Reações dos contribuintes às despesas com os “expostos”. O caso do município da Póvoa de...

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1 Reações dos contribuintes às despesas com os “expostos”. O caso do município da Póvoa de Lanhoso (1837-1857) 1 José Abílio Coelho (Lab2PT Universidade do Minho) Realidade bem conhecida na sociedade europeia da Idade Média, quando muitas cidades possuíam já instalações destinadas ao seu recolhimento e educação 2 , o fenómeno dos expostos cresceu muito a partir dos séculos XV-XVI, sobretudo nos países de tradição católica e na Rússia, tendo atingido o seu pico durante a centúria de setecentos 3 . Madrid registou entre 1586 e 1700 a entrada de mais de 55.000 crianças nas suas inclusas, Paris viu subir de 500 para 7.000 o número anual de expostos acolhidos entre 1660 e 1770, enquanto Milão, entre 1695 e 1843, registou o internamento de mais de 180.000 destas crianças 4 . Rheinheimer calcula que, em meados do século XIX, ainda houvesse em território europeu cerca de meio milhão de enjeitados a viver sob a responsabilidade de instituições a eles destinadas 5 . Em Portugal a questão não diferiu muito do que se passou especialmente na Europa do Sul 6 e até em territórios de além-Atlântico sob administração portuguesa e espanhola 7 , mantendo-se o número de enjeitados elevadíssimo até meados do último quartel do século XIX 8 , para só então começar a diminuir 9 . 1 Comunicação apresentada no Seminário Internacional “Do silêncio à ribalta: os resgatados das margens da história (séculos XVI-XX), Braga, Universidade do Minho, 28 e 29 de maio de 2015, no prelo. 2 La Roncière, Charles de, “O lugar dos filhos”, in Ariès, Philippe; Duby, Georges, História da Vida Privada, Lisboa, Edições Afrontamento, p. 224; Araújo, Maria Marta Lobo de, “Niños pobres en Portugal: representaciones y prácticas de asistencia (siglos XVI-XIX)”, in Núñez Roldán, Francisco (dir.), La Infancia en España y Portugal (Siglos XVI- XIX), Madrid, Sílex Ediciones, 2012, p. 30. 3 Rheinheimer, Martin, Pobres, mendigos y vagabundos. La supervivencia em la necesidad, 1450-1850, Madrid, Siglo XXI de España Editores, 2008, p. 73-75. 4 Rheinheimer, Martin, Pobres, mendigos y vagabundos. La supervivencia em la necesidad, 1450-1850…, p. 73. 5 Rheinheimer, Martin, Pobres, mendigos y vagabundos. La supervivencia em la necesidad, 1450-1850…, p. 73. 6 Para um melhor conhecimento sobre expostos e pobreza na infância em Portugal ler, sobretudo Roque, João Lourenço, Classes populares no distrito de Coimbra no século XIX (1830-1870). Contributo para o seu estudo, Coimbra, Faculdade de Letras, 1982, vol. I, t. II, policopiado; Sá, Isabel dos Guimarães, “A Casa da Roda do Porto e o seu funcionamento (1710-1780), separata da Revista da Faculdade de Letras História, II série, vol. II, Porto, 1985, pp. 161-199; Sá, Isabel dos Guimarães, “A Assistência à Infância no Porto do Século XIX: Expostos e Lactados”, in Cadernos do Noroeste, vol. 5 (1-2), 1992, pp. 179-190; Maria Antónia, “Os pobres e a assistência pública”, in Mattoso, José (dir.), História de Portugal, vol. 5, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 501-515; Simões, João Alves, Os Expostos da Roda de Góis. 1784-1841, dissertação de mestrado em história contemporânea, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999; Reis, Maria de Fátima, Os Expostos de Santarém. A Acção Social da Misericórdia (1691-1710), Lisboa, Edições Cosmos, 2001; Fonte, Teodoro Afonso da, No limiar da honra e da pobreza: a infância desvalida e abandonada no Alto Minho (1698-1924), Braga, Universidade do Minho, dis. de doutoramento policopiada, 2004; Araújo, Maria Marta Lobo de, “Niños pobres em Portugal: representaciones y prácticas de assistencia (siglos XVI-XIX)”, in Núñez Roldán, Francisco, La Infancia en España y Portugal (Siglos XVI-XIX), pp. 29-42; Lopes, Maria Antónia, “Nacer y sobrevivir: La peligrosa infancia en Portugal durante los siglos XVIII y XIX” in Núñez Roldán, Francisco, La Infancia en España y Portugal (Siglos XVI-XIX)…, pp. 43-68. 7 Para conhecer a questão dos expostos em Nueva España, hoje México, leia-se Lorenzo Gutiérrez, María del Pilar; García Corzo, Rebeca Vanesa, “Discursos y práticas assistenciales acerca del abandono y la exposición infantil en la Nueva Galicia entre la Colónia y la Independencia”, in Araújo, Maria Marta Lobo de; Ferreira, Fátima Moura;

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Reações dos contribuintes às despesas com os “expostos”. O caso do

município da Póvoa de Lanhoso (1837-1857)1

José Abílio Coelho

(Lab2PT – Universidade do Minho)

Realidade bem conhecida na sociedade europeia da Idade Média, quando muitas

cidades possuíam já instalações destinadas ao seu recolhimento e educação2, o

fenómeno dos expostos cresceu muito a partir dos séculos XV-XVI, sobretudo nos

países de tradição católica e na Rússia, tendo atingido o seu pico durante a centúria de

setecentos3. Madrid registou entre 1586 e 1700 a entrada de mais de 55.000 crianças nas

suas inclusas, Paris viu subir de 500 para 7.000 o número anual de expostos acolhidos

entre 1660 e 1770, enquanto Milão, entre 1695 e 1843, registou o internamento de mais

de 180.000 destas crianças4. Rheinheimer calcula que, em meados do século XIX, ainda

houvesse em território europeu cerca de meio milhão de enjeitados a viver sob a

responsabilidade de instituições a eles destinadas5.

Em Portugal a questão não diferiu muito do que se passou especialmente na Europa

do Sul6 e até em territórios de além-Atlântico sob administração portuguesa e

espanhola7, mantendo-se o número de enjeitados elevadíssimo até meados do último

quartel do século XIX8, para só então começar a diminuir9.

1 Comunicação apresentada no Seminário Internacional “Do silêncio à ribalta: os resgatados das margens da história

(séculos XVI-XX), Braga, Universidade do Minho, 28 e 29 de maio de 2015, no prelo. 2 La Roncière, Charles de, “O lugar dos filhos”, in Ariès, Philippe; Duby, Georges, História da Vida Privada, Lisboa,

Edições Afrontamento, p. 224; Araújo, Maria Marta Lobo de, “Niños pobres en Portugal: representaciones y prácticas

de asistencia (siglos XVI-XIX)”, in Núñez Roldán, Francisco (dir.), La Infancia en España y Portugal (Siglos XVI-

XIX), Madrid, Sílex Ediciones, 2012, p. 30. 3 Rheinheimer, Martin, Pobres, mendigos y vagabundos. La supervivencia em la necesidad, 1450-1850, Madrid,

Siglo XXI de España Editores, 2008, p. 73-75. 4 Rheinheimer, Martin, Pobres, mendigos y vagabundos. La supervivencia em la necesidad, 1450-1850…, p. 73. 5 Rheinheimer, Martin, Pobres, mendigos y vagabundos. La supervivencia em la necesidad, 1450-1850…, p. 73. 6 Para um melhor conhecimento sobre expostos e pobreza na infância em Portugal ler, sobretudo Roque, João

Lourenço, Classes populares no distrito de Coimbra no século XIX (1830-1870). Contributo para o seu estudo,

Coimbra, Faculdade de Letras, 1982, vol. I, t. II, policopiado; Sá, Isabel dos Guimarães, “A Casa da Roda do Porto e

o seu funcionamento (1710-1780), separata da Revista da Faculdade de Letras – História, II série, vol. II, Porto,

1985, pp. 161-199; Sá, Isabel dos Guimarães, “A Assistência à Infância no Porto do Século XIX: Expostos e

Lactados”, in Cadernos do Noroeste, vol. 5 (1-2), 1992, pp. 179-190; Maria Antónia, “Os pobres e a assistência

pública”, in Mattoso, José (dir.), História de Portugal, vol. 5, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 501-515;

Simões, João Alves, Os Expostos da Roda de Góis. 1784-1841, dissertação de mestrado em história contemporânea,

Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999; Reis, Maria de Fátima, Os Expostos de Santarém. A Acção

Social da Misericórdia (1691-1710), Lisboa, Edições Cosmos, 2001; Fonte, Teodoro Afonso da, No limiar da honra

e da pobreza: a infância desvalida e abandonada no Alto Minho (1698-1924), Braga, Universidade do Minho, dis. de

doutoramento policopiada, 2004; Araújo, Maria Marta Lobo de, “Niños pobres em Portugal: representaciones y

prácticas de assistencia (siglos XVI-XIX)”, in Núñez Roldán, Francisco, La Infancia en España y Portugal (Siglos

XVI-XIX)…, pp. 29-42; Lopes, Maria Antónia, “Nacer y sobrevivir: La peligrosa infancia en Portugal durante los

siglos XVIII y XIX” in Núñez Roldán, Francisco, La Infancia en España y Portugal (Siglos XVI-XIX)…, pp. 43-68. 7 Para conhecer a questão dos expostos em Nueva España, hoje México, leia-se Lorenzo Gutiérrez, María del Pilar;

García Corzo, Rebeca Vanesa, “Discursos y práticas assistenciales acerca del abandono y la exposición infantil en la

Nueva Galicia entre la Colónia y la Independencia”, in Araújo, Maria Marta Lobo de; Ferreira, Fátima Moura;

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A diferença é que, ao contrário do que acontecia com a grande maioria dos restantes

países sul-europeus, onde particulares e Igreja tinham enorme relevância no custeio da

assistência às crianças abandonadas, em Portugal, com a promulgação das Ordenações

Manuelinas, no século XVI, nas cidades, vilas ou lugares onde não existissem hospitais

ou albergarias que deles cuidassem à custa dos seus bens10 garantir essa despesa tornou-

se responsabilidade dos municípios11. Deviam estes criar os enjeitados através das suas

rendas ou, não as tendo suficientes para tal, lançar fintas “por aquellas pessouas que nas

fintas, e encarreguos do Concelho ham de paguar”12. O encargo manteve com as

Ordenações Filipinas (1603), passando, consoante as misericórdias se foram

disseminando pelo país, a ser por estas assegurado, embora “nunca os seus

compromissos a isso as obrigassem” 13. Pelo que, mesmo cabendo a estas a logística do

apoio, continuaram a ser os municípios os principais responsáveis pelo pagamento14.

Para Maria Antónia Lopes, apesar da assunção da assistência aos expostos por parte de

muitas santas casas ser realidade bem documentada, foram as câmaras que, de modo

quase generalizado, assumiram o pagamento do serviço15, facto também realçado por

Isabel Sá ao anotar que nas principais cidades se estabeleceram contratos entre as

câmaras e as misericórdias através dos quais, sendo da responsabilidade das santas casas

a administração dos hospitais dos expostos, continuava o pagamento das despesas,

consoante as disposições legais, a ser suportado pelos municípios16. A ordem-circular de

Pina Manique, em 1783, que obrigou à criação de estabelecimentos destinados ao

acolhimento de enjeitados em todos os concelhos do reino onde idêntica estrutura ainda

não existisse, veio confirmar, uma vez mais, a responsabilidade das corporações

Esteves, Alexandra, Pobreza e Assistência no Espaço Ibérico (Séculos XVI-XX), Braga, CITCEM-Universidade do

Minho, 2010, pp. 69-81. Para a realidade brasileira pode ler-se Franco, Renato, A Piedade dos Outros. O abandono

de recém-nascidos em uma vila colonial, século XVIII, Rio de Janeiro, FGV Editora, 2014, pp. 101-234. 8 Em 1862/1863 foram abandonadas em Portugal 16.294 crianças. Cf. Lopes, Maria Antónia, “Nacer y sobrevivir: La

peligrosa infancia en Portugal durante los siglos XVIII y XIX” in Núñez Roldán, Francisco, La Infancia en España y

Portugal (Siglos XVI-XIX)…, p. 58. 9 Abreu, Laurinda, “Misericórdias, rodas e hospitais: a herança do Antigo Regime”, in Reis, Bernardo (coord.), 500

anos de História das Misericórdias. Atas do Congresso Internacional, Braga, Santa Casa da Misericórdia de Braga,

2014, pp. 109-110. 10 Sobre os antecedentes das Ordenações Manuelinas na criação dos enjeitados, pode ler-se Abreu, Laurinda, “As

crianças abandonadas no contexto da institucionalização das práticas da caridade e da assistência, no século XVI”, in

Araújo, Maria Marta Lobo de; Ferreira, Fátima Moura, A infância no universo da Península Ibérica (sécs. XVI-XIX),

Braga, Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, 2008, pp. 31-49. 11 Lopes, Maria Antónia, Protecção Social em Portugal na Idade Moderna, Coimbra, Imprensa da Universidade de

Coimbra, 2010, pp. 75-76. 12 Odenações Manuelinas, Livro I, tit. LXVII, 10. 13 Lopes, Maria Antónia, Protecção Social em Portugal na Idade Moderna…, p. 76. 14 Lopes, Maria Antónia, Protecção Social em Portugal na Idade Moderna…, p. 76. 15 Lopes, Maria Antónia, “As mulheres e as famílias na assistência aos Expostos. Região de Coimbra (Portugal),

1708-1839”, Caderno Espaço Feminino, Uberlândia, Minas Gerais, vol. 26, nº 2, 2013, p. 291. 16 Sá, Isabel dos Guimarães, “Abandono de Crianças, Infanticídio e Aborto na Sociedade Portuguesa Tradicional

através das Fontes Jurídicas”, Penélope: fazer a história, novembro de 1998, p.78.

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municipais no pagamento das custas através das suas rendas ou, na falta delas, pelo

“cabeção das sizas”17.

Com a afirmação do Liberalismo, a partir de meados da década de 1830, algumas

alterações, como veremos, foram introduzidas na administração da assistência aos

enjeitados, muito embora o pagamento das despesas se mantivesse “á custa de todas as

Municipalidades”18.

Situado em pleno coração do baixo Minho, também o concelho rural da Póvoa de

Lanhoso teve na sua câmara municipal o suporte para a criação de muitas centenas,

talvez mesmo milhares de enjeitados ao longo de todo o século XIX. Fiscalizados pelos

órgãos administrativos do distrito, os orçamentos anuais destinados à assistência eram

altíssimos, significativamente mais elevados que os chamados orçamentos gerais, isto é,

aqueles com que eram sustentadas todas as restantes despesas concelhias. Em

contrapartida, os rendimentos fixos do município eram muito baixos, tornando-se

sempre insuficientes para cobrir as elevadas despesas com a Roda, o que ocasionava

elevados défices ano após ano. Deitando mão ao único recurso que a lei permitia para

fazer face ao problema, obrigava-se a câmara ao lançamento de derramas e outras

contribuições, pela forma estabelecida no código administrativo19, o que desagradava

não apenas às vereações, como especialmente aos contribuintes, que se sentiam

injustiçados com o pagamento de tão elevados custos.

Neste artigo vamos tentar entender como a câmara e aqueles que eram chamados a

pagar reagiam a este repetido método de financiamento, ao longo do vinténio 1837-

1857.

As Casas da Roda

A escassa documentação existente no arquivo do município para período anterior ao

século XIX não nos permite saber em que data a Póvoa de Lanhoso foi dotada de casa

da Roda. Diogo Inácio de Pina Manique, Intendente Geral da Polícia, perseguindo uma

realidade que fazia convergir os “ideais da solidariedade cristã e uma nova mentalidade

populacionista” destinada “a promover o povoamento do reino e os seus vastos 17 Apud Sá, Isabel dos Guimarães, “Abandono de Crianças, Infanticídio e Aborto na Sociedade Portuguesa

Tradicional através das Fontes Jurídicas”…, p.78. Sobre a situação dos enjeitados noutros países da Europa, pode ler-

se Lopes, Maria Antónia, “As mulheres e as famílias na assistência aos Expostos. Região de Coimbra (Portugal),

1708-1839”…, p. 239. 18 Collecção de Leis e outros documentos officiais publicados desde 10 de Setembro até 31 de Dezembro de 1836, 6ª

série, Imprensa Nacional, Lisboa, 1837, pp. 11-12. 19 Codigo Administrativo Portuguez, Lisboa, Imprensa da Rua de S. Julião, 1837, pp. 24-33.

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territórios ultramarinos”, ordenou, em maio de 1783, que em todas as vilas onde não

existissem já locais a esse fim destinados, fosse instituído um recolhimento destinado às

crianças enjeitadas20. O concelho a que nos referimos não possuía à data nem hospital,

nem misericórdia, dos quais só viria a dispor no século XX. Desconhecemos, mesmo

assim, se a ordem de Pina Manique foi cumprida de imediato ou se, como ocorreu

noutros concelhos, foi retardada21. A sua existência só se encontra confirmada em 1810,

data em que, num livro avulso existente no arquivo municipal, se regista um gasto de

513.056 réis aplicados, respetivamente, no pagamento do aluguer do edifício e

ordenados aos funcionários da Roda, compra de enxovais, “gratificações” a três

cirurgiões dos órfãos e a dois sacerdotes e com a retribuição mensal a 84 amas22. A

insuficiência documental não nos permite conhecer o valor do orçamento geral da

câmara para esse mesmo ano, de modo a podermos aferir a percentagem gasta com os

enjeitados mas, olhando aos rendimentos do concelho para quase trinta anos depois, de

que falaremos mais à frente, supomos que seria bastante elevada.

Com a implantação do Liberalismo, uma década volvida, e apesar de todos os

avanços e recuos, das revoltas e contrarrevoltas que trouxeram o território em

sobressalto até ao início da segunda metade da centúria23, pretendeu o Estado conhecer

e avaliar a verdadeira situação das organizações assistenciais existentes e quem eram os

utentes dos seus apoios. Com essa finalidade lançou, entre 1821 e 1827, um conjunto de

inquéritos às agremiações de todo o país. Laurinda Abreu, ao trazer a público essa

informação, refere que apesar da grande quantidade de instituições então existentes em

todo o continente, entre as quais se destacavam as misericórdias, os hospitais e as casas

da Roda, ficava claro, pela leitura dos inquéritos que chegaram a Lisboa, que a situação

financeira da maioria destes estabelecimentos era de pobreza, quando não mesmo de

pauperismo extremo24. E que a questão dos enjeitados era então identificada como uma

20 Fonte, Teodoro Afonso da, No limiar da honra e da pobreza: a infância desvalida e abandonada no Alto Minho

(1698-1924)…, p. 129. 21 É sabido que a ordem de Pina Manique não foi de imediato executada em todos os municípios do país como

aconteceu, por exemplo, no de Viana do Castelo, que em 1786 era ainda questionado pela intendência de polícia

sobre as razões do incumprimento da ordem de 1783. Cf. Fonte, Teodoro Afonso da, No limiar da honra e da

pobreza: a infância desvalida e abandonada no Alto Minho (1698-1924)…, p. 142. Sobre este tema ver ainda Abreu,

Laurinda, Pina Manique. Um Reformador no Portugal das Luzes, Lisboa, Gradiva, 2013. 22 No primeiro semestre de 1810 foram pagos subsídios a um total de 84 amas que auferiram entre 140 réis, por 26

dias de aleitamento de uma criança, entregue a 1 de janeiro e que faleceu a 26 do mesmo mês; e 8.760 réis, a uma

outra que amamentou entre 1 de janeiro e 30 de setembro do mesmo ano. Arquivo Municipal da Póvoa de Lanhoso

(doravante AMPL), Livro das despesas com os expostos referentes aos anos, 1810-1833, fls. 2-12. 23 Sobre o processo de implantação do Liberalismo em Portugal, sobretudo desde o pronunciamento de 1820 até ao

início da Regeneração que, de algum modo, iniciou a pacificação do país, veja-se sobretudo Bonifácio, Maria de

Fátima, A Monarquia Constitucional. 1807-1910, Lisboa, Texto Editores, 2010, pp. 19-63. 24 Abreu, Laurinda, “Misericórdias, rodas e hospitais: a herança do Antigo Regime”, in Reis, Bernardo (coord.), 500

anos de História das Misericórdias. Atas do Congresso Internacional…, pp. 101-113.

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das mais preocupantes, dado que, vindo o número de crianças lançadas à caridade

pública a crescer desde finais do século XVIII, a situação havia piorado na centúria

seguinte fruto “do agravamento das condições de vida nos anos iniciais de

Oitocentos”25, primeiro com as invasões napoleónicas e a perda dos negócios do Brasil,

e, a partir de 1822, com a própria emancipação daquele território, facto que lançou

Portugal numa situação financeira ainda mais deplorável26. Pelas respostas aos referidos

inquéritos, sabemos que ao longo da década de 1820 as contas da câmara municipal da

Póvoa de Lanhoso chegaram a atingir um saldo negativo que ultrapassou os cinco

contos de réis, só no tocante a gastos com os expostos27.

Após guerra civil (1832-1834), tentaram os governos liberais, através da

promulgação de um conjunto de leis visando a administração pública portuguesa, trazer

à assistência novas regras, sobretudo pela fiscalização da sua execução por parte de

instituições que, como a Igreja, particulares, misericórdias e outras confrarias e

irmandades a vinham praticando, mas visando também torná-la, “em grande medida,

tarefa do Estado”28. Na questão dos expostos, o decreto de 19 de setembro de 1936 veio,

em certa medida, alterar a herança do Antigo Regime. Começando por reconhecer “o

estado lastimoso a que se acham reduzidas as diversas rodas de Expostos em todo o

Reino” e pretendendo estancar “a horrível mortandade destas innocentes victimas de

abandono, a quem desde os primeiros momentos da sua existência falta o amparo e

amor maternal”, eram retiradas às misericórdias (com exceção da de Lisboa) as

competência que haviam tido na matéria, e transferidas para os órgãos distritais a

superintendência e fiscalização da assistência, ficando a pertencer às juntas de distrito a

arbitragem da contribuição dos municípios para os enjeitados, tal como a decisão sobre

os locais onde as Rodas deviam e podiam existir ou ser instaladas de novo. Não

obstante o apertado controle das contas que a partir dessa data a magistratura distrital

assumiria, o pagamento das despesas inerentes aos enjeitados mantinha-se por conta dos

municípios29. Aprovado três meses volvidos, o primeiro código administrativo

português contemplava já as disposições deste decreto, reiterando às câmaras os custos

25 Abreu, Laurinda, “Misericórdias, rodas e hospitais: a herança do Antigo Regime”, in Reis, Bernardo (coord.), 500

anos de História das Misericórdias. Atas do Congresso Internacional…, pp. 109-110. 26 Sobre a independência do Brasil e seus efeitos em Portugal pode ler-se Proença, Maria Cândida, A Independência

do Brasil, Lisboa, Edições Colibri, 1999. 27 Abreu, Laurinda, “Misericórdias, rodas e hospitais: a herança do Antigo Regime”, in Reis, Bernardo (coord.), 500

anos de História das Misericórdias. Atas do Congresso Internacional…, p. 111. 28 Lopes, Maria Antónia, “Os pobres e a assistência pública”, in Mattoso, José (dir.), História de Portugal, vol. 5…,

p. 501. Para outras épocas, consultar Matos, Sebastião, “Os Expostos de Barcelos em Finais do Antigo Regime”,

População e Sociedade, nº 2, Porto, Centro de Estudos da População e Família, 1996, pp. 191-206. 29 Collecção de Leis e outros documentos officiais publicados desde 10 de Setembro até 31 de Dezembro de 1836…,

pp. 11-12.

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da criação e educação dos expostos e o estabelecimento das regras que nas Rodas de

cada concelho se deviam guardar30.

Os custos dos expostos

Para se entender o peso do custo dos expostos nos orçamentos do município da

Póvoa de Lanhoso é necessário que percebamos de que recursos este dispunha e quais

as suas despesas obrigatórias e eventuais. Analisemos, com algum pormenor, as contas

de 1838, 1843 e 1857.

Quanto aos primeiros, dispunha a câmara, em 1838, de 126.500 réis pelo aforamento

dos bens do concelho, 18.000 réis pelo rendimento do afilamento dos pesos e medidas e

16.000 réis do aluguer dos terrenos durante a romaria de Nossa Senhora de Porto d’Ave.

Somadas, as receitas municipais totalizavam 160.500 réis. No respeitante a despesas

obrigatórias consistiam estas no pagamento aos seus empregados e a alguns dos que

desempenhavam cargos de nomeação política, nomeadamente ao administrador do

concelho, bem como rendas, impostos e obras inadiáveis. No caso dos empregados, em

1838, o maior salário era o do secretário da câmara, que auferia um vencimento anual

de 96.000 réis, seguindo-se-lhe os do escriturário, do oficial e de um substituto deste,

com salários de 30.000 réis, 16.000 réis e 8.000 réis, respetivamente. O administrador

do concelho dispunha não de um vencimento fixo, mas de uma “gratificação arbitrada”

pela câmara que variava de ano para ano: em 1938 a gratificação anual foi de 24.000

réis. Por fim, somavam-se às despesas com remunerações as do aluguer de espaços, os

serviços da administração do concelho que no mesmo ano atingiram os 12.000 réis; a

terça nacional paga ao Estado, que ascendeu a 53.333 réis – um terço dos 160.500 réis

acima somados como receitas do município – e, por fim, as “despesas eventuais”, que

em geral serviam para custear as chamadas “obras públicas”, uma ou duas por ano, às

vezes nenhuma, que podia ser a reparação de uma ponte de madeira que ruiu sob os

efeitos da invernia, o corte de um penedo para aproveitamento e aplicação do granito

extraído na construção de um muro divisório ou de suporte, ou a reparação do telhado

ou da pintura do paço do concelho. A verba destinada a obras estava fixada em 27.080

réis e destinou-se nesse ano à reparação das portas da cadeia, há muito solicitada pelo

juiz ordinário31. Subtraindo às receitas de 160.500 réis as despesas correntes de 266.413

30 Codigo Administrativo Portuguez…, 1837, pp. 22, 28. 31 AMPL, Livro de atas da câmara, 1838, fls. 93-96v.

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réis, ficava a câmara com um défice de 105.913 réis. Não obstante o saldo ser já

negativo, havia ainda que somar às despesas gerais os custos com a assistência, que

constavam de um orçamento separado. Entre custos a efetuar e dívidas atrasadas atingia

este a soma de 1:215.965 réis32. A solução encontrada, face ao perigo de “muitas dessas

inocentes vítimas morrerem por não haver já ninguém que as queira criar por falta de

algum pagamento”, passou pelo lançamento de uma derrama imediata aos comerciantes

da terra, no valor de 600.000 réis, tornando-se ainda necessário colher as derramas

atrasadas, que seriam exclusivamente aplicadas no pagamento dos custos da Roda33. O

que levou o presidente da câmara a fazer lavrar em ata o seu protesto, em moldes bem

exemplificativos do sentir de toda a corporação:

“A Roda dos expostos deste concelho, contra o saudavel e filantropico fim da

sua instituição, não obstante diligencias empregadas, ainda se acha sobrecarregada

com o número de crianças que hão aumentado consideravelmente a divida que se

apresenta; aleva maes e pais, vivendo em continua prostituição [a] não criarem à

sua custa como perante a lei são obrigados, ficando assim mais desembaraçados

para continuarem nas mesmas prostituições, chegando muitas vezes essas maes

indignas de tal nome fiadas no patronato de seus amazios a zombarem das

providências das autoridades quando as obrigam a criarem os seus filhos (…)”34.

Apesar dos muitos esforços da câmara no sentido de o conseguir, em 1843 a situação

não tinha melhorado. A receita do município havia subido para 180.100 réis, mas a

despesa tinha aumentado também fortemente, para os 662.446 réis. Entre estas

mantinham-se os salários aos empregados, algumas gratificações, nomeadamente ao

administrador e a três mestres do ensino primário, juntando-se-lhes a “propina dos

médicos de Coimbra” e alguns pagamentos em atraso. A diferença entre a receita e a

despesa mostrava um défice de 482.346 réis, que devia ser compensado com uma

derrama de 550.00 réis35. Era contudo necessário juntar a este saldo negativo as verbas

referentes ao dispêndio com os enjeitados pois, apesar “do louvável zelo com que a

Câmara anterior se tinha havido na sua administração”, continuavam as amas com

enorme atraso nos pagamentos, o que vinha dando lugar “a grandes clamores”. Entre o

32 AMPL, Livro de atas da câmara, 1838, fls. 93-96v. 33 AMPL, Livro de atas da câmara, 1838, nº 1, fl. 57-59. 34 AMPL, Livro de atas da câmara, 1838, nº 1, fl. 57-59. 35 Rendimento dos aforamentos de bens do Concelho 134.600 réis; rendimento do afilamento, 25.500 réis; assentos e

lugares na romaria de N. Sr.ª Porto d’ Ave, 20.000 réis. Total: 180.100 réis. AMPL, Livro de atas da câmara, 1843,

fls. 87-91.

8

défice previsto para o ano e os custos com a assistência, ficou assente que a derrama a

lançar teria que ser, não de 550.000 réis, mas 1:232.346 réis36.

Para além de uma contribuição direta sobre os proprietários que deveria ser

deliberada pelo conselho municipal, foi então decidido lançar um imposto de 5 réis em

cada arrátel de carne de vaca fresca que se cortasse e consumisse nos açougues e talhos

do concelho pelo resto do ano, outros 5 réis por cada arrátel de marrão e 960 réis por

cada pipa de vinho que se vendesse no lugar de Porto d’ Ave e suas imediações, entre

27 de agosto até 17 de setembro, período em que naquela local da freguesia de Taíde

tinha lugar a romaria de Nossa Senhora do Porto37.

A situação repetiu-se ano após ano e, em 1857 o défice mantinha-se elevado. Para

uma receita total 284.165 réis, ainda referentes a foros, ao aluguer de terrenos na

invocada romaria e pela aferição de pesos e medidas, encontrava-se orçamentada uma

despesa corrente de 1:256.683 réis à qual se somava uma outra, de 1:543.651 destinada

“à sustentação dos expostos”. Apesar de, neste ano, a câmara ter, contra o que vinha

acontecendo anteriormente, programado um investimento de 400.000 réis em obras

públicas, nomeadamente os “necessários reparos” de algumas estradas, o orçamento

geral continuava a ser menor que o destinado aos expostos. Pelo que, e concluindo uma

vez mais que os rendimentos do concelho não eram suficientes para acorrer a toda a

despesa, foi decidido lançar um imposto sobre a venda de cada arrátel de carnes verdes,

que a câmara calculou poder atingir ao longo do ano 157.060 réis. A este somar-se-ia a

chamada “contribuição direta de repartição”, calculada em 2:244.309 réis38. Subtraída à

despesa total a receita calculada, voltava a verificar-se um défice, este ano de apenas

114.800 réis, bem menos que os muitos contos de réis de que a câmara falava na década

de 1830. Mas apesar deste aparente equilíbrio nas contas, continuava a vereação a

lamentar-se do défice que trazia acumulado de anos anteriores, prejudicado sempre pelo

retardamento com que as verbas de impostos e taxas entravam nos seus cofres.

Combate à exposição

A questão do custeio dos expostos exasperou sucessivas câmaras. O défice anual da

assistência ultrapassou, como já tivemos oportunidade de ver, cifras que andaram, quase

sempre, entre um conto e um conto e quinhentos mil réis, que equivaliam a várias vezes 36 AMPL, Livro de atas da câmara, 1843, fls. 87-91. 37 AMPL, Livro de atas da câmara, 1843, fls. 87-91. 38 AMPL, Livro de atas da câmara, 1857, fls. 166v-167v.

9

as receitas do município39. Uma das maiores, senão mesmo a maior preocupação das

vereações para o período em estudo foi encontrar o dinheiro para calar o constante

“clamor” das amas, que faziam ao município ameaças sucessivas de entregarem as

crianças que tinham a seu cuidado se lhes não fosse atempadamente pago o estipulado40.

Nos períodos de maior exposição, chegaram a registar-se anualmente pagamentos a

mais de uma centena “mães de leite” e de criação vendo-se, por muitas ocasiões, a

câmara obrigada a distribuir as crianças por nutrizes residentes noutros concelhos, por

não haver na terra oferta suficiente41. No todo nacional, estas eram, no século XIX,

como o haviam sido nas centúrias anteriores, as primeiras a ver os seus salários

sacrificados quando as dificuldades se faziam sentir42, como aconteceu na Póvoa de

Lanhoso em 1847, quando as amas estiveram sem os seus vencimentos durante mais de

18 meses43.

Impotente para equilibrar os gastos, sobre os quais lançava em ata repetidos

lamentos, a câmara esforçava-se por encontrar formas de suster tão elevado número de

exposições, promovendo um apertado controlo sobre as mulheres grávidas que podiam

vir a abandonar os filhos após o parto. Convocadas à presença do administrador do

concelho para confessarem a gravidez, eram então obrigadas, sob juramento registado

em livro próprio, a prometer que criariam os filhos que esperavam e que jamais os

abandonariam à Roda44. Também os párocos eram chamados a colaborar no processo,

devendo, mensalmente, fazer chegar à administração uma relação de todas as grávidas

das suas paróquias45. Estas, quase invariavelmente designadas na documentação por

“prostitutas”46, eram, sempre que se mostrassem desobedientes, acusadas e apresentadas

a “correição” ao tribunal da comarca47. Em razão desta apertada fiscalização, muitas

delas, para se furtarem a punições e ao estigma social, iam, após o parto colocar os

39 AMPL, Livro de atas da câmara, 1839, fls. 89-91v; Idem, Livro de atas da câmara, 1840, fl. 141. 40 AMPL, Livro de atas da câmara, 1840, fls. 165-165v; Idem, Livro de atas da câmara, 1842, fl. 73; Idem, Livro de

atas da câmara, 1842, fl. 53v; Idem, Livro de atas da câmara, 1842, fl. 87-91. 41 AMPL, Livro de atas da câmara, 1845, fl. 40. 42 Abreu, Laurinda, “Misericórdias, rodas e hospitais: a herança do Antigo Regime”, in Reis, Bernardo (coord.), 500

anos de História das Misericórdias. Atas do Congresso Internacional …, p. 111. 43 AMPL, Livro de atas da câmara, 1847, fl. 58. 44 AMPL, Livro de atas da câmara, 1840, fl. 138v. 45 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fls. 189v.190. As juntas de paróquia, cujos presidentes, pelo código de

1836 eram eleitos e pelo de 1842 passaram a ter como presidentes natos os párocos, tinham também atribuições

afixadas pelo código administrativo na assistência aos expostos. O código de 1836 obrigava-as a “velar pelos

Expostos, já mandando pôr na Roda os que aparecerem de novo, já fiscalizando seu tratamento em casa das amas,

dando parte das faltas que acharem, ás Câmaras Municipaes dos Concelhos, ás quaes está cometida a administração”

dos mesmos, enquanto o de 1842 refere apenas que cabe às juntas “fiscalizar a criação dos expostos, informando a

Camara municipal dos abusos que notar. Codigo Administrativo Portuguez…, 1836, p. 40; Codigo Administrativo

Portuguez…, 1842, p. 74. 46 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 2v. 47 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 3v.

10

filhos em Rodas de concelhos vizinhos os quais, quando conseguiam identificar as

expositoras, imputavam os custos ao município de onde a mãe era originária48. Em

contrapartida ao castigo, àquelas que se declarassem mães de crianças expostas,

prometia a câmara guardar “todo o segredo nas declarações para evitar

comprometimentos” e entregar um prémio por cada exposto cuja filiação se

verificasse49.

Para conseguirmos fazer ideia do número dos expostos ao findar a primeira metade

do século XIX, contabilizámos os assentos de batismo da paróquia de Fontarcada, na

década de 1841-1850. A opção por Fontarcada aconteceu não apenas pelo facto desta

paróquia, durante o século XIX, ser a mais populosa de todo o concelho, com mais de

1.500 habitantes, mas também por, não sendo oficialmente “cabeça de concelho” (a

freguesia “cabeça de concelho” era Lanhoso) ser na realidade aquela onde estavam

sedeados a câmara, a administração concelhia e o tribunal da comarca. Era ainda nesta

freguesia que, durante a centúria de oitocentos, habitava grande parte das elites da

terra50.

Conforme se pode observar pelo quadro supra, entre 1841-1859, foram batizadas na

identificada paróquia 610 crianças, contabilizando-se, entre estas, o expressivo número

48 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 23. 49 Em 1841 o prémio era de 2.400 réis. AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 3. 50 Bastos, Paixão, No Coração do Minho (A Póvoa de Lanhoso Histórica e Ilustrada), Braga, Imprensa Henriquina a

Vapor, 1907, pp. 28-35.

11

de 31% de enjeitados para 69% não enjeitados51. Parece-nos ainda digno de menção o

facto de em 1846 se ter registando a mais elevada percentagem de expostos: 45% do

total dos batizados52.

O ano de 1846 não foi, na Póvoa de Lanhoso, um ano qualquer, mas aquele em que

teve lugar no concelho o levantamento popular a que foi dado o nome de revolta da

Maria da Fonte, no qual as mulheres foram as principais ativistas. Fontarcada foi, por

sua vez, a freguesia em que os motins assumiram caráter mais relevante, não apenas

porque ali habitava o administrador concelhio, que as mulheres visavam nos seus

protestos, mas também por ser a sede da cadeia, que as revoltosas assaltaram53.

Camilo Castelo Branco, ao referir-se, no seu romance histórico “Maria da Fonte” às

revoltosas de 1846, escreveu:

“A turba das sequazes da Maria da Fonte nunca se arrostou com a tropa; a sua

façanha, além das fogueiras dos cadastros, foi dar umas pàzadas às costas de um

juiz ordinário, e investirem atrás de um escrivão obeso. (…). Dos documentos

coevos não se liquida mais nada para os Anais do século XIX; porém, o rodeiro dos

enjeitados da Póvoa poderia completar os fastos da corja que, durante os

armistícios, ia fecundando pequenitos heróis (…)”54.

Dado a identificada obra do escritor de Seide ter sido sempre catalogada como uma

genial ficção com propósitos políticos, cabe perguntar-se o elevado número de expostos,

os seus custos para o município e, por arrastamento, para as classes mais poderosas,

poderá ter tido algum reflexo na génese do movimento? A “Maria da Fonte” ficou para

a história como uma revolução feita por mulheres, cujo respaldo foi assegurado por

homens55. Da mesma forma que sempre se invocou como razão única para o

descontentamento a criação das matrizes prediais e as alterações à lei da saúde que

51 A complexidade do processo e a procura de absoluto sigilo podia obrigar a grande mobilidade por parte de quem

expunha pelo que, parte destas crianças, podiam não ser originárias de Fontarcada. Mas também acreditamos que

outras, aqui nascidas, fossem pelos mesmos motivos batizadas noutras paróquias. 52 ADB, Livro de assentos de Batismo da paróquia de Fontarcada, 1833-1847, fls. 108v.-195v; ADB, Livro de

Assentos de Batismo da paróquia de Fontarcada, 1847-1855, fls. 8-45v. 53 Coutinho, Azevedo, História da Revolução da Maria da Fonte. Relato dos primeiros acontecimentos da Primavera

de 1846, escritos quarenta anos depois, sob orientação de um contemporâneo da Revolução, Póvoa de Lanhoso,

Editorial Ave Rara, 1997, pp. 28-45. 54 Branco, Camilo Castelo, Maria da Fonte, Lisboa, Ulmeiro, 1993, pp. 44-45. A primeira edição deste romance

histórico, que não o era mais que isso já na própria ideia do romancista, como anotou Hélia Correia no prefácio da

edição aqui citada (p. 9), não deixa, mesmo assim, de retratar de perto uma época, é de 1884. 55 Coutinho, Azevedo, História da Revolução da Maria da Fonte. Relato dos primeiros acontecimentos da Primavera

de 1846, escritos quarenta anos depois, sob orientação de um contemporâneo da Revolução…, pp. 35-36.

12

levaram ao sepultamento dos cadáveres fora das igrejas56. Conhecendo-se os elevados

valores que os poderosos da terra se viam obrigados a desembolsar para a Roda, parece-

nos verosímil que também esta questão possa ter interferido na movimentação das

revoltosas.

O aumento do número dos expostos no período revolucionário não foi, aliás,

exclusivo do concelho da Póvoa de Lanhoso. Henrique Rodrigues identifica-o também

para o Alto Minho, com picos de proeminência de entradas de enjeitados na Roda

aquando da crise sociopolítica da Patuleia, classificando-a como “o período de maior

fluxo de abandonos” ao longo da centúria de oitocentos57.

O descontentamento dos pagadores

No vinténio estudado, as derramas e impostos lançados pela câmara para cobrir os

custos dos enjeitados nunca foram bem aceites nem pelas vereações, que com

frequência se escudavam na “repulsa dos povos”, para assim manifestarem as suas

discordâncias, nem pelos contribuintes que, não se podendo furtar legalmente aos

pagamentos, procuraram subterfúgios para os retardar ou diminuir.

Os pagadores eram, na escala das posses individuais, não apenas as elites, mas parte

significativa dos habitantes do concelho. Pagavam impostos os consumidores de carnes

verdes e de bebidas alcoólicas comercializadas a granel (artigos 142 e 143 do código

administrativo de 184258) através de uma taxa suplementar por cada quilo ou litro do

produto adquirido; e pagavam derramas, também chamadas “contribuição indirecta”

(artigos 139 e 141 do código administrativo de 1842) todos os proprietários de bens

imóveis, fosse pela mais sumptuosa casa ou pela mais pequena leira de cultivo. As

derramas eram imputadas aos contribuintes por uma percentagem adicional à quota da

décima industrial ou predial paga ao Estado59. Por fim, eram obrigados a contribuir os

56 Coutinho, Azevedo, História da Revolução da Maria da Fonte. Relato dos primeiros acontecimentos da Primavera

de 1846, escritos quarenta anos depois, sob orientação de um contemporâneo da Revolução…, p. 28. 57 Rodrigues, Henrique, Expostos no Alto-Minho no Século XIX e Contextos Migratórios, Viana do Castelo, separada

dos CER, Cadernos de Estudos Regionais, 2005, p. 10. 58 Na prática, e embora a câmara da Póvoa de Lanhoso tenha mantido ao longo do vinténio em estudo este imposto

apenas sobre as carnes verdes de gado bovino, suíno e caprino, como sobre os vinhos e, menos regularmente, sobre o

bagaço, vendidos a granel, este imposto podia ser alargado a todos os outros produtos vendidos pelo mesmo processo.

Assim o referem os artigos 142 e 143 do código administrativo, que atribuíam às câmaras permissão de lançamento

de contribuições indiretas sobre todos “os objectos destinados a consumo do Concelho”, entendendo-se como tal os

“expostos á venda a retalho”, fosse “para os géneros produzidos no Concelho como para os de fora d’elle”. Cf.

Codigo Administrativo Portuguez…, 1842, pp. 36-37. 59 Em 1841, a câmara solicitou informação à junta distrital para esta confirmar se a derrama devia consistir na sexta

parte do total da décima predial, “como era expresso”, ou apenas no equivalente à sexta parte da décima pertencente

13

jornaleiros, a classe mais baixa do mercado de trabalho rural, com “até dois dias de

trabalho, ou no dinheiro correspondente” por cada ano60.

Apesar do número dos que se viam tributados ser bastante mais abrangente, os

maiores pagadores eram naturalmente os grandes proprietários agrícolas que, à época,

constituíam as elites dominadoras da terra. Eram estes homens que asseguravam a

composição dos órgãos camarários e afins61, os quais, sempre que podiam, procuravam

resistir às contribuições ou adiar os prazos de pagamento. A forma mais utilizada para o

fazerem era, nas reuniões dos órgãos municipais em que tinham assento, enveredarem

por manobras dilatórias. Umas vezes porque as atas não estavam assinadas por todos os

membros, outras pelo facto de pretenderem esmiuçar os custos correspondentes a cada

item da assistência na discussão dos orçamentos, outras, ainda, por discordarem dos

valores a pagar, alegando que podiam ser inferiores se outros débitos à câmara, como os

foros, estivessem liquidados pelos aforadores, o que raramente acontecia62. Em

determinadas sessões, a aprovação dos orçamentos era adiada por sucessivas faltas de

quórum63. Em 1839, o deputado municipal José Joaquim Ferreira de Melo e Andrade,

alegando que a câmara não satisfez as respostas a um requerimento seu, em reunião

anterior, sobre a dívida ativa e passiva global, para, em face dessa informação, poder

deliberar sobre as derramas, disse “que lhe não era possível vottar por derrama alguma

enquanto não tivesse pleno conhecimento do deve e há de haver actual da respectiva

municipalidade, pelo que se ressalva de qualquer responsabilidades ou nota futura”64.

Porém, mesmo após a aprovação dos orçamentos e de devidamente notificados sobre as

somas que lhes cabiam satisfazer e as datas em que tal contributo devia ocorrer, muitos

contribuintes atrasavam o pagamento o mais que podiam, às vezes durante anos65.

Os membros do conselho tentavam ainda baixar os orçamentos para a assistência

reclamando contra o custo de alguns funcionários, pagos por essa rúbrica, que podiam

ser dispensados. Como aconteceu em abril 1838 quando o próprio presidente da câmara,

invocando o mau estado do cofre dos expostos e a “repuggnancia que os povos tinham

no pagamento de derramas” propôs fosse “vetado” o cirurgião do partido dos expostos

ao município. A junta distrital informou que era pela sexta parte do total da décima predial. AMPL, Livro de atas da

câmara, 1841, fls. 190-192v. 60 Codigo Administrativo Portuguez…, 1842, p. 36. 61 Criado pelo código administrativo de 1842, o conselho municipal tinha competências para discutir e votar as

decisões das câmaras em matéria financeira. Previa o artigo 165.º do mesmo documento que “Os vogais do concelho

municipal são os eleitores que pagarem a maior quota de décima do concelho”. Codigo Administrativo Portuguez…,

1842, pp. 41-42. 62 AMPL, Livro de atas da câmara, 1839, fls. 89-91v; Idem, 1841, fl. 195. 63 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 195. 64 AMPL, Livro de atas da câmara, 1839, fls. 93-96v. 65 AMPL, Livro de atas da câmara, 1838, fls. 57-59v; Idem, 1839, fls. 89v-91v.

14

enquanto não houvesse rendimentos para tal e que, quando fosse absolutamente

necessário examinar o estado de saúde dos expostos, o município pagasse ao facultativo

por consulta, conforme a tabela da terra, evitando assim mais esta despesa66. A decisão

viria a ser reprovada pela junta distrital, mas entre as respostas e as contra respostas

trocadas entre os Póvoa de Lanhoso e Braga, foram gastos quase dois anos.

Era também comum a câmara ou o conselho municipal contrariarem as deliberações

dos próprios órgãos distritais, solicitando o alargamento dos prazos para lançamento das

derramas ou pedindo que as mesmas fossem reduzidas, em função das dificuldades dos

contribuintes. Em 1839, aquando da fixação, pelo conselho de distrito, da verba a

derramar para “amorttizar em parte ou no todo a divida de 1 conto, 215.965 rs. que se

está devendo ás Amas dos Expostos”, foi a arbitragem unanimemente rejeitada pelos

deputados das freguesias sob alegação de que nenhuma lei autorizava a o órgão distrital

a tal deliberação67.

Sustentada em serviços organizados de forma rudimentar e sempre deficitários em

termos de funcionalismo, queixava-se constantemente a corporação municipal de não

possuir dados fiáveis sobre as posses dos munícipes, deixando muitas vezes de cobrar as

devidas derramas ou coletando-as em percentagens reduzidas. Para combater mais esta

limitação, decidiu, em 1841, proceder à nomeação de “pessoas inteligentes e [de]

conhecida consciência” para procederem à derrama sobre as propriedades, visto não

possuir dados suficientes para a lançar com toda a justiça68. A investida não terá

resultado como a câmara pretendia pois, nos anos seguintes, acabou a recorrer às juntas

de paróquia, que, em conjunto com os regedores e “informadores”, eram quem tinha

“perfeito conhecimento dos teres e indústria dos contribuintes” nelas residentes69. A

recolha das contribuições especiais sobre carnes e vinhos eram também um problema,

“visto que os vendeiros não só repugnam em declarar os vinhos” mas ameaçavam até os

recebedores que os visitavam70.

Em 1843, o conselheiro municipal Sousa Geão, alegando as “calamittosas

circunstancias finnanceiras dos povos do municipio e os mesquinhos rendimentos que

elle tem”, apresentou uma proposta para que se solicitasse ao conselho de distrito que

reconsiderasse a sua deliberação de fazer subir os valores do orçamento aprovado no

66 AMPL, Livro de atas da câmara, 1838, fls. 41-42v. 67 AMPL, Livro de atas da câmara, 1839, fls. 89v-91v. 68 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 2. 69 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 2. 70 AMPL, Livro de atas da câmara, 1847, fls. 70-70v.

15

município para os expostos. Na ata da sessão fez ainda registar que não obstante a

obediência às leis a que o seu cargo o obrigava, sentia a responsabilidade de defender os

munícipes pagadores que representava. A parte final da declaração deixava antever

preocupações de ordem política, ou mesmo eleitoralista, ao ser solicitado que se a

proposta por si defendida não fosse aceite pela junta de distrito, devia ser anunciado a

todos os munícipes que “tal vexame lhes não provem por ommissão ou negligência da

Camara ou do Conselho Municipal”, mas dos órgãos do distrito71.

Também o cálculo das derramas, arbitradas pela câmara sob proposta das juntas de

paróquia, era muitas vezes posto em causa por aqueles que se achavam sobretaxados,

tratados com invocada injustiça na comparação com vizinhos e conhecidos. E disso

mesmo davam conta à câmara através de reclamações por escrito que, na maioria dos

casos, eram, depois de analisadas, tomadas em conta, chegando os valores a ser

reduzidos para menos de metade72.

Preocupação maior dos órgãos do município era o “excessivo tempo” que os

depositários das contribuições e derramas retinham em seu poder os róis de cobranças e

os dinheiros recebidos73. Em 1839, o depositário Manuel José de Miranda Lemos tinha

um débito para com a câmara de 563.748 réis74, pelo que foi participado ao delegado do

procurador régio75. Três anos volvidos, já outro depositário, Manuel José Antunes

Guimarães, era chamado ao paço do concelho para justificar a razão pela qual não tinha

entregado o dinheiro recebido para os custos dos expostos76. A justificação dada por

este último foi que havia grande dificuldade em receber, pelo que a coleta se achava

com grande atraso. A câmara decidiu então dar ordens aos presidentes de junta de

paróquia para, no prazo de oito dias, obrigarem os devedores dos róis a pagarem o que

deviam ou, se a isso se recusassem, serem executados por penhora de bens77. Ressalve-

se que os depositários não eram funcionários ou prestadores contratados, antes membros

do conselho municipal, isto é grandes proprietários, eleitos em conselho para a função.

Este tipo de situação era regularmente denunciada ao governador civil. Porém, cabendo

aos órgãos camarários ou em último recurso aos tribunais tomarem medidas78, a

71 AMPL, Livro de atas da câmara, 1843, fls. 95-97v. 72 AMPL, Livro de atas da câmara, 1843, fls. 100-102. 73 AMPL, Livro de atas da câmara, 1839, fls. 96-96v. 74 AMPL, Livro de atas da câmara, 1839, fls. 97-100. 75 AMPL, Livro de atas da câmara, 1839, fl. 108. 76 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fl. 177v. 77 AMPL, Livro de atas da câmara, 1841, fls. 178-178v. 78 AMPL, Livro de atas da câmara, 1845, fl. 42-42v.

16

denúncia funcionava apenas como justificação perante os magistrados distritais para o

atraso no pagamento das despesas79.

Todos estes procedimentos se mantiveram durante as décadas em estudo. Na década

de 1850, sentindo incapaz de os resolver, ressalvava invariavelmente a câmara que os

povos se queixavam de não poderem pagar “por falta de numerário que entre eles

gira”80, fazendo saber ao governador do distrito que “o estado em que os conttribuintes

do concelho na sua maxima partte se acham, a braços com a fome e com a mizeria por

causa da bem notoria escassez de cereaes e falta de vinho, mananciaes de que esta

máxima parte conttribuinte tira a sua subsistencia e de suas famílias e o pagamento dos

Impostos Gerais, Distritais, Municipais e Paroquiais” decretados, obrigá-los a pagar

configurava “uma escandalosa zombaria da mizeria dos mesmos povos, um completo

desprezo pela sua sorte administrativa e finalmente uma immoralidade palpitante e

vergonhosa”, onerando-se assim os “desgraçados contribuintes, a maior parte dos quais

não devem senão lágrimas, não se ouvem senão gemidos de aflição por não terem meios

de proverem a sua subsistência, (…) sendo-lhe de mais a mais necessário comprar aos

mais abastados, que é o menor número, o pão quotidiano, sem meios para isso”81.

Por esta mesma altura, embora resistisse na sociedade uma franja que defendia a

necessidade de proteção da honra das mulheres honestas que, “por um momento de

debilidade, seriam para sempre desonradas”, arrastando para a lama, com o seu, o nome

das suas famílias, o que para se protegerem as poderia levar ao infanticídio, outra parte

colocava em causa a moralidade e a defesa da exposição82. A discussão, que ocorreu

não só em Portugal como noutros países83 levou a que em 1867 fosse publicada uma

primeira lei tendente a extinguir as Rodas84. A lei acabaria revogada no ano seguinte por

se mostrar-se “prematura” para, posteriormente, se iniciar um processo que apenas

gradualmente levaria à extinção, sempre por iniciativa de cada distrito85. No caso da

Póvoa de Lanhoso também as mudanças que foram sendo introduzidas na legislação a

79 Sobre receitas e impostos municipais durante o liberalismo pode ler-se Oliveira, César, “Nota breve sobre as

finanças municipais no Liberalismo”, in Oliveira, César (dir.), História dos Municípios e do Poder Local [dos finais

da Idade Média à União Europeia], Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 219-222. 80 AMPL, Livro de atas da câmara, 1851, fl. 171v-172. 81 AMPL, Livro de atas da câmara, 1854, fls. 91v-94. 82 Lopes, Maria Antónia, “Nacer y sobrevivir: La peligrosa infancia en Portugal durante los siglos XVIII y XIX” in

Núñes Roldán, Francisco, La Infancia en España y Portugal (Siglos XVI-XIX)…, pp. 57-58. 83 Lopes, Maria Antónia, “Nacer y sobrevivir: La peligrosa infancia en Portugal durante los siglos XVIII y XIX” in

Núñes Roldán, Francisco, La Infancia en España y Portugal (Siglos XVI-XIX)…, pp. 57. 84 Réis, Maria de Fátima, Os Expostos de Santarém. A Acção Social da Misericórdia (1691-1710)…, p. 90. 85 Roque, João Lourenço, Classes populares no distrito de Coimbra no século XIX (1830-1870). Contributo para o

seu estudo…, pp. 717-723; Lopes, Maria Antónia, “Os pobres e a assistência pública”, in Mattoso, José (dir.),

História de Portugal, vol. 5.., p. 505. Sobre este tema, consultar ainda Vaquinhas, Irene, “A família, essa ‘pátria em

miniatura’”, in Mattoso, José (dir.), História da Vida Privada em Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 2011, pp.

118-151, e muito especialmente o subcapítulo “Os ‘sem família’”, pp. 134-136.

17

partir de 1867 não alteraram significativamente a situação, mantendo-se o número dos

expostos apoiados na casa das muitas dezenas, apenas começando a decrescer na última

década do século XIX. Em 1900 eram ainda 32 as amas remuneradas e só a partir dessa

data o número foi diminuindo progressivamente, para se registarem apenas nove em

190786.

Considerações finais

Ao longo de boa parte de Oitocentos, os custos com a assistência, que no caso da

Póvoa de Lanhoso se resumiam às importâncias gastas com os expostos, foram uma das

maiores preocupações dos municípios, especialmente dos mais pequenos e dos que se

situavam em contexto rural, dado as derramas e outros impostos lançados para o efeito

se mostrarem sempre elevados para quem pagava e insuficientes para quem tinha o

dever de os gerir. A situação exasperava as vereações que, se por um lado, mesmo

contrariadas, se viam obrigadas a cumprir as leis em vigor que as obrigavam à prática

dessa assistência, sofriam, por outro, reclamações e pressões dos contribuintes contra

tais encargos. O elevado número de enjeitados que nas décadas de 1830-50 dependiam

desses apoios obrigou mesmo as autoridades a utilizar processos para controle da

exposição que passavam, sobretudo, pelo apertada fiscalização das mulheres grávidas,

obrigadas a comprometer-se a criar as crianças que geraram e a jurar que as não

abandonariam à Roda. Mas nem as reações dos munícipes aos pagamentos das

contribuições, nem a vigilância e as ameaças às mulheres grávidas, levaram à

diminuição do número de expostos, razão pela qual, ano após ano, os défices das

corporações municipais se tornavam mais elevados. Os reflexos desta situação

prejudicaram não só aqueles que se viram obrigados a contribuir regularmente para o

custeio de tais despesas, como as próprias câmaras, que dado esse grande investimento

se viam impossibilitadas de proceder a outras melhorias nas terras que lhes eram dadas a

administrar.

86 AMPL, Pasta de expostos da Junta Geral do Distrito, documentos avulso, sem paginação.