é destinado a se difundir no corpo social; tem por vocação tornar-se aí uma função generalizada. [...] O panoptismo é o princípio geral de uma nova “anatomia política” cujo objeto e fim não são a relação de soberania, mas as relações de disciplina ([p. 171-172]).

E, novamente: “[...] pode-se então falar, em suma, da formação de uma sociedade disciplinar nesse movimento que vai das disciplinas fechadas, espécie de ‘quarentena’ social, até o mecanismo indefinidamente generalizável do ‘panoptismo’” ([p. 178]). Como Robert Castel acertadamente observa,

“[…] não é relevante contestar o uso que Foucault faz do Panóptico de Bentham pela razão que [Foucault] conferiu escassa atenção à ‘vida real’ nas prisões do século XIX. O intuito de Foucault não é descrever essa ‘vida real’, mas revelar um programa para controlar pessoas em um espaço fechado” (CASTEL, 1984, p. 242).

O significado e a importância que Foucault atribui aos seus objetos de estudo (nesse caso, o Panóptico, mas seu tratamento da tecnologia de confissão em sua “História da Sexualidade I” levanta as mesmas questões) não são aqueles do período histórico nos quais essas práticas emergiram primeiro, porém, enfaticamente, aqueles do presente. Tais práticas podem ter sido marginais na vida social e política dos séculos XVII e XVIII, mas Foucault considera-as como absolutamente centrais às genealogias e ao funcionamento de regimes de poder-saber que operam no presente.24 Para Foucault, os princípios de observação e individualização, visibilidade e disciplina, poder e saber contidos no projeto de Bentham oferecem uma rede de inteligibilidade para compreender como o poder opera em nossa sociedade atual. O historiador do presente não comete o pecado do anacronismo ao ler o presente sobre o passado. Antes, ele ou ela está comprometido com o projeto histórico-crítico de identificar traços do passado (lutas de poder, formas de controle, alianças e associações históricas) e sua operação contínua hoje.25

24 Ver Castel (1994, p. 240) para uma discussão sobre a prática de “problematização” de Foucault.25 “A maioria dos tópicos que ele analisa era constituída de fatos periféricos e relativamente menores na

época antiga; ele os escolheu devido a seus intereses atuais e porque estes tópicos mais tarde, até certo ponto, se confundiram com formas de poder” (Dreyfus e Rabinow [1995, p. 133]).

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5 O APRISIONAMENTO E AS DISCIPLINAS

Um segundo exemplo dos efeitos produzidos por uma “história do presente” pode ser visto na distinta explicação de Foucault sobre os processos genealógicos que deram origem à prisão moderna. Estudos históricos convencionais sempre admitiram que as origens do movimento penitenciário do final do século XVIII podem ser traçadas às ideias penológicas dos reformadores do período iluminista, tais como Beccaria, Mably, Le Peletier, e Servan, ou então à influência de instituições custodiais do início da era moderna, como a holandesa Rasphuis, a inglesa Bridewell e a prisão do Vaticano (ver, por exemplo, Morris e Rothman [1995]). No entanto, a interpretação de Foucault das origens históricas rompe com essas explicações padrões e as põe em xeque. Primeiro, ele demonstra que as propostas reformadoras dos ideólogos da época ilustrada não eram, de modo geral, voltadas à construção de prisões e penitenciárias. Ao contrário, a maioria dos reformadores viam o aprisionamento com grande suspeita, preferindo sanções não privativas de liberdade, como multas, ou trabalhos públicos, ou outras penalidades “análogas” destinadas a educar os espectadores ao punir infratores de maneiras que espelhassem os crimes que eles cometeram. E ele insiste que, antes de sua extraordinária expansão no final do século XVIII, a prisão

“não era, com se imagina, um castigo que já estivesse solidamente instalado no sistema penal, logo abaixo da pena de morte, e que teria naturalmente ocupado o lugar deixado vago pelo desaparecimento dos suplícios. Na realidade a prisão [...] tinha apenas uma posição restrita e marginal no sistema das penas” (FOUCAULT [2002, p. 97]).

Que o aprisionamento tenha rapidamente se tornado a sanção penal preferida nos códigos penais reformados de nações ocidentais no início do século XIX é, portanto, um evento que não pode ser explicado por referência à influência de ideias iluministas, nem por um processo de simples substituição, sucedendo ao declínio de punições corporais e capitais. Nem é a aparência da prisão moderna meramente uma excrescência das formas de confinamento do início da modernidade, uma vez que a essas instituições anteriores faltavam características-chave do aprisionamento moderno, tais como o confinamento celular, vigilância cerrada e disciplina individualizada. Como, então, pode o surgimento da prisão ser explicado?

Aqui Foucault volta nossa atenção para além de ideias e argumentos intelectuais, em direção ao domínio de práticas, técnicas e modos específicos de exercitar o poder e adquirir saber. E, em forte contraste com as explicações históricas convencionais que apontam as origens “penológicas” da prisão, Foucault conecta o surgimento das técnicas de disciplina da prisão moderna que haviam sido desenvolvidas em uma variedade de contextos não penais, tais como acampamentos militares, salas de aula, mosteiros e oficinas. A prisão moderna, argumenta Foucault, foi, desde o princípio, uma instituição disciplinar, condensando no interior de seu espaço fechado toda uma grande quantidade de práticas

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disciplinares, como individualização, vigilância, exame, treinamento, adestramento, correção e normalização. Em sua explicação genealógica, a prisão moderna está ligada não com ideias iluministas ou com concepções progressistas de direito e justiça, mas, antes, com o exercício de poder e saber sobre corpos no espaço e com um conjunto de práticas disciplinares que correspondiam a uma “anatomia política do corpo”. E o efeito desse deslocamento é produzir uma mudança em nossa compreensão da instituição contemporânea. Em vez de uma instituição reformatória, humana, que incorpora uma sensibilidade ilustrada, moderna, e marca um avanço progressista sobre as punições mais violentas do antigo regime, a genealogia de Foucault sugere um conjunto de práticas disciplinares, saberes normalizadores e poderes capilares que não só “pune menos” como “pune melhor” (FOUCAULT [2002, p. 70]). O leitor da história do presente de Foucault é presenteado com uma impressão dissonantemente diferente da prisão contemporânea – uma que é mais crítica da instituição, mais consciente das insidiosas relações de poder--saber que ela contém, e mais sintonizada aos perigos que estas implicam.

O que a genealogia de Foucault possibilita, em suma, é uma revalorização do aprisionamento como uma prática social contemporânea. E se poderia mesmo reivindicar certa efetividade crítica a essa explicação (para melhor ou para pior), uma vez que os anos imediatamente subsequentes à publicação do livro de Foucault viram um descrédito generalizado da prisão reformatória e de todo o projeto de penologia correcional26.

DIAGNÓSTICO, CONCEITUAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO

Um dos aspectos mais cruciais da prática acadêmica são a identificação e a especificação de problemas de pesquisa produtivos. E, ainda que esse ponto seja raramente notado, muito da eficácia crítica das genealogias de Foucault é atribuível a sua especificação inicial do problema a ser explicado. As seções iniciais de seus livros – as quais estão entre suas passagens mais notáveis e memoráveis – são geralmente consagradas a sua tarefa de identificar o problema e descrever como ele pretende tratá-lo. Por vezes, ele estabelece o fenômeno a ser explicado por meio de uma impressionante justaposição histórica que mostra como concepções modernas diferem daquelas de épocas anteriores (“O nascimento da clínica”; “Arqueologia do saber”; “Vigiar e Punir”). Em outras ocasiões, ele começa por apresentar a explicação histórica convencional em termos bastante persuasivos, somente

26 A história do movimento contra a penologia correcional é, evidentemente, muito mais complexa, e a crítica de Foucault foi apenas uma entre muitas. Para um relato mais completo, ver Garland ([2008]).

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para dar meia-volta e a declarar equivocada, ou, pelo menos, radicalmente limitada em seu poder explanatório (por exemplo, “História da Sexualidade I”). Em cada caso, a constatação do problema feita por Foucault – o que se poderia chamar de seu trabalho preliminar de “diagnóstico” e “problematização” – é, em si, distinta, incorporando uma série de afirmações analíticas e interpretações teóricas.

Vimos como, em “Vigiar e Punir”, Foucault iniciou uma análise crítica da prisão correcional moderna, vista não como uma conquista progressista, mas como uma máquina para disciplinar corpos e normalizar almas. Outro bom exemplo é o problema colocado no começo de seu projeto “História da Sexualidade”, interessado nas normas médicas, legais e sociais que emergiram no período contemporâneo como muitas formas de regular (ou desregular) a sexualidade. Para a maioria dos comentadores, a cultura pós 1960 de expressão sexual aberta foi um rompimento libertário com a repressividade vitoriana, uma abertura de possibilidades humanas e um percurso vital para a autenticidade individual. Depois de séculos de censura, silenciamento e repressão, homens e mulheres ocidentais estavam agora encorajados – por especialistas médicos e psicológicos, autoridades culturais, e reformas legais – a admitir seus desejos sexuais, não obstante “desviantes”, e a aceitar sua identidade sexual, fosse homossexual ou heterossexual. E na interpretação convencional amplamente sustentada, esse novo regime sexual foi uma marca de progresso e libertação: uma libertação do desejo individual quanto ao poder repressivo, uma reconciliação há muito adiada entre sexo e verdade.

A visão das coisas de Foucault é bastante diferente. Em vez de ver esses desenvolvimentos como libertários e empoderadores, ele os considera como produtos de um aparato de poder-saber que tem estado em processo de formação e expansão desde o século XIX. Os poderes normalizantes desse aparato impõem-nos a exigência insistente, multiforme, que nós coloquemos o sexo no discurso, que confessemos, que consideremos nossas preferências sexuais como, de algum modo, constitutivas de nossas individualidades, e que busquemos nossa identidade sexual a serviço de autenticidade e verdade. Isso corresponde a um imperativo generalizado de que nós devemos falar de nossas identidades sexuais – e, assim, possibilitar que o sexo no discurso opere como uma correia de transmissão para o exercício de poder e saber –, um imperativo que toma uma variedade de formas específicas, variando desde comandos legais à recomendação de especialista e à excitação corporal e psicológica (FOUCAULT, 1999b). Em vez de ver o contemporâneo regime cultural como libertário, Foucault vê a nova sexualidade como uma elaborada armadilha, uma fixação sexual, e ele embarca em sua pesquisa genealógica com o intuito de explicar como esse estranho regime passou a existir.

Se cuidadosamente prestarmos atenção à análise de Foucault, nós descobrimos que sua avaliação diagnóstica de nossa experiência contemporânea da “sexualidade” envolve

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dois elementos cruciais, cada um dos quais ele investigaria posteriormente por meio de investigações genealógicas. O primeiro é sua especificação de um aparato de regulação através do qual nossa atual experiência da sexualidade é construída e experimentada – um complexo conjunto de normas, saberes, relações de poder e práticas que ele descreveu como um “dispositivo”.27

Essa ideia de um “dispositivo”, que é realmente muito crucial para o modo de análise de Foucault, é comumente traduzida como “aparato”, embora seu significado seja melhor apreendido por termos como “regime de poder-saber” ou um “conjunto regulatório”. Eis como o próprio Foucault descreve a ideia:

O que estou tentando selecionar com esse termo [dispositivo] é um conjunto completamente heterogêneo formado por discursos, instituições, formas arquitetônicas, decisões regulatórias, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas – enfim, tanto o dito quanto o não dito. Tais são os elementos do aparato. O aparato em si é o sistema de relações que pode ser estabelecido entre esses elementos (FOUCAULT, 1980, p. 194).

E eis como ele descreve o dispositivo específico que governa nossa atual experiência do sexo:

A sexualidade é o nome que pode se dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder. ([FOUCAULT, 1999b, p. 100]).

O segundo elemento da análise preliminar de Foucault é sua identificação de uma “problematização” historicamente específica, o que quer dizer uma identificação de como um fenômeno específico – nesse caso, “sexo” – passou a ser considerado como um tipo específico de problema para autoridades específicas em um ponto específico no tempo. Eis como ele inicia esta formulação:

O problema é esse: como é que numa sociedade como a nossa, a sexualidade não é simplesmente um meio de reproduzir a espécie, a família e o indivíduo, não apenas um meio de obter prazer e fruição? Como a sexualidade passou a ser considerada o lugar privilegiado em que nossa ‘verdade’ mais profunda é lida e manifesta?” (FOUCAULT, 1977a, p. 152).

27 Em “Vigiar e Punir”, o dispositivo que Foucault identifica é o “atual complexo científico-judiciário onde o poder de punir se apoia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade” (2002, p. [23]), e a questão que ele coloca é: por que a época moderna adota tão entusiasticamente a prisão quando, como uma instituição correcional, ela sempre foi um fracasso?

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Apresentados esses insights analíticos, sua investigação genealógica adquire um objeto e uma direção claros: “o que eu gostaria de estudar”, escreve ele, “é a soma total desses mecanismos que, em nossa sociedade, convidam, incitam e forçam alguém a falar de sexo” (1988b, p. 112). E, se a “História da Sexualidade” funciona brilhantemente como uma história do presente, como eu acredito que o faça, isso ocorre, em grande medida, por causa dessa análise inicial – uma análise formada no presente sobre o presente. O trabalho histórico da genealogia é, portanto, dependente, de tal modo que tem sido raramente reconhecido, de uma explicação anterior, crítica, que estabelece o problema a ser explicado e aponta o caminho as suas mais prováveis soluções. Como sempre, o registro histórico cede até seus segredos somente àqueles que sabem precisamente como perguntar.

O ponto que eu quero enfatizar aqui é que as genealogias de Foucault têm, como seus pontos de partida, algumas observações bastante concretas e especificamente críticas sobre o presente, e, mais particularmente, sobre o objeto de estudo do analista enquanto é construído e experimentado no presente. Essas genealogias começam com o diagnóstico de certo desconforto ou certa confusão sobre práticas ou instituições que outros tomam como certas. E as investigações que elas seguem são projetadas para atender aquela confusão. Neste sentido, uma história do presente sempre envolve um distanciamento crítico do presente, uma descrição analítica do dispositivo dentro do qual o objeto de estudo é construído e experimentado no presente e uma problematização específica que vê aquele objeto como intrigante de modo que possa se tornar menos enigmático por meio da investigação histórica. Sem esse momento inicial, crítico, e as teorizações que ele implica, o projeto genealógico, como entendido por Foucault, simplesmente não pode prosseguir.

A utilização por Foucault do método genealógico e sua escrita de “histórias do presente” demonstram como a pesquisa histórica pode servir a instituições contemporâneas de maneiras que são fortemente críticas e reveladoras (os efeitos políticos que ele objetivou ocasionar são, é preciso dizer, uma outra questão, uma vez que o saber, ainda que criticamente desejado, logo escapa do controle de seu criador e tem consequências que são formadas por toda sorte de outras forças e contingências). Quarenta anos depois da publicação original de “Surveiller et Punir”, nossas práticas e instituições penais contemporâneas clamam por novas genealogias e renovadas críticas históricas. O presente ensaio é proposto na esperança de encorajar e facilitar esse trabalho urgentemente necessário.

*Esta é uma versão substancialmente revisada e expandida de uma conferência

que eu apresentei na Universidade de Ferrara, em 16 de maio de 2013, como parte de um colóquio sobre história do direito e criminologia. Sou grato ao meu anfitrião, Professor Michele Pifferi, e aos outros participantes do colóquio. A versão da palestra foi subsequentemente publicada em Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico modern. v. 42. Firenze: Giuffrè Editore, 2013. p. 43-57.

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RESUMEN

El trabajo pretende poner de manifiesto que determinadas interpretaciones de la comisión por omisión vulneran el principio de legalidad al extender la responsabilidad más allá de donde permite la norma. La comisión por omisión se fundamenta en una equivalencia de significado entre la omisión y las conductas descritas en los verbos activos de los diferentes tipos. Lo determinante para decidir si alguien ha matado no es si estamos ante una omisión o una conducta activa sino si, desde el punto de vista del sentido, podemos decir que mató, esto es, que la muerte le es imputable, entendido este término como atribución de la realización de ese concreto sentido. Sin embargo, un sector de la doctrina y la jurisprudencia consideran que lo determinante es que se trate de conductas materialmente equivalentes con independencia de lo que diga el tipo. De esa manera se destroza la tipicidad y se sustituye por la particular valoración de cada intérprete, por lo que a cada uno le parezca que merece el mismo reproche. Ello implica una vulneración del principio de legalidad y, por tanto, supone traspasar los límites constitucionales de la comisión por omisión.

Palabras clave: Acción. Comisión por omisión. Concepción significativa de la acción. Criterios de imputación de la comisión por omisión: límites constitucionales. Principio de legalidad.

ABSTRACT

The article aims to show that some interpretations of commission by omission violate the principle of legality to extend responsability far away from where the standard would allow. Commission by omission is based on an equivalence of meaning between the omission and the actions described in the active verbs of different Tatbestand. The determining factor in deciding whether someone has killed is not whether we have a omission or active action but whether, from the point of view of meaning, we can say that he killed, which means, that death is attributable, understood this term as attribution the realization of that particular sense. However, a sector of the doctrine and jurisprudence consider that what matters is that it is materially equivalent behaviors regardless of what the person says. Thus the “Tatbestand” is shredded and replaced by the particular valuation of each performer, so everyone seems to deserve the same consequence. This implies a violation of the principle of legality and, therefore, is to traspass the constitutional limits of the commission by omission.

Keywords: Action. Commission by omission. The meaningful conception of action. Imputation criteria: constitucional limits. Principle of legality

LIMITES CONSTITUCIONALES DE LA COMISIÓN POR OMISIÓN

María Luisa Cuerda Arnau1

1 Profesora titular de derecho penal Universitat Jaume I (Castellón).

FAE Centro Universitário98

Cuando se condena a alguien al margen de los principios constitucionales se nos está condenando sin garantías

a cada uno de nosotros. Si pudiéramos conseguir que la sociedad comprendiera que eso es así tendríamos casi

todo el camino recorrido. A eso ha dedicado Tomás Vives parte de su vida, y, por tanto, somos todos quienes

estamos en deuda con él.

LA PROPUESTA DE VIVES ANTÓN: UNA NUEVA PERSPECTIVA CONCEPTUAL

La concepción significativa de la acción que Vives Antón ha formulado en sus Fundamentos del sistema penal y en trabajos posteriores no pretende ser una opción dogmática más.2 Es ante todo una propuesta de reflexión sobre nuestras prácticas doctrinales y jurisprudenciales, sobre la situación a que nos ha conducido la dogmática y sus verdades. De algún modo, lo pretendido ha sido abrir el debate sobre la conveniencia de sustituir esas supuestas verdades por consensos estables y bien fundados, es decir, consensos que apelan a los principios y garantías constitucionales en lugar de hacerlo a categorías materiales que deforman el texto de la ley. A tal efecto, Vives ha comenzado por describir el panorama resultante de la pretensión dogmática de clarificar el sentido del texto de la ley distanciándose del lenguaje común en el que la ley se expresa. El lenguaje común y el uso común del lenguaje, considerados indignos de confianza, se sustituyen por un método que, sin embargo, resulta incompatible con el objetivo declarado.

Este es el primer problema del que adolecen nuestras sistemáticas. Lo pretendido es ofrecer una mejor y más segura aplicación del derecho pero resulta que para alcanzar tal objetivo recurrimos a un “lenguaje” pretendidamente superior, que se sobrepone a lo que dice la ley. Es así como una norma redactada en lenguaje común pasa a ser leida en “lenguaje” dogmático y, a partir de ahí, se extraen consecuencias impredecibles para el ciudadano con la consiguiente quiebra de la seguridad y la certeza en la aplicación de la ley.

2 Vid. además de la obra del propio Vives que aparece en la relación de sus publicaciones, las valiosas aportaciones de JIMENEZ REDONDO, M. Estudio preliminar. In: VIVES ANTÓN, T. S. Fundamentos del sistema penal: acción significativa y derechos constitucionales. 2. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011. p. 33-98; MARTÍNEZ-BUJÁN, PÉREZ, C. La concepción significativa de la acción de T. S. Vives y sus correspondencias sistemáticas con las concepciones teleológico-funcionales del delito. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología, Granada, v. 1, n. 2, p. 1-13, 1999. Disponível em: <http://criminet.ugr.es/recpc/recpc>; del mismo autor: Acción, norma y libertad de acción en un nuevo sistema penal. In: GARCÍA VALDÉS, C. y otros (Coord.). Estudios penales en homenaje a Enrique Gimbernat. Madrid: Edisofer, 2008. p. 1.237ss.; RAMOS VÁZQUEZ, J. A. Concepción significativa de la acción y teoría jurídica del delito. Valencia: Tirant lo Blanch, Valencia, 2008. Un interesante desarrollo de las pretensiones de validez específicas en .ORTS BERENGUER, E.; GONZÁLEZ CUSSAC, J. L. Compendio de derecho penal: parte general e especial. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004.

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La segunda dificultad que tienen nuestras sistemáticas para alcanzar su objetivo trae causa de su huida desde el concepto de acción hacia el concepto de responsabilidad. La pregunta por la acción se sustituye por la pregunta acerca de la responsabilidad. No se pregunta quien mató, sino quién es el responsable de la muerte. Pero, claro, para esta última pregunta existen tantas respuestas como opiniones acerca de la justicia material. La concordancia, el consenso, no es fácil cuando se trata de opiniones. Sin embargo, la concordancia es posible en el lenguaje, no en las opiniones. Así pues, pese a las zonas de penumbra que indiscutiblemente tiene, carece de sentido desplazar la concordancia en el lenguaje por la discordancia en las opiniones, una discordancia, hay que subrayarlo nuevamente, contraria a la idea de previsibilidad consustancial al principio de legalidad.

El tercer problema que aqueja a las sistemáticas es la vanidosa pretensión de que nuestros conceptos y nuestras ingeniosas construcciones puedan limitar al legislador. Sin embargo, resulta obvio que ni las sistemáticas, ni las estructuras objetivas se pueden imponer a aquél. Los límites sólo nacen de los principios y garantías constitucionales, que condensan derechos básicos de la convivencia en libertad.

Por último, no es menor la disfunción que genera la creencia de que el sistema nos dará explicaciones para problemas que son problemas políticos y constitucionales. La punibilidad o no de la tentativa inidónea o la extensión que la ley decida conferir a la comisión por omisión, por limitarme a dos ejemplos, no es un problema dogmático, sino un problema de hasta dónde quiero y hasta dónde puedo constitucionalmente castigar. Es, pues, un problema de discusión argumental. Al legislador puedo decirle que existían opciones más eficaces o que su decisión es inconstitucional pero lo que desde luego no puedo espetarle es que ha seguido una sistemática equivocada y, en su virtud, imponer ésta con independencia de lo que diga la ley.

Y si ese diagnóstico es exacto _ y, desde luego, a mi me lo parece _ ni los dislates a los que asistimos, ni la solución a los mismos depende de que nos adscribamos a una u otra corriente. Es por eso que la crítica de Vives no pretende desacreditar a nadie. Es una crítica contra el método de la dogmática, en la medida en que no puede haber ningún método “científico” que garantice la estabilidad en la interpretación de la ley.

1 LA DOGMÁTICA Y SUS CONSECUENCIAS PRÁCTICAS

De cuanto se lleva dicho se deduce sin dificultad cuáles son esas consecuencias prácticas a que conducen las pretensiones dogmáticas de conceptualización. La cuestión es que éstas no son una especie de juego intelectual al que la doctrina se entrega, sino que impregnan las decisiones de nuestros tribunales, cada vez, por cierto, más inclinados

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a hacer _ ellos también _ “dogmática”. Recientemente, un ilustre penalista decía que “los tribunales tienden, por principio, a ampliar la punibilidad; hacen uso de construcciones dogmáticas desarrolladas en la ciencia, como si se tratara de un supermercado en el que siempre escogen únicamente lo que desean de manera intuitiva”.3 No voy a discutir que eso sea así. Sin embargo, el hecho de ser parte de “la doctrina” y el llevar casi diez años compartiendo estrados con jueces que procuran desempeñar bien su trabajo me obliga a asumir la responsabilidad que otros rehusan. Habría que preguntarse quiénes han convertido el panorama en un supermercado de opiniones, abandonando para ello el contexto de uso en el que cobran sentido las palabras de la ley.4

En este sentido, la comisión por omisión es un inmejorable ejemplo de cómo todos, la doctrina y la jurisprudencia, hemos olvidado que la seguridad jurídica exige usos estables y que, por tanto, nuestra principal función es precisar cuándo se siguen las reglas contenidas en la ley y cuando no, lo cual no es un problema lógico sino práctico. Ahora bien, hay que insistir en que para que nuestras prácticas sigan las reglas contenidas en la ley no podemos invertir los términos, esto es, no podemos pretender que sea la ley la que se pliegue a nuestros conceptos. Sin embargo, en la comisión por omisión se advierte sin dificultad la tendencia de las nuevas sistemáticas a huir del concepto de acción como sentido hacia el concepto de responsabilidad. La gramática de la imputación objetiva _ el “lenguaje” de los criterios de atribución de la responsabilidad _ sustituye al lenguaje ordinario y con ello toma cuerpo la imprevisibilidad y, por consiguiente, pierde el principio de legalidad. Ese es un problema de orden constitucional que afecta a las sistemáticas y que Vives ha expuesto de manera magistral. No se trata, pues, de abundar más en lo que él ya dicho, sino de contribuir muy modestamente a mostrar los efectos que nuestras construcciones pueden llegar a tener en la vida de las gentes.

3 SCHÜNEMANN, Bernd. El llamado delito de omisión impropia o la comisión por omisión: GARCÍA VALDÉS, C. y otros (Coord.). Estudios penales en homenaje a Enrique Gimbernat. Madrid: Edisofer, 2008. p. 1.626.

4 Me interesa insistir en la responsabilidad de la dogmática porque lo cierto es que por la vanidad de ser únicos eliminamos cualquier posibilidad de consenso, creando un universo de teorías que sustituyen a otras teorías que pronto se verán desplazadas por otras que no son ni más ni menos convincentes pero sí son nuevas. Los jueces se han limitado a seguir nuestro ejemplo, sin reparar _ eso sí _ en que la impredecibilidad de sus decisiones tiene en la libertad del ciudadano un impacto del que carecen las diferentes opciones dogmáticas

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2 LA ACCIÓN Y LA OMISIÓN COMO EXPRESIONES DE SENTIDO. UNA PREMISA EXACTA DE LA QUE SE EXTRAEN CONCLUSIONES DISCUTIBLES

Voces muy autorizadas comparten con el Prf. Vives la preocupación por mostrar que los denodados esfuerzos que se han hecho para explicar la comisión por omisión traen causa en realidad de una toma de posición equivocada: el empeño en diferenciar acción y omisión sobre la base del sustrato óntico. La perspectiva cambia cuando la atención se desplaza del sustrato al sentido. La acción, ha dicho Vives en lugares diversos, no es el sustrato de un sentido, sino el sentido de un sustrato. El sustrato es inesencial. La asimetría lo es, por tanto, en algo secundario, de manera que los intentos por acortar la distancia existente entre la acción y la omisión no sólo trataban de salvar una diferencia óptica aparentemente insalvable sino que son innecesarios desde el momento en que “acciones y omisiones funcionan de modo idéntico en cuanto a aquello que las hace ser acciones: la expresión de significado”5.

Por lo que respecta a la comisión por omisión esta es, desde la perspectiva del sustrato conductual, un no hacer. Lo relevante es lo que no se hace y es precisamente eso que no se hace lo que debe comportar un significado de acción positivo encerrado en el verbo típico. En consecuencia, lo determinante para decidir si alguien ha matado no es si desde la perspectiva del sustrato conductual estamos ante una omisión o una conducta activa sino si desde el punto de vista del sentido podemos decir que mató, esto es, que la muerte le es imputable, entendido este término como atribución de la realización de ese concreto sentido.

Ese desplazamiento del sustrato al sentido es, sin embargo, sólo el primer paso de un camino que no todos recorren en la misma dirección. Es más, no creo que Vives refrendase los presupuestos, en algún caso, o las conclusiones, en otros, a que llegan algunas de las propuestas que también abogan por tal desplazamiento pero difieren de la suya en lo esencial: buscar el sentido a través del significado de las palabras de la ley.6 Con todo,

5 VIVES ANTÓN, Tomás S.; COBO DEL ROSAL, Manuel. Derecho penal: parte general. 5. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999. p. 386.

6 No obstante, no puedo ocuparme de separar las propuestas de mi maestro de otras que se le asemejan o más bien parecen asemejársele. Si que diré, sin embargo que en el fondo de algunas propuestas que coinciden en concebir acción y omisión como expresión de sentido sigue latiendo la idea de la acción positiva como movimiento corporal. Eso explica que justamente para ejemplificar la inesencialidad del sustrato, algunos llamen acción al hecho de acelerar y atropellar a un peatón y omisión al de no pisar el freno y atropellarlo igualmente, pese a que, como es obvio, la acción es atropellar a un peatón y frenar y acelerar no son sino concreciones o momentos de esa acción que es de la que derivamos el significado.

• Por otra parte, conviene no desconocer que bajo apariencias similares pueden ocultarse concepciones distintas (cfr. vg la interesante propuesta de BUSATO, P. C. Derecho penal y acción significativa. Valencia: Tirant lo Blanch, 2007, y su reformulación de la acción como valoración de un sustrato) o diametralmente opuestas. Eso último es, a mi modo de ver, lo que acontece, por limitarme a un caso evidente, entre la propuesta de Vives y ALCÁCER GUIRAO, R. Como cometer delitos con silencio: notas para un análisis del lenguaje de la responsabilidad. In: TOLEDO Y UBIETO, E. O; GURDIEL SIERRA, M.; CORTÉS

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sí que creo importante poner de manifiesto algunas consecuencias indeseables que en ocasiones se extraen de la certera premisa de que la diferencia entre acciones y omisiones estriba en la relación del sustrato con el sentido, lo cual ciertamente, es inesencial. Ahora bien, afirmar lo anterior es algo bien distinto a decir que la diferencia entre acciones y omisiones resulta superficial. La cuestión no es menor por cuanto a partir de la supuesta irrelevancia de la distinción no sólo se da paso a construcciones dogmáticas discutibles, sino también a vulneraciones de derechos constitucionales. En primer lugar, eso es, a mi modo de ver, lo que propicia la idea de que, puesto que estamos ante una diferencia superficial, lo determinante es que materialmente se trate de conductas equivalentes con independencia de lo que diga el tipo. De esa manera se destroza la tipicidad y se sustituye por la particular valoración de cada intérprete, por lo que a cada uno le parezca que merece el mismo reproche7. En segundo lugar, hay que destacar que relegar a un plano secundario el sustrato naturalístico no obliga a hacer lo propio con la diferencia de sentido que existe

BECHIARELLI, Emílio (Coord.). Estudios penales en recuerdo del profesor Ruiz Antón. Valencia: Tirant lo Blahch, 2004. p. 21-54 . Pese a que este último autor se empeñe en emparentarlas (p. 38, nota 73), lo cierto es que las separa una importante diferencia de planteamiento porque, sin duda, los autores hablan del significado en sentidos muy distintos (sobre las concepciones del significado, vid la acertada exposición que VIVES ANTON ofrece en sus Fundamentos, p. 208ss). Por lo demás, es evidente que si Alcacer hubiera entendido bien la propuesta de Vives nunca hubiera caido en la tentación de decir que aquél “otorga una excesiva relevancia al lenguaje cotidiano como canon de interpretación […]”, dejando caer que lo que defiende es sustituir “la construcción de criterios de imputación dogmáticos por una aproximación intuitiva a los términos de la ley” (p. 51). Con ello, entre otras cosas, se sugiere que la concepción de Vives es algo así como una simple remisión a los usos lingüísticos del lenguaje cotidiano, sin advertir la sustancial diferencia que media entre semejante cosa y la apelación al uso común del lenguaje, que, desde luego, ni se reduce a un mero enunciado lingüístico (ya que es obvio que de las meras palabras como simple enunciado lingüístico no emana el significado), ni, desde luego, excluye los usos especializados en la medida en que éstos contribuyen a fijar el significado en el ámbito específico al que se refieren. Por lo demás, Vives no discute que el lenguaje tenga _ como tiene _ zonas de penumbra. La diferencia con lo que otros proponen es el férreo convencimiento de que lo más garantista es salvar esas zonas de penumbra con prácticas de uso uniformes. Ese es el único cometido legítimo de los criterios de interpretación: servir como criterios de uso que alumbren esas zonas de penumbra.

7 Si nos fijamos, esta confusión que subyace en algunos planteamientos de la omisión no es distinta de la que se advierte en una extendida concepción de la autoría. En ambos casos, un importante sector de la doctrina ha renunciado a responder a la pregunta de quien realizó la conducta _ activa u omisiva _ y la ha sustituido por la de quién es el responsable. Para ello nada mejor que utilizar la infracción del deber como momento general de la autoria y banalizar la diferencia entre acción y omisión, sustituyéndolas por las ideas de competencias de autorganización y competencia institucional. Para construir la autoría con esos mimbres lo esencial es determinar la competencia, esto es, analizar si puede imputarse a alguien la infracción del deber. En virtud de tal razonamiento, la competencia precede a la determinación de si se realizó la acción o la omisión. Así se entiende que acabe por banalizarse la diferencia entre la acción y la omisión, pues, a fin de cuentas, no es su realización lo que determina la autoria. Vid un inteligente análisis crítico sobre el modo en que tradicionalmente se ha planteado el problema de quién puede ser tenido por autor, en GÓRRIZ, E. El concepto de autor en derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2008, con prólogo de Vives. (vid.especialmente, apartado 5).

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entre prohibiciones y mandatos (vid STC 154/2002, FJ 12). Si eso se olvida, se posterga cualquier política criminal regida por el principio general de libertad y, por tanto, se da un paso más hacia lo que ya es una intolerable expansión del derecho penal.

Esas son, creo, las principales consecuencias _ aunque no las únicas _ que hay que extraer de cuanto dijo Vives en un artículo en el que abordaba algunos aspectos de la propuesta de Jakobs sobre la omisión y en la que el autor concluia apostando una vez más por el mantenimiento de los principios del derecho penal liberal.8 Innecesario es subrayar la importancia que tiene esa apelación al liberalismo en un momento en que parece olvidarse que aquellos constituyen la esencia misma del proceso democrático y que, por tanto, cualquier condena impuesta despreciando sus exigencias es sólo un arbitrario castigo y no una pena.

3 LÍMITES CONSTITUCIONALES DE LA COMISIÓN POR OMISIÓN: UNA APROXIMACIÓN AL PROBLEMA

3.1 LOS LÍMITES CONSTITUCIONALES COMO FRONTERAS LÓGICAS DEL PODER PUNITIVO

Pese a lo que el título pudiera sugerir, advierto ya al lector de que bajo el mismo no se esconde un vano empeño por reconsiderar cuantas formulaciones se han hecho de la comisión por omisión con el fin de limitar su alcance. Por una parte, esa sería una empresa abocada al fracaso dado el breve espacio de que se dispone. Pero sobre todo, sería inútil al objetivo que aquí se persigue que no es en modo alguno hacer ni una exégesis del art. 11 CP, ni enjuiciar el conjunto de las que se han hecho.9 Lo que se pretende es poner sobre la mesa las razones que, a mi modo de ver, convierten en ilegítimos determinados modos

8 “Acción y omisión: tres notas a un status quaestionis”, en Estudios penales en recuerdo del profesor Ruíz Antón, cit., p. 1.113ss. Sobre la posición que reduce acción y omisión a una mera delimitación de naturaleza técnica y, por ende, califica de superficial su diferencia, vid. por todos JAKOBS, G. La competencia por organización en el delito de omisión: consideraciones sobre la superficialidad de la distinción entre comisión y omisión”. In:____. Estudios de derecho penal. Madrid: Civitas, 1997, JAKOBS, G. La imputación penal de la acción y de la omisión. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1996 .

9 No se vea, pues, en la omisión de referencias bibliográficas obligadas en un estudio de esa otra naturaleza nada que pueda parecerse al desprecio intelectual o a la ignorancia.

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de entender la ley. En realidad, se trata de subrayar que, como magistralmente expusiera Hobbes, lo que entonces se concebía como determinadas exigencias básicas de justicia determinan el propio concepto de delito y de pena, de suerte que en ausencia de dichas exigencias no hay verdadero ejercicio del derecho del Estado a castigar. Como en tal sentido ha dicho Vives, los límites constitucionales no son límites axiológicos externos sino que tienen un carácter definitorio de lo que entendemos por delito y pena, de manera que cuando aquellas fronteras lógicas se sobrepasan dejamos de hablar de delito y pena y hablamos de otra cosa.10 Quiere decirse con ello mucho más de lo que pudiera parecer en una aproximación apresurada. No es que la ley o la presunción de inocencia limiten lo que es delito o lo que se puede castigar como tal. Es que sin ley y sin presunción de inocencia no hay delito. En esa medida, cuando castigamos al margen de lo que dice la ley o cuando lo hacemos pese a la existencia de dudas sobre los hechos _ o incluso sobre el significado de la ley _, la reacción no puede ser tenida legítimamente por pena. Faltando el delito, su presupuesto, aquella no es otra cosa que un acto de hostilidad o de venganza. Por eso no es posible ninguna teoría jurídica del delito o de la pena en la que los principios constitucionales salgan perdiendo. Asi de sencillo.

3.2 PRESUNCIÓN DE INOCENCIA Y PRINCIPIO DE LEGALIDAD: LA CERTEZA SOBRE LOS HECHOS Y SOBRE EL DERECHO

En lo que sigue me limitaré a apuntar cómo a cuenta de la comisión por omisión se vulneran dos exigencias que se implican mutuamente y que constituyen la clave de bóveda del sistema de garantías.

Atendidos los límites que deben respetarse, no me detendré a abundar sobre el contenido y alcance de dos principios sobre los que se han escrito algunas páginas memorables. Sí que, sin embargo, me parece importante traer a colación algo que Vives ha dicho y que merece que se le preste una singular atención. Me refiero a la indisoluble vinculación que existe entre ambos principios, toda vez que de no existir el derecho a la presunción de inocencia se volatilizaría la garantía representada por la legalidad puesto que las acciones podrían atribuirse a quien no las hubiera realizado, conculcándose así la exigencia básica en que la legalidad consiste: la realización de una acción prevista en

10 Sobre tal cuestión, Thomas. Leviatán: la materia,forma y poder de un estado eclesiastico y civil. Tradução de Carlos Melllizo. Madrid: Alianza, 1989. Segunda parte, caps. 27-28. VIVES, El ius puniendi y sus límites constitucionales, Tol 817272.

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la ley como delito. De igual modo, cuando conculcamos la legalidad atribuyendo, por ejemplo, la posición de garante a quien la ley no se la impone estamos también vulnerando el derecho fundamental previsto en el art. 24 CE puesto que condenamos sin la prueba de un supuesto elemento del delito. La referida vinculación se comprende con solo pensar en que su fundamento último no es otro que la exigencia de certeza o, lo que a estos efectos es lo mismo, una verdad de la que no es razonable dudar. De ello deriva Vives una conclusión que es, a mi juicio, de la máxima importancia: la verdad, la certeza objetiva no sólo debe predicarse de los hechos, sino también del derecho. El mismo canon de certeza que exigimos para tener los hechos por probados debemos requerirlo cuando decidimos sobre la aplicación de la ley, pues de ambos modos puedo conculcar el derecho fundamental a ser tenido y tratado como inocente. Por consiguiente, no sólo se vulneran garantías constitucionales cuando se condena, por servirme de un ejemplo tópico, pese a las dudas sobre si la acción omitida hubiera evitado el resultado, sino también cuando aquellas versan sobre si lo que se hizo es lo que la ley define como delito. Precisamente por eso, sólo tradicionales hábitos escolásticos explican el que separemos cuestiones que se entrecruzan y que son indistintamente problemas de legalidad y de presunción de inocencia.

3.2.1 Comision por omisión, principio de legalidad y libertad interpretativa

A) La lógica de la equivalencia, la lógica lingüística y la lógica del deber. La STC 154/2002 como ejemplo.

Cuando el art. 11 CP dice que los delitos o faltas que consistan en la producción de un resultado sólo se entenderán cometidos por omisión cuando la no evitación del mismo “equivalga según el sentido del texto de la ley a su causación” está subrayando la especialísima significación que el principio de legalidad tiene en la comisión por omisión.

En realidad, con esa fórmula está todo dicho y, a la vista de la deriva interpretativa que ha seguido el precepto, todo hace pensar que hubiera sido preferible no decir más.11 En cualquier caso, el precepto está ahí y, al menos, sí que hay algo en el mismo sobre lo

11 Creo que acierta SILVA SANCHEZ cuando dice que lo mejor hubiera sido incluso no decir nada (COBO DEL ROSAL, Manuel; VIVES ANTON, Tomás S. Derecho penal: parte general 5. ed. corr. y aum. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999. p. 457ss) porque lo cierto es que la introducción de la clàusula en lugar de generar certeza ha creado inseguridad, por lo que el balance desde una perspectiva constitucional no puede ser positivo (Cfr. S. Huerta TOCILDO, S. Principales novedades de los delitos de omisión en el Código penal de 1995. Valencia: Tirant lo Blanch, 1997, p. 47ss).

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que no es razonable dudar: la posibilidad de la comisión por omisión deriva del significado de una conducta. No puede, pues, haber un concepto general. Será en cada caso a partir de los verbos típicos y del contexto valorativo específico como habrá que decidir si el sustrato conductual omisivo que se enjuicia resulta subsumible en la formulación legal del delito. La equivalencia apela a todas esas exigencias: las valorativas y las lingüísticas, que, son, en el fondo, inescindibles por cuanto como, ha dicho Vives recordando a Beling, las palabras de la ley expresan las valoraciones materiales del pueblo.12

Recordada así la obviedad de que el principio de legalidad es la clave de bóveda de la legitimidad de la comisión por omisión, hay que preguntarse en qué medida algunas extensiones de la misma se compadecen con dicha garantía en un modelo que, a diferencia de lo que favorece el §13 StGB, exige una absoluta equivalencia, lo que explica, por otra parte, que no se autorice género alguno de atenuación. Las dudas sobre la equivalencia hay que resolverlas, pues, excluyendo la aplicación del precepto.

Eso es, por ejemplo, lo que procede en determinados casos en los que podemos coincidir en entender que la gravedad de una determinada omisión va más allá de la que se predica de una omisión pura del deber de socorro o de impedir un delito pero, al mismo tiempo, somos capaces de reconocer que desde la perspectiva del sentido del texto de la ley hay un abismo de significado entre la conducta a que el tipo se refiere y los deberes de salvación omitidos. Siendo así, falta la equivalencia13

12 Comentarios al Código penal, op. cit., p. 526 y VIVES ANTON, T .S.; MANZANARES SAMAN IEGO, J. L. (Dir.). Principios constitucionales y dogmàtica penal. In: ____.____. Estudios sobre el Código penal de 1995, Madrid: Consejo General Del Poder Judiciario, 1996. p. 50. Así puede entenderse mejor que la posición de garante sea un momento constitutivo de la equivalencia porque si quien omite no está en posición de garantía es imposible entender que su omisión equivale a la causación y, del mismo modo, esa perspectiva evidencia muy claramente por qué ciertas clases de posición de garante no permiten afirmar la comisión por omisión. Por ello, aunque en ocasiones se aluda a la lógica de la equivalencia, a la lógica lingüística y a la lógica del deber, esa triple referencia no puede llevarnos a creer que se trata de lógicas enfrentadas, lo que indudablemente no son

13 Por mucho que valorativamente la conducta pueda merecer desde una perspectiva social un reproche idéntico al que resultaría de haberse alcanzado el resultado a través de una conducta activa. En suma, como bien ha defendido Silva en diversos lugares, en el art. 11 no tienen cabida las llamadas omisiones de gravedad intermedia, que, en su caso, habrá que residenciar en las llamadas, en la atinada terminología del mismo autor, omisiones puras de garante. Claro esta, sin embargo, que si resulta que el legislador no ha previsto una cualificación del tipo de omisión pura que permita sancionar más gravemente el caso en cuestión, lo que no podemos es imponer nuestra valoración frente a lo que dice la ley (Vid. el trascendental VIVES ANTON, T. S. El delito de omisión: concepto y sistema. Barcelona: Bosch, 1986. p. 344ss., así como posteriores trabajos suyos que abundan en la misma idea, vg., además de los ya cit. SILVA SANCHEZ, J. M. El nuevo Código penal: cinco cuestiones fundamentales, Barcelona:Bosch, 1997. p. 70ss).

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La equivalencia falta también en los grupos de casos en que el resultado es directamente imputable a la conducta dolosa de un tercero, sin perjuicio de la posibilidad de articular, según los casos, una responsabilidad omisiva a título de partícipe. En este sentido, si algo nos obliga a reflexionar seriamente sobre la deriva a que hemos conducido a la comisión por omisión son las condenas que cada vez más frecuentemente recaen sobre madres a quienes se imputa la coautoria dolosa de los malos tratos infligidos a los hijos propios por el otro progenitor o por el compañero sentimental de la misma.14

Los ejemplos en que se desprecia el sentido del texto de la ley son muchos15 pero me contentaré con referirme al empeño de la doctrina por zanjar “lagunas” con el propósito de “mejorar técnicamente” el Código, como si las pretendidas mejoras pudieran

14 Vid. vg. SSTS 15/04/1997 (Tol 407.627), 26/06/2000 (Tol 272.745), 22/01/2001(imputando también la tentativa de homicidio, Tol 130.154,) 31/10/2002 (Tol 229.918). Esa vinculación bàsica entre autoría y acción se rompe también en los casos en que se condena al garante como coautor por omisión de delitos contra la libertad sexual de menores realizados por terceros o en los supuestos de abusos a menores ante la pasividad de los padres o de uno de ellos (vid, vg, la STS 10/10/2006, donde, además, se les impone una pena superior a la que corresponde al autor material de los hechos, Tol 1.009.754).

15 Pensemos, vg, en la interpretación que en ocasiones se hace del término “resultado” o, para ser más exactos, de la fórmula que el art. 11 emplea: “delitos que consistan en la producción de un resultado”. Nótese que lo que el legislador ha pretendido ha sido solventar lo que, acertadamente o no, se ha considerado siempre que era la problemática específica de la comisión por omisión, esto es, la referida a la causalidad material de la omisión. Si por “delitos que consistan en la producción de un resultado” hubiera que entender cualquier tipo de resultado, desaparece el problema (o, pseudoproblema, cuestión en la que no se va a entrar), puesto que también la omisión puede “causarlos” y, por ende, pierde sentido cualquier tipo de previsión expresa. No es que a la doctrina se le escape que todo ello obliga a desterrar concepciones amplias del término “resultado”, con la consiguiente reducción del ámbito de la comisión por omisión. Lo curioso es que, incluso quienes dicen manejar un concepto restrictivo de resultado, acaban por aceptar la comisión por omisión en hipótesis en las que en modo alguno puede decirse que estemos ante una conducta descrita en el tipo por referencia a la modificación del mundo exterior que la misma provoca (y de ahí que la equivalencia se establezca entre la no evitación de ese resultado y su causación). Paradigmática por muchas razones la STS 25/03/2004 (Tol 448.588): inducción por omisión de un delito de inducción al abandono del domicilio familiar.

Lo mismo cabe decir, por ir terminando, del modo en que se solventan las dudas que versan sobre la posición de garante o sobre su contenido y límites. La feliz expresión con que Gimbernat se refiriera a los miembros de la familia como “focos de peligro andantes” (ADPCP, 1994, III, p. 58) para criticar evidentes excesos me parece que expresa muy gráficamente cómo también por esa vía nos hemos ido apartando de la equivalencia lingüística para ampliar la comisión por omisión en contra del reo. La cuestión es que la clase y el número de “focos de peligro” aumenta de manera alarmante hasta el punto de que alguna sentencia imputa en comisión por omisión un delito de tráfico de drogas al padre por ser el titular del domicilio donde su hija traficaba con esas sustancias (STS 7/12/2000, Tol 117.354, cfr., vg, con la STS 29/01/2008, Tol 1.292.773, que paladinamente afirma que “una posición de garante de esta naturaleza no cuenta con el menor respaldo legal”, FJ12 o STS 12/06/2008, Tol 1.347.092, con ulteriores citas). Vid asimismo STS 28/05/2004 (Tol 452.890): garante obligado a evitar el resultado es el amigo de la víctima por ser esa amistad el motivo por el que ella accedió a acudir al domicilio de un tercero que la agredió sexualmente; STS 28/02/2007 (Tol 1.049.920): responsabilidad en comisión por omisión del delito de homicidio por el hecho de haber sido quien dio pie al enfrentamiento entre la víctima y el autor material de los golpes que le produjeron la muerte. Como es obvio, la crítica no se opone a la posibilidad, según el caso, de exigir responsabilidad por otros conceptos. Sobre el particular resulta de singular interés la obra de. Lascuraín SANCHEZ, J. A. Los delitos de omisión: fundamento de los deberes de garantía. Madrid: Civitas, 2002.

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realizarse al margen del marco constitucional en el que cualquier dogmática está obligada a moverse. Un caso paradigmático de cuanto aquí se dice es, a mi juicio, la polémica sobre el carácter taxativo o abierto de la enumeración de las fuentes de la posición de garante. Y lo curioso de tal polémica es el modo en que se desenvuelve: de lo que se discute no es sobre lo que dice el inciso segundo del art. 11 CP, sino sobre lo que, según un sector, debemos entender que dice para dar entrada a los casos de efectiva asunción fáctica de la contención de un riesgo, supuestos que, a juicio de ese mismo sector, deben ser abarcados por la comisión por omisión, de modo que no resultaría admisible que el legislador los hubiera dejado fuera del precepto.16 Y si para llegar a la conclusión de que están dentro hay que entender que la enumeración es meramente ejemplificativa, pues se entiende así, con independencia de que lo que el precepto parece decir sea justamente lo contrario. Jactarse como ha hecho un admirado discípulo de Roxin de que la “ciencia” penal española no rindiera “ninguna obediencia esclava” al art. 11 CP y diera entrada a “posiciones de garante que ciertamente no encajaban”17 es una intolerable manifestación de desprecio por lo que en una democracia representa el sistema de fuentes.

La STC 154/2002 ya vino a decir, aunque en los términos en que podía decirlo el TC, mucho de lo que aquí se ha dicho.

Como se recordará, la referida sentencia fue dictada al conocer del recurso de amparo interpuesto contra la STS 950/1997, de 27 de junio, en la que se condenaba a unos padres como autores de un delito de homicidio en comisión por omisión por el hecho de no haber convencido a su hijo de trece años para que accediera a recibir una transfusión sanguinea imprescindible para salvarle la vida pero contraria a las creencias religiosas que profesaban tanto los progenitores como el menor. El TC otorgó el amparo por entender que la condena impuesta vulneraba el derecho a la libertad religiosa de los padres, pues, dadas las circunstancias del caso, imponerles la obligación de convencer a su hijo afectaba al núcleo mismo de tal derecho fundamental. Desde la perspectiva constitucional que corresponde a tal órgano, el TC fue taxativo al afirmar que “los órganos judiciales no pueden configurar el contenido de los deberes de garante haciendo abstracción de los derechos fundamentales” (FJ 11). El reproche por haber configurado el contenido de esos deberes del

16 Sobre tal cuestión, vid, vg, los pareceres de RODRÍGUEZ MESA, J. La atribución de responsabilidad en comisión por omisión. Cizur Menor (Navarra): Thompson Aranzadi, 2005. p. 91ss), HUERTA TOCILGO, S. Principales,novedades de los delitos de omisión en el código penal de 1995. Valencia: Tirant lo Blanche, 1997. cit., p. 34ss) o el propio VIVES ANTON, T. S. Comentarios al Código Penal, op. cit, cap. 1, p. 529. Cfr., por todos, Silva SANCHEZ, J. M. Comentarios al código penal, op. cit , v. 1, p. 462ss)

17 Vid nota 2.

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modo en que se hizo no es algo, por otra parte, que el TC derive exclusivamente del hecho de que los padres profesasen una confesión determinada que prohibe aceptar las transfusiones. El TC no dice que el derecho a la libertad religiosa comprenda sin más el derecho de los padres a rechazar por motivos religiosos las transfusiones que puedan prescribirse a sus hijos menores. Es del análisis del conjunto de circunstancias concurrentes en el caso que deriva la conclusión de que la aplicación judicial de la ley al caso concreto vulneró el referido derecho constitucional. Ese conjunto de circunstancias, que aúnan la logica del deber, la logica de la equivalencia y la logica lingúistica, son, a fin de cuentas, las mismas que sirven para poner de manifiesto que el TS al condenar por un delito de homicidio no respetó el sentido del texto de la ley.

Y es que, en efecto, a tenor del tipo que resultó aplicado, para entenderlo respetado hubiera sido preciso poder decir que los padres “mataron”, algo a lo que se oponen todo un conjunto de consideraciones18 que hubieran permitido el que la sentencia se hubiera revisado desde el prisma del principio de legalidad.19 Objetar, como hizo el Ministerio Fiscal, que la problemática que planteaba el caso era una cuestión de legalidad ordinaria y que la sentencia no podía ser revisada desde la perspectiva del referido principio es fruto de una confusión frecuente que Vives ha criticado en lugares distintos y por cuya virtud

18 Entre otras, las siguientes: en primer lugar, el hecho de que los padres adoptaran todo un conjunto de medidas dirigidas a evitar la muerte. Así, no sólo trasladaron a su hijo a diversos hospitales y lo sometieron a cuidados médicos, sino que buscaron en todo momento tratamientos alternativos “siendo su deseo- según el hecho probado- que el niño hubiera permanecido hospitalizado hasta localizar al nuevo especialista médico”, actuaciones todas ellas que parecen contradecir el significado que el TS atribuyó a su conducta. En segundo lugar, los padres nunca se opusieron a la actuación de los poderes públicos para salvaguardar la vida del menor e incluso acataron desde el primer momento la decisión judicial que autorizaba la primera transfusión, siendo los médicos quienes rechazaron realizarla, desechando la utilización de algún procedimiento anestésico que la hubiera hecho posible pese a la abierta negativa del niño. Por último, hay que subrayar las circunstancias referentes a la oposición del menor, pues, con independencia de que ésta no vinculase a los padres por no constar el grado de madurez del mismo, se trata de un extremo que resulta trascendente a otros efectos. Concretamente, a la hora de pronunciarse sobre la posible eficacia salvífica de la conducta omitida, cuestión que el TS ventila dándola por supuesta y, por si lo anterior no bastara, combinando esa presunción con el criterio del incremento de la situación de peligro para la vida que supuso lo que califica _ contraviniendo los hechos probados _ como “oposición” al tratamiento transfusional. Frente a lo anterior, lo menos que puede decirse es que resulta harto discutible que la actuación suasoria de los padres fuera eficaz a los efectos que se pretendían, toda vez que se trataba de una persona de trece años que _ según los hechos probados _ rechazaba “consciente y seriamente la realización de una transfusión en su persona”, hasta el punto de que, cuando le iba a ser practicada tras la primera autorización judicial, “la rechazó con auténtico terror, reaccionando agitada y violentamente en un estado de gran excitación”, sin que el personal sanitario lograra, pese a intentarlo repetidas veces, que la aceptase. Ante ese estado de cosas resulta inadmisible concluir que la omisión en la que los acusados incurrieron _ no convencer al menor para que aceptase la transfusión _

equivale a la causación de la muerte en el sentido del texto de la ley.19 No es casual que el propio TC, haciendo uso de las facultades concedidas por el art. 84 LOTC, dictase

una providencia a fin de que las partes alegasen lo que estimasen pertinente “sobre la relevancia que, para la decisión del recurso de amparo, pudiera tener lo dispuesto en el art. 25.1 CE” (antecedente 9). Modestamente entiendo que las partes no entendieron el planteamiento y por ello desaprovecharon la oportunidad que se les brindaba, lo que tal vez explica la parquedad argumental con que el TC declaró igualmente vulnerado el principio de legalidad sin entrar a hacer un pronunciamiento más expreso (FJ 16).

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“se confunde la legalidad con el principio de legalidad, la interpretación y aplicación de la ley con las exigencias que la Constitución proyecta frente a la ley misma y a la aplicación judicial de la ley”.20 Poner fin a esa confusión tiene en el caso de la materia penal una importancia singular dado el hecho de que la reserva de ley establecida por la Constitución obliga a aplicar con singular rigidez el canon de legalidad. No basta con que la interpretación realizada no sea arbitraria o irracional. Es preciso, además, que no ensanche más allá del tenor literal el ámbito del tipo. El principio de legalidad penal se alza así como garantía frente a una libertad interpretativa incompatible con la vigencia de aquél.

B) Los limites de la interpretaciónSin duda, no es deseable que la doctrina se aparte de la equivalencia lingüística para

ampliar la comisión por omisión en contra del reo. Ahora bien, tal cosa es intolerable cuando eso lo hace un tribunal, pues lo que está haciendo es cambiar una regla por otra de manera ilegítima y, por tanto, aunque ese nuevo uso llegara a consolidarse, no por ello dejaría de ser un cambio ilegítimo. Este es, claro está, el gran problema que encierra la idea de que los jueces gozan de una supuesta libertad interpretativa bajo cuyo paraguas cabe todo. Esa creencia incurre, de un lado, en un equívoco sobre lo que significa interpretar y, de otro, no repara en la incompatibilidad de semejante pretensión con nuestro modelo normativo.

Hay, pues, que empezar por aclarar qué se puede querer decir cuando se afirma que interpretar es “fijar el sentido del texto de la ley”. Esa clásica fórmula ritual puede seguir siendo utilizada pero siempre que quede bien claro que sólo es admisible en esos términos en tanto se entienda como una explicación de la regla. No si lo que se quiere decir es que es la interpretación la que dota de sentido a la ley. La pregunta sobre cuál sea el papel de la interpretación en la fijación del significado no es una pregunta que se pueda ventilar en un momento, pero si algo es claro es que la interpretación por sí sola no puede determinar el significado.21 Si el significado de la regla pudiera quedar librado a la interpretación, no podríamos hablar de regla. Para que pueda hablarse de regla es necesario que, al menos una parte nuclear de la misma, pueda aplicarse ciegamente sin interpretación alguna. Eso sólo se obtiene con usos estables ya que seguir una regla es una práctica.22

20 “El ius puniendi y sus límites...”, cit.21 Sobre la imposibilidad de identificar el seguimiento de reglas con la interpretación, vid. WITTGENSTEIN,

L. Investigaciones filosóficas: n. 198 y 202. Tradução de A.García Suárez y U. Moulines. Barcelona: Crítica, 1988; VIVES ANTÓN, Tomás S. Principio de legalidad, interpretación de la ley y dogmàtica penal. In: DÍAZ Y GARCÍA CONLLEDO, M.;GARCÍA AMADO, J. A.(Coord.) Estudios de filosofía del derecho penal., Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2006. p. 304ss; del mismo, prólogo a la obra de RAMOS VÁZQUEZ, cit., p. 24.

22 Vid las consideraciones que sobre el particular realiza VIVES ANTON a partir de un aparato bibliográfico que no puedo aspirar a manejar mejor que él (además de lo dicho en los Fundamentos..., cit., singularmente en p. 213ss, vid el más reciente “Reexamen del dolo. In: MUÑOZ CONDE, F. (Coord.). Problemas actuales del derecho penal y la criminología: estudios en memoria de la Profesora Dra. María del Mar Díaz Pita. Valencia: Tirant lo Blanch, 2008. p. 375ss.

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De lo anterior se deduce, en primer lugar, que debe rechazarse cualquier interpretación que no se apoye o contradiga esa parte de la regla que es clara. De igual modo, hay que tener presente que si no hay una parte clara de la regla, lo que realmente sucede es que no hay regla y, por tanto, ninguna interpretación podría dotarla de sentido. En tales casos, lo que procede no es apelar a la interpretación como método de creación de una regla inexistente, sino reconocer sin más que no se está en presencia de regla alguna, por mucho que ello obligue en algunos casos a decretar la absolución.

Lo que en demasiadas ocasiones sucede es, sin embargo, lo contrario. La libertad interpretativa colma “lagunas”, sustituye por certezas contra reo ambigüedades sin cuento y en esa confusión generalizada pierden de nuevo las garantías del ciudadano. Ese es el núcleo de todo cuanto se viene diciendo. Por decirlo resumidamente: la libertad interpretativa es al principio de legalidad lo que la íntima convicción a la presunción de inocencia. Precisamente por eso no puedo dejar de insistir en cuanto decía sobre la ilegitimidad de cualquier cambio fundado en una libertad interpretativa entendida como a menudo se entiende. El juez ordinario no puede enarbolar una libertad por cuya virtud se deje de aplicar la regla típica tal y como la hemos entendido hasta ahora y la sustituyamos retroactivamente en contra del reo por otra distinta, por mucho que pueda parecernos _ o incluso ser _ técnicamente mejor. Si eso no se ve claro de poco va a servir que el TC luche por afianzar el nuevo paradigma que en materia de legalidad instauraron las SSTC 111/1993, 137/1997 y 151/199723, ya que es obvio que, en un panorama en el que la libertad interpretiva parece ser la regla, el canon de previsibilidad no cumple función alguna, pues, en ese marco cualquier interpretación es, a fin de cuentas, previsible. Precisamente por ello ese es un ámbito en el que, como le gusta decir a Vives, la práctica debe cambiar.

23 Con ellas, el Tribunal Constitucional vino a poner fin a una época de ampulosas declaraciones y déficit aplicativo y abrió otra de control más intenso, en la cual las exigencias de la legalidad ya no se detienen en la constatación de que la subsunción realizada no es ajena al significado posible de los términos empleados por la norma aplicada, sino que se extienden a la imprevisibilidad de la decisión para sus destinatarios” (STC 137/1997 FJ 7º). Esa doctrina constitucional obliga a cerrar el paso a cualquier decisión judicial que, explícita o implícitamente, se asiente sobre una libertad interpretativa que haga ineficaz la garantía representada por la previsibilidad (sobre cuyo verdadero alcance queda, por cierto, mucho por decir, vid., vg, STEDH Pessino contra Francia, 10 de octubre de 2006, Tol 996612).

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3.2.2 Comisión por omisión y presunción de inocencia

Comienza Vives uno de sus artículos más recientes diciendo que “la presunción de inocencia es la clave de bóveda del sistema de garantías en materia penal”, cuyo contenido básico “es una regla de juicio, según la cual nadie puede ser condenado a un castigo a menos que su culpabilidad resulte probada, más allá de toda duda razonable, tras un proceso justo”.24

No creo que nadie discuta que esto es así con independencia de la modalidad de conducta que se juzgue. Lo que sucede es que tal vez los términos en que se ha planteado la vigencia de la presunción de inocencia en la comisión por omisión no son del todo adecuados. Baste pensar en el modo en que tradicionalmente se plantea la llamada prueba del nexo causal entre la conducta omitida y el resultado, un extremo que prácticamente ha monopolizado la discusión acerca de la efectividad del derecho constitucional que nos ocupa en el ámbito de la comisión por omisión.

A) La prueba del nexo causal como paradigma

Sin duda, la doctrina es consciente del debilitamiento que en esta sede padece la presunción de inocencia y, de hecho, entre los nuestros son muchos los que han criticado la tendencia a dar por probada la eficacia salvífica de la conducta omitida, reivindicando por ello para la omisión impropia un modelo de prueba de la causalidad que se pretendía más riguroso. Los esfuerzos dogmáticos empleados en tal tarea son en verdad ingentes. Frente a la tradicional fórmula de la “seguridad rayana en la certeza” se alzan las voces de quienes reclaman “seguridad absoluta” a la hora de decidir si la conducta omitida hubiera evitado el resultado. A tal efecto, se arbitran criterios distintos, desde el incremento o la no disminución del riesgo hasta la no estabilización o desestabilización de un foco de peligro preexistente, con la pretensión de que sea la aplicación de esos criterios lo que ponga fin a la incerteza que en la práctica rodea la determinación de la causalidad en la omisión. La cuestión es si esas concepciones logran de verdad superar al modelo que atacan o si, por el contrario, incurren en los mismos defectos que aquél.

En este sentido, lo primero que Vives objetaría es, según creo, el hecho de que, al igual que cuando se aborda la causalidad en la conducta activa, se pretenda resolver la cuestión desde una perspectiva que se autoconsidera científica, a partir de criterios

24 “VIVES ANTON, T. S. Más allá de toda duda razonable, Teoría y derecho, n. 2, p. 167, 2007.

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generales que persiguen unificar en un concepto unitario de “causa” cosas que son distintas. Eso es algo que en la omisión impropia se pone especialmente de manifiesto ante la evidente imposibilidad de manejar el mismo concepto de causa que utilizamos para las conductas activas. Por tanto, si, al igual que en la acción25, tampoco en la omisión es posible manejar un concepto general de causa, resulta que algunos de los intentos de resolver el llamado problema de la causalidad en la comisión por omisión estaban tan desenfocados como lo están la mayoría de los planteamientos tradicionales del nexo causal en las conductas activas. Ahora bien, aquel falso problema desaparece una vez que queda clara la inesencialidad del sustrato, esto es, que tanto la acción como la omisión son expresiones de sentido y que, por consiguiente, la causalidad hay que explicarla en el seno de cada concreto contexto de acción porque es un momento interno de la acción típica y no admite _ como tampoco la acción _ una formulación previa y general. Por tanto, no hay que elaborar una teoría científica, sino acudir a los procedimientos ordinarios de fijación del sentido de las acciones, esto es, al lenguaje y al contexto social y axiológico en el que concretamente es usado. Habrá quien piense que eso conlleva un cierto margen de incertidumbre pero lo cierto es que tampoco la infinidad de teorías elaboradas y todas sus variaciones ofrecen más seguridad.26

Por lo demás, haríamos bien en reconocer, en primer lugar, que, como dice Vives27, cuando abordamos procesos sociales o jurídicos la generalidad tiene un límite, y que, por otra parte, no hay nada que obligue a determinar esta exigencia del tipo de manera distinta a cómo determinamos la concurrencia del resto. Por consiguiente, para estimar concurrente la relación causal debe ser suficiente con poder afirmar más allá de toda duda razonable que una conducta es causa del resultado. Esa es la conclusión a la que llegan muchos de quienes comparten la preocupación por la quiebra que la presunción de inocencia experimenta en la omisión impropia. La diferencia es el camino que cada uno sigue para llegar a ella. La cuestión es decidirse por aquél que

25 La propia imposibilidad de construir un concepto general de acción se opone a la posibilidad de elaborar una categoría general de causa. Es más, operar con un concepto general de causalidad es, como Vives ha dicho, incompatible con el principio de legalidad en la medida en que distorsiona lo único que a la luz de aquél es importante: la determinación del significado de las palabras de la ley, lo que remite el concepto de causa al seno de las diferentes acciones (vid Fundamentos, cit., p. 301ss, Principio de legalidad…, cit. p. 311ss y Derecho penal, cit, p. 419).

26 La propia teoría de la imputación objetiva se pierde en una maraña de criterios que no generan seguridad alguna y demuestran de manera palmaria la inutilidad del intento de resolver el problema con criterios generales.

27 Fundamentos, cit., p. 306.

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resulte no sólo metodológicamente más adecuado, sino, ante todo, más transitable para los principios constitucionales que busca salvaguardar.

En cualquier caso, es un avance llevar la discusión al terreno de los principios y reconocer que, en realidad, la vieja cuestión de la prueba de la causalidad en la omisión remite, como en la acción, a la presunción de inocencia como criterio de justificación del castigo. La clase de prueba del nexo causal a que nos referimos, la verdad perseguida, no es tampoco en la omisión “una cuestión de correspondencia con ninguna clase de realidad absoluta, sino una de garantía argumental”28 El auténtico problema -naturalmente común a la acción y a la omisión- es el referido al grado de certeza constitucionalmente exigible para estimar que un juicio es verdadero29. Lo que importa es, pues, asumir con todas sus consecuencias que la presunción de inocencia como criterio de verdad obliga a que sólo prediquemos ésta de aquellos enunciados respecto de los cuales es lógicamente imposible la duda o respecto de aquellos de los que no es razonable dudar.30 Es desde el rigor que impone tal canon que debemos enjuiciar muchas de las propuestas que se han hecho para “solventar” el problema de la prueba de la causalidad en la omisión. Comprobaremos entonces que no todas resultan compatibles con aquél.31

28 VIVES Anton. Más allá de toda duda, cit., p. 171.29 La enjundia del tema exigiría entrar en el debate sobre cuándo nos hallamos ante una creencia racionalmente

garantizada o en la ardua polémica relativa a los usos que se han hecho de los términos “verdad” y “verdadero”. Sin embargo, el lector gana si le remito a cuanto sobre esto ha dicho el Prf. Vives y me limito a subrayar la futilidad de perderse en interminables debates sobre las supuestas diferencias entre la causalidad omisiva y la causalidad activa y la imperiosa necesidad de centrarse en reclamar el mismo estandar probatorio que exigimos cuando de una conducta activa se trata

30 Más allá de toda duda, cit., p. 183.31 Para ello no estaría de más volver los ojos hacia Italia y prestar atención a cuanto dijeron las Sezioni

Unite en la conocida como sentencia Franzese (SU 10 julio 2002, dep. 11 septiembre 2002, n. 30328, en Cassazione penale, 2002, p. 3643ss) ¿No es tal vez momento ya de decir _ como se dijo en Franzese (FJ 4º, 6º y 11º.2) que criterios como el del incremento del riesgo (o su no disminución) no tienen cabida en nuestro sistema constitucional? La trascendencia práctica que ello puede tener en todos los ámbitos pero muy especialmente en el de la responsabilidad médica resulta incuestionable. Sobre el alcance y trascendencia de Franzese se han escrito rios de tinta pero baste citar el inteligente artículo de F. Stella, “Etica e racionalità del processo penale nella recente sentenza sulla causalità delle Sezioni Unite della Suprema Corte di Cassazione, en Rivista italiana di diritto e procedura penale, n. 2, p. 767ss. (de entre los comentarios al Código, destaca en este punto el Codice penale commentato coordinado por E. DOLCINI, E.; MARINUCI, G. Codice penale commentato. Vicenza: Ipsoa, 2006. p. 309-368.

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B) La prueba de la posición de garante, el incumplimiento de deberes y la participación omisiva.32 La STC 171/2000

Resulta ocioso remarcar que cuanto se lleva dicho sobre la regla de juicio aplicable a la causalidad de la omisión debe predicarse del resto de exigencias típicas, lo que excluye dar por supuesta la posición de garante o la infracción de deberes. Pese a tal obviedad, no es infrecuente edificar condenas sobre supuestos deberes de control, como, por servirme de un ejemplo clásico, los que a veces se predican sin matices de los encargados de locales de ocio en relación con el tráfico de drogas que pueda realizarse en su establecimiento.

Como es sabido, la cuestión fue objeto de anàlisis en la STC 171/2000, de 26 de junio (Tol 81.336), dictada al conocer un recurso de amparo contra la STS 106/1996, de 10 de febrero (Tol 406.826)33, que condenaba al recurrente como autor por omisión de un delito de tráfico de drogas en función de “su posición de garante en relación a la comisión de delitos de carácter grave que puedan ser cometidos en dicho ámbito” (FJ 6º). Ciertamente, la STC 171/2000 no entra de lleno en el conjunto de problemas que suscita la titularidad de un local como fuente de la posición de garante. Pese a ello, se trata de una sentencia imprescindible para lo que ahora importa, que es, en primer lugar, para enfatizar que la presunción de inocencia es un criterio de la verdad de la culpa y no a la inversa. En segundo término, la sentencia evidencia una vez más la vinculación legalidad--presunción de inocencia. En cuanto a lo primero, ya dijo Vives34 que la verdad a que se alude cuando se afirma que la presunción de inocencia es un criterio de verdad es la

32 Las tres cuestiones que dan título al epígrafe están, como es obvio, íntimamente vinculadas y exigirían un tratamiento conjunto. Aqui no se dispone de espacio pero no quería renunciar a poner tal cosa de manifiesto. El problema de la participación omisiva y el nefasto efecto que el art. 11 CP ha tenido en el tratamiento que nuestra jurisprudencia le depara exigiría un estudio independiente. Déjeseme decir al menos que ese es un problema que no puede resolverse desde el art. 11 sino desde los correspondientes tipos, graduando, como es lógico, la responsbilidad en función de la concreta aportación a la ejecución del mismo (vid. la interesante y reciente aportación de PORTILLA CONTRERAS, G. Complicidad omisiva de garantes en delitos omisivos. In: GARCIA VALDEZ, G. y otros (coord.) Estudios penales en homenaje a E. Gimbernat, cit., p. 1519ss).

33 La anterior sentencia desestimaba así el recurso interpuesto contra la dictada por la Sala de lo Penal de la Audiencia Nacional el 23 de diciembre de 1992, puesto que, si bien entendió que no existía prueba sobre la participación activa del recurrente en el tráfico, sí podía sostenerse una condena por omisión. No lo entendió así el Tribunal Constitucional, quien anuló las referidas sentencias por estimar que ambas habían incurrido en una vulneración de la presunción de inocencia: la primera por estimar probada la participación activa y la segunda por presumir que el acusado conocía las actividades delictivas que venían realizándose en su bar

34 Más allá de toda duda..., cit., p. 182.

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de la culpa, no la de la inocencia, pues demostrar la inocencia no es el objetivo de los procedimientos criminales. Sin embargo, nada de eso se toma en consideración en las sentencias anuladas. Tampoco en la sentencia dictada en casación, donde se elude la prueba de la participación en el hecho, que exige la contribución, aunque omisiva, al hecho, lo cual, como es obvio, reclama el conocimiento de que el mismo está teniendo lugar. El Tribunal Supremo considera que no hay base probatoria para estimar acreditada la participación activa pero no traslada ese razonamiento a la probanza del conocimiento del tráfico pese a que ambas inferencias se basan en lo mismo: las declaraciones de los encausados en que reconocen haber adquirido el bar y asimismo conocer a otros coencausados asiduos del local. Eso, como dice el Tribunal Constitucional, no permite concluir unívocamente que el recurrente conociera las actividades delictivas que se dice venían realizándose en su bar (FJ 5º). Faltando lo anterior, resulta no acreditada la verdad de la culpa35 El Tribunal Constitucional no va, como se ha sugerido, más allá de los límites de su jurisdicción. Es más, ni siquiera podría objetársele tal cosa si el amparo hubiera discurrido por el cauce del principio de legalidad, pues, como decía, el caso que analiza la STC 171/2000 sirve también para poner de manifiesto que, como Vives ha señalado, la verdad exigida por la presunción de inocencia se proyecta asimismo sobre el derecho, sobre la certeza del derecho, exigencia inmanente al principio de legalidad36. Y, desde luego, si algo queda bastante más acá de toda duda razonable es que pueda asignarse la posición de garante al titular de un local por el simple hecho de serlo. Si se quiere, se puede considerar que decidir sobre eso queda sujeto al libre criterio del juez ordinario pero creo que con ello pierden una vez más los principios constitucionales al relegar al terreno de la libertad interpretativa la proyección que la presunción de inocencia está llamada a tener en el entendimiento y aplicación de las normas vigentes.

35 Por ello, no resulta procedente exigir “un principio de prueba de que el omitente intentó, por lo menos, cumplir con su deber de impedir la lesión del bien jurídico que debía garantizar”, ni es correcto achacar al TC que excedió los límites de su jurisdicción (J. M. Zugaldía, en Presunción de inocencia y subsunción, Aranzadi BIB 2000/768).

36 Más allá de toda duda…, cit., p. 184.

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ALGUNAS CONCLUSIONES

Debemos abandonar la vanidosa pretensión de sustituir con nuestros conceptos el lenguaje que hablan las leyes y reconocer de una vez por todas que cualquier gramática basada en una concordancia de opiniones dogmáticas es intrínsecamente más indigna de confianza que el lenguaje ordinario. Así es por cuanto la concordancia sólo es posible en el lenguaje, forjado por generaciones de hablantes en situaciones distintas a partir de prácticas originarias que remiten a nuevas prácticas y que, a fin de cuentas, es una concordancia de forma de vida.

Si lo anterior es exacto, lo es también la incapacidad de los diferentes criterios materiales propuestos para explicar la comisión por omisión. Si el fundamento último de la comisión por omisión es una equivalencia de significado entre la omisión y las conductas descritas en los verbos activos de los diferentes tipos y no hay un significado común de todos los significados posibles, es claro que resulta inútil intentar conceptualizar la equivalencia. Sólo nos queda indagar caso por caso en la fórmula empleada por la ley y en su significado. A partir de ahí, la única seguridad posible es la que nos depara una práctica estable y bien argumentada.

A la jurisprudencia ordinaria, en primer lugar, corresponde garantizar esos usos estables interpretando las normas desde la efectividad de los principios constitucionales. A la doctrina compete junto a una tarea de ardua vigilancia, la de sugerir propuestas que, lejos de distorsionar el panorama, contribuyan a que los niveles de seguridad jurídica no queden nunca por debajo de lo que resulta tolerable. La dogmática penal española siempre ha contado con excelentes cultivadores. Sólo se trata de dirigir los esfuerzos en una dirección distinta.

En la que estimo la dirección adecuada he dirigido los mios aunque bien es verdad que mi contribución es muy modesta. A fin de cuentas, me he limitado a apuntar alguno de los problemas y de las posibles propuestas de solución. En realidad, no descubro nada que no estuviera dicho ya antes en la obra de Vives Antón. Es más, basta leerla con detenimiento para advertir que se puede ir mucho más lejos. Estoy segura de que su retirada de las aulas será sólo un recogimiento a sus cuarteles desde donde seguirá enriqueciendo el pensamiento jurídico con la brillantez de sus mejores tiempos.

Gracias, Tomás, por estos veinte anos, que lo son todo cuando se ha tenido la fortuna de poderlos pasar a tu lado.

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Fernando Antônio C. Alves de Souza1

José Arlindo de Aguiar Filho2

1 Doutorando pela Universidad de Buenos Aires. Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em Docência do Ensino Superior pela Faculdade Maurício de Nassau – PE. Professor de graduação e pós-graduação no Centro Universitário Maurício de Nassau. Advogado. Membro de Comissão da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Pernambuco.

2 Doutor em Filosofia Contemporânea. Professor adjunto B da Universidade Estadual da Paraíba.

RESUMO

O presente artigo, ao analisar o Direito Penal do Inimigo, na obra polêmica de Günther Jakobs de mesmo título, traz como contraponto a visão filosófica do professor italiano Giorgio Agamben, autor de diversas obras, dentre as quais, “Homo Sacer” e o “Estado de Exceção”. Realizou-se pesquisa na literatura jurídica sobre os argumentos jurídico-penais que refutam o Feidstrafrecht, ao tratar o terrorista como “não pessoa”, criando a dualidade com o cidadão, pessoa amparada pelos direitos humanos. A conclusão desenhada implica que tal conceituação é grave, pois fere o Estado Democrático de Direto, com uma Política Criminal que se refletiu para outros países, com maior ou menor intensidade.

Palavras-Chave: Terrorismo. Direito Penal do Inimigo. Giorgio Agamben. Günther Jakobs.

ABSTRACT

This paper aims to make an analysis of the Günther Jakobs polemical work entitled Enemy’s Criminal Law, in an opposite perspective retrieved from Giorgio Agamben view, specifically from his several works on state of exception, among which the “Homo Sacer”. In the use of the juridical literature we try to show what arguments can be held against the Feidstrafrecht, as the duality between the terrorists treatment as non-person in comparison with the regular citizen’s protection, the person with human rights assured. At the end we look at the criminal policy influenced by this dichotomy as a serious danger to the democratic state of law, a real and in movement threat spread, in bigger or smaller intensity, among legal systems around the world.

Keywords: Terrorism. Enemy’s Criminal Law. Giorgio Agamben. Günther Jakobs.

A FILOSOFIA DE AGAMBEN, O TERRORISMO DE BIN LADEN E O DIREITO PENAL DO INIMIGO: UM ESTUDO DE FRONTEIRAS ENTRE A PROTEÇÃO E A PUNIÇÃO

AGAMBEN PHILOSOPHY, BIN LADEN’S TERRORISM AND ENEMY’S CRIMINAL LAW: A STUDY OF THE BORDERS BETWEEN PROTECTION AND PUNISHMENT

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QUEM É O INIMIGO3?

O tema desse artigo é transversal, ou seja, é filosófico, jurídico e sociológico e, desta forma, enfrenta dificuldades próprias ao esforço interdisciplinar. A abrangência sempre vem acompanhada de um alto preço a ser pago com os problemas para delimitar as fronteiras dos campos teóricos da pesquisa e na impossibilidade de verticalização radical em um ponto singular. Em contrapartida, a riqueza do estudo interdisciplinar e sua inegável contribuição aos diversos campos que trocam informação entre si compensam os desafios da tarefa, desde que tratada com o devido cuidado e atenção. Um exemplo dessa riqueza e dificuldade pode ser encontrada na crítica comum ao dualismo entre teoria e prática, geralmente traduzida em meio jurídico como a distância entre disciplinas zetéticas e dogmáticas. O esforço por vencer esse dualismo, no qual aqui se pretende inserir, não é novidade no meio acadêmico. Observemos o campo do que se convencionou intitular de pesquisa sociojurídica: “A importância da Sociologia Jurídica é não só teórica (por estudar o direito como fato social básico), mas implica ainda consequências práticas”.4

Seguindo a linha proposta, o trabalho pretende contrapor dois marcos teóricos do pensamento jurídico, o direito penal do inimigo5 de Jakobs frente ao “Homo Sacer”6 de Agamben a um fato concreto que os desafia e desafia nossa geração enquanto indivíduos e enquanto defensores do Estado democrático de direito em suas bases protetivas dos direitos humanos. O fato trata-se da morte do terrorista mais procurado no mundo, Osama Bin Laden, a partir do qual a mass media proclamou que a guerra ao terror, finalmente, acabara, mas não a guerra contra o terrorismo. A respeito do tema Kai Ambos, escreveu, no essencial:

Os terroristas, também Osama Bin Laden, são seres humanos. Como tais, eles são detentores de direitos humanos. Entre esses, encontram-se também o direito à vida, a um tratamento humano e a um processo penal justo. Os direitos humanos fundamentais vigem também em um estado de exceção. Somente de forma excepcionalíssima, o direito à vida em tempos de paz é suspenso parcialmente, mais especificamente, em casos de legítima

3 DELMAS-MARTY, M. Direito penal do inumano. Trad. Renata Reverendo Vidal Kawano Nagamine. Belo Horizonte: Fórum, 2014. (Coleção Fórum de Direitos Humanos, v. 6). A autora diferencia “o ‘direito penal do inimigo’, inspirado no direito penal nacional, em que se prega a ‘guerra contra o crime’ e seria adaptado ao aspecto quantitativo; diferentemente do ‘direito penal do inumano’, que simboliza o paradigma do crime contra a humanidade, responderia melhor ao critério qualitativo”.

4 SOUTO, C.; SOUTO, S. Sociologia do direito: uma visão substantiva. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1997. p. 17.5 JAKOBS, G. Direito penal do inimigo. Organização e introdução Luiz Moreira e Eugênio Pacelli de

Oliveira. Tradução dos originais em alemão: Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

6 AGAMBEN, G. Homo sacer: v. 1: o poder soberano e a vida nua. Trad. de Henrique Burigo. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

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defesa. Se é certo que Bin Laden estava desarmado e foi assassinado intencionalmente, não teria aplicabilidade a legítima defesa, pois ela requer uma agressão injusta atual às forças especiais de intervenção. Teoricamente, ainda, seria possível uma hipótese de erro sobre a situação de legítima defesa. Mas, com isso, objetivamente, o homicídio continuaria sendo um ilícito. Portanto – diferentemente do que se referiu o presidente norte-americano – ele não teria servido à justiça, mas sim a prejudicou. (grifos nossos)7.

Mutatis mutandis, observamos o quadro reveladoramente similar em “uno de los textos más horripilantes del derecho penal”8, de Karl Binding e Alfred Hoche: “La licencia para la aniquilación de la vida sin valor de vida”. Preciso é delimitar o estado de exceção para formar um tratamento adequado ao caso. O estado de exceção na ensinança de Agamben9 “não é um direito especial (como o direito de guerra), mas, enquanto suspensão da própria ordem jurídica define seu patamar ou seu conceito limite”. Surge a dualidade a ser resolvida entre o direito humano fundamental irrevogável e impassível de suspensão e o estado de exceção da guerra contra o terror. No mundo ocidental atual se assiste a uma solução polêmica e amplamente discutida.

Explica-se sobre o caso que se lê acima, que Obama, de certa forma, dando continuidade à guerra ao terror, da política de George W. Bush, não se há de negar, estende uma política criminal de exceção como projeto estatal. Segundo Giorgio Agamben:

É na perspectiva dessa reivindicação dos poderes soberanos do presidente em uma situação de emergência que se deve considerar a decisão do presidente Bush de referir-se constantemente a si mesmo, após o 11 de setembro de 2001, como Commander in chief for the army. Se, como vimos, tal título implica uma referência imediata ao estado de exceção, Bush está procurando produzir uma situação em que a emergência se torne a regra e em que a própria distinção entre paz e guerra (e entre guerra externa e guerra civil mundial) se torne impossível.10

A guerra e sua consequência emergencial de suspensão da ordem jurídica vigente como forma de “legítima defesa” do Estado frente a ameaças imediatas assinala a perigosa escolha de preterir o direito individual humano inalienável em favor do direito de defesa

7 AMBOS, K. Os terroristas também têm direitos: Bin Laden não devia ter sido executado – nem mesmo em um conflito armado. Trad. do alemão por Pablo Rodrigo Alflen, com revisão do autor. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 19, n. 223, p. 2, jun. 2011. Publicado originariamente em Frankfurter Allgemeine Zeitung, p. 6, 5 maio 2011.

8 BINDING, K.; HOCHE, A. La licencia para la aniquilación de la vida sin valor de vida. Introducción de Eugenio Raúl Zaffaroni. Traducido por: Bautista Serigós. 1. ed. Buenos Aires: Ediar, 2009. (Colección El penalismo olvidado). p. 7; cf. também p. 47.

9 AGAMBEN, G. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 14.10 AGAMBEN, G. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 14-15, 38.

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do Estado. Ainda, o mesmo autor sobre o tema, é claro ao apontar e explicar a política criminal adotada pelos Estados Unidos11, senão vejamos:

O significado imediatamente biopolítico do estado de exceção como estrutura original em que o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão aparece claramente no ‘military orde’, promulgada pelo presidente dos Estados Unidos no dia 13 de novembro de 2001, e que autoriza a ‘indefinitive detention’ e o processo perante as ‘military commissions’ (não confundir com tribunais militares previstos pelo direito de guerra) dos não cidadãos suspeitos de envolvimento em atividades terroristas. Já o USA Patriot Act, promulgado pelo Senado no dia 26 de outubro de 2001, permite ao Attorney general ‘manter preso’ o estrangeiro (alien) suspeito de atividades que ponham em perigo ‘a segurança nacional dos Estados Unidos; mas, no prazo de sete dias o estrangeiro deve ser expulso ou acusado de violação da lei sobre imigração ou de algum outro delito. A novidade da ‘ordem’ do presidente Bush está em anular radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável. Os talibãs capturados no Afeganistão, além de não gozarem do estatuto do POW [prisioneiro de guerra] de acordo com a Convenção de Genebra, tampouco gozam daquele de acusado segundo as lei norte-americanas. Nem prisioneiros nem acusados, mas apenas detainees, são objeto de uma pura dominação de fato, de uma detenção indeterminada não só no sentido temporal, mas também quanto à sua própria natureza, porque totalmente fora da lei e do controle judiciário. A única comparação possível é com a situação jurídica dos judeus nos Lager nazistas: juntamente com a cidadania, havendo perdido toda identidade jurídica, mas conservavam pelo menos a identidade de judeus. Como Judith Butler mostrou claramente, no detainee de Guantánamo a vida nua atinge sua máxima indeterminação” (Grifos nossos).

Estamos diante do homo sacer a que tanto se refere Giorgio Agamben, como bem nos expõe Paulo César Busato “aquele que é considerado tão impuro que fica fora da jurisdição humana, cuja morte não se traduz, sequer, em homicídio a quem o poder soberano aplica a vida nua, ou seja, as regras destituídas de qualquer limite ou direito”.12

11 BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Trad. de Marcos Penchel. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999. Traz o referido autor a seguinte referência ao modelo prisional americano, tipo Pelican Bay, na Califórnia, “à primeira vista, o projeto de Pelican Bay parece uma versão atualizada, super high-tech e sofisticada do Panóptico, a suprema encarnação do sonho de Bentham de controle total, através da vigilância total. Um segundo olhar revela, no entanto, a superficialidade da primeira impressão” (p. 116). Mais adiante fulmina: “Se os campos de concentração serviram como laboratórios de uma sociedade totalitária nos quais foram explorados os limites da submissão e servidão e se as casas de correção panópticas serviram como laboratórios da sociedade industrial nos quais foram experimentados os limites da rotinização da ação humana, a prisão de Pelican Bay é um laboratório da sociedade ‘globalizada’ (ou ‘ planetária’, nos termos de Alberto Melucci) no qual são testadas as técnicas de confinamento espacial do lixo e do refugo da globalização e explorados os seus limites” (p. 121).

12 BUSATO, P. C. Thomas Hobbes penalista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. (Coleção por que ler os clássicos v. 2) p. 119. Quanto à Agamben temos sua obra Homo Sacer: v. 1: o poder soberano e a vida nu. Trad. Henrique Burigo. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. “A vida insacrificável e, todavia, matável, é a vida sacra” p. 84. “[...] Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera” (p. 85).

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O estado de exceção cria um ser sem direitos, um ente no qual se opõem o máximo direito do Estado e a diminuição do indivíduo ao ponto zero. É a ultima ratio além da ultima ratio penal, é o ponto limite da sobrevivência do Estado ao custo do indivíduo (o inimigo).

Tudo isso tratado por Agamben é na visão de Jakobs o inimigo, mas o que seria o inimigo no direito penal? Mais recentemente, como indagou em palestra proferida no Ciclo de Palestras da Ordem dos Advogados do Brasil em Brasília/DF (OAB/DF), Zaffaroni, é possível, constitucionalmente, num estado democrático de direito, falar-se em inimigo?

1 O DIREITO PENAL DO INIMIGO E A POLÍTICA CRIMINAL SOBRE O TEMA

A cultura do medo, hoje, deve-se muito ao ocorrido na data de 11 de setembro de 2001, pode-se constatar na obra de John Vervaele13 que faz um perfeito “inventário” do ocorrido com relação à legislação antiterrorista dos Estados Unidos, tendo com a chamada guerra ao terror, também, influenciando outros países.

Quanto ao direito penal do inimigo, deve-se a Jakobs a criação de tal nomenclatura, porém ela não teve, na sua criação, o significado que hoje se conhece, o termo é de 198514, “Este termo foi primeiramente utilizado, para descrever e criticar a legislação penal alemã que, a partir dos anos 80, assumia um caráter expansionista, visando a atender aos reclamos de uma política de risco”. Cornelius Prittwitz, em palestra proferida no 9º Seminário Internacional do IBCCRIM, em manuscrito, aduz:

Após uma palestra de Günther Jakobs na Conferência do Milênio em Berlim, este conceito

levantou muita poeira não só na Alemanha, mas também nas regiões de língua portuguesa

e espanhola. Em 1999, não era a primeira vez que Jakobs empregava o conceito. Em

1985, utilizou-o numa palestra de Frankfurt, que recebeu muito menos publicidade, no

Seminário sobre Direito Penal. Mais primeiramente: o que deve entender sob o conceito

“direito penal do inimigo”, e que posição adotar? “Direito penal do inimigo” é um direito

penal por meio do qual se confronta não os seus cidadãos, mas seus inimigos. Em que

isto se faz visível? Primeiramente, tomando-se a lei concretamente – o código penal e a

13 VERVAELE, J. A. E. La legislación antiterrorista em Estados Unidos: ¿Inter arma silent leges? Ciudad Autonoma de Buenos Aires: Del Puerto, 2007.

14 BICUDO, T. V. Por que punir? Teoria geral da pena. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 166.

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legislação processual penal, o que se vê é que, onde se trata da punição de inimigos, se

pune antes e de forma mais rígida; do ponto de vista do direito material, a liberdade do

cidadão de agir e (parcialmente) de pensar é restringida; ao mesmo tempo, subtraem-se

direitos processuais ao inimigo.15

E continua, mais adiante:

Porém aquilo que em 1985 recebeu aplauso dos colegas, ficando no entanto – por ser (demasiadamente crítico) – sem grande repercussão, em 1999 foi recebido pelos colegas com descrente espanto, em contrapartida sendo muito aplaudido por grupos que certamente não são do agrado de Jakobs. O que tinha mudado? Partindo da sua descrição crítica do estado de coisas, Jakobs tinha desenvolvido um modelo de direito penal parcial. Uma grande parte do direito penal alemão é, na opinião dele, direito penal do inimigo, coisa que Jakobs já tinha analisado em 1985. Porém, em 1999, ele diz: ela deve realmente ser direito penal do inimigo. Para se justificar esta guinada de 180 graus, Jakobs essencialmente diz que aquele que se comporta como inimigo (e Jakobs realmente emprega, mal se pode crer, a expressão “não pessoa”) também merece ser tratado como inimigo – portanto não como pessoa. O grande número de inimigos de dentro e de fora – e Jakobs apresenta também cenários ameaçadores vindos com a globalização – não deixam ao Estado Democrático outra chance senão reagir com o direito penal do inimigo. É preciso dizer que é visivelmente a intenção de Günther Jakobs salvar a característica de Estado de Direito no direito penal do cidadão, dividindo o direito penal hoje em vigor num direito penal “do cidadão” e um “direito

penal parcial do inimigo”.

Assim a dicotomia entre direito humano fundamental e direito de defesa do Estado, no direito penal do inimigo é resolvida com uma decisão em favorecer o Estado. O conceito base que perpassa a decisão é a própria compreensão do Estado como bem inegociável, um passo além (ou aquém!) do contratualismo moderno. Comungando do mesmo entendimento, Paulo César Busato, em comparação com a obra de Agamben, doutrina:

A admissão de um modelo de Direito penal do inimigo, equivale à admissão, como regra jurídica, de uma postura de combate própria do Estado de exceção. Por isso, a proposta

15 PRITTWITZ, C. O direito penal entre direito penal do risco e direito penal do inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal. Trad. Helga Sabotta de Araújo e Carina Quito. Artigo n. 37. Direito Penal, v. 2. Organizadores: Alberto Silva Franco, Guilherme de Souza Nucci. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 915-927. Há, ainda, publicação na Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCCRIM) n. 47, mar./abr. 2004. Para se aprofundar ler Günther Jakobs: Direito penal do inimigo. Organização e introdução: Luiz Moreira, Eugênio Pacelli de Oliveira. Tradução dos originais em alemão: Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. Criticando tal teoria, por todos, ler ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

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de Jakobs não pode arvorar-se às pretendidas conexões com a teoria contratualista, mas sim com as justificações de imposição de regras com base na soberania para além do direito defendidas por Carl Schmitt16.

Falar, em direito penal do inimigo, pode levar a criação, claro que de forma crítica a teoria criada por Jakobs, de Roque de Brito Alves, de um direito penal amigo, que aduz:

Ao contrário de tal teoria antidemocrática e inaceitável, entendemos que existe e podemos

expor, em estrito aspecto técnico-jurídico, a nossa tese do “Direito Penal Amigo”, opondo-

se a tal “Direito Penal do Inimigo”, tendo-se em vista a nossa legislação penal (Código Penal

e legislação extravagante) e também a atual Constituição de 1988 – que têm claramente

inúmeros textos que beneficiam ao autor de crime ou mesmo a alguém já condenado,

o qual continua como cidadão embora seja um delinquente ou um apenado. Tais textos

benéficos passam a ser “direitos”, pois estão na lei e constituem a estrutura ou conteúdo

da nossa teoria do “Direito Penal Amigo” do criminoso ou do já condenado, em um

evidente garantismo penal, fazendo esta nossa teoria que o Direito Penal não exista, não

seja aplicado ou compreendido unicamente em termos de repressão. Também existe

garantismo penal em vários textos de da nossa vigente Constituição.17

Atentado para o alerta de Baratta acerca da relação da sociologia jurídica com a ciência do direito, tendo em vista que o objeto da ciência do direito são as normas e as estruturas normativas, “enquanto a sociologia jurídica tem a ver com modos de ação e estruturas sociais”18, indagamos Jakobs, sobre sua teoria, e como se sustenta num Estado Democrático de Direito, este respondeu que ao invés de longas explicações remetia ao prefácio de sua já citada obra, e este respondeu:

16 BUSATO, P. C. Thomas Hobbes penalista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. (Coleção por que ler os clássicos v. 2). p. 121.Traz, ainda, o referido autor, na mesma página, “Não é à toa que a proposta de um Direito penal do inimigo encontra-se perfeitamente ajustada à política criminal estadunidense do Século XX, que pode ser sintetizada nos Patriot Acts, que condensam a postura de subversão da ordem instituída, justificada pela necessidade de combater um inimigo. A situação de estabelecimento do Estado de exceção como regra pode ser vista na ordem militar promulgada pelo presidente dos Estados Unidos em 13 de novembro de 2001, confirmada pelo USA Patriot Act de 26 de outubro de 2001, autorizando coisas como o infinite dentention para não cidadãos acusados de terrorismo. Outrossim, esta situação concreta, se é que pode encontrar coincidências com um modelo de Direito penal do inimigo, tem suas raízes não em um modelo contratual, de pacto, mas sim em uma imposição de um Estado de exceção. Ademais, quando identificada a realidade a um modelo teórico, este último, por muito que pretenda ser explicativo ou descritivo, sempre comporá uma espécie de legitimação daquele”.

17 ALVES, R. de B. O direito penal amigo. Opinião: Diário de Pernambuco, Recife, Caderno. A, p. 11, 13 dez, 2009.

18 BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. (Coleção Pensamento Criminológico, n. 1). p. 22.

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Das Problem ist an einer Berührungsstelle von drei Systemen angesiedelt: Rechtssystem, wissenschaftliches System und politisches System. Die meisten Autoren halten das nicht sauber auseinander, während ich versuche, streng im wissenschaftlichen System zu argumentieren.19

O âmbito da teoria e do sistema pode ter uma conexão consistente de axiomas e teorema, mas sua aplicação – como no caso discutido do terrorismo – torna o direito penal do inimigo um pensamento que no mínimo pode ser perigosamente mal interpretado como uma sustentação e planificação do totalitarismo. Há um abismo entre o estudo teórico e sua intenção científica e a aplicação política de suas teses. Com tal resposta, conclui-se o que Claus Roxin (2004) havia respondido sobre o tema Direito Penal do Inimigo:

Von einem ‘Feindstrafrecht’ halte ich nichts. Es handelt sich hier um eine Idee dês Bonner Professors Jakobs, dês bestimmten, besonders gefärhrlichen Delinquenten (etwa Terroristen) als Feinde behaldeln und die bürgerlichen Freihetsrechte absprechen will, die dem Belschuldigten sonst zustehen. Wenigstens will er dem Staat das Recht zugestehen, ein solches Feindstrafrecht zu schaffen.

Das ist ein sehr bedenklicher Gedanke, der eine Tendenz zum Totalitarismus aufweist. Es ist ein fundamentals Prinzip des Rechtsstaats, dass alle Menschen vor dem Gesetz gleich sind. Ein Staat, der dieses Prinzip aufgibt, ist kein Rechtsstaat mehr.

Eine nähere Auseinandersetzung mit der Lehre von Jakobs ist aber deshalb nicht möglich, weil dieser sich bisher nicht näher dazu geäussert hat, weche Möglichkeiten der Rechtseinschränkung er dem Staat gegenüber ‘Feinden’ einräumen will”.20

Com relação à doutrina de Zaffaroni indagou em palestra proferida no Ciclo de Palestras da Ordem dos Advogados do Brasil em Brasília/DF (OAB/DF), se, é possível, constitucionalmente, num estado democrático de direito, falar-se em inimigo?

Lançou a pergunta para em seguida opinar que fora da hipótese bélica, do direito de guerra, não há razão para o Estado de Direito falar em inimigo. Segundo defendeu, as teorias criminológicas vigentes têm raízes na Idade Média, com o conceito de inimigo

19 Em tradução livre, temos: “O problema está localizado na interface (ponto de contato) entre três sistemas: sistema jurídico, sistema científico e sistema político. A maioria dos autores não separa bem enquanto eu tento argumentar rigidamente dentro do sistema científico”.

20 Em tradução livre, temos: “Eu não concordo com nada disso. Isso é uma idéia do Professor de Bonn Jakobs que quer tirar os direitos civis do delinqüente como terrorista tratando como inimigos os que como acusados teriam direito. Pelo menos quer conceber ao Estado o direito de criar tal direito penal do inimigo, é um pensamento que suscita cuidado, pois demonstra uma tendência, para o totalitarismo. É um princípio fundamental do Estado de Direito que todos os homens são iguais perante a lei. Um Estado que abre mão desse princípio não é mais um Estado de Direito”.

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que remete às bruxas e aos hereges. Perante esse inimigo o poder punitivo não tem de conhecer limites, conforme o entendimento da época. É o direito penal que vivemos até hoje, que foi se repetindo ao longo da história com sucessivos inimigos, como Estados totalitários, comunismo ou drogas.

Informou ainda que, atualmente, 70% dos presos nas cadeias da América Latina não estão condenados, mas em prisão preventiva. São os presos por via das dúvidas. É o direito processual gerando o direito penal do inimigo”. Concluiu declarando que para a fortificação do Estado de Direito, a arma ideológica que temos não pode admitir a ideia de um inimigo. Essa ideia é própria do Estado de Polícia, e nossa função jurídica é conter esforços cujo intento seja a quebra da contenção do Estado de Direito.21

De fato, a legislação brasileira em matéria penal e processual penal refletiu nos anos de 1990 uma política criminal de recrudescimento, extremamente punitivista e derivada da opinião pública, exemplos claros são as leis n.º 8072/90 (Lei dos Crimes Hediondos)22 e lei nº 9034/95 (Lei da Criminalidade Organizada), ou seja, o Direito Penal, servindo de panaceia para problemas sociais seríssimos, pois mais fácil alterar-se um artigo de lei que informar bem e educar a sociedade, daí a profusão de leis penais simbólicas.23

É este Direito Penal simbólico que observa com sagacidade Gabriel Ignácio Anitua:

As políticas penais que os diversos governos da atualidade implementam têm uma função simbólica declarada de impor os valores morais tradicionais. Para isso, é utilizada a ferramenta tradicional de reprimir e, ao mesmo tempo, construir subjetividades.24

É neste sentido que aduz Marco Antônio Nahum “Há muito vivemos um vendaval repressivo, fruto de emoções e demagogias irresponsáveis”25, fomentado pelo discurso repressivo das instâncias de controle, gerando uma política criminal do terror.

21 Disponível em <http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2734649/eugenio-raul-zaffaroni-e-condecorado-na-oab-df>. Acesso em: 11 jun. 2011.

22 FRANÇA, L. A. Governando através do crime: anotações sobre o tragicômico fenômeno da lei dos crimes hediondos. In: FRANÇA, L. A. (Org.); BUSATO, P. C. (Coord.). Tipo: Inimigo. Curitiba: FAE Centro Universitário, 2011. p. 73-95. Doutrina, ainda, de forma lúcida e crítica: “O tragicômico fenômeno da Lei dos Crimes Hediondos é o caso mais emblemático deste país de uma lei extremamente punitivista, derivada da opinião pública, estruturada em plena verborragia jurídica, criada única e exclusivamente como um (péssimo) instrumento de administração pública. Eis a referência ao passo inaugural de uma nova arte de se governar no Brasil, fundada no crime, na urgência e na exceção”.

23 BUSATO, P. C. O outro como inimigo: um discurso punitivo de exclusão. IN: MUÑOZ CONDE, F. Crítica ao direito penal do inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. Doutrina que: “No entanto, erra quem pensa que só agora estamos diante de uma situação de emergência, ignorando toda a espiral de violência fomentada pelo próprio discurso repressivo das instâncias de controle que desde há muito vêm utilizando o Direito penal como resposta à demanda por segurança”.

24 ANITUA, G. I. Histórias dos pensamentos criminológicos. Trad. de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan : Instituto Carioca de Criminologia, 2008. p. 802.

25 NAHUM, M. A. R. A repressão ao crime, e o antiterrorismo. Boletim do IBCCRIM, São Paulo, v. 11, n. 128, jul. 2003.

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São na verdade políticas criminais de intolerância, revestidas de cientificidade, apresentando-se como um Direito Penal do Inimigo ou um Direito Penal de velocidades, duas ou três.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto acima, a obra de Giorgio Agamben traz um real contraponto ao direito penal do inimigo proposto por Jakobs, este, como se viu, tenta por meio de uma teoria, apesar de afirmar que não, em sua obra, ir de encontro ao Estado Democrático de Direito, pois negar àquele as garantias que qualquer cidadão possui, regride ao que inevitavelmente o fez a Escola de Kiel, num período nazifascista e o mundo atual não pode e não deve ser seduzido pelo “canto da sereia” como no início deste novo milênio fizeram e fazem os Estados Unidos.

É o que doutrina Gabriel Ignácio Anitua, sobre a obra de Agamben:

Em seu livro exemplar, Homo Sacer, Giorgio Agamben faz referências às novas “não pessoas” claramente visíveis quer na “velha” e auto indulgente Europa, quer nos evidentemente imperialistas Estados Unidos. É o lugar dos refugiados, dos imigrantes clandestinos ou sem papéis.26

Não é demais lembrar o que com propriedade doutrina Prittwitz com invulgar clareza:

O dano que Jakobs causou com suas reflexões e seu conceito de direito penal do inimigo é visível. Regimes autoritários adotarão entusiasmados a legitimação filosoficamente altissonante do direito penal e processual contrário ao Estado de Direito. Mas também na discussão na Alemanha ele pode ser responsabilizado por quebrar o tabu de destruir desnecessariamente os limites pelo menos em tese indiscutíveis entre direito penal e guerra. Vêm à mente paralelos com a discussão havida no ano passado – e que os juristas alemães consideravam quase impossível – sobre a possibilidade de eventualmente empregar até mesmo a tortura em determinados casos excepcionais.27

Assim o fizeram os Estados Unidos, na sua guerra ao terror. Um Estado enfrentando indivíduos, sua arma é anular o indivíduo. Pelo outro lado o terrorista enfrenta um Estado, mas sua arma para atingi-lo é atacar os indivíduos que o Estado deveria proteger, em última instância ambos reduzem o indivíduo a condição de ferramenta para finalidades políticas. O homem é, para ambos, inimigo.

26 ANITUA, G. I. Histórias dos pensamentos criminológicos. Trad. de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008. p. 838.

27 PRITTWITZ, C. O direito penal entre direito penal do risco e direito penal do inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal. In: FRANCO, A. S.; NUCCI, G. de S. (Org.). Direito penal: Artigo n. 37. Trad. Helga Sabotta de Araújo, Carina Quito, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. v. 2. p. 915-927.

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Por fim, sabido e ressabido que num Estado Democrático de Direito, como adverte Luigi Ferrajoli, “En efecto, La razón jurídica Del Estado de derecho no conoce enemigos y amigos, sino solo culpables e inocentes”.28

E continua o autor:

La estrategia militar de los Estados Unidos en La lucha contra el terror se ha revelado trágicamente fallida. Dos guerras contra tantos Estados, cuando las organizaciones terroristas consisten en variadas redes clandestinas compuestas de individuos sin rostro, han tenido el único efecto de secundar al terrorismo, degradar nuestras democracias, acrecentar La inseguridad y reducir las libertades civiles.

No momento em que o terrorista dobra o Estado e o faz abandonar seu papel de guardião da ordem jurídica ele prova ao indivíduo que faz parte do Estado que a guerra está perdida. Afinal, o que exatamente o Estado está defendendo se a ordem jurídica que é um de seus órgão vitais já foi perdida? O que não se pode permitir é o que adverte Elton Dias Xavier:

Nesse contexto, volta a lume a teoria do Estado de Exceção, a qual desponte, para alguns, como alternativa à integração do ordenamento democrático, capaz de possibilitar a adoção de certos mecanismos de defesa para prevenir e combater as agressões às democracias, ao próprio Estado e aos direitos por elas eleitos. Tal paradigma mostra historicamente uma tendência em transformar em prática duradoura de governo a ampliação dos poderes governamentais.29

Negar ao terrorista, no caso do artigo, mesmo a Osama Bin Laden, a noção de pessoa, sem um processo penal com as garantias constitucionalmente garantidas, além de grave é uma contradição em si, Ricardo Rabinovich, em artigo sobre pessoa, doutrina:

La idea de “persona” surgió en Roma ante la ausencia de un término que realmente definiera, en la ciencia jurídica y en el habla corriente, al miembro de nuestra especie. Se construyó como expresión técnica inclusiva, a través de la cual se reconocía un status especial, diferente al de las rei y al de los demás animales (los “cetera animalia” de Ulpiano en Digesto 1.1.1.3), a todos los homines, fueran romanos o extranjeros, hombres o mujeres, libres o siervos, nacidos o aún “in utero”. Todo ius (en el sentido de potestad exigible mediante una acción

28 FERRAJOLI, L. Democracia e garantismo. Prólogo Miguel Carbonell. In: El derecho penal del enemigo y La disolución del derecho penal. Traducción de Perfecto Andrés Ibáñez. 2. ed. España: Trotta, 2010. p. 234-250. Há, ainda, referência sobre o texto do Constitucionalista português: José Joaquim Gomes Canotilho. Estudos sobre direitos fundamentais. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2008. p. 240, “O Estado de direito não conhece amigos nem inimigos, mas só inocentes e culpados”.

29 XAVIER, E. D. Biopoder, biopolítica e o paradigma do estado de exceção. In: PABLO E. S. (Org.). IX Jornadas Nacionales de Filosofia y Ciencias Políticas. 1. ed. Mar del Plata: Universidad Nacional de Mar del Plata, 2009, v. 1, p. 111-145.

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o defendible por medio de una excepción) lo era de una persona y sólo las personas tenían iura, porque “es por causa de los homines que se constituyó todo el ius.30

Contudo, não se pode relegar o que coloca Robert Philippe sobre a questão criminal e as tendências criminalizantes oriundas do seio social, dizendo que: “[...] o peso das modas e dos lugares comuns faz-se sentir sobre tudo no que diz respeito ao crime”.31 Dito isto, pergunta-se: será que os Estados Unidos retornarão a assim proceder, como nos ensinaram num passado não tão remoto, a respeitar e garantir os direitos humanos? Sabemos que atualmente são os Estados Unidos os maiores violadores destes direitos, humanos, tão caros conseguidos com o sacrifício de muitos. Como evitar que o Estado, responsável pela guarda da ordem jurídica, desrespeite essa ordem em sua mais enraizada norma fundamental, os mais básicos direitos do homem? Não há resposta do próprio Estado para essa pergunta, todos e qualquer um podem ser reduzidos ao homo sacer.

Em que pese, recente projeto que pretende tipificar o crime de terrorismo (PLS n. 499/2013) e a Lei de Organização Criminosa n. 12.850/201332 fazer menção ao terrorismo e organizações terroristas internacionais, art. 1º, §2º, inc. II da referida lei, não parece adequado nos moldes em que o projeto citado pretende, além de demonstrar um expansionismo penal desnecessário. Peca novamente o legislador, em não “dialogar” com o jurista, porém em discussão que não pretenda ferir os princípios da legalidade, taxatividade, sendo por demais abertos, poderia-se pensar em um tipo de terrorismo nos moldes que as recentes legislações penais trazem.

30 RABINOVICH-BERKMAN, R. El concepto de persona ¿Ha devenido innecesario? (¿O acaso inconveniente?). [s.l.], [s.ed.], [s.d.].

31 ROBERT, P. Sociologia do crime. Trad. Luis Alberto Salon Peretti. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 9.32 BITENCOURT, C. R.; BUSATO, P. C. Comentários à lei de organização criminosa: lei 12.850/2013. São

Paulo: Saraiva, 2014. p. 37. Que aduz: “[...] A despeito de não haver terrorismo em território brasileiro, deve-se observar que o texto legal não fala em crime, mas em atos terroristas, aliás talvez até pela inexistência de legislação específica sobre o tema”.

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Iuri Victor Romero Machado1

1 Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo curso Luiz Carlos/Opet. Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Tuiuti do Paraná. Advogado.

RESUMO

O presente artigo constrói-se a partir da análise do direito à inviolabilidade domiciliar e suas peculiaridades, cujos fundamentos jurídicos emergem da importância de se tutelar a privatividade humana em face das intervenções estatais. Nesse sentido, abordam-se suas rotineiras violações pelos órgãos policiais, muitas vezes convalidadas por frágeis argumentações.

Palavras-chave: Inviolabilidade Domiciliar. Privatividade. Casa. Flagrante; Mandado de Busca.

ABSTRACT

The present article is constructed from the analysis of domicile inviolability and its peculiarities, from which legal grounds emerges from the importance of protecting the human privacy in the face of state intervention. Accordingly, in this approach we observe the routine violation by law enforcement, which are often carried by weak arguments.

Keywords: Inviolability of the home. Privacy. Home. Flagrant. Search Warrant.

INVIOLABILIDADE DOMICILIAR: NOVAS PERSPECTIVAS A PARTIR DO DIREITO COMPARADO

HOUSEHOLD INFRINGEMENT: NEW PERSPECTIVES FROM THE RIGHT COMPARED

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INTRODUÇÃO

Diuturnamente, os órgãos policiais Brasil afora realizam prisões, buscas e – eventualmente – apreensões nos domicílios de inúmeras pessoas, sobretudo (para não dizer exclusivamente) daqueles que são os alvos de sempre do sistema penal. Ocorre que, usualmente, essas ações policiais dão-se sem autorização judicial ou contato visual prévio com situação que possa ser definida como infração penal, o que inclusive justificaria a intervenção repressiva do Estado, independentemente de um mandado. Não raro, a relativização do direito fundamental à inviolabilidade domiciliar escora-se em denúncias anônimas ou suspeitas vazias quanto à prática de infrações penais. Entretanto, mesmo nessas condições, a jurisprudência brasileira tem se mostrado resistente em reconhecer a ilegalidade das prisões efetivadas ou a nulidade das provas obtidas.

Se assim é, por certo estamos diante de práticas abusivas ou ilegais, que devem ser reprimidas e não incentivadas, sob pena de o próprio Estado se converter em criminoso. Têm-se, portanto, situações quotidianas que desafiam profunda e contínua reflexão, a respeito da dimensão significante do direito à inviolabilidade domiciliar e do porquê de sua importância fundamental no que diz de uma existência digna em sociedade.

Não por acaso, o direito em questão se materializa sob a forma de garantia positivada em diversas legislações, mostrando-se assaz relevante seu estudo à luz da doutrina e jurisprudência estrangeiras. Afinal, em sendo a inviolabilidade domiciliar um direito consagrado por grande parte do mundo ocidental, imprescindível que se verifique como tem sido resguardada.

Importante desde já ressaltar que não existe qualquer controle estatístico quanto ao número de pessoas que têm sua intimidade invadida por conta dessas práticas, estejam elas cometendo ou não infrações penais, sendo imensuráveis os diversos prejuízos – inclusive morais – que sofrem em razão desses abusos. Aliás, diz-se de uma realidade clandestina, que jamais é ou será retratada nos autos que documentam a persecução penal.

Diante dessa realidade, numa sociedade que clama por cercear a liberdade dos outros (ninguém se vê como alvo do Estado Policial), as garantias constitucionais – como a que se debate – devem ser sempre resgatadas, em discurso e em ação. Afinal, apresentam--se como instrumentos essenciais de contenção do poder punitivo, os quais devem ser efetivados pelo Poder Judiciário em sua função máxima de dar concretude às garantias constitucionais que tem o cidadão frente a desvios e abusos de poder.

Posto isso, pontua-se que o presente estudo tem por escopo enriquecer o debate acerca dos limites que conformam um processo penal que se pretenda democrático, voltando-se especificamente à necessidade de se conferir efetividade à garantia

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constitucional da inviolabilidade domiciliar, seja no que diz respeito a prisões, seja no concernente à produção de provas. Nesse sentido, algumas abordagens específicas serão úteis, especialmente para elidir argumentos rasos com os quais se procura convalidar a devassa da intimidade do cidadão a partir de ações abusivas ou ilegais – o que se verifica, por exemplo, a partir dos argumentos prontos relacionados aos crimes permanentes. Pondera- -se, por fim, que, face à extensão protetiva do direito fundamental de que se trata, somente nas hipóteses de flagrante próprio pode ser a garantia relativizada independentemente de autorização judicial.

1 O DIREITO À INVIOLABILIDADE ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL NAS LEGISLAÇÕES OCIDENTAIS

O direito à inviolabilidade domiciliar, como um dos mais elementares do ser humano, é assegurado pelas mais diversas legislações do mundo ocidental, fazendo-se presente tanto nas Convenções de Direitos Humanos, quanto nas Constituições ou nas legislações infraconstitucionais.

Essa marcada presença decorre da reconhecida necessidade de se preservar a intimidade e o direito à propriedade que se estende a todos os indivíduos, eis que “uma sociedade sadia, civil, que tenha decoro, deve garantir ao indivíduo […] um oásis, um refúgio contra a indiscrição alheia, um recinto pessoal, um lugar inviolável que constitua a sua cidadela”.2 Por outra razão, ainda em 1886, assim afirmou a Suprema Corte Americana: “Our law holds the property of every man so sacred, that no man can set his foot upon his neighbor’s close without his leave”.3 E, mesmo antes, Lord Chatam proferiu seu famoso discurso perante o Parlamento inglês, destacando que

O homem mais pobre desafia em sua casa todas as forças da Coroa, sua cabana pode ser muito frágil, seu teto pode tremer, o vento pode soprar entre as portas mal ajustadas, a tormenta pode nela penetrar, mas o Rei da Inglaterra não pode nela entrar.4

Construída essa moldura introdutória – que bem desvela à máxima atenção reservada à inviolabilidade domiciliar –, cumpre pontuar que, no âmbito de proteção

2 Packard apud Paulo José da Costa Jr. O direito de estar só: a tutela penal da intimidade. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 19.

3 Boyd V. United States, 116 U.S. 616, 626. apud Florida v. Jardines, n. 11-564. p. 6.4 SILVA JR., W. N. da. Curso de direito processual penal: teoria (constitucional) do processo penal. Rio de

Janeiro: Renovar, 2008.

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internacional, encontram-se referências ao direito no art. 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1947; no art. 17 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966; no art. 8.1 da Convenção Europeia de Direitos do Homem; e no art. 11 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica).

Enquanto direito fundamental positivado nas Constituições, expressa-se pelos arts. 10.1 e 13 da alemã (Lei Fundamental); emendas 3 e 4 da americana; arts. 18 e 19 da argentina; art. 25.1 da boliviana; arts. 5º, incs. X e XI da brasileira; art. 19.5 da chilena; art. 15 da colombiana; art. 23 da costa riquenha; art. 56 da cubana; art. 66.22 da equatoriana; arts. 18.1 e 18.2 da espanhola; art. 14 da italiana; art. 16 da mexicana; arts. 2.7 e 2.9 da peruana; arts. 34.1 e 34.2 da portuguesa; art. 11 da uruguaiana; arts. 59 e 62 da venezuelana5; dentre inúmeras outras.

Voltando os olhos à legislação infraconstitucional brasileira, verificamos proteção à inviolabilidade domiciliar nos artigos 150 do Código Penal; 245, 246, 248, 283 e 293 do Código de Processo Penal e 70 a 78 do Código Civil/2002.

A difundida proteção garantida ao direito, revela-o, portanto, como manifestação básica da liberdade civil, sem a qual o ser humano não poderia exercer sua privatividade de forma plena, sem a qual não poderia, enfim, afirmar-se como indivíduo diante da sociedade e do Estado.

2 CONCEITO DE DOMICÍLIO

Antes de adentrar os fundamentos da inviolabilidade domiciliar e as hipóteses em que pode ser afastada, faz-se necessário compreender o que se entende por domicílio, qual seu conceito e delimitação. Afinal, para os diversos âmbitos do direito (penal, civil, administrativo etc.) há uma conceituação, a qual, via de regra, é mais limitada que a firmada por nossa Constituição Federal (CR/88), em seu artigo 5º, XI.6

Posto isso, cabe ressaltar, de início, que a proteção assegurada pela Constituição não se limita a casa7 ou domicílio em seus sentidos estritos.

5 ARROYO, S. C. Inviolabilidad del domicilio. p. 2; ALCALÁ, H. N. El derecho a la privacidad y a la intimidad em el ordenamiento jurídico chileno. In: Ius et praxis, v. 4, n. 2, 1998.

6 “A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou durante o dia, por determinação judicial”.

7 Significante utilizada por nosso Constituinte, a despeito da similitude para fins de proteção conforme se verá.

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A proteção constitucional tem abrangência jurídica mais ampla, para equipará-la (a casa) à habitação (individual ou coletiva), isto é, a qualquer espaço que não seja aberto ao público, independentemente do ânimo de residência ou moradia definitiva de seu titular, pois conforme leciona Castanho de Carvalho8, deixar a proteção unicamente ao domicílio (civil) seria equivalente a deixar sem proteção as demais projeções da vida privada.9

Em sendo uma projeção espacial do indivíduo, todo local que seja delimitado e separado, que se faça exclusivo em relação a terceiros encontra-se sob a proteção constitucional. Tucci, após afirmar que o conceito deve ser interpretado de forma elástica, cita Pitombo para apresentar os seguintes exemplos: habitação definitiva ou moradia transitória; casa própria alugada ou cedida; dependências de casa; qualquer compartimento habitado; aposento ocupado de habitação coletiva; estabelecimentos comerciais e industriais, fechados ao público; local de atividade profissional, fechado ao público; barco, trailer, cabine de trem, navio e barraca de acampamento; áreas comuns de condomínio, vertical ou horizontal.10

Nesse sentid, Mendes11 cita como exemplo o julgado no MS-MC 23.595, do Supremo Tribunal Federal (STF), no qual afirmou que a proteção constitucional visa “a) qualquer compartimento habitado, b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva, c) qualquer compartimento privado onde alguém exerce profissão ou atividade”.12 Trata-se

8 CASTANHO, L. G. G. de C. Processo penal e Constituição: princípios constitucionais do processo penal. p. 89.

9 De forma semelhante, Gomes Canotilho afirma que domicílio é uma “projecção espacial da própria pessoa [...]. Tendo em conta o sentido constitucional deste direito tem de se entender por domicílio desde logo o local onde se habita, a habitação, seja permanente seja eventual, seja principal ou secundária. Por isso, ele não pode equivaler ao sentido civilístico, que restringe o domicílio à residência habitual (mas certamente incluindo também as habitações precárias, como tendas, roulottes, embarcações), abrangendo também a residência ocasional (como o quarto do hotel) ou ainda os locais de trabalho (escritórios etc.); dada a sua função constitucional, esta garantia deve estender-se quer ao domicílio voluntário geral quer ao domicílio profissional (Código Civil, arts. 82º e 83º). A proteção do domicílio é também extensível à sede das pessoas coletivas”. CANOTILHO, J. J. G. apud CUPELLO, L. P. de F. Direito penal e processual penal luso-brasileiro. Breves reflexões. p. 97, destacou-se.

10 TUCCI, R. L. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro: 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

11 MENDES, G. F. Curso de direito constitucional. p. 480.12 López Menudo, de modo muito didático, identificou círculos concêntricos de proteção domiciliar:

“Sintetizando lo expuesto, cabe concluir distinguiendo las distintas situaciones a modo de tres circulos concéntricos. En el más interno se hallaria el domicilio constitucional – no obstante, más amplio que qualquier otro domicilio tradicional – caracterizado por tratarse de un lugar cerrado, afecto a la vida privada y que comporta un ius excludendi alios, incluida la Administración Pública. El círculo intermedio comprendería todo lugar cerrado, ostentando su titutlar un derecho de exclusión de terceros; y el problema consiste en si este derecho es oponible o no frente a la Administración, que es la cuestión que aquí estamos analizando. Por último, el circulo exterior encuentra protegido, como derecho de propriedad, por la ley civil o penal pero al que puede acceder libremente la Administración, pues lo contrario haria a ésta de pero condición que a cualquier particular”. LÓPEZ MENUDO, F. La intervención del juez para la defensa del domicilio y también de la propiedad? p. 21.

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de entendimento que é pacífico no STF, conforme se extrai, dentre outros julgados, do HC 93.050-6-RJ13.

Tal entendimento não diverge daquele construído em relação aos incisos 1 e 2 do art. 8º da Convenção Europeia de Direitos do Homem14 (CEDH) pelo Tribunal Europeu de Direitos do Homem (TEDH), para o qual seria muito restritivo limitar a noção de “círculo íntimo” aos modos escolhidos por cada pessoa para viver à sua maneira, excluindo o mundo alheio desse âmbito. Assim, para o referido tribunal, deve-se entender por vida privada o direito que tem a pessoa de estabelecer e desenvolver relações com outros seres humanos15, consignando que não há distinção relevante, para fins de proteção constitucional, entre as palavras casa e domicílio:

30. As regards the word “home”, appearing in the English text of Article 8 (art. 8), the Court observes that in certain Contracting States, notably Germany (see paragraph 18 above), it has been accepted as extending to business premises. Such an interpretation is, moreover, fully consonant with the French text, since the word “domicile” has a broader connotation than the word “home” and may extend, to a professional person’s office.

In this context also, it may not always be possible to draw precise distinctions, since activities which are related to a profession or business may well be conducted from a person’s private residence and activities which are not related may well be carried on in an officer or commercial premises. A narrow interpretation of the words “home” and “domicile” could therefore give rise to the same risk of inequality of treatment as a narrow interpretation of the notion of “private life” (see paragraph 29 above).

13 Nesse, o rel. Ministro Celso de Mello afirmou que “Para os fins da proteção jurídica que se refere o art. 5º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo de ‘casa’, revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (CP, art. 150, §4º, III), compreende, observada essa específica limitação espacial (área interna não acessível ao público), os escritórios profissionais, inclusive os de contabilidade, ‘embora sem conexão com a casa de moradia propriamente dita’ (Nelson Hungria). Doutrina. Precedentes” p. 2, HC 93.050-6 RJ, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma. In: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Processual Penal. Habeas Corpus nº 93050-6. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 31 jan. 2008.

14 8.1. “Everyone has the right to respect for his private and family life, his home and his correspondence” 8.2. “There shall be no interference by a public authority with the exercise of this right except such as is in accordance with the law and is necessary in a democratic society in the interests of national security, public safety or the economic well-being of the country, for the prevention of disorder or crime, for the protection of health or morals, or for the protection of the rights and freedoms of others”.

15 “The Court does not consider it possible or necessary to attempt an exhaustive definition of the notion ‘private life’. However, it would be too restrictive to limit the notion to an ‘inner circle’ in which the individual may live his own personal life as he chooses and to exclude therefrom entirely the outside world not encompassed within that circle. Respect for private life must also comprise to a certain degree the right to establish and develop relationships with other human beings”. Niemietz v. Germany judgement, ECHR 1991, § 29.

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31. More generally, to interpret the words “private life” and “home” as including certain professional or business activities or premisses would be consonant with the essential object and purpose of article 8 (art. 8), namely to protect the individual against arbitrary interference by the public authorities (see, for example, the Marckx v. Belgium judgment of 13 June 1979, Series A no. 31, p.15, para. 31). Such an interpretation would not unduly hamper the Contracting States, for they would retain their entitlement to “interfere” to the extent permitted by paragraph 2 of article 8 (art. 8-2); that entitlement might well be more far-reaching where professional or business activities or premises were involved than would otherwise be the case.16

A partir do exposto, pode-se, em síntese, entender como inviolável qualquer âmbito da vida privada que seja delimitado, que não tenha seu acesso liberado ao público. Isso justamente porque a proteção ao domicílio é instrumental: visa proteger a pessoa e não o local em si.

3 OBJETO JURÍDICO DO DIREITO A INVIOLABILIDADE DOMICILIAR

No que diz respeito aos fundamentos da garantia da inviolabilidade domiciliar, é entendimento corrente na doutrina que se apresenta como “dimanação da proteção da intimidade e da vida privada”.17 A isso se refere Navas Sánchez, ao afirmar que “su finalidad primordial sería la de proteger el domicilio en cuanto éste es una mera proyección de la libertad y autonomía y seguridad de la persona”.18

Ou seja, a garantia à inviolabilidade domiciliar visa à proteção de uma esfera particular da vida19, dentro da qual se desenvolve, sem interferências externas, a plena

16 Niemietz v. Germany Judgment, ECHR 1991, § 30 e 31.17 CASTANHO de CARVALHO. Processo Penal e Constituição... p. 89.18 NAVAS SÁNCHEZ, M. del M. Inviolabilidad o intimidad domiciliaria? A propósito de la jurisprudencia

constitucional sobre el derecho fundamental a la inviolabilidad del comicilio. Revista de Derecho Político, n. 81, Mayo/Ago. 2011.

19 Alcalá explica que “las acciones privadas internas están constituidas por los comportamietos o conductas íntimas o inmanentes que principian y concluyen en el sujeto que los realiza, no trascendiendo de este, comprendiendo los hechos o actos realizados en absoluta privacidad o de los que nadie puede percatarse”. Continua o autor fazendo referências a decisões da Corte Suprema Argentina: “La jurisprudencia de la Corte Suprema Argentina ha determinado en los casos ‘Bazterrica’ (Fallos, 308; 1412) y ‘Ponzetti de Balbin’ (fallos, 306; 1982), que el Estado debe concretar ‘la protección de la privacidad comenzando por no entrometerse en ella, respetando el área de inmunidad de toda persona”. ALCALÁ, H. N. El derecho a la privacidad y a la intimidad en el ordenamiento jurídico chileno. Ius et praxis, v. 4, n. 2, 1998.

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intimidade da pessoa (o direito de “gozar da tranquilidade da vida íntima”20), estando ligado ao desenvolvimento integral do ser humano.21

Por intimidade há de se entender, com Costa Jr., a necessidade humana de encontrar, no recolhimento, a paz e o equilíbrio que nos são retirados pelo acelerado ritmo da vida moderna.22 O autor explica que existem duas esferas de proteção da personalidade: a individual e a privada, sendo que todo direito que se destina à proteção da individualidade serve à proteção da personalidade na esfera pública; por outro lado, a proteção da privatividade23 se destina ao desenvolvimento à margem da sociedade.24

Quanto à privatividade, imperioso ressaltar que possui um núcleo que deveria ser inatingível, imune a agressões, que não se justificariam ainda que calcadas no interesse coletivo. Ou seja, nem mesmo a prevenção e o controle de crimes poderiam legitimar violações à privatividade, na medida em que a proteção dos direitos da personalidade é dever do Estado. Nesse sentido, Cupello afirma que não é lícito ao Estado interferir na esfera pessoal ao ponto de subordiná-la inteiramente, sob pena de caracterização do “totalitarismo”, pois tendo como objetivo a valorização da pessoa humana, ao Estado é obrigatório proporcionar mecanismos capazes de levar à realização pessoal.25 Não por outra razão, ao elaborar a “teoria dos dois níveis”, o Tribunal Constitucional Alemão (TCA) estabeleceu diferenças entre o “simples âmbito privado” e o “âmbito intangível da vida privada”. Para o TCA, enquanto naquele se admite a utilização dos meios de prova – a análise de sua validade – a partir da ponderação entre os interesses de persecução e do acusado, neste o interesse geral de persecução jamais justificará qualquer interferência.26 Como bem destaca Miranda, a

20 MENDES. Curso de direito constitucional... p. 480. No mesmo sentido, Silva afirma que “[...] a Constituição está reconhecendo que o homem tem direito fundamental a um lugar em que, só ou com sua família, gozará de uma esfera jurídica privada e íntima, que terá que ser respeitada como sagrada manifestação da pessoa humana.” SILVA, L. J. A. da. Curso de Direito Constitucional positivo; 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

21 Navas Sánchez explica que o fundamento está diretamente ligado ao âmbito de proteção: “En efecto, en la medida en el fundamento prevalente de este derecho es la libertad y autodeterminación del indivíduo, necessarios a su vez para el libre desarrollo de su personalidad, la delimitacion del domicilio inviolable vendrá dado por su relación com tal noción”. NAVAS SANCHEZ, M. del M. Inviolabilidad o intimidad domiciliaria?

22 COSTA JR., P. J. da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

23 Costa Jr. explica porque é correto falar privatividade no lugar de privacidade: “a expressão exata, em bom vernáculo, é privatividade, que vem de privativo. E não privacidade, que é péssimo português e bom anglicismo (vem de privacy)”. O direito de estar só... p. 17.

24 COSTA JR. O direito de estar só... p. 23.25 CUPELLO. Direito penal e processual penal... p. 131.26 MUÑOZ CONDE, F. Valoración de las grabaciones audiovisuales em el proceso penal. 2. ed. Buenos

Aires: Hammurabi, 2007. p. 54.

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obtenção de provas para uma persecução penal encontra limites constitucionais expressos no que se entende por vida privada, não sendo permitidas buscas que se traduzam numa abusiva intromissão nesse âmbito ao mesmo tempo exclusivo e excludente.27

Com efeito, “a ideia de pessoa é fundamental tanto no domínio da Ética como no campo do Direito”28 e o recesso do lar é indispensável ao desenvolvimento humano.

Nos primeiros pronunciamentos sobre o tema, o Tribunal Constitucional Espanhol (TCE) deixou claro que a moradia é o local onde a pessoa pode desenvolver sua intimidade e vida privada à margem das convenções sociais, consignando que:

La inviolabilidad del domicilio constituye un autentico derecho fundamental de la persona estabelecido, según hemos dicho, para garantizar el ámbito de privacidad de ésta dentro del espacio limitado que la própria persona elige y que tiene que caracterizarse precisamente por quedar exento o inmune a las invasiones o agressiones exteriores de outras personas o de la autoridad pública. Como se ha dicho acertadamente, el domicilio inviolable es un espacio en el cual el indivíduo vive sin estar sujeto necesariamente a los usos y convenciones sociales y ejerce su libertad más íntima. Por ello, a través de este derecho no sólo es objeto de protección el espacio físico en sí mismo considerado, sino lo que en él hay de emanación de la persona y de esfera privada de ella. Interpretada en este sentido, la regla de la inviolabilidad del domicilio es de contenido amplio e impone una extensa serie de garantias y de facultades, en las que se compreenden las de vedar todas clases de invasiones […] (STC 22/1984).

De modo similar, os magistrados Jaeger e Hohmann-Dennhardt formularam voto em julgado do TCA considerando que os arts. 1º e 20º da Lei Fundamental, não podem ser objeto de intervenção, “pues el desarrollo de la personalidad requiere de espacios reservados […] la vivienda privada sirve al indivíduo como el último refugio […] Ella (la vivienda particular) es, por lo tanto, como lugar medio para preservar la dignidad humana”.29 Conforme esclarece Muñoz Conde, o argumento principal dos magistrados desenvolve-se no sentido de que a dignidade da pessoa humana protege o núcleo de configuração da vida privada e que, por consequência, todos têm direito a tranquilidade de suas casas.30

Por sua vez, a Suprema Corte Americana consignou em recente decisão que quando se trata de questões concernentes a 4ª emenda “the home is first among equals. At the

27 MIRANDA, J; MEDEIROS, R. Constituição portuguesa anotada. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. v. 1.28 REALE, M. apud CUPELLO. Direito penal e processual penal... p. 132.29 MUÑOZ CONDE, F. Valoración de las grabaciones... p. 57.30 MUÑOZ CONDE, F. Valoración de las grabaciones... p. 57.

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Amendment’s ‘very core’ stands ‘the right of a man to retreat into his own home and there be free from unreasonable governmental intrusion”.31

Percebe-se, então, que o cidadão tem direito e, mais que isso, necessita da vida privada como forma de proteção de sua dignidade. Sem ela, o ser humano restaria alijado de uma parcela significativa de suas possibilidades de desenvolvimento pessoal, o que é causa certa de déficits de personalidade.

3.1 DUPLA PROTEÇÃO?

Consoante acima afirmado, o direito à inviolabilidade domiciliar tem caráter instrumental em relação à dignidade da pessoa humana e à privatividade. Assim sendo, imperioso questionar se o direito já estaria protegido pela CR/88 em seu artigo 5º, X32 e se, consequentemente, o inciso XI seria um reforço do mesmo.

A situação que se expõe pela divisão que se opera nos citados incisos da Constituição brasileira foi objeto de reflexão por parte de Navas Sanchéz, a qual questionou a autonomia do direito na Constituição Espanhola para concluir que a clivagem termina por privar a inviolabilidade domiciliar de uma verdadeira autonomia, tornando-a uma concretização da intimidade no âmbito domiciliar.33 A autora cita a doutrina de Biglino Campos, para o qual essa separação

consiste en reducir, en cierta medida, la sustantividad de la inviolabilidad de domicilio, al atribuir al artículo 18.2 de la Constituición un cierto papel instrumental en relación a la intimidad. Es posible que las garantías institucionales puedan cumplir tareas de este tipo. Pero, sin embargo, una función de tales características parece incompatible com la própria naturaleza de los derechos fundamentales, que no deben tener outro bien jurídico protegido que el pueda deducirse de sus próprios elementos.34

31 FLORIDA V. J., nº 11-564. p. 4. A decisão trata de um caso em que policiais utilizaram um cachorro farejador para descobrir se havia drogas na casa de um suspeito. Após liberarem o cachorro para adentrar na propriedade e demonstrar que havia drogas, os policiais solicitaram um mandado de busca, o qual ao ser cumprido ocasionou na apreensão de quantidades de maconha. Importante destacar que em voto conjunto o Juiz Kagan consignou que a questão em debate era “easy case easy twice over” (p. 5, voto conjunto).

32 “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

33 NAVAS SANCHEZ. Inviolabilidad o intimidad domiciliaria?...34 BIGLINO CAMPOS apud NAVAS SANCHÉZ. Inviolabilidad o intimidad domiciliaria?...

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A questão também foi analisada por Silva Jr., para quem o constituinte achou por bem ressaltar a vida privada para não confundi-la com a inviolabilidade domiciliar, pois enquanto aquela diz respeito à proteção da vida pessoal e familiar, esta é ligada ao aspecto físico do ambiente familiar ou profissional.35 Mais à frente, o autor deixa claro seu entendimento no sentido de que a inviolabilidade do domicílio se trata de desdobramento do direito à intimidade, na medida em que a garantia constitucional resguarda não o proprietário, mas o morador, o que denota a preocupação com as pessoas que se utilizam do espaço.36

Ante tais constatações, faz-se necessário afirmar, juntamente com Castanho de Carvalho, que, em princípio, a inviolabilidade da privatividade prevista no inciso X do art. 5º da CR/88 é muito abstrata37. Desse modo, o inciso XI do mesmo artigo, além de ser um reforço da tutela à privatividade assegurada pelo inciso X – na medida em que ressalta a impossibilidade da pessoa ser alvo de interferências arbitrárias em seu lar –, termina por expressar os contornos de limitação do direito, ao estabelecer as hipóteses em que poderá ser relativizado (por meio da expressão “salvo em caso de”).

Nesse contexto, imprescindível que as normas veiculadas pelos incisos sejam lidas/interpretadas em conjunto, eis que evidente seu nexo. Afinal, inegável que o desenvolvimento e as manifestações da vida íntima/privada se dão, em regra, num âmbito fechado à sociedade.

4 O SCRIPT DA INVASÃO AO DOMICÍLIO

Como se sabe, a CR/88 previu a situação de flagrante delito dentre as hipóteses de relativização da garantia à inviolabilidade domiciliar. Porém, embora inserida como hipótese de exceção a uma garantia fundamental, fato é que a situação de flagrante continua sendo interpretada de forma elástica, de modo a servir de salvo-conduto a antigos abusos e ilegalidades de práticas policiais que reportam a período anterior à CR/88, quando ainda em pleno vigor o art. 241 do Código de Processo Penal (CPP) – que autorizava buscas domiciliares independentemente de mandado judicial, desde que realizadas por Delegado de Policia.

Ou seja, mesmo a promulgação da carta cidadã não foi suficiente a impedir

35 SILVA JR. Curso de direito processual penal... p. 620ss.36 SILVA JR. Curso de direito processual penal... p. 620ss.37 CASTANHO DE CARVALHO. Processo penal e Constituição… p. 74.

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que os órgãos policiais mantivessem antigas práticas, em violação sistemática ao direito fundamental à inviolabilidade domiciliar. Sob o manto da situação de flagrante – nem sempre real –, ignora-se que “a entrada de órgãos estatais mediante uso da força num domicílio e a busca nele realizada significa, em regra, uma grave intervenção na esfera de vida pessoal do atingido”.38

Com efeito, os órgãos policiais de todo Brasil têm se valido das mesmas justificativas de outrora para arrebentar as portas das casas brasileiras, mas, principalmente, das casas pobres, pois raramente se observa a mesma truculência ou empenho em bairros nobres – não obstante se saiba que seus moradores também cometem infrações penais das mais variadas espécies39. Veja-se que os exemplos citados por Rosivaldo Toscano Jr., Juiz de Direito no Estado do Rio Grande do Norte, são os mesmos que ocorrem no Paraná, onde “o script era, quase que invariavelmente, o mesmo: a polícia dizia que recebeu denúncia anônima de que determinada pessoa estava praticando algum crime. Dirigiam-se ao local e visualizavam o cidadão entrar ou sair de casa, geralmente correndo”.40 Mas o quotidiano forense é pródigo em situações que enriquecem o referido script, sempre enunciadas pelos agentes policiais, que por estas narrativas tentam conferir legitimidade a suas práticas: populares informaram que ocorria tráfico na casa; abordamos usuário em local X e o mesmo informou que comprou o entorpecente em tal casa41; chegou-nos a informação de que “fulano” praticava roubos e que tinha armas ou produtos de origem ilícita em sua casa; abordamos “fulano” em local X e ele informou que guardava drogas em outro local; dentre inúmeros outros relatos, invariavelmente semelhantes.

O ponto comum observável na maioria esmagadora das situações expostas está no fato de que os policiais não veem a ocorrência do tráfico, tampouco as armas ou o produto do roubo, eles apenas afirmam que tiveram conhecimento – foram informados – e que, portanto, acreditam saber que na casa alvo da intervenção se perpetra algum ilícito penal, o que julgam suficiente a justificar toda sorte de truculências.

Seguindo este script – que se afirma como verdadeiro clichê –, os policiais invadem inúmeras casas, devassam com a privatividade de um incalculável número de cidadãos, arrebentando com direitos elementares das populações mais pobres e, nas hipóteses em que encontram o “flagrante”, o Poder Judiciário tem validado a prisão e a prova,

38 Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. p. 686.39 Bem lembra Rosa que “embora seja uma prática rotineira a violação da casa de pessoas pobres, porque a

polícia não entra assim em moradores das classes ditas altas, não se pode continuar tolerando a arbitrariedade”. ROSA, A. M. da. Tráfico e flagrante: apreensão da droga sem mandado. Uma prática (in)tolerável?

40 TOSCANO JR., R. A inviolabilidade do lar e a dimensão (in)constitucional do flagrante oriundo exclusivamente de denúncia anônima.

41 Muitas vezes ignorando que a conduta melhor se enquadra em tipos que sequer autorizam o aprisionamento, como é o caso do previsto no art. 28 da lei. 11.343/2006.

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especialmente a partir de argumentos que se escoram na suposta permanência da prática ensejadora do “flagrante”42.

De tal modo, Ministério Público e Poder Judiciário apoderam-se do discurso43 utilitarista que se constrói na fantasiosa luta “do bem contra o mal e dos homens de bem contra os marginais”44, segundo o qual “pela ótica da eficiência se sustentaria a legalidade do flagrante obtido após a entrada ilegal em uma casa”.45

Ignora-se que a casa é a emanação da pessoa e de sua privatividade; que a inviolabilidade domiciliar veda qualquer espécie de invasão (particular ou da Administração Pública); que “a intervenção decorrente de uma busca só deve ocorrer se antes uma instância neutra, revestida de independência judicial, tiver examinado se estão presentes os pressupostos para tanto legalmente previstos”.46

Constata-se, então, a fragilidade dos argumentos utilizados para a relativização de garantias fundamentais – como é o caso da inviolabilidade domiciliar –, o que escancara a política seletiva do sistema penal e explica os motivos de muitos brasileiros ainda não terem superado a condição de subcidadãos, os quais anseiam por um Estado Social, mas só conhecem o Estado Policial/violador de suas liberdades mais básicas.47

4.1 POR QUE É NECESSÁRIO UM MANDADO JUDICIAL?

Ante a importância singular do direito (fundamental) à inviolabilidade domiciliar, sua relativização exige situações claras e atestadas ou uma ordem judicial, com “exigencias jurídico--constitucionales estrictas”, que não se imponha, segundo Ambos, como uma “desobediencia

42 Sempre importante destacar que a frieza dos autos passa ao largo da brutalidade com que são realizadas as abordagens, buscas pessoais e domiciliares. Veja-se a sábia reflexão de, segundo o qual “O que distingue o mal burocraticamente administrado e realizado não é tanto sua banalidade (particularmente se comparado com os males que costumavam assombrar as sociedades antes de se inventarem a burocracia moderna e seu ‘gerenciamento científico do trabalho’), mas a sua racionalidade”. BAUMAN, Z. Medo líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 85.

43 TOSCANO JR. A inviolabilidade do lar...44 É possível fazer um paralelo com a crítica feita por Coutinho àqueles que defendem o (falacioso) princípio

da verdade material: “sem embargo, isto é possível porque se mantém vivo – e mantém-se mesmo! –, no imaginário coletivo, a ameaça do inimigo, do contrário, do invasor, ou quem se prestar a tanto; sem embargo, no limite, cria-se um ‘bode expiatório’ (em sociedades autoritárias) [...]”. COUTINHO, J. N. M. de. Introdução aos princípios do Direito Processual penal brasileiro. Separata ITEC, ano 1, n. 4, jan./mar. 2000.

45 TOSCANO JR., R. Sobre o fio da navalha: a justiça criminal entre a eficiência e os direitos fundamentais.46 Cinquenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. p. 686.47 TOSCANO JR. A inviolabilidade do lar... p. 10.

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consciente o un burdo desconocimiento de los requisitos de la obligacion de orden judicial”48, pois seria “intolerable para la comunidad jurídica y su idea del derecho, si la protección del domicilio asegurada constitucionalmente mediante el control judicial pudiera ser siempre dejada sem efecto arbitrariamente, sin que esto aparejase consecuencia alguna”.49

Com efeito, qualquer limitação aos direitos fundamentais está vinculada a pressupostos estritos, pois os poderes públicos não podem atuar de forma livre, ignorando o poder expansivo do Estado Policial, para o qual alerta Zaffaroni.50 Como bem pontua Pacelli de Oliveira, as garantias processuais são exigências de controle ao exercício do Poder Público, principalmente porque o status hierárquico do Estado enseja diversas violações de direitos fundamentais, além de causar desigualdades processuais51. Cabe ainda relembrar que a inviolabilidade domiciliar está intimamente ligada não só a prisões em flagrante, mas também a buscas e apreensões que, via de regra, se dão no bojo da investigação, momento em que inexiste contraditório.

Posto isso, frise-se que qualquer restrição a um direito fundamental deve ser entendida como a exceção de uma exceção (“limite do limite”, segundo Cabezudo Bajo52). Com o objetivo de garantir sua conformidade constitucional, deve encontrar-se legalmente prevista, bem como deve perseguir um fim constitucionalmente legítimo.53

Assim sendo, é de se concluir que a violação de domicílio, enquanto intervenção estatal, requer expressa autorização judicial, em decisão devidamente motivada.54 Isso porque ao Poder Judiciário cabe garantir de forma imediata à eficácia dos direitos fundamentais, a partir de um juízo de ponderação aplicado ao caso concreto55, sendo que é na fundamentação que se verificam quais as circunstâncias e normas consideradas pelo Juiz em sua decisão, que também há de observar a proporcionalidade das medidas que veicula.

48 AMBOS, K. Las prohibiciones de utilización de pruebas em el proceso penal alemán – fundamentación teórica y sistematización. p. 40.

49 AMBOS. Las prohibiciones de utilización... p. 40.50 ZAFFARONI, E. R. et. al. Direito penal brasileiro: teoria geral do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2003.51 OLIVEIRA, E. P. de. Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais. 3. ed. São

Paulo: Atlas, 2012. p. 152.52 AGUIAR apud CABEZUDO BAJO. La restricción... p. 190.53 CABEZUDO BAJO. La restricción de los derechos fundamentales... p. 194.54 CABEZUDO BAJO cita dentre outras medidas “tales como reserva de ley organica, la garantia del contenido

esencial, la motivación de la limitación del derecho, el cumplimiento del principio de proporcionalidad o el ‘mayor valor’ de los derechos”. La restricción... p. 221.

55 CABEZUDO BAJO. La restricción... p. 222.

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Com efeito, existe uma tensa relação entre o interesse de uma administração judiciária funcional, que, de um lado, seja capaz de esclarecer os fatos criminosos, mas que, por outro, seja eficaz em garantir os direitos fundamentais do cidadão suspeito ou acusado. Nesse “fio de navalha”, o sacrifício de direitos fundamentais deve ser sempre sopesado pelo Juiz, pois a busca pela defesa social é adstrita a uma “escrupulosa regra moral”.56 Como já dito, “por isso, por princípio, a intervenção decorrente de uma busca só deve ocorrer se antes uma instituição neutra, revestida de independência judicial, tiver examinado se estão presentes os pressupostos para tanto legalmente previstos”.57

Veja-se, nesse sentido, importante decisão do Tribunal Supremo Espanhol, o qual estabeleceu que:

La restricción de un derecho fundamental tan transcendente como es la inviolabilidad del domicilio, es natural que no pueda adoptarse sinó después de razonar y fundamentar, jurídicamente, la explicación adecuada de tan excepcional medida, pero en función de um mero formalismo rituario, antes al contrario, en orden al mesaje que la resolución debe comportar, porque la lógica jurídica justificativa del acuerdo há de ir dirigida, primero al juez que adopta la resolución, en tranquilidad de la propia conciencia, y en segundo lugar, a la sociedad com objeto de hacerla saber el porqué la invasion domiciliaria y el analisis ponderativo tenido en cuenta a la hora de juzgar proporcionalmente los distintos intereses en juego.58

Conclui-se, portanto, que ante a importância basal do direito à privatividade, os limites de sua relativização devem ser pauta constante dos debates acadêmicos, de modo que se evite a perpetuação de práticas que o violam sistematicamente, no mais das vezes protagonizadas por órgãos parciais que, com seus abusos, reduzem a Constituição a letra morta. Nesse contexto, imperioso que se exija do Poder Judiciário uma atuação voltada à efetivação de garantias, e não à convalidação de abusos ou ilegalidades a partir de argumentos “prontos ao uso”, os quais, invariavelmente, vão substituindo a necessária fundamentação que leve em conta as circunstâncias do caso concreto e as normas a elas adequadas.

56 AVOLIO, L. F. T. Provas ilícitas: interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandestinas. 5. ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2012. p. 41.

57 Cinquenta anos de jurisprudência... p. 686.58 STS apud MORALES MUÑOZ. Diligencias de investigacion en el proceso penal: La diligencia de entrada

y registro. Tercer presupuesto: autorizacion judicial. Procedimiento para su práctica. Efectos de las entradas y registros domiciliarios inconstitucionales. p. 11.

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4.2 AS HIPÓTESES DE FLAGRANTE DELITO

A CR/88 previu expressamente as situações permissivas para o ingresso em domicílio a despeito da existência de autorização judicial ou da vontade de seu titular, dentre as quais se destaca o “flagrante delito”59, como objeto de análise do estudo ora proposto. De tal modo, deve-se compreender as significações que a expressão veicula especificamente em termos de relativização da garantia à inviolabilidade domiciliar, frisando que as exceções devem ser interpretadas restritivamente.

A prisão em flagrante tem duas funções básicas, quais sejam: interromper o fato criminoso e possibilitar a coleta imediata de provas. Mas isso não basta ao diagnóstico do flagrante delito, sendo imprescindível que as interpretações considerem o disposto no art. 302 do CPP quanto às hipóteses que o caracterizam, sendo quatro as situações nele previstas: 1º) quem está cometendo a infração; 2º) quem acaba de cometê-la; 3º) é perseguido logo após; 4º) é encontrado logo após com instrumentos que o presumam ser autor do fato. A doutrina, quase que pacificamente, entende que a primeira e a segunda tratam do flagrante próprio, a terceira do flagrante impróprio e a quarta, do flagrante presumido. Todavia, conforme lições de Tornaghi, conclui-se que a primeira é a única em que há verdadeiro flagrante, enquanto que nas outras o legislador presume sua existência, o que faz a partir de ficções jurídicas.60

Consoante antecipado, em se tratando de restrição de direitos personalíssimos, a interpretação deve ser sempre restritiva, eis que, ante a intervenção do Estado, há de preponderar a liberdade das pessoas.61 62 Sob essa perspectiva – de preponderância das garantias –, a violação domiciliar só poderia ocorrer em casos excepcionais, ou seja, nos casos de flagrante próprio, quando possível verificar diretamente a prática do crime (excluindo-se, portanto, quaisquer das suposições e clichês que constituem as tramas dos referidos scripts de flagrante).

Nesse sentido, cita-se o Tribunal Supremo Espanhol, que estabeleceu três requisitos que delimitam o conceito de flagrante: 1º) imediates temporal entre o fenômeno/fato criminoso; 2º) imediates pessoal referida à relação espacial entre a pessoa e o objeto/

59 Conforme se verifica do inc. XI do art. 5º, as outras hipóteses são consentimento válido do morador, desastre, prestação de socorro ou durante o dia por determinação judicial.

60 TORNAGHI, H. apud CARVALHO. Processo penal e constituição... p. 91.61 Conforme esclarece Zaffaroni, “el principio pro homine es próprio del derecho internacional de los derechos

humanos e impone que em la duda se decida siempre em el sentido más garantizador del derecho de que se trate”. Proceso penal y derechos humanos: código, principios y realidad.

62 A CF determina, em seu art. 5º, §1º, que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

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instrumento do crime; 3º) necessidade urgente de intervenção com o fim de deter o criminoso ou preservar fontes de prova.63

Desse modo, para que exista flagrante próprio, faz-se necessária uma prova sensorial, em que se perceba uma real prática do fato, pois conforme decidiu o TSE

la palabra flagrante viene del latín flagrans-flagrantis, participio de presente del verbo flagrare, que significa arder o quemar, y se refiere a aquello que está ardiendo o resplandeciendo como fuego o llama, y en este sentido ha pasado a nuestros días, de modo que por delito flagrante en el concepto usual hay que entender aquel que se está cometiendo de manera singularmente ostentosa o escandalosa.64

A ilustrar o que se expõe, valiosas são as seguintes considerações de Maria Lúcia Karam:

Evidentemente, a situação de flagrância indicada pelas circunstâncias tem que ser constatada pelos agentes do Estado antes de sua entrada no domicílio. Simples informações ou suspeitas de que poderia estar ocorrendo um crime no interior de uma residência, ou de que ali haveria algo de interesse para a investigação de um crime, não autorizam a entrada. Tais elementos autorizam apenas o requerimento de uma ordem judicial para posterior busca na residência.65

Conclui-se, portanto, que somente o flagrante próprio se subsume a hipótese constitucional de relativização da inviolabilidade domiciliar, constituindo-se em exceção legítima ao direito à privatividade.66

63 STS apud MORALES MUÑOZ. Diligencias de investigación: Registro Domiciliario. Cuestiones generales y consentimiento titular. Situaciones de flagrancia. p. 20.

64 MARTÍN MORALES, R. Entrada en domicilio por causa de delito flagrante. Revista electrónica de ciencia penal y criminologia. p. 3.

65 KARAM, M. L. Liberdade, intimidade, informação e expressão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 38.66 Em sentido contrário, baseado em Lima afirma que “por flagrante delito deve-se entender qualquer hipótese

de flagrante, e não somente o flagrante próprio, ‘pois o constituinte não poderia ignorar todos os casos de flagrante restringindo-se somente ao primeiro deles’”. LIMA, M. P. Curso de processo penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. v. 2. Também neste sentido, Lopes Jr. sustenta que “havendo flagrante delito (art. 302 do CPP), poderá a autoridade policial ingressar na casa e proceder à busca dos elementos probatórios necessários”. Direito Processual penal... p. 699.

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4.2.1 Crimes permanentes

4.2.1.1 A posição doutrinária e jurisprudencial

O CPP dispõe no art. 303 que, quanto aos crimes permanentes, “entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência”, redação que tem causado interpretações equivocadas por parte da doutrina e jurisprudência.

Com efeito, parcela significativa da doutrina tem afirmado que nos crimes permanentes, a situação de flagrância é – também – permanente (independentemente da forma como foi diagnosticada), de modo que os órgãos policiais estariam autorizados a proceder a buscas e apreensões, bem como a realizar prisões, independentemente da existência de mandado judicial ou do consentimento do morador. Isso porque, segundo boa parcela da doutrina, o crime permanente se amoldaria sem restrições à situação do art. 302, I do CPP, ou seja, estaria o agente permanentemente praticando o crime. Nesse sentido, Nucci sustenta que “por uma questão de bom senso, cabe prisão em flagrante a qualquer momento. Nem precisa existir o art. 303, pois o art. 302, I, resolve o problema”.67

Da mesma forma, Flávio Gomes afirma que “uma das hipóteses que a Constituição Federal autoriza ingressar em casa alheia sem ordem de juiz reside justamente no flagrante”68, declarando ainda que não importa se a droga encontrada seja destinada ao consumo próprio ou ao tráfico, pois em ambas as hipóteses a invasão do domicílio é autorizada.

Apoiados nesses entendimentos ou em outros semelhantes, os Tribunais têm decidido, quase que pacificamente, que “não se pode olvidar que nos casos de flagrante de crimes permanentes, como o tratado no presente writ, é permitido o ingresso na residência do acusado sem ordem judicial, com ou sem o seu consentimento [...]”.69 Ou que “o tráfico de drogas é delito permanente, podendo a autoridade policial ingressar no interior do domicílio do agente, a qualquer hora do dia ou da noite para fazer cessar a prática criminosa e apreender a substância entorpecente que nele for encontrada”.70

67 Apud RHC 39.530-PR, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, disponibilizado no dje em 19/09/2013.68 GOMES, L.F. et. al. Lei de Drogas Comentada: artigo por artigo. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.69 RHC 39.530-PR, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, disponibilizado no dje em 19/09/2013.70 HC 222.173-DF, rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, disponibilizado no dje em 01/12/2011. p. 6.

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No âmbito jurisprudencial paranaense, o des. Rogério Kanayama talvez seja aquele que mais discorre sobre o tema, afirmando a dispensabilidade de mandado de busca para adentrar o domicílio em casos tais:

Por outro lado, não se pode confundir a prisão em flagrante do acusado com o flagrante delito de que trata a ressalva do art. 5º, XI, da Constituição:XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.Isso porque, a primeira define-se como uma medida de autodefesa da sociedade, consubstanciada na privação da liberdade de locomoção daquele que é surpreendido em situação de flagrância, a ser executada independentemente de prévia autorização judicial (CF, art. 5º, LXI). Já o segundo compreende uma característica do próprio delito, é a infração que está “queimando”, que está sendo cometida ou acabou de acontecer, que autoriza a prisão do agente mesmo sem autorização judicial em virtude da certeza visual do crime.Assim, a apreensão das drogas na residência do acusado revela a “certeza visual” mencionada acima. E a materialidade e a autoria do crime estão, por conseguinte, plenamente comprovadas como se verá a seguir.Daí porque, entendo, a ação policial foi legal. A Constituição Federal não fala em prisão em flagrante, mas em flagrante delito, ou seja, a prisão do agente, naquele momento, não alterava a situação.71

No mesmo sentido, observe-se, também, no STJ: HC 227.460/PA, HC 116.901/SP, HC 222.173/DF, HC 183.110/SP, HC 174.375/SP; pelo STF: RHC 91.189/PR, HC 84.772.

Apesar de difundido, os entendimentos expostos partem de uma concepção parcial do próprio conceito de flagrante (aquilo que arde), desconsiderando que, mesmo em casos de crimes permanentes, meras denúncias anônimas – se é que de fato existem – ou simples suspeitas não suprem a necessidade de constatação prévia da prática de infração penal por parte dos agentes do Estado, que é a única hipótese em que se autoriza a violação de domicílio. Afinal, a certeza visual jamais pode ser “revelada”: ou ela existe – e é certeza – ou não.72

71 Apelação Criminal 1.016.120-5, rel. Des. Rogerio Kanayama, 3ª Câmara Criminal.72 Importante salientar, conforme Coutinho, que a lei possui limites linguísticos de interpretação: “Daí que,

como parece primário, o que se delimita ao Poder Judiciário é a verificação da adequação possível, ou seja, se a norma criada pelo interprete não escapa da regra e, assim, do raio de alcance da estrutura linguística do enunciado, das suas palavras. Destarte, não pode – e não deve – o Poder Judiciário (porque abusivo, dado extrapolar suas atribuições), em reconhecendo como correta a adequação possível, impor outra, de sua lavra, quiçá por a entender mais justa, ou por bondade, ou por capricho ou outro fundamento. Isto seria decisionismo (Ferrajoli) e interessa pouco à democracia porque se não pode definir, senão pela cabeça do autor, aquilo que seria o justo, o bondoso, o caprichoso ou qualquer outro atributo utilizado. COUTINHO, J. N. de M. Dogmática e limites linguísticos da lei. Diálogos constitucionais: direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 232.

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4.2.1.2 Flagrante posto x flagrante pressuposto

Cumpre recordar que se por um lado a titularidade de um direito não é salvo- -conduto para a prática impune de infrações penais, por outro hipóteses de relativização a direitos fundamentais não podem ser elastecidos ao ponto de salvaguardar abusos e ilegalidades por parte do Estado, especialmente no que concerne à intervenções drásticas, como é o caso do aprisionamento em flagrante.73

De tal modo, não é pelo fato de se estar diante de um crime permanente que se devem tolerar abusos que buscam justificativas na necessidade de se interromper a prática da infração penal. O fato de o art. 303 do CPP autorizar a prisão em flagrante nos crimes permanentes enquanto não cessada a infração não pode ser interpretada sem restrições, de forma assistemática, ao ponto de justificar intervenções aleatórias, calcadas em simples suspeitas ou denúncias anônimas. Semelhante abertura à discricionariedade de agentes policiais termina por fomentar ilegalidades e abusos irreparáveis, pois conforme esclarece Rosa, a situação de flagrância “deve ser posta e não pressuposta/imaginada”.74

Frente a tais possibilidades de abuso, os Estados Unidos da América adotam a doutrina da plain view, que condiciona a realização de buscas independentemente de mandado judicial à observância rigorosa de determinados requisitos. Diga-se, inclusive, que segundo a Suprema Corte da Florida, a referida doutrina não pode ser usada “to launch unbridled searches and indiscriminate seizures nor to extend general exploratory search made solely to find evidence of defendant’s guilt”.75 Seus requisitos são:

As the general rule, objects in the plain view of an officer who has the right to be in the position to have that view are subject to seizure without a warrant. It is usually applied where a police officer is not searching for evidence against the accused, but nonetheless inadvertely comes across an incriminating object. Thus, the following elements must be present before the doctrine may be applied: a) a prior valid intention based on the valid warrantless arrest in which the police are legally present in the pursuit of their official duties; b) the evidence was inadvertently discovered by the police who have the right to be where they are; c) the evidence must be immediately apparent; and d) “plain view” justified were seizure of evidence without further search76.

73 Como magistralmente leciona Miranda: “A eficácia da justiça é também um valor que deve ser perseguido, mas porque numa sociedade livre os fins nunca justificam os meios, só é aceitável quando alcançada lealmente, pelo engenho e arte, nunca pela força bruta, pelo artifício ou pela mentira, que degradam quem os sofre, mas não menos quem os usa” Constituição Portuguesa… p. 361.

74 ROSA, A. M. da. Guia compacto de processo penal conforme a teoria dos jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

75 People of the Philippines vs Armando Compacion y Surposa. G.R. Nº 124442, July 20, 2011.76 People of the Philippines vs Armando Compacion y Surposa. G.R. Nº 124442, July 20, 2011.

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A doutrina da plain view, como se percebe, guarda semelhanças com o posicionamento adotado pelo TSE e pode ser perfeitamente incorporada por nossos Tribunais, na exigência de evidências prévias, anteriores à devassa domiciliar que vise ao aprisionamento em flagrante e realização de buscas. Sob pena de se estabelecerem “loterias”, não se pode admitir que abuso ou ilegalidade anteriores sejam convalidadas a partir de descobertas fortuitas – ou perversamente preparadas. Como bem ressalta Pacelli de Oliveira, “a prova produzida durante a situação de flagrante deve ser sempre valorada, desde que e quando não houver uma conduta ilícita anterior por parte de quem esteja a produzir a aludida prova”.77 Portanto, não é licito que os órgãos policiais procedam a buscas com base em meras suspeitas ou denúncias anônimas (pseudoconhecimentos).

Com efeito, flagrante – propriamente dito – nada mais é que a certeza visual do crime, o que não tem sequer uma mínima correspondência com convicção íntima de policiais.

5 STC 341/1993 DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL ESPANHOL COMO PRECEDENTE A NORTEAR DOUTRINA E JURISPRUDENCIA BRASILEIRAS

Em 18 de novembro de 1993, o pleno do TCE julgou um conjunto de recursos e ações de inconstitucionalidade que questionavam a constitucionalidade de diversos artigos da Lei Orgânica de Proteção da Segurança Cidadã (Ley Orgânica 1/1992, de 21 de fevereiro). Dentre os artigos questionados, estava o 21.278, que possibilitava a entrada em domicilio sem mandado judicial quando ali em curso um delito de drogas (requisito material), e quando os policiais tivessem um “‘conocimiento fundado’ que lleve a la constancia’ de la realizacion de un delito y que sea precisa una ‘intervención urgente’”79 (requisitos objetivos).

Segundo os recorrentes, o referido artigo ensejava uma desnaturalizada ampliação do delito flagrante, afetando o sentido da autorização constitucional (art. 18.2), pois impossível equiparar delito flagrante a mero “conhecimento fundado” do fato, uma vez

77 OLIVEIRA. Processo e hermenêutica... p. 157.78 “A los efectos de lo dispuesto en el párrafo anterior, será causa legítima para la entrada y registro en

domicílio por delito flagrante el conocimiento fundado por parte de las Fuerzas y Cuerpos de Seguridad que le lleve a la constancia de que se esta cometiendo o se acaba de cometer alguno de los delitos que, em materia de drogas tóxicas, estupefacientes o sustancias psicotópicas, castiga el Código Penal, siempre que la urgente intervención de los agentes sea necesaria para impedir la consumación del delito, la huida del delincuente o la desaparición de los efectos o instrumentos del delito”.

79 Sentencia 341/1993, de 18 de novembro de 1993. BOE 295. p. 98.

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que tal conhecimento (por mais fundado que seja) não é flagrante. O parlamento de las Ilas Baleares (suscitante da inconstitucionalidade) alegou que ante a ausência de um conceito de flagrância estabelecido pelo constituinte, suas significações hão de vincular--se à linguagem, à possibilidade de sua percepção sensorial, interpretando-se o conceito de maneira restritiva (na medida em que constitui fundamento para suspensão de direito fundamental); alegou, também, que o legislador ordinário extrapolou suas funções na medida em que não interpretou o conceito constitucional de flagrante, senão que lhe deu uma extensão desmensurada. A junta General del Principado de Asturias (suscitante da inconstitucionalidade) alegou que o conceito de flagrante deve ser extraído da própria Constituição, sendo objeto de uma interpretação restritiva, na medida em que excepciona direitos fundamentais; ademais, afirmou que as expressões “conhecimento fundado” e “que leve à certeza’ são por demais vagas e antiéticas. A sección Decimoquinta de la Audiencia

Provincial de Madrid (suscitante da inconstitucionalidade) afirmou que o artigo violava o princípio da lex certa ou lex strita pois é “una norma indeterminada, vaga, incierta e imprecisa, y que más que proporcionar seguridad al ciudadano genera una grave inseguridad jurídica”80, não podendo portanto limitar ou restringir um direito fundamental.

O TCE identificou três questões que se relacionavam em todas as alegações de inconstitucionalidade do artigo81: 1º) possibilidade de o legislador levar adiante uma definição de conceito constitucional de flagrância; 2º) a adequação ou não da norma com o conceito de flagrante constitucional; 3º) a possibilidade ou não de que a norma só valha para determinados delitos.

Quanto à primeira, o TCE consignou ser possível delimitar a noção de flagrante constitucional, uma vez que conexo ao direito fundamental relativo e limitado, que pode ceder em determinadas hipóteses taxativas (consentimento do titular, decisão judicial e flagrante delito); que o legislador atua na função que lhe corresponde, de refletir e formalizar na norma um conceito presente, ainda que não definido na Constituição; e que “esta labor legislativa puede estimarse necesaria a fin de proporcionar a los titulares del derecho y a los agentes de la autoridad una identificación segura de las hipótesis de la cual será legítima la entrada forzosa en domicilio por delito flagrante”.82

80 Sentencia 341/1993, de 18 de novembro de 1993. BOE 295. p. 111.81 Sentencia 341/1993, de 18 de novembro de 1993. BOE 295. p. 122ss.82 Sentencia 341/1993, de 18 de novembro de 1993. BOE 295. p. 123.

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Quanto à segunda, o TCE afirmou que é consolidada a imagem de flagrância como sendo a situação fática em que o delinquente é surpreendido, visto diretamente no momento em que pratica o ato ou em circunstâncias imediatas da prática do ato, e

si el lenguaje constitucional ha de seguir siendo significativo -y ello es premisa firme de toda interpretación- no cabe sino reconocer que estas connotaciones de flagrancia (evidencia do delito y urgencia de la intervención policial) estan presentes en el concepto inscrito no art. 18.2.83

Que, a partir da noção de flagrante delito, a Constituição não retirou dos órgãos policiais a possibilidade de entrar nos domicílios, senão que a considerou uma hipótese excepcional, em que as circunstâncias em que se mostra o delito justificam uma imediata intervenção; que a norma impugnada mostra uma amplitude e indeterminação incompatível com a Constituição porquanto “conhecimento fundado” e “certeza” não integram um conhecimento ou percepção evidente – vão além do que é essencial ou nuclear para situação de flagrância – e que, por conseguinte, tais termos permitem entrada e buscas domiciliares baseados em “conjecturas o en sospechas que nunca, por sí mismas, bastarían para configurar una situación de flagrancia”84; que pelo fato de as expressões serem ambíguas e indeterminadas, conferem ao flagrante um alcance que a Constituição não permite, acrescentando que a interpretação e aplicação legislativa dos conceitos constitucionais definidores dos âmbitos de liberdade é tarefa por demais delicada, em cujo cumprimento não pode o legislador diminuir ou relativizar o rigor dos enunciados constitucionais que estabeleçam garantias, nem mesmo criar margens de incerteza sobre seu modo de afetação, uma vez que “la eficacia en la persecución del delito, cuya legitimidad es incuestionable, no puede imponerse, sin embargo, a costa de los derechos y libertades fundamentales”85.

Quanto à terceira, afirmou que a Constituição não estabeleceu diferenciações entre os tipos de delito, que ao se apresentarem em estado de flagrância podem ocasionar a busca domiciliar. Pelo contrário, que toda hipótese de flagrante delito, qualquer que seja a infração penal, pode autorizar a entrada forçosa no domicílio por parte dos órgãos policiais; e que, por mais que a Constituição não tenha singularizado hipóteses delitivas para aplicação de um conceito ad hoc de flagrância, não é menos certo que a noção geral de delito flagrante requeira uma prestação jurisdicional sempre atenta às singularidades do caso concreto “y que bien puede el legislador anticipar en sus normas essa precision o concreción, para ilícitos determinados”86, desde que tal delimitação respeite a garantia disposta no art. 18.2 da Constituição, isto é, o conceito constitucional de flagrante.

83 Sentencia 341/1993, de 18 de novembro de 1993. BOE 295. p. 123.84 Sentencia 341/1993, de 18 de novembro de 1993. BOE 295. p. 124.85 Sentencia 341/1993, de 18 de novembro de 1993. BOE 295. p. 124.86 Sentencia 341/1993, de 18 de novembro de 1993. BOE 295. p. 124.

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Com esses fundamentos, o TCE rechaçou a possibilidade de que a policia possa entrar no domicilio nas hipóteses do art. 21.2 da Lei Orgânica 1/1992, em interpretação que não se vincula à autorização decorrente de efetiva prática de infração penal, mas à necessidade de conhecimento direto/pleno pela polícia quanto à sua ocorrência no local.

Martin Morales, ao estudar a decisão, vai além: afirma que o estado de flagrância não se resume à “certeza”, ou seja, o delito somente é flagrante quando se vê, e que, portanto, mais que “certeza” (a qual pode derivar de qualquer meio), o que se exige é realidade. Não se deve confundir flagrância com o que não é mais que (em grande parte dos casos) uma notícia de crime ou um conhecimento de dados que levem a crer na ocorrência de uma infração penal, por mais fundada que possa parecer essa crença.87

6 EXCURSO: QUEM NÃO TEM DIREITO À INVIOLABILIDADE

Conforme anteriormente afirmado, a violação do domicílio acontece quase que exclusivamente na casa de pessoas pertencentes aos estratos social e economicamente desfavorecidos da população88, a clientela por excelência do sistema penal.89 Por tal motivo, Toscano Jr. (baseado em Damatta) sustenta a existência de três classes de pessoas: o cidadão, o sobrecidadão e o subcidadão90, explicando que a condição de pessoas é negada aos últimos, o que faz com que sua dignidade não seja mais que uma mera formalidade, possível de ser ignorada sem qualquer dificuldade.

A realidade constatada pelo referido autor demonstra a seletividade de nosso sistema penal, em que os órgãos policiais selecionam os estereótipos, provocando uma distribuição seletiva em torno dos mais vulneráveis (aqueles que raras vezes têm a chance de protestar contra os abusos que sofrem sem serem duramente reprimidos), e o Poder

87 MARTÍN MORALES, R. Entrada en domicilio opr causa de delito flagrante. Revista electrónica de Ciencia Penal y Criminologian, n .1-2, p. 3.

88 ROSA. Guia compacto de processo penal... p. 116.89 “[...] sem dúvida um mecanismo fundamental dessa distribuição desigual da criminalidade são os estereótipos

de autores e vítimas que, tecidos por variáveis geralmente associadas aos pobres (baixo status social, cor etc.), torna-os mais vulneráveis à criminalização […]. A clientela do sistema penal é constituída de pobres (minoria criminal) não porque tenha uma maior tendência a delinquir mas precisamente porque tem maiores chances de serem criminalizados e etiquetados como delinquentes. As possibilidades (chances) de resultar etiquetado, com as graves consequências que isto implica, se encontram desigualmente distribuídas de acordo com as leis de um second code constituído especialmente por uma imagem estereotipada e preconceituosa da criminalidade”. ANDRADE, V. R. P. de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos de violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 53ss.

90 TOSCANO JR. A inviolabilidade do lar...

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Judiciário legitima a violação das garantias fundamentais (inviolabilidade domiciliar e direito à personalidade) que a todos deveriam proteger. Mas não é só: os apontamentos de Toscano Jr. também atestam que a vigilância, “as práticas de tipo pan-óptico estão limitadas a locais destinados a seres humanos categorizados na coluna dos débitos, declarados inúteis, plena e totalmente ‘excluídos’”91, os quais, por serem os “inimigos”, devem aceitar todo tipo de vigilância, por mais desumana que seja.

Com efeito, o Estado passou a buscar legitimidade na “proteção” contra os perigos à segurança pessoal, adotando a ideologia da neutralização das “ameaças” oriundas das subclasses, do seu potencial inimigo interno, “contra o qual a segurança do Estado promete defender seus súditos com unhas e dentes”.92 O Estado social passa a ser um Estado vigilante, manipulando discursos de medo e insegurança que se retroalimentam, na medida em que o discurso do medo torna as pessoas inseguras (“o medo alimenta o medo”93). Para tanto, vale-se da técnica volkisch94 (popularesca) e procura “febrilmente por um alvo sobre o qual [os indivíduos] possam descarregar sua ansiedade concentrada”95, fazendo com que o sofrimento de determinadas (mas não poucas) pessoas seja considerado um preço necessário para o alívio dos desconfortos das outras, que se apresenta como um efeito colateral “aceitável”.

Esse discurso faz com que as garantias fundamentais sejam consideradas um entrave para a segurança, razão pela qual se sustenta que sua violação sistemática é indispensável na luta contra a criminalidade – no combate aos inimigos. Isto é, funda-se no argumento de que a lei garantidora não deve valer para os excluídos, diante dos quais pode se “autossuspender”. Consoante, analisa Bauman, que a lei limita sua preocupação com o excluído, de modo que seja mantido fora de seus limites, declarando que a ele não interessa a proteção legal, ou seja, que “não há lei para ele. A condição de excluído consiste na ausência de uma lei que se aplique a ele”.96 O sistema preocupa-se em selecionar o “refugo” da sociedade (dita “boa”), em “excluí-lo do arcabouço jurídico em que se conduzem as atividades dos demais e ‘neutralizá-lo’”.97

91 BAUMAN, Z. Vigilância líquida: diálogos com David Lyon. Rio de Janeiro: Zahar: 2013. p. 58.92 BAUMAN, Z. Medo líquido... p. 193.93 BAUMAN, Z. Vigilância líquida... p. 99.94 “A técnica volkisch (ou popularesca) consiste em alimentar e reforçar os piores preconceitos para estimular

publicamente a identificação do inimigo da vez”. ZAFFARONI, E. R. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 57

95 BAUMAN, Z. Medo líquido... p. 160.96 BAUMAN, Z. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 44.97 BAUMAN, Z. Vidas desperdiçadas. p. 108.

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Percebe-se, então, que a fragilidade social e a insegurança da vida fazem com que se incite à segregação-exclusão98, fazendo que as “pessoas de bem” demandem a supressão, a liquidação dos supérfluos (refugo humano).

Difunde-se a ilusão de que a segurança urbana aumentará na medida em que forem sancionadas leis punitivas mais severas, que aumente o arbítrio policial e que as garantias sejam relativizadas. Ignora-se que essas garantias são o próprio fundamento de um Estado Democrático de Direito diante de um sistema penal que em realidade opera usurpando direitos e garantias, movido por uma potentia punienda que demanda contenção99 e que “à medida que o estado de direito cede às pressões do estado de polícia, encapsulado em seu seio, ele perde racionalidade e enfraquece sua função de pacificador social, mas ao mesmo tempo perde nível ético”.100

Diante de tais constatações, faz-se imperioso que o Poder Judiciário assuma seu papel na efetivação de garantias e limitação ao poder punitivo, sem o que o aparato policial ficará livre para impor-se e suspender os direitos básicos sob um discurso de “ordem”, fazendo com que desapareça o Estado de Direito. Importante lembrar com Bauman que “a ideia de colocar ordem no mundo pela extirpação e a queima de suas impurezas, assim como a convicção de que isso era factível (desde que poder e vontade se mostrassem adequados à tarefa), foi incubada na mente de Hitler [...]”.101

CONCLUSÃO

Conforme se procurou demonstrar no decorrer deste ensaio, o direito à inviolabilidade domiciliar é garantido nas mais diversas legislações do mundo, podendo ser considerado um dos mais importantes do ser humano, na medida em que procura resguardar sua vida íntima, o espaço da vida em que o homem possa desenvolver sua personalidade.

Não por acaso, portanto, trata-se de garantia resguardada por duas normas constitucionais, que buscam tutelar a vida privada como um todo (art. 5º, X) e o direito do homem se isolar do mundo em sua casa (art. 5º, XI). Isso é suficiente a demonstrar a preocupação do constituinte com a privatividade, direito que deve ser interpretado de

98 BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 41.99 ZAFFARONI. Direito penal brasileiro... p. 201.100 ZAFFARONI. Direito penal brasileiro... p. 243.101 BAUMAN, Z. Vigilância líquida. p. 80.

161Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 6, n. 10, p. 135-166, jan./jun. 2014

forma ampla possível, por levar em consideração as necessidades e sentimentos mais importantes do ser humano, imprescindíveis a uma digna existência.

Importante destacar que o vocábulo “casa” – de que se valeu o constituinte brasileiro – há de ser entendido como qualquer espaço que seja exclusivo, que não seja de acesso público liberado. Isso porque o direito não visa proteger o local – espaço físico –, mas o ser humano e sua intimidade, razão pela qual estão sob guarida locais de trabalho, hotéis, albergues, trailers, barracos de lona ou de papel etc.

Reforçou-se a importância da existência de mandado judicial para que se possam realizar buscas e apreensões tendo em vista que a relativização de direitos fundamentais deve se conter em limites estritos, sendo que cabe ao julgador realizar a avaliação de cada caso concreto para que possa afirmar que se trata ou não de hipótese de supressão de garantias. Também foi destacado que existe um Estado Policial com tendências expansivas, que constantemente viola direitos fundamentais, razão pela qual não há de se cogitar que o constituinte tenha assumido o risco de deixar a avaliação de cada situação aos órgãos policiais102, pois a arbitrariedade e abuso de poder dificilmente são reparados.

Restou demonstrado que a outorga constitucional para entrada em domicílio diz respeito ao flagrante próprio, isso porque a própria expressão “flagrante” resere-se àquilo que arde/queima, o que não pode ser estendido às demais hipóteses de flagrância previstas no CPP (que na verdade não o são, como bem demonstrou Tornaghi), permitindo ao aparato policial que viole domicílios e garantias constitucionais sem maiores restrições. Nesse sentido, observe-se que nem mesmo se pode afirmar que a permanência do crime equivalha a um prolongado flagrante próprio (em interpretação distorcida do conceito processual), mantendo--se imprescindível a percepção sensorial, como bem destacado pelo TSE.

Ou seja, a necessidade de percepção sensorial para caracterização da situação de flagrância aplica-se mesmo nas hipóteses de crimes permanentes, uma vez que a outorga constitucional não pode ser retrospectiva, não se podendo admitir que os fins justifiquem os meios. O crime permanente, sobretudo em se tratando daqueles de perigo abstrato (os mais usuais são a posse de arma de fogo ou guarda de entorpecentes) não demandam uma pronta intervenção policial, não havendo risco iminente a direito personalíssimo de qualquer pessoa. Especialmente nesses casos, portanto, é imprescindível que o flagrante seja posto, jamais pressuposto, razão pela qual é de total pertinência que doutrina e jurisprudência passem a adotar a teoria da plain view, que, como se verificou, opera dentro de um perfeito juízo de razoabilidade, evitando ao máximo os corriqueiros abusos policiais.

102 PACELLI DE OLIVEIRA. Curso de processo penal...

FAE Centro Universitário162

Importante destacar que, no Brasil, já foram adotadas diversas teorias oriundas do direito estrangeiro, com destaque para as americanas (fruto da árvore envenenada, descoberta inevitável, direito ao silêncio103 etc.). Dessa forma, plenamente viável que a plain view seja manejada na interpretação e aplicação das regras que compõem nosso ordenamento.

Mostrou-se, ainda, como o TCE resguardou o direito à inviolabilidade domiciliar quando entendeu que o legislador espanhol extrapolou suas funções ao positivar a possibilidade da polícia realizar buscas independentemente de mandado, caso detivesse um “conhecimento fundado” que levasse a uma “certeza” da prática de tráfico de drogas (crime permanente). Nesse sentido, deixou claro que a hipótese de flagrante constitucional, a autorizar a relativização da garantia à inviolabilidade domiciliar, diz respeito ao flagrante próprio, em que a pessoa é diretamente vista enquanto pratica a infração penal, não podendo o legislador reduzir o alcance de direitos fundamentais de forma dúbia, ao pretexto de garantir eficácia à persecução penal.

Tal precedente, da mesma forma que a plain view, pode ser perfeitamente utilizado como modelo por tribunais brasileiros, na medida em que as hipóteses ali tratadas pelo legislador são idênticas às que ocorrem aqui (com a clara diferença de que o legislador não ousou tanto no Brasil, mas o aparato policial encontra resguardo na jurisprudência).

A partir dos ensinos de Bauman e Zaffaroni, expôs-se a existência de uma demanda por exclusão das “subclasses”, rotuladas como inimigos/refugos que devem ser sistematicamente neutralizados, colocados à margem do direito, sob o pretexto de que as garantias são um entrave para persecução penal – sobre eles exercida, em regra. Também se consideraram as formas de que se vale o Estado das técnicas popularescas para legitimar a exclusão de inúmeras pessoas, enquanto afirma satisfazer o interesse de poucas, as quais ignoram que o Estado democrático de direito deve manter seu nível ético e que não pode ceder ao estado policial.

Por fim, importante destacar a necessidade de se proceder a uma revisão da jurisprudência pátria, pois é certo que quando a busca da segurança se torna um fim em si mesma, quando são ignorados direitos básicos aos seres humanos, como o direito à inviolabilidade domiciliar, o Estado não garante segurança, pelo contrário, reforça os temores de um estado vigilante e supressor de direitos.

103 Mesmo que este seja aplicada de forma totalmente divergente e manipulada daquela que é aplicada no direito americano ou europeu.

163Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 6, n. 10, p. 135-166, jan./jun. 2014

Com efeito, é da segurança individual (do respeito aos direitos fundamentais) que poderá advir uma segurança social, a qual manterá um processo dialético e justo, pelo qual se reforça o Estado democrático.

Certo é que, em tempos nos quais se demanda exclusão de pessoas e supressão de direitos, cada vez mais necessária se torna a intervenção do Poder Judiciário na contenção do poder policial, no cumprimento de sua função primordial de garantir os direitos fundamentais. Por isso, louváveis decisões como as proferidas pelo então des. Geraldo Prado, na Apelação Criminal nº 2009.050.07372 do e. TJ/RJ, e pelo des. Diógenes Hassan Ribeiro, na Apelação Criminal nº 70058172628 do e. TJ/RS. Decisões as quais resguardaram devidamente o direito à inviolabilidade domiciliar, declarando nulas as provas oriundas das apreensões realizadas pelos policiais sem que houvesse autorização judicial para a entrada em domicílio.

Como destaca Rosa, somente com respeito à “pouco compreendida dignidade da pessoa humana” poder-se-á reconstruir a cidadania brasileira.104

104 ROSA. Guia compacto de processo penal... p. 70.

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RESUMO

Este artigo analisa a gestão da exclusão por parte do sistema penal a partir da emergência da crise financeira. Demonstra a redução da população carcerária em alguns países europeus e o crescimento da população reclusa em países latino-americanos. Tem-se como hipótese a influência do princípio da escassez para a redução da quantidade de presos na Europa e a não incidência de referido princípio para a gestão da penalidade na América Latina.

Palavras-chave: Gestão da penalidade. Análise econômica da punição. Grande Recessão. Princípio da escassez.

ABSTRACT

The paper analyses the penal management of social exclusion since the onset of the Great Recession. It examines the reduction of prison population in some European jurisdictions and the growth of prison population in South American countries. The paper regards that the current European situation may be influenced by the scarcity of public resources, and that this criterion has no remarkable influence on the management of penality in the South American case.

Keywords: Management of penality. Economic analysis of punishment. Great Recession. Principle of scarce resources.

REPENSANDO A CRÍTICA DO SISTEMA PENAL NO TEMPO DA GREAT RECESSION

RETHINKING THE CRITICAL APPROACH TO THE CRIMINAL JUSTICE SYSTEM IN THE TIME OF THE GREAT RECESSION

José Ángel Brandariz García1

Fábio da Silva Bozza2

1 Professor titular de Direito Penal da Universidade da Coruña, Espanha.2 Professor de Direito Penal e Criminologia do Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC), Brasil,

Faculdade de Direito de Francisco Beltrão (CESUL) e Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil).

FAE Centro Universitário168

INTRODUÇÃO: A GRANDE RECESSÃO E O SISTEMA PENAL NA EUROPA E NOS EUA

Parece seguro que o que tem sido chamado de Great Recession (Grande Recessão) abriu um novo tempo, que afeta de maneira muito relevante todas as áreas da vida da comunidade, pelo menos naqueles territórios que estão no epicentro da crise. Quer se entenda, de acordo com alguma literatura autorizada (ARRIGHI, 2007), que estamos no início de um novo ciclo de acumulação capitalista global, quer se atribua ao fenômeno um significado menos histórico, não há dúvida de que a Grande Recessão é realmente um evento, com toda a densidade semântica do conceito.

Como parece óbvio, o campo dos crimes e das penas não pode ser imune aos efeitos desse evento. De fato, a Grande Recessão levanta questões de óbvia relevância para o campo. Certamente uma delas é a referência à crise de legitimidade dos processos de criminalização tradicionais em conexão com o debate sobre o dano social (BERNAL et al., 2012). Colocado de forma sintética, pode-se questionar qual é o significado de um sistema penal que persegue e pune constantemente comportamentos de nocividade claramente limitada (p. ex., pequenos crimes contra a propriedade), em um momento em que a crise, cuja gênese não se encontra apenas em comportamentos de risco, mas em condutas ilícitas e _ formal e materialmente _ criminosas, destrói as expectativas de vida de dezenas de milhões de pessoas. Isso deve ser suficiente para refletir sobre a base real dos pressupostos que tinham sido o sustento narrativo do modelo punitivo moderno.

Além disso, a Grande Recessão produz uma segunda transformação do sistema penal contemporâneo, talvez ainda mais inesperada do que a última: a penetração precipitada dentro dele de algo frequentemente tão estranho a este componente da soberania como a noção de escassez. O tempo da crise tem incentivado a atenção coletiva a textos econômicos, clássicos e contemporâneos. Em consonância com isso, também a etapa do sistema punitivo que estamos vivendo recomenda atenção a este tipo de literatura. No entanto, não é momento para sugerir uma releitura de textos da tradição da Economia política da pena, senão de uma obra, em princípio, tão longe de qualquer tradição crítica como o artigo seminal de Becker (1968) sobre a Análise econômica do crime e da punição (AED). Neste texto, o economista neoclássico da Universidade de Chicago sugere uma metodologia radicalmente utilitária para analisar de jeito normativo a operação do sistema penal. Como consequência disso, o autor conclui que, como sociedade, devemos considerar em que ponto a perseguição penal gera mais custos do que benefícios e, portanto, qual margem de impunidade devemos admitir coletivamente (BECKER, 1968).

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1 INTRODUÇÃO DA LÓGICA DE MERCADO E SISTEMA PENAL

Talvez o mais estranho da reflexão de Becker é que, independentemente das suas intenções, permite uma leitura crítica (HARCOURT, 2011). Como será enfatizado a seguir, o seu utilitarismo radical oferece uma imagem menos sinistra do que muitas das distopias punitivas que se tem conhecido em vários países nas últimas décadas.

A perspectiva economicista que foi mencionada não pode hoje, de forma alguma, ser considerada estranha ao sistema penal. Contemporaneamente, com a expansão da doxa neoliberal nas últimas décadas, a racionalidade do mercado como princípio organizador foi introduzida gradualmente em uma área de políticas públicas aparentemente tão refratária a essa lógica como a punitiva. Entre outras coisas, a lógica do mercado penetrou no sistema de justiça criminal através da introdução do gerencialismo nas políticas públicas (ANITUA, 2005; GARLAND, 2005), da atribuição aos indivíduos da gestão dos seus próprios riscos de vitimização (BAUMAN, 2004; DEAN, 2007) ou por meio da privatização e mercantilização da proteção do crime e da execução da punição (CHRISTIE, 1993; GARLAND, 2005). A teleologia atuarial de gestão e controle de risco também não é alheia à lógica do mercado (DEAN, 2010; O’MALLEY, 2004).

No entanto, a penetração gradual da racionalidade do mercado nas políticas penais não parece ter provocado o encontro com o princípio da escassez. Longe disso, as últimas décadas de evolução dos sistemas punitivos de muitos países parecem ser caracterizadas por uma expansão sustentada na radical elasticidade dos recursos exigidos por esta área de política pública. Esta é a situação que ocorreu também na América do Sul, como mostrado na TAB. 1. De acordo com dados do International Centre for Prison Studies (ICPS), durante os últimos 20 anos a taxa de população carcerária tem crescido significativamente nos dez países da região, dobrando em quatro (Argentina, Equador, Paraguai e Uruguai) e triplicando em mais três (Brasil, Colômbia e Peru).

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TABELA 1 - Evolução das taxas de população penitenciária em países sul-americanos de 1992 a

2013 (taxa por 100.000 habitantes)

1992 1995 1998 2001 2004 2007 2010 2013

Argentina 62 74 88 110 144 133 145 149 (2012)

Bolívia ---- 70(1996) 76 65 71 80 93 140

Brasil 74 92 102 (1997) 133 183 220 253 275

(2012)Chile 154 153 179 216 226 282 313 267

Colômbia 78 90 115 121 159 142 181 245

Equador 74 85 79 63 88 136 86 173

Paraguai ---- 57 74 75 89(2003) 99 97

(2009) 136

Peru 69 87 103 102 114 139 154 221 (2014)

Uruguai 100 99 119 154 207 215 257 289

Venezuela 109 (1993)

101 (1996)

95(1999)

76(2002)

74(2005)

85(2008) ---- 174

FONTE: ICPS (2014) (www.prisonstudies.org)

2 GRANDE RECESSÃO E MUDANÇA DE CICLO DO SISTEMA PENAL: O CASO ESPANHOL

Esta dinâmica de expansão e consequente abandono de um princípio tão econômico quanto o de escassez não é exclusiva dos Estados da América do Sul. De acordo com a última edição (WALMSLEY, 2011) da World Prison Population List, a população carcerária destes países cresceu em 78%, em comparação com os dados contidos na publicação da última edição da lista, em 2009.

A ideia da expansão também não é alheia à situação do sistema penal espanhol. Para referência, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estadística (INE) espanhol, a população carcerária cresceu 102,7% entre o final do primeiro semestre de 1997 e o mesmo momento de 2010, enquanto o crescimento da população geral foi de aproximadamente 18%. De fato, a política penal espanhola parece um caso paradigmático de absoluto desprezo pelos limites dos recursos coletivos. Assim como aconteceu no caso americano (CAVADINO; DIGNAN, 2006; HOLLEMAN et al., 2009; WACQUANT, 2004), os vastos recursos financeiros, humanos e logísticos que requerem um expansionismo penal constante nunca pareceram ser um problema (FORERO; JIMÉNEZ, 2013).

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No entanto, como em muitas outras áreas, a Grande Recessão passou a ser um ponto de ruptura para o sistema penal espanhol. Em um estado cujo sistema prisional tem mostrado um crescimento quase constante desde o fim da autocracia de Franco, o aprofundamento da crise econômica teve um efeito direto de freio da expansão da punição. De acordo com o apresentado na TAB. 2, entre junho de 2010 e junho de 2014, a população carcerária espanhola diminuiu 12,8% em números totais, e passou de uma taxa de 163, no início do período, a outra de 144, em meados de 2014.

TABELA 2 - Evolução da população carcerária espanhola de 2010 a 2014

Ano (mês) População carcerária (total) População carcerária (taxa por 100.000 habitantes)

2010 (jun.) 76701 163

2010 (dez.) 73929 157

2011 (jun.) 72961 155

2011 (dez.) 70472 149

2012 (jun.) 70695 150

2012 (dez.) 68597 146

2013 (jun.) 68857 146

2013 (dez.) 66765 143

2014 (jun.) 66857 144

FONTE: INE (www.ine.es); Secretaría General de Instituciones Penitenciarias (www.institucionpenitenciaria.es)

GRÁFICO 1 - Evolução da população carcerária espanhola total, por trimestres, de 2007 a 2014

FONTE: Secretaría General de Instituciones Penitenciarias (2014)

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Em primeira e superficial análise, poderia haver razões para entender que não estamos em presença de uma verdadeira mudança de ciclo, mas em um momento meramente circunstancial (FORERO; JIMÉNEZ, 2013). No entanto, além de ser difícil tirar a relevância desta situação em um sistema penal tradicionalmente caracterizado por um expansionismo ilimitado da punição, pelo menos dois argumentos dão razão para duvidar da irrelevância desses valores. O primeiro é que não podemos falar de um mero efeito mecânico do sistema, devido a uma redução no número de crimes sujeitos à perseguição. De fato, ao contrário do que aconteceu na prisão, no período da crise continuaram a aumentar tanto o número de pessoas condenadas como o volume de pessoas condenadas à pena de prisão.3 Veja a tabela a seguir.

TABELA 3 - Evolução do sistema penal espanhol desde o início da Grande Recessão

2008 2009 2010 2011 2012 2013Taxa de crime (por

100.000 habitantes)51’9 50’0 48’9 48’4 48’0 46’1

Nº condenados 206396 221916 215168 221590 221063 219776Nº detenções 350859 362488 351967 468253 461042 458087Penas prisão

impostas (% total penas)

129890 (20’6%)

139663 (22’2%)

141849 (22’7%)

135713 (24’6%)

142444 (25’5%)

153950(25’3%)

Penas prisão superiores a 2 anos

impostas (%)----- -----

15336 (10’8%)

13297(9’8%)

12328(8’7%)

12867(8’4%)

Nº entradas penitenciárias

(taxa por 100.000 habitantes)

49852(106)

52458(111)

49034(106)

45525 (98)

----- -----

Nº saídas penitenciárias

(taxa por 100.000 habitantes)

----- 44130 (94) 48686 (105) 46872 (100) ----- -----

Reclusos classificados semi-liberdade (dez.) (%

total reclusos)

8372 16’0%)

9618(16’2%)

9731(16’4%)

9701(16’9%)

9083(16’2%)

8715(15’5%)

Duração meia cumprimento efetivo

(meses)17’3 17’9 18’5 19’0 ----- -----

FONTE: INE (estatísticas de condena); Eurostat, Anuario del Ministerio del Interior 2013 (estatísticas de crime); SPACE I, Council of Europe, Secretaría General de Instituciones Penitenciarias (estatísticas penitenciarias).

3 Forero e Jiménez (2013) destacam em particular que a criminalidade não aumentou desde o início da crise. Os autores apresentam como possíveis explicações a redução das penas para o tráfico de drogas na reforma de 2010 e o crescimento da substituição da prisão para estrangeiros por expulsão. Rodríguez e Larrauri (2012), entretanto, mostram que a criminalidade em geral tem diminuído desde o início da crise.

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A segunda razão para a percepção de uma real mudança no ciclo é que a contração do sistema de punição ocorreu não só no campo da prisão, mas também em outras áreas, também caracterizadas pelo alto custo das sanções. Certamente, o caso mais impressionante é o das expulsões administrativas de imigrantes irregulares, que, de acordo com os dados do Ministerio del Interior espanhol, entre 2009 e 2013, caíram 75,3% (de 5687 a 1402), sem qualquer relação com o número de imigrantes irregulares presentes em território espanhol4.

Em suma, seria ingênuo pensar que esta é uma dinâmica puramente temporal, ou que o fenômeno não está relacionado com a terrível situação econômica. Contra isso, deve-se assumir que o sistema penal espanhol descobriu o princípio da escassez.

3 O COMEÇO DO FINAL DA DISTOPIA PUNITIVA? A EVOLUÇÃO DO SISTEMA PENAL DOS EUA

Em qualquer caso, se assim for, a situação espanhola não seria excepcional. Uma evolução semelhante parece ter ocorrido no último período no caso dos EUA. No que se refere à evolução dos países europeus, percebem-se os seguintes dados em referência a alguns deles, particularmente aqueles que experimentaram a crise de maneira mais aguda:

TABELA 4 - Evolução das taxas de população penitenciária em diversos países europeus, 2007-2014 (taxa por 100.000 habitantes)

2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Chipre 106 104 111 112 106 108 ----- -----

França 100 104 103 103 111 100 102

Alemanha 94 91 89 88 87 85 77 81

Grécia 100 110 98 106 110 112 120 -----

Irlanda 80 85 88 97 93 94 89 82

Itália 78 96 107 113 111 112 105 88

Portugal 109 101 104 109 120 129 137 136

Reino Unido 145 151 150 152 151 151 147 147

FONTE: SPACE I, Council of Europe (2007-2012); ICPS (2013-2014)

4 No entanto, esta tendência foi parcialmente compensada pela manutenção, no mesmo período, das deportações de imigrantes criminosos (de 7591 em 2009 para 7582 em 2013), o que certamente é uma das razões para o declínio da população carcerária.

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Por mais que o sistema punitivo dos EUA tenha sido, por mais de três décadas, o melhor exemplo da distopia representada por um expansionismo penal aparentemente ilimitado, no contexto da crise aparece como um caso paradigmático dos efeitos sobre a questão da Grande Recessão e o princípio da escassez.

Na verdade, mesmo um fenômeno expansionista tão notável como o norte--americano mostrou os seus limites. O crescimento da população carcerária no país desacelerou desde os primeiros anos do século e, finalmente, começou a diminuir desde 2007-2008, como mostrado na TAB. 5.

TABELA 5 - Evolução da população submetida ao controle penal nos EUA de 2007-2012 (em milhares)

Ano População penitenciária

Taxa de população

penitenciária (por 100.000 habitantes)

População submetida à liberdade

vigiada

População submetida à liberdade condicional

Total população

submetida ao controle penal

2007 2298 758 4293’2 826’1 7337’92008 2308’4 756 4270’9 828’2 7312’42009 2291’9 744 4204 819’3 7232’82010 2266’8 730 4055’5 840’7 7076’22011 2239’8 716 3971’4 853’9 6977’72012 2228’4 707 3942’8 851’2 6937’6

FONTE: Sourcebook of Criminal Justice Statistics (www.albany.edu); Bureau of Justice Statistics (bjs.ojp.usdoj.gov)

Talvez o mais surpreendente seja que este desenvolvimento recente havia sido previsto por vários autores, antes mesmo de se materializar em termos estatísticos (BECKETT; SASSON, 2004; TONRY, 2004; WACQUANT, 2004).5 A revisão da literatura permite analisar quais foram as razões subjacentes a esta mutação, marginalizando qualquer explicação simplista ligada mecanicamente às tendências de aumento e/ou redução da criminalidade. A este respeito, a emergente contração do sistema penal dos EUA parece ter sido influenciada por três diferentes tipos de fatores. Primeiro, a diminuição da importância atribuída à questão do crime pela sociedade americana (LYNCH, 2008; PRATT, 2007) _ determinada em parte pelas taxas de crime inferiores em relação ao passado (BECKETT; SASSON, 2004; PRATT, 2006; SIMON; HANEY-LOPEZ; FRAMPTON, 2008) _ apesar da sobrevivência de atitudes punitivas na população (PRATT, 2006; WESTERN, 2006). Certamente, a redução da preocupação social com o crime guarda relação com a acentuação de outros medos

5 Expressaram opinião em contrário, entre outros, Pratt (2006) e Western (2006).

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(p. ex., terrorismo, imigração, declínio da classe média etc.) ao longo da última década (Clear, 2008; Simon/Haney-Lopez/Frampton, 2008). Em segundo lugar, tem sido muito importante a crescente consciência popular no sentido de se reconhecer como insuficiente o constante aumento da penalidade como única resposta ao crime (CAMPBELL, 2010; CLEAR, 2008; SIMON; HANEY-LOPEZ; FRAMPTON, 2008). Em matéria de política criminal tornaram-se relevantes temas que se referem a alternativas à mera punição de infratores por meio da pena de prisão – p.ex., nitidamente, o retorno dos liberados para o seu espaço social e laboral (BECKETT; SASSON, 2004; SIMON, 2008; WESTERN, 2006) _, e foram adotadas medidas legislativas e logísticas para conter o crescimento da população carcerária (Brown, 2009; Gottschalk, 2013; Harcourt, 2011; Karstedt, 2013; Koulish, 2010; Pratt, 2007).6 Este último ponto relaciona-se com a terceira razão que explica a evolução, que é de particular importância no momento presente. A desaceleração econômica vivida pelos EUA nos primeiros anos do século _ obviamente agravada a partir de 2007-2008 _ levou à restrição fiscal e a uma preocupação com os custos do sistema penal, que tem sido um fator de freio da expansão, e de sua subsequente contração (BROWN, 2009; CAMPBELL, 2010; GOTTSCHALK, 2013; KARSTEDT, 2013; LYNCH, 2008; SIMON; HANEY-LOPEZ; FRAMPTON, 2008; WESTERN, 2006).7 E isso é particularmente significativo: como se fosse a melhor confirmação do realismo utilitário da Análise Econômica do Direito (AED), até um expansionismo tão ambicioso como o americano terminou por encontrar os limites orçamentais do seu crescimento.

4 UMA OLHADA DESDE O BRASIL: A IMPOSSIBILIDADE DE UMA TEORIA GERAL SOBRE OS SISTEMAS PENAIS

No Brasil, a população carcerária não deixou de crescer. Talvez por ainda não estar em um período de recessão. Mas parece que não é por conta disso. Embora no Brasil não sejam dirigidos os recursos necessários para o sistema prisional, a população carcerária não deixa de crescer pelo fato de não existir uma cultura de respeito aos direitos fundamentais do preso (condenado ou provisório). A democracia brasileira é muito recente e uma cultura de respeito aos direitos humanos ainda está para ser desenvolvida. E isso se deve ao modelo econômico neoliberal, que funciona mais como um modelo epistemológico, orientado pela eficiência (e não eficácia) do que como uma forma de organização da economia.

6 Lea e Hallsworth (2012) mencionam a emergente adoção de medidas semelhantes no contexto britânico. 7 A mesma circunstância foi mencionada em relação à evolução recente no sistema penal britânico (KARSTEDT,

2013; PITTS, 2012; REINER, 2012), assim como em outros países europeus (KARSTEDT, 2013).

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Enquanto nos Estados Unidos e na Espanha penetra o princípio da escassez, que é um dos fatores da redução da população carcerária, no Brasil as coisas se passam de forma diferente: mesmo sem recursos destinados ao cárcere, cada vez mais pessoas são presas, e em piores condições.

Ademais, o tema da criminalidade em momento algum deixou de ser objeto de exploração por parte dos empreendedores morais, principalmente neste ano de período eleitoral no país. O governo da segurança é amparado por uma democracia de opinião, dominada pelas emoções dos sujeitos. Nela a demanda por punição e, por consequência, a forma de gestão da penalidade passa a ser moeda de troca entre eleitores e eleitos. A retórica política se articula sobre o medo da opinião pública, prometendo cada vez mais punição: o sistema penal é utilizado como resposta ao medo da opinião popular. O fato de os cidadãos estarem expostos ao risco da criminalidade determinou as políticas de lei e ordem, fazendo uso de velhas receitas para resolver novos problemas (SANTOS, 2012). Nesse sentido, embora esteja no governo um partido de esquerda (categoria, hoje, talvez de pouca capacidade explicativa), que tem desenvolvido algumas políticas sociais reformadoras, no tema da penalidade a lógica continua a mesma.

Categorias como a de Estado de Exceção permanente (AGAMBEN, 2003) ou de Estado Penal (WACQUANT, 2000; 2004) carecem de capacidade explicativa para a realidade latino-americana. Desde esta margem o poder punitivo se realiza de diversas formas. Para uma parte da população funciona o Estado de Direito, caracterizado pela utilização dos direitos e garantias fundamentais como limites formais ao poder punitivo. Para outra parte da população está em pleno funcionamento o Estado Penal, não no lugar, mas em conjunto com políticas assistencialistas. Isso quer dizer que não é possível afirmar a superação do neoliberalismo na América Latina, pois políticas sociais reformistas não alteram a estrutura neoliberal. Desigualdade, como ingrediente destinado a alimentar a competição entre pessoas em condições e com capacidades diferentes, apontam na direção da eficiência. No entanto, ao contrário do que se verifica em parte da Europa e nos EUA, este último pilar do neoliberalismo (a eficiência, que consta na Constituição da República Federativa do Brasil como princípio orientador da atividade da administração pública) é interpretado, em matéria penal, não em relação à proteção dos direitos fundamentais do preso, mas sim em relação à segurança pública. Ou seja, enquanto o princípio da escassez alcança o sistema penal do Norte pelo fato de não haver recurso para investir nas prisões, provocando uma redução na população carcerária, na América Latina ocorre o inverso: a escassez de recursos destinados à segurança pública produz o encarceramento em massa, sem que sejam respeitados os direitos fundamentais do preso.

177Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 6, n. 10, p. 167-182, jan./jun. 2014

Na interpretação do Direito, orientado pela Análise Econômica, o judiciário opta pelo direito à segurança no lugar da segurança dos direitos. Quase 50% da população carcerária é composta por presos provisórios, com evidente violação do princípio da presunção de inocência. Isso que, no Brasil, a negociação da pena privativa de liberdade ainda não encontra amparo legal, com raras exceções. É a tensão entre Estado de Direito e Estado de Polícia à qual se refere Zaffaroni (1991).

Junto a isso o genocídio aparece como traço característico dos sistemas penais da América Latina. Não se trata do genocídio que chama a atenção nos meios de comunicação de massa, praticados por regimes autoritários, possíveis objetos de perseguição por tribunais internacionais, mas sim a conta-gotas (ZAFFARONI, 2012). No Brasil, negros jovens de periferia são executados pela própria polícia ou por grupos de extermínio. De 2001 a 2011 cerca de 10.000 suspeitos de roubo e tráfico foram mortos pela polícia, tudo isso justificado pelo que se denomina “auto de resistência”, sendo que pouquíssimos casos foram julgados (BAVA, 2010; BUSATO, 2012). Em 2013, como uma brincadeira sem graça, as estatísticas que se referem ao número de executados demonstram uma queda no número das vítimas de homicídios praticados pela polícia, mas, ao mesmo tempo, demonstram o acréscimo, na mesma proporção, do número de pessoas desaparecidas.

Em síntese, o princípio da escassez não chegou aos sistemas penais da América Latina para determinar uma redução da população carcerária. O léxico advindo da Análise Econômica do Direito (AED) em momento algum foi utilizado para a tutela de direitos fundamentais, mas apenas para negá-los. Enquanto suas categorias teóricas não forem utilizadas para a proteção do ser humano frente ao poder punitivo estatal, devem ser rechaçados seus desenvolvimentos.

CONCLUSÃO: PARA UMA RECONSTITUIÇÃO DA CRÍTICA DO SISTEMA PUNITIVO

Esta exposição sintética da evolução de alguns sistemas penais da Europa e dos EUA no contexto da Grande Recessão permite sugerir algumas conclusões, orientadas para refletir, em presente contínuo, sobre as abordagens críticas à punição. Certamente são ideias provisórias e ousadas, mas este tempo, como todos os momentos de crise, convida à experimentação (KARSTEDT, 2013).

Em primeiro lugar, como foi sugerido, há razões para pensar que estamos no início de um novo tempo. Desde o Norte começam a soar estranhamente obsoletos modelos de análise muito difundidos há alguns anos como o Estado de exceção permanente (AGAMBEN,

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2003) ou o Estado penal (WACQUANT, 2000; 2004)8. Se não fosse por outros motivos, a novidade fica pelo menos em que a experiência dos EUA pode levar a crer que se fecha um ciclo histórico. Na verdade, mesmo uma experiência de endurecimento penal tão ambiciosa como a dos EUA colidiu não só com a evidência do seu limitado valor preventivo, mas também com a falta de elasticidade dos recursos públicos.

Em segundo lugar, a abertura desta fase convida à inovação na análise crítica de alguns sistemas penais da Europa e dos EUA. Por uma parte, é conveniente mergulhar nos motivos que levaram à mudança de tendência no caso americano, para explorar a sua aplicabilidade em outros contextos, a fim de contribuir para a produção de evoluções semelhantes (GOTTSCHALK, 2013).

Junto com isso, a crise deve ser interpretada como um excelente momento para redefinir as prioridades coletivas, a fim de discutir que eventos geram maior grau de dano social (BERNAL et al., 2012; HUISMAN, 2012), e para evitar que o sistema penal e prisional continue a ser o repositório das ansiedades sociais que vão além dos conflitos que conceituamos como crimes (BAUMAN, 2007; ZEDNER, 2009). No entanto, para fazer isso, talvez devamos experimentar novas linguagens e encontrar estranhos companheiros de viagem. O léxico dos direitos e do sofrimento causado pela pena é necessário, mas tem sido insuficiente. De alguma forma, é como se nele houvesse algo de ultrassom. Por isso, a crise convida a incorporar o discurso da escassez, o que abre o campo de debate para discutir, hoje, o que é realmente importante para enfrentar os problemas, necessidades e males sociais. Nesse terreno, a análise crítica não deve temer o recurso ao léxico econômico. Como horizonte próximo, um utilitarismo imanente como o de Becker é certamente melhor do que as experiências de punição soberana, excepcionalista e neutralizante que temos vivido em muitos países durante as últimas décadas.

Entretanto, algo é fundamental: o recurso ao pensamento econômico apenas deve ser utilizado se e enquanto for necessário para fundamentar a redução do encarceramento em massa. Superado o período recessivo, referidos argumentos econômicos devem ser abandonados, vez que, provavelmente, serão utilizados para legitimar um novo período de encarceramento.

8 Karstedt (2013) indica que a evolução no contexto da crise evidencia que o neoliberalismo não precisa necessariamente levar a uma permanente expansão do sistema penal.

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Enfim, sobre o futuro das políticas penais na América Latina temos pouca dúvida: enquanto não se desenvolver e sedimentar uma cultura de respeito aos direitos humanos, essa continuará sendo a do genocídio, realizada pelo sistema penal subterrâneo, fundada em uma lógica racista, que no Brasil, mais do que cultural, é estrutural.

Em relação ao Norte não temos nenhum prognóstico. De duas, uma: ou a população carcerária continuará decrescendo, por conta do princípio da escassez, ou voltará a crescer, sem o devido respeito aos direitos humanos. O tempo dirá.

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Michelle Gironda Cabrera1

1 Doutoranda em Direito Econômico e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestra em Direito Empresarial e Cidadania, na linha de pesquisa Direito Penal Econômico, pelo Centro Universitário Curitiba. Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Econômico do Centro Universitário Curitiba e do Grupo Modernas Tendências do Sistema Criminal. Professora universitária e advogada.

RESUMO

O presente artigo busca empreender o paradigma funcionalista introduzido pelas teorias pós-finalistas, trazendo a lume o novo contexto do qual não é dado ao cientista jurídico--penal da alvorada do milênio se esquivar: a necessidade da interdisciplinaridade em matéria jurídica e, ademais, da multidimensionalidade das categorias dogmáticas de direito penal, em especial, o delito culposo.

Palavras-chave: Direito Penal. Interdisciplinaridade. Imputação Objetiva. Crime culposo. Complexidade.

ABSTRACT

This article analyzes the functionalist paradigm introduced by post-finalists theories, exploring the new context that should not be abandoned by the criminal scientist: the need of interdisciplinarity in legal matters and, moreover, the multidimensionality of criminal dogmatic categories, in particular the negligent crimes.

Keywords: Criminal Law. Interdisciplinarity. Objective imputation. Negligent crime. Complexity.

A FUNÇÃO POLÍTICO-CRIMINAL DO DIREITO PENAL COMO IDEIA FUNDANTE DO SISTEMA ANALÍTICO DE CRIME E O IMPACTO NOS CRIMES CULPOSOS

THE POLITICAL CRIMINAL FUNCTION OF CRIMINAL LAW AS FOUNDING IDEA OF ANALYTICAL CRIME SYSTEM AND THE IMPACT ON NEGLIGENT CRIME

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INTRODUÇÃO

Por não raras vezes, a ciência do direito penal, afeita a referibilidades empíricas, não se deixou falsear e, ao contrário, refugiou-se em abstrações que, fundadas no universo ôntico, fecha-se em uma metafísica conceitual. Ocorre que, deixando de enfrentar problemas concretos, ainda que apegada à ontologia das coisas, a ciência do direito penal afasta-se do que deva ser, incorrendo, assim, em um reducionismo epistemológico que, neste artigo, refutar-se-á. No caminho da complexidade, que, aqui é considerado como imposição contemporânea, abre-se um leque de novas dimensões sociais e políticas que, por meio do contributo da interdisciplinaridade e da afeição a critérios axiológicos é capaz de lidar com o novo que se apresenta. O presente artigo visa tratar do ajuste axiológico--normativo, imposto com a contribuição da política criminal à dogmática penal atual por meio da adoção de critérios de imputação objetiva.

1 O DIREITO PENAL ENQUANTO CIÊNCIA COMPLEXA E A NECESSIDADE DA INTERDISCIPLINARIDADE NO ATUAL DISCURSO EPISTEMOLÓGICO

Que maravilhosa adequação ‘científica’ entre a lógica, o determinismo, os objetos isolados e recortados! Então, o pensamento simplificador não conhece nem ambiguidade, nem equívocos. O real tornou-se uma ideia lógica, isto é, ideológica, e é essa ideologia que pretende apropriar-se do conceito de ciência. [sic] (MORIN, 2005).

A reflexão de Morin bem serve para ilustrar o momento histórico havido no último quarto do século passado, que trouxe consequências e uma nova abordagem nos estudos de direito penal.

Desde a Revolução Francesa e os ganhos do Iluminismo, considerados marcos na evolução social humana e na formação do Estado de Direito que até hoje conhecemos, o homem tratou de elevar e preservar seus direitos contra o Estado “Leviatã” e obteve êxito, a partir da criação das bases que iriam formular toda a estrutura do Direito, e consequentemente, do direito penal. Essas bases estariam sustentadas e expressas em seu último (e primeiro grau) pelo princípio de legalidade.

Passava o direito penal a expressar-se através de um sistema de imputação formulado a partir do que exigisse a norma. O Iluminismo implicou em uma valorização do indivíduo, própria de sua época, e ilustrada pela fórmula cartesiana clássica do “penso, logo existo” ou cogito, ergo sum (DESCARTES, 1638). O princípio de legalidade torna-se o instrumento máximo do direito penal, desmistificando a ideia segundo a qual devesse constituir um instrumento a favor do Estado.

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Tem-se, na esfera do direito público brasileiro, a introdução, realizada por Lourival Vilanova, das categorias fenomenológicas de Edmund Husserl, que por meio da percepção da essência, busca compreender que as coisas, os conceitos e as ideias são cada uma delas um todo acabado (VILANOVA, 2003). Essa influência do procedimento analítico vilanoviano elege o caminho que será percorrido fenomenologicamente pela norma jurídica: “O processo de decompor analiticamente uma realidade em objeto de várias ciências é um princípio de divisão do trabalho científico, exigido pela complexidade dos problemas que a realidade oferece” (VILANOVA, 2003). O resultado é que a ciência do direito tenha por objeto apenas normas jurídicas e cada ciência específica do direito volta--se a normas de conteúdo bem específico, como as normas de direito penal. Obtém-se, assim, mediante expediente redutor, o objeto de estudo: as normas jurídicas que integram determinada especialização do direito positivo. Para Vilanova (2003), o direito, abstraídas as contingências, é, fenomelogicamente, essencialmente normativo.

Descobertas as formas lógicas, é possível compreender como o direito funciona, funcionou e funcionará, em qualquer espaço-tempo onde o fenômeno jurídico se verifique. A quem cria o direito positivo não lhe cabe evitar essa estrutura estática, constante e independente de sua origem empírica.

A dogmática jurídico-penal, então, passou a se traduzir em uma estruturação normativa, produto do pensamento ilustrado do Século das Luzes. E o sistema da teoria geral do delito, impregnado que estava pelo racionalismo positivista, intentava produzir um estudo do crime a partir de sua subdivisão em substratos analíticos objetivos. O sistema jurídico-penal elege a conduta humana como ideia fundante, cambiando seu conteúdo, conforme estivesse impregnado pelo paradigma ontológico ou axiológico.

Ocorre que, este modelo não mais dava conta dos anseios e problemas que enfrentava o direito penal em fins do século passado. As novas formas de criminalidade, organizada, onipresente, de alcance global e de consequências pouco palpáveis incentivaram o surgimento de um direito penal diferenciado, que deixaria para trás a simplificação epistemológica.

Uma ciência complexa é aquela que se dirige à compreensão cada vez mais adequada da realidade. E essa afirmação não leva a crer que se esteja vinculando a ciência ao universo ôntico das coisas, pelo contrário, está-se evitando reduzi-la a esquemas simplificados que, fruto da vontade de racionalização, substitui a realidade a ser valorada pela realidade idealizada. Por certo, superar esses limites não significa ignorá- -los, mas agregar-lhes telos, aplicando alguns critérios a determinados grupos de casos,

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cuja solução não esteja necessariamente contida em lei. Irrepreensível a lição de Roxin (1997), a este respeito:

“Apesar das vantagens, a interpretação do direito a partir de um sistema que abarque toda a matéria jurídica não é um procedimento em si mesmo evidente, nem necessariamente satisfatório em todos os casos”. Prossegue o penalista alemão: “Constantemente surge a ideia de que a sistematização pode acabar por violentar a matéria jurídica e que, por isso, o método de decisão mais adequado para a ciência do direito seja a discussão dos problemas no caso concreto”.

E, assim, Roxin (1997) analisa e elucida quatro desvantagens que, no mínimo, o pensamento sistemático oferece: (i) o esquecimento ou padecimento da justiça no caso concreto, pelo fato de se obterem soluções de deduções do contexto sistemático; (ii) a redução das possibilidades de resolução dos problemas, uma vez que a utilização de uma dogmática sistemática simplifica a aplicação do direito, restringindo o campo de visão do julgador; (iii) a falta de legitimidade político-criminal na resolução de conflitos por meio de deduções sistemáticas e (iv) o emprego de conceitos demasiado abstratos.

A partir da análise de que o real pode ser cambiável, e assim o é, a sociedade global da virada do século, as regras definidas pela teoria podem ser objeto de transformação, sem que com isso se comprometam as bases das categorias dogmáticas de delito. Daí é que se conclui que fazer ciência complexa consiste, exatamente, em compreender essas particularidades, essas mutabilidades, essas diferenças. A renúncia ao sistema “perfeito” e racional é um trabalho árduo, mas necessário à ciência do direito penal.

Por esse motivo, refuta-se a referência a “doutrinas”, a “dogmas”, que, por si só, devam ser considerados definitivos, autoverificáveis, como num sistema “autopoiético”2. A consequência deste método simplificador não seria outra, senão, a incompreensão do todo no qual o direito penal está submerso. Dizer que a ideia fundante do sistema gire em torno do conceito de conduta humana, embora tenha tido sua destacada importância, parece insuficiente, apenas um início de como deva ser o direito penal.

Mais do que nunca, do cientista jurídico do novo século, exige-se a compreensão de outros saberes que lhe agregarão – suficientemente a ponto de se verificar o conhecimento como um todo. Não se trata do abandono de raízes, nem da ultrapassagem de fronteiras

2 O termo autopoiesis, originado na década de 1970 pelos estudos de Biologia e Filosofia, possui origem grega e significa autocriação, ou seja, a capacidade de determinados seres vivos reproduzirem-se e manterem-se por si só. O termo foi introduzido na linguagem sociológica contemporânea a partir do construtivismo radical, que tem Niklas Luhmann como exemplo. E, pode-se dizer, introduzido na literatura jurídica com a obra de Gunther Teubner, que refuta a transformação do direito positivo em um sistema autopoiético. TEUBNER, G. O direito como sistema autopoiético. Lisboa: Caloste Gulbenkian, 1999.

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inócuas, mas de uma interdisciplinaridade necessária. Em especial, a Filosofia e a Sociologia contribuirão sobremaneira na formulação complexa do direito penal. Importa ressaltar a lição de Höffe (2004), para quem “somente na sua fase inicial, a Filosofia se circunscrevia de temas que se encontravam muito distantes do direito penal: a cosmologia e a ontologia de Parménides”.

Prossegue o filósofo alemão:

Desde o interesse dos sofistas e de Sócrates pelo ser humano, desde esta inflexão antropológica, os grandes filósofos tornaram-se, ao mesmo tempo, grandes pensadores do Direito e da teoria do Estado; e desde seus fundadores, Platão e Aristóteles, também se ocupam do direito penal (t.n.) (HÖFFE, 2004).

As exigências que se depositam sobre o direito penal cambiam a todo tempo e, por isso mesmo, por ser um dos ramos da ciência jurídica que mais influem (senão o que mais) na vida cotidiana social e, por ser o instrumento mais invasivo de controle social, suas bases devem estar fincadas em um ambiente sólido e eficaz. O direito penal, quando amparado, por perseverança e acuidade, pelas outras ciências do saber, faz destes inter-relacionamentos, algo realmente produtivo. Hassemer (2004), em artigo escrito sobre a autocompreensão da ciência penal frente às exigências de seu tempo, acertadamente conduz o direito penal a um pensamento complexo:

Proibir e sancionar são também um ato político, um meio público para a compreensão normativa sobre nossos interesses, assim como são a fronteira da liberdade. A fascinação privada e política que a ciência do direito penal desperta supõe uma carga e reduz a ênfase de sua função de chamada e garantia da liberdade científica (HASSEMER, 2004, p. 24-25).

E prossegue: “O objeto de nossa ciência não só é fundamental, como também cambiante e determinado pela época. [...] é dizer, a cada certo tempo – também com as exigências científicas – devemos perguntar que estamos fazendo e que podemos esperar” (t.n).

O resultado do esforço simplificador é a incompreensão do todo no qual o direito penal está imerso. Inviabiliza-se o conhecimento daquilo que, de fora, condiciona o direito penal, mas, tampouco, devolve a seu entorno. E não se está referindo a um direito penal simbólico, que devolva à sociedade as expectativas que lhe são inferidas, é necessário afastar o equívoco que compreende a complexidade como mistura de saberes, como coquetel de ciências, ou como sincretismo metodológico. O interdisciplinar, afinal, pressupõe as disciplinas. É este o princípio: o mero conhecimento individualizado das partes de uma realidade complexa é incapaz de fazer subsistir o conhecimento do todo (PASCAL, 1979).

Assim é que é dada, ao direito penal, enquanto ciência, a missão de trabalhar em conjunto com outras ciências, na busca de soluções para problemas que já não mais admitam resoluções incompatíveis com as próprias multidimensionalidades dos próprios

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problemas. Dogmas, são afinal, refutáveis a um discurso jurídico-penal (FOUCAULT, 1999). Salutar a lição de Foucault (1999) que, por meio de uma interpretação nietzschiana, afirma que, para bem compreender o conhecimento, deve-se debruçar, para além de sobre ele, sobre a política:

Ora, se quisermos saber o que é o conhecimento, não é preciso nos aproximarmos da forma de vida, de existência, de ascetismo. Se quisermos realmente conhecer o conhecimento, saber o que ele é, apreendê-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar [...] dos políticos (FOUCAULT, 1999, p.23).

E completa: “É somente nas relações de luta e poder – na maneira como as coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros [...] – que compreendemos em que consiste o conhecimento” (FOUCAULT, 1999).

A barreira imposta por Liszt (2011), para quem o direito penal deveria se afastar da realidade político-social para que o edifício de intricados conceitos do direito penal não fosse depreciado, era própria de um positivismo racionalista e que finalmente foi derrubada por Roxin, quando este em palestra proferida em maio de 1970, em Berlim (palestra que deu origem a memorável obra “Política criminal e sistema jurídico-penal”), o professor da Universidade de Munique, ancorado por ideias metodológicas antissimplificadoras e de alcance global, viu na relação entre o direito penal e a política criminal consequências práticas fundamentais.

Assim é que se iniciou uma nova fase na contramão da dicotomia lisztiana entre direito penal e política criminal, quiçá inaugurada com a obra de Roxin (2002), que busca a resolução dos conflitos para além do positivado, mas que, politico-criminalmente seja mais acertado. “Não será preferível uma decisão adequada do caso concreto, ainda que não integrável no sistema?” Há de se responder afirmativamente à indagação proposta pelo jurista alemão.

A partir de sua obra, diversos outros jusfilósofos filiaram-se à adoção do método axiológico proposto pela política criminal para a correção de algumas problemáticas existentes na dogmática penal. Por óbvio, Roxin (2002) adverte sobre os riscos da adoção, unicamente, de critérios valorativos individuais, expostos que estariam ao arbítrio do julgador, e, mais uma vez, ressalta a importância do equilíbrio e da dialética entre o racionalismo e o axiológico.

A lição de Roxin (2002) demonstra que o pensamento complexo, como já salientado, tem muito mais a oferecer à ciência do que ela por si só, separada, distante, poderia traduzir-se. O pensamento sistemático restrito ao direito positivo possui um caráter fortemente simplificador, e se outrora contribuíra, de forma decisiva, para o desenvolvimento e construção das bases do direito penal, sem as quais hoje não se falaria sequer em teoria do delito, frente às complexidades das relações sociais impostas pelo

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desenvolvimento tecnológico global, há que se compreendê-lo (o pensamento sistemático positivo) a partir das injunções que o extranormativo lhe impõe.

Quando se compreende a complexidade do real é que se consegue estabelecer aquilo que deva ser o melhor e mais justo na aplicação do direito penal. Ademais, não se deve olvidar que a salvaguarda da liberdade, de cariz liberal e tão apregoada por Liszt (2011), conduz, de igual forma, as decisões político criminais.

E não deve ser de outra maneira. Afinal, o postulado nullum crimen nulla poena sine lege proíbe punições ou o agravamento de punições pelo direito consuetudinário e constitui direito fundamental do indivíduo. Este princípio penal limitador do poder punitivo estatal não pode (e não deve) ser suprimido, pois que o art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal possui eficácia e efetividade, irradiando seu conteúdo para dentro de todas as normas, constitucionais ou infraconstitucionais, do ordenamento jurídico.

Nesta seara, e buscando romper as diferenças e a barreira que a afirmação de que a dogmática penal traduz-se no direito tal como ele é e a política criminal no direito como ele deve ser, Roxin (1997) adverte sobre a necessidade de a política criminal estar revestida do manto da dogmática. Essa afirmação vem explicar a importância da reflexividade, que deve exteriorizar-se no âmbito da epistemologia e do ensino. Afinal, toda e qualquer área da vida com pretensão de cientificidade deve, em certo sentido, demonstrar complexidade e exteriorização da reflexividade. Boaventura de Sousa Santos (1989) distingue duas formas de reflexividade: a primeira, denominada “subjetivista” refere-se à relação existente entre o cientista e o social (assim, por exemplo, o cientista do direito que, reflexivamente, percebe-se, também, como advogado, magistrado, membro do Ministério Público, professor etc., estará mais apto a lidar com seu papel social no meio em que está inserido, ou seja, o confronto de ideias em qualquer setor, ou em qualquer ciência, traz retornos positivos louváveis); a segunda forma de reflexividade, denominada “objetivista”, volta-se à própria prática científica, ou seja, aos limites e possibilidades de suas atividades (SANTOS, 1989).

Em qualquer uma das hipóteses, o fundamental é a percepção de que em um pensamento complexo deve haver uma reintegração do observador na observação, a ponto que se chegue à melhor forma de criação e aplicação do direito penal.

O dogmático deve ser analisado à luz do político-criminalmente mais justo e vice--versa, ou seja, não deve, a política criminal, olvidar-se dos direitos do cidadão e dos princípios seculares que constituem a base de um direito penal democrático. Leite (2012), doutorando sob a orientação de Roxin, a respeito do método, bem adverte que “há algum tempo ecoam lamúrias a respeito do afastamento entre teoria e prática. [...] A caneta do

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cientista, diferentemente daquela do magistrado, não assina”; e prossegue, concluindo que não deve, a ciência, se permitir divagações desgarradas dos reais problemas jurídicos.

Mais do que nunca, o momento histórico atual (que inclui sociedade, política, cultura e outras tantas áreas da vida) é ambientado por milhares e ininterruptos contatos sociais, muitas vezes anônimos3, por uma vasta e complexa rede de relações4 e comportamentos, o que implica, sob o ponto de vista prático, na tomada de diversas decisões, dentre elas, a que gira em torno dos riscos destes comportamentos e atividades introduzidas “a toque de caixa” pela sociedade moderna.

É certo que, conforme salientado por Jakobs (2000), “numa sociedade em que vários elementos estão vinculados a outras muitas circunstâncias, a causalidade carece de contornos determináveis”, o que traduz, sem embargo, a insuficiência do sistema ontológico de atribuição objetiva do resultado (o que não deixava de ser uma “imputação objetiva”, vez que se tenha o verbo imputar como atribuir algo a alguém como obra sua).

A doutrina alemã das últimas décadas do século passado, buscando corrigir este problema, então, tratou de introduzir e reforçar a aplicação de critérios axiológicos de imputação, calcada que estava num pensamento complexo superior, tendente a utilizar, em prol do sistema de direito penal, os parâmetros de política criminal.

Desta feita, “a unidade sistemática entre política criminal e direito penal”, no entender de Roxin (2002), “deve ser realizada na construção da teoria do delito, é somente o cumprimento de uma tarefa que é colocada a todas as esferas da nossa ordem jurídica”.

3 O termo “contratos sociais” é utilizado, com frequência e a priori por Jakobs, quando esclarece que, desde sempre (desde Adão e Eva) a humanidade deve ter em conta todas as consequências desses possíveis “contatos”. JAKOBS, G. A imputação objetiva no direito penal. Trad. André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 14.

4 O sociólogo Manuel Castells refere-se à chamada “sociedade em rede” para definir a sociedade do novo século, econômica e socialmente dinâmica e interligada pela nova era da informação. Segundo ele, “a economia global se caracteriza hoje pelo fluxo e troca quase instantânea de informação, capital e comunicação cultural”, o que se reflete na aceleração, cada vez maior, do r ritmo das descobertas e de suas aplicações. CASTELLS, M. A sociedade em rede: v. 1 - A era da informação: economia, sociedade e cultura. Trad. Roneide Venancio Majer. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

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2 A MODERNA ADOÇÃO DE CRITÉRIOS FUNCIONAIS NO CONTEXTO DE DEFINIÇÃO DE PATAMARES DE RISCOS: A REPERCUSSÃO NOS CRIMES CULPOSOS

Da análise da legislação penal extravagante pós mil e novecentos, repercute uma expansão da modalidade culposa de crime, na tentativa de solucionar, ou menos apaziguar, os problemas e anseios sociais decorrentes do ininterrupto desenvolvimento técnico- -científico: são novas máquinas, novas formas de energia, delicadas cirurgias, transplantes etc., exigindo deveres especiais em relação a atividades perigosas (JUNIOR, 1988).

A ação violadora dos limites do risco permitido traduz-se em conduta perigosa, repudiada pelo sistema jurídico. Ainda que o fato culposo constitua modalidade especial e excepcional de delito, é certo que, da análise da legislação penal extravagante, nota-se maior recorrência a essa modalidade, reconhecendo-se, para além de uma expansão de delitos culposos comissivos, delitos culposos omissivos, e também, de mera atividade, e de perigo (TAVARES, 2009).

O tipo culposo, não obstante,

não individualiza a conduta pela finalidade e sim porque, na forma em que se obtém essa finalidade, viola-se um dever de cuidado, ou seja, como dita a própria lei penal, a pessoa, por sua conduta, dá causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia (ZAFFARONI, 2007).

É certo, porém, que, após muita discussão acadêmica, chegou-se a um mais ou menos consenso de que a locução “quebra de dever de cuidado”, herança welzeliana – faz remeter, desarrazoadamente, no campo dos crimes culposos, à ideia de omissão, no que todo crime culposo seria omissivo, pois não observar um dever é omiti-lo. Mas a lógica não se aplica. A inobservância do dever de cuidado remete a uma falsa posição de garantia, falha que merece ser corrigida e assim o faz a moderna doutrina funcionalista que, em seu lugar, utiliza a referência, em crimes culposos, a “criação de riscos proibidos” para se imputar um resultado concreto ao agente, de dano ou perigo de dano ao bem jurídico.

Com a intensificação dos riscos advindos das atividades sociais – riscos, estes, cujo alcance não se pode, muitas vezes, prever ou definir – decorre consequência fundamental para o estudo atual da teoria do crime culposo: a busca pelo controle de riscos advindos de tomadas de decisões humanas passa pela adoção de critérios funcionais na tentativa de se definir se determinada conduta deva ser tolerada ou proibida pela legislação penal, o que ocorre por meio da definição de patamares de riscos.

O critério do risco, assim, traduz, em matéria de crime culposo, tendência substitutiva à “quebra de dever de cuidado”. Desloca-se o eixo da imputação: a causação

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física de uma modificação no mundo exterior perde força; ganha força, ao contrário, a vinculação do comportamento com a exposição do bem jurídico a dano ou perigo de dano (GUARAGNI; GIRONDA CABRERA, 2012). O eixo central da imputação desloca--se, então, do resultado naturalístico ao resultado jurídico.

Superadas, assim, as bases ontológicas na construção de uma dogmática penal (que se fez, durante certo tempo, estéril), a política criminal ganha força e integra o sistema como protagonista na atribuição de funções ou tarefas ao direito, enquanto conjunto normativo. De um sistema cuja ideia fundante girava em torno do conceito de conduta humana – quer em sua concepção causalista ou finalista – chega-se a um sistema, reconhecedor de sua complexidade, cujo ponto de equilíbrio dá-se no estabelecimento e atendimento às funções do direito penal.

Ora, não há ambientação melhor para um sistema dogmático construído com “ares” político-criminais que a atual, em que a “matematização do mundo” perde sentido e a desconfiança social generalizada traz o direito penal ao palco – embora figurante como ultima ratio – da controlabilidade de riscos provenientes de novas tecnologias. Oportuna a lição de Tavares, ao anunciar a que vieram as chamadas teorias funcionais pós-finalistas:

O termo funcional tem suscitado muitas controvérsias. [...] A investigação científica das atividades sociais se deslocou da simples constatação (cognição) para um procedimento no qual os elementos singulares, como por exemplo, a conduta, deveriam ser vistos como engrenagens de uma estrutura global (TAVARES, 2009).

Essa estrutura global deve ser representada exatamente pela função do direito penal que, a depender da posição que se adote, variará. Isso porque, do estabelecimento de missões5 ao sistema jurídico-penal, a proposta do funcionalismo é, conforme as palavras de Guaragni (2009), “fazer os conceitos renderem de forma otimizada quanto ao cumprimento de suas finalidades sistêmicas”, isto é, à luz dos critérios político-criminais sempre preocupados com os ideais de justiça, revisitam-se alguns conceitos clássicos da teoria do delito, como por exemplo, o da tipicidade (e, consequentemente, a culpa stricto sensu), com vistas à melhor solução dos problemas práticos vislumbrados. Vale a transcrição da lição de Luís Greco (1997), para quem o funcionalismo nada mais é que a remodulação

5 Conforme salientado por Busato, o emprego do termo “missão” é mais vantajoso que o termo “função” para refletir o plano do dever ser. Segundo o autor, “no campo do direito penal, o termo ‘função’ corresponde aos efeitos objetivamente reais, ainda que não desejados, da aplicação concreta do sistema jurídico- -penal. Por isso, parece mais adequada a utilização do termo ‘missões’ para denominar as consequências desejadas e buscadas pelo sistema penal.” BUSATO, P. C. O risco e a imputação objetiva. In: BUSATO, P. C. (Org.). Teoria do delito. Curitiba: Juruá, 2012. (Série Direito penal baseado em casos). p. 64.

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das categorias dogmáticas de crime para que “sejam capazes de desempenhar um papel acertado no sistema, alcançando consequências justas e adequadas”. O discurso aqui pretendido, é de se frisar, não compactua, ademais, com a superação dos princípios clássicos garantistas, estes indispensáveis e atuantes como um eixo a legitimarem soluções justas e coerentes. Calha a lição de Roxin (1997), segundo a qual, o ponto de partida consiste em reconhecer que a única restrição se encontra nos princípios da Constituição.

Fato é que verificada a insuficiência e a imperfeição da causalidade natural (evidenciadas no art. 13 do Código Penal Brasileiro) como determinante da imputação, criaram-se critérios de análise do tipo objetivo, critérios estes, teleológico-normativos, complementares do tipo, por um lado, e restritivos da causalidade, por outro.

Os critérios de imputação objetiva6 ficaram, durante muito tempo, adstritos à aplicação no âmbito do delito culposo. E ainda que hoje se vislumbre necessária importância da avaliação destes critérios, também, quanto ao delito comissivo doloso, como pretendido por Jakobs (2000), é certo que a maioria arrasadora de casos em que se discute a aplicação dos critérios de imputação objetiva dá-se no âmbito da tipicidade culposa7, já que se o

6 Sabe-se que o tema da imputação objetiva não é, necessariamente, novo no ambiente jurídico-penal, vez que criada por Larenz para o direito civil e trazida por Hönig para o direito penal, porém restava abandonado diante o sistema jurídico racionalista antecedente às teorias pós-finalistas. A este respeito, Busato adverte que “ao contrário do que eventualmente se pode pensar, o tema da imputação objetiva não é exatamente um assunto novo, nem muito menos fruto de concepções modernas sobre a teoria do delito, ainda que tenha lugar nelas, o que enseja que alguns autores comentem a existência de uma ‘moderna teoria da imputação objetiva’, em oposição a uma formulação ‘antiga’, para qualificá-la de algum modo. Não nos parece existir, com efeito uma ‘nova teoria da imputação objetiva’, mas sim novas concepções sobre as categorias delitivas, o que conduz à releitura de vários tópicos, entre eles, a parte objetiva da imputação”. BUSATO, P. C. Fatos e mitos sobre a imputação objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 4. Retrocedendo ainda mais no tempo, Jakobs relembra que “desde o primeiro episódio conhecido na história da humanidade sobre a violação de uma norma (que remonta a Adão e Eva), se transluz – ainda que de maneira não muito intensa – um problema de imputação objetiva”. JAKOBS, G. A imputação objetiva no direito penal. Trad. André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 13. A respeito, ainda, do tema da imputação objetiva, é bastante considerável a doutrina brasileira que trate, com cautela, do tema: BUSATO, P. C. Fatos e mitos sobre a imputação objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008 (autor, é realmente necessário repetir esta referência na nota de roda pé); GALVÃO, F. Imputação objetiva. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002; PREUSSLER, G. de S. Aplicação da teoria da imputação objetiva no injusto negligente. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2006; CAMARGO, A. L. C. Imputação objetiva e direito penal brasileiro. São Paulo: Livraria Paulista, 2002. E, sob a organização de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli: PEÑARANDA RAMOS, E.; SUÁREZ GONZÁLEZ, C.; CANCIO MELIÁ, M. A fundamentação normativa da tipicidade no novo sistema de direito penal. In: Um novo sistema do direito penal: considerações sobre a teoria de Günther Jakobs. Barueri, São Paulo: Manole, 2003.

7 Na contramão do preconizado por Jakobs, tem-se Kaufmann, que nega que a imputação objetiva e também se aplique como “teoria do tipo aos delitos dolosos, alegando, dentre outras razões, que ‘está estampado na testa que provêm do crime culposo”. KAUFMANN, A. (1977) apud FEIJÓO SÁNCHEZ, B. Teoria da imputação objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a teoria da imputação objetiva. Trad. Nereu José Giacomolli. Barueri, São Paulo: Manole, 2003. p. 5.

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cerne da teoria de imputação é, hoje, a criação de riscos proibidos – o que caracteriza a essência do crime culposo, quando adicionada ao critério da contrariedade a um dever normativo. Não por outro motivo, essa modalidade de delito ganha protagonismo mister nos últimos 30 anos.

Decerto, traduz-se a expansão da modalidade culposa de delito na causa mais necessária de ponderação de riscos permitidos – no sentido de não incomodativos de bens jurídicos (ROXIN, 1997) ou no sentido de não desestabilizadores de expectativas em relação às normas e aos modos de comportamento (JAKOBS, 2000). Imputação objetiva não traduz, assim, concorrência à teoria da causalidade, vez que parte do pressuposto de que há causa, mas traduz-se, isso sim, em medida de restrição do tipo objetivo a critérios provenientes do universo do dever ser.

Os exemplos fornecidos pela doutrina se repetem. Tratam, a menudo, do caminhoneiro que, ultrapassando em 10% a velocidade máxima prevista na rodovia, abate sujeito que se jogara da ponte em ato suicida. Na hipótese, ainda que o caminhoneiro mantivesse a velocidade de segurança, o resultado letal teria ocorrido.

A respeito da importância em se adotarem critérios de imputação objetiva frente à inflação de novos riscos e atividades merecedoras de atenção por parte do legislador e do julgador, tem-se a lição quase profética de Honig, ainda em 1930:

Ainda que o juízo não se baseie no saber e no querer atuais do autor, [...] é determinante a questão de se saber se o autor, mediante sua conduta, em concorrência com outros fatores dados fora de seu controle, pôde incidir na produção do resultado ou na sua evitação (SANCINETTI, 2009).

Prossegue Honig: “ O conteúdo desta questão, o alcance de um fim determinado, faz com que todo fator da situação de fato seja essencial, com o qual o centro de gravidade da decisão não se traduza em generalização – como a teoria da causalidade, mas singularizada em cada caso” (t.n.) (SANCINETTI, 2009).

De tudo isso, conclui-se que a depender da missão escolhida no emprego e remanejamento dos conceitos de direito penal, ou seja, a depender da finalidade político-criminal eleita, cambiará a orientação do direito penal, podendo, ora orientar--se à proteção de bens jurídicos, ora “fixar os objetivos preventivo-gerais da pena no afã de imprimir um certo conteúdo ético nas condutas das pessoas, imposto verticalmente, de cima para baixo, pelo Estado” (GUARAGNI, 2009)”.

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Há, ainda, outras tantas correntes funcionalistas sendo desenvolvidas8, o que confirma a existência de uma gama de missões político-criminalmente impostas no âmbito da dogmática e, por conseguinte, diferentes repercussões a serem sentidas em sede de crime culposo. A depender da ordem de orientação dada à conduta realizada, haverá injusto culposo, ou não. Isto porque, a conduta humana não mais se traduz em mera manifestação externa individual e passa a ter sentido como elemento dentro de um sistema orientado pelas finalidades (ou missões) eleitas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vontade de verdade pode ser enganadora. É capaz de distorcer a realidade para adaptá-la às categorias do conhecimento, das ciências, do que se pretende que seja real. Faz da vida, complexa que é, um argumento simples. E, sabe-se, já desde Nietzsche (2001), que a vida não é um argumento. Os esquemas verificáveis em qualquer espaço-tempo, dos quais o direito encontra-se repleto, surgem, na alvorada do terceiro milênio, como questão de debate entre as mais diversas áreas da ciência jurídica. O presente artigo buscou contextualizar o novo universo em que o direito penal se encontra inserido, a partir de meados dos anos setenta do século passado, o que tornou necessário e imprescindível à ciência complexa que é, a interdisciplinaridade para o discurso jurídico-penal. A dogmática penal evidencia seu caráter instrumental e a política-criminal ganha força, optando, aquela, por uma estruturação teleológica do sistema penal, funcionalizada pela proteção subsidiária de bens jurídicos do indivíduo e da coletividade contra riscos socialmente intoleráveis, vinculando as categorias do delito ao postulado do nullum crimen, sobressaltando, o direito penal, como ultima ratio do sistema. Todas as categorias do delito, assim, deveriam ser analisadas segundo este critério, inclusive a tipicidade culposa. Deveriam, afinal, ser funcionalizadas, para uma melhor repercussão de si mesmas, dando lugar a decisões mais condizentes ao universo do que deva ser, mas não menos ligados à realidade das coisas.

8 Há várias conceituações funcionais na literatura atual, a destacar, além de Roxin, Jakobs e Frisch: Enrique Bacigalupo (1984), Francisco Muñoz Conde (2002) e Tomás Salvador Vives Antón (1996).

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RESUMO

A teoria do delito do século XIX, enclausurada em postulados positivistas, tem passado por duras mutações a partir de paradigmas que renovam os pressupostos conceituais que outrora lhe deram sustentação. A teoria causalista, que compreendia a ação enquanto simples modificação mecânica do mundo exterior, resguardando o foro meramente interno, e que dimensionava o dolo no estrato da culpabilidade, revelou uma série de inconsistências teórico-práticas – notadamente no âmbito das condutas omissivas – que a teoria finalista, deslocando o dolo para o tipo e introduzindo o axioma de que toda ação é intencionalmente dirigida a um resultado, intentou resolver. Ocorre que ambas, causalista e finalista, consideram o dolo como uma realidade ontológica, isto é, um dado eminentemente psicológico que compete ao jurista identificar – o que dá azo a uma discricionariedade extremada na medida em que, sendo um processo interno do indivíduo, não há como se afirmar categoricamente quando o sujeito terá ou não conhecimento sobre o risco de produção do dano. A superação destes obstáculos epistemológicos se dá com a teoria significativa da ação do jurista espanhol Vives Antón que, ao prescrever ao dolo uma existência valorativa (axiológica), o toma como um compromisso para atuar lesivamente a partir de critérios normativos.

Palavras-chave: Dolo. Imprudência. Causalismo. Finalismo. Ação significativa.

RESUMEN

La teoría del delito del siglo XIX, enclaustrada en los postulados positivistas, han pasado a través de mutaciones de los paradigmas que renuevan los supuestos conceptuales que una vez le dieron apoyo. La teoría causalista de von Liszt, que entendía la acción como simple modificación mecánica del mundo exterior, resguardando el foro puramente interno, y en que el dolo integrava el estrato de la culpabilidad, reveló una serie de inconsistencias teóricas y prácticas – sobre todo en conductas omissivas – que la teoría finalista de Welzel, cambiando el dolo para el tipo y añadiendo el axioma de que toda acción se dirige intencionalmente a un resultado, intentó resolver. Ocurre que tanto causalista y finalista, tienen el dolo como una realidad ontológica, es decir, un carácter eminentemente psicológico que compite a el jurista identificar - lo que da lugar a una discreción extrema ya que, al ser un proceso interno de la persona, no hay manera de afirmar categóricamente cuando el sujeto tiene o no conocimiento sobre el riesgo de producción de daño. La superación de estos obstáculos epistemológicos ocurre con la teoría de la acción significativa del jurista español Vives Antón que, al prescribir al dolo una realidad valorada (axiológica), lo toma como un compromiso para actuar lesivamente desde criterios normativos.

Palabras claves: Dolo. Imprudencia. Causalismo. Finalismo. Acción significativa.

O DOLO COMO REALIDADE AXIOLÓGICA E A SUPERAÇÃO DAS TEORIAS ONTOLOGICISTAS DA AÇÃO

EL DOLO COMO REALIDAD AXIOLÓGICA Y LA SUPERACIÓN DE LAS TEORIAS ONTOLOGICISTAS DE LA ACCIÓN

Bruno Cortez Torres Castelo Branco1

1 Mestrando em Direito na linha de pesquisa “Direito, Poder e Controle” pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Este artigo foi desenvolvido por ocasião da disciplina Novas Tendências do Sistema Penal ministrada pelo professor Paulo Cesar Busato no primeiro semestre de 2014.

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INTRODUÇÃO

Na base de toda a visão moderna do mundo, diz Wittgenstein2, está a ilusão de que as chamadas leis da natureza são as explicações de fenômenos naturais. Explicar algo é comumente sinônimo de buscar a sua causa, mas a palavra “causa”, adverte Bertrand Russel3, está tão inexplicavelmente presa a associações enganosas, que sua completa exclusão do vocabulário filosófico se faria desejável. Explicação, portanto, não é o mesmo que descrição, pois envolve uma escolha teleológica, uma declaração do propósito da coisa explicada.

O Direito, em sua ânsia por cientificidade, incorpora muitos conceitos próprios das ciências naturais – como é o causalismo – que atuam como um pressuposto inquestionável de autolegitimação. Essa concepção é manifesta, em especial, por Franz von Liszt, para quem ação deriva da constatação da existência de fatos jurídicos que seriam perceptíveis pelos sentidos e descritíveis num sistema de conceitos físicos ou biológicos.4 Nessa mesma linha é a ideia de que, na determinação do dolo, deve-se levar a cabo uma averiguação empírica de certos fenômenos psíquicos, isto é, internos. Contrapondo-se ao modelo teórico positivista, assinala Ricardo de Brito, in verbis, que

a ciência do direito penal não pode tratar o seu objeto como se fosse uma coisa, pois se encontra imersa no mundo dos valores. O cientista do direito penal dirige sua atenção aos valores ao selecionar o objeto da pesquisa, ao formular a hipótese de trabalho, ao fixar seus objetivos, ao argumentar com base nos dados de que dispõe e, finalmente, ao elaborar suas conclusões.5

Com o penalista alemão Karl Engisch6 o critério de distinção do nível de reprovação da lesão dolosa ou culposa passou a repousar na atitude do agente em relação ao mundo dos bens jurídicos, sendo esta a tônica das modernas tendências sobre o dolo, especialmente em Vives Anton – que será mais a frente detalhada.

2 WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. de Luiz Henrique Lopes dos Santos. 3. ed. São Paulo: EDUSP, 2001.

3 Apud WEINBERG, S. Os limites da explicação científica. Folha de São Paulo, São Paulo, Caderno Mais! p. 7-12, 24 jun. 2001. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2406200107.htm>. Acesso: 25 out. 2014.

4 FREITAS, R. de B. A. P. As condições da pesquisa científica em direito penal. Revista Verba Juris, v. 6, n. 6, 2007. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/vj/article/view/14871>. Acesso: 26 mar. 2014. p. 363.

5 Ibidem, p. 388.6 Apud HASSEMER, W. Persona, mundo y responsabilidad. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1999. p. 130.

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Conquanto exista imensurável celeuma em relação ao conceito de dolo, Ramón Rágués i Vallès7 deduz que há consenso em se exigir que o sujeito tenha representado um certo grau de risco de realização do tipo, isto é, que o dolo é basicamente conhecimento ou representação. Mas não seria a representação de que uma conduta é perigosa em abstrato, pois o conhecimento desse perigo deve se referir ao comportamento concretamente praticado. O dolo, pois, pressupõe que um sujeito conte com certos conhecimentos no momento em que realiza uma conduta objetivamente típica, estando o grande ponto de divergência na demarcação de critérios para estabelecer o que exatamente um sujeito conhecia ou representou no momento desta conduta.

As opiniões doutrinárias a esse respeito podem ser agrupadas, didaticamente, em duas vertentes: uma acredita na plausibilidade de se mostrar de modo convincente quais são os meios que tornam possível a averiguação da realidade psíquica pretérita e alheia; a outra recorre a parâmetros normativos e ao sentido social como critério de determinação do conceito exigido pelo dolo, de modo que a consideração de uma conduta dolosa não mais depende de determinados dados psíquicos, cuja tentativa de apreensão se mostra inidônea.8

1 A DELIMITAÇÃO ENTRE DOLO E IMPRUDÊNCIA

O dano requerido por certos delitos (furto, roubo, agressão sexual) não pode ser produzido sem uma ação humana intencional, por acidente, o que não objeta a possibilidade da ocorrência de erro. Só se estará diante de um acidente quando o resultado também possa ocorrer sem intervenção humana. Para que exista imprudência, e não mero caso fortuito, é necessário que a conduta do sujeito implique um risco substancial e injustificável de produção do dano relevante. Se por erro um farmacêutico coloca o rótulo de refrigerante numa garrafa que contém uma substância tóxica, mas a deixa dentro do vasilhame e não exposta na prateleira, se alguém subtrai e ingere o líquido da referida garrafa, ainda que conduta do farmacêutico tenha provocado um risco substancial, será justificável porque a possibilidade de que alguém viesse a ingeri-lo seria mínima.

A fórmula de Learned Hand define a imprudência como assunção de um risco não razoável, o que equivale a dizer risco não justificável ao se comparar os benefícios

7 Apud BARBERÁ, G. P. El dolo eventual: Hacia el abandono de la idea de dolo como estado mental. Buenos Aires: Hammurabi, 2011. p. 623.

8 Ibidem, p. 625.

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e custos empregados. Se os benefícios esperados são superiores aos custos, o risco é razoável e justificado, como ocorre com a autorização para conduzir veículos inobstante a excessiva quantidade de acidentes fatais no trânsito. Além destes dois critérios, o The Model Penal Code exige para se ver caracterizada a ação imprudente a não percepção do risco pelo sujeito, cujo conhecimento seria exigível de uma pessoa razoável que estivesse na mesma situação.9

O conceito de imprudência, todavia, não se confunde com o de recklessnes ou “desconsideração”, algo próximo do dolo eventual e mais grave que a imprudência, em que sujeito tem consciência do risco, mas o ignora, sendo irrelevante o elemento volitivo. A aplicação desse conceito é ilustrada por George Fletcher em caso da jurisprudência norte-americana que teve por ré a Ford Motor Company, acusada de não ter se preocupado (indiferença) em pesquisar se era ou não perigoso colocar o tanque de gasolina na parte frontal de um determinado modelo de automóvel ou ter calculado que o risco seria aceitável por trazer mais benefício do que o contrário, o que se mostrou errôneo dada a ocorrência de colisões fatais que poderiam ter sido minoradas.10

Fletcher propõe uma delimitação entre dolo e imprudência afirmando que a conduta é imprudente ou desconsiderada quando se desvia da conduta esperada de uma pessoa razoável atuando nessas circunstâncias e que sua constatação se dá depois que se comprova que a conduta não é justificada nem exculpável.11 A dolosa, por sua vez, é uma presunção de culpabilidade que se constata antes do exame das causas de justificação e de exculpação, mas somente será culpável se o sujeito se desvia da conduta que se deveria esperar de uma pessoa razoável atuando nessas circunstâncias.

A mera possibilidade de escolha não converte o sujeito automaticamente em culpável, de modo que um sujeito que sofre coação física de alguém para matar um terceiro, por exemplo, hipoteticamente poderia optar em praticar ou não tal ilícito, mas deve-se antes problematizar qual seria a postura de uma pessoa razoável na mesma situação. Assim, resta insustentável o argumento de que a imprudência não poderia ser uma forma de responsabilidade porque nela não há possibilidade de escolha da própria culpa.

9 FLETCHER, G. Conceptos básicos de derecho penal. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997. p. 175.10 Ibidem, p. 177.11 Ibidem, p. 192.

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2 A AUTONOMIA DO ELEMENTO VOLITIVO NO DOLO

Em que pese o elemento cognitivo seja unanimemente acolhido como parte necessária a integrar o conteúdo do dolo, repousa celeuma doutrinária acerca da inclusão ou não do elemento volitivo – a vontade de realizar a ação ou omissão. É certo que nem dentro do mesmo grupo (assim os que abstraem como os que não prescindem do elemento volitivo) há coincidência absoluta entre os autores tendo em conta que cada qual carreia especificidades ao tema. Impõe-se, desta feita, a exposição dos principais argumentos, ainda que de modo apenas superficial, a fim de se traçar possíveis conexões com a teoria significativa da ação de Vives Antón.

2.1 TEORIAS QUE ABSTRAEM O ELEMENTO VOLITIVO

Dolo e imprudência são, para Feijoo Sanchez12, conceitos estritamente normativos, posto que ambas formas de imputação se fundam na infração de um dever como concreção da norma de conduta, partindo-se de uma perspectiva ex ante. Assim, no injusto doloso, o sujeito agiria com conhecimento da relevância jurídico-penal de sua decisão e o centro do dolo estaria no conhecimento do sujeito sobre o risco de produção do resultado, vez que o resultado em si, sendo fato futuro, não pode ser conhecido, apenas previsto. No entanto, o fundamento da imputação não se encontraria exclusivamente no fator cognitivo do sujeito, mas antes em sua decisão (de caráter normativo), que no dolo é conscientemente dirigida à realização do fato típico – sem qualquer referência ao aspecto volitivo, que acaso inexistente apenas torna desnecessária a prova da vontade.

Assim no dolo como na imprudência, o sujeito adotaria uma decisão contrária aos bens jurídicos, de modo que a diferença entre ambos deve ser buscada com relação ao nível de conhecimentos entre o autor doloso e o imprudente, o que para Feijoo Sanchez13 justificaria a maior intensidade de pena do primeiro ante o seguindo, posto que “o autor doloso conta com uma informação suficiente ainda que não completa enquanto que o autor imprudente baseia sua ação em conhecimento defeituosos ou errôneos”.

12 Apud DIAZ PITA, M. M. A presumida inexistência do elemento volitivo no dolo e sua impossibilidade de normativização. In: BUSATO, P. (Org.). Dolo e direito penal: modernas tendências. São Paulo: Atlas, 2014. p. 6.

13 Ibid., p. 7.

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Rodrigo Cabral14 destaca que, para Frisch, o agente não tem condições de saber o resultado típico antes da ação, de modo que o dolo só se afigura quando à ação ou omissão típica se soma o conhecimento sobre o risco não permitido. Sendo uma decisão contra bem jurídico, só haverá dolo caso o agente realize um juízo prévio (ex ante) de que sua conduta é idônea a criar ou elevar um risco concreto tipicamente relevante.

Herzberg15, numa perspectiva cognitiva objetiva, diferencia dolo e imprudência através de um critério qualitativo direcionado do tipo objetivo, excluindo a imputação objetiva quando o perigo estiver coberto ou protegido, isto é, se o agente, o sujeito posto em perigo ou um terceiro puderem evitar a produção do resultado prestando atenção. Ao revés, o perigo estará descoberto e haverá imputação quando apenas fatores involuntários (extrajurídicos, portanto) forem hábeis a evitar a realização do tipo.

Buján Pérez16, contudo, alerta para a carência de fundamentação normativa da referida teoria, que se situa no âmbito fenomenológico ou meramente fático-descritivo, sem justificar porque o dolo deve ser excluído se a vítima ou terceiro puderem intervir para elidir o risco criado pelo autor, pois, ainda que coberto, a criação do risco manifesta o compromisso de se contrapor aos bem jurídicos tutelados. Acrescenta, outrossim, que Herzberg incorpora um dado volitivo na medida em que a representação de uma cobertura pelo sujeito envolve uma confiança irracional sobre a evitação do resultado.

Também repelindo o elemento volitivo, Jakobs17 define dolo como conhecimento da ação e de suas consequências, enquanto para Schmidhäuser18 o que importaria para a identificação do dolo seria o nível de conhecimento concreto ou potencial do agente enquanto pratica a ação ou omissão.

Almejando uma absoluta objetivização do dolo, Puppe19 o concebe num horizonte marcadamente normativo-racional ao defini-lo como conhecimento de um perigo qualificado a ser determinado pelo Direito, e não pelo agente. O importante, portanto, será a interpretação social sobre o comportamento externado pelo agente, e não a busca infrutífera do que está em sua mente, conciliando-se neste ponto com a concepção

14 CABRAL, R. L. F. O elemento volitivo do dolo: uma contribuição da filosofia da linguagem de Wittgenstein e da teoria da ação significativa. In: BUSATO, P. (Org.). Dolo e direito penal: modernas tendências. São Paulo: Atlas, 2014. p. 121.

15 Apud BUJÁN PÉREZ, op. cit., p. 48.16 Ibid., p. 48.17 JAKOBS, G. Derecho penal: parte general. Trad. Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serra González de

Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1997.18 Apud CABRAL, op. cit., p. 123.19 Apud BUSATO, 2014, p. 50.

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significativa de dolo. A dissensão se estabelece, entretanto, porque se olvidam o elemento volitivo e o conhecimento do agente na situação concreta, o que resulta numa “pura atribuição do fato típico realizado”.

Ragués i Vallès20, tal como Puppe, recusa o sentido psicológico do dolo, compreendendo-o como mera atribuição genérica segundo um juízo intersubjetivo, mas de sua parte propõe critérios de atribuição do conhecimento apoiando-se em indicadores externo do dolo, algo semelhante à ideia de compromisso. Antagonicamente à teoria significativa, imiscui-se de uma valoração específica da ação externa realizada para verificar se existiu uma decisão especial apta a materializar o compromisso de lesão a bem jurídico.

Ocorre que prescindir do elemento volitivo e exaltar preceitos transcendentais – como o de “risco descoberto”, “perigo qualificado”, “julgamento ex ante” –, identificando o dolo independentemente do que o agente realmente conhece, dá margem à imputação dolosa por algo que o sujeito não tenha efetivamente querido. Deste modo, amplia-se demasiadamente o poder incriminador estatal, comprometendo-se seriamente o caro princípio da culpabilidade.21

Os graus objetivamente descritíveis de uma situação de perigo, pondera Hassemer22, só podem ser aceitáveis na medida em que forem investidos de uma valoração e elaboração subjetivas, isto é, a representação que do risco tem o indivíduo, pois a imputação se dá pela culpabilidade. Logo, não se pode descartar que o agente tenha valorado mal ou não tenha percebido sequer o risco implícito em sua ação.

2.2 TEORIAS QUE NÃO DISPENSAM O ELEMENTO VOLITIVO

Estão o causalismo como o finalismo, sublinha Busato23, amparados numa concepção ontologicista de dolo, considerando-o um dado real e eminentemente psicológico que compete ao jurista identificar. Sendo o dolo um processo psicológico, em geral não há como se afirmar categoricamente quando o sujeito terá ou não conhecimento sobre o risco de produção do resultado. Desse modo, ainda que o indivíduo inadvertidamente acreditando na sorte não tenha pensado na lesão que advém, como poderia ocorrer no jogo da “roleta russa”, não poderá ele ser isento de responsabilidade, cabendo reagir como se o elemento intelectual do dolo tivesse concorrido.

20 Apud BUSATO, ibid., p. 51.21 Ibidem, p. 124.22 HASSEMER, op. cit., p. 141.23 BUSATO, 2014, p. 64.

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Partindo-se de Vives Antón24, faz-se imperativo desfazer a confusão semântica entre voluntariedade de intencionalidade: aquela é o elemento que dissocia a ação humana dos meros fatos e está presente tanto nas ações dolosas e imprudentes, pois de ambas se extraem consequências jurídicas; a segunda, por sua vez, desvela a íntima relação entre o sujeito e sua ação, mas só é útil para caracterizar o dolo direto de primeiro grau. Ademais, excluir o conhecimento do resultado apenas reduz as formas de conhecimento a duas: previsão e cálculo do perigo.

Resignificando o elemento volitivo, Vives Antón25 supera a clássica vertente naturalística-psicológica para compreendê-lo normativamente como um compromisso de atuar lesivamente, o que permite considerar a existência de dolo mesmo em condutas em que não haja um propósito. Na imprudência, ao revés, não seria idôneo remeter a uma decisão contrária ao bem jurídico, uma vez que inexistente o compromisso em produzir a lesão, que só ocorre por falta de cuidado.

Ter intenção é ter compromisso para atuar lesivamente, o que se verifica tanto no dolo quanto no dolo eventual, mas cuja constatação perpassa pela análise de dois fatores: as regras que definem a ação como uma ação típica e a relação de tais regras com a bagagem de conhecimentos ou a competência do autor. Só então será possível afirmar que é que o autor sabia – e não o que ele representou, calculou ou previu, pois apenas os indicadores externos do dolo, como pontuados por Hassemer, podem ser valorados, declinando-se de toda conotação psicológica.

A intenção não é um estado mental, nem um pensamento, mas a própria ação significada em seu contexto, ou como afirma Wittgenstein26, “o querer deve ser o próprio agir”, pois não é possível separar o pensamento da ação. O próprio querer é normativo, e não naturalístico, pois esclarece Buján Pérez27 que “a mera probabilidade de que, conforme o domínio da técnica de uma atividade, se produza violação do bem jurídico não implica na presença do compromisso com tal violação característico do dolo”. Logo, a voluntariedade indica apenas a relevância jurídico-penal da ação: o sujeito atua e este atuar tem consequências na realidade forense, mas somente na ação dolosa o sujeito decide atuar contra o bem jurídico – o que justificaria uma pena mais intensa.

Roxin28 considera imprescindível para a caracterização do dolo o “levar a sério a possibilidade de realizar o tipo”, ou seja, a “realização do plano”, citando o exemplo

24 Apud BUSATO, ibid., p. 9.25 Ibid.26 Apud BUSATO, ibid., p. 129.27 BUJÁN PÉREZ, op. cit., p. 30.28 ROXIN, C. Derecho penal: parte general. Madrid: Civitas, 1997. p. 417.

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do indivíduo que atropela outro intencionalmente com o seu carro e se dá conta de que possivelmente também irá lesar um terceiro, devendo-se lhe imputar o resultado, caso venha a ser produzido, a título de dolo, por tê-lo admitido em seu plano. A partir de um parâmetro normativo, Buján Pérez29 assevera que essa concepção de Roxin guardaria forte correlação com a de compromisso lesivo ensaiada por Vives Antón.

Deste modo, inexistirá dolo se o sujeito não tiver um mínimo fundamento racional objetivo-normativo para aceitar a probabilidade, ainda que alta, de produção do resultado típico. Por outro lado, haverá dolo eventual se o sujeito não rejeita ou tentar evitar a eventual produção do resultado, mesmo que a probabilidade não seja tão elevada.

O alicerce da pretendida normativização se finca na recepção da realidade em seu viés valorativo e não mais empírico, de modo que os conceitos subjetivos (tal qual o dolo) são considerados títulos de atribuição (e não de mera descrição), com relevante reflexo na esfera processual – que já não será mais pautada na busca de uma aberrante verdade em sentido visivelmente absoluto, mas de uma verdade forense acessível através das provas legalmente trazidas a juízo e, assim, comprometida com as garantias democráticas. Os critérios normativos possibilitam, desta forma, a formalização da resolução dos conflitos sociais, evitando-se um convencimento judicial baseado em conhecimento psicológicos inacessíveis ao magistrado.

Se a normativização parte da ideia de uma realidade valorada não há nada que, a priori, impeça que a vontade integre esta realidade. Tem-se uma dupla vinculação da pessoa ao seu mundo, que supera a mera cognição, permitindo que o sujeito selecione os objetos que farão partes do seu entorno. Assim, numa conduta dolosa, com base em conhecimento previamente adquiridos, o indivíduo seleciona determinados objetos (como a morte, a lesão corporal) ao quais atribui maior valor do que outros (salvaguarda da vida ou da integridade física de outrem), independente da razão/desejo que motiva sua conduta.

Na esfera do dolo a decorrência deste novo paradigma seria a renúncia à investigação de seus elementos, pois inviável provar que o sujeito previu a possibilidade de que o resultado iria se produzir ou que havia calculado sua produção. Para Díaz Pita30, o conhecimento referido ao risco não é uma realidade valorada, mas uma realidade psicológica reduzida que facilita o trabalho probatório só na medida em que esta atividade se reduz a um âmbito restrito, de modo que o conceito normativo de dolo advogado por Feijoo Sanchez na prática apenas escamotearia um conceito ainda assim psicológico – mesmo que reduzido em sua extensão.

29 Ibid., p. 37.30 DIAZ PITA, op. cit., p. 13.

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Corroborando a crítica, Buján Pérez31 apõe que a proposta de normativização do elemento normativo em Feijoo Sanchez não se coaduna com a concepção significativa do dolo ao desconsiderar a vontade como elemento autônomo e incorporá-lo ao conceito de conhecimento. Acrescenta ainda que Frisch32, ao refutar um vínculo volitivo específico entre o autor e o resultado, seria o moderno representante de uma teoria cognitiva subjetiva – entendendo a voluntariedade como um elemento comum da ação de todos os delitos comissivos e exigindo, além do conhecimento do perigo contido em sua ação, que o indivíduo deve partir para si da possibilidade de realização do perigo.

Todavia, Buján Pérez33 objeta que o aspecto volitivo da decisão contra o bem jurídico não restaria eliminado em Frisch, mas englobado na esfera do conhecimento tal como em Feijoo Sanchez. A consequência disso, e que a torna incompatível com as bases teóricos desenvolvidas por Vives Antón, estaria na admissível exclusão do dolo nos casos de “confiança irracional” numa boa saída (como no exemplo da “roleta russa”), ignorando-se a premissa já bastante frisada de compromisso com a vulneração do bem jurídico.

Hassemer34 também adere a uma tendência normativa e discorda de Kaufamann por ter centrado a distinção entre dolo e imprudência exclusivamente na vontade de evitação e intentar objetivar o problema partindo de definições apriorísticas de tipo ontológico. Dolo, como decisão a favor da lesão de bem jurídico e assunção pessoal do injusto típico, é uma disposição de caráter subjetivo, um fato interno não observável, de modo que o tipo objetivo não deve ser parâmetro para se decidir a questão sobre o dolo, e sim o tipo subjetivo.

Assim, o auxílio de elementos externos de caracterização do dolo – os indicadores – são essenciais para sua identificação externa baseada em critérios normativos. Estes são elencados por Hassemer35, conforme sintetizado a seguir:

a) Complexidade: a razão da penalização do dolo e a crítica a uma objetivação sistemática da teoria do mesmo descartam a possibilidade de representá-lo apenas através de um único indicador, como “evitação da ação” (Kauffman) ou “perigo desprotegido” (Herzberg). Os elementos cognitivos são necessários, pois não há vontade vazia de conteúdo, mas são insuficientes, porque o dolo está para além do mero conhecimento.

31 BUJÁN PÉREZ, op. cit., p. 46.32 Cf. FRISCH, W. Comportamiento típico e imputación del resultado. Trad. Joaquín Cuello Contreras e

José Luis Serrano González de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2004. 33 BUJÁN PÉREZ, op. cit., p. 41.34 Apud BARBERÁ, op. cit., p. 59235 HASSEMER, op. cit., p. 148.

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b) Antecedentes na doutrina e na jurisprudência: a jurisprudência tende a não se refugiar em preceitos transcendentais e se dedica mais detidamente à prova dos fatos que podem indicar a fundamentação ou a exclusão do dolo.

c) Catálogo: é demasiado amplo e não pode emanar de um mero procedimento mecânico de dedução, pois deriva da distribuição de funções que em geral se dá entre o juiz da primeira instância e o juiz de apelação.

Ainda de acordo com o memorável ministro do Bundesverfassungsgericht, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, há três níveis a serem considerados para que haja a imputação: o perigo da situação para o bem jurídico, a representação do autor desse perigo e sua decisão a favor da realização do perigo.36 Apenas o primeiro, no entanto, pode ser observável, enquanto os demais devem ser inferidos dos outros indicadores (visibilidade a partir de sua proximidade com o objeto ou sua percepção a partir de seus hábitos).

O já aludido professor da Universidad Nacional de Córdoba, Gabriel Barberá37, replica que o dolo em si não é nem uma disposição nem um fato psíquico, mas um conceito normativo derivado de um complexo de outros modelos jurídicos de igual procedência normativa. Seria injusta, todavia, a análise de Puppe de que um catálogo de indicadores não serviria de nada se antes não se deixasse claro o que os indicadores devem indicar, pois se extrai de Hassemer que tal indicação acha-se exatamente numa decisão favorável à lesão de bem jurídico.

Hruschka38 também objeta o entendimento dominante de que o dolo é um conglomerado de fatos e que o elemento volitivo e o cognitivo são partes integrantes do dolo, passando despercebido a existência de uma relação de implicação do segundo em relação ao primeiro: quem conhece e realiza o que conhece, quer o que conhece.

Assim, seria estéril a defesa de um acusado por homicídio que declarasse no processo que não queria matar a vítima, mas tinha consciência que disparava com sua arma de fogo contra essa vítima e sabia que esse disparo seria fatal. Equivocada estaria, por conseguinte, a tentativa de sopesar igualmente os dois elementos tal qual se faz na tradicional fórmula de dolo como “saber e querer a realização do tipo”. Barberá39 retruca, todavia, que não é correta a tese de Hruschka segundo a qual o conhecimento não é um fato e que, por isso, não deve ser constatado, mas imputado.

A afirmação de que a determinação processual do dolo depende da convicção do juiz, assevera Ragués i Vallès40, estabelece como critério decisivo para tal determinação

36 Ibidem, p. 597.37 BARBERÁ, op. cit., p. 598.38 Apud BARBERA, ibid., p. 586.39 Ibid., p. 592.40 RÁGUÉS I VALLÈS, R. El dolo y su prueba en el proceso penal. Barcelona: J.M. Bosch Editor, 1999. p. 352.

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um fator subjetivo e irracional. O “inequívoco sentido social” seria então o melhor critério para atribuição do conhecimento em que se fundamente o dolo.

Questiona-se, no entanto, se os critérios que a sociedade emprega para decidir quando um fato foi realizado conscientemente irão sempre coincidir com os conhecimentos que o sujeito efetivamente possuía e, por via de consequência, até que ponto se pode considerar legítima uma condenação penal em um Estado de Direito em que a hipótese de erro judicial, consubstanciada na prova de fatos que podem não ter realmente ocorrido, é uma hipótese sempre presente. Mas se os indivíduos aspiram a que o direito penal os proteja de algum modo, devem assumir o risco de que alguma vez se possa condenar, ainda que sobre a base de fatos não acontecidos.

Ao afirmar a possibilidade da extensão da normativização para além do aspecto cognitivo, Díaz Pita41 refuta mais uma vez Feijoo Sanchez, porque uma concepção normativa também exigiria repercussão processual sobre o elemento volitivo. Ademais, fundamentar o dolo e a imprudência exclusivamente no conhecimento resultaria em idêntica valoração (e punição) a casos qualitativamente desiguais, de modo que o grau de reação não deve estar voltado ao maior ou menor conhecimento por parte do indivíduo, mas ao fato de que a gravidade do dolo está assim na lesão do bem jurídico como na norma que o protege e na sociedade que o estima. É está também a posição de Hassemer42:

O perigo para os bens jurídico-penais que deriva do que comete um delito doloso deve se considerar ceteris paribus maior do que o que procede do sujeito que comete um delito imprudente; deve-se valorar a mais grave e completa intensidade lesiva do fato sem esquecer que a reinserção do delinquente doloso supõe uma “mudança normativa”, uma relação transformada do sujeito com a norma, enquanto que no caso do autor de um delito imprudente se trata apenas de prestar uma atenção mais elevada ou de uma previsão do perigo.

O componente intelectual é insuficiente para constituição do dolo (seja direto ou eventual), pois é simplesmente uma condição necessária da decisão. Isso porque apenas se pode falar de uma decisão quando aquele que a toma sabe o que faz; a vontade, por seu turno, refere-se ao mundo, ao que se quer, pois não se pode conceber uma vontade vazia de conteúdo.

O sujeito, portanto, deve não apenas “possuir” a informação sobre o perigo para o bem jurídico, como “aceitá-la”, “admiti-la”, fazê-la o fundamento de sua ação, isto é,

41 Apud BUSATO, 2014, p. 17.42 HASSEMER, op. cit., p. 133.

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“querê-la”. A decisão contra o bem jurídico não requer que o sujeito reforce sua visão de um ponto de vista emotivo, pois a razão da incriminação mais grave do dolo não tem a ver com os sentimentos que o sujeito possa ter ao realizar o fato, vez que a decisão, como assunção pessoal da lesão de uma norma protetora de bem jurídica, por si mesma já traz as condições para que se tenha caracterizo o perigo para o bem jurídico.

Tem-se, pois, que o elemento cognitivo, ao se referir à bagagem intelectual prévia do autor, deve estar sempre acompanhado de uma decisão especial do sujeito (elemento volitivo), consubstanciada na vulneração de bem juridicamente valioso para a sociedade. Ademais, relevar a vontade no conceito de dolo é cingir a dogmática da racionalidade cotidiana e da própria realidade, franqueando-se uma demasiada expansão dos casos dolosos e a redução de barreiras à imputação.

3 CRÍTICA SIGNIFICATIVA À DOUTRINA ONTOLOGICISTA DO DOLO

Os penalistas brasileiros de forma quase unânime – à exceção de autores como Juarez Cirino dos Santos43 e Cézar Bitencourt44 – reproduzem como mantra uma classificação binária de dolo (direito ou eventual) que estaria estampada no art. 18, I do Código Penal (“agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”). Observa Busato que, majoritariamente, a doutrina penal alemã trabalha uma tríplice concepção de dolo, na qual o dolo direto representa a conduta dirigida a um fim almejado, o dolo direto de segundo grau identifica os efeitos colaterais necessários da conduta do sujeito e o dolo eventual informa os efeitos colaterais possíveis, embora incertos, da conduta do agente.45

A delimitação conceitual das três formas de dolo é de grande relevância para Roxin46, pois o legislador nem sempre castiga qualquer atuação dolosa. Outrossim, o conceito de intenção, quando é utilizada na lei, abarca também o dolo direito de segundo grau, ao que o Mestre de Munique problematiza com o exemplo do recluso: se este se evadir do presídio com o uniforme cedido pelo Estado, a falta de outra roupa, haverá também furto da indumentária do estabelecimento? Segundo a opinião dominante, o furto não deve punido, inobstante a obtenção da coisa ser uma imposição meramente circunstancial, ao contrário do que se sucederia caso fosse furtada a chave da cela, que constituiria meio

43 CIRINO DOS SANTOS, J. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.44 BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2013. v. 1.45 BUSATO, 2014, p. 60.46 ROXIN, op. cit., p. 425.

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necessário para lograr a finalidade desejada. O professor alemão colaciona a seguinte hipótese para ilustrar sua asserção:

Se quem realiza um atentado sabe com segurança que a bomba que irá soltar pelos ares para sua vítima também causará a morte das pessoas ao redor, se pode qualificar de “querida” a morte destas, ainda que não a perseguida e que, portanto, o momento volitivo seja menos intenso que no caso da intenção.47

A gradação no dolo direito, todavia, se funda no conceito de desejo e não no de intenção, como explica Vives Antón:48

No Direito Penal, a existência ou inexistência do desejo fundamentaria uma diferença - que, por certo, não é geralmente admitida, entre dolo direito de primeiro grau e dolo direito de segundo grau; porém, ainda se se admita, essa é uma diferença conceitual que, no Direito Penal continental, carece de qualquer repercussão substantiva sobre a responsabilidade. É a intenção – não o desejo – o que determina a atribuição de responsabilidade prima facie.

Em relação ao dolo eventual, sua distinção do dolo direto não se situa no âmbito do elemento volitivo, e sim do cognitivo, isto é, na capacidade de fazer previsões (domínio de uma técnica). É essa linha que segue o Bundesgerichtshof (BGH), Tribunal de Justiça Federal da Alemanha, segundo o qual a produção do resultado, que constitui o elemento decisivo de diferenciação entre o dolo eventual e a imprudência consciente, não significa que ele corresponda aos desejos íntimos do sujeito, posto haver a possibilidade de dolo eventual mesmo quando o sujeito não deseja a realização do dano. Desta forma, o indivíduo, apesar de tudo, aprova tal resultado quando, em atenção ao objetivo perseguido, é dizer, desde que não possa alcançar de outra maneira seu objetivo, se resigna também a que sua ação produza o resultado em si indesejado e, portanto, o quer caso se produza.49

47 ROXIN, 1997, p. 426.48 Apud BUSATO, 2014, p. 61.49 ROXIN, 1997, p. 430.

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A teoria significativa reluz, assim, uma nova forma de interpretar a tradicional concepção de dolo, e em especial na modalidade dita eventual, pois ao invés de se perquirir acerca da intenção psicológica provocadora do resultado, abrindo margem a um subjetivismo acalentador da discricionariedade judicial, avalia-se as demonstrações empíricas que permitem a constatação de um compromisso com a produção do resultado pelo desprezo das possibilidades. É, como se denota, um proeminente contributo paradigmático para um sistema criminal menos deletério e arbitrário que tanto tem se fundado em pré-juízos irracionalmente estigmatizantes.

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REFERÊNCIAS

BARBERÁ, G. P. El dolo eventual: hacia el abandono de la idea de dolo como estado mental. Buenos Aires: Hammurabi, 2011.

BUSATO, P. (Org.). Dolo e direito penal: modernas tendências. São Paulo: Atlas, 2014.

FLETCHER, G. Conceptos básicos de derecho penal. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997.

FREITAS, R. de B. A. P. As condições da pesquisa científica em direito penal. Revista Verba Juris, v. 6, n. 6. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/vj/article/view/14871>. Acesso em: 26 mar 2014.

HASSEMER, W. Persona, mundo y responsabilidad. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1999.

RÁGUÉS I VALLÈS, R. El dolo y su prueba en el proceso penal. Barcelona: J. M. Bosch 1999.

ROXIN, C. Derecho penal: parte general. Madrid: Civitas, 1997.

WEINBERG, S. Os limites da explicação científica. Folha de São Paulo, São Paulo, Caderno Mais! p. 7-12, 24 jun. 2001. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2406200107.htm>. Acesso: 25 out. 2014.

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José Roberto Wanderley de Castro1

1 Doutorando em Direito Penal (Teoria da Antijuricidade e Retórica da Proteção Penal) pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (2007). Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2000). Atualmente é Professor da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do São Francisco- FACESF, do Centro Universitário Maurício de Nassau e da Escola de Advocacia Ruy Antunes da OAB/PE. Membro do Grupo de Pesquisa em Fundamentos e Métodos do Pragmatismo: uma abordagem interdisciplinar dos fenômenos jurídicos - UFPE; e Membro do Grupo de Pesquisa em Modernas Tendências do Sistema Criminal - FAE. Advogado militante na área de Direito Criminal.

RESUMO

O presente artigo é fruto da análise do impacto para a dogmática penal da proteção da vida. Foram escolhidos como delimitação da pesquisa os tipos penais que têm como bem jurídico a vida. Dentre estes tipos penais foram abordados os seguintes temas: eutanásia e aborto, por serem alvos de discursos muito contraditórios dentro do sistema dogmático. Como metodologia, buscou-se apresentar como o discurso da dogmática clássica constrói a justificação para a existência da incriminação do aborto e da eutanásia ou sua abolição. Depois, analisa-se o discurso atual e a ausência de argumentos científicos para justificar a permanência desses tipos penais.

Palavras-chave: Dogmática penal. Legitimidade da existência de tipos penais. Eutanásia. Aborto.

ABSTRACT

This article is the result of analysis of the impact to the criminal dogmatic of protecting life. Was chosen as delimitation of the research, the criminal acts that have as well legal life. Among these criminal acts, the following issues were addressed: euthanasia, and abortion because they are targets of more contradictory discourses within the dogmatic system. As methodology, we sought to present itself as the classic dogmatic discourse builds the justification for its existence from the criminality of abortion and euthanasia or its abolition. Then we analyze the current discourse and the lack of scientific arguments to justify the permanence of these criminal acts.

Keywords: Criminal dogmatic. Legitimacy of the existence of criminal types. Euthanasia. Abortion.

O DIREITO PENAL E A VIDA HUMANA: UM DEBATE EM TORNO DA LEGITIMAÇÃO DOS TIPOS PENAIS INCRIMINADORES QUE PROTEGEM O BEM JURÍDICO VIDA

THE CRIMINAL LAW AND HUMAN LIFE: A DEBATE AROUND THE LEGITIMATION OF CRIMINAL ACTS THAT PROTECTS THE HUMAN LIFE.

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QUESTÕES PRELIMINARES PARA SE INICIAR O DEBATE (OU INTRODUÇÃO)

Eis a questão que assombra o direito penal. Na sociedade atual, haveria a necessidade de justificação da incriminação de condutas?

Como manifestação da violência estatal, o direito penal é o ramo do Direito que mais busca uma legitimação para suas leis. Como meta das leis penais está a conduta humana e a sua limitação. Proibições e mandados são os instrumentos usados para o controle social.

Na tentativa de abordar esse problema, buscar-se-á, na evolução histórica, as teorias que legitimaram a criação de Leis durante a construção do discurso da dogmática penal.

A observação da evolução do discurso legitimador das leis penais e sua criação pode trazer novas abordagens para o debate e ajudará no entendimento da crise atual do discurso legitimador das leis penais e das Penas. A questão se agrava quando se trata da valoração dos bens jurídicos e como o legislador seleciona os bens jurídicos para realizar sua proteção.

Neste diapasão, a vida é o bem jurídico tutelado mais importante nos Códigos Penais ocidentais. Esta questão é muito mais complexa do que se imagina, já que o direito penal é chamado para proteger a vida. Os Estados modernos dispõem sobre a vida e a morte do indivíduo e utiliza o sistema penal para coibir ou incentivar a práticas de condutas.

O presente trabalho se propõe a ser uma abordagem inicial ao debate sobre a legitimação da criação e permanência da vigência de tipos penais que têm o bem jurídico vida como objeto de proteção. Para nortear o debate, será analisado a polêmica em torno dos tipos penais de aborto, de homicídio privilegiado e auxílio ao suicídio, quando estes se referem à eutanásia.

1 A LEGITIMAÇÃO DAS INCRIMINAÇÕES ENQUANTO PRODUTO DE UM PROCESSO HISTÓRICO

1.1 O PRIMEIRO MOMENTO DA LEGITIMAÇÃO PARA A INCRIMINAÇÃO DE CONDUTAS: A VONTADE DOS DEUSES

A busca de uma justificação do direito de punir é anterior ao desenvolvimento do sistema punitivo legal. No início dos tempos, a ideia de punição era associada à ideia de

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divindade. O direito de punir era concebido como uma delegação divina.2 A punição3 é um meio de coesão social. Os deuses, em sociedades iniciais, eram parte dos clãs e figuravam no dia a dia de todos4, e seu descontentamento afetava a vida de todos. Um ato contrário aos deuses era capaz de trazer o infortúnio para todos. Olhando de mais perto, a adoração de uma entidade em comum, como os deuses ou totens, é o elo entre os membros de uma comunidade, e atentar contra a crença em tais entidades causaria uma instabilidade social, o que justificaria punições e sacrifícios para restabelecer esse pacto.

A legitimação da incriminação de condutas passa pela ideia de moralidade e, como tal, da necessidade de punição para manutenção da coesão social. Não é difícil de perceber que a coesão social se solidifica ao tempo em que os agentes transgridem essas regras, quer sejam religiosas ou morais. O sagrado, ou aquilo que pertence aos deuses5, se torna algo inerente ao agir dos seres em sociedade e, como tal, não se pode tolerar sua mácula.

A religião separa aquilo tido como parte do cotidiano e afasta, tornando-o sagrado6 e proibido para os demais. A ideia de profano resulta necessariamente da antítese do sagrado, separando o mundo divino do mundo mundano. Um ato profano implica na retirada daquilo outrora tido como divino de seu universo místico, e a punição tem como meta reestabelecer esse elo, principalmente, por meio de sacrifícios.

Os sacerdotes figuram como os mediadores da vontade dos Deuses e o que seria considerado um ato de sacrilégio, tendo assim uma legitimação para proibir ou punir condutas que atentassem contra aquilo que é divino. Essa legitimidade é o poder de determinar que algumas condutas humanas se tornem passíveis de uma punição para reparar o mal cometido contra os deuses. Os sacerdotes estariam ao mesmo tempo dentro e fora da esfera mundana, o que determinaria em poder dizer a vontade dos deuses e não serem tocados pelos atos praticados em nome deles. Matar, enquanto ato proibido pelos deuses, deveria ser punido, mas matar para punir quem matou era um ato legítimo. O poder para justificar as condutas e transformá-las em condutas sagradas era o mesmo poder que legitimava a proibição das condutas.

2 ALIMENA, Bernardino. Introdução ao direito penal. Trad. Maria Fernanda de Carvalho Bottallo. São Paulo: Rideel, 2007. p.09.

3 Deve-se aqui fazer uma distinção entre punição e pena (a punição enquanto gênero do qual a pena é espécie). Será considerado neste trabalho a ideia de que a pena é oriunda de um sistema racional e proporcional da aplicação de uma norma ou costume.

4 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 171.

5 AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino José Assman. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 65.6 AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino José Assman. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 65-66.

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Conclui-se que a legitimação da proibição de condutas humanas nas sociedades iniciais era na esfera do plano das divindades e baseada na máxima prohidendum quia peccatum.

1.2 O SEGUNDO MOMENTO DA LEGITIMAÇÃO PARA A INCRIMINAÇÃO DAS CONDUTAS: A VONTADE DO SOBERANO

A evolução das sociedades após o medievo tem como resultado o alvorecer de Estados mais fortes e da centralização do poder na figura do soberano. Agamben, ao mencionar essa figura, mostra que os soberanos estão dentro e fora do Ordenamento Jurídico, já que tem poder para determinar o estado de exceção ou determinar a invalidade de um ordenamento jurídico.7 Percebe-se que o soberano tem como justificativa para exercer tal poder a vontade divina, mas não é como o sacerdote. O soberano está livre da vontade dos deuses e, em muitos casos, rompe com o poder religioso existente. Ele é pautado por fins como o “bem comum” ou a “manutenção da ordem”, ou mesmo em nome do que é moral. Observa-se que o embrião do que mais tarde será conhecido como política criminal reside em argumentos como esse. O soberano exercia (ou exerce) seu poder de tal forma que todos os seus atos eram justificados em defesa desse estado de Ordem. Ele tem o monopólio da decisão final e é o termômetro da vontade popular. No dizer de Agamben: “A autoridade demonstra que não precisa do Direito para criar o Direito”8. O soberano pode dizer o que é Direito, editar normas, incriminar condutas por meio de normas, ou mesmo utilizar-se de costumes como fonte do direito penal. O soberano inclui no ordenamento jurídico decisões que não existiam anteriormente. O Direito se torna seu instrumento na busca pela manutenção do poder.

1.3 O TERCEIRO MOMENTO DA LEGITIMAÇÃO PARA A INCRIMINAÇÃO DAS CONDUTAS: A VONTADE DO POVO

Com o advento do Iluminismo, os contratualistas (Locke, Hobbes etc.) desenvolveram teses que mostram uma relação contratual entre o cidadão e o Estado. Em 1651, Thomas Hobbes defende, em sua obra “O Leviatã”, a existência de um Estado centralizado na figura

7 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p.23.8 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p.24.

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do soberano, e que o povo deveria ceder seu direito natural para evitar o estado bélico, da luta de todos contra todos. Em 1690, John Locke e seu segundo tratado sobre o Governo Civil critica a lógica de uma legitimação do poder do soberano por meio de divindades, e concede legitimidade para o consentimento expresso dos governados como fonte da legitimação do poder do soberano. Locke ainda defende o direito de resistência do povo, caso o soberano extrapolasse seu poder. Em 1762 Jean-Jacques Rousseau publica a obra “O Contrato Social” e tem como meta a limitação do poder do Soberano por intermédio das leis. O processo de criação das leis é um processo democrático e, como tal, traria legitimidade para as leis e suas consequências. Para Rousseau, a lei toma uma participação central na mediação entre o Estado e o indivíduo.9

Os contratualistas trazem a lei como repercussão da vontade do povo e, como tal, a incriminação de condutas está atrelada à vontade do provo e não mais ao sentimento de manutenção da ordem.

Como reflexo direto deste pensamento no direito penal, a obra Dei delitti e delle pene, de Cesare Bonesana (ou marquês de Beccaria), seria considerada o início do movimento humanista do Direito Penal e a primeira escola criminológica, a chamada escola Clássica.

Em sua introdução, Beccaria defende que a função da lei é impedir a barbárie das punições aplicadas até então, e legitima a aplicação de penas racionais e proporcionais ao delito. O autor menciona que o direito de punir é fruto da união das liberdades individuais e afirma10 que a consequência dessa limitação de vontades “[...] é que só as leis podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social.”11 Define que o soberano que faz as leis não pode julgar, coibindo assim a utilização da Lei para fins pessoais. Demonstra o bom marquês que havia uma necessidade na aplicação da Pena, concedendo a esta a função de prevenção de delitos posteriores, mas nem por isso defendeu o agravamento das penas.

9 Neste ponto, esclarece o autor “Em toda verdadeira democracia, a magistratura não é uma vantagem, mas uma carga onerosa que não se pode justamente impor a um particular mais que a um outro. Apenas a lei pode impor esta carga àquele sobre o qual a sorte recair. Pois então, a condição sendo igual para todos, e a escolha não dependendo de nenhuma vontade humana, não há aplicação particular que altere a universalidade da lei” (ROUSSEAU, 1981, p. 133).

10 BECCARIA, Cesare. Dei delitti e delle pene. Disponível em: <http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_7/t157.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2014.

11 Tradução livre de “La prima conseguenza di questi principii è che le sole leggi possono decretar le pene su i delitti, e quest’autorità non può risedere che presso il legislatore, che rappresenta tutta la società unita per un contratto sociale”.

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Para Beccaria, deveria haver uma ligação entre a punição e o que foi obtido pelo agente, e “para que o castigo produza o efeito que dele se deve esperar, basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime”, demonstrando a importância da proporcionalidade das Penas e dos Delitos.

Como conclusão, percebe-se que a Pena passa a figurar como meta da aplicação das leis, na intenção de evitar e prevenir os delitos futuros. A legitimidade da incriminação de uma conduta é consequência do pensamento utilitarista do autor (e da época), em que a necessidade era a crônica da produção normativa, sempre visando evitar a prática de crimes posteriores. Percebe-se, contudo, que não há mais uma legitimação meramente voltada na vontade popular de Rousseau (vox populi, vox dei), mas da necessidade de fim para a lei e a pena.

2 A LEGITIMAÇÃO DA INCRIMINAÇÃO DAS CONDUTAS APÓS FEURBACH E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

A influência de Beccaria é notória no mundo jurídico. Em 1801 é publicado o Tratado do Direito Penal Comum em vigor na Alemanha de Feurbach, que traduz o pensamento do autor italiano e estrutura a pedra basilar da dogmática penal moderna: o Princípio da Legalidade.

O Princípio da Legalidade é fruto direto da evolução histórica da tentativa de legitimação de Leis e Penas. Inicialmente, deve-se levar em consideração a obra de Hugo Grócio, principalmente a obra do “Direito da Guerra e da Paz”, em que está presente a separação entre o direito penal e a teologia moral. Segundo, a reação à legitimação do “terror penal” pela ideia de ordem pela ordem, apenas legitimada pela vontade do soberano que poderia incriminar e apenar conforme sua vontade. Terceiro, a tentativa de dar à pena uma finalidade, mesmo que baseada na moral. Isso pode ser percebido nas ideias de Kant e Hegel, que seriam chamadas, posteriormente, de Teoria Absoluta da Pena. E por fim, a tentativa de Francesco Carrara (Programma del Corso di Diritto Crimínale) de estruturar o sistema do direito penal. Baratta afirma a importância da estrututação de uma racionalidade no campo de estudo do direito penal.12

12 Afirma, precisamente: “Hoy ya no compartimos, por cierto, la fe racionalista con que Carrara creía poder aprehender los princípios inmutables de la razón que presiden la teoría del delito, y nos deiaría perpleios quien quisiese proponer de nuevo la rígida contraposición hecho por Carrara entre la autoridade de la ley y la verdad que desciende de la naturaleza de las cosas y a la cual debe dirigirse el tratamiento teórico del derecho penal” (BARATTA, 2004, p. 30).

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Feurbach conseguiu condensar o pensamento histórico da limitação da produção de leis e das penas como consequência do arbítrio do soberano ou dos sacerdotes. Na opinião de Sebastian Solen, o Princípio da Legalidade moderno é uma derivação direita desta fórmula proposta por Feurbach, e que ainda está inacabada.13

O Princípio da Legalidade torna possível a construção de uma Teoria do Delito e, principalmente, da exclusão do costume como fonte do direito penal. Seu estudo cria a lógica de como serão construídas as normas penais, seguindo sempre a máxima nullum crimen, nulla poena sine lege. Tal pensamento não limita apenas a aplicação das leis penais, mas obriga o legislador a ponderar a construção das Leis Penais para que seja possível sua aplicação. Molda as leis penais criando um sistema que impede a permanência de uma norma incompatível com esse princípio.

2.1 O POSITIVISMO ITALIANO E A TESE DA DEFESA SOCIAL COMO FONTE LEGITIMADORA DA INCRIMINAÇÃO DE CONDUTAS

Outro fator importante para entender a legitimação da construção de leis incriminadoras é abordar as teses desenvolvidas pelo Positivismo Italiano de Lombroso e Ferri.

Lançando mão da tese de perigosidade social, Ferri constrói um sistema de direito penal com uma função ligada à Política Criminal. Para Ferri, o fato de o agente viver em sociedade deslocaria a responsabilidade da esfera puramente normativa, devendo-se observar a perigosidade (traduzida erroneamente para periculosidade, como pode ser observado na tese de Doutoramento “A perigosidade Criminal” de Aníbal). Todavia, Ferri demonstra a importância da distinção entre Periculosidade Social e Periculosidade Criminal14, mas deixa claro que todo criminoso, por ter cometido um crime, tem Periculosidade Social. A avaliação deixa de ser do ponto de vista normativo, como defendia Feurbach, e passa a ser pessoal, levando-se em consideração os autos do crime para que se possa deduzir sua periculosidade.

Ferri atribui à periculosidade uma função jurídica15, passando assim a integrar o sistema penal. Uma vez integrando esse sistema, esse princípio poderia não só nortear a interpretação das Leis Penais existentes, mas a própria produção das futuras leis penais,

13 SOLER, Sebastian. Derecho penal argentino. Buenos Aires: Tipográfica Editora Argentina, 1992. p. 134-141.14 FERRI, Eurico. Delinquente e responsabilidade penal. Trad. Fernanda Lobo. São Paulo: Rideel, 2006. p. 114.15 FERRI, Eurico. Delinquente e responsabilidade penal. Trad. Fernanda Lobo. São Paulo: Rideel, 2006. p.117.

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legitimando-as.16 Fica evidente essa máxima quando é defendido que a periculosidade traz consigo a temibilidade do sujeito e readaptabilidade a vida social, já que tal argumento legitima a criação de leis penais repressivas e de penas que relativizam a cominação legal. O agente, em nome do discurso de segurança social, deveria ficar preso até o término de sua periculosidade, possibilitando penas perpétuas.

Alessandro Baratta apresenta as seguintes características para a tese da defesa social: o Princípio da Legitimidade, em que o Estado seria a entidade legítima para incriminar condutas e reprimir a criminalidade; o Princípio do Bem e do Mal, em que o delito é mostrado como um dano moral; o Princípio da Culpabilidade, que mostra que o crime é uma reprovação às leis e valores de uma sociedade; o Princípio da Prevenção, em que a pena adota a função de prevenção ao delito, desmotivando os comportamentos delitivos; o Princípio da Igualdade, que defende que a punição deve recair para todos; e o Princípio do Interesse Social, em que os interesses sociais devem ser defendidos pelo direito penal.17

A legitimação para incriminar condutas passa a ser uma construção da união desses princípios, onde o Estado estaria previamente legitimado a combater a periculosidade de agentes criminosos e que causam instabilidade social. A proximidade do direito penal com a política criminal é evidente.

Posteriormente, Franz Von Liszt, em seu Tratado de Direito Penal Alemão, apresenta a pena como “arma da ordem jurídica contra a delinquência”, mas assevera que isso só é possível com a utilização do que ele chama da ciência do crime. Essa forma de pensar cientificamente o delito é o ponto de separação entre o Positivismo Italiano e a construção dogmática da Teoria do Delito, criada no século XX na Alemanha.

16 Defende Ferri que “A periculosidade do criminoso constitui, portanto, o critério (subjetivo) fundamental que vai substituindo o critério clássico (objetivo) da entidade do crime” (2006, p.119).

17 BARATTA, Alessandro. Criminología crítica y crítica del derecho penal: introducción a la sociología jurídico penal. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2004. p. 36-37.

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2.2 A LEGITIMIDADE DE INCRIMINAR NO DIREITO PENAL ATUAL: O DIREITO PENAL ENTRE A POLÍTICA CRIMINAL MIDIÁTICA E A CONVALESCENTE DOGMÁTICA PENAL

Apesar da popularidade das teorias abolicionistas, Hassemer18 defende que as penas sempre existirão no rastro do pensamento Durkhainiano (2003, p. 7-9). A sociedade estipula sanções para comportamentos desviantes. Estando o Direito dentro das ferramentas de controle social, alguns comportamentos que ultrapassam a espera da tolerância serão incriminados e punidos.

Para Hassemer19, a legitimidade para incriminação de condutas surge do processo social, da experiência da vida cotidiana, de forma que “La flexibilidad de las normas sociales, la proporcionalidad de las normas sociales y la claridad en el proceso de aplicación del control social son los parametros que permiten establecer normas conforme a las pautas de un Estado de Derecho”.20

Ferrajoli mostra que para entender a legitimação da incriminação, ou quando e como proibir, é necessário buscar a resposta fora do contexto da lei.21 Contudo, assevera que a separação entre o Direito e a Moral permitiria a existência de leis que, apesar de serem legais, seriam consideradas imorais. Assim, o sistema criado para justificar o direito penal, bem como a aplicação de penas que ferem os direitos fundamentais, é a fonte para a criação de leis penais. A dogmática penal Garantista e a política criminal científica seriam a fonte da produção legal para o direito penal. A proteção do cidadão é colocada ao lado da proteção de direitos ou valores tutelados pelo sistema.

18 HASSEMER, Winfried. Por qué no debe suprimirse el derecho penal. Mexico: Instituto Nacional de Ciencias Penales, 2003. p. 7-9.

19 HASSEMER, Winfried. Por qué no debe suprimirse el derecho penal. Mexico: Instituto Nacional de Ciencias Penales, 2003. p. 16.

20 A determinação de penas passa por um processo cíclico, e Hassemer defende que “Las penas, expresaba a finales del siglo antepasado el reconocido autor Emile Durkheim, tuvieron que ser creadas: hay determinadas infracciones a normas, comportamientos socialmente desviados, indicaba él, y son estas infracciones a las normas contra las que no sólo tenemos que luchar, sino también, en un sentido bastante complejo, tenemos que recibir con agrado, pues brindan a nuestra sociedad opciones de vida; mantienen, por así decirlo, la proporcionalidad en el baile, pero sobre todo nos brindan la posibilidad de reafirmar continuamente nuestras normas, crear y cuidar la conscience collective, es decir, nuestra conciencia general y común.” (2003, p.18).

21 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 421.

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O primeiro problema está na crise que enfrenta a dogmática penal e sua legitimação. Zaffaroni22 apresenta a crise da legitimação da pena e do discurso legitimador da dogmática penal.23 Já Sebastian Solen mostra que o Princípio da Legalidade, por exemplo, foi e é relativizado a todo o tempo.24

Se o pilar da dogmática penal é o Princípio da Legalidade, como pode sobreviver os institutos penais a sua constante negação25? Zaffaroni afirma que o discurso da dogmática penal deve ter dois pontos basilares para que seja considerado racional: a) coerência do discurso e b) verdadeiro no que se refere à operacionalidade social.26

Desse modo, a legitimação das punições estaria dentro da própria ideia da legalidade, como um sistema autômato e perfeito, no rastro de John Austin ou Hans Kelsen. Mas tal argumento de perfeição e infalibilidade já foi refutado pela realidade.

Nas sociedades atuais, a demanda social é gigantesca e a pós-modernidade trouxe efeitos nocivos aos sistemas jurídicos. A incapacidade de manutenção da ordem nas cidades com grande número de habitantes leva à constatação de que o Estado não tem como combater a criminalidade. A tese de uma coação psicológica da pena (Teoria da Prevenção Geral Negativa) não se mostra mais eficiente para todos os casos.

Por outro lado, o discurso punitivista é alimentado pela mídia sensacionalista em uma exposição midiática, trazendo casos ao conhecimento da população que nem sempre (ou quase nunca) corresponde à realidade social.

Nessa panaceia de discursos, a legitimação das novas normas incriminadoras é variável. A contingência social fragmenta o discurso racional da legitimação das futuras

22 Zaffaroni mostra o despreparo da Dogmática Penal e seu distanciamento da realidade e afirma que “En la criminología de nuestros días es corriente la descripción de la operatividad real de los sistemas penales em términos que nada tienen que ver con la forma en que los discursos jurídico-penales presuponen que operan, es decir, que la programación normativa se basa sobre una ‘realidad’ que no existe y el conjunto de agencias que debiera llevnr a cabo esa programación opera en forma completamente diferente”(1998, p.16).

23 ZAFFARONI, Eugénio Raúl. En busca de las penas perdidas: deslegitimacion y dogmatica juridico-penal. Buenos Aires: EDIAR, 1998. p. 16.

24 SOLER, Sebastian. Derecho penal argentino. Buenos Aires: Tipográfica Editora Argentina, 1992. p. 157.25 Sebastian Solen mostra que “Ya se han visto las formas directas o encubiertas que a través de los tiempos han

sido utilizadas para derogar o desvirtuar al principio de legalidad. Pues bien, idéntica finalidad derogatoria conlleva la tesis sentada por la Corte Suprema de Justicia de la Nación en la causa ‘Valenzuela, Juan’ del 24 de septiembre de 1947 (Fallos, t. 208, p. 562) cuando admitió la validez de los decretos leyes en materia penal, pues ellos eran ley en sentido material y debían ser aceptados en tanto fueran anteriores a la comisión del delito” (1992, p. 153).

26 ZAFFARONI, Eugénio Raúl. En busca de las penas perdidas: deslegitimacion y dogmatica juridico-penal. Buenos Aires: EDIAR, 1998. p. 20.

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leis incriminadoras. O discurso meramente político, desvirtuado e populista ganha força e espaço nas sociedades modernas, principalmente em sociedades com altos índices de violência.

A dogmática penal atual tem como método a racionalidade. Por meio de seu(s) discurso(s) histórico(s), foi criada uma série de pontos basilares para a limitação da produção normativa ou da aplicação das normas existentes.

Para Ferrajoli, o modelo clássico de pilares da dogmática penal tem como pressupostos: a) a legalidade; b) a materialidade e a lesividade dos delitos; c) a responsabilidade pessoal; d) a oralidade e a garantia do princípio do contraditório; e e) a presunção de inocência.27

Segundo o autor, o Princípio da Legalidade se apesenta como um sistema racional para legitimar as normas postas, o que, muitas vezes, quando é utilizado de forma isolada, justifica excessos do Estado.28

Bacigalupo mostra que o Princípio da Legalidade está baseado na ideia de divisão dos poderes, o que vincularia como ente legítimo apenas o legislativo para a produção e a revogação de normas penais.29

Ferrajoli profere uma crítica ao modelo clássico da dogmática penal, já que esse é totalmente baseado na esfera do racional, não levando em consideração aportes empíricos, e afirma que

El sentido y el alcance garantista del convencionalismo penal reside precisamente en esta concepción al mismo tiempo nominalista y empirista de la desviación punible, que remite a las únicas acciones taxativamente denotadas por la ley excluyendo de ella cualquier configuración ontológica o, en todo caso, extra-legal.30

No rastro desse entendimento, não há dúvidas de que o Princípio da Legalidade, de forma isolada, não consegue servir de parâmetro para a construção ou o abolitio criminis de leis penais.

Por isso, o discurso da dogmática penal evoluiu para incorporar novos pilares para entender o sistema penal.

Como segundo ponto dos pilares do discurso da dogmática, o estudo do bem jurídico é o segundo alicerce em que se estrutura a racionalidade desse discurso. Aníbal Bruno aponta

27 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 33.28 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 34.29 BACIGALUPO, Enrique. Pincipios contitucionales de derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 1999. p. 47. 30 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 35.

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como importante o fato de que: “a ideia de que a ofensa ou ameaça a um bem jurídico é o caráter substancial do fato punível tornou-se geral na doutrina”.31

Hassemer mostra que a lei penal forma um conjunto, bem como o caso concreto, e a decisão passa pela união entre esses dois conjuntos.32 Neste ponto, a observação e a valoração dos bens jurídicos é fundamental para a permanência ou retirada desse conjunto de “o que seria lei para o direito penal.”

A lei penal possui três tempos distintos em consonância com a ideia de bem jurídico:

a) O tempo de seu nascimento: quando a sociedade clama pela incriminação de uma conduta por razões emocionais ou racionais e essa vontade é colocada em embate com as teses da dogmática jurídica e a possibilidade de colocação desse valor no sistema penal, levando em consideração princípios como o da Legalidade, da Ofensividade, da Intervenção Mínima etc., e o bem jurídico eleito a ser tutelado e sua necessidade (onde serão observadas as funções da Pena);

b) O tempo de sua vida: onde será observado o momento após a síntese oriunda do discurso sociopolítico e do discurso dogmático e a lei já aprovada pelo parlamento passa a ser incorporada no sistema Legal do Direito Penal33 e, como tal, será verificada a validade dessa lei penal por meio da Valoração do Bem Jurídico tutelado e de sua aderência aos Princípios do Direito Penal, da Constituição e dos Direito Humanos;

c) O tempo da morte da Lei Penal: quando a Lei Penal é submetida ao processo de deslegitimarão de sua existência, que leva em consideração a vontade político--social do legislador e da sociedade, o discurso dogmático e a necessidade de aplicação de uma pena para proteger o bem jurídico por meio de uma Lei Penal.

É evidente a importância do discurso dogmático como parâmetro racional do que deve ser incriminado ou o que não deve.

31 BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. v. 1: Introdução, norma penal, fato punível. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 176.

32 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Trad. Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: S. A. F., 2005. p. 25.

33 Neste ponto, salutar à definição de Zaffaroni sobre sistema penal, afirma-se: “Chamamos de ‘sistema Penal’ ao controle punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para essa atuação” (2011, p. 69).

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A complexidade dessa dinâmica aumenta em proporções geométricas quando a polêmica da vida é adicionada a esta equação. Não há como negar que a vida, e principalmente a morte, é um tabu social e, como tal, possui barreiras sociais para seu debate e mudanças em termos legislativos.

A vida é vista de forma diferente no direito penal, e tem até justificação normativa para os que agem violando esse bem, como no caso da legítima defesa.

A polêmica reside nas questões nebulosas, como a eutanásia e o aborto. Em tais condutas a valoração se torna diferenciada, sendo fruto da influência da questão religiosa, principalmente das religiões cristãs.

Nesta questão nebulosa o discurso da dogmática penal é colocado de lado e a emoção aflora, interferindo no debate e criando outra legitimação da aplicação de punições alheias ao discurso posto.

3 A POLÊMICA DO SUICÍDIO ASSISTIDO DO DOENTE TERMINAL, DO HOMICÍDIO PRIVILEGIADO DO DOENTE TERMINAL E O ABORTO: QUEM DEVE VIVER E QUEM PODE MORRER PARA O DIREITO PENAL?

No discurso dogmático clássico, como já apresentado, a ponderação de bens jurídicos se tornou um dos métodos de legitimação da incriminação de condutas. Nesta ponderação, o direito à vida tomou posto máximo dentro de um sistema penal. De certo, pode-se afirmar que o direito à vida é o vencedor da ponderação de bens jurídicos no discurso penal.

O estudo do auxílio ao suicídio e à eutanásia deve ser feito por meio do estudo dos fatores de sua criação e da necessidade de permanência da sua incriminação.

A ponderação do direito à vida e morte pertence ao Estado. Somente este pode decidir quando haverá o nascimento ou quando haverá a morte.

No parâmetro desse bem jurídico vida, tutelado desde a aurora das sociedades, estaria o conceito de pessoa. Wolfgang Naucke defende que a parte especial dos códigos penais modernos se divide em três partes: I) fatos puníveis contra as pessoas; II) fatos puníveis contra a propriedade; e III) fatos puníveis contra o Estado.34

A primeira esfera de fatos puníveis é baseada no conceito de pessoa e tem como meta defender os direitos de primeira geração (vida, liberdade, integridade física), com exceção da propriedade, que é tratada de forma apartada dos direitos oriundos da

34 NAUCKE, Walfgang. Introdução à parte especial do direito penal. 5 ed. Trad. e notas de Augusto Silva Dias. Lisboa: A.A.F.D.L., 1989. p. 22-23. Extracto de Strafrecht- aine Einführung

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personalidade. Vigora nesta categoria os chamados bens jurídicos individuais35 e, como tal, o bem jurídico repousa na teoria da dogmática penal como a base para o raciocínio dos tipos penais e sua interpretação. O direito penal, para melhor proteção, separa os direitos relativos à personalidade e tenta protegê-los em tipos penais separados por temas, que são previamente valorados pelo legislador, com a intenção de garantir o tão falado princípio da proporcionalidade.

Contudo, a falta de sistemática dessa forma de proteção não consegue resolver a confusão de tipos penais com elementos subjetivos diversos, como o exemplo do estupro com resultado morte (crime preterdoloso previsto no Brasil no art. 213, parágrafo segundo), que tem o resultado morte, mas tem como bem jurídico tutelado, primordialmente, a dignidade sexual.

As tradições social e jurídica colocam no centro da proteção dos crimes contra a vida o homicídio. Para Hungria, o homicídio

[...] tem a primazia entre os crimes mais graves, pois é o atentado contra a fonte mesma da ordem e segurança geral, sabendo-se que todos os bens públicos e privados, todas as instituições se fundam à existência dos indivíduos que compõem o agregado social36.

Esse argumento social serviu como base para a incriminação do auxílio, instigação e induzimento ao suicídio no ocidente. No auxílio, instigação e induzimento ao suicídio, a vida é maculada de forma indireta, já que a vítima será seu próprio carrasco.

Dentro da Teoria do Delito, o princípio da proporcionalidade tem como parâmetro o bem jurídico tutelado, bem como a reprovação da conduta in abstrato. Por esta razão, a eutanásia, enquanto uma morte provocada por terceiro, mesmo por meio da justificativa de evitar a continuidade de uma situação não reversível e que provoca situação contrária à dignidade da pessoa humana, ainda assim encontra a legitimação de sua incriminação na sociedade e uma função na aplicação de uma pena: a garantia do monopólio estatal sobre o domínio da vida.

O discurso dogmático clássico se propunha a ser um discurso científico, mas fica evidente seu caráter político. A valoração do plano normativo depende dos valores sociopolíticos do aplicador. Desse modo, a incriminação primária se torna política e depende da eleição de bens jurídicos que devem ser tutelados.

35 NAUCKE, Walfgang. Introdução à parte especial do direito penal. 5 ed. Trad. e notas de Augusto Silva Dias. Lisboa: A.A.F.D.L., 1989. p. 23. Extracto de Strafrecht- aine Einführung.

36 HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1979. v. 5. p. 25.

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De outro modo não poderia ser o processo de descriminalização. O legislador, como entidade política, elege quais bens jurídicos não devem mais obter a proteção do sistema penal. Esse processo é ideológico e busca reafirmar valores considerados essenciais para a vida coletiva, ou para a casta legislante.

O ponto de partida para o debate sobre a legitimidade da tipificação do aborto como conduta ilícita também está em torno da definição do conceito de pessoa. O Direito, principalmente o brasileiro, ainda encontra dificuldade em estabelecer a situação jurídica do feto.

Von Liszt tenta separar o feto da pessoa ao diferenciar o ato de homicídio do aborto, e menciona que

O homicídio tem por objeto o homem, isto é, o ser vivo nascido da mulher. Nascer quer

dizer ter existência própria fora do seio materno. É está a circunstância característica

que distingue o homicídio do principal caso do aborto. A existência independente não

data somente do momento em que se opera completa separação entre a criança e a

mãe, tampouco remonta ao começo dos movimentos de expulsão (dores do parto),

mas começa com a cessação da respiração placentária do feto e com a possibilidade

da respiração pelos pulmões (*) (a). Todo ser vivo nascido da mulher é homem, ainda o

chamado monstro (b) (o ser vivo de formação irregular), quer a continuação da vida seja

impossível (monstrum no sentido estricto), quer não (os gêmeos siameses). A viabilidade

não é condição necessária; um recém-nascido inviável pode ser objeto de homicídio,

como o pode ser um velho in extremis37 (LISZT, 1899, p. 7).

Na legislação brasileira, o feto é tema de uma polêmica doutrinária. É tratado pelo Direito Civil com nascituro, mas não como pessoa. Por opção do legislador, o nascituro é apenas um sujeito de Direito. Não obstante nessa afirmação pode-se encontrar divergência na doutrina brasileira, com afirma Lôbo38:

a) O nascituro seria apenas um sujeito de direitos, não sendo pessoa (no rastro do nosso Código Civil brasileiro);

b) O nascituro seria pessoa, já que a ideia de pessoa se confunde com a ideia de sujeito de direito.

O fato é que a legislação brasileira aceitou no sistema do direito civil a teoria que preceitua que o nascituro é apenas um sujeito de direitos, não sendo considerado pessoa. A

37 LIST, Franz von. Tratado de direito penal alemão. Trad. José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. BRIGUIET, 1899b. v. 1. p. 07.

38 LÔBO, Paulo. Direito civil: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 101-102.

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questão tem relevância quando o tipo penal de aborto, previsto no código penal brasileiro, tem como proteção o bem jurídico vida, mas não vida de uma pessoa, mas uma expectativa de vida.

O bem jurídico serve ao discurso dogmático devido às funções que ocupa dentro do sistema, já que:

a) Limita o poder de punir, já que baseia a pena com base na valoração do bem jurídico;

b) Serve como chave interpretativa das normas penais, apresentando como limite a ofensividade;

c) Individualiza a pena, já que serve como critério para aferir reprovabilidade do resultado;

d) Ajuda a fundamentar a classificação dos tipos penais, influindo na construção de elemento da Dogmática Penal.

Sendo assim, o tipo penal de aborto deveria ser avaliado por este critério.

A base moral para valorar a conduta do aborto perpassa por uma questão histórica e social: o controle de natalidade. No início do Império Romano, por exemplo, não havia a proibição do abortamento dentro da legislação romana do início do império, pois considerava-se que o feto era parte do corpo da mãe e, como tal, estava ao crivo da vontade da mulher. Apenas com os estoicos romanos é que a proteção ao feto passa a integrar a esfera legal39 (LISZT, 1899, p. 47-48).

Essa proteção toma maior vulto no medievo, onde a mortalidade era gigantesca, o que justificou a construção de uma justificativa moral para incriminar o aborto. Neste ponto, levava-se em consideração a questão da anima racionalis, isto é, de seis até 10 semanas depois da concepção. Anterior a isso, o ato do abortamento estaria dentro de uma esfera de direitos privados, pois havia o direito de paternidade, sendo punido pelo arbítrio do pretor.

Na legislação mundial, uma questão relevante é o bem jurídico tutelado. Pessina40 mencionava que os delitos deveriam ser divididos em delitos contra o Direito individual e crimes contra o Direito social, e esse pensamento permeia a questão. O bem jurídico

39 LIST, Franz von. Tratado de direito penal alemão. Trad. José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. BRIGUIET & C. Editores, 1899a, v. 1. p. 47.

40 Pessina (apud HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1979. v. 5. p. 9).

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tutelado pode ser o feto em si ou mesmo a saúde pública. A mudança radical de análise do bem jurídico pode ter efeitos mais amplos do que se supunha, já que eclode na pena in abstrato ou na pena concreta (pena base).

Questão relevante é como o aborto pode ser realizado. Se o consentimento

da gestante está presente, o legislador brasileiro achou por bem não apresentar uma

pena grave. Todavia, o aborto sem o consentimento da gestante tem uma pena bem

mais elevada, já que leva em consideração um ato de violência contra a liberdade da

mãe. Todavia o legislador brasileiro não levou em consideração o dissenso do genitor,

como fez o legislador romano.

A questão da legitimidade da incriminação ou da abolição do tipo penal de

aborto é polêmica. Os que são favoráveis à incriminação argumentam que o ato de

abortar sempre será um sofrimento físico à gestante, e não se justifica tal sofrimento.

Outro argumento favorável pela permanência do tipo penal é que a abolição iria

permitir o uso indiscriminado do aborto como um método de planejamento familiar.

por fim, o tipo penal de aborto serviria para impedir que o Estado use a prática como

forma de controle de natalidade.

Os que são contrários à existência do Tipo Penal de Aborto justificam que as

cifras de abortos clandestinos, ao menos estimadas, são absurdas e que a maioria

dos abortos são praticados em clínicas clandestinas. Os procedimentos das clínicas

clandestinas são inseguros e colocam em risco a vida da gestante41. Argumenta-se

também que das pessoas que procuram aborto ilegal, a maioria não tem condições

econômicas de tratar as consequências físicas do abortamento.

Os que pleiteiam a abolição de tipos penais que protegem o bem jurídico

vida, principalmente o aborto, não são capazes de cumprir sua função de prevenção

geral negativa (nem mesmo de prevenção geral positiva!), gerando a ridicularizarão

do sistema punitivo estatal.

41 Cita-se o artigo do Médico Drauzio Varella que descreve que “A septicemia resultante da presença de restos infectados na cavidade uterina é causa de morte frequente entre as mulheres brasileiras em idade fértil. Para ter ideia, embora os números sejam difíceis de estimar, se contarmos apenas os casos de adolescentes atendidas pelo SUS para tratamento das complicações de abortamentos no período de 1993 a 1998, o número ultrapassou 50 mil. Entre elas, 3.000 meninas de dez a quatorze anos.” (2014).

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O uso incorreto da interpretação de normas de permissão, como a do aborto

autorizado (art. 128 CP), não concretiza a legitimação da conduta ou mesmo possibilita

que causas supra legais sejam aplicadas pelo judiciário. Mas o maior argumento é

que a questão da legitimação migrou para a esfera dos direitos coletivos, levando a

uma ponderação entre o direito individual (do feto ou da genitora) para uma questão

pública, já que o efeito do aborto clandestino é visto no sistema de saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não há uma conclusão fácil. O direito penal possui uma dogmática cujo discurso foi construído no século XIX e que perde sua capacidade de justificar a aplicação de punições. A real função da dogmática penal é avaliar quando os tipos penais devem existir e quando devem ser abolidos. O discurso dessa dogmática é uma construção histórica e preceitua que a racionalidade seja a ferramenta para buscar quais condutas humanas devem ser incriminadas.

A incriminação deveria ser fruto de um processo racional; os preceitos da dogmática penal limitariam o conteúdo das leis penais e, se assim não fosse, ao menos a sua aplicação.

No que se refere ao bem jurídico vida, o discurso construído no passado perde força frente ao aumento da complexidade das sociedades. A consequência é a relativização desmedida do discurso dogmático e a busca pela justificação utilitarista dos Estados, que tem como base apenas a contingência política, alienada totalmente às teorias da dogmática penal.

Tal crise é agravada pela descientificação da política criminal, que passa a atender os anseios de panorama construído por informações midiáticas e que não corresponde à realidade.

O processo de criminalização primária e o processo de descriminalização passam pelos procedimentos, já que ambos estão no nascimento e na morte da norma. O processo de criminalização e descriminalização é (ou deve ser) a síntese do confronto entre o discurso dogmático e os valores sociopolíticos da sociedade.

A eutanásia hoje é justificada por um bem jurídico novo no discurso da dogmática penal: a dignidade da pessoa humana. Argumenta-se que ninguém pode ser obrigado a sofrer, física ou psicologicamente, e assim o término da vida seria justificado. É quase uma forma de estado de necessidade invertido, em que o perigo atual não seria externo, mas

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interno (sofrimento). Se for levado em consideração o discurso da dogmática penal e a análise dos bens jurídicos envolvidos, não mais se justificaria a incriminação do suicídio assistido em caso de doente terminal ou mesmo de seu homicídio.

A política criminal influencia as condutas a serem adotadas pela tutela penal ou mesmo as que deixam essa tutela. Mas o que fazer quando os dados científicos não são precisos? Não se sabe ao certo os números reais de abortos clandestinos, o que leva os estudos a uma estimativa que corre o risco de não corresponder à realidade. A ONU fala em um número que gira em torno de 200 mil mortes decorrentes de aborto clandestino, mas tal número é contestado pelo Estado brasileiro.42 Essa falta de dados impede um debate de cunho científico, deixando o discurso recair na base moral da justificativa da incriminação.

A ausência de índices reais afasta do debate as questões referentes aos resultados dos abortamentos clandestinos.

Se for levada em consideração a vida da gestante, o perigo de um abortamento clandestino e o direito à vida do feto (enquanto uma expectativa de vida), os bens jurídicos passam por um sistema de valoração para averiguar qual o sacrifício de bem é mais razoável (nos moldes do estado de necessidade justificante).

No caso do tipo penal de autoaborto e de aborto provocado com o consentimento da gestante, a conclusão seria que é possível sim descriminalizar o aborto com o consentimento da gestante, mas não é possível o abolitio criminis do aborto sem o consentimento da gestante, pelos bens jurídicos tutelados, que seja de forma direta ou indireta.

Dessa forma, a reformulação da dogmática penal para enfrentar esse dilema resultará em uma nova legitimação para a incriminação de condutas. Oxalá tal mudança seja no sentido de trazer um equilíbrio entre as fontes do direito penal e a realidade social.

42 LINS, Letícia. Ministro da Saúde contesta dados da ONU sobre abortos no Brasil. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/ministro-da-saude-contesta-dados-da-onu-sobre-abortos-no-brasil-4019839#ixzz365VorlYK>. Acesso em: 14 maio 2014.

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RESENHA DOS CLÁSSICOS

A CONCEPÇÃO NORMATIVA DA CULPABILIDADE

(JAMES GOLDSCHMIDT)

Michelangelo Corsetti1

1 Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUC RS. Professor de Direito Penal e Processo Penal da Universidade de Caxias do Sul. Advogado Criminalista.

A obra de James Goldschmidt, “A Concepção Normativa da Culpabilidade”, publicada em 1930, dá continuidade à evolução da concepção da culpabilidade no direito penal, demonstrando que os atuais conceitos do direito penal foram consequências de longos debates doutrinários na tentativa de humanizar o Direito.

A obra inicia retomando os conceitos e concepções que Reinhard Frank enfrentou na obra “Sobre a estrutura do conceito de culpabilidade”, publicada em 1907. Goldschmidt destaca que toma a obra de Frank como ponto de partida para tentar (sob sua ótica) reduzir a “incorreção” da motivação no caso de “normalidade”, a infração de uma “norma de dever” e procura atribuir-lhe, de lege ferenda, a “motivação anormal”, junto com o estado de necessidade e o excesso na legítima defesa, o valor de uma causa de escusa geral. A incansável tendência de Frank acerca da verdade tem colocado em destaque constantemente os problemas que pretende solucionar a doutrina da “concepção normativa da culpabilidade”. Assim, Goldschmidt inicia levantando as seguintes questões:

i) O que quer dizer “característica normativa da culpabilidade”? É reprovabilidade, contrariedade ao dever ou exigibilidade e encontra seu fundamento na totalidade do pressuposto do fato psíquico ou somente no terceiro elemento da culpabilidade descoberto por Frank, isto é, “na motivação normal” ou no “domínio do fato”? ii) Este terceiro elemento da culpabilidade é característica positiva ou é a “motivação anormal uma característica negativa da culpabilidade, ou seja, uma causa de escusa. E as causas de

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escusa estão tipificadas, pelo menos em relação ao dolo, em determinadas disposições da lei? iii) A culpabilidade é passível de ser graduada? E é, por um lado, o fim do elemento da culpabilidade e, por outro, ainda que culpabilidade não seja um vício de caráter, ou seja, não obstante, um fator determinante para a graduação da culpabilidade?

Para Goldschmidt, constitui um erro admitir que a “motivação normal” ou ainda que as “circunstâncias concomitantes” sejam consideradas elementos da culpabilidade. Segundo ele, deixando-se de lado as circunstâncias concomitantes, que nem sequer pertencem ao tipo subjetivo, poder-se-ia afirmar que a “motivação normal” é um elemento psíquico da culpabilidade. Para o autor, a característica “normativa” da culpabilidade deve ser sempre uma vinculação normativa do fato psíquico. O autor destaca sua tentativa de explicar que ao lado de cada norma de direito, determinada a conduta exterior, existe uma norma de dever que exige uma correspondente conduta interior. A norma de dever que determina ao particular que se motive pela representação de valor jurídico não aspira a uma “pureza interior” de seus sentimentos, mas, sim, está dirigida à voluntariedade de atuação. Por isso ela reclama que o motivo do dever seja eficaz, a não ser que o particular já esteja decido, por outras razões, a ter uma conduta conforme o direito.

A segunda objeção formulada contra a norma de dever diz que esta é supérflua se não existe uma “legalidade contrária ao dever”. Ainda que não exista uma legalidade contrária ao dever, há, sem embargo, “contrariedade ao dever com ilegalidade somente tentada”, no caso da “tentativa absolutamente inidônea” na falta de tipo, e “contrariedade ao dever com ilegalidade somente possível”, no caso de uma conduta negligente inofensiva ou impune. Segundo o autor, mesmo nos casos em que a contrariedade ao dever sem antijuridicidade fosse juridicamente irrelevante e somente constituísse uma modalidade da antijuridicidade, poder-se-ia dizer que com isso estaria afetada a independência da norma de dever?

De acordo com Godlschmidt, pode-se declarar superada a opinião daqueles autores que consideram como contrariedade ao dever a consciência ou a possibilidade da consciência da antijuridicidade, ou mesmo da contrariedade ética de dever. Isso porque tais autores, sem reconhecer nenhuma característica normativa, admitem somente uma característica psíquica da culpabilidade e, dessa forma, não deixam lugar em seu sistema para as causas de exculpação.

De acordo com Goldschmidt, as normas de dever no sentido mais amplo, ou seja, de acordo com as restrições nelas previamente contidas, dão um limite extremo às exigências postas para a motivação, ou seja, à exigibilidade. Fazendo referência a Frank, Goldschmidt lembra que “culpabilidade como modalidade de um fato antijurídico é a atribuição de tal fato a uma motivação reprovável (censurável)”. Por conseguinte, a exigibilidade é um dever, o que, sem embargo, pressupõe sempre um poder. Existe esse poder somente

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enquanto existe “domínio sobre o fato”, ou seja, “imputabilidade”, “significado conhecido ou conhecível” e “motivação normal”.

Análogas considerações valem para a reprovabilidade. Ela é um “querer que não deve ser”. Em sentido estrito, até o “significado conhecido ou conhecível” da conduta antijurídica é somente pressuposto e não elemento da motivação reprovável, pois esta consiste em reprovável não motivação da vontade pela representação do dever. Mas assim como o resultado é inseparável da atuação da vontade da causa antijurídica, a representação do resultado é inseparável da vontade motivada por ela de maneira reprovável.

Nessa linha de pensamento, Goldschmidt destaca que não pode seguir Frank no que diz respeito ao fato de que a imputabilidade seria não somente um pressuposto, mas também elemento da culpabilidade. Para o autor, isso é apenas uma questão terminológica, pois considera até mesmo o significado conhecido ou conhecível como mero pressuposto da culpabilidade.

Nesse ponto, conclui Goldschmidt que a “liberdade”, no sentido que Frank chamou de “motivação normal”, não constitui para a “exigibilidade”, assim como para a reprovabilidade, nem o único pressuposto psíquico, nem mais que um pressuposto psíquico. Sem embargo, ela é a fonte real das normas de autoconservação cuja consideração leva à limitação da exigibilidade e, por conseguinte, da reprovabilidade.

II

Na segunda parte da obra, Goldschmidt inicia perguntado: “a tipicidade é mera ratio congnoscendi ou é verdadeira ratio esendi da antijuridicidade? As causas de justificação são limitações imanentes aos imperativos jurídicos, ou são características negativas do tipo? Elas estão legalmente tipificadas ou existem causas supralegais?”

Para Goldschmidt, não se deve exagerar na importância acerca da questão de se o critério da motivação normal constitui uma limitação imanente da norma de dever, ou se, em caso de motivação anormal, ocorre sua suspensão. Além disso, se, por conseguinte, a motivação normal é uma característica positiva da culpabilidade ou a motivação anormal é uma característica negativa da culpabilidade. Trata-se somente de questão meramente técnica de regular a relação entre regra e exceção.

De acordo com o autor, somente a lei é decisiva. E deste ponto de vista a inimputabilidade e, em todo caso, a motivação anormal constituem sempre uma exceção da reprovabilidade de uma conduta dolosa ou culposa cominada com pena. De acordo com o Goldschmidt, Hegler considera, por isso, e com razão, as “situações

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extraordinárias da motivação” como um pressuposto negativo da culpabilidade. Em outras palavras, como causas de exculpação. Considera também acertada a opinião de Frank em relação às “características negativas do tipo”, isto é, em relação às circunstâncias de fato que constituem causas de justificação. Causa de exculpação é somente a “motivação anormal”, tipicamente necessária. A falta da representação do resultado não é uma causa de exculpação, assim como a falta de resultado não é causa de justificação. A falta da consciência do que “não deve ser” exclui, já de antemão, um “querer que não deve ser”.

Finalmente, tampouco os casos de inimputabilidade contêm causas de exculpação, pois a imputabilidade é para a reprovabilidade o que a voluntariedade é para a antijuridicidade. Em todos os casos mencionados podem existir causas que objetivamente excluam o ilícito e que, subjetivamente, excluam a culpabilidade, mas não há causa de justificação ou exculpação, respectivamente. Disso resulta que, ainda que a motivação normal não seja o único pressuposto da exigibilidade e da reprovabilidade, a motivação anormal constitui o único pressuposto da não exigibilidade.

Sob esse ponto de vista, de acordo com o autor, a “não exigibilidade do cumprimento de um preceito de precaução” pode constituir, por conseguinte, uma causa de exculpação que exclua a culpa e, enquanto o preceito de precaução exigir a obtenção de conhecimentos jurídicos, pode constituir uma causa de exculpação que exclua o dolo.

Além disso, Goldschmidt faz a seguinte pergunta: “as causas de exculpação e os casos de não exigibilidade estão taxativamente tipificadas pela lei”? De acordo com o autor, parece perigoso afirmar – como fazia Frank – haver uma tipificação legal taxativa para o dolo e negá-la para a culpa. Isto se embasa em uma concepção que teria que ser superada, qual seja, de que não somente a culpa, mas também o dolo, é um conceito normativo de culpabilidade.

III

O autor segue, na terceira parte da obra, destacando o fato de que Frank alegava que a culpabilidade era um conceito possível de graduação. Quanto a isso, afirma que não havia necessidade alguma de qualquer explicação em relação ao dolo no sentido psicológico, isto é, como previsão do resultado, pois este não seria suscetível de graduação. Entretanto, isso seria diferente no tratamento da culpa, pois nela encontra-se o elemento normativo da violação de um dever de cuidado. Por tal razão fala-se em culpa “leve” ou “grave”. O interesse da comunidade jurídica em não ser violado ou ameaçado um bem jurídico traduz-se nas representações de valoração de seus componentes e, deste modo, influi na determinação da gravidade da culpabilidade. Quanto mais graves forem

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as consequências previstas ou previsíveis do fato, tanto mais fortemente devem obrar conforme a lei. Além disso, segundo o autor, quanto mais fácil fosse prever o resultado ou quanto mais o autor devesse apreciar o dever de precaução violado, ou mesmo, quanto mais ele considerasse provável a realização do resultado, tanto maior a exigibilidade para que atuasse de acordo com a lei.

Da mesma forma, quanto mais livre fosse a sua motivação das influências perturbadoras mórbidas ou semelhantes, assim como quanto mais avançado o desenvolvimento espiritual e moral de um menor, tanto mais exigível deve ser sua “contramotivação” pela representação do resultado e tanto mais reprovável será a motivação contrária ao dever. Nesse ponto, Goldschmidt destaca estar demostrada a exatidão da tese de Frank acerca da gravidade da culpabilidade depender da medida da liberdade interior do autor.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, destaca-se que quanto mais reprováveis forem os motivos estimuladores do crime e quanto mais insignificante for a causa exterior, tanto mais exigível seria atingir a representação do resultado de acordo com os “contramotivos” e, portanto, mais reprovável será a motivação contrária ao dever.

Diante disso, Goldschmidt conclui que: a) Frank tem razão ao reclamar o fim do autor, no sentido de motivação, como elemento da culpabilidade. Entretanto, segundo o autor, não se pode consentir com a exigência de Frank de acolher o motivo na definição da culpabilidade em razão de sua importância para a determinação da gravidade da culpabilidade; b) o que se pode objetar contra a incorporação do fim, na definição da culpabilidade de Frank, diz respeito aos que concebem a culpabilidade como um defeito de caráter. “Certamente, diz ele, um vício de caráter pode ser a causa da culpabilidade, mas não é culpabilidade”. Não o é, desde que também este nexo causal, como a futilidade do fim, seja um fato agravante da culpabilidade. Além disso, Goldschmidt afirma que Frank tem razão quando considera substancial o contraste entre este ponto de vista e a concepção caracterológica da culpabilidade, pois a concepção caracterológica substitui a valoração do objeto, ou seja, no lugar da motivação particular coloca o caráter do sujeito.

Por fim, Goldschmidt destaca que a “concepção caracterológica da culpabilidade” não está livre de certa autojustiça quando se crê ser portadora de bandeira do progresso científico. A raiz disso está no atraso científico e social. Social, porquanto não leva em conta que o caráter “mau” pode adquirir-se sem culpa, por herança, má educação, maus exemplos, ambiente negativo ou condições econômicas miseráveis, e científico na medida em que não se verificam os resultados das investigações psicoanalíticas, segundo as quais não se pode fazer uma reprovação do autor, precisamente em relação à causa do inconsciente, instintivo, que vive nele e que não é, nem pode ser, alheio ao sujeito.

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Orientações aos colaboradores da Revista Justiça e Sistema Criminal

Histórico e missão

A Revista Justiça e Sistema Criminal é um espaço para divulgação da produção científica e acadêmica de temas relativos ao sistema criminal, compreendendo aspectos relacionados tanto ao Direito e ao Processo Penal quanto à Criminologia, à Política Criminal, à Sociologia Jurídico--Penal e à Filosofia do Direito Penal, que visa principalmente difundir modernas tendências das áreas referidas, em sentido crítico e evolutivo.

Os temas principais estão vinculados ao desenvolvimento dos trabalhos do Grupo de Estudos Modernas Tendências do Sistema Criminal, que reúne pesquisadores de diversas universidades e acadêmicos de graduação e pós-graduação da FAE Centro Universitário. Entre nossos leitores, encontram-se professores, alunos de graduação e pós-graduação, profissionais da área jurídica e consultores de empresas públicas e privadas.

Objetivo

O objetivo da Revista Justiça e Sistema Criminal é promover a publicação de temas relacionados ao Direito e ao Processo Penal quanto à Criminologia, à Política Criminal, à Sociologia Jurídico-Penal e à Filosofia do Direito Penal.

Pretende-se contribuir para o desenvolvimento teórico do modelo de controle social criminal a partir da difusão de ideias modernas e críticas que ajudem na construção de um perfil humanista do sistema criminal.

Assim, será dada prioridade à publicação de artigos que, além de inéditos, nacional e internacionalmente, tratem de temas contemporâneos relacionados com a matéria criminal e que tenham perfil preferencialmente crítico.

Orientação editorial

Os trabalhos selecionados pela Revista Justiça e Sistema Criminal serão aqueles que melhor se adequem às linhas de pesquisa desenvolvidas pelo Grupo de Estudos Modernas Tendências do Sistema Criminal, acessíveis pela plataforma de grupos de pesquisa do CNPq.

Os trabalhos podem versar tanto sobre análises teóricas quanto experiências da práxis jurídica, resultantes de estudos de casos ou pesquisas direcionadas que exemplifiquem ou tragam experiências, fundamentadas teoricamente e que contribuam com o debate estimulado pelo objetivo da revista.

Enfatiza-se a necessidade de os autores respeitarem as normas estabelecidas nas Notas para Colaboradores. Os trabalhos serão publicados de acordo com a ordem de aprovação.

Focos

O principal requisito para publicação na Revista Justiça e Sistema Criminal consiste em que o artigo represente, de fato, contribuição científica. Tal requisito pode ser desdobrado nos seguintes tópicos:

– O tema tratado deve ser relevante e pertinente ao contexto e ao momento e, preferencialmente, pertencer à orientação editorial.

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– O referencial teórico-conceitual deve refletir o estado da arte do conhecimento na área.– O desenvolvimento do artigo deve ser consistente, com princípios de construção

científica do conhecimento.– A conclusão deve ser clara e concisa e apontar implicações do trabalho para a teoria

e/ou para a prática jurídico-penal. Espera-se, também, que os artigos publicados na Revista Justiça e Sistema Criminal desafiem o conhecimento e as práticas estabelecidas com perspectivas provocativas e inovadoras.

Escopo

A Revista Justiça e Sistema Criminal tem interesse na publicação de artigos de desenvolvimento teórico e prático forense.

Os artigos de desenvolvimento teórico devem ser sustentados por ampla pesquisa bibliográfica e devem propor novos modelos e interpretações para aspectos relacionados ao sistema criminal.

Os trabalhos empíricos devem fazer avançar o conhecimento na área, por meio de pesquisas metodologicamente bem fundamentadas, criteriosamente conduzidas e adequadamente analisadas.

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