Relações Federativas no Brasil: Uma Análise da Política Habitacional

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Relações Federativas no Brasil: Uma Análise da Política Habitacional Resumo Objetiva-se analisar a política habitacional brasileira a partir da teoria do federalismo, mostrando de que modo os diferentes arranjos institucionais das últimas décadas influenciaram o desenho da política habitacional, que hora teve como principal protagonista o governo federal, hora os governos subnacionais. Analisa-se primeiramente os arranjos institucionais construídos no âmbito federal, seguindo para uma análise das mesmas questões no âmbito estatual, com foco no Estado de São Paulo, a fim compreender de que modo a União influencia a formação dos arranjos institucionais e desenho das políticas públicas subnacionais.

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Relações Federativas no Brasil: Uma Análise da Política Habitacional

Resumo

Objetiva-se analisar a política habitacional brasileira a partir da teoria do federalismo,

mostrando de que modo os diferentes arranjos institucionais das últimas décadas

influenciaram o desenho da política habitacional, que hora teve como principal protagonista o

governo federal, hora os governos subnacionais. Analisa-se primeiramente os arranjos

institucionais construídos no âmbito federal, seguindo para uma análise das mesmas questões

no âmbito estatual, com foco no Estado de São Paulo, a fim compreender de que modo a

União influencia a formação dos arranjos institucionais e desenho das políticas públicas

subnacionais.

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Introdução

A política habitacional no Brasil teve um caminho descontínuo, desde seu início na década de

1960i, tendo sido marcada por períodos de extrema centralização no governo federal e por

outros períodos de maior protagonismo dos governos locais. Enquanto, durante o Regime

Militar, as relações intergovernamentais do Estado brasileiro eram mais similares às formas

que caracterizam um Estado unitário do que àquelas que caracterizam as federações, a partir

da redemocratização, em meados da década de 1980, esta política, como outras políticas

sociais, começa a ser repensada sob a perspectiva da descentralização. Em cada um destes

momentos, pode-se observar diferenças significativas nas relações intergovernamentais, tanto

verticais – caracterizadas pelas relações entre União, Estados e Municípios - como horizontais

- caracterizadas pelas relações entre entes com a mesma hierarquia (Estados/Estados e

Municípios/Municípios), que marcaram, em grande medida, a trajetória da política pública de

habitação.

O presente trabalho objetiva analisar a política habitacional no Brasil a partir da teoria do

federalismo, mostrando de que modo os diferentes arranjos institucionais, ao longo das

últimas décadas, influenciaram o desenho das políticas públicas na área habitacional.

Recortamos o período que vai desde o Regime Militar até os dias atuais, quando é possível

observar um movimento de maior coordenação dos entes federativos para a formulação e

implementação das políticas habitacionais. Analisa-se primeiramente os diferentes arranjos

institucionais construídos no âmbito federal e seu impacto no percurso da política nacional,

seguindo para uma análise das mesmas questões no âmbito estatual, como foco no Estado de

São Paulo, a fim compreender como os arranjos institucionais de uma determinada política

pública, construídos na esfera federal, relacionam-se com a trajetória tanto dos arranjos

institucionais, como da própria política pública, nos outros níveis federativos. Como

referenciais teóricos para análise das relações intergovernamentais foram utilizados os

modelos de Wright e Pierson, que apresentam três classificações de autoridade: independente,

interdependente e hierárquica.

Modelos Teóricos de Wright e Pierson

No Modelo de Wright (1988), o termo relações intergovernamentais engloba todas as

possíveis relações entre os governos (tanto horizontais como verticais), sendo, portanto, um

termo mais amplo que federalismo. Este último, bastante adotado na literatura norte-

americana, considera exclusivamente as relações entre estados e governo federal. Além disso,

Wright (1988) destaca, além do caráter institucional das relações intergovernamentais, o papel

dos atores no desenvolvimento dessas relações; esta atenção dada aos atores nos estudos sobre

as relações intergovernamentais é, possivelmente, uma das principais contribuições à análise

de políticas públicas, pois ultrapassa o aspecto institucional, até então considerado elemento

central no desenho das políticas públicas, ao considerar a interação de tais variáveis

institucionais com elementos advindos da ação dos atores (SANO, 2008).

Além do peso atribuído ao papel dos atores, Wright (1988) utiliza outras duas categorias

básicas para análise das relações intergovernamentais, relacionadas à divisão de poder numa

federação: unidades governamentais (ou governos subnacionais) e critérios de financiamento

das políticas públicas. A partir destas categorias, Wright (1988) desenvolve modelos para

representar a distribuição do poder em sistemas federativos e analisar a relação entre os

governos; tais modelos procuram identificar e compreender as formas de interação que podem

ocorrer em um sistema federativo e são classificados em: autoridade independente, autoridade

inclusiva e autoridade interdependente.

No modelo de autoridade independente ou autoridade dual, os governos manteriam um

relacionamento de total independência e autonomia, o que seria possível em situações nas

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quais existe completa clareza acerca dos papéis de cada uma das esferas de governo. Este

modelo é similar ao federalismo dual ou layer-cake (Pierson, 1995), segundo o qual diferentes

esferas são responsáveis, de forma estanque, por problemas específicos de uma política

pública (Sano, 2008).

No modelo de autoridade inclusiva, autoridade hierárquica ou autoridade centralizada, o

escopo de atuação dos governos subnacionais depende totalmente das decisões tomadas pelo

governo nacional. Desta forma, estados e municípios acabam por se configurar como

unidades administrativas e o governo nacional centraliza todas as decisões, estabelecendo

uma relação hierárquica.

Já o modelo de autoridade interdependente, também denominado de autoridade sobreposta ou

coordenada, apresenta três características principais: 1) duas ou três esferas de governos

podem atuar simultaneamente numa mesma questão; 2) as áreas de autonomia exclusiva de

ação ou de jurisdição única são reduzidas e seriam espaços de ação similares ao modelo de

autoridade independente e; 3) o poder e a influência disponíveis a qualquer esfera de governo

são limitados, criando um padrão de autoridade em que prevalece a barganha, entendida como

a necessidade de acordos ou trocas.

Segundo Sano (2008), as três formas de autoridade identificadas por Wright (1988) estão

presentes nas relações intergovernamentais; porém, com o aumento da sobreposição entre

políticas e governos nas federações contemporâneas, cresce também a necessidade de maior

coordenação nas ações, algo mais próximo do modelo de autoridade interdependente.

Entretanto, mesmo nesse cenário, as formas dual e hierárquica permanecem nos países

federativos, até porque certa dualidade é necessária para manter a autonomia e os direitos dos

pactuantes de uma federação, ao passo que certo grau de inclusividade é fundamental em

federações mais heterogêneas e desiguais.

O modelo de Wright (1988) constrói uma tipologia interessante e bastante operacionalizálvel

para entender as diferentes possibilidades de coordenação numa federação. Contudo, este

autor não desenvolve um modelo analítico que permita identificar as variáveis que mais

afetam a produção de determinados arranjos federativos. Esta contribuição é fornecida por

Paul Pierson (1995) que observa que os sistemas federativos “superimpõem a questão do

quem deve fazer isto’ sobre a tradicional pergunta o que deve ser feito”. Segundo o autor, este

fenômeno decorre do fato de diferentes centros de poder atuarem sobre um mesmo espaço

territorial; além disso, o fato de inexistir uma resposta clara sobre os papéis de cada ator leva

à fragmentação das políticas sociais, seja pela ausência de ações governamentais, seja pela

sobreposição das iniciativas de diferentes níveis de governo em um mesma política. Para

Pierson (1995), em sistemas federais, autoridades do nível central coexistem com autoridades

territorialmente distintas – denominadas unidades constituintes - da federação. Como os

representantes do governo de ambos os níveis são parte de um mesmo sistema, embora

parcialmente autônomos, suas iniciativas de políticas sociais são altamente interdependentes,

mas em geral somente modestamente coordenadas; estes governos podem competir entre si,

desenvolver projetos independentes cujos propósitos se chocam, ou cooperar para atingir fins

que não poderiam alcançar sozinhos.

Segundo Sano (2008), a falta de uma coordenação mais efetiva, como identificada por Pierson

(1995), é uma das questões primordiais em sistemas federativos, principalmente com o

aumento das áreas de intersecção entre os níveis de governo. Esta coordenação é tanto mais

difícil quanto menor for a cultura política nesse sentido; assim, a transição de uma situação

federativa mais inclusiva, na qual a coordenação ocorre por meio da relação hierárquica

somente, para uma de maior autonomia dos atores e maior entrelaçamento de ações torna

mais complexo o desenvolvimento de um processo de coordenação participativo, isto é, que

leve em consideração o envolvimento dos diferentes níveis de governo nas decisões sobre as

políticas.

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Pierson (1995) também chama a atenção para uma outra característica decorrente da

coexistência de diferentes centros de poder: a presença de um conjunto de atores

institucionalmente poderosos – as unidades constituintes – que podem definir suas próprias

políticas e influenciar a qualidade das ações da autoridade central. Ao considerar os governos

subnacionais como atores com poder de influência no processo de tomada de decisão, o autor

chama a atenção para quatro importantes aspectos institucionais que devem ser considerados

na análise de políticas públicas: 1) a reserva de poderes específicos para as unidades

federativas que, dessa forma, podem desenvolver políticas próprias; 2) a representação dos

interesses das partes no centro, por meio da qual podem influenciar as ações nacionais; 3) o

grau de comprometimento da equalização fiscal entre as unidades constituintes e sua

capacidade administrativa; e 4) os dilemas do shared-decision making, referente à

necessidade de coordenar tarefas e poderes compartilhados entre os níveis de governo.

Trajetória da Política Habitacional Nacional

Iniciamos a discussão a partir do Regime Militar (1964-1985), momento no qual as relações

intergovernamentais do Estado brasileiro aproximaram-se mais das formas que caracterizam

um Estado unitário do que àquelas que caracterizam as federações. Neste período, os

governadores e prefeitos das capitais eram destituídos de autonomia política e contavam com

escassa autonomia fiscal. Embora os estados recebessem recursos federais via transferências,

estes eram fortemente controlados pelo governo central (Arretche, 1999). Neste contexto, a

política habitacional era conduzida pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), agente de

fomento federal responsável pela definição das políticas públicas e liberação dos recursos

para as demais esferas de governo; as esferas subnacionais, por sua vez, eram responsáveis

pela execução dos programas de habitação de interesse social, implementados em grande

parte pelas Companhias Habitacionais (COHABs), estruturas vinculadas aos governos

municipais, estaduais e, em alguns casos, regionais.

Observa-se, portanto, que o modelo de gestão da política habitacional era fortemente

centralizado neste período: as entidades subnacionais dependiam inteiramente dos

empréstimos concedidos pelo BNH; tais empréstimos eram condicionados à aprovação de

projetos, pelo próprio BNH, para a implementação dos programas propostos. Assim, apesar

de terem autonomia administrativa, estas entidades eram agentes de execução de uma política

estabelecida e fortemente controlada pelo governo federal. Neste modelo não existia espaço -

nem institucional, nem financeiro - para iniciativas de inovações em política habitacional no

âmbito dos governos locais (Arretche, 1999).

Tendo em vista que a gestão centralizadora do governo federal estabeleceu as políticas e os

recursos aos governos subnacionais, esse modelo de relacionamento estava caracterizado pelo

modelo de Autoridade Hierárquica de Wright (1988) explicado anteriormente, uma vez que

estabeleceu-se que a definição das políticas e liberação dos recursos era responsabilidade do

governo federal, ao mesmo tempo em que as ações de execução eram realizadas pelos

governos subnacionais.

No período entre 1960 e 1980, a economia brasileira se encontrava em pleno crescimento, o

que possibilitou que o governo federal disponibilizasse um significativo volume de recursos

para o setor habitacional. Entretanto, a partir da década de 1980, a economia do país registrou

uma profunda inflexão com a predominância de um longo ciclo de baixo dinamismo. Este

novo cenário trouxe repercussões significativas ao Sistema Financeiro da Habitação (SFH),

acarretando uma expressiva redução dos investimentos na segunda metade desta década. A

crise do SFH e do BNH, bem como a disposição do governo federal de reduzir os valores dos

financiamentos, acarretou um crescente ônus para os municípios ao transferir

progressivamente aos entes a responsabilidade integral sobre os custos do terreno,

infraestrutura, equipamentos coletivos dos empreendimentos habitacionais, equipe técnica e

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mão-de-obra das políticas habitacionais. Embora tenha havido uma certa distribuição dos

encargos entre o BNH e os municípios, as condições de produção e financiamento das

COHABs foram deteriorando-se ao longo do tempo. Em 1986, o BNH foi extinto e suas

atribuições transferidas para a Caixa Econômica Federal (CEF).

Entre a extinção do BNH (1986) e a criação do Ministério das Cidades (2003), o setor

responsável pela gestão da habitação no governo federal esteve subordinado a sete ministérios

ou estruturas administrativas diferentesii, caracterizando a descontinuidade e ausência de

estratégias para a consolidação de uma política habitacional nacional. Estes fatores, aliados à

instabilidade econômica da época, restringiram as possibilidades de financiamento dos

programas federais, de modo que as COHABs, que tinham altíssima dependência das

transferências federais, tiveram sua capacidade de implementação dos programas

habitacionais nos municípios prejudicada. A extinção do BNH, aliada à promulgação da

Constituição de 1988, que determinou que a implementação de programas habitacionais fosse

de competência comum a todas as esferas de governo, induziu, de certa forma, a um processo

de descentralização não coordenado das políticas habitacionaisiii

. Ao mesmo tempo em que se

observava uma desarticulação da política federal de habitação, os estados brasileiros davam

continuidade às suas políticas por meio das COHABs (mesmo considerando as dificuldades

de obtenção de financiamentos federais), que haviam sido constituídas para participar da

política implementada pelo BNH.

Assim, a partir de 1987, os estados já tinham capacidade técnica herdada da política anterior e

podiam se articular para implementar políticas próprias (Arretche, 2000). Segundo Melo e

Jucá Filho (1990), com o desmonte institucional da política federal de habitação no final da

década de 1980, observou-se uma “estadualização da política habitacional” com a

proliferação de ações estaduais e municipais. Além de maior autonomia, os governos

estaduais, agora eleitos pelo voto popular, passaram a apresentar maiores preocupações com o

desenvolvimento de políticas públicas e com o atendimento de reivindicações populares,

estabelecendo suas prioridades e delineando novos modelos de políticas sociais, de acordo

com suas capacidades administrativas e recursos financeiros disponíveis (Royer, 2002). Desse

modo, no final da década de 1980, em nível estadual, assiste-se à criação de mecanismos que

viabilizaram um fluxo permanente de recursos financeiros, por meio do direcionamento de

impostos ou taxas para o setor, e garantiram, em alguns estados, uma oferta contínua de

serviços (Arretche, 1999; Royer, 2002).

Podemos dizer que, após a promulgação da Constituição de 1988, o estabelecimento da

competência comum da política habitacional para todos os entes federativos permite uma

aproximação da definição do modelo interdependente de Wright (1988), na medida em que as

três esferas de governo passaram a ser responsáveis pela mesma política pública, tornando

necessário o estabelecimento de acordos para definição de papéis e responsabilidades para o

desenvolvimento de ações no âmbito de tal política.

O modelo descentralizador-municipalista adotado pela Constituição significou também uma

maior autonomia para que os municípios experimentassem novas políticas habitacionais neste

período, observando-se um grande número de iniciativas de provisão habitacional de interesse

social. Sérgio Azevedo (2007) explica, que:

“a crise fiscal do Estado, especialmente nos âmbitos federal e

estadual, e a consequente diminuição de verbas para as

necessidades habitacionais, aliada à pressão popular no novo

contexto democrático, acarretaram um processo difuso e não

planejado de descentralização, que poderíamos chamar de uma

‘municipalização selvagem’ da política habitacional para os

setores de menor renda.”

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De modo a viabilizar a implementação das políticas habitacionais, alguns municípios

recorreram a convênios e parcerias com COHABs de atuação regional. Outros criaram

empresas municipais para provisão habitacional que começaram a produzir unidades na

década de 1990. Esta fase de atomização de experiências nas esferas municipal e estadual foi

caracterizada por uma grande heterogeneidade e marcada pela diversidade de iniciativas, mas

pouco articulada em decorrência da ausência de uma política nacional. Embora tenham

surgido interessantes programas habitacionais que adotam pressupostos inovadores como

desenvolvimento sustentável, estímulo a processos participativos, parceria com a sociedade

organizada, projetos integrados e a articulação com a política urbana (MCidades, 2007;

Bonduki, 1996), estas experiências foram pouco disseminadas entre outros municípios,

podendo ser caracterizadas como experiências autônomas e isoladas, que não ajudaram, com

raras exceções, a gestar políticas mais amplas e disseminadas no contexto nacional.

No âmbito estadual, de modo geral, a participação dos estados na política habitacional no

final dos anos 1980 e início da década de 1990 se desenvolveu em torno de duas estratégias:

1) a institucionalização de um sistema estadual de habitação, ou seja, a constituição de

políticas habitacionais caracterizadas pela vinculação de fontes de recursos, instituições e

programas habitacionais com mecanismos de acesso, desenho e sistema de crédito próprios –

como veremos no caso do Estado de São Paulo; e 2) desenvolvimento de iniciativas de

promoção pública associadas a gestões governamentais com recursos orçamentários próprios

(como no caso de experiências do Rio Grande do Norte, Pará, Paraná, Goiás, Santa Catarina,

Ceará e Rio Grande do Sul), mas com baixa institucionalização e sem garantia de

continuidade no tempo (Arretche, 1996; Gonçalves, 2009).

A retomada da política habitacional federal após a extinção do BNH ocorreu apenas em 1990,

durante o governo Collor de Mello, com o Plano de Ação Imediata para Habitação (PAIH),

ação de caráter emergencial, marcada pela subordinação institucional da habitação como

questão de assistência social, para o atendimento de famílias com renda de até 5 salários

mínimos e que se propunha a financiar em 180 dias cerca de 245 mil unidades, por meio da

contratação de empreiteiras privadas. As linhas de crédito para as demais famílias

permaneceram fechadas (Carvalho, 1991; Azevedo, 2007). Este programa marcou também a

retomada das operações com recursos federais entre 1990 e 1991, já que neste programa as

unidades eram totalmente financiadas com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de

Serviço (FGTS). Aprofundando a tendência de privatização da política habitacional iniciada

no governo anterior, este programa transferia recursos públicos para a iniciativa privada,

enquanto as COHABs continuavam desempenhando um papel secundário de órgãos

assessores. Dessa forma, os agentes públicos receberam apenas 21% do montante de recursos

emprestados pelo FGTS e as cooperativas habitacionais, que tinham contratos com

empreiteiras visando às faixas de renda médias, receberam cerca de 70% dos recursos.

Entretanto, este programa foi mal sucedido e acabou implicando na suspensão de

financiamentos via FGTS entre os anos 1992 e 1995 (Arretche, 2000; Azevedo, 2007).

A formulação de uma nova política nacional de desenvolvimento urbano, pós-BNH, só

começou a ser elaborada a partir de 1995, na administração do presidente Fernando Henrique

Cardoso, com reformas que visaram rever o modelo das políticas de desenvolvimento urbano

do Regime Militar. O novo modelo caminhou para descentralizar a alocação dos recursos

federais e introduzir princípios de mercado na provisão de serviços. Esta descentralização da

gestão da política urbana deu-se a partir da instalação de instâncias colegiadas nos estados,

destinadas à tomada de decisões relativas à alocação dos recursos do FGTS para as áreas de

saneamento e habitação. Com base nas disposições estabelecidas pelo Conselho Curador do

FGTS, cada estado disporia de um orçamento anual para a aplicação em programas de

desenvolvimento urbano (60% para habitação e 40% para o saneamento). Entretanto, apesar

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das instâncias colegiadas terem sido instaladas rapidamente, a maioria dos projetos propostos

pelos estados e municípios esbarrava na incapacidade de endividamento dos mesmos, de

modo que o modelo descentralizado proposto jamais foi efetivamente implementado

(Arretche, 2000).

Com a retomada dos financiamentos por parte do FGTS, foram criados novos programas de

financiamento para o setor habitacional; contudo, a maior parte dos financiamentos era

voltada diretamente ao beneficiário final, absorvendo a maior parte dos recursos do fundo.

Existia apenas uma modalidade que se destinava ao financiamento de estados e municípios,

em alguns casos, a fundo perdido. Estes programas eram focados na recuperação de áreas

habitacionais degradadas, ocupadas principalmente por população de renda de até 3 salários

mínimos, por meio de melhoria ou da construção de unidades habitacionais e de infraestrutura

(Programas Pró-Moradia e Habitar Brasil), e não mais na provisão de novas unidades

habitacionais, como nos modelos anteriores (Shimbo, 2010). Os governos subnacionais

passaram a ter participações muito pequenas na provisão de novas unidades habitacionais,

com raras exceções de governos mais autônomos que contavam com capacidade técnica e

fiscal própria.

A gestão FHC queria reforçar o papel dos governos municipais como agentes promotores da

habitação popular incentivando-os, inclusive, a adotar linhas de ação diversificadas, apoiando

programas geradores de tecnologia simplificada que possibilitassem a construção de moradias

de qualidade a custo reduzido. Estimulava, também, governos subnacionais a desenvolverem

experiências inovadoras de gestão habitacional por meio do financiamento de programas

voltados para este fim e estimulando o intercâmbio de experiências entre os governos

subnacionais para que estas inovações se disseminassem de forma horizontal. No que se

refere às potencialidades apresentadas por estes programas municipais, desenvolvidos

especialmente nos anos 1990, estudos realizados no final desta década demonstraram as

grandes possibilidades de inovação institucional e de adaptabilidade às especificidades locais.

Estas iniciativas funcionaram como um grande “laboratório” que permitiu a socialização de

inúmeras experiências bem-sucedidas, muitas das quais premiadas internacionalmente

(Bonduki, 1996; Souza, 1997 apud Azevedo, 2007).

Essa atividade coordenada entre governo federal e governos subnacionais, bem como o

incentivo para a participação da sociedade civil na construção da agenda, caracteriza o

modelo de Autoridade Interdependente, desenvolvido por Wright (1988).

O Ministério das Cidades foi criado como nova institucionalidade para a área de

desenvolvimento urbano, em 2003 (governo Lula), com o objetivo de retomar a agenda de

uma política urbana nacional, integrando os setores de habitação, saneamento ambiental e

transportes em um mesmo órgão. A opção do primeiro grupo dirigente do Ministério foi

formular uma política de forma federativa e participativa, mobilizando os três níveis de

governo e os distintos segmentos da sociedade civil para esta finalidade. O MCidades, desde

sua origem, foi proposto como um órgão coordenador, gestor e formulador, envolvendo de

forma integrada as políticas responsáveis pelos processos de urbanização e resgatando para si

a coordenação política e técnica das questões urbanas, que a partir da Constituição de 1988

foram sendo delegadas às prefeituras municipais sem um projeto claro de coordenação

intergovernamental, como discutido anteriormente. Coube-lhe, ainda, a incumbência de

articular, qualificar e mobilizar os diferentes entes federativos na montagem de uma estratégia

nacional para equacionar os problemas urbanos das cidades brasileiras, alavancando

mudanças com o apoio dos instrumentos legais estabelecidos pelo Estatuto das Cidades.

Assiste-se, portanto, a uma continuidade do movimento do Governo Federal em direção ao

modelo de Autoridade Interdependente (Wright, 1988), porém com um projeto de

coordenação intergovernamental mais claro, delineado pela construção de estratégias

financeiras e institucionais mais concretas, onde cada ente federativo tem seu papel

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claramente desenhado dentro da política. Assiste-se, portanto, com a instituição deste novo

Sistema de Habitação, ao que Pierson (1995) caracterizou como transição de uma situação

federativa mais inclusiva (onde a coordenação se dá apenas através da relação hierárquica)

para o desenvolvimento de uma maior autonomia dos atores. Segundo este autor, esta

transição de maior entrelaçamento de ações torna mais complexo o desenvolvimento de um

processo de coordenação participativo, e por este motivo, o MCidades tem um grande desafio

frente aos dilemas do shared-decision making (Pierson, 1995).

No mesmo ano de criação do MCidades, avançou-se também na construção da instância de

participação e controle social da política urbana com a realização da 1ª Conferência Nacional

das Cidades, que traçou as linhas gerais e as diretrizes da política nacional de

desenvolvimento urbano, resultando, ainda, na eleição da primeira composição do Conselho

Nacional das Cidades. Na área de habitação, no início da década de 1990, os movimentos

populares aliados haviam construído uma proposta de Sistema Nacional de Política

Habitacional com o apoio de diversos atores técnicos. Muitas destas propostas,

posteriormente incorporadas ao Sistema instituído, haviam sido experimentadas e aprendidas

em iniciativas de governo subnacionais durante meados dos anos 1980 e 1990. Estas idéias

resultaram em um dos primeiros projetos de lei de iniciativa popular (PL 2.710/1991), que

após 13 anos de tramitação, viria a ser aprovado (Lei 11.124/2005), instituindo o Sistema

Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e o Fundo Nacional de Habitação de

Interesse Social (FNHIS). A importância política e institucional da regulamentação do SNHIS

e do FNHIS está no compromisso do MCidades de buscar viabilizar e articular fontes de

recursos permanentes para o financiamento da habitação de interesse social, dispersas e

sobrepostas em diversos programas nos três níveis governamentais.

O SNHIS foi organizado a partir da montagem de uma estrutura institucional, composta por

uma instância central de coordenação, gestão e controle, representada pelo MCidades, pelo

Conselho Gestor do FNHIS (CGFNHIS), por agentes financeiros e por órgãos e agentes

descentralizados. A adesão ao SNHIS por parte dos entes federativos é voluntária e se dá a

partir da assinatura do termo de adesão, por meio do qual os estados e municípios se

comprometem a constituir, no seu âmbito de gestão, um fundo local de habitação de natureza

contábil, gerido por um conselho gestor com representação dos segmentos da sociedade civil,

e a elaborar um plano local (estadual, distrital ou municipal) de habitação. Essa estrutura

espelha, no âmbito local, a estrutura institucional e financeira montada no âmbito federal e

visa permitir, por meio da adesão ao Sistema, que os agentes locais possam obter acesso aos

recursos do FNHIS. No modelo proposto, parte dos recursos seria destinada às transferências

fundo a fundo que ficariam condicionadas ao oferecimento de contrapartida do ente

federativo. O Plano Nacional de Habitação estabeleceu, também, a construção de um índice

de capacidade institucional (ICI), que serviria como indicador para a distribuição de recursos

do SNHIS. Até o momento, entretanto, as transferências fundo a fundo ainda não ocorrem, e o

ICI não foi construído, ficando os recursos do FNHIS, assim como os dos demais programas,

sujeitos à apresentação e aprovação de propostas junto à CAIXA e ao Ministério.

Assim, apesar de o modelo de Sistema que se desenhou na lei do SNHIS representar

claramente um direcionamento ao modelo de autoridade interdependente (WRIGHT, 1988),

na prática não se tem caminhado para um modelo verdadeiramente de shared-decision making

(Pierson, 1995), segundo o qual o processo decisório é compartilhado entre as diferentes

esferas federativas.

O modelo institucional adotado pelo SNHIS prevê a descentralização da sua implementação

mediante a transferência de atribuições para as esferas subnacionais e para agentes privados e

públicos (estatais ou não). Desta forma, estados e municípios passam a participar da gestão do

Sistema. A descentralização, por sua vez, deve cumprir a premissa da sintonia entre os entes

integrantes do Sistema de forma que exista um fio condutor único da política que garanta que

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políticas locais, elaboradas de forma autônoma, estejam em harmonia com a política nacional.

Desta forma, o SNHIS se desdobra e se fundamenta na articulação e na integração entre os

planos, programas, ações habitacionais e recursos financeiros e humanos dos três níveis de

governo. O MCidades acredita que a obrigatoriedade de planos habitacionais nas três esferas

governamentais estabelecida na lei do SNHIS poderá ser capaz de definir o fio condutor da

articulação entre os governos, e que no processo de construção gradual do SNHIS, a

qualificação e o alinhamento de diretrizes e prioridades entre os governos podem se converter

em uma meta a ser alcançada pelos gestores do Sistema, atuando como uma espécie de

elemento de atração e polarização em torno da efetiva construção de uma política nacional

integrada (MCidades, 2009). Atualmente, 98% dos municípios brasileiros e todos os estados

já aderiram ao Sistema; entretanto, quase a metade dos municípios (49%) ainda não cumpriu

as condições legais – constituição de plano, fundo e conselho - exigidas para que se integrem

ao Sistema (MCidades, 2011).

A partir do ano de 2007, a SNH avançou na mobilização estratégica de estados e municípios

no intuito de aproximar a gestão federal das esferas subnacionais e estruturar formas

institucionalizadas de negociação e pactuação com estas esferas. Fazem parte desta iniciativa

o processo de negociação com estados e municípios para a distribuição dos recursos federais

do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), coordenado da Casa Civil da Presidência

da República e orientado pela SNH, e, também, a agenda de reuniões mensais, iniciada em

2007, mantida pela SNH com o Fórum Nacional de Secretários de Habitação e

Desenvolvimento Urbano (FNSHDU). Entretanto, ainda que tenha estabelecido a negociação

entre os entes tanto na gestão, quanto na distribuição dos recursos, o governo federal ainda

permanece com algum grau de concentração; o conselho gestor e o agente financeiro do

FGTS, a CEF, definem as regras de operação dos programas e detém o poder para autorização

definitiva, constituindo órgãos de controle majoritário do governo federal, mas não contam

com representação federativa em suas instâncias decisórias (Arretche, 2004).

A Política Habitacional no Estado de São Paulo

Enquanto a política habitacional federal teve uma atuação inexpressiva na década de 1990, no

Estado de São Paulo observou-se um extraordinário desempenho no mesmo período. O caso

de São Paulo é paradigmático entre os estados, pois, dentre os que buscaram uma estratégia

de institucionalização de um sistema estadual de habitação no final da década de 1980, este

foi o que mais conseguiu promover o fortalecimento e a autonomização da política

habitacional, chegando a ter, no final dos anos 2000, uma das maiores companhias

habitacionais do mundo, com orçamento maior do que o de muitos estados e municípios

brasileiros. Este processo contou com recursos estaduais e resultou, em linhas gerais, no

desenvolvimento de programas próprios e na expansão da oferta (Royer, 2007; Arretche,

1996; Gonçalves, 2009).

Criada em 1949 como uma autarquia com a denominação de Companhia Estadual de Casas

Populares (CECAP), a estrutura da administração indireta responsável pela política

habitacional no estado passou por diversos processos de transformação até chegar ao atual

estágio de desenvolvimento (Royer, 2007). Em 1981, o então governador Paulo Maluf, ainda

durante o Regime Militar, criou a Codespaulo, que tinha, além das funções da companhia

anterior (CECAP) de promoção da habitação no Estado, a função de “promover a

desconcentração do desenvolvimento industrial e urbano em São Paulo”, atuando também,

“como indutora do desenvolvimento regional (ao menos no planejamento)” (Royer, 2002).

Assim, após a pesquisa em 96 municípios, foi traçada uma meta de construção de 12.380

unidades em 25 municípios paulistas; entretanto, os investimentos e contratações feitos pelo

programa originaram dívidas que perduraram no governo seguinte.

10

Em 1983, após o primeiro ano de governo Montoro (o primeiro governo de gestão

democrática após a experiência autoritária), a enorme inadimplência da antiga companhia

com o Governo Federal (com unidades construídas pelo financiamento habitacional do BNH e

dívidas não saldadas no período acumulado) mostrou a necessidade de uma reformulação

interna, destinada a estabelecer uma nova organização administrativa, com a contratação de

novos técnicos e a valorização dos técnicos já atuantes nesta política. Em março de 1984, a

empresa foi transformada na Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Estado de São

Paulo (CDH).

A Codespaulo operava com recursos advindos de transferências federais, mas com a crise do

sistema, somada à indisposição da convivência do regime democrático nos estados com o

autoritarismo do governo central, não era mais possível contar com os aportes federais para o

enfrentamento das necessidades habitacionais; assim a nova proposta da Companhia foi

operar com recursos orçamentários próprios. O Estado de São Paulo, entretanto, não dispunha

de nenhum mecanismo que permitisse segregar recursos da arrecadação para financiar

políticas públicas de habitação, nem receitas disponíveis para inclusão de despesas com tal

vulto em seu orçamento (Royer, 2007). Com esta meta de realizar e assumir a política

habitacional sem a dependência da transferência de recursos, o Estado de São Paulo passou a

reivindicar fontes de financiamento, propugnando por maior autonomia financeira e pela

desconcentração das competências tributárias. Tais teses, defendidas pelo Governo de São

Paulo, vão marcar o processo constituinte e dar origem aos instrumentos tributários que

possibilitaram o desenvolvimento acelerado da Companhia na segunda metade da década de

1980 (Royer, 2002).

Em 1988, com a aprovação da Constituição que garantia autonomia financeira para os

governos estaduais, o Estado de São Paulo pôde aprovar uma nova legislação tributária que

aumentava os recursos orçamentários com a elevação das alíquotas de impostos. Em

novembro de 1989, a Lei 6.556 instituiu um adicional de 1% ao Imposto sobre Circulação de

Mercadorias e Serviços (ICMS) do estado, sendo que a receita resultante desta elevação da

alíquota seria destinada inteiramente ao financiamento, pela Caixa Econômica Estadual, de

programas habitacionais de interesse social, desenvolvidos e executados pela CDH. A

aprovação desta lei garantiu um vultoso aumento nos recursos destinados ao setor

habitacional do Estado de São Paulo: entre 1991 e 1996, de um total de U$ 2,6 bilhões dos

recursos para habitação, U$ 2 bilhões foram oriundos do ICMS (Royer, 2002, 2007). Com a

implementação desta nova fonte de recursos e outras mudanças estruturais e de conceito que

foram instituídas no período, a CDHU, como empresa pública, passou a administrar, em 1989,

o terceiro orçamento de investimentos entre as estatais paulistas, atrás apenas da Companhia

Energética de São Paulo (CESP) e do Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô)

(Royer, 2002).

A adoção da alíquota do ICMS (fonte permanente, não-onerosa e vinculada de recursos para a

implementação de programas sociais de habitação) e a criação da CDH em 1984

(posteriormente transformada em CDHU, em 1989) representaram decisões segundo as quais

passariam a ser formulados programas estaduais cujas características seriam distintas daquelas

oferecidas pelas agências federais (Arretche, 1996). Após estabelecida uma volumosa e

estável fonte de recursos financeiros, tornou-se possível a orientação da política habitacional

para a produção em grande escala de unidades habitacionais no Estado. Houve também uma

significativa mudança na forma de gestão da política de habitação: todas as obras passaram a

ser licitadas e administradas pela CDHU. A política passou a ser centralizada no Governo do

Estado e, para ter acesso às unidades habitacionais oferecidas pelo programa estadual, as

prefeituras deveriam oferecer o terreno e a infra-estrutura urbana.

Com estas medidas, o Governo do Estado de São Paulo, assim como a maioria dos governos

estaduais na década de 1990, instituiu uma política habitacional com gestão centralizada,

11

usando o modelo adotado anteriormente pelo governo federal (Melo e Jucá Filho, 1990).

Nesta política, cabia aos municípios aderir aos programas formulados e implementados pelos

agentes estaduais e firmarem a parceria por meio da concessão de terrenos e/ou infraestrutura,

não cabendo aos governos locais nenhum poder decisório sobre o volume de recursos

investidos, a gestão do empreendimento e a distribuição das unidades habitacionais aos

beneficiários finais. Dessa forma, a política estadual deste período aproximou-se do modelo

de autoridade hierárquica de Wright (1988).

Nos primeiros anos da década de 2000, a atuação da CDHU foi marcada pela continuidade de

programas e ações formuladas na década anterior, ainda com o financiamento através dos

recursos advindos do ICMS, não ocorrendo mudanças institucionais do setor habitacional do

Estado de São Paulo no período. A partir de 2005, o governo estatual começou a estabelecer

uma divisão maior entre planejamento e produção habitacional, delimitando mais claramente

as funções institucionais dos órgaos envolvidos no setor. Atualmente, o Estado conta com

uma Secretaria de Habitação (SEHAB) na administração direta, com a Companhia de

Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), empresa vinculada

a esta Secretaria, e, mais recentemente, com a Casa Paulista - Agência Paulista de Habitação

Social, constituída como um novo braço da Secretaria da Habitação para viabilizar a operação

dos fundos habitacionais recém-instalados: o Fundo Paulista de Habitação de Interesse Social

(FPHIS) e o Fundo Garantidor Habitacional (FGH).

Apenas em 2007, o Estado de São Paulo aderiu ao SNHIS (Lei Estadual 12.801/2008) e só

regulamentou esta adesão em dezembro de 2008 por meio do Decreto 53.823/2008, que

também insituiu o Conselho Estadual de Habitação (CEH), o Fundo Paulista de Habitação de

Interesse Social (FPHIS) e o Fundo Garantidor Habitacional (FGH). Em 2009, começou a

elaboração do Plano Estadual de Habitação (PEH-SP), que objetivou estabelecer estratégias e

metas para a eliminação progressiva das necessidades habitacionais, por meio de ações

conjugadas nas três esferas de governo. A elaboração deste Plano inaugurou um novo marco

nas relações intergovenamentais desenvolvidas entre o Governo do Estado de São Paulo e os

municípios de sua jurisdição. Até então, a política habitacional estadual era extremamente

centralizada no governo estadual, tanto em termos de formulação, quanto da própria

implementação.

No PEH, ainda não publicado na integralidade, já aparecem indícios de uma mudança de

postura do Governo Estadual, que passa a buscar para si um papel mais de coordenação e

formulação, delegando aos municípios o papel de implementadores e demandantes das

necessidades específicas de cada município. Enquanto, na década de 1990, o Governo do

Estado assumiu uma postura que parecia ignorar as reais necessidades dos municípios,

produzindo unidades habitacionais segundo os interesses políticos eleitorais, no final da

década de 2000 o planejamento habitacional do Estado assume outra postura, desenvolvendo

uma série de estudos e indicadores para determinar as especificidades das necessidades

habitacionais das diferentes regiões do Estado e desenvolvendo programas voltados para estas

características, além de uma tentativa de estabelecer um maior diálogo com os municípios.

Seguindo esta tendência de maior descentralização, o Governo do Estado de São Paulo está

promovendo a criação da Rede Estadual dos Planos Locais de Habitação (PLHIS) com a

intenção de criar um sistema de coordenação intergovenamental, no qual o governo estadual

ajudará os governos municipais a desenvolverem seus planos locais de habitação como

instrumento do planejamento municipal. Nesta rede, coordenada pelo governo estadual,

deseja-se também promover a troca de experiências entre os municípios sobre a elaboração de

instrumentos de planejamento locais e regionais, a fim de construir uma visão articulada e

compartilhada sobre os desafios e as estratégias de ação, estimulando o desenvolvimento das

relações intergovernamentais, tanto verticais quanto horizontais. Observa-se, então, que de

12

1990 a 2000, o modelo de relacionamento passou por uma transição do modelo centralizado

para o modelo de autoridade interdependente (WRIGHT, 1988).

Considerações finais

A trajetória da política habitacional, brevemente descrita neste trabalho, nos mostra que os

desenhos institucionais e políticas desenvolvidas dialogam com o percurso do Estado

brasileiro de forma mais ampla, uma vez que o desenho desta política pública no âmbito da

União parecer ter caminhado sempre alinhada com o desenho macro-institucional do Estado,

ou seja, acompanhando os movimentos de maior centralização ou descentralização do poder

na esfera federal. Percebe-se, também, que os arranjos institucionais implementados no

âmbito nacional têm impactos profundos no desenho institucional e na política pública

habitacional implementada pelos estados e municípios, mesmo que de forma desarticulada e

com pouca coordenação intergovernamental, como se deu em grande parte do período

estudado.

A literatura aponta que, sobretudo os estados mais dependentes de recursos federais para

executar a prestação de políticas e serviços sociais têm maior tendência a se pautarem pelas

orientações das políticas federais (Arretche, 2004; Gonçalves, 2009). Assim, o caso de São

Paulo é paradigmático, na medida em que conseguiu instituir um fluxo de recurso permanente

para o setor habitacional, podendo desenvolver uma política autônoma com a implementação

de linhas programáticas próprias e diversificadas. Ao mesmo tempo, este Estado tem maior

resistência à adesão das políticas desenvolvidas pelo governo federal, como podemos verificar

no caso da adesão e implementação tardia do programa mencionado e na resistência

observada em utilizar os indicadores desenvolvidos pelo governo federal, como o déficit

habitacional, ignorado no PEH-SP, mesmo sendo o indicador base utilizado em todos os

outros planos habitacionais do país. Contudo, ao admitir a adesão ao SNHIS, este Estado tem

buscado assumir seu papel de coordenação intergovernamental induzindo e fomentando os

municípios a desenvolverem tanto ações de adesão ao Sistema, como de ações de produção

habitacional, mesmo que com recursos federais e estaduais, além de induzir algumas práticas

de relações intermunicipais.

Entretanto, como destaca Gonçalves (2009), ainda não está claro, dentro do desenho do

SNHIS, qual é exatamente o papel dos governos estaduais. A autora destaca, contudo, que aos

estados não cabe exatamente um único papel ou uma única forma de atuação, pois nas regras

previstas, por um lado, observa-se que os estados são os coordenadores do sistema no nível

estadual e que devem formular políticas, diagnósticos e planos, e criar seus conselhos e

fundos. Tendo, assim, tanto um importante papel de executor direto da política habitacional,

como um importante papel de indutor de ações e de coordenação do desenvolvimento

institucional nos municípios dentro de sua jurisdição. Por outro lado, ainda segundo

Gonçalves (2009), o SNHIS também prevê financiamento direto da União para os municípios

e, nesses casos, a política cabe diretamente ao governo local e a relação entre município e

governo federal independe do estado, tendo a coordenação federal na política que assumir um

importante papel, dado que os arranjos institucionais atuais podem gerar inúmeras situações,

seja de cooperação, competição, vazio ou sobreposição.

A pesquisa demonstrou que, dos anos 1940 aos 1980, o modelo de autoridade hierárquica foi

predominante. Dos anos 1980 aos 1990, no nível federal, predominou a autoridade

interdependente. Já no plano estadual, em especial São Paulo, o modelo da década de 1980

refletia o nível federal; contudo, não completamente, comportamentos que refletiam a

competição e cooperação entre os entes federativos coexistiram paralelamente e

permaneceram por mais duas décadas. Em meados de 2000, no nível federal, o modelo

relacional espelhava o dos estados: da autoridade interdependente e os de competição

juntamente com o de coordenação. Essas teorias contribuem para explicitar e delinear os

13

movimentos da política habitacional brasileira, pois corresponderam às peculiaridades

existentes em cada época; entretanto, os modelos relacionados não são suficientes para

apontar a intensidade dessas características, ou seja, em que medida ou grau a centralização

ou descentralização e a participação ou autonomia fiscal, por exemplo, se apresentaram.

14

Anexos

Figura 1: Quadro síntese das instituições, modelos de gestão e de relações intergovernamentais na política

pública habitacional federal (de 1946 até o período atual)

Fonte: autoria própria

Ano /

Período Instituição Gestão

Modelo de

Relacionamento

intergovernamental

A partir

de 1946

FCP – Fundo da Casa

Popular

Centralizada / Fragmentada:

interação do governo federal

(política habitacional) e

governo estadual (arrecadação

de recurso)

Hierárquica

A partir

de 1964

BNH – Banco Nacional

de Habitação

SFH – Sistema

Financeiro de Habitação

Centralizada (criação de órgão

subnacionais - COHAB’s e

outros – para execução da

política definida na esfera

federal)

Hierárquica

1988

SEAC – Secretaria

Especial de Habitação e

Ação Comunitária

Descentralizada: maior

iniciativa aos estados e

municípios – transição para

autonomia de estados e

municípios

Interdependente

1995

SEPURB – Secretaria de

Política Urbana

SEDU – Secretaria

Especial de

Desenvolvimento

Urbano

Descentralizada: ausência de

estratégia nacional / iniciativas

fragmentadas

Hierárquica

A partir

de 2004

Ministério das Cidades

PNH – Plano Nacional

de Habitação

SNH – Sistema Nacional

de Habitação

SNHMM – Sistema

Nacional de Habitação

de Mercado

SNHIS – Sistema

Nacional de Habitação e

Interesse Social

Descentralizada, democrática e

participativa; adesão dos entes

é voluntária

Hierárquica /

Cooperação e

Competição

Ano /

Período Instituição Gestão

Modelo de

Relacionamento

intergovernamental

A partir

de 1946

(meados

de 1950 e

1960)

Entidades criadas por

governos estaduais e

categorias profissionais

Centralizada: aplicação da

política habitacional

estabelecida pela União;

arrecadação do recurso junto

ao governo federal

Hierárquica

15

Figura 2: Quadro síntese das instituições, modelos de gestão e de relações intergovernamentais na política

pública habitacional do Estado de São Paulo (de 1946 até o período atual)

Fonte: autoria própria

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A partir

de 1970

COHAB’s e outros

órgãos

Centralizada: subordinação ao

governo federal

(operacionalização do SFH)

Hierárquica

A partir

de 1988

Criação de sistemas

estaduais

Descentralizada: atuação não

definida dentro do SFHI;

política pulverizada; efeitos:

desigualdades regionais;

adesão voluntária ao SFHIS

Interdependente /

Cooperação e

Competição

A partir

de 2008

Adesão ao SNHIS –

Sistema Nacional de

Habitação e Interesse

Social

Descentralizada, democrática e

participativa; Estado assume

uma postura de coordenação

intergovernamental em relação

aos municípios

Hierárquica /

Cooperação e

Competição

16

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i A política habitacional no Brasil só foi verdadeiramente estruturada em 1964 com a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH). Em 1946, antes do BNH, houve a criação da Fundação Casa Popular (FCP) que propunha uma visão de política nacional de habitação, mas que, devido à falta de recursos e às regras de financiamento então estabelecidas, conseguiu desenvolver apenas a produção de pequeno número de unidades habitacionais populares, mas sem promover uma política estruturada de habitação. ii A Caixa Econômica Federal (CEF) tornou-se o agente financeiro do SFH, absorvendo algumas das atribuições, pessoal e acervo do BNH. O Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (MDU), que havia incorporado as funções do Ministério do Interior em 1985, foi transformado em Ministério da Habitação, Urbanismo e Desenvolvimento Urbano (MHU), ao qual também inicialmente se vinculou a CAIXA. Em 1988, o MHU foi transformado em Ministério da Habitação e do Bem-Estar Social (MBES) ficando responsável pela política habitacional, mas desvinculado da política de saneamento que foi transferida para o Ministério da Saúde. O MBES foi extinto em 1989 e a CAIXA passou a ser vinculada ao Ministério da Fazenda, tendo a formulação da política habitacional sido atribuída novamente ao Ministério do Interior. Em 1990, foi criado o Ministério da Ação Social (MAS), posteriormente transformado em Ministério do Bem-Estar Social, onde passaram a funcionar as Secretarias Nacionais de Habitação e Saneamento. No Governo Fernando Henrique Cardoso, a Secretaria Nacional da Habitação foi subordinada ao Ministério do Planejamento e Orçamento e foi instituída a Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano, vinculada à presidência da República, que se responsabilizou pelas instituições ligadas à política habitacional até 2003, quando foi criado o Ministério das Cidades, no qual foram alocadas a Secretaria Nacional de Habitação (Mcidades, 2007; Arretche, 2000; Cymbalista, 2005). iii A Constituição Brasileira de 1988 faz referência à habitação em cinco diferentes artigos, nos quais determina competências comuns à União, aos Estados e Municípios, como: “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos” e “promover programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”.