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Reações dos contribuintes às despesas com os “expostos”. O caso do
município da Póvoa de Lanhoso (1837-1857)1
José Abílio Coelho
(Lab2PT – Universidade do Minho)
Realidade bem conhecida na sociedade europeia da Idade Média, quando muitas
cidades possuíam já instalações destinadas ao seu recolhimento e educação2, o
fenómeno dos expostos cresceu muito a partir dos séculos XV-XVI, sobretudo nos
países de tradição católica e na Rússia, tendo atingido o seu pico durante a centúria de
setecentos3. Madrid registou entre 1586 e 1700 a entrada de mais de 55.000 crianças nas
suas inclusas, Paris viu subir de 500 para 7.000 o número anual de expostos acolhidos
entre 1660 e 1770, enquanto Milão, entre 1695 e 1843, registou o internamento de mais
de 180.000 destas crianças4. Rheinheimer calcula que, em meados do século XIX, ainda
houvesse em território europeu cerca de meio milhão de enjeitados a viver sob a
responsabilidade de instituições a eles destinadas5.
Em Portugal a questão não diferiu muito do que se passou especialmente na Europa
do Sul6 e até em territórios de além-Atlântico sob administração portuguesa e
espanhola7, mantendo-se o número de enjeitados elevadíssimo até meados do último
quartel do século XIX8, para só então começar a diminuir9.
1 Comunicação apresentada no Seminário Internacional “Do silêncio à ribalta: os resgatados das margens da história
(séculos XVI-XX), Braga, Universidade do Minho, 28 e 29 de maio de 2015, no prelo. 2 La Roncière, Charles de, “O lugar dos filhos”, in Ariès, Philippe; Duby, Georges, História da Vida Privada, Lisboa,
Edições Afrontamento, p. 224; Araújo, Maria Marta Lobo de, “Niños pobres en Portugal: representaciones y prácticas
de asistencia (siglos XVI-XIX)”, in Núñez Roldán, Francisco (dir.), La Infancia en España y Portugal (Siglos XVI-
XIX), Madrid, Sílex Ediciones, 2012, p. 30. 3 Rheinheimer, Martin, Pobres, mendigos y vagabundos. La supervivencia em la necesidad, 1450-1850, Madrid,
Siglo XXI de España Editores, 2008, p. 73-75. 4 Rheinheimer, Martin, Pobres, mendigos y vagabundos. La supervivencia em la necesidad, 1450-1850…, p. 73. 5 Rheinheimer, Martin, Pobres, mendigos y vagabundos. La supervivencia em la necesidad, 1450-1850…, p. 73. 6 Para um melhor conhecimento sobre expostos e pobreza na infância em Portugal ler, sobretudo Roque, João
Lourenço, Classes populares no distrito de Coimbra no século XIX (1830-1870). Contributo para o seu estudo,
Coimbra, Faculdade de Letras, 1982, vol. I, t. II, policopiado; Sá, Isabel dos Guimarães, “A Casa da Roda do Porto e
o seu funcionamento (1710-1780), separata da Revista da Faculdade de Letras – História, II série, vol. II, Porto,
1985, pp. 161-199; Sá, Isabel dos Guimarães, “A Assistência à Infância no Porto do Século XIX: Expostos e
Lactados”, in Cadernos do Noroeste, vol. 5 (1-2), 1992, pp. 179-190; Maria Antónia, “Os pobres e a assistência
pública”, in Mattoso, José (dir.), História de Portugal, vol. 5, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 501-515;
Simões, João Alves, Os Expostos da Roda de Góis. 1784-1841, dissertação de mestrado em história contemporânea,
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999; Reis, Maria de Fátima, Os Expostos de Santarém. A Acção
Social da Misericórdia (1691-1710), Lisboa, Edições Cosmos, 2001; Fonte, Teodoro Afonso da, No limiar da honra
e da pobreza: a infância desvalida e abandonada no Alto Minho (1698-1924), Braga, Universidade do Minho, dis. de
doutoramento policopiada, 2004; Araújo, Maria Marta Lobo de, “Niños pobres em Portugal: representaciones y
prácticas de assistencia (siglos XVI-XIX)”, in Núñez Roldán, Francisco, La Infancia en España y Portugal (Siglos
XVI-XIX)…, pp. 29-42; Lopes, Maria Antónia, “Nacer y sobrevivir: La peligrosa infancia en Portugal durante los
siglos XVIII y XIX” in Núñez Roldán, Francisco, La Infancia en España y Portugal (Siglos XVI-XIX)…, pp. 43-68. 7 Para conhecer a questão dos expostos em Nueva España, hoje México, leia-se Lorenzo Gutiérrez, María del Pilar;
García Corzo, Rebeca Vanesa, “Discursos y práticas assistenciales acerca del abandono y la exposición infantil en la
Nueva Galicia entre la Colónia y la Independencia”, in Araújo, Maria Marta Lobo de; Ferreira, Fátima Moura;
2
A diferença é que, ao contrário do que acontecia com a grande maioria dos restantes
países sul-europeus, onde particulares e Igreja tinham enorme relevância no custeio da
assistência às crianças abandonadas, em Portugal, com a promulgação das Ordenações
Manuelinas, no século XVI, nas cidades, vilas ou lugares onde não existissem hospitais
ou albergarias que deles cuidassem à custa dos seus bens10 garantir essa despesa tornou-
se responsabilidade dos municípios11. Deviam estes criar os enjeitados através das suas
rendas ou, não as tendo suficientes para tal, lançar fintas “por aquellas pessouas que nas
fintas, e encarreguos do Concelho ham de paguar”12. O encargo manteve com as
Ordenações Filipinas (1603), passando, consoante as misericórdias se foram
disseminando pelo país, a ser por estas assegurado, embora “nunca os seus
compromissos a isso as obrigassem” 13. Pelo que, mesmo cabendo a estas a logística do
apoio, continuaram a ser os municípios os principais responsáveis pelo pagamento14.
Para Maria Antónia Lopes, apesar da assunção da assistência aos expostos por parte de
muitas santas casas ser realidade bem documentada, foram as câmaras que, de modo
quase generalizado, assumiram o pagamento do serviço15, facto também realçado por
Isabel Sá ao anotar que nas principais cidades se estabeleceram contratos entre as
câmaras e as misericórdias através dos quais, sendo da responsabilidade das santas casas
a administração dos hospitais dos expostos, continuava o pagamento das despesas,
consoante as disposições legais, a ser suportado pelos municípios16. A ordem-circular de
Pina Manique, em 1783, que obrigou à criação de estabelecimentos destinados ao
acolhimento de enjeitados em todos os concelhos do reino onde idêntica estrutura ainda
não existisse, veio confirmar, uma vez mais, a responsabilidade das corporações
Esteves, Alexandra, Pobreza e Assistência no Espaço Ibérico (Séculos XVI-XX), Braga, CITCEM-Universidade do
Minho, 2010, pp. 69-81. Para a realidade brasileira pode ler-se Franco, Renato, A Piedade dos Outros. O abandono
de recém-nascidos em uma vila colonial, século XVIII, Rio de Janeiro, FGV Editora, 2014, pp. 101-234. 8 Em 1862/1863 foram abandonadas em Portugal 16.294 crianças. Cf. Lopes, Maria Antónia, “Nacer y sobrevivir: La
peligrosa infancia en Portugal durante los siglos XVIII y XIX” in Núñez Roldán, Francisco, La Infancia en España y
Portugal (Siglos XVI-XIX)…, p. 58. 9 Abreu, Laurinda, “Misericórdias, rodas e hospitais: a herança do Antigo Regime”, in Reis, Bernardo (coord.), 500
anos de História das Misericórdias. Atas do Congresso Internacional, Braga, Santa Casa da Misericórdia de Braga,
2014, pp. 109-110. 10 Sobre os antecedentes das Ordenações Manuelinas na criação dos enjeitados, pode ler-se Abreu, Laurinda, “As
crianças abandonadas no contexto da institucionalização das práticas da caridade e da assistência, no século XVI”, in
Araújo, Maria Marta Lobo de; Ferreira, Fátima Moura, A infância no universo da Península Ibérica (sécs. XVI-XIX),
Braga, Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, 2008, pp. 31-49. 11 Lopes, Maria Antónia, Protecção Social em Portugal na Idade Moderna, Coimbra, Imprensa da Universidade de
Coimbra, 2010, pp. 75-76. 12 Odenações Manuelinas, Livro I, tit. LXVII, 10. 13 Lopes, Maria Antónia, Protecção Social em Portugal na Idade Moderna…, p. 76. 14 Lopes, Maria Antónia, Protecção Social em Portugal na Idade Moderna…, p. 76. 15 Lopes, Maria Antónia, “As mulheres e as famílias na assistência aos Expostos. Região de Coimbra (Portugal),
1708-1839”, Caderno Espaço Feminino, Uberlândia, Minas Gerais, vol. 26, nº 2, 2013, p. 291. 16 Sá, Isabel dos Guimarães, “Abandono de Crianças, Infanticídio e Aborto na Sociedade Portuguesa Tradicional
através das Fontes Jurídicas”, Penélope: fazer a história, novembro de 1998, p.78.
3
municipais no pagamento das custas através das suas rendas ou, na falta delas, pelo
“cabeção das sizas”17.
Com a afirmação do Liberalismo, a partir de meados da década de 1830, algumas
alterações, como veremos, foram introduzidas na administração da assistência aos
enjeitados, muito embora o pagamento das despesas se mantivesse “á custa de todas as
Municipalidades”18.
Situado em pleno coração do baixo Minho, também o concelho rural da Póvoa de
Lanhoso teve na sua câmara municipal o suporte para a criação de muitas centenas,
talvez mesmo milhares de enjeitados ao longo de todo o século XIX. Fiscalizados pelos
órgãos administrativos do distrito, os orçamentos anuais destinados à assistência eram
altíssimos, significativamente mais elevados que os chamados orçamentos gerais, isto é,
aqueles com que eram sustentadas todas as restantes despesas concelhias. Em
contrapartida, os rendimentos fixos do município eram muito baixos, tornando-se
sempre insuficientes para cobrir as elevadas despesas com a Roda, o que ocasionava
elevados défices ano após ano. Deitando mão ao único recurso que a lei permitia para
fazer face ao problema, obrigava-se a câmara ao lançamento de derramas e outras
contribuições, pela forma estabelecida no código administrativo19, o que desagradava
não apenas às vereações, como especialmente aos contribuintes, que se sentiam
injustiçados com o pagamento de tão elevados custos.
Neste artigo vamos tentar entender como a câmara e aqueles que eram chamados a
pagar reagiam a este repetido método de financiamento, ao longo do vinténio 1837-
1857.
As Casas da Roda
A escassa documentação existente no arquivo do município para período anterior ao
século XIX não nos permite saber em que data a Póvoa de Lanhoso foi dotada de casa
da Roda. Diogo Inácio de Pina Manique, Intendente Geral da Polícia, perseguindo uma
realidade que fazia convergir os “ideais da solidariedade cristã e uma nova mentalidade
populacionista” destinada “a promover o povoamento do reino e os seus vastos 17 Apud Sá, Isabel dos Guimarães, “Abandono de Crianças, Infanticídio e Aborto na Sociedade Portuguesa
Tradicional através das Fontes Jurídicas”…, p.78. Sobre a situação dos enjeitados noutros países da Europa, pode ler-
se Lopes, Maria Antónia, “As mulheres e as famílias na assistência aos Expostos. Região de Coimbra (Portugal),
1708-1839”…, p. 239. 18 Collecção de Leis e outros documentos officiais publicados desde 10 de Setembro até 31 de Dezembro de 1836, 6ª
série, Imprensa Nacional, Lisboa, 1837, pp. 11-12. 19 Codigo Administrativo Portuguez, Lisboa, Imprensa da Rua de S. Julião, 1837, pp. 24-33.
4
territórios ultramarinos”, ordenou, em maio de 1783, que em todas as vilas onde não
existissem já locais a esse fim destinados, fosse instituído um recolhimento destinado às
crianças enjeitadas20. O concelho a que nos referimos não possuía à data nem hospital,
nem misericórdia, dos quais só viria a dispor no século XX. Desconhecemos, mesmo
assim, se a ordem de Pina Manique foi cumprida de imediato ou se, como ocorreu
noutros concelhos, foi retardada21. A sua existência só se encontra confirmada em 1810,
data em que, num livro avulso existente no arquivo municipal, se regista um gasto de
513.056 réis aplicados, respetivamente, no pagamento do aluguer do edifício e
ordenados aos funcionários da Roda, compra de enxovais, “gratificações” a três
cirurgiões dos órfãos e a dois sacerdotes e com a retribuição mensal a 84 amas22. A
insuficiência documental não nos permite conhecer o valor do orçamento geral da
câmara para esse mesmo ano, de modo a podermos aferir a percentagem gasta com os
enjeitados mas, olhando aos rendimentos do concelho para quase trinta anos depois, de
que falaremos mais à frente, supomos que seria bastante elevada.
Com a implantação do Liberalismo, uma década volvida, e apesar de todos os
avanços e recuos, das revoltas e contrarrevoltas que trouxeram o território em
sobressalto até ao início da segunda metade da centúria23, pretendeu o Estado conhecer
e avaliar a verdadeira situação das organizações assistenciais existentes e quem eram os
utentes dos seus apoios. Com essa finalidade lançou, entre 1821 e 1827, um conjunto de
inquéritos às agremiações de todo o país. Laurinda Abreu, ao trazer a público essa
informação, refere que apesar da grande quantidade de instituições então existentes em
todo o continente, entre as quais se destacavam as misericórdias, os hospitais e as casas
da Roda, ficava claro, pela leitura dos inquéritos que chegaram a Lisboa, que a situação
financeira da maioria destes estabelecimentos era de pobreza, quando não mesmo de
pauperismo extremo24. E que a questão dos enjeitados era então identificada como uma
20 Fonte, Teodoro Afonso da, No limiar da honra e da pobreza: a infância desvalida e abandonada no Alto Minho
(1698-1924)…, p. 129. 21 É sabido que a ordem de Pina Manique não foi de imediato executada em todos os municípios do país como
aconteceu, por exemplo, no de Viana do Castelo, que em 1786 era ainda questionado pela intendência de polícia
sobre as razões do incumprimento da ordem de 1783. Cf. Fonte, Teodoro Afonso da, No limiar da honra e da
pobreza: a infância desvalida e abandonada no Alto Minho (1698-1924)…, p. 142. Sobre este tema ver ainda Abreu,
Laurinda, Pina Manique. Um Reformador no Portugal das Luzes, Lisboa, Gradiva, 2013. 22 No primeiro semestre de 1810 foram pagos subsídios a um total de 84 amas que auferiram entre 140 réis, por 26
dias de aleitamento de uma criança, entregue a 1 de janeiro e que faleceu a 26 do mesmo mês; e 8.760 réis, a uma
outra que amamentou entre 1 de janeiro e 30 de setembro do mesmo ano. Arquivo Municipal da Póvoa de Lanhoso
(doravante AMPL), Livro das despesas com os expostos referentes aos anos, 1810-1833, fls. 2-12. 23 Sobre o processo de implantação do Liberalismo em Portugal, sobretudo desde o pronunciamento de 1820 até ao
início da Regeneração que, de algum modo, iniciou a pacificação do país, veja-se sobretudo Bonifácio, Maria de
Fátima, A Monarquia Constitucional. 1807-1910, Lisboa, Texto Editores, 2010, pp. 19-63. 24 Abreu, Laurinda, “Misericórdias, rodas e hospitais: a herança do Antigo Regime”, in Reis, Bernardo (coord.), 500
anos de História das Misericórdias. Atas do Congresso Internacional…, pp. 101-113.
5
das mais preocupantes, dado que, vindo o número de crianças lançadas à caridade
pública a crescer desde finais do século XVIII, a situação havia piorado na centúria
seguinte fruto “do agravamento das condições de vida nos anos iniciais de
Oitocentos”25, primeiro com as invasões napoleónicas e a perda dos negócios do Brasil,
e, a partir de 1822, com a própria emancipação daquele território, facto que lançou
Portugal numa situação financeira ainda mais deplorável26. Pelas respostas aos referidos
inquéritos, sabemos que ao longo da década de 1820 as contas da câmara municipal da
Póvoa de Lanhoso chegaram a atingir um saldo negativo que ultrapassou os cinco
contos de réis, só no tocante a gastos com os expostos27.
Após guerra civil (1832-1834), tentaram os governos liberais, através da
promulgação de um conjunto de leis visando a administração pública portuguesa, trazer
à assistência novas regras, sobretudo pela fiscalização da sua execução por parte de
instituições que, como a Igreja, particulares, misericórdias e outras confrarias e
irmandades a vinham praticando, mas visando também torná-la, “em grande medida,
tarefa do Estado”28. Na questão dos expostos, o decreto de 19 de setembro de 1936 veio,
em certa medida, alterar a herança do Antigo Regime. Começando por reconhecer “o
estado lastimoso a que se acham reduzidas as diversas rodas de Expostos em todo o
Reino” e pretendendo estancar “a horrível mortandade destas innocentes victimas de
abandono, a quem desde os primeiros momentos da sua existência falta o amparo e
amor maternal”, eram retiradas às misericórdias (com exceção da de Lisboa) as
competência que haviam tido na matéria, e transferidas para os órgãos distritais a
superintendência e fiscalização da assistência, ficando a pertencer às juntas de distrito a
arbitragem da contribuição dos municípios para os enjeitados, tal como a decisão sobre
os locais onde as Rodas deviam e podiam existir ou ser instaladas de novo. Não
obstante o apertado controle das contas que a partir dessa data a magistratura distrital
assumiria, o pagamento das despesas inerentes aos enjeitados mantinha-se por conta dos
municípios29. Aprovado três meses volvidos, o primeiro código administrativo
português contemplava já as disposições deste decreto, reiterando às câmaras os custos
25 Abreu, Laurinda, “Misericórdias, rodas e hospitais: a herança do Antigo Regime”, in Reis, Bernardo (coord.), 500
anos de História das Misericórdias. Atas do Congresso Internacional…, pp. 109-110. 26 Sobre a independência do Brasil e seus efeitos em Portugal pode ler-se Proença, Maria Cândida, A Independência
do Brasil, Lisboa, Edições Colibri, 1999. 27 Abreu, Laurinda, “Misericórdias, rodas e hospitais: a herança do Antigo Regime”, in Reis, Bernardo (coord.), 500
anos de História das Misericórdias. Atas do Congresso Internacional…, p. 111. 28 Lopes, Maria Antónia, “Os pobres e a assistência pública”, in Mattoso, José (dir.), História de Portugal, vol. 5…,
p. 501. Para outras épocas, consultar Matos, Sebastião, “Os Expostos de Barcelos em Finais do Antigo Regime”,
População e Sociedade, nº 2, Porto, Centro de Estudos da População e Família, 1996, pp. 191-206. 29 Collecção de Leis e outros documentos officiais publicados desde 10 de Setembro até 31 de Dezembro de 1836…,
pp. 11-12.
6
da criação e educação dos expostos e o estabelecimento das regras que nas Rodas de
cada concelho se deviam guardar30.
Os custos dos expostos
Para se entender o peso do custo dos expostos nos orçamentos do município da
Póvoa de Lanhoso é necessário que percebamos de que recursos este dispunha e quais
as suas despesas obrigatórias e eventuais. Analisemos, com algum pormenor, as contas
de 1838, 1843 e 1857.
Quanto aos primeiros, dispunha a câmara, em 1838, de 126.500 réis pelo aforamento
dos bens do concelho, 18.000 réis pelo rendimento do afilamento dos pesos e medidas e
16.000 réis do aluguer dos terrenos durante a romaria de Nossa Senhora de Porto d’Ave.
Somadas, as receitas municipais totalizavam 160.500 réis. No respeitante a despesas
obrigatórias consistiam estas no pagamento aos seus empregados e a alguns dos que
desempenhavam cargos de nomeação política, nomeadamente ao administrador do
concelho, bem como rendas, impostos e obras inadiáveis. No caso dos empregados, em
1838, o maior salário era o do secretário da câmara, que auferia um vencimento anual
de 96.000 réis, seguindo-se-lhe os do escriturário, do oficial e de um substituto deste,
com salários de 30.000 réis, 16.000 réis e 8.000 réis, respetivamente. O administrador
do concelho dispunha não de um vencimento fixo, mas de uma “gratificação arbitrada”
pela câmara que variava de ano para ano: em 1938 a gratificação anual foi de 24.000
réis. Por fim, somavam-se às despesas com remunerações as do aluguer de espaços, os
serviços da administração do concelho que no mesmo ano atingiram os 12.000 réis; a
terça nacional paga ao Estado, que ascendeu a 53.333 réis – um terço dos 160.500 réis
acima somados como receitas do município – e, por fim, as “despesas eventuais”, que
em geral serviam para custear as chamadas “obras públicas”, uma ou duas por ano, às
vezes nenhuma, que podia ser a reparação de uma ponte de madeira que ruiu sob os
efeitos da invernia, o corte de um penedo para aproveitamento e aplicação do granito
extraído na construção de um muro divisório ou de suporte, ou a reparação do telhado
ou da pintura do paço do concelho. A verba destinada a obras estava fixada em 27.080
réis e destinou-se nesse ano à reparação das portas da cadeia, há muito solicitada pelo
juiz ordinário31. Subtraindo às receitas de 160.500 réis as despesas correntes de 266.413
30 Codigo Administrativo Portuguez…, 1837, pp. 22, 28. 31 AMPL, Livro de atas da câmara, 1838, fls. 93-96v.
7
réis, ficava a câmara com um défice de 105.913 réis. Não obstante o saldo ser já
negativo, havia ainda que somar às despesas gerais os custos com a assistência, que
constavam de um orçamento separado. Entre custos a efetuar e dívidas atrasadas atingia
este a soma de 1:215.965 réis32. A solução encontrada, face ao perigo de “muitas dessas
inocentes vítimas morrerem por não haver já ninguém que as queira criar por falta de
algum pagamento”, passou pelo lançamento de uma derrama imediata aos comerciantes
da terra, no valor de 600.000 réis, tornando-se ainda necessário colher as derramas
atrasadas, que seriam exclusivamente aplicadas no pagamento dos custos da Roda33. O
que levou o presidente da câmara a fazer lavrar em ata o seu protesto, em moldes bem
exemplificativos do sentir de toda a corporação:
“A Roda dos expostos deste concelho, contra o saudavel e filantropico fim da
sua instituição, não obstante diligencias empregadas, ainda se acha sobrecarregada
com o número de crianças que hão aumentado consideravelmente a divida que se
apresenta; aleva maes e pais, vivendo em continua prostituição [a] não criarem à
sua custa como perante a lei são obrigados, ficando assim mais desembaraçados
para continuarem nas mesmas prostituições, chegando muitas vezes essas maes
indignas de tal nome fiadas no patronato de seus amazios a zombarem das
providências das autoridades quando as obrigam a criarem os seus filhos (…)”34.
Apesar dos muitos esforços da câmara no sentido de o conseguir, em 1843 a situação
não tinha melhorado. A receita do município havia subido para 180.100 réis, mas a
despesa tinha aumentado também fortemente, para os 662.446 réis. Entre estas
mantinham-se os salários aos empregados, algumas gratificações, nomeadamente ao
administrador e a três mestres do ensino primário, juntando-se-lhes a “propina dos
médicos de Coimbra” e alguns pagamentos em atraso. A diferença entre a receita e a
despesa mostrava um défice de 482.346 réis, que devia ser compensado com uma
derrama de 550.00 réis35. Era contudo necessário juntar a este saldo negativo as verbas
referentes ao dispêndio com os enjeitados pois, apesar “do louvável zelo com que a
Câmara anterior se tinha havido na sua administração”, continuavam as amas com
enorme atraso nos pagamentos, o que vinha dando lugar “a grandes clamores”. Entre o
32 AMPL, Livro de atas da câmara, 1838, fls. 93-96v. 33 AMPL, Livro de atas da câmara, 1838, nº 1, fl. 57-59. 34 AMPL, Livro de atas da câmara, 1838, nº 1, fl. 57-59. 35 Rendimento dos aforamentos de bens do Concelho 134.600 réis; rendimento do afilamento, 25.500 réis; assentos e
lugares na romaria de N. Sr.ª Porto d’ Ave, 20.000 réis. Total: 180.100 réis. AMPL, Livro de atas da câmara, 1843,
fls. 87-91.
8
défice previsto para o ano e os custos com a assistência, ficou assente que a derrama a
lançar teria que ser, não de 550.000 réis, mas 1:232.346 réis36.
Para além de uma contribuição direta sobre os proprietários que deveria ser
deliberada pelo conselho municipal, foi então decidido lançar um imposto de 5 réis em
cada arrátel de carne de vaca fresca que se cortasse e consumisse nos açougues e talhos
do concelho pelo resto do ano, outros 5 réis por cada arrátel de marrão e 960 réis por
cada pipa de vinho que se vendesse no lugar de Porto d’ Ave e suas imediações, entre
27 de agosto até 17 de setembro, período em que naquela local da freguesia de Taíde
tinha lugar a romaria de Nossa Senhora do Porto37.
A situação repetiu-se ano após ano e, em 1857 o défice mantinha-se elevado. Para
uma receita total 284.165 réis, ainda referentes a foros, ao aluguer de terrenos na
invocada romaria e pela aferição de pesos e medidas, encontrava-se orçamentada uma
despesa corrente de 1:256.683 réis à qual se somava uma outra, de 1:543.651 destinada
“à sustentação dos expostos”. Apesar de, neste ano, a câmara ter, contra o que vinha
acontecendo anteriormente, programado um investimento de 400.000 réis em obras
públicas, nomeadamente os “necessários reparos” de algumas estradas, o orçamento
geral continuava a ser menor que o destinado aos expostos. Pelo que, e concluindo uma
vez mais que os rendimentos do concelho não eram suficientes para acorrer a toda a
despesa, foi decidido lançar um imposto sobre a venda de cada arrátel de carnes verdes,
que a câmara calculou poder atingir ao longo do ano 157.060 réis. A este somar-se-ia a
chamada “contribuição direta de repartição”, calculada em 2:244.309 réis38. Subtraída à
despesa total a receita calculada, voltava a verificar-se um défice, este ano de apenas
114.800 réis, bem menos que os muitos contos de réis de que a câmara falava na década
de 1830. Mas apesar deste aparente equilíbrio nas contas, continuava a vereação a
lamentar-se do défice que trazia acumulado de anos anteriores, prejudicado sempre pelo
retardamento com que as verbas de impostos e taxas entravam nos seus cofres.
Combate à exposição
A questão do custeio dos expostos exasperou sucessivas câmaras. O défice anual da
assistência ultrapassou, como já tivemos oportunidade de ver, cifras que andaram, quase
sempre, entre um conto e um conto e quinhentos mil réis, que equivaliam a várias vezes 36 AMPL, Livro de atas da câmara, 1843, fls. 87-91. 37 AMPL, Livro de atas da câmara, 1843, fls. 87-91. 38 AMPL, Livro de atas da câmara, 1857, fls. 166v-167v.
9
as receitas do município39. Uma das maiores, senão mesmo a maior preocupação das
vereações para o período em estudo foi encontrar o dinheiro para calar o constante
“clamor” das amas, que faziam ao município ameaças sucessivas de entregarem as
crianças que tinham a seu cuidado se lhes não fosse atempadamente pago o estipulado40.
Nos períodos de maior exposição, chegaram a registar-se anualmente pagamentos a
mais de uma centena “mães de leite” e de criação vendo-se, por muitas ocasiões, a
câmara obrigada a distribuir as crianças por nutrizes residentes noutros concelhos, por
não haver na terra oferta suficiente41. No todo nacional, estas eram, no século XIX,
como o haviam sido nas centúrias anteriores, as primeiras a ver os seus salários
sacrificados quando as dificuldades se faziam sentir42, como aconteceu na Póvoa de
Lanhoso em 1847, quando as amas estiveram sem os seus vencimentos durante mais de
18 meses43.
Impotente para equilibrar os gastos, sobre os quais lançava em ata repetidos
lamentos, a câmara esforçava-se por encontrar formas de suster tão elevado número de
exposições, promovendo um apertado controlo sobre as mulheres grávidas que podiam
vir a abandonar os filhos após o parto. Convocadas à presença do administrador do
concelho para confessarem a gravidez, eram então obrigadas, sob juramento registado
em livro próprio, a prometer que criariam os filhos que esperavam e que jamais os
abandonariam à Roda44. Também os párocos eram chamados a colaborar no processo,
devendo, mensalmente, fazer chegar à administração uma relação de todas as grávidas
das suas paróquias45. Estas, quase invariavelmente designadas na documentação por
“prostitutas”46, eram, sempre que se mostrassem desobedientes, acusadas e apresentadas
a “correição” ao tribunal da comarca47. Em razão desta apertada fiscalização, muitas
delas, para se furtarem a punições e ao estigma social, iam, após o parto colocar os
39 AMPL, Livro de atas da câmara, 1839, fls. 89-91v; Idem, Livro de atas da câmara, 1840, fl. 141. 40 AMPL, Livro de atas da câmara, 1840, fls. 165-165v; Idem, Livro de atas da câmara, 1842, fl. 73; Idem, Livro de
atas da câmara, 1842, fl. 53v; Idem, Livro de atas da câmara, 1842, fl. 87-91. 41 AMPL, Livro de atas da câmara, 1845, fl. 40. 42 Abreu, Laurinda, “Misericórdias, rodas e hospitais: a herança do Antigo Regime”, in Reis, Bernardo (coord.), 500
anos de História das Misericórdias. Atas do Congresso Internacional …, p. 111. 43 AMPL, Livro de atas da câmara, 1847, fl. 58. 44 AMPL, Livro de atas da câmara, 1840, fl. 138v. 45 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fls. 189v.190. As juntas de paróquia, cujos presidentes, pelo código de
1836 eram eleitos e pelo de 1842 passaram a ter como presidentes natos os párocos, tinham também atribuições
afixadas pelo código administrativo na assistência aos expostos. O código de 1836 obrigava-as a “velar pelos
Expostos, já mandando pôr na Roda os que aparecerem de novo, já fiscalizando seu tratamento em casa das amas,
dando parte das faltas que acharem, ás Câmaras Municipaes dos Concelhos, ás quaes está cometida a administração”
dos mesmos, enquanto o de 1842 refere apenas que cabe às juntas “fiscalizar a criação dos expostos, informando a
Camara municipal dos abusos que notar. Codigo Administrativo Portuguez…, 1836, p. 40; Codigo Administrativo
Portuguez…, 1842, p. 74. 46 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 2v. 47 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 3v.
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filhos em Rodas de concelhos vizinhos os quais, quando conseguiam identificar as
expositoras, imputavam os custos ao município de onde a mãe era originária48. Em
contrapartida ao castigo, àquelas que se declarassem mães de crianças expostas,
prometia a câmara guardar “todo o segredo nas declarações para evitar
comprometimentos” e entregar um prémio por cada exposto cuja filiação se
verificasse49.
Para conseguirmos fazer ideia do número dos expostos ao findar a primeira metade
do século XIX, contabilizámos os assentos de batismo da paróquia de Fontarcada, na
década de 1841-1850. A opção por Fontarcada aconteceu não apenas pelo facto desta
paróquia, durante o século XIX, ser a mais populosa de todo o concelho, com mais de
1.500 habitantes, mas também por, não sendo oficialmente “cabeça de concelho” (a
freguesia “cabeça de concelho” era Lanhoso) ser na realidade aquela onde estavam
sedeados a câmara, a administração concelhia e o tribunal da comarca. Era ainda nesta
freguesia que, durante a centúria de oitocentos, habitava grande parte das elites da
terra50.
Conforme se pode observar pelo quadro supra, entre 1841-1859, foram batizadas na
identificada paróquia 610 crianças, contabilizando-se, entre estas, o expressivo número
48 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 23. 49 Em 1841 o prémio era de 2.400 réis. AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 3. 50 Bastos, Paixão, No Coração do Minho (A Póvoa de Lanhoso Histórica e Ilustrada), Braga, Imprensa Henriquina a
Vapor, 1907, pp. 28-35.
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de 31% de enjeitados para 69% não enjeitados51. Parece-nos ainda digno de menção o
facto de em 1846 se ter registando a mais elevada percentagem de expostos: 45% do
total dos batizados52.
O ano de 1846 não foi, na Póvoa de Lanhoso, um ano qualquer, mas aquele em que
teve lugar no concelho o levantamento popular a que foi dado o nome de revolta da
Maria da Fonte, no qual as mulheres foram as principais ativistas. Fontarcada foi, por
sua vez, a freguesia em que os motins assumiram caráter mais relevante, não apenas
porque ali habitava o administrador concelhio, que as mulheres visavam nos seus
protestos, mas também por ser a sede da cadeia, que as revoltosas assaltaram53.
Camilo Castelo Branco, ao referir-se, no seu romance histórico “Maria da Fonte” às
revoltosas de 1846, escreveu:
“A turba das sequazes da Maria da Fonte nunca se arrostou com a tropa; a sua
façanha, além das fogueiras dos cadastros, foi dar umas pàzadas às costas de um
juiz ordinário, e investirem atrás de um escrivão obeso. (…). Dos documentos
coevos não se liquida mais nada para os Anais do século XIX; porém, o rodeiro dos
enjeitados da Póvoa poderia completar os fastos da corja que, durante os
armistícios, ia fecundando pequenitos heróis (…)”54.
Dado a identificada obra do escritor de Seide ter sido sempre catalogada como uma
genial ficção com propósitos políticos, cabe perguntar-se o elevado número de expostos,
os seus custos para o município e, por arrastamento, para as classes mais poderosas,
poderá ter tido algum reflexo na génese do movimento? A “Maria da Fonte” ficou para
a história como uma revolução feita por mulheres, cujo respaldo foi assegurado por
homens55. Da mesma forma que sempre se invocou como razão única para o
descontentamento a criação das matrizes prediais e as alterações à lei da saúde que
51 A complexidade do processo e a procura de absoluto sigilo podia obrigar a grande mobilidade por parte de quem
expunha pelo que, parte destas crianças, podiam não ser originárias de Fontarcada. Mas também acreditamos que
outras, aqui nascidas, fossem pelos mesmos motivos batizadas noutras paróquias. 52 ADB, Livro de assentos de Batismo da paróquia de Fontarcada, 1833-1847, fls. 108v.-195v; ADB, Livro de
Assentos de Batismo da paróquia de Fontarcada, 1847-1855, fls. 8-45v. 53 Coutinho, Azevedo, História da Revolução da Maria da Fonte. Relato dos primeiros acontecimentos da Primavera
de 1846, escritos quarenta anos depois, sob orientação de um contemporâneo da Revolução, Póvoa de Lanhoso,
Editorial Ave Rara, 1997, pp. 28-45. 54 Branco, Camilo Castelo, Maria da Fonte, Lisboa, Ulmeiro, 1993, pp. 44-45. A primeira edição deste romance
histórico, que não o era mais que isso já na própria ideia do romancista, como anotou Hélia Correia no prefácio da
edição aqui citada (p. 9), não deixa, mesmo assim, de retratar de perto uma época, é de 1884. 55 Coutinho, Azevedo, História da Revolução da Maria da Fonte. Relato dos primeiros acontecimentos da Primavera
de 1846, escritos quarenta anos depois, sob orientação de um contemporâneo da Revolução…, pp. 35-36.
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levaram ao sepultamento dos cadáveres fora das igrejas56. Conhecendo-se os elevados
valores que os poderosos da terra se viam obrigados a desembolsar para a Roda, parece-
nos verosímil que também esta questão possa ter interferido na movimentação das
revoltosas.
O aumento do número dos expostos no período revolucionário não foi, aliás,
exclusivo do concelho da Póvoa de Lanhoso. Henrique Rodrigues identifica-o também
para o Alto Minho, com picos de proeminência de entradas de enjeitados na Roda
aquando da crise sociopolítica da Patuleia, classificando-a como “o período de maior
fluxo de abandonos” ao longo da centúria de oitocentos57.
O descontentamento dos pagadores
No vinténio estudado, as derramas e impostos lançados pela câmara para cobrir os
custos dos enjeitados nunca foram bem aceites nem pelas vereações, que com
frequência se escudavam na “repulsa dos povos”, para assim manifestarem as suas
discordâncias, nem pelos contribuintes que, não se podendo furtar legalmente aos
pagamentos, procuraram subterfúgios para os retardar ou diminuir.
Os pagadores eram, na escala das posses individuais, não apenas as elites, mas parte
significativa dos habitantes do concelho. Pagavam impostos os consumidores de carnes
verdes e de bebidas alcoólicas comercializadas a granel (artigos 142 e 143 do código
administrativo de 184258) através de uma taxa suplementar por cada quilo ou litro do
produto adquirido; e pagavam derramas, também chamadas “contribuição indirecta”
(artigos 139 e 141 do código administrativo de 1842) todos os proprietários de bens
imóveis, fosse pela mais sumptuosa casa ou pela mais pequena leira de cultivo. As
derramas eram imputadas aos contribuintes por uma percentagem adicional à quota da
décima industrial ou predial paga ao Estado59. Por fim, eram obrigados a contribuir os
56 Coutinho, Azevedo, História da Revolução da Maria da Fonte. Relato dos primeiros acontecimentos da Primavera
de 1846, escritos quarenta anos depois, sob orientação de um contemporâneo da Revolução…, p. 28. 57 Rodrigues, Henrique, Expostos no Alto-Minho no Século XIX e Contextos Migratórios, Viana do Castelo, separada
dos CER, Cadernos de Estudos Regionais, 2005, p. 10. 58 Na prática, e embora a câmara da Póvoa de Lanhoso tenha mantido ao longo do vinténio em estudo este imposto
apenas sobre as carnes verdes de gado bovino, suíno e caprino, como sobre os vinhos e, menos regularmente, sobre o
bagaço, vendidos a granel, este imposto podia ser alargado a todos os outros produtos vendidos pelo mesmo processo.
Assim o referem os artigos 142 e 143 do código administrativo, que atribuíam às câmaras permissão de lançamento
de contribuições indiretas sobre todos “os objectos destinados a consumo do Concelho”, entendendo-se como tal os
“expostos á venda a retalho”, fosse “para os géneros produzidos no Concelho como para os de fora d’elle”. Cf.
Codigo Administrativo Portuguez…, 1842, pp. 36-37. 59 Em 1841, a câmara solicitou informação à junta distrital para esta confirmar se a derrama devia consistir na sexta
parte do total da décima predial, “como era expresso”, ou apenas no equivalente à sexta parte da décima pertencente
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jornaleiros, a classe mais baixa do mercado de trabalho rural, com “até dois dias de
trabalho, ou no dinheiro correspondente” por cada ano60.
Apesar do número dos que se viam tributados ser bastante mais abrangente, os
maiores pagadores eram naturalmente os grandes proprietários agrícolas que, à época,
constituíam as elites dominadoras da terra. Eram estes homens que asseguravam a
composição dos órgãos camarários e afins61, os quais, sempre que podiam, procuravam
resistir às contribuições ou adiar os prazos de pagamento. A forma mais utilizada para o
fazerem era, nas reuniões dos órgãos municipais em que tinham assento, enveredarem
por manobras dilatórias. Umas vezes porque as atas não estavam assinadas por todos os
membros, outras pelo facto de pretenderem esmiuçar os custos correspondentes a cada
item da assistência na discussão dos orçamentos, outras, ainda, por discordarem dos
valores a pagar, alegando que podiam ser inferiores se outros débitos à câmara, como os
foros, estivessem liquidados pelos aforadores, o que raramente acontecia62. Em
determinadas sessões, a aprovação dos orçamentos era adiada por sucessivas faltas de
quórum63. Em 1839, o deputado municipal José Joaquim Ferreira de Melo e Andrade,
alegando que a câmara não satisfez as respostas a um requerimento seu, em reunião
anterior, sobre a dívida ativa e passiva global, para, em face dessa informação, poder
deliberar sobre as derramas, disse “que lhe não era possível vottar por derrama alguma
enquanto não tivesse pleno conhecimento do deve e há de haver actual da respectiva
municipalidade, pelo que se ressalva de qualquer responsabilidades ou nota futura”64.
Porém, mesmo após a aprovação dos orçamentos e de devidamente notificados sobre as
somas que lhes cabiam satisfazer e as datas em que tal contributo devia ocorrer, muitos
contribuintes atrasavam o pagamento o mais que podiam, às vezes durante anos65.
Os membros do conselho tentavam ainda baixar os orçamentos para a assistência
reclamando contra o custo de alguns funcionários, pagos por essa rúbrica, que podiam
ser dispensados. Como aconteceu em abril 1838 quando o próprio presidente da câmara,
invocando o mau estado do cofre dos expostos e a “repuggnancia que os povos tinham
no pagamento de derramas” propôs fosse “vetado” o cirurgião do partido dos expostos
ao município. A junta distrital informou que era pela sexta parte do total da décima predial. AMPL, Livro de atas da
câmara, 1841, fls. 190-192v. 60 Codigo Administrativo Portuguez…, 1842, p. 36. 61 Criado pelo código administrativo de 1842, o conselho municipal tinha competências para discutir e votar as
decisões das câmaras em matéria financeira. Previa o artigo 165.º do mesmo documento que “Os vogais do concelho
municipal são os eleitores que pagarem a maior quota de décima do concelho”. Codigo Administrativo Portuguez…,
1842, pp. 41-42. 62 AMPL, Livro de atas da câmara, 1839, fls. 89-91v; Idem, 1841, fl. 195. 63 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 195. 64 AMPL, Livro de atas da câmara, 1839, fls. 93-96v. 65 AMPL, Livro de atas da câmara, 1838, fls. 57-59v; Idem, 1839, fls. 89v-91v.
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enquanto não houvesse rendimentos para tal e que, quando fosse absolutamente
necessário examinar o estado de saúde dos expostos, o município pagasse ao facultativo
por consulta, conforme a tabela da terra, evitando assim mais esta despesa66. A decisão
viria a ser reprovada pela junta distrital, mas entre as respostas e as contra respostas
trocadas entre os Póvoa de Lanhoso e Braga, foram gastos quase dois anos.
Era também comum a câmara ou o conselho municipal contrariarem as deliberações
dos próprios órgãos distritais, solicitando o alargamento dos prazos para lançamento das
derramas ou pedindo que as mesmas fossem reduzidas, em função das dificuldades dos
contribuintes. Em 1839, aquando da fixação, pelo conselho de distrito, da verba a
derramar para “amorttizar em parte ou no todo a divida de 1 conto, 215.965 rs. que se
está devendo ás Amas dos Expostos”, foi a arbitragem unanimemente rejeitada pelos
deputados das freguesias sob alegação de que nenhuma lei autorizava a o órgão distrital
a tal deliberação67.
Sustentada em serviços organizados de forma rudimentar e sempre deficitários em
termos de funcionalismo, queixava-se constantemente a corporação municipal de não
possuir dados fiáveis sobre as posses dos munícipes, deixando muitas vezes de cobrar as
devidas derramas ou coletando-as em percentagens reduzidas. Para combater mais esta
limitação, decidiu, em 1841, proceder à nomeação de “pessoas inteligentes e [de]
conhecida consciência” para procederem à derrama sobre as propriedades, visto não
possuir dados suficientes para a lançar com toda a justiça68. A investida não terá
resultado como a câmara pretendia pois, nos anos seguintes, acabou a recorrer às juntas
de paróquia, que, em conjunto com os regedores e “informadores”, eram quem tinha
“perfeito conhecimento dos teres e indústria dos contribuintes” nelas residentes69. A
recolha das contribuições especiais sobre carnes e vinhos eram também um problema,
“visto que os vendeiros não só repugnam em declarar os vinhos” mas ameaçavam até os
recebedores que os visitavam70.
Em 1843, o conselheiro municipal Sousa Geão, alegando as “calamittosas
circunstancias finnanceiras dos povos do municipio e os mesquinhos rendimentos que
elle tem”, apresentou uma proposta para que se solicitasse ao conselho de distrito que
reconsiderasse a sua deliberação de fazer subir os valores do orçamento aprovado no
66 AMPL, Livro de atas da câmara, 1838, fls. 41-42v. 67 AMPL, Livro de atas da câmara, 1839, fls. 89v-91v. 68 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 2. 69 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 2. 70 AMPL, Livro de atas da câmara, 1847, fls. 70-70v.
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município para os expostos. Na ata da sessão fez ainda registar que não obstante a
obediência às leis a que o seu cargo o obrigava, sentia a responsabilidade de defender os
munícipes pagadores que representava. A parte final da declaração deixava antever
preocupações de ordem política, ou mesmo eleitoralista, ao ser solicitado que se a
proposta por si defendida não fosse aceite pela junta de distrito, devia ser anunciado a
todos os munícipes que “tal vexame lhes não provem por ommissão ou negligência da
Camara ou do Conselho Municipal”, mas dos órgãos do distrito71.
Também o cálculo das derramas, arbitradas pela câmara sob proposta das juntas de
paróquia, era muitas vezes posto em causa por aqueles que se achavam sobretaxados,
tratados com invocada injustiça na comparação com vizinhos e conhecidos. E disso
mesmo davam conta à câmara através de reclamações por escrito que, na maioria dos
casos, eram, depois de analisadas, tomadas em conta, chegando os valores a ser
reduzidos para menos de metade72.
Preocupação maior dos órgãos do município era o “excessivo tempo” que os
depositários das contribuições e derramas retinham em seu poder os róis de cobranças e
os dinheiros recebidos73. Em 1839, o depositário Manuel José de Miranda Lemos tinha
um débito para com a câmara de 563.748 réis74, pelo que foi participado ao delegado do
procurador régio75. Três anos volvidos, já outro depositário, Manuel José Antunes
Guimarães, era chamado ao paço do concelho para justificar a razão pela qual não tinha
entregado o dinheiro recebido para os custos dos expostos76. A justificação dada por
este último foi que havia grande dificuldade em receber, pelo que a coleta se achava
com grande atraso. A câmara decidiu então dar ordens aos presidentes de junta de
paróquia para, no prazo de oito dias, obrigarem os devedores dos róis a pagarem o que
deviam ou, se a isso se recusassem, serem executados por penhora de bens77. Ressalve-
se que os depositários não eram funcionários ou prestadores contratados, antes membros
do conselho municipal, isto é grandes proprietários, eleitos em conselho para a função.
Este tipo de situação era regularmente denunciada ao governador civil. Porém, cabendo
aos órgãos camarários ou em último recurso aos tribunais tomarem medidas78, a
71 AMPL, Livro de atas da câmara, 1843, fls. 95-97v. 72 AMPL, Livro de atas da câmara, 1843, fls. 100-102. 73 AMPL, Livro de atas da câmara, 1839, fls. 96-96v. 74 AMPL, Livro de atas da câmara, 1839, fls. 97-100. 75 AMPL, Livro de atas da câmara, 1839, fl. 108. 76 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 177v. 77 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fls. 178-178v. 78 AMPL, Livro de atas da câmara, 1845, fl. 42-42v.
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denúncia funcionava apenas como justificação perante os magistrados distritais para o
atraso no pagamento das despesas79.
Todos estes procedimentos se mantiveram durante as décadas em estudo. Na década
de 1850, sentindo incapaz de os resolver, ressalvava invariavelmente a câmara que os
povos se queixavam de não poderem pagar “por falta de numerário que entre eles
gira”80, fazendo saber ao governador do distrito que “o estado em que os conttribuintes
do concelho na sua maxima partte se acham, a braços com a fome e com a mizeria por
causa da bem notoria escassez de cereaes e falta de vinho, mananciaes de que esta
máxima parte conttribuinte tira a sua subsistencia e de suas famílias e o pagamento dos
Impostos Gerais, Distritais, Municipais e Paroquiais” decretados, obrigá-los a pagar
configurava “uma escandalosa zombaria da mizeria dos mesmos povos, um completo
desprezo pela sua sorte administrativa e finalmente uma immoralidade palpitante e
vergonhosa”, onerando-se assim os “desgraçados contribuintes, a maior parte dos quais
não devem senão lágrimas, não se ouvem senão gemidos de aflição por não terem meios
de proverem a sua subsistência, (…) sendo-lhe de mais a mais necessário comprar aos
mais abastados, que é o menor número, o pão quotidiano, sem meios para isso”81.
Por esta mesma altura, embora resistisse na sociedade uma franja que defendia a
necessidade de proteção da honra das mulheres honestas que, “por um momento de
debilidade, seriam para sempre desonradas”, arrastando para a lama, com o seu, o nome
das suas famílias, o que para se protegerem as poderia levar ao infanticídio, outra parte
colocava em causa a moralidade e a defesa da exposição82. A discussão, que ocorreu
não só em Portugal como noutros países83 levou a que em 1867 fosse publicada uma
primeira lei tendente a extinguir as Rodas84. A lei acabaria revogada no ano seguinte por
se mostrar-se “prematura” para, posteriormente, se iniciar um processo que apenas
gradualmente levaria à extinção, sempre por iniciativa de cada distrito85. No caso da
Póvoa de Lanhoso também as mudanças que foram sendo introduzidas na legislação a
79 Sobre receitas e impostos municipais durante o liberalismo pode ler-se Oliveira, César, “Nota breve sobre as
finanças municipais no Liberalismo”, in Oliveira, César (dir.), História dos Municípios e do Poder Local [dos finais
da Idade Média à União Europeia], Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 219-222. 80 AMPL, Livro de atas da câmara, 1851, fl. 171v-172. 81 AMPL, Livro de atas da câmara, 1854, fls. 91v-94. 82 Lopes, Maria Antónia, “Nacer y sobrevivir: La peligrosa infancia en Portugal durante los siglos XVIII y XIX” in
Núñes Roldán, Francisco, La Infancia en España y Portugal (Siglos XVI-XIX)…, pp. 57-58. 83 Lopes, Maria Antónia, “Nacer y sobrevivir: La peligrosa infancia en Portugal durante los siglos XVIII y XIX” in
Núñes Roldán, Francisco, La Infancia en España y Portugal (Siglos XVI-XIX)…, pp. 57. 84 Réis, Maria de Fátima, Os Expostos de Santarém. A Acção Social da Misericórdia (1691-1710)…, p. 90. 85 Roque, João Lourenço, Classes populares no distrito de Coimbra no século XIX (1830-1870). Contributo para o
seu estudo…, pp. 717-723; Lopes, Maria Antónia, “Os pobres e a assistência pública”, in Mattoso, José (dir.),
História de Portugal, vol. 5.., p. 505. Sobre este tema, consultar ainda Vaquinhas, Irene, “A família, essa ‘pátria em
miniatura’”, in Mattoso, José (dir.), História da Vida Privada em Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 2011, pp.
118-151, e muito especialmente o subcapítulo “Os ‘sem família’”, pp. 134-136.
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partir de 1867 não alteraram significativamente a situação, mantendo-se o número dos
expostos apoiados na casa das muitas dezenas, apenas começando a decrescer na última
década do século XIX. Em 1900 eram ainda 32 as amas remuneradas e só a partir dessa
data o número foi diminuindo progressivamente, para se registarem apenas nove em
190786.
Considerações finais
Ao longo de boa parte de Oitocentos, os custos com a assistência, que no caso da
Póvoa de Lanhoso se resumiam às importâncias gastas com os expostos, foram uma das
maiores preocupações dos municípios, especialmente dos mais pequenos e dos que se
situavam em contexto rural, dado as derramas e outros impostos lançados para o efeito
se mostrarem sempre elevados para quem pagava e insuficientes para quem tinha o
dever de os gerir. A situação exasperava as vereações que, se por um lado, mesmo
contrariadas, se viam obrigadas a cumprir as leis em vigor que as obrigavam à prática
dessa assistência, sofriam, por outro, reclamações e pressões dos contribuintes contra
tais encargos. O elevado número de enjeitados que nas décadas de 1830-50 dependiam
desses apoios obrigou mesmo as autoridades a utilizar processos para controle da
exposição que passavam, sobretudo, pelo apertada fiscalização das mulheres grávidas,
obrigadas a comprometer-se a criar as crianças que geraram e a jurar que as não
abandonariam à Roda. Mas nem as reações dos munícipes aos pagamentos das
contribuições, nem a vigilância e as ameaças às mulheres grávidas, levaram à
diminuição do número de expostos, razão pela qual, ano após ano, os défices das
corporações municipais se tornavam mais elevados. Os reflexos desta situação
prejudicaram não só aqueles que se viram obrigados a contribuir regularmente para o
custeio de tais despesas, como as próprias câmaras, que dado esse grande investimento
se viam impossibilitadas de proceder a outras melhorias nas terras que lhes eram dadas a
administrar.
86 AMPL, Pasta de expostos da Junta Geral do Distrito, documentos avulso, sem paginação.