Políticas Culturais e Democracias Locais (Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número...

17
Revista Práticas de AnimaçãoAno 7 Número 6, Outubro de 2013 http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com 1 Políticas Culturais e Democracias Locais Mestre Rui Matoso Docente na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Gestor e Programador Cultural Se a sociedade politicamente organizada não acionar processos de re-democratização, pode estar em causa a sobrevivência da democracia. O que vem não será uma ditadura. Será uma ditamole ou uma democradura. Boaventura de Sousa-Santos [revista Visão, 13 de Setembro de 2007] 1 Este texto pretende-se como um conjunto de reflexões em torno das políticas culturais locais e da sua intima conexão com re-democratização da vida colectiva. Em contexto de crise generalizada (económica, social e política) a dimensão cultural das políticas públicas locais é frequentemente desprezada, justificando-se consensualmente pelos deficits das contas públicas, situações de carência social ou falta de infraestruturas de saneamento básico. Esta postura radica ainda no então designado “grau zero do poder local” 1 , ou seja, num funcionamento excessivamente consensual da ação política e na sua contrapartida mais elementar: o fazer obra. O diagnóstico relativo às debilidades do poder local está feito há muito: «...entre as condicionantes da autonomia e as das potencialidades do poder autárquico, a ação política municipal parece caracterizar-se sobretudo por um défice de poder. O processo de democratização, de diferenciação da sociedade e do desenvolvimento local, impõem uma maior capacidade de seleção de alternativas...conducentes a uma dinamização do desenvolvimento local.» 2 . É preciso entender aqui a expressão «défice de poder local» como falta de 1 «Uma das razões, julgamos, que podem explicar este consenso é o que denominamos de "grau zero do poder local-, entendido como a aceitação relativamente pacifica e generalizada, da necessidade, durante uma primeira fase de implementação do poder local (1974-1984), de um programa de acção centrado na criação de infra-estruturas e equipamentos sociais» JUAN MOZZICAFREDO, ISABEL GUERRA, MARGARIDA A. FERNANDES, JOÁO QUINTELA [1988]. Revista Crítica de Ciências Sociais nº 25/26 2 Idem, p. 111

Transcript of Políticas Culturais e Democracias Locais (Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número...

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

1

Políticas Culturais e Democracias Locais

Mestre Rui Matoso

Docente na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias

Gestor e Programador Cultural

Se a sociedade politicamente organizada não acionar processos de re-democratização,

pode estar em causa a sobrevivência da democracia. O que vem não será uma ditadura. Será uma ditamole ou uma democradura.

Boaventura de Sousa-Santos [revista Visão, 13 de Setembro de 2007]

1

Este texto pretende-se como um conjunto de reflexões em torno das

políticas culturais locais e da sua intima conexão com re-democratização da

vida colectiva. Em contexto de crise generalizada (económica, social e política)

a dimensão cultural das políticas públicas locais é frequentemente desprezada,

justificando-se consensualmente pelos deficits das contas públicas, situações

de carência social ou falta de infraestruturas de saneamento básico. Esta

postura radica ainda no então designado “grau zero do poder local”1, ou seja,

num funcionamento excessivamente consensual da ação política e na sua

contrapartida mais elementar: o fazer obra.

O diagnóstico relativo às debilidades do poder local está feito há muito:

«...entre as condicionantes da autonomia e as das potencialidades do poder

autárquico, a ação política municipal parece caracterizar-se sobretudo por um

défice de poder. O processo de democratização, de diferenciação da sociedade

e do desenvolvimento local, impõem uma maior capacidade de seleção de

alternativas...conducentes a uma dinamização do desenvolvimento local.»2. É

preciso entender aqui a expressão «défice de poder local» como falta de

1 «Uma das razões, julgamos, que podem explicar este consenso é o que denominamos

de "grau zero do poder local-, entendido como a aceitação relativamente pacifica e generalizada, da necessidade, durante uma primeira fase de implementação do poder local (1974-1984), de um programa de acção centrado na criação de infra-estruturas e equipamentos sociais» JUAN MOZZICAFREDO, ISABEL GUERRA, MARGARIDA A. FERNANDES, JOÁO QUINTELA [1988]. Revista Crítica de Ciências Sociais nº 25/26 2 Idem, p. 111

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

2

distribuição do poder (poder relacional) pelos diversos grupos de atores sociais

locais, gerando essa ausência uma acumulação de poder nas mãos do “César

local”. É aliás reconhecido que os autarcas recorrem frequentemente às vias

informais, aos contactos pessoais e às cumplicidades partidárias dando assim

azo à formação de clientelas e ao centralismo da administração local e, por

consequência, ao chamado "cesarismo local". Daí a utilidade pública da lei da

limitação de mandatos (Lei nº 46 /2005 de 29 de Agosto) . É este, diz

Boaventura Sousa-Santos, o paradoxo do poder local no nosso país:

Presidentes de Câmara fortes coexistem com um poder local fraco.

A construção e a seleção de alternativas políticas e sociais, num mundo

interdependente e em sociedades hipermediatizadas, só poderá florescer e

intensificar-se num contexto de cidadania cultural sinónima do exercício de

liberdades e direitos culturais.

O que de fundamental uma política cultural ao nível municipal deverá

propor é uma Cultura Cívica, a cultura promovida com os cidadãos, sempre no

plural. A tónica no pluralismo é uma preocupação central, pois não se pode

reduzir a produção cultural de uma sociedade à hegemonia ou ao pensamento

único. Aliás, como refere a UNESCO, a diversidade cultural é o maior tesouro

da humanidade, pelo que deve ser protegida e socialmente valorizada.

As cidades ideais são entidades dinâmicas, e por isso mesmo geram

novas formas de organização, novos projetos e novas relações sociais

consubstanciadas em redes locais de tipologias diversas. Daqui resulta que os

direitos políticos e os direitos culturais sejam direitos de cidadania, isto é,

direitos cuja efetividade dependem da ação coletiva dos cidadãos, e não

apenas de atos isolados ou atomizados, como a lógica do individualismo

neoliberal pretende insistentemente fazer crer. Neste sentido, a cultura –

enquanto dimensão de política pública – não pode continuar a ser entendida

como mero entretenimento ou ocupação dos tempos livres vocacionada para a

distração dos cidadãos mais aborrecidos, mas antes como uma capacidade

ativa de cidadania: como conjunto de ferramentas simbólicas e conceptuais

que os membros de uma comunidade necessitam para lidar com a realidade

difusa do mundo contemporâneo e para elaborar novas estratégias de vida

coletiva.

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

3

Não confundimos por isso cultura com indústria do entretenimento ou

com as indústrias criativas enquanto “trendies”. Cultura, enquanto dimensão da

política pública, afigura-se como a capacidade individual e coletiva inserida

numa dinâmica de desenvolvimento integrada num projeto comum para

determinado território. Enquanto que “entretenimento” tende a ser consolação

anestesiante e cómoda perante as perplexidades complexas do mundo atual, e

cuja perspetiva implica exclusivamente a visão do cidadão como consumidor:

“o idiota feliz”. Uma política pública não pode conformar-se com esta visão

hiperconsumista e hiperindividualista. Sem uma: uma cidade (polis) não é um

shopping.

Por um lado, a cultura tende a englobar o repertório de uma sociedade,

o seu conjunto de traços distintivos espirituais, materiais, intelectuais e afetivos:

estilos de vida (padrões de cultura), tradições, patrimónios, memórias,

identidades, costumes, valores e significados. Numa atitude que valorize o

passado enquanto memória coletiva, sem que isso conduza a uma cristalização

dos fenómenos culturais, reconhecendo-se assim que todas as identidades

culturais são dinâmicas. Por outro, a cultura na sua componente sectorial

ligada às artes, às criatividades, aos conhecimentos, às ciências e às

tecnologias, proporciona-nos um maior capital de inovação, uma atmosfera de

vitalidade e um vasto stock de experiências absolutamente necessárias para o

futuro da cidade que se pretenda como lugar de vida vibrante, sustentável e

socialmente justa.

2

A centralidade da dimensão cultural das cidades e da sua importância

para o desenvolvimento sustentável das mesmas é inegável, desde há

décadas que não se fala de outra coisa e a proliferação de estudos neste

campo é notória. Contudo, o panorama nas cidades médias portuguesas é

complexo e fruto de diversas encruzilhadas3: societais, políticas, educacionais,

urbanas, culturais, económicas e geográficas.

3 Um estudo em cinco cidades portugueses tomou por referência empírica as cenas

culturais das cidades de Aveiro, Braga, Coimbra, Guimarães e Porto, ao longo da segunda

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

4

Algumas dessas tensões já identificadas são:

o impacto, poder mediático e incrustação das “industrias culturais”

globalmente produzidas em território local - o que gera novas tipologias,

gostos e modas de consumo cultural;

o reforço do consumo cultural doméstico por via do potencial lúdico das

novas tecnologias versus a participação cultural em espaços públicos e

semi-públicos (fora de casa);

entre modelos de associativismo “antigos” e “novos”, ou seja, entre uma

visão do associativismo cultural generalista baseada no papel de

intermediação e acesso a “obras primas” (modelo antigo) e um

associativismo especializado em projectos mais profissionalizados e

específicos ;

entre o envelhecimento da população e o aumento da escolarização

(mais jovens licenciados), o que significa o potencial aumento de público

jovem e a preocupação com a oferta cultural para públicos seniores;

a tendência para o conformismo e escassa participação cívica, bem

como a fraca resistência aos poderes locais instituídos; isto, note-se, em

situação de liberdade democrática (pós 25 de Abril);

a valorização e empenho político-administrativos em prol de eventos

maioritários e de massas (de largo espectro eleitoral) versus a ausência

de políticas e estratégias favoráveis à diversidade e pluralidade de

minorias culturais e artísticas;

a dificuldade de articulação e cooperação inter-associativa e entre

protagonistas (programadores, artistas, activistas,...) por um lado, e a

tentação (real) da “municipalização da cultura”, ou seja, a absoluta

centralidade dos equipamentos e dispositivos municipais e participação

directa da Câmara como produtora de eventos culturais, por outro; o que

na prática significa a existência de um consensualismo sóciocultural,

logo um défice de práticas diversificadas e a redução dos “mundos”

possíveis a uma unificação ideológica;

a escassez de apoios públicos contrasta com a absoluta necessidade de

metade dos anos 1990, algumas conclusões deste estudo estão acessíveis em Sociologia, problemas e práticas, n.º 62, 2010, pp.11-34 . http://sociologiapp.iscte.pt/

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

5

encontrar mecanismos redistributivos e de captação de financiamento,

neste caso é notória a ausência de pensamento estratégico e de gestão

cultural ao nível da governança local, nomeadamente em equacionar

soluções para o estabelecimento de fundos destinados ao financiamento

de projectos da sociedade civil, por exemplo, através da criação de

agências ou plataformas de angariação de mecenato;

o poder de atração das metrópoles (Lisboa e Porto) contrasta com a

ausência de políticas e medidas que visem a criação de condições

favoráveis ao estabelecimento dos jovens criativos nas suas cidades de

pertença, provocando assim o êxodo de massa crítica e de capital

cultural para as grandes urbes e a consequente desertificação intelectual

e simbólica.

Faltarão nesta lista outras tensões e paradoxos da vivência cultural

urbana, todavia, a maior destas lacunas e a mais estruturante é sem dúvida a

inexistência de um debate construtivo e conclusivo acerca dos modelos de

políticas culturais locais motivadas pela intensificação da democracia e pelo

desenvolvimento humano sustentável4.

A exigência de políticas públicas qualificadas e democratizantes é um

imperativo cívico categórico, e não existem razões plausíveis para que não

existam propostas políticas competentes nesse sentido, os conhecimentos e a

informação que permitem essa mesma definição são recursos abundantes na

era da sociedade do conhecimento, não sendo por isso necessário inventar de

raiz a roda ou descobrir a galinha dos ovos de oiro...

Uma das matrizes contemporâneas visa exactamente colocar a

dimensão cultural das políticas públicas (e das cidades) na reconfiguração de

um paradigma de desenvolvimento sustentável que inclua a cultura como

quarto pilar, para além dos habitualmente conhecidos: ambiente (proteção

ambiental), economia (justiça económica) e social (coesão social).

A cultura é (ou deveria ser) cada vez mais o epicentro das políticas

municipais, pela importância que vem revelando no contexto de um paradigma

de desenvolvimento humano integral. Para além da atenção que lhe é dirigida

4 Sobre a relação entre cultura e desenvolvimento sustentável: http://www.academia.edu/1100666/Cultura_e_Desenvolvimento_Humano_Sustentavel

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

6

graças à sua intima conexão a factores de índole económica, social e urbana; a

sua relevância deve-se essencialmente às relações intrínsecas que mantém

com as questões da identidade, da memória, da criatividade, da ciência e do

pensamento e conhecimento crítico. Contudo, os modelos em que vêm sendo

plasmadas as estratégias de desenvolvimento sustentável de grande parte das

cidades europeias, designadamente através da implementação da Agenda 21

Local5 e dos compromissos da Carta de Aalborg6, tendem a ignorar a cultura

como um dos seus eixos vertebradores.

O modelo de Desenvolvimento Humano Sustentável (PNUD7) enfatiza

as várias dimensões necessárias para o desenvolvimento, abrangendo não só

o crescimento económico, mas também a erradicação da pobreza, a promoção

da equidade e inclusão sociais, da igualdade de género e étnica, a

sustentabilidade ambiental, a participação política e os direitos humanos, todos

considerados factores determinantes para o aumento da qualidade de vida

humana.

A Convenção sobre a Protecção e a Promoção da Diversidade das

Expressões Culturais, adotada em Outubro de 2005 pela 33ª Conferência Geral

da UNESCO, e ratificada em Dezembro do mesmo ano pela União Europeia,

explicita no seu Artigo 2º (princípios orientadores) alínea 6 (princípio do

desenvolvimento sustentável) que «a diversidade cultural é uma grande riqueza

para os indivíduos e sociedades. A proteção, a promoção e a manutenção da

diversidade cultural constituem uma condição essencial para um

desenvolvimento sustentável em benefício das gerações presentes e futuras».

Ao ratificar esta convenção, os Estados-membros comprometem-se a

empenhar-se em integrar a cultura nas suas políticas de desenvolvimento, a

todos os níveis, tendo em vista criar condições propícias ao desenvolvimento

sustentável e, neste contexto, privilegiar os aspectos ligados à proteção e à

promoção da diversidade das expressões culturais. Portugal ratificou8 a

convenção em 2007, desde então já passaram seis anos, e no entanto não se

vislumbra a referida integração nas políticas de desenvolvimento ao nível local,

5 http://www.agenda21local.info/

6 http://www.aalborgplus10.dk/

7 http://www.undp.org/content/undp/en/home.html

8 Através do Decreto do Presidente da Republica no 27-B/2007, de 16 de Marco.

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

7

mas essa seria a escala onde o efeito das medidas e das opções políticas mais

repercussões pragmáticas evidenciaria.

Urge por isso repensar as políticas culturais e a sua interdependência

face aos outros sectores das políticas urbanas, numa visão integrada da

administração pública local. Uma proposta possível dá-se por via da expansão

das agendas 21 locais pela inclusão de agendas 21 culturais.

3

As cidades não podem ser meras máquinas artificiais e administrativas capturadas pelos fluxos globais de hegemonização, da informação e do financiamento.

Nem produtos “prontos-a-consumir” enclausuradas numa cultura burocrática.

Portuguesa Monochrome (Paulo Mendes) DR

Os acontecimentos recentes no 1ª Avenida (Porto), envolvendo o

trabalho do artista Paulo Mendes9 e a exposição “Uma questão de género”10

dão visibilidade a uma preocupante tendência (antiga) de domesticação da

esfera pública cultural, designadamente através do uso de entraves,

esquecimentos, negligências, etc. - por ação ou por omissão- na tentativa de

9 http://www.paulomendes.org/?pagina=noticias/noticias&accao=ver_noticia&id_noticia=478#conteudo e http://www.publico.pt/cultura/noticia/paulo-mendes-nao-aceitou-proposta-da-camara-do-porto-de-manter-bandeira-no-exterior-do-axa-apenas-uma-semana-1592877

10 http://www.artecapital.net/noticia-3138-sa%C3%ADda-da-exposicao-1%C2%AA-

avenida-uma-questao-de-genero-no-porto

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

8

filtrar a visibilidade da produção artística e cultural, e procurando assim evitar

que certas obras (e autores) menos consentâneas com o status quo

contaminem a cidade ou as instituições com as suas propostas críticas.

As razões para que isso aconteça são de natureza diversa, mas tem o

seu denominador comum no desejo totalitário de incluir a dimensão estética

nas opções políticas, desejo esse incompatível com o princípio da separação

entre o juízo de gosto e a função da governação democrática, tal como previsto

no 2 do Art 43º da Constituição da República Portuguesa (CRP): «O Estado

não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes

filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.». Apesar da clareza

interpretativa do artigo da CRP, intitulado «Liberdade de aprender e ensinar»,

são prolíficos os casos onde é notória a “mão invisível” dos autarcas por detrás

da definição de programações, projetos, eventos e iniciativas públicas de

cultura, como se se tratasse de um direito natural ou régio11.

Mas, reconhecendo que as políticas culturais não se restringem às

“políticas da arte”, voltemos um pouco atrás. Por um lado, a prioridade dada à

dimensão cultural das políticas públicas locais, remete para a questão da

autonomia cultural de uma determinada “comunidade” enquanto forma de

definição das prioridades das suas práticas expressivas e criativas, sejam estas

públicas ou privadas, individuais ou colectivas; por outro, a necessidade de se

transcender a dimensão económica do desenvolvimento, afirmando que os

direitos económicos e os direitos políticos não podem ser separados dos

direitos sociais e culturais, coloca a diversidade cultural e criativa como fontes

de capacitação e empoderamento dos indivíduos e das comunidades.

Este é um passo fundamental para o aprofundamento da democracia

participativa e da intensificação da cidadania activa na vida pública das

cidades, nomeadamente na definição de políticas e avaliação da execução das

mesmas. Esta asserção, da importância da cultura para a densidade

qualitativa da democracia local parece-nos evidente, primeiro porque as

identidades individuais e colectivas contemporâneas se (de)formam sob

11 Sobre esta temática sugiro a leitura do meu texto « Da política de gosto à

construção do consenso e vice-versa », http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

9

influência de um capitalismo semiótico (semiocapital12), e segundo porque este

é um campo de batalha fulcral onde se entroncam questões relacionadas com

o trabalho e a liberdade. Neste sentido, a cultura – enquanto dimensão de

política pública – não pode continuar a ser entendida como mero sinónimo de

entretenimento ou diversão, mas antes como uma capacidade activa de

cidadania: como conjunto de ferramentas simbólicas e conceptuais que os

membros de uma comunidade necessitam para lidar com a realidade difusa e

complexa do mundo contemporâneo e para elaborar novas estratégias de vida

colectiva. Todavia, apesar de décadas de produção cognitiva e empírica em

torno dessa “evidência” a resistência dos nossos governantes locais ao

desenvolvimento da democracia e da cidadania cultural continua inamovível

(há sempre exceções, claro).

Sem cair em exageros e sem ter de recuar à Convenção Cultural

Europeia13 (1954), é no entanto necessário reconhecer a importância do

legado do Conselho da Europa na promoção de boas práticas em matéria de

políticas culturais14 . Como mero exemplo, a Declaração Europeia de

Objectivos Culturais (1984) propõe seis grandes causas comuns e objectivos

fundados na «liberdade e esperança»: desenvolvimento da criatividade e do

património; desenvolvimento das atitudes humanas; salvaguarda da liberdade;

a promoção da participação; incentivar o sentido de unidade e comunidade; e a

construção do futuro.

Em Maio de 2007, a Comissão Europeia aprovou uma comunicação

intitulada Agenda Europeia para a Cultura num Mundo Globalizado. A partir

deste momento a dimensão cultural do desenvolvimento assume na Agenda

uma proeminência que até aqui não havia assumido em nenhum órgão oficial

da União Europeia, começando por apresentar uma definição ampla

(antropológica) de cultura, e não apenas uma conceptualização sectorial

restrita: «A cultura encontra-se no cerne do desenvolvimento humano e da

civilização. Cultura é aquilo que leva as pessoas a ter esperança e a sonhar,

estimulando-lhes os sentidos e facultando-lhes novas maneiras de encarar a

12 Acerca desta noção: Franco Berardi Bifo, Cognitarian Subjectivation: http://www.e-

flux.com/journal/cognitarian-subjectivation/

13 O documento integral da Convenção Cultural Europeia está disponível em:

http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/018.htm 14 http://www.culturalpolicies.net

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

10

realidade. É aquilo que congrega as pessoas, suscitando o diálogo e

despertando paixões, de uma maneira que une em vez de dividir. A cultura

deveria ser vista como um conjunto de traços distintivos espirituais e materiais

que caracterizam uma sociedade e um grupo social. Abarca a literatura e as

artes, assim como modos de vida,sistemas de valores, tradições e

crenças.»(p.2).

Pôr as mãos à obra

Escusando-me a mais proselitismo eurocêntrico, convém esclarecer

cabalmente que uma das ambiguidades inerentes ao termo “política cultural” é

poder pensar-se que equivale a uma administração das actividades culturais,

no sentido em que se produz e programa a acção cultural. Por isso, não

podemos deixar de sublinhar que a administração pública, o Estado, ou

qualquer forma de governação política local ou regional não produz, nem

programa, cultura. Pode e deve apenas operar estrategicamente nas outras

esferas que não as da produção (criação): distribuição, acesso,

democratização, financiamento, regulamentação, salvaguarda,

desenvolvimento, sustentabilidade, etc. Deste modo, as autarquias não podem

aspirar a determinar, dirigir, controlar ou tutelar a cultura, mas antes a

incentivar uma efectiva participação e a autonomia da pluralidade dos agentes.

Assim, pode perceber-se que umas das finalidades fundamentais das políticas

públicas de cultura é a de desenvolver o protagonismo cultural da sociedade

civil, das populações, dos artistas e criadores, dos grupos amadores, das

associações, das indústrias culturais e criativas, na sua potencial diversidade e

riqueza de conteúdos.

Este entendimento tem como pressuposto de base o dever de

autonomizar de forma clara e inequívoca as instituições e os equipamentos

culturais públicos (salas de espectáculo, museus, galerias, etc), garantindo as

condições de trabalho e a independência aos seus responsáveis. Ao mesmo

tempo que se exigem formas de gestão e avaliação intrínsecas a um serviço

público de qualidade e catalisador de práticas democráticas regulares. Isto

significa que só com um forte pensamento estratégico se pode e deve encarar

a dimensão cultural da política e da cidade. Ou seja, medidas avulsas,

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

11

devaneios pessoais ou eventos sazonais, não são necessários nem suficientes

para elaborar uma política cultural!

Dar primazia ao desenvolvimento e à cultura é, antes de mais,

aprofundar a democracia e a cidadania enfatizando a dimensão cultural, ou

seja: o desenvolvimento da criatividade e o incremento da inovação. É

defender a igualdade de oportunidades, é facultar a expressão cultural, facilitar

o conhecimento das várias línguas, é reforçar as relações interculturais. Hoje, a

derradeira finalidade de uma política cultural é a de enriquecer o universo de

possibilidades abertas às práticas culturais dos cidadãos, intervindo sobre as

condições que estruturam essas mesmas práticas:

· Condições de produção e criação cultural em sentido amplo;

· Condições de conservação, preservação e valorização do património

cultural material e imaterial, bem como de investigação, crítica, divulgação e

ensino;

· Condições de acessibilidade aos serviços e aos bens culturais ;

· Condições de fruição das artes e dos equipamentos culturais em

diferentes modalidades e intensidades.

4

Plans are nothing, planning is everything

De modo a favorecer o potencial e a diversidade das práticas, as

políticas culturais devem estar correlacionadas com o conjunto das políticas de

desenvolvimento sustentável dos municípios, formando o que vem sendo

reconhecido como o 4º pilar do desenvolvimento (humano) sustentável15.

Existem claras analogias políticas entre as questões culturais e ecológicas,

pois tanto a cultura como o meio ambiente são bens comuns da humanidade.

De acordo com estes princípios, a Agenda 21 da Cultura16

(www.agenda21culture.net) vem complementar a Agenda 21 Local - Carta de

15 http://www.uncsd2012.org/index.php?page=view&type=1000&nr=506&menu=126

16 A Agenda 21 da cultura foi aprovada por cidades e governos locais de todo o mundo comprometidos com os direitos humanos, a diversidade cultural, a sustentabilidade, a democracia participativa e a criação de condições para a paz. Aprovada no dia 8 de maio de

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

12

Aalborg - (http://www.cidadessustentaveis.info), promovendo uma visão

integrada do desenvolvimento, como aliás veem defendendo a UNESCO, a

Organização Mundial de Cidades e Governos Locais ou o Fórum Social

Mundial.

Como não existe desenvolvimento sustentável sem participação activa e

crítica dos cidadãos, também a construção de uma política cultural local deve

obrigatoriamente nascer de um debate público democrático, plural e inclusivo.

O desenvolvimento cultural apoia-se na multiplicidade dos agentes sociais e os

princípios de uma boa governança incluem a transparência informativa e a

participação cidadã na concepção das políticas culturais, nos processos de

tomada de decisões e na avaliação de programas e projetos (A21C –

princípios, 5º).

A motivação para a mudança urgente e necessária na direção de

sociedades sustentáveis e indutoras de bem-estar equitativamente distribuído

não pode fazer esquecer as circunstâncias actuais da política e da microfísica

do poder, a colonização tecnocrática e o controle do espaço público ou a

concentração excessiva de poder nas formas de governação pública actuais.

Como efectivamente o uso do espaço público (urbanístico e

comunicacional) tem sido fortemente condicionado pelo poder político, a este

caberá um papel determinante na configuração de uma cidadania activa ou,

pelo contrário, de uma passividade pardacenta, para usar uma expressão

cromática do Livro do Desassossego.

E essa é sem dúvida uma visão e uma opção política; a escolha entre

uma atitude que promova a vitalidade e a coesão social das comunidades num

espaço público relacional – e conflitual-; ou uma postura conservadora que

privilegia a predominância de um Estado paternalista.

O nível mais grave da segunda opção poderá ter a forma daquilo que

Boaventura de Sousa-Santos designa como «Fascismo Societal», isto é, um

regime social e civilizacional que numa das suas formas mais radicais promove

2004, em Barcelona, pelo IV Fórum de Autoridades Locais pela Inclusão Social de Porto Alegre, no marco do primeiro Fórum Universal das Culturas. http://www.agenda21culture.net/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=9&Itemid=&lang=pt

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

13

a segregação social dos excluídos através de uma cartografia urbana dividida

em zonas selvagens e zonas civilizadas.

A ausência de uma dimensão participativa sistemática na gestão

estratégica e democrática das cidades tem levado à persistência de um

"consenso operacional", o qual é produzido e controlado pelas instâncias de

poder (político, mediático ou institucional) favorecendo a reprodução das

desigualdades, alimentando a inércia no mundo social, cuja causa e existência

aparece aos olhos do mundo como sendo eterna e metafísica (P. Bourdieu),

humanamente irresolúvel portanto. Não deixa de ser inquietante que, de acordo

com uma investigação coordenada por Manuel Villaverde Cabral, se revele que

os portugueses têm muito ou algum receio de exprimir publicamente uma

opinião contrária à das autoridades políticas.

Não existem fórmulas mágicas ou saltos quânticos que permitam passar

de uma ambiente urbano monocromático, onde a dominação sócio-política é

exercida atavicamente pelos mesmos agentes “de sempre”, para a construção

imediata ou espontânea da acção colectiva e da inovação social. Nem a

implementação burocrática de fóruns participativos com um fim em si, como se

de uma moda ou tendência se tratasse, deve ser vista como contributo

consistente para o desenvolvimento sustentável.

Iniciar um processo de construção de uma política cultural local requer

“planeamento estratégico criativo e participativo” e o uso de metodologias que

visem a mudança social e a inclusão da acção colectiva17. Um dos processos

mais recentes e tornado públicos foi a elaboração das “Estratégias para a

Cultura em Lisboa”18, um documento que regista a metodologia participativa e

as fases de diagnóstico, análise e identificação de medidas e projectos. O

“Guía para la participación ciudadana en el desarrollo de políticas culturales

locales para ciudades europeas”19 ou o relatório “Towards an architecture of

17 Neste campo, mas com uma abordagem sociológica, as obras de Isabel Carvalho

Guerra são um importante contributo: “Participação e acção colectiva” (2006) e “Fundamentos e Processos de Uma Sociologia da Acção”(2002), ambos publicados pela Princípia Editora.

18 http://cultura.cm-lisboa.pt/

19

http://aragonparticipa.aragon.es/attachments/239_Guia%20participacion%20ciudadana%20politicas%20culturales%20en%20ciudades%20europeas%20%28Pascual%20Ruiz,%20Jordi%29.pdf

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

14

governance for participatory cultural policy making”20 de Colin Mercer, são

recursos úteis e pragmáticos, entre outros documentos e casos-de-estudo

existentes neste âmbito e em diversas geografias. São igualmente

reconhecidos internacionalmente os avanços na investigação em políticas

culturais na América Latina (Brasil, Argentina, México, Colômbia,..), na

Austrália ou no Canadá. E, para dar um exemplo europeu, refira-se a “Réseau

culture 21” (http://reseauculture21.fr/), uma rede francesa independente que

visa promover políticas culturais ancoradas nos pressupostos da Agenda 21

da Cultura.

Existem certamente diferenças de contexto e opções específicas, mas,

de uma forma geral, a metodologia para desencadear um processo de

planeamento estratégico criativo e participativo, segue as seguintes etapas:

Fase 1 – Emergência de uma vontade coletiva de mudança

Instituição e valorização do “Conselho Municipal de Cultura”21, o qual

deve funcionar como uma instituição pública gerida coletivamente pela

administração local, pelos agentes culturais e cidadãos interessados,

organizados em assembleia e em grupos de trabalho sectoriais;

Adoção dos princípios e compromissos constitutivos da Agenda 21 da

Cultura – os municípios podem aderir formalmente a esta “carta” (ver

www.agenda21culture.net)

É importante nesta fase coligir os documentos estratégicos municipais

de cultura já existentes (cartas de património, diagnósticos, planos

estratégicos, etc..) e fazer uma síntese dos mesmos.

Fase 2 – Análise da situação e diagnóstico

Analisar documental das fontes de informação já disponíveis relativas à

caracterização demográfica do município;

Realizar entrevistas a informadores privilegiados: responsáveis políticos,

20 http://www.policiesforculture.org/administration/upload/ColinMercer_Towards_an_architecture_of_governance_BCN2006.pdf 21 Comissão de Cultura ou Fórum Cultural, são designações igualmente possíveis

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

15

agentes culturais, directores municipais de cultura, directores de

equipamentos culturais, personalidades, artistas, produtores, gestores,

…;

Realizar fóruns sectoriais de consulta;

Mapeamento do Ecossistema Cultural - recursos culturais do concelho

(Património Material e Imaterial, Equipamentos Culturais,

Associativismo, Artistas, Artesãos, Indústrias Criativas, Produtores

Culturais, Projectos, Festas Populares, Grande Eventos,...)

Análise das dinâmicas culturais: programações e actividades

desenvolvidas por entidades públicas e privadas;

Elaborar o diagnóstico (SWOT): pontos fortes, pontos fracos,

oportunidades e ameaças.

Fase 3 – Estabelecer as prioridades para a intervenção, reflexão

estratégica e formulação de medidas e projectos

Partindo do diagnóstico elaborado na fase anterior, e tendo em

consideração o mapeamento de recursos efectuada, é possível

promover a reflexão e identificar as áreas de intervenção prioriritárias;

Definir Eixos e Objectivos Estratégicos de intervenção;

Criar grupos de trabalho sectoriais/temáticos para brainstorming de

elaboração e priorização de Medidas e Projectos.

Fase 4 – Implementação e monitorização

Definir orçamentos e fontes de financiamento para a implementação das

Medidas e Projectos;

Definir bateria de indicadores de monitorização e avaliação22;

Definir calendário de execução;

22 Guía para la evaluación de las políticas culturales locales / Sistema de indicadores para la evaluación de las políticas culturales locales en el marco de la Agenda 21 de la cultura. http://www.femp.es/files/566-762-archivo/Gu%C3%ADa_indicadores%20final.pdf

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

16

Desenvolver mecanismos participativos de acompanhamento da

execução, monitorização e avaliação de resultados.

Fonte: Estratégias para a Cultura em Lisboa (CML, 2009), p.31.

Revista “Práticas de Animação” Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013

http://revistapraticasdeanimacao.googlepages.com

17

Dados do Autor

Rui Matoso é professor na Universidade Lusófona de Humanidades e

Tecnologias, na especialização em Gestão das Artes da Licenciatura em

Ciências da Comunicação e da Cultura. Gestor e programador cultural.

Atualmente produz o projeto "Leituras Ultra-Sónicas" e o teatro participativo

infanto-juvenil "O Bosque Mágico". Concebeu e coordenou em 2010 o ciclo

“Noites Utópicas” no Teatro-Cine de Torres Vedras. Concebeu o portal de

divulgação cultural tvedraszine.net.

É membro da Academia de Produtores Culturais, onde promoveu dois

seminários com Toni Puig (Barcelona), com o apoio da CML/EGEAC, em Maio

de 2009. Obteve o grau de Mestre em Práticas Culturais para Municípios -

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa

(2008), tendo anteriormente realizado uma Pós-Graduação em Gestão Cultural

na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (2006). É formador

certificado pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (CAP), em

diversas áreas da gestão cultural – culturaviva.com.pt.