Os Secretários e o Estado do rei de Portugal - luta de corte e poder político_séculos XVI-XVII

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OS SECRETÁRIOS E O ESTADO DO REI: LUTA DE CORTE E PODER POLÍTICO SECS. XVI-XVII André da Silva Costa ___________________________________________________ Dissertação de Mestrado em História JULHO 2008

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OS SECRETÁRIOS E O ESTADO DO

REI: LUTA DE CORTE E PODER

POLÍTICO SECS. XVI-XVII

André da Silva Costa

___________________________________________________

Dissertação de Mestrado em História

JULHO 2008

Escreve-se sempre a história da guerra, mesmo quando se escreve a história da paz e das suas instituições

Michel Foucault, Em defesa da Sociedade (1978)

AGRADECIMENTOS

Na elaboração de uma “tese” sempre foram necessárias recomendações disciplinares como aquela feita por Delfim de Almeida a Henrique da Gama Barros, em 1890, quando este, atafulhado em códices e papéis, se demorava na escrita do segundo volume da História da Administração pública – «ou o meu amigo se decide a escrever, atirando para o diabo os bacamartes da Torre do Tombo, ou então eu faço um tal banzé na sua própria casa, que até o general Moreira terá de acudir com a guarda». Neste caso, não sendo, como é evidente, Gama Barros, tive a sorte de ser acudido por uma distinta guarda.

Em primeiro lugar, não posso estar mais grato ao orientador deste trabalho, o Professor Pedro Cardim, essencial na circunscrição dos problemas e na forma dedicada como leu e releu os meus textos. Além do mais, vai já sendo lendária a forma generosa como disponibiliza o seu precioso arquivo pessoal de fontes. Sem a sua orientação não teria sido possível terminar esta tese.

A Professora Ana Isabel Buescu e o Professor António Camões Gouveia foram igualmente decisivos na definição cultural da abordagem política. Não posso também esquecer a forma como “vivem” a história e como essa “vida” foi determinante para o caminho aqui percorrido, querendo também expressar, por seu intermédio, a minha gratidão à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL.

O professor Nuno Gonçalo Monteiro, com que troquei impressões sobre algumas das linhas gerais da investigação, foi determinante na construção do tema e no sublinhar da comunicação política como análise central das relações de poder no Antigo Regime. Ao Instituto de Ciências Sociais quero também agradecer as excepcionais condições de trabalho possibilitadas no âmbito de uma bolsa de investigação.

As professoras Leonor Freire Costa e Mafalda Soares da Cunha que permitiram tornar menos ingénuas as interrogações inerentes ao meu trabalho, auxiliando, com o seu rigor metodológico, e por meio de muitas conversas, o andamento do estudo. A professora Maria Fernanda Bicalho enriqueceu a discussão em torno dos problemas ultramarinos; a professora Fernanda Olival possibilitou, com o seu conhecimento dos núcleos documentais, uma mais clara definição do material a investigar; os professores João Paulo Oliveira e Costa e João Alves Dias abriram caminhos novos, tanto por uma mais completa reflexão historiográfica da expansão, como por uma maior sensibilidade à crítica das fontes. Não posso deixar de mencionar os inúmeros colegas, em particular o Renato Pistola, com quem fui discutindo grande parte das questões insolúveis presentes nesta tese. Agradeço à minha família o apoio incondicional e o entusiasmo pela história (a leitura da Célia Costa Chaves foi particularmente útil na clarificação dos meus “barroquismos”).

Por último, mas desde sempre, agradeço à Margarida, a quem digo, parafraseando Ruy Belo, «eu sei sou só isto, mas tu estás aqui».

OS SECRETÁRIOS E O “ESTADO” DO REI: LUTA DE CORTE E PODER POLÍTICO

SECS. XVI-XVII

[THE SECRETARIES AND THE “KING’S STATE”: ROYAL COURT

CONFLICT AND POLITICAL POWER SECS. XVI-XVII]

ANDRÉ DA SILVA COSTA

PALAVRAS-CHAVE: secretários de estado, Secretaria de Estado, luta de corte,

construção do estado, história institucional, história política.

KEYWORDS: secretaries of state, Secretariat of State, court conflict, state building,

institutional history, political history.

O estudo sublinha a evolução específica do «secretário de estado» e a intensificação da

sua tecnologia, na relação com o conflito cortesão e a estruturação do poder régio ao longo dos

séculos XVI-XVII.

No século XVI, «secretário do rei» iniciou a sua acção como responsável pela dimensão

«mecânica da escrita» no «despacho régio» e assistiu o soberano, polarizando as funções de

«governo». Deste modo, os secretários foram adquirindo eficácia no tratamento dos «papéis».

Mas esta necessidade de eficácia só pode ser compreendida como resultado de tensões e

conflitos no interior da corte. A evolução do poder régio e a curialização do “sistema político”

decorreu a par do crescimento da estrutura da Secretaria de Estado, verificando-se, em

simultâneo, a exportação do modelo secretarial para outras instituições da Coroa. Esta

generalização das Secretarias e de uma cultura “política” cada vez mais assente na “burocracia”

veio sedimentar, lentamente, um outro paradigma de poder, muito menos afecto aos «modelos

jurídicos» e «polissidonais».

Assim, o «secretário de estado» foi ocupando na Coroa de Portugal o espaço do

valimento, integrando no seu código genético a coordenação do «despacho», a “modernização”

do sistema (expressa na intervenção fiscal, no controlo do guerra e na regulação das mercês) e a

representação do rei perante o reino. Deste modo, a Secretaria de Estado emerge como

instituição associada à passagem de um aconselhamento régio, fundado numa base aristocrática

e sedimentado no ethos militar – com toda a semiologia da disciplina assente na guerra –, a um

aconselhamento régio assente numa ficção que se apresenta como pacificadora das relações de

conflito (alargamento da prática comercial, crescimento do notariado dos negócios, justa análise

das mercês, aturada ponderação das decisões). Isto corresponde a uma prática de «governo»

cada vez mais condicionada pela abstracção (eficiência na resposta política aos intermediários

do poder do rei, capacidade de manipulação da informação, tendência para a quantificação na

contabilização e distribuição dos recursos, invenção de novas formas de legitimidade do poder

e alargamento dos direitos do rei, reconfiguração dos mecanismos de domínio).

Ao longo do século XVII, a afirmação dos «secretários de estado» correspondeu a uma

nova prática social, assente sobre novas técnicas de dominação: informação, decisão,

representação e distribuição; técnicas que passaram a definir, capilarmente, novos efeitos de

poder.

Neste sentido, a cerebração do sistema político das monarquias corporativas – a par do

lento trânsito da polissidonia para o modelo estadual – tem plena confirmação na Secretaria de

Estado, mesmo que a cronologia da sua afirmação prefigure, aliás de forma sintomática, a

concretização territorial do «leviathan».

This study underlines the evolution of the role of the «secretary of state» and its

increasing technology, related to the courtier’s conflict and to the structuring of regal power

during the sixteenth and seventeenth centuries.

In the sixteenth century, the «king’s secretary» acted as the one responsible for the

«mechanics of writing» (technical writing in the «royal despatch») and was assisting the

sovereign, polarising the functions of «government». In this way, the secretaries acquired

growing efective efficiency dealing with «state papers». However this need for efficiency can

only be understood if seen as the outcome of conflicts and tension inside the court. The

evolution of royal power and the curialisation of the «political system» went alongside the

growth of the structure of the secretariat of state, and at the same time this secretarial model

was exported for other institutions belonging to the Crown. This standard spreading of

Secretariat offices and a political culture based more and more in a bureaucratic approach

slowly settled another paradigm of power, less related to «juridical models» and «polissidonais».

Therefore, the «secretary of state» occupied a growing space of favour for the

Portuguese Crown, inserting in its genetic code the coordination of the «despatch», and

“modernising” the system (through fiscal intervention, the control of war and regulation of the

“mercês”- payment for the use of honorary titles) as well as the king’s image before his

kingdom. The Secretariat of State emerges from an institution related with the giving of royal

advice, based on aristocracy and strengthened by the military ethos – with all the meanings of

discipline present in war – to become royal advice based on an illusive pacifier of conflict

relationships (widening of commercial practice, growing of business related notaries, fair

judgement of the “mercês”/benefits, careful pondering over decisions). This corresponds to a

«government» practice subject to an abstraction (efficiency in the political response to

intermediates of the King’s power, manipulation of information, tendency to quantify resource

distribution, new forms of power legitimacy and enlargement of royal power, reform of

dominance mechanisms).

During the sixteenth century, the «secretaries of state» fitted into a new social practice,

based on new techniques of dominance: information, decision, representation and distribution;

these techniques defined in detail new effects of power.

This way, the centralisation is confirmed by the secretariat of state, though its

chronology may anticipate the accomplishment of the «leviathan».

ÍNDICE

INTRODUÇÃO ............................................................................................ 1

0. O quadro historiográfico .............................................................................................. 1

0. 1. A historiografia institucional e a análise do poder ................................... 1

1. A historiografia e os secretários................................................................................... 7

a) Os «secretários de estado» na Coroa de Portugal............................................................................ 7

b) Os secretarios de estado na Monarquia Católica.. ............................................................................... 12

c) França e o secretaire d’État. ................................................................................................................... 19

d) Inglaterra e o secretary of state. .............................................................................................................. 25

2. Uma “genealogia institucional” para a época moderna ....................................... 30

2.1. A genealogia institucional. ............................................................................... 31

22. A luta de corte .................................................................................................... 38

3. O plano do texto e as Fontes.................................................................................... 45

I. GENEALOGIA DA CORTE E ESCRITA DO PODER...................... 48

1. O lugar da escrita na corte régia ........................................................................ 48

2. Corte e domínio dos «papéis»: arqueologia de um conflito ......................... 54

a) O chanceler-mor................................................................................................................................... 55

b) O «escrivão da puridade».................................................................................................................... 59

c) O «secretário do rei» ............................................................................................................................ 65

II. O SECRETÁRIO: SERVIÇO DO REI E DO REINO NA FORMAÇÃO DE UM

SERVIDOR (1530-1578) .............................................................................. 69

1. O conflito pelo serviço do rei: «escrivães da puridade» e «secretários»...... 69

2. O «Reino» e a «Índia»: os «secretários» e a contrução do «despacho»........ 83

3. A emergência do Conselho de Estado e os «secretários do estado» .......... 88

4. Os secretários e a “castelhanização” do «governo» ....................................... 91

III. “MODERNIZAÇÃO POLÍTICA” E CONFLITO DE JURISDIÇÕES: A

CONSOLIDAÇÃO (1578-1640)................................................................... 95

1. A «negociação de Portugal» e a escrita da integração.................................... 96

2. Secretários das «matérias de Estado» em Lisboa.......................................... 107

3. As «matérias ultramarinas» no Conselho da Índia e o controlo da Fazenda pela

Secretaria de Estado............................................................................................... 116

4. «Secretários de estado» na corte dos Filipes.................................................. 125

5. A cabeça do leviathan: o «secretário de estado» e o «governo»................. 133

IV. AS “REBELIÕES DE CORTE” E A CONSOLIDAÇÃO DO «ESTADO DO

REI»: O TRIUNFO (1640-1706) ................................................................ 145

1. O secretário responde pelo rei......................................................................... 146

a) O «Alvará» de 1643 e a evolução das novas Secretarias ............................................................ 153

b) Os secretários e a dádiva de mercês como «matéria de estado».............................................. 159

2. O «escrivão da puridade» e a bicefalia das secretarias de Estado.............. 167

3. Os «secretários de estado» e a funcionalização da Secretaria de Estado.. 174

IV. A ESTRUTURA INSTITUCIONAL DO REINO E A PREEMINÊNCIA DOS

SECRETÁRIOS ......................................................................................... 192

1. A Coroa e o poder régio: novos poderes, novos secretários .................... 192

a) Escrivães e secretários em «matérias de Fazenda»...................................................................... 193

b) Escrivães e secretários em «matérias ultramarinas».................................................................... 195

c) O secretário do Conselho de Guerra............................................................................................. 198

d) O secretário da Junta dos Três Estados........................................................................................ 199

e) Os secretários dos «Estados Ultramarinos» ................................................................................. 200

f) Outros secretários e escrivães .......................................................................................................... 204

2. Os sinais de um poder emergente................................................................... 209

a) Os secretários e o discurso político ................................................................ 209

V. A “POLÍTICA” NAS VÉSPERAS DO ESTADO................................ 219

1. Os «secretários de estado» e os novos operadores de dominação............ 219

a) Normativização: a produção “política” dos «papéis»................................................................. 221

b) Decisão: a luta pela subordinação dos poderes múltiplos ........................................................ 232

c) Representação: prestígio externo, cerminonial e dissimulação ................................................ 249

d) Distribuição: as «matérias de Fazenda» e a estrutura da «República»..................................... 257

CONCLUSÃO........................................................................................... 272

BIBLIOGRAFIA ....................................................................................... 276

ANEXO I ............................................................................................................................. i

ANEXO II .......................................................................................................................... v

ABREVIATURAS e SIGLAS

biblio. - bibliografia cap. - capítulo cit. - citado cod. - códice coord. - coordenação cx. - caixa doc. - documento ed. - edição eds. - editores fl. - folio fls. - folios introd. - introdução leg. - legajo Liv. - livro mç. - maço ms. - manuscrito nº - número off. - officina org. - organização pp. - páginas pref. - prefácio prof. - professor reg. - regimento rs - reis t. - tomo Tit. - título ts. - tomos vol. - volume ACL - Academia das Ciências de Lisboa AGS - Arquivo Geral de Simancas AHU - Arquivo Histórico Ultramarino BA - Biblioteca da Ajuda BGUC - Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra BNL - Biblioteca Nacional, Lisboa BNM - Biblioteca Nacional, Madrid BPE - Biblioteca Pública, Évora CNCDP - Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses DAHCL - Documentos do arquivo histórico da Câmara Municipal de Lisboa, Livro de Reis EFO - Eduardo Freire de OLIVEIRA, Elementos para a História do Municipio de Lisboa. FCG - Fundação Calouste Gulbenkian FCSH - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Gazeta - Gazeta em forma de Carta HGCRP - História Genealógia da Casa Real Portuguesa IAN/TT - Instituto dos Arquivos Nacionais, Torre do Tombo INCM - Imprensa Nacional Casa da Moeda MNE - Ministério dos Negócios Estrangeiros OA - Ordenações Afonsinas OF- Ordenações Filipinas OM- Ordenações Manuelinas Provas - Provas Genealógicas da Casa Real Portuguesa UNL - Universidade Nova de Lisboa

1

INTRODUÇÃO

0. O quadro historiográfico

O tema do estudo que se apresenta pode ser resumido numa só pergunta: por que meios

e através de que processos se afirmaram na corte do rei de Portugal, entre os séculos XVI e

XVII, servidores especializados – tanto nos «papéis» como no «governo» – denominados

«secretários de estado»?

Logicamente, a questão entronca num conjunto vasto de temas: anatomia do poder

régio, processos de centralização, “jurisdicionalismo”, definição de campo «político»,

características do sistema “burocrático”, generalização da escrita, formação do “estado”,

mutação institucional, funcionamento de corte. Assim, uma sólida aproximação ao problema

terá que desenvolver-se no plano da história institucional, seguindo dois caminhos fundamentais.

Por um lado, um itinerário de raciocínio conceptual, em iminente fronteira com a sociologia

histórica e em frequente relação com as teorias da «estrutura social». Por outro, um esforço de

pesquisa arquivística e descrição institucional, de mais vincado cunho historiográfico, em

frequente relação com os problemas da «mudança histórica». Apesar da inabarcável bibliografia

sobre os temas aqui invocados não pode fazer-se a devida abordagem historiográfica dos

secretários do rei sem uma consideração dos problemas teóricos colocados pela história do

poder e das suas instituições.

0.1. A historiografia institucional e a análise do poder

Na década de 1970, Michel Foucault iniciou um conjunto de investigações «históricas»,

utilizando os seus cursos no Collége de France para esboçar uma inovadora análise sobre as

implicações dos conflitos sociais na definição do discurso « político »1. Nessas aulas,

cuidadosamente preparadas, o poder emergia na sua dimensão de mera «relação particular entre

indivíduos», destacando-se nas exposições de Foucault uma estreita comunicação entre a

1Michel FOUCAULT, Les anormaux, Cours au Collège de France, 1974-1975, Gallimard/ Le Seuil, Paris, 1999 ; L’herméneutique du sujet. Cours au Collège de France, 1981-198, Gallimard/ Le Seuil, Paris, 2001. Com implicações decisivas para a historiografia institucional ver Il faut defendre la société. Cours au Collège de France. 1976, Gallimard/Le Seuil, Paris, 1997; Securite, territoire, population Cours au Collège de France. 1978, Gallimard, 2004. Existem edições dos cursos em português: Os anormais, Martins Fontes, São Paulo, 2005; A Hermenêutica do Sujeito, Martins Fontes São Paulo, 2004 ; Em defesa da sociedade, Martins Fontes, São Paulo, 1999; Segurança, Território, População, Martins Fontes, São Paulo, 2008.

2

genealogia dos saberes, as tecnologias de governo e a construção institucional da sociedade.

Embora a obra de Foucault tenha acabado por influenciar muito mais uma epistemologia do

discurso do que a metodologia historiográfica, muitos dos seus famosos livros contêm páginas

decisivas de teoria social, relacionando, definitivamente, o saber, a «ciência» e a escrita com o

exercício do poder .

Mesmo uma obra aparentemente tão distante da historiografia institucional, como a

Histoire de la sexualité, possui algumas das mais decisivas páginas sobre a metodologia a adoptar

para uma « história do poder» nos reinos europeus entre os séculos XVI-XVIII. No volume de

introdução a essa obra magistral, significativamente intitulado La volonté de savoir, publicado pela

Gallimard em 1976, Foucault procurou sintetizar o quadro geral das suas investigações durante

mais de trinta anos. O leitor vê desdobrar-se a tradicional teoria do poder como uma ficção

«historicamente» formulada através da «soberania régia», em resultado de discursos « jurídico-

políticos » assentes sobre os dispositivos do «direito»2.

Portanto, não é possível hoje ignorar que desde o século XVII, a civilização ocidental,

profundamente marcada por uma fulgurante estratégia discursiva jurisdicionalista, tem

encontrado recorrentes dificuldades para efectuar uma crítica dos sistemas de poder

«monárquicos» capaz de interpretar os quadros do direito, construídos, em grande medida, pelas

próprios jurisconsultos seiscentistas. Daí que expressões como «lei», «regra», «proibição»,

«soberania», «delegação», «representação», ou mesmo «poder político», continuem a marcar as

considerações sobre as organizações sociais do poder na época moderna sem a devida

problematização.

Em todo o caso, a historiografia institucional tem vindo a operar a sua « viragem

científica»3.

Vejamos, nos seus traços gerais, quais as consequências desta mudança.

No princípio do século XX, a integração de análises herdeiras da escola-histórica do

direito alemã, praticadas por O. Hintze e O. Brunner4, abriram novas perspectivas na

descodificação das relações jurídicas. Por outro lado, a vitalidade da crítica marxista, de V. Vives

e B. Clavero, bem como uma nova capacidade de relacionar os discursos sobre a justiça com a

2 Michel FOUCAULT, A vontade de saber, História da sexualidade I , Relógio D'Água Editores, Lisboa, 1994, pp. 90-94. 3 Veja-se o clássico estudo de Denis RICHET, La France Moderne, L’esprit des institutions, Flammarion, Paris, 1992, (primeira edição de 1973), sobretudo pp. 1-22, onde se anunciam muitas das linhas que fariam escola nos trinta anos seguintes, dando preponderância ao espírito e à coerência lógica das instituições e menos ao seu articulado jurídico. 4 Otto Van HINTZE, « El Comissário en la historia de la administración », (1910), História de las formas Políticas, Madrid, 1968, pp. 155-192.

3

produção de ideias e mentalidades – levada a cabo por P. Prodi e P. Costa – insuflou novo vigor

explicativo à contextualização histórica do direito5.

Daí que, constatada a omnipresença dos juristas e a eficácia do «jurisdicionalismo» como

teoria explicativa das limitações ao poder régio, se tenha imposto historiograficamente o

paradigma da omnipotência do(s) direito(s). Esta omnipresença conservativa tem sido entendida

como condição eficaz que explica a estabilidade social do mundo da época moderna. Com efeito,

sabemos hoje que os juristas ocuparam hegemonicamente os cargos de poder. A eles se deve a

transformação do processo jurídico escrito no mecanismo modelar da decisão6. Assim, além de

uma interpretação mais satisfatória dos significados da dogmática jurídica do mundo “pré-

revolucionário”, a historiografia tem vindo, desde os anos setenta do século XX, a inverter esse

longo « canto de cereia » - acerca do tirânico poder do rei - constituído pelo discurso dos juristas

oitocentistas, apostados em combater a monarquia corporativa. O direito, colocado no centro da

análise pelos historiadores institucionais, passou a ser estudado como fenómeno discursivo

múltiplo e contraditório. Isolou-se a «jurisprudência como ciência de governo» de forma a

destacar o papel do «jurídico», e dos juristas - na cristalização das muitas e interactivas relações

no seio dos sistemas sociais - principalmente como ficção e justificação da ordem7.

A partir desta fecunda metodologia, foram vários os estudos que ao longo da década de

1990, e já depois de 2000, procuraram sistematizar e descrever as inúmeras instituições,

praticando leituras estruturais e localizadas8, construídas a partir da crise do «paradigma

estadualista»9, o que resultou numa historiografia que constatou a pulverização do poder e a

5 J. V. VIVES, «La struttura amministrativa statale nei secoli XVI e XVII», Lo Stato moderno, vol. I, E. ROTELLI & P. SCHIERA (ed.), Dal Medio Evo all'età moderna, Il Mulino, Bolonha, 1971, pp. 221-240 ; Paolo GROSSI, «Un altro modo di possederi», l’emersione di forme alternative di proprietá alla coscienza giuridica postunitaria, Giuffré, Milão, 1977; Bartolomé CLAVERO, Tantas personas como estados. Por una antropología política de la historia europea, Madrid 1986; Pietro COSTA, Lo Stato imaginario, Metafore e Paradigmi nella Cultura Giuridica Italiana fra Ottocento e Novecento, Giuffré, Milão, 1986; António M. HESPANHA, As Vésperas dos Leviathan, Instituições e poder político, Portugal, sec. XVII, Almedina, Coimbra, 1994, pp. 21-60. 6 António Manuel HESPANHA, «Justiça e Administração entre o Antigo Regime e a Revolução», Justiça e Litigiosidade, História e Prospectiva, FCG, Lisboa, 1993, pp. 395-399. 7 António M. HESPANHA, As Vésperas..., p. 528. 8 B. GUENEE, «Y a-t-il un État des XIVe et XVe siècles?», Annales E.S.C., XXVI, 1971, pp. 399-406; J. A. MARAVALL, Estado moderno y mentalidad social, 2 vols., Madrid, 1972; Pierre CHAUNU, «L'État», Historie économique et sociale de la France, vol. I, F. Braudel e E. Labrousse (dir.), PUF, Paris, 1977, pp. 11-228. 9 Uma outra tradição históriográfica na análise dos sistemas de poder dos séculos XVI-XVIII, com uma menor recepção na historiografia portuguesa, tem insistido em pesquisas sobre a génese do “estado”, sobretudo no âmbito da historiografia anglo-saxónica, mais preocupada com problemas de dinâmica histórica nacional e com a eficácia das administrações, historiografia muito influênciada pelos estudos de J. M. Keynes e J. A. Shumpeter. Esta análise dos processos de construção dos “estados modernos”, tem sido feita quer através da fiscalidade e do financiamento do sistema político - custos de protecção dos negócios e processamentoda informação - quer pela descrição da formação dos instrumentos do direito público, aspectos onde os secretários terão desempenhado papel fundamental, J. STRAYER, On the Medieval Origins of the Modern State, Princeton University Press, Princeton, 1970; The Rise of the Fiscal State in Europe, c. 1200-1815, Richard Bonney (ed.), Oxford, 1998. Uma boa síntese sobre a

4

fragilidade dos processos de centralização dos séculos XVI e XVII, sendo dada preferência à

descrição dos aspectos antropológicos e semiológicos das «relações políticas» do Antigo

Regime10.

Em todo o caso, tem sido destacado que esta « transformação » da história institucional

(o conhecimento das instituições, das biografias dos principais ministros, da dogmática jurídica)

não colmatou o estudo efectivo do poder como estratégia, conflito e “instrumentalização” do

governo: o trabalho do rei e dos seus ministros, as actividades dos gabinetes, as relações entre os

ministros e secretarias continuam, em larga medida, por conhecer11.

No que diz respeito à Coroa de Portugal, foi através das investigações de António

Manuel Hespanha que a historiografia institucional e a análise do poder iniciou a ruptura com o

«círculo vicioso» da teoria jurídico-política da soberania. Tanto o invulgar aparato empírico

como uma pouco habitual fundamentação teórica permitiram reapreciar explicações históricas

instituídas – algumas profundamente enraizadas desde o século XVII e confundidas com o

próprio discurso da época –, tal como a suposta «centralização régia» dos séculos XV a XVI.

Aliás, Vitorino Magalhães Godinho tinha sintetizado a pluralidade corporativa do reino, num

texto de inultrapassável alcance metodológico publicado em 1965, referindo-se ao poder de um

«rei que reina sobre um território no qual uma multiplicidade de senhores dominam»12.

Na verdade, a exaustiva análise de António M. Hespanha abriu caminho a uma profunda

renovação sobre o exercício do poder13. O amplo leque de novas imagens sobre as instituições

utilização tardo-medieval e moderna do conceito de estado em Jean DUNBABIN, «Government», The Cambridge History of Medieval Political Thought, c. 350-1450, J. H. Burns (ed), Cambridge University Press, 1988, pp. 477-519. Uma excelente actualização e análise crítica das abordagens teóricas ao problema da formação dos Estados em Bob JESSOP, « The State and the State Building », The Oxford Handbook of Political Institutions, Oxford Univertity Press, 2006. 10 Pedro CARDIM, «Politics and Power relations in Portugal (Sixteenth-Eighteenth Centuries), Parliaments, Estates and Representation, Vol. 13, nº 2, 1993, pp. 95-108; Jean-Frédèric SCHAUB, «L’histoire politique sans l’état, mutations et reformulations», Historia a debate, Outros enfoques, vol. III, Carlos BARROS (ed.), Santiago de Compostela, 1995, pp. 217-235; Jean-Frédéric SCHAUB, «Le Temps et l’État: vers un nouveau régime historiographique de láncien regime français», Quaderni Fiorentini, Per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, 25, Milano, 1996, pp. pp. 127-181; Bartolomé CLAVERO, «Tejido de sueños: la historiografia jurídica española y el problema del Estado», Historia Contemporanea, 12, 1996, pp. 25-47; Paolo GROSSI, «Un Diritto senza Stato, la nozione di autonomia come fondamento della costituzione giuridica medievale, Quaderni Fiorentini, 25, 1996, pp. 279 e ss.; Pedro CARDIM, Centralização Política e Estado na recente historiografia sobre o Portugal do Antigo Regime, Separata, Nação e Defesa, IDN, nº 97, 1998; Alain GUERY, « Versailles, le phantasme de l’absolutisme (note critique) », Annales ESC, mars-avril 2001, p. 507-517; Pedro CARDIM, «A Casa Real e os orgãos centrais de governo no Portugal da segunda metade de Seiscentos», Tempo, vol. 7, nº 13, Julho, 2002 ; Lo Stato moderno in Europa, Istituzioni e diritto, Maurizio Fioravanti (org.), Editori Laterza, Roma-Bari, 2002; Luca MANNORI & Bernardo SORDI, Storia del diritto aministrativo, Editori Laterza, Roma – Bari, 2003. 11 Alexandre DUPILET et Thierry SARMANT, «Prélude à la Polysynodie, les projets politiques du chancelier de Pontchartrain en 1712», Revue d’histoire du droit français et étranger, n° 4, 2005, p. 657-678. 12 Vitorino Magalhães GODINHO, «Finanças Públicas e Estrutura do Estado», Ensaios II, Sobre História de Portugal, Sá da Costa, Lisboa, 1978, p. 35. 13 António M. HESPANHA, «Depois do Leviathan», Almanack braziliense, nº 5, Maio 2007,www, almanack.usp.br.

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de domínio régio tem sublinhado sobretudo a dimensão sistémica interna do “jurisdicionalismo”

e a sua eficácia na resolução de problemas de «governo»14. No que diz respeito às relações entre a

estrutura social, a transformação dos sistemas de poder e a emergência e ocaso do

«jurisdicionalismo», muito há ainda para explorar.

Um dos temas decisivos nesta abordagem, mais atenta às « tecnologias de poder », diz

respeito à mutação «governativa» da Coroa ao longo do século XVII e à emergência de uma

nova «prática do mando»15. Como sublinharam os estudos de José Subtil, desde finais do século

XVII, a influência crescente do «cameralismo», as contradições da «burocracia» e o

desenvolvimento de novas «atitudes processuais no tratamento do expediente» vão originar

práticas incompatíveis com o «jurisdicionalismo»16. Neste sentido, torna-se crucial avaliar a

afirmação dos oficias especializados nos «papéis» no decorrer deste processo, bem como

identificar as complexas relações entre o «jurisdicionalismo» (nas suas dimensões exógenas e

endógenas) e as novas técnicas de governo17.

É neste cruzamento de problemas que os secretários emergem como factor decisivo da

historiografia institucional.

***

Em 1982, no texto que refundou os estudos institucionais em Portugal, o Curso de

História das Instituições, António M. Hespanha notava que os secretários não tinham merecido

ainda a apreciação devida no contexto da história do poder régio18. Em 1984, o mesmo autor,

num outro texto seminal acerca da teoria da história institucional, insistia em recordar que o

funcionamento da « burocracia » da Coroa permanecia um tema pouco explorado, com a

agravante de constituir um campo « decisivo para compreensão estrutural e sociológica dos

sistemas de poder »19. Em 1994, a alargada análise institucional presente no trabalho As Vésperas

do Leviathan generalizou o entendimento dos «secretários» como os servidores que «apoiavam o

14 António M. HESPANHA, «Os juristas como couteiros», Análise Social, 161, 2001, pp. 1183-1209. 15 A crítica da transformação do «governo régio» de um ponto de vista essencialmente «produdivo», com identificação dos problemas do direito na apropriação das «rendas», foi feita por António M. HESPANHA, O Estado absoluto, problemas de interpretação, Universidade de Coimbra, Coimbra, 1979. 16 José SUBTIL, O Desembargo do Paço, (1750-1833), UAL, Lisboa, 1996, pp. 183 e ss. 17 Duas recentes sínteses do problema, Carlos GARRIGA, «Orden jurídico y poder político en el Antiguo Régimen», Istor, IV, 16, 2004, http://www.istor.cide.edu/archivos/num_16/dossier.html; Les figures de l’administrateur, Institutions, réseaux, pouvoirs en Espagne, en France et au Portugal, 16e-19e siècle, Robert Descimon, Bernard Vincent, Jean-Frédéric Schaub, (dir.), EHESS, Paris, 1997, pp. 8-17. 18 António M. HESPANHA, História das Instituições, Épocas Medieval e Moderna, Almedina, Coimbra, 1982. 19 António M. HESPANHA, « Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime», Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime, colectânea de textos, António Manuel Hespanha (ed.), FCG, Lisboa, 1984, p. 12

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rei em matéria de graça e governo, na sequência dos oficiais que, desde a idade média,

preparavam o despacho ou “desembargo do rei”»20. Esta descrição lançava o problema da

afirmação do «secretário» como função de poder no conjunto dos órgãos da Coroa: por que

razão surgiam afinidades latentes entre a cronologia da composição dos «secretários de estado»,

como especialistas dos «papéis», e a cronologia da mutação interna das «monarquias

corporativas»? Sabemos, é claro, que os secretários acompanharam a mudança dos paradigmas

de «governo». Combateram o « jurisdicionalismo » no discurso, a « polissidonia » nas decisões e a

« consulta » no estilo. Porém, terão sido um produto ou agente da mudança no que toca ao

exercício do poder régio? Como em muitos dos variados problemas de transformação histórica,

provavelmente, ambas as coisas.

Este estudo procura testar uma hipótese sobre a existência de relações profundas entre a

emergência do «secretário de estado», no contexto da “monarquia jurisdicionalista”, e a erosão

do velho mundo corporativo21.

Naturalmente, o trabalho aqui apresentado apenas poderia constituir uma introdução à

vastidão do tema, formulando alguns enquadramentos gerais para um futuro estudo da questão,

mais exaustivo, mais rigoroso e adequado a cada um das conjunturas existentes entre os séculos

XVI e XVIII. Neste sentido, optámos por um intervalo cronológico alargado, de forma a

surpreender as principais tendências na evolução do ofício «secretário de estado», lançando a

base para futuros desenvolvimentos: a identificação das « raízes » medievais, o estudo da

dinâmica do seu intermitente protagonismo junto do rei, a análise das relações com os outros

órgãos da monarquia, a análise da escrita como instrumento de poder, a definição do peso

relativo do “jurisdicionalismo” no funcionamento das secretarias de estado, o potencial de

destruição da ordem tradicional no ethos do secretário.

Como não podia deixar de ser, o estabelecimento destas perspectivas genéricas –

primeiras balizas da investigação – resultou da assimilação da principal bibliografia existente

sobre o tema. Não sendo vasto o quadro historiográfico especificamente votado às secretarias de

estado – assim da Coroa de Portugal como dos reinos e monarquias mais próximos

20 António M. HESPANHA, As Vésperas..., pp 244-247 e bibliografia aí citada. 21 Numa perspectiva comparativa, Luca Manori e Bernardo Sordi colocaram o problema dos conflitos políticos e do financiamento do sistema de poder na explicação da emergência das secretarias de estado. Seguindo a ideia da radical transformação inglesa no século XVI, identificam uma precoce emergência “administrativa” dos secretários de estado, resultante da fusão entre a função de “juízes” e “ministros de estado”, tendo sido esta uma divergência fundamental entre a Inglaterra e a Europa continental. Apesar de Manori e Sordi terem sublinhado a relação entre a eficácia da tributação e a emergência das secretarias de estado, não podemos subescrever o tom carregado com que descrevem a paticularidade dos secretários ingleses, Luca MANNORI & Bernardo SORDI, Storia del diritto amministrativo, Roma-Bari, 2001, pp. 5-71 e pp. 82-83.

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geograficamente, ou com mais estreitas relações cortesãs (Monarquia Católica, reino de França e

o reino de Inglaterra) – esse material deve fornecer um primeiro enquadramento da questão e

deve ser tido em conta antes da apresentação da nossa perspectiva de trabalho sobre o tema.

Neste sentido, esboçaremos, em seguida, o estado da questão em Portugal e nos três

espaços político-jurídicos já referidos (ponto 1), passando depois a descrever a nossa proposta

de análise para o tratamento da questão na coroa de Portugal (ponto 2), concluindo a introdução

com o elenco das fontes utilizadas e com a breve descrição dos conteúdos dos vários capítulos

deste estudo (ponto 3).

1. A historiografia e os secretários

a) Os «secretários de estado» na Coroa de Portugal

Em Portugal, foi no âmbito dos debates sobre a legitimidade administrativa da

monarquia constitucional – num momento de revolução político-social – que surgiram as

primeiras tentativas de estudo sistemático dos «secretários», através dos textos – ainda hoje

seminais – de Francisco Trigozo Morato escritos na década de 183022. Terá sido mesmo

elaborada uma «Memória sobre os secretários de estado depois de 1640» manuscrita, mas a sua

impressão seria suspensa no contexto do atribulado processo das guerras liberais23. Também os

«funcionários públicos» do «Estado Liberal», Rebelo da Silva24 e Gama Barros25 procuraram

reconstituir a importância dos «secretários »26.

22 «Observações sobre a verdadeira significação da palavra ‘Privado? De que usão nossos mais antigos documentos e escritores», Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, tomo XI, Parte II, 1835, pp. 169-176; «Memória sobre os Escrivães da Puridade dos Reis de Portugal e do que a este officio pertence», Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, t. XII, parte I, 1837, pp.153-218; «Memoria sobre os Chancelleres Mores dos Reis de Portugal, considerados como primeiros Ministros do Despacho e expediente dos nossos soberanos», Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, tomo XII, parte II, 1837, pp. 91-107. 23 António M. HESPANHA, «O projecto institucional do tradicionalismo reformista: um projecto de Constituição de Francisco manuel Trigoso de Aragão Morato (1823)», O liberalismo na pe�nínsula ibérica na primeira metade do século XIX, Sá da Costa, Lisboa, 1982, vol. I, pp. 63-90. 24 História de Portugal nos séculos XVII e XVIII, t. V, Imprensa Nacional, Lisboa, 1871. pp. 402 e ss. 25 História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV, t. I, Lisboa, 1945, pp. 586-589. 26 Gama Barros concebeu a sua História da Administração Pública como um manual de «Direito Administrativo Portuguez», no âmbito de uma entrada para a Academia Real das Sciencias, Torquato de Sousa SOARES, «Introdução», História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV...., p. XXXIII. Por sua vez, Rebelo da Silva veria a sua obra patrocinada e subsidiada por portaria governamental, Jorge Borges de MACEDO, «A “história de Portugal nos século XVII e XVIII” e o seu autor», História de Portugal nos século XVII e XVIII…, p. 21. Não por acaso, os dois historiadores eram “filhos” da «política administrativa» e da «economia política» do “estado liberal”, associando «o estado economico do paiz» com a «administração geral», Ana Isabel BUESCU, O milagre de Ourique e a História de Portugal de Alexandre Herculano, uma polémica oitocentista, INIC, lisboa, 1987, sobretudo, «1846-1857: o tempo de uma polémica», pp. 18-29.

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Na verdade, a emergência do «Estado liberal» no século XIX – onde se formou o

«espírito da inquirição historiográfica» – ao identificar a administração com uma suposta

« neutralidade do poder » foi relegando os aspectos funcionais do sistemas monárquicos para a

história do direito – erigindo-se esta num laboratório da ciência de governo – onde o vínculo aos

estudos da dogmática jurídica impediu a análise da emergência do secretário como um problema

sobre a prática do poder com implicações que atravessariam todo o corpo social e todos os

âmbitos do saber. Esta conjuntura afectou definitivamente os quadros historiográficos, tornando

as secretarias de estado reféns da história do direito, fazendo com que a caracterização histórica

dos secretários acompanhasse a fortuna das disciplinas da administração.

A partir daqui, os «secretários» passariam a figurar como uma decorrência da

«centralização régia». Esta “centralização absolutista” era, aliás, associada pelo liberalismo a uma

degeneração dos órgãos tradicionais do reino como os concelhos. Por outro lado, o

estabelecimento do «político» como explicação primordial da história relegava os secretários para

uma dimensão de meros executores das decisões do rei, onde “centralismo” e “absolutismo” se

confundiam, cristalizando-se os «sistemas políticos» como decorrentes do esforço normativo do

rei. Em todo o caso, algumas das mais significativas páginas onde pudemos recolher informação

institucional sobre os secretários decorreram desta genealogia de problemas colocada pelos

juristas da administração liberal.

Já em pleno século XX, no contexto do “estado novo”, um historiador «criado» na

escola do direito da Universidade de Coimbra, Paulo Mera, dedicou breves mas substantivas

páginas ao problema dos «secretários de estado» no Antigo Regime27, sendo ainda o mais citado

em matéria de secretarias em quase todas as obras de síntese sobre o panorama “político” e

institucional do Portugal moderno. Também neste contexto, Marcello Caetano assinou algumas

páginas importantes salientando o papel dos secretários no enfoque da centralização do governo

do reino28.

Num plano mais abrangente, mas muito menos atento aos problemas «administrativos»,

foram surgindo estudos com informações parcelares acerca dos secretários. Entre os mais

relevantes contam-se as obras de Eduardo Brazão29 sobre a diplomacia, ou o monumental

estudo de Jaime Cortesão, sobre o “governo brasileiro” de Alexandre de Gusmão, estudos que,

27 Da minha Gaveta, os secretários de estado do antigo regimen, Coimbra, 1965. 28 Lições de História do Direito Português, Coimbra Editora, Coimbra, 1962. 29 Relações externas de Portugal, reinado de D. João V, Lisboa, 1938 e A Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros Criação de D. João V, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1978.

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não versando directamente sobre as secretarias de estado, contêm páginas importantes sobre os

fundamentos institucionais do ofício de secretário30.

A excepção a este panorama, de informação esparsa e pouco especializada, foi

protagonizada pelo trabalho de Francisco Mendes da Luz sobre o Conselho da Índia, onde se

clarificou a relação entre o «secretário da Índia» e o «secretário de Estado», denotando

preocupações com o âmbito de acção dos oficiais e lançando de forma clara alguns princípios de

análise, ainda hoje pertinentes, como a inexistência da designação documental «secretário de

estado», pelo menos até à integração do reino de Portugal na Monarquia Católica, em 158031.

Cabe também enumerar algumas biografias significativas sobre secretários de estado,

aparecidas numa época da recuperação da “história política” – trabalhos que assentam em

narrativas na perspectiva de vida dos « homens de Estado ». Contudo, estes textos, úteis pelos

seus conteúdos biográficos, também não tocaram no problema da produção institucional,

fornecendo, porém, relevantes caracterizações do contexto cortesão dos secretários. Destacam-

se neste plano: o precioso texto de Francisco Ferreira Neves32, sobre Diogo Soares; o texto de

José Emídio Amaro33 sobre Francisco de Lucena; e o texto de Francisco de Sales Mascarenhas

Loureiro34, sobre Miguel de Moura.

Um estudo do Conde de Tovar publicado na década de 1960, embora versando sobre o

«escrivão da puridade», merece um notável destaque, quer pela minúcia das indicações

biográficas, constituindo a primeira grande síntese sobre o raio da acção dos oficiais de escrita,

quer pelas mais informadas indicações sobre mudança institucional produzidas até hoje35. Deve

dizer-se que se assinala aí o papel determinante da guerra, do fisco e do cerimonial na ascensão

da «escrita do rei».

A partir dos anos oitenta, a já citada renovação dos estudos institucionais iniciou a

colocação do problema em termos mais sistemáticos. Uma boa síntese do estado da questão foi

publicada por António Barbas Homem e Duarte Nogueira36. As mais significativas páginas sobre

30 Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, 4 vol., Livros Horizonte, Lisboa, 1984 (1ª edição de 1959, 9 vols. com abundantes documentos anexos). 31 O Conselho da Índia, contributo ao Estudo da Historia da Administração e do Comércio do Ultramar nos principios do século XVII, Lisboa, 1952. 32 Francisco Ferreira NEVES, Testamento de Diogo Soares secretário de Estado em Espanha no ano de 1640 e fundador do mosteiro de Serém, Aveiro, 1952. 33 Francisco de Lucena, Sua vida, Martírio e reabilitação, Subsídios para a História do reinado de D. João IV, Edição do Instituto para a Alta Cultura, Lisboa, 1945. 34 Miguel de Moura, 1538-1599, Secretário de Estado e Governador de Portugal, Lourenço Marques, 1974. 35 Conde de TOVAR, «O Escrivão da Puridade», Estudos Históricos, Tomo III, vol. 6, Lisboa, 1961. 36 «Secretário de Estado», José Pedro Fernandes (dir.), Dicionário Jurídico da Administração Pública, Lisboa, s.e., 1996, vol. VII, pp. 353-365.

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a administração e produção documental do século XIV-XV, com especial relevo para o

Desembargo Régio, foram publicadas por Armando Luís Carvalho Homem, onde se colhem

elementos de extrema importância metodológica para a relação entre as conjunturas de reinado e

o perfil dos ofícios de escrita37. Pedro França Reis publicou uma das poucas teses universitárias

acerca das secretarias de estado, versando uma análise genérica, ensaiando uma perspectiva

sociológica e arriscando mais uma prosopografia dos diversos secretários do que um estudo da

génese e funcionamento das secretarias, na sua relação com os problemas históricos mais

determinantes38. Importa ainda referir o importante estudo de caso de Teresa Vale sobre o

secretário D. Fr. Manuel Pereira, onde se procura uma integração da biografia no contexto

cultural, sem que, no entanto, haja uma consideração específica dos problemas da secretaria de

estado39.

O denso trabalho de Diogo Ramada Curto sobre o discurso político possui o mais

completo enquadramento da inserção político-cultural da escrita, desenvolvendo algumas

distinções fundamentais para a genealogia das secretarias como a emergência do “conselho

técnico” em torno das “finanças” e do «governo dos oficiais»40.

Entretanto, as obras de síntese, também tocadas pela importante renovação

metodológica do institucionalismo, O Antigo Regime, dirigido por António M. Hespanha, História

de Portugal – sobretudo as secções dedicadas à administração41 – e a Nova História de Portugal,

dirigida por Oliveira Marques, vol. V e VII, trouxeram visões de conjunto que, embora de valor

desigual, fornecem preciosas informações sobre “administração” e “burocracia”. No âmbito

desta renovação, Nuno Gonçalo Monteiro procurou descrever as mudanças de paradigma no

«despacho», mas sobretudo no que toca à «decisão política», no complexo momento de transição

entre o reinado de D. Pedro II e D. João V, sugerindo ainda algumas pistas para a interpretação

da tripartição das secretarias de estado em 173642. O estudo de Fernanda Olival sobre as ordens

37 O Desembargo Régio (1320-1433), INIC-Centro de História da Universidade do Porto, Porto, 1990. Ver ainda o importante texto, Armando L. C. HOMEM; Luís Miguel DUARTE & Eugénia Pereira da MOTA, «Percursos na Burocracia Régia (séculos XIII-XV)», A Memória da Nação, Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto (org.), Sá da Costa, Lisboa, 1991. 38 Conselheiros e Secretários de Estado de Portugal de D. João IV a D. José I (subsídios para o seu estudo sócio-jurídico), Tese de Mestrado, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Coimbra, 1987. 39 Teresa Leonor VALE, D. Fr. Manuel Pereira, Bispo e Secretário de Estado, Poder esclesiástico, Poder Político e Mecenato artístico na 2ª Metade do século XVII, E.G., Lisboa, 1994. 40 Diogo Ramada CURTO, O discurso político em Portugal (1600-1650), Lisboa, 1988, pp. 138-140 e bibliogafia citada. 41 José SUBTIL, «A administração central da coroa», História de Portugal, Alvorecer da Modernidade, vol. 4, Estampa, Lisboa, 1998, pp. 141-176 42 «Identificação da política setecentista. Notas sobre Portugal no início do periodo joanino», Análise Social, Vol. XXXV (157), 2001, pp. 961-987.

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militares estabeleceu alguns princípios fundamentais para a análise das secretarias, naquilo a que

autora chamou a «economia da mercê»43.

Recentemente, Pedro Cardim caracterizou os processos de centralização e as

repercussões historiográficas da crítica sobre o « Estado », tocando indirectamente nos modelos

de análise da administração e distinguindo a necessidade de um enquadramento adequado para o

tratamento do oficialato, separando devidamente as burocracias oitocentistas dos mecanismos

proto-burocráticos dos servidores dos papéis das monarquias jurisdicionais44.

Para lá destes estudos específicos, não podíamos terminar este breve quadro sem referir

as recentes biografias dos reis de Portugal, publicadas pelo Círculo de Leitores, instrumentos

fundamentais para as leituras conjunturais da «administração», sobretudo nos casos onde se

esboçam as principais tendências dos secretários do rei e das secretarias de estado45. Merecem

especial destaque as páginas dedicadas por Nuno Monteiro ao problema dos primeiros-

ministros, pela análise estrutural do valimento, directamente relacionada com o favoritismo e a

questão da ascensão dos secretários46. Muito recentemente, a síntese de José Subtil fornece o

levantamento sistemático mais completo em torno da formação da secretaria de estado, bem

como uma preciosa arqueologia dos titulares dos cargos, feita com base no Registo Geral de

Mercês47.

b) Os secretarios de estado na Monarquia Católica.

43 Fernanda OLIVAL, As Ordens Militares e o Estado Moderno, Honra, Mercê e Venalidade em Portugal (1641-1789), Estar, Lisboa, 2001, pp. 120-151. A autora tem vindo, nesta leitura, a polemizar com António Hespanha, sendo este mais inclinado a denominar o fenómeno como «economia da graça». A diferença estaria no plano material, onde a redistribuição das mercês, segundo Olival, além de limitação ao poder régio pela dimensão jurídica da propriedade do ofício, podia surgir no âmbito da corte como instrumento político da Coroa e, portanto, dos «secretários das mercês». António M. Hespanha vê aí uma maior indisponibilidade das mercês, destacando, no plano da dogmática, a dimensão graciosa do serviço, «incindível de uma constelação maior» («graça, gratidão, serviço, mercê»). Esta questão é de primeira ordem se recordarmos, como também afirma António M. Hespanha, que os ofícios da corte mantêm total dependência da confiança régia, podendo ser usados - mormente no caso das secretarias - como factor de «governo», António M. HESPANHA, «Depois do Leviathan…», p. 59. 44 Pedro CARDIM, «Centralização Política e Estado na Recente Historiografia sobre o Portugal do Antigo Regime», Nação e Defesa, 2ª série, nº 87, 1998, pp. 129-158. 45 João Paulo Oliveira e COSTA, D. Manuel I, 2005; Ana Isabel BUESCU, D. João III, 2005; Maria Augusta Lima CRUZ, D. Sebastião, 2006; Amélia POLÓNIA, D. Henrique, 2005; Fernando BOUZA ÁLVAREZ, D. Filipe I, 2005; Fernanda OLIVAL, D. Filipe II, 2006; António OLIVEIRA, D. Filipe III, 2005; Leonor Freire COSTA & Mafalda Soares da CUNHA, D. João IV, 2006; Ângela Barreto XAVIER & Pedro CARDIM, D. Afonso IV, 2006; Maria Paula Marçal LOURENÇO, D. Pedro II, 2007; Maria Beatriz Nizza da SILVA, D. João V, 2006 e Nuno G. MONTEIRO, D. José I, Círculo de Leitores, 2006. 46 Nuno G. MONTEIRO, D. José I…, sobretudo a secção «Primeiros-ministros no século XVIII ? Historiografia e história», pp. 236-240. 47 José SUBTIL, O Terramoto Político (1755-1759), memória e poder, UAL, ediual, Lisboa, 2006, pp. 28-39.

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Uma aturada análise da historiografia sobre a emergência dos secretários na Monarquia

Católica fornece uma cartografia da “modernização administrativa” centrada sobre a corte do rei

católico. É hoje bem conhecido que, no conjunto das formações «políticas» da Europa moderna,

os secretários do «mundo castelhano» se destacaram cedo no plano do “governo”. A partir do

reinado de Carlos I esteve em curso uma generalização do secretário como principal figura da

« administração régia », facto que marcou o perfil da corte, onde, por exemplo, a tipificação

documental pode ser apontada como uma das mais destacadas marcas dessa marca política e

civilizacional. Alguns destes factos não escaparam à historiografia oitocentista.

Ainda no século XIX quase todas as leituras históricas, muito marcadas pelo positivismo

institucional, apontaram para o protagonismo dos secretários na definição das “práticas de

governo”48. O trabalho precursor de Bermudez de Castro49 inscreve-se no âmbito desta

valorização liberal da «política administrativa». Esta valorização do «político» levantou um

primeiro nível de problemas “sociais”. Desse modo, emergiu um primeiro nível de sensibilidade

ao funcionamento da corte como chave de leitura histórica. Não obstante, o percurso do

secretário de Felipe II, Antonio Pérez, é apresentado na leitura de Castro sobretudo como drama

palaciano, cujas acções dos cortesãos – secretários, príncipes ou conselheiros – são qualificadas

numa grelha de “análise política”. Daqui decorreu que os «erros» dos personagens históricos

fossem avaliados a partir da longevidade junto do «poder», o que quase sempre equivaleu, na

análise de Bermudez de Castro, a uma associação entre “estadualização” e «bom governo»50.

Nas primeiras décadas do século XX verificaram-se sobretudo abordagens em torno do

peso cortesão dos secretários, tendo em conta a correspondência e o acesso dos biografados

àquilo que foi definido – à falta de termo mais objectivo – como “alta política”. Surgiram as

primeiras tentativas de abandonar a grelha da «política real» e do maquiavelismo oitocentista,

animado pela “economia política” e pela defesa da territorialização do poder, tópicos do

projectualismo do estado liberal retroactivamente colados à acção dos secretários do século

XVII. Assim, eruditas biografias de secretários, como aquelas publicadas por Angel González

Palencia51 e por Gregorio Marañon52, vão fundar uma leitura histórica “psicologista” onde,

48 F. COS-GAYÓN, Historia de la administración pública en España en sus diferentes ramos, (1851), Instituto de Estudios Administrativos, Madrid, 1976 e do mesmo autor o Cuadro sinóptico de todos los secretarios de Estado y del Despacho y Ministros de los Reyes de España desde Fernando é Isabel hasta 1850, Madrid, 1853. Ver ainda G. Desdevises du DEZERT, L’Espagne de l’Ancien Regime, Les Institutions, Paris, 1899. 49 D. Salvador BERMUDEZ de CASTRO, Antonio Perez, Secretario de Estado del Rey Felipe II, Establecimiento Tipográfico, Madrid, 1841. 50 Salvador BERMUDEZ de CASTRO, Antonio Perez..., pp. 21-23. 51 Angel GONZÁLEZ PALENCIA, Gonzalo Pérez, secretario de Felipe II, 2 vols., Madrid, 1946. 52 Gregorio MARAÑÓN, Antonio Pérez (el hombre, el drama, la época), 2 vols., Madrid, 1951.

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contudo, se podem descobrir as primeiras tentativas de identificar estruturas sociais actuando

sobre os indivíduos. Por outra lado, as valiosas edições documentais como a de Carlos Riba

García53 em torno da Correspondencia privada de Felipe II con su secretario Mateo Vázquez, ou a

publicação da «Defensa de Antonio Perez contra los cargos que se le imputaron en el processo

de visita», com estudo introdutório de Gustav Underer, vão procurar explicar a acção dos

secretários no plano mais vasto dos problemas de comunicação e da emergência da burocracia54.

Deve ainda destacar-se o artigo de Helmut Georg Koenigsberger, onde são desenhados

alguns dos tópicos determinantes para o estudo das secretarias, em estreita relação com a análise

dos “métodos de governo” de Felipe II: a “obsessão” com o registo escrito, o factor tempo na

circulação documental e suas repercussões na “legitimidade política”, permitem lançar uma

crítica sólida à visão predeterminada da burocracia como factor paralisante divulgada pela «black

legend». Contudo, a “política” permanece como principal grelha de análise apesar da tentativa de

integração dos problemas do “governo régio” e dos seus servidores num plano mais vasto, quer

pela conjectura dos projectos para a territorializar o poder, quer pelo estudo dos problemas

“administrativos” colocados ao projecto imperial universalista da Monarquia Católica55. Num

âmbito semelhante, o estudo de Hayward Keniston procurou estudar as raízes da “modernização

castelhana”, desenvolvendo temas como a capacidade de trabalho dos secretários e o ethos

letrado, o favor régio e os problemas da corte e do favoritismo, da ascensão social e da estrutura

social da burocracia, o que permitiu colocar definitivamente o tema dos secretários como tópico

dominante da historiografia sobre o governo castelhano do século XVII56.

A partir dos anos sessenta a historiografia dos secretários vai conhecer o mais notável

impulso no conjunto da historiografia europeia, com vários trabalhos de fôlego, e abrindo a

análise a uma perspectiva metodologicamente mais informada. Em primeiro plano, Tomás y

Valiente, com o seu tratamento dos secretários como elementos intermédios na mecânica do

valimento57. Depois, José António Escudero, cuja massa de informação publicada nos seus

incontornáveis quatro volumes, sobre os Secretarios de Estado y del Despacho, se vai tornar num

instrumento de primordial importância58. O trabalho de Escudero veio colocar, entre outras

53 Carlos RIBA GARCÍA (ed.), Correspondencia privada de Felipe II con su secretario Mateo Vázquez, 1567-1591, Madrid, 1959. 54 Gustav UNGERER, A spaniard in Elizabethan England: the correspondence of Antonio Pérez's exile, Tamesis Books Limited, London, 1975; Gustav UNGERER, La defensa de Antonio Pérez contra los cargos que se le imputaron en el Proceso de Visita (1584), Diputación Provincial, Institución Fernando El Católico, Zaragoza, 1980. 55 H. G. KOENIGSBERGER, «The statecraft of Philip II», European Studies Review, I, 1971, pp. 1-21. 56 Hayward KENISTON, Francisco de los Cobos, Secretary of the Emperor Charles V, Pittsburgh, 1960. 57 TOMÁS Y VALIENTE, Francisco, Los Validos em la monarquía española del siglo XVII, Estudio institucional, Instituto de Estudios Políticos, Madrid, 1963 58 J. A. ESCUDERO, Los Secretarios de Estado y del Despacho (1474-1724), 4 vols., Instituto de Estudios Administrativos, Madrid, 1969.

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questões, a importância do secretário na defesa da acção do rei, estudando as solidariedades e os

canais de comunicação ente oficiais, os processos de selecção das consultas ou os aspectos que

potenciavam a diferenciação de funções burocráticas no interior do sistema de governo. Deve

ainda considerar-se as páginas consagradas por José Antonio Maravall aos secretários de estado.

Considerando o processo de construção de uma “mentalidade social”, Maravall enquadra as

alterações encabeçadas pelos secretários, como a quantificação e o registo exaustivo, no conjunto

dos mecanismos de produção de novas formas de legitimidade régia59.

A identificação destes processos conduziu a historiografia a uma nova reconfiguração do

jurídico. Assim, os estudos de Garcia Marin60, Lovett61, Barrios62, Bermejo Cabrero63 e Martínez

Robles64, vão inverter o discurso dogmático da jurisprudência seiscentista – cuja doutrina política

valorizava o rei como fonte de onde procedia toda a autoridade dos ministros – para sublinhar

que «tanto o rei como o reino se caracterizam pela própria actuação dos ministros»65. Assim, o

questionamento do direito vai dar origem a uma valorização da “burocracia” nos mecanismos de

reprodução do poder na Monarquia Católica.

Numa dimensão mais convencional, a monumental biografia do conde-duque de

Olivares, da autoria de John Elliott, veio recolocar o processo de consolidação da secretaria de

estado na sua articulação com os problemas do valimento. Estudando as conexões entre

Olivares e os seus secretários, Elliott procurou avaliar as hierarquias entre secretarias, os

processos de concentração de secretarias num só secretário, as intensificações do poder daí

decorrentes e o crescimento da máquina secretarial como fragilização dos valimentos66.

Quanto à fortuna da conflitualidade como explicação da evolução institucional, forma

dados alguns passos importantes nas obras seminais de Fernandez Albaladejo67, Benigno68

Boyden69 e Martinez-Millan70, estudos que conduziram necessariamente à recolocação da

59 José Antonio MARAVALL, Estado moderno y mentalidad social (siglos XV a XVII), Madrid, 1972. 60 Jose GARCIA MARIN, La Burocracia Castellana bajo los Austrias, Ediciones del Instituto Garcia Oviedo, Universidad de Sevilla, 1976. 61 A.W. LOVETT, Philip II and Mateo Vázquez de Leça: the Government of Spain (1572-1592), Genebra, 1977. 62Feliciano BARRIOS, «La creación de la secretaría del registro general de mercedes en 1625», AHDE, LXVII (1997), II, pp. 925-942. 63 J.L. BERMEJO CABRERO, «Los primeros secretarios de los reyes», AHDE, XLIX, 1979, pp. 186-296. 64 MARTÍNEZ ROBLES, M., Los oficiales de las Secretarías de la Corte bajo los Austrias y los Borbones 1517-1812, Madrid, 1987. 65 Jose GARCIA MARIN, La Burocracia..., pp. 44 e s. 66 J. H. ELLIOTT, El Conde-Duque de Olivares, Editorial Crítica, Barcelona, 1990, pp. 56 e pp. 291 e ss. 67 Pablo FERNANDEZ ALBALADEJO, Fragmentos de monarquia, Trabajos de historia política, Alianza Universidad, Madrid, 1992. 68 Francisco BENIGNO, La sombra del rey, Validos y lucha politica en la España del XVII, Alianza Editorial, Madrid, 1994. 69 BOYDEN, James M., The Courtier and the King, Ruy Gómez da Silva, Philip II, and the Court of Spain, University of California Press, 1995, especialmente pp. 63-88.

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genealogia dos secretários de estado como produto da luta cortesã. Por exemplo, a necessidade

de Filipe II se apoiar num conjunto de conselheiros leais, auxiliando-o na imposição da disciplina

do «corpo político» terá potenciado o enraizamento de secretários junto do rei, pelo que as

tensões como o valimento – tal como tinha já salientado Tomás Y Valiente – apenas poderiam

ser entendidas no plano conjuntural dos equilíbrios da corte. Em todo o caso, a relação entre

secretários e validos é um dos mais complexos temas historiográficos que apenas a revalorização

do “político”, devidamente enquadrada por uma larga consideração das estruturas sociais,

permitiria aprofundar. Voltaremos a este tema ao longo do estudo.

No plano mais vasto do expansionismo castelhano, a análise de M. Rodríguez-Salgado

chamou a atenção para o papel dos problemas imperiais na determinação do «governo régio»,

estudando as necessidades de polarização de uma diplomacia própria como fenómeno que

aumentou os processos de produção documental e a imposição de mecanismos “burocráticos” e

“políticos” para a sua coordenação – fenómenos que teriam na formação dos secretários um

exemplo típico71.

O pano de fundo cultural inerente a todos estes cenários foi destacado pelos trabalhos de

Fernando Bouza sobre a dimensão histórica das práticas de escrita, abrindo uma perspectiva da

cultura no sentido sociológico, informado quer pelos tipos weberianos quer pelas teorias

foucaultianas das formas «doces do poder». Os seus estudos sublinham a importância da escrita

na formação do príncipe, no crescimento da corte e mesmo na constituição de um poder

especificamente moderno, onde as «consultas escritas y secretários papeleros» deterninaram o

perfil da «administração» 72.

O estudo coordenado por J. Elliott e L. Brockliss, The World of the Favourite marcou a

especificidade do elo entre monarca e « ministros papelistas » na produção de um mundo

político com práticas concretas, abrindo o inquérito historiográfico sobre os processos de

«decisão política» às zonas sombrias do favorecimento, do afecto e da insinuação cortesã73.

I.A.A. Thompson destacou a importância de estudar comparativamente a afirmação dos

secretários e do seu processo de territorialização do poder em meados do século XVI, comum

70 J. MARTÍNEZ MILLAN, «Grupos de poder en la corte durante el reinado de Felipe II: la facción ebolista», Instituciones y elites de poder en la monarquia hispánica durante el siglo XVI, Martinez Millan (dir), Universidad Autonoma, Madrid, 1992, pp 137-197. 71 Veja-se Mia J. RODRÍGUEZ-SALGADO, The changing face of Empire, Charles V, Philip II and Habsburg authoriy, 1551-1559, Cambridge University Press, Cambridge, 1998. 72 Fernando BOUZA ÁLVAREZ, Del escrivano a la Biblioteca, La civilización escrita europeia en la alta edad moderna (siglos XV-XVII), Editorial Sintesis, Madrid, 1997 ; Fernando BOUZA ÁLVAREZ, Comunicación, Conociemento y Memoria en la España de los siglos XVI y XVII, Salamanca, 1999; Fernando BOUZA ÁLVAREZ, El Libro y el Cetro La Biblioteca de Felipe IV en la Torre Alta del Alcázar de Madrid, Instituto de História del Libro y de la Lectura, Madrid, 2005. 73 The World of the Favourite, J. H. Elliott e L. W. B. Brockliss (eds.), New Haven, Yale University Press, 1999.

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aos secretários de estado em Portugal, França e Inglaterra74. Aprofundando estas pistas, António

Feros Carrasco procurou marcar o problema da informação e da legitimidade “ministerial” na

produção de especialistas em «papéis»75. Feros analisou também as particularidades do sistema de

corte na produção de soluções institucionais adequadas a essa conflitualidade específica,

analisando a emergência de validos e favoritos com a mutação das práticas governo76. É o caso

do processo de criação de “organismos” como Junta de Tres ou, em 1585, da Junta de Gobierno,

também conhecida por Junta de Noche, onde secretários, como Mateo Vázquez, se destacaram no

desbloquear dos circuitos de consultas dos conselhos77.

A síntese de Cosandey e Poutrin, retomou o problema da emergência dos favoritos e da

decadência dos secretários relacionando essa tensão com a monopolização de matérias, as

estratégias de ascensão “política” – como os métodos de redacção de consultas – e a arquitectura

institucional da monarquia. Daí que o complexo governo olivarista seja apresentado como uma

certa estratégia concentrada de burocratização (no sentido de uma maior funcionalidade,

hierarquização, montagem de uma cadeia de comando) dos servidores do rei78.

Muito recentemente, os trabalhos de María Victoria López Cordón79 e novos estudos de

José Antonio Escudero80 procuraram recolocar os secretários numa perspectiva de longa

duração, lançando novas pistas para avaliar os pontos centrais da sua evolução: elaboração de

prosopografias alargadas, o processo de estruturação das oficinas de trabalho, a formação das

mentalidades e a elaboração e fixação dos métodos de trabalho. Escudero procurou distinguir os

aspectos institucionais e filológicos das expressões «valido», «privado» e «primeiro-ministro»,

salientando, em todo o caso, o protagonismo informal dos secretários81. M. López Cordón veio

recolocar o problema das «revoluções administrativas» – como as reformas ministeriais de 1705-

1714 – no âmbito das mutações dinásticas, interrogando o peso dos monarcas nos processos de

decisão mas também nos mecanismos de construção de novas legitimidades régias, devendo

74 I.A.A. THOMPSON, «El contexto institucional de la aparición del ministro-favorito», The World of the Favourite…, pp. 25-41. 75 A. FEROS CARRASCO, «Imágenes de maldad, imágenes de reyes: visiones del favorito real y el Primer Ministro en la literatura política de la España moderna, c. 1580 – c. 1650», The World of the Favourite…, pp. 293-319. 76 A. FEROS CARRASCO, «Twin Souls: monarchs and favorites in early seventeenth-century Spain», Spain, Europe and Atlantic World, Essays in honour of John H. Elliott, Cambridge University Press., Cambrdige, 1995, pp 27-47 77 Antonio FEROS CARRASCO, Kingship and Favoritism in the Spain of Philip III, 1598-1621, Cambridge University Press, Cambridge, 2000, p. 27. 78 Fanny COSANDEY & Isabelle POUTRIN, Monarchies espagnole et française, 1550-1714, Atlande, Paris, 2001, pp 324-327 79 M.V. LÓPEZ-CORDÓN, «Instauración dinástica y reformismo administrativo, la implantación del sistema ministerial», Manuscrits. Revista d’història moderna, nº 18, 2000, pp. 92-112. 80 J. A. ESCUDERO, «El Gobierno de Carlos V hasta la muerte de Gattinara. Canciller, Consejos y Secretarios», El Imperio de Carlos V. Procesos de agregación y conflictos, B.J. Garcia Garcia (dir.), Madrid, 2000, pp. 83-96 ; ESCUDERO, J. A., Felipe II, el rey en el despacho, Editorial Complutense, Madrid, 2002. 81 Los Validos, José Antonio Escudero (coord.), Dykinson, Madrid, 2004, sobretudo pp. 15-34.

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observar-se a evolução institucional sem seccionar, por exemplo, Áustrias e Borbons. López

Córdon sublinha, por isso, que as leituras defensoras de uma “absolutização” bourbónica do

governo, talvez tenham exagerado a existência de efectivas ruptura, sendo que estas reformas

terão sido também uma reacção dos Conselhos ao peso dos secretários, sinal de que as alterações

institucionais das secretarias terão obedecido não só a estímulos de “governo” proto-iluminista

mas também à dinâmica interna do conflito cortesão82.

No âmbito da revalorização da escrita como «fenómeno político», Susana Cabezas

Fontanilla procurou descrever a especificidade do secretário do rei no Conselho da Inquisição,

relacionando o perfil institucional do organismo com os processos de elaboração e expedição

documental, anotando uma suposta fragilidade dos secretários naquele organismo83. José Luiz

Gonzalo Sánchez-Molero chamou a atenção para o facto de ter sido o secretário Mateo Vázquez

a fazer triunfar a generalização do despacho escrito na corte de Felipe II, destacando o peso da

multiplicação dos ofícios da escrita na transformação social84. Sánchez-Molero aponta para uma

leitura que tenha em conta, não só a formalidade dos instrumentos de governo, mas também os

processos mais profundos da “cultura política” que os elabora: se numa perspectiva «superficial»,

ao longo do século XVII, os secretários vão perder protagonismo decisório perante os validos,

sobretudo no que toca à capacidade projecção de “planos de governo”, na transformação do

discurso, a secretaria continuará a lançar as vagas profundas de uma eficaz generalização

«burocrática». Na verdade, não teria sido outra a «crítica quixotesca», magistralmente urdida por

Miguel de Cervantes, contra uma mutação do «governo régio » que repercutia com dramática

violência nos costumes seiscentistas, quer pelas novas formas de comunicação entre indivíduos,

quer pela agitação que aquela provocava nas estruturas sociais85.

Dando larga atenção a este plano da técnica documental, são vários os trabalhos que

sublinham a precoce «burocratização» da Monarquia Católica bem como as implicações da

tipificação documental na modelação do «governo»86. Com os trabalhos de Lorenzo Cadarso,

82 Ver também M.V. LÓPEZ-CORDÓN, «Administración y política en el siglo XVIII, las secretarías del despacho», Chronica Nova, nº 22, 1995, pp. 185-209; M.V. LÓPEZ-CORDÓN, «Secretarios y secretarías en la edad moderna, de las manos del Príncipe a relojeros de la Monarquía», Studia Historica. Historia Moderna, 15, 1996, pp.107-131. 83 Susana CABEZAS FONTANILLA, «Un ejemplo atípico en el proceso de producción documental moderna, El secretario del rey en le Consejo de Inquision», Documenta & Instrumenta, 1, 2004, pp. 9-20. 84 José Luis GONZALO SÁNCHEZ-MOLERO, «Mateo Vázquez de Leca, um secretario entre libros, 1, El escritorio», Hispania, 221, 2005, pp. 813-846. 85 José Luis GONZALO SÁNCHEZ-MOLERO, «LA evolución del aprendizage de la escritura ne la Corte de Felipe II, Cultura Escrita e Sociedad, nº 3, 2006, pp. 9-14. 86 Ver por todos Geoffrey PARKER, Felipe II, (1979), Alianza Editorial, Madrid, 2003, pp. 43-58, com actualização bibliográfica.

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Maria Alvarez Coca87, M. Gomez Gomez88 ou Feliciano Barrios89 surge em todo o esplendor a

«monarquia de papeles» e a relevância da burocracia90, dando seguimento aos trabalhos clássicos

de Garcia Marin91.

Estes estudos tipológicos apontam para a importância dos elementos diplomáticos

tradicionais, como a carta e a petição judicial, na produção documental da época moderna. Por

outro lado, é dada uma atenção rigorosa à composição física dos documentos, procurando ler o

seu significado «administrativo» de acordo como as práticas dos monarcas e seus secretários,

como a prática de escrever apenas num dos lados do folio, resultado da necessidade de espaço

para as notações de Felipe II ou a separação, com Felipe IV, dos assentos, com numeração e

resumos em nota marginal.

Por outro lado, tem sido destacado que a cristalização da prática documental régia deve

ser entendida também como história da transformação de um procedimento judicial. Assim o

estudo interno da documentação tem permitido destacar o papel dos secretários na adaptação de

formas escritas da decisão jurídica mas sem as garantias de interferência no processo que o estilo

da prática político-administrativa garantia às partes92. Neste âmbito, os estudos de Paola Volpini

procuraram interpretar os conflitos entre letrados no processo mais generalizado de

especialização político-administrativa, destacando-se os conflitos entre fiscais e secretários como

luta entre os representantes primordiais dos interesses dos soberanos93.

Em suma, a historiografia recente tem apontado para o estudo das práticas “papelistas”,

a análise da multiplicação de ‘oficinas documentais’, ligadas aos diversos tribunais de corte –

criados pela necessidade de alargar poderes –, procurando surpreender a origem de uma

87 M. J. ÁLVAREZ COCA, «La Cámara de Castilla : Secretaria de Gracia y Justicia. Problemas archivísticos y de investigación histórica », El tercer poder, Hacia una comprensión histórica de la justicia contemporánea española, Frankfurt, 1992, pp. 1-32. 88 GÓMEZ GÓMEZ, M., Forma y expedición del documento en la Secretaría de Estado y del Despacho de Indias, Sevilha, 1993. 89 Feliciano BARRIOS PINTADO, «La creación de la Secretaría del Registro general de Mercedes en 1625», Anuario de historia del derecho español, 1997, pp. 943-956 90 Pedro Luis LORENZO CADARSO, « La correspondencia administrativa en el estado absoluto castellano (sec. XVI-XVII) », Tiempos Modernos, Revista Electrónica de Historia Moderna, N° 5, 2001, pp. 1-29; Pedro Luis LORENZO CADARSO, La documentación judicial en la época de los Austrias, Estudo Archivistico y diplomatico, Cáceres, 1999. 91 GARCÍA MARÍN, Jose., «El dilema ciencia-experiencia en la selección del oficial público en la España de los Austrias», en Actas del IV Symposium de Historia de la Administración, Madrid 1983, pp. 261 a 280. 92 Para um bom levantamento deste processo ver Pedro Luis LORENZO CADARSO, El documento real en la época de los austrias (1516-1700), Universidad de Extremadura, Servicio de Publicaciones, Cáceres, 2001. Para os fundamentos do expediente régio ver José Luis RODRÍGUEZ de DIEGO, « Evolución histórica del expediente », Anuário de História del Derecho, t. LXVIII, 1998, pp. 475-490. 93 Paola VOLPINI, «I conflitti di precedenza nella dinamica politica, fiscale e segretario nella monarchia spagnola del seicento», Annali di Storia moderna e contemporanea, 9, 2003, pp. 509-532; Paola VOLPINI, Lo spazio politico del «letrado». Juan Bautista Larrea magistrato e giurista nella monarchia di Filippo IV, Il Mulino, Bologna, 2004.

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civilização estruturada pela escrita – um labirinto de papéis onde só o secretário parecia possuir o

mapa de saída.

c) França e o secretaire d’État.

O estudo das secretarias de estado tem sido um ponto sensível na historiografia francesa,

tocando o problema do perfil “absolutista” do regime monárquico e o domínio central daquilo

que viria a ser designado uma precoce emergência do “estado” através do paradigma comissarial.

Ainda no século XVII, no contexto da luta de corte, foi publicada, em 1668, uma Histoire de

Secretaire d’État escrita por Antoine Fauvelet du Toc, «Secrétaire des finances» de um irmão de Luís

XIV, no momento em que procuravam dignificar-se os secretários e fortalecer a “burocracia

régia”94. Tal como no caso Português ou Espanhol, também a evolução historiográfica francesa

– salvaguardando algumas pequenas diferenças cronológicas, pouco significativas – não

apresenta especiais particularismos. No século XIX, a vaga liberal de construção do estado

geraria os seus frutos procurando justificar o poder «administrativo» dos «ministérios», através

do trabalho institucional de H. de Luçay95. A história seguia o habitual caminho no sentido de

uma narração da “centralização estatal”.

Esta narrativa não foi facilmente quebrada e continuou a influenciar a historiografia do

século XX. Os primeiros estudos sistemáticos sobre as secretarias de estado incidiram sobretudo

em análises laterais ao problema da efectivação do poder. São exemplo desta perspectiva o

trabalho de François Bluche sobre o recrutamento social dos secretários de estado96 ou o vasto

levantamento de Hélène Michaud sob substracto cultural dos secretários do rei97.

N. M. Sutherland publicou um dos primeiros trabalhos de fôlego sobre as secretarias

destacando os percursos cortesãos dos secretários, bem como as suas redes de influência98.

Porém, a perspectiva seguiu de perto o enfoque psicologista dos oficiais, sem procurar enquadrar

94 Histoire des secrétaires d'Estat, contenant l'origine, le progrès et l'établissement de leurs charges, avec les éloges (...) et généalogies de tous ceux qui les ont possédées jusqu'à présent, par le sieur Fauvelet Du Toc, C. de Sercy, Paris, 1668. Em todo o caso, como mostram os estudos de Orest Ranum, o texto de Fauvelet du Toc permanece ainda como o mais relevante depóstio de informação sobre o tema. 95 H. de LUÇAY, Les Origines du pouvoir ministériel en France, Les Secrétaires d’État depuis leur instituition jusqu’à la mort de Louis XV, Genève, (1881), Paris, 1976, onde constam os nomes dos ofícios, o registo dos nomes, biografias e pequenas genealogias, datas de serviço, sendo o clássico manual administrativo. 96 François BLUCHE, «L’origine sociale des sécrétaires d’État de Louis XIV (1661-1715)», XVII siècle, 3 , 42-43, 1959, pp. 8-22. 97 Hélène MICHAUD, «Les bibliothéques des secrétaires du roi au XVI siècle, Bbliothéque de l’école des chartes, Vol. 126, nº 2, 1968. 98 N. M. SUTHERLAND, The French Secretaries of State in the Age of Catherine de Medici, University f London Historical Studies, 1962.

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a evolução do cargo num mais vasto horizonte de conflitos. Com Orest Ranum surgiu a primeira

reconstituição institucional das secretarias, com uma rigorosa crítica documental e uma estreita

preocupação com a raiz filológica dos ofícios, na linha da história do direito, assim como um

criterioso levantamento do raio de acção dos secretários99. Por outro lado, o trabalho de R.

Mousnier, embora tocasse a produção documental e a “burocracia régia”, não especificava qual a

funcionalidade das secretarias no âmbito do poder régio, preocupando-se, sobretudo, com a

desmontagem dos modelos marxistas de transição na sua imprópria adequação ao Antigo

Regime, lembrando que os ofícios régios da época moderna eram antes do mais dignidade e não

função100.

Não obstante estes significativos esforços, que tocaram a formação secretarial do século

XVII, uma recensão publicada em 1968 à obra de N. Sutherland, da autoria de Denis Richet,

afirmava que, das instituições formadas ao longo do século XVI, os secretários permaneciam em

larga medida um campo por explorar, não obstante os grandes traços da sua evolução serem

conhecidos101.

A obra de Richard Bonney, na medida em que procurou casar a preocupação de

Mousnier com a “especificidade” dos ofícios da época moderna com uma aturada preocupação

com modelos sistémicos, veio reforçar uma leitura dos secretários num enquadramento mais

vasto. Apesar das crescentes críticas do “absolutismo”, como modelo explicativo, que iam

emergindo, o reinado de Luís XIV era lido como reforço da autoridade régia, processo onde a

apropriação do rendimento fiscal, a inspecção das províncias ou a aplicação da lei régia teriam

potenciado os diferentes secretários como primeiros “ministros do reino”102.

A partir dos anos oitenta, a vaga de estudos marcados pelo jurisdicionalismo, colocou a

dinâmica da corte, e os seus conflitos jurisdicionais103, como principal chave da leitura política na

época moderna, lançando dúvidas sobre a “centralização” alcançada pelo rei de França, a eficácia

das intendências e da própria burocracia régia104. A par desta recolocação dos problemas da

territorialização do poder dos servidores do rei, o estudo dos secretários passou a ser

99 O. RANUM, Richelieu and the councillors of Louis XIII, A study of the secretaries of State and superintendents of finance in the ministry of Richelieu (1635-1642), Clarendon Press, Oxford, 1963. Ver, sobre o assunto, Donald KELLEY, Foundations of Modern Historical Scholarship, Columbia University Press, New York, 1970, pp. 212 e ss. 100 R. MOUSNIER, « Le Conseil du roi de la morte d’Henri IV au gouvernement personnel de Louis XIV», La Plume, La faucille et le marteau, Paris, 1970, pp. 141 e ss. 101 Denis RICHET, «N.M. Sutherland, The French Secretaries of State in the Age of Catherine de Medici», Annales, H.S.S, vol. 23, nº 2, 1968, p. 425. 102 R. BONNEY, Political change in France under Richelieu and Mazarin, 1624-1661, Oxford, 1978. 103 Neste sentido o artigo precursor de Pierre LEGENDRE, «La royaté du droit administratif», Revue historique de Droit français et étranger, Sirey, Paris, pp. 696-733. 104 Frnaçois-Xavier EMMANUELLI, Un mythe de l’absolutisme bourbonien, L’intendance, du milieu du XVIIe siècle à la fin du XVIIIe siècle, Université de Provence, Aix-en-Provence, 1981.

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enquadrado pela nova “genealogia administrativa” dos problemas fiscais, desenhada por Richard

Bonney105. No mesmo sentido, a leitura de Françoise Bayard sublinhou a importância da fusão

entre matérias financeiras e competências administrativas no estabelecimento das secretarias106.

No âmbito de um novo interesse “económico-jurídico”, pelos letrados e burocratas,

surgiram importantes estudos sobre a integração dos secretários nos problemas da intendência e

da construção administrativa. Tal como recordaram Robert Descimon, Bernard Vincent e Jean-

Frédèric Schaub, a transição dos reinos regulados pela justiça para os “estados administrativos”

deve ser repensada através da crítica do artificial oposição entre oficiais patrimoniais e

comissários107. Robert Descimon chamou a atenção para a relação entre “política” e “economia”,

destacando o facto dos secrétaires d’État terem as suas origens nos secrétaires des finances, estudando

ainda o poder efectivo dos secretários na assinatura de documentos formais108.

Por outro lado, a matização da intendência e do comissariado como vector único da

“modernidade” veio colocar alguns problemas ao estudo das secretarias. De acordo com a

leitura de A. Smedley-Weil, desde o século XVII, ofícios como o surintendant des finances,

responsável pelas despesas, ou o chancelier, com competências em matéria de justiça, partilham

com os secretários o protagonismo do governo, o que convida a ler a evolução institucional de

cada ofício como um jogo de conflitos, sem grande correlação entre designação e função109.

Na verdade, estava preparado o caminho para que a historiografia colocasse, em toda a

sua extensão, o problema das relações informais na emergência dos secretários de estado,

destacando a sua intimidade com o rei, ou a importância dos mecanismos sociais na construção

de rede institucionais no espaço da corte110. Neste mesmo sentido, os estudos de Olivier Poncet,

destacaram a «economia familiar», os laços de sangue e casamento, como pressupostos

fundamentais para entender a eficácia e o enraizamento das secretarias de estado, desde o

reinado de Francisco I quase até ao reinado de Henrique III111. Por sua vez, o artigo de Joan

Davies reconstituiu as tarefas de um secretário aristocrático, descobrindo nestes oficiais a

sombra dos secretários do rei, acentuando a comunicação entre modelos «administrativos» régios

105 Richard BONNEY, The king’s debts, Finance and politics in France, 1569-1661, Clarendon Press, Oxford, 1981. 106 Françoise BAYARD, Le monde des financiers au XVIIe siècle, Flammarion, Paris, 1988 107 Les Figures de l’administrateur, Institutions, réseaux, pouvoirs en Espagne, en France et au Portugal, 16e-19e, Robert Descimon, Bernard Vincent, Jean-Frédèric Schaub (ed.), Editions de l’école des hautes études en sciences sociales, Paris, 1997, pp. 1-16. 108 Robert DESCIMON «L'homme qui signa l'édit de Nantes: Pierre Forget de Fresnes», Bulletin de la Société de l'Histoire du Protestantisme français, 144, 1998, pp. 161-174. 109 A. SMEDLEY-WEIL, Les Intendants de Louis XIV, Fayard, Paris, 1995. 110 Pierre BORDIEU, «De la Maison du Roi à la raison d’État, Un modèle de la genèse du champ bureaucratique», Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 118, Genèse de l’État Moderne, 1997, pp. 55-68. 111 Olivier PONCET, Pomponne de Belllièvre (1529-1607), un homme d’etat au temps de guerres de religion, Paris, 1998, p. 357.

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e senhoriais. Nesse texto, Davies chamou a atenção para a riqueza dos arquivos senhoriais:

cópias de correspondência, cartas originais recebidas, ordens, notas de pagamento de tropas,

versos satirizando a política da corte, representações das assembleias, periódicos de outros

reinos ; destacando os vectores de acção dos secretários: a fidelidade no serviço e a

especialização; a responsabilidade sobre os papéis ; a manutenção do despacho ; a representação

do senhor112.

Um belo trabalho de Jean-Pierra Cavaillé destacou a importância da escrita na formação

da autoria, transformação cultural com sérias repercussões no plano político onde se pode falar

de uma génese secretarial da “autoria política”, onde a capacidade de influência dos secrétaire de la

chambre du roi vai ligar-se ao nascimento do “cameralismo” como ciência do governo planeado113.

Integrando estes contributos, as síntese institucionais de B. Barbiche – o estudo da “guerra” no

contexto dos papéis e do governo régio, fornecendo ainda amplas fontes documentais114 – e de

F. Cosandey e I. Poutrin, permitiram traçar um longo “fresco” da evolução das secretarias115.

Impulsionados por um renovado interesse em torno da “história política”, onde se cruza

a história da administração, a história institucional e a história das elites – opondo-se, no caso

francês, a um século de preponderância economia, da cultura e das mentalidades – surgiram

recentemente importantes estudos em torno da secretarias. Através de uma maior preocupação

com os aspectos específicos da « administração», o caminho seguido por Thierry Sarmant e

Mathieu Stoll tem consistido em isolar o campo específico do “gabinete” no quotidiano do

processo de decisão, na materialidade da redacção documental, na elaboração de

correspondência e na expedição de actos formais116. No mesmo sentido, Sarmant dirigiu um

112 Joan DAVIES, « The Secretariat of Henri I, Duc de Montmorency, 1563-1614 », The English Historical Review, Oxford University Press, vol. 115, nº 463, 2000, pp. 814. 113 Jean-Pierre CAVAILLÉ, «Service de Plume et Autonomie de l’auteur», Annales, Histoire, Sciences Sociales, 55 année, nº 5, Septembre-Octobre 2000, pp. 1117-1122. 114 B. BARBICHE, Les Instituitions de la monarchie française à l’époque moderne, PUF, Paris, 2000. 115 Em 1547, no reinado de Henrique II, existem quatro secrétaires (generalizando-se a designação de secrétariat d’État entre 1558 e 1559). No último quartel do século XVI as secretarias de estado vão-se especializando em torno de atribuições da Casa Real, como a «gendarmerie» ou a correspondência dos negócios estrangeiros. Neste sentido, entre 1589 e 1626 sedimenta-se o secrétariat d’État aux affeires étrangères que vem a adquirir um certo ascendente. Com Luis XIII e Richelieu reforça-se o crescimento do protagonismo e a especialização dos secrétaires d’État em guerre, marine, maison du roi, affaires étrangères, Fanny CONSANDEY & Isabelle POUTRIN, Monarchies espagnole et française, 1550-1714, Atlande, Paris, 2001, sobretudo pp. 376 e ss. 116 Thierry SARMANT et Mathieu STOLL, «Le style de Louvois : formulaire administratif et expression personnelle dans la correspondance du secrétaire d’État de la Guerre de Louis XIV», Annuaire-bulletin de la Société de l’histoire de France, 1999, p. 57-77. Ver ainda Fanny COSANDEY et Robert DESCIMON, L’absolutisme en France : histoire et historiographie, Paris, Seuil, 2002, p. 12-14.

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amplo estudo sobre os ministros da guerra, onde se incluem os secretários, constituindo um

instrumento de trabalho fundamental para futuros estudos comparativos117.

Michel Antoine dedicou-se ao estudo dos oficiais e secretários responsáveis pelas

finanças, no âmbito do movimento historiográfico que, impulsionado pelos estudos de Bonney e

Descimon, tem vindo a recuperar o papel determinante da “economia” na definição institucional

do “governo”, procurando integrar o funcionamento das secretarias e a dimensão commissarial

tanto num processo de troca de bens como no financiamento do sistema político, analisando

ainda as relações entre a revogabilidade dos cargos e a venalidade dos ofícios118. Num outro

plano, os estudos de Emmanuel Pénicaut procuraram aprofundar o funcionamento das

secretarias mas retomando a linha do sistema de corte e dos poderes informais119.

No que diz respeito à produção documental, a análise de correspondências diplomáticas,

como a do secrétaire d'État de Henrique III e Henrique IV, redigidas entre 1588 e 1593 e

publicada por Y. Soulingeas, S. Gal, J. Savasse, contribuiu para entender de forma mais completa

a importância da escrita como representação diplomática120. O estudo procurou interpretar os

métodos de trabalho – o tratamento da correspondência pelo secretário – identificando as

tipologias e os grupos que interagiam com os secretários, a elaboração de cartas e relatórios dos

embaixadores e agentes, bem como o tipo de relações estabelecidas com os responsáveis

militares, eclesiásticos e os príncipes.

Jean-Frédéric Schaub publicou um importante estudo sobre as raízes castelhanas do

governo francês do século XVII e XVIII. Discutindo a origem do “modelo francês” do governo

régio, Schaub conferiu maior importância ao peso dos modelos ibéricos no seu processo de

formação121. O “governo à espanhola”, impulsionado pela sofisticação da segunda escolástica,

terá lançado as bases para a determinação das «secretarias de estado» como eficaz instrumento

“político”122. No mesmo sentido da troca de influências, Alexandre Dupilet e Thierry Sarmant

117 Les ministres de la guerre, 1570-1792, histoire et dictionnaire biographique, Thierry Sarmant (dir), Belin, Service historique de la défense, 2007. 118 Michel ANTOINE, Le coeur de l'État, Surintendance, contrôle général et intendances des finances 1552–1791, Fayard, Paris, 2003. 119 Emmanuel PÉNICAUT, Faveur et pouvoir au tournant du Grand Siècle : Michel Chamillart, ministre et secrétaire d’État de la guerre de Louis XIV, Paris, 2004. 120 L'Europe d'Henri IV, La correspondance diplomatique du secrétaire d'Etat Louis de Revol, 1588-1593, Yves Soulingeas, Stéphane Gal, Jacques De Monts de Savasse (dir.), PUG, Collection La Pierre et l'Ecrit, Grenoble, 2004. 121 Jean-Frédéric SCHAUB, La France Espagnole, Les racines hispaniques de l’absolutismo français, Éditions du Seuil, Paris, 2003. 122 O problema é complexo e apenas um monumental estudo comparativo poderia clarificar a questão. Na verdade, em 1559, os ministros de Felipe II que negociavam a paz no reinado de Henrique II de França apresentavam-se como «secretários de estado». Segundo Francisco Morato, um erudito português do século XIX, os «secretários do rei de França» passaram então «a designar-se também de Estado». Morato dava conta de que havia na época quem

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retomam, desta feita, a influência francesa das « reformas » bourbónicas das secretarias de estado

na Monarquia Católica, depois de 1700, recordando que, da mesma forma, teriam sido as Juntas

“espanholas” a inspirar a polissidonia francesa123.

A recente publicação, por Orest Ranum, de uma importante memória, e respectivo

estudo, sobre os oficiais especializados em “papéis”, permite conhecer com detalhe a evolução

institucional da “burocracia francesa”, preocupando-se o autor em elaborar uma sintética, mas

rigorosa, “história da história institucional” dos secretários, com pequenas abordagens dos

clássicos, onde são analisados os processos analíticos: a exposição cronológica através do estudo

da formação territorial do ofício no contexto da monarquia francesa ou a comparação liberal da

substituição do mecanismo complexo da feudalidade pelo “racionalismo” monárquico124. A

análise de Ranum segue depois um estilo filológico estabelecendo as diferenças entre oficiais da

escrita a partir de textos de juristas do século XVI. Os Secretaires d'Etat são aí identificados em

toda a plenitude do seu protagonismo como «cognoissance de tout ce qui appartient au regime,

gouvernement & police du Royaume», responsáveis pelas «memoires & instructions des

Ambassadeurs, ou les pouvoirs & commissions des Gouverneurs des Provinces», «le service du

Roy & du public, leur escrire & faire entendre la volonté & l'intention de sa Majesté & du

Conseil d'Estat», fazendo um estudo crítico sobre a produção manuscrita de inventários de

secretários e uma crítica da fonte absolutamente modelar. O estudo de Orest Ranum faz

sobressair a análise “política” com uma recuperação exemplar das informações inscritas nas

memórias, comprovando o grande relevo das competências cortesãs dos secretários:

representação, poder discursivo, dissimulação – “dizer apenas o necessário” e “fazer bem falar o

rei”. Esta seria sem dúvida uma das possibilidades de trabalho no caso de se terem preservado

este tipo de memórias.

d) Inglaterra e o secretary of state.

Tal como no caso Português e Espanhol, no reino de Inglaterra, a fortuna do liberalismo

levou a que o estudo das instituições de poder se tenha a muito custo libertado da apologia do

defendesse a «antiguidade do título em França e que teria sido a administração da Coroa Francesa a influencier a nomenclatura castelhana», Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», p. 59. 123 Alexandre DUPILET et Thierry SARMANT, « Prélude à la Polysynodie, les projets politiques du chancelier de Pontchartrain en 1712 », Revue d’histoire du droit français et étranger, n° 4, 2005, pp. 657-678. 124 Mémoires sur l'Établissement des Secrétaires d'Estat et des Clercs Notaires et Secrétaires du roy et Secrétaires des Finances, Orest Ranum, BnF ms. Cinq Cents Colbert 136/Ms. Fr. 18236, www.ranumspanat.com/secretaries_presentation.htm (2006).

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“governo administrativo”. O inquérito da eficiência da monarquia administrativa, feito na

perspectiva da génese da especificidade inglesa, e do revolução “estatal” dos Tudor, sem uma

tradição historiográfica de comparação com as monarquias europeias, marcou de forma vincada

os textos publicados em língua inglesa125.

Na historiografia anglo-saxónica fizeram curso os estudos de caso em torno de

secretários «modelares», bem como análises sobre a génese do ofício a partir das necessidades do

«bom governo». Não espanta por isso que a sobrevivência do pensamento liberal tenha

significado uma sobrevivência da eficácia administrativa. Sobretudo numa perspectiva

“contratualista”, sendo implícita à análise da “construção do estado” uma certa supremacia das

instituições parlamentares e do problema constitucional, o que terá redundado numa

lateralização do papel dos secretários, muito mais enraizados na monarquia “absoluta” e

portadores da “caixa de Pandora” da expropriação política do jurídico, o que implicava rever as

“liberdades liberais”, e contratualistas, da ciência da administração”126.

Em todo o caso, os scholars fizeram surgir dois rumos clássicos de análise: por um lado o

estudo biográfico dos mais destacados secretários, por outro a tentativa de reconstituir a função

governativa dos secretários no seio do poder régio. Em 1913, Edward Raymond Turner

publicou um estudo sobre o Cabinet na perspectiva da eficácia do governo, destacando a

importância dos círculos restritos de decisão e os conjuntos de conselheiros secretos convocados

pelo rei para o tratamento de negócios secretos e despacho127. Ainda no início do século XX, a

emergência do interesse pelos aspectos “burocráticos” do governo conduzem ao estudo de dois

relevantes textos de finais do século XVI, onde surgem algumas indicações sobre a génese do

secretary of state128.

125 A estrutura das secretarias inglesas na transição do século XVI para o século XVII corresponde grosso modo à das monarquias e reinos ibéricos: um secretary of state com dois oficias assistentes (um principal, funcionando como braço direito do secretary of state tendo acesso às principais matérias e controlando expediente dos «foreign affairs, military problems», e um segundo oficial, com responsabilidades menores tratando de assuntos ordinários, cifras, matéria na área da «inteligence». Em 1625 fala-se de «Junta for foreign affair» onde parece haver uma clara dimensão de simpatia entre os «spanish affairs» e as próprias soluções administrativas da monarquia católica, Edward Raymond TURNER, «The Developmentof the Cabinet, 1688-1760», The American Historical Review, vol 18, nº 4, 1913, pp 751-768; No mesmo sentido, G. UNGERER, A Spaniard in Elizabethan England: the correspondance of Antonio Pere’z exile, 2 vols., London, 1974-1978. 126 Os primeiros estudos em torno das secretarias de estado em Inglaterra confirmam uma colagem à perspective «administrative», Robert SOUTHWELL, The history of the revolutions of Portugal from the foundation of that Kingdom to the year 1667, John Osborne, Londres, 1740; N. LUTTRELL, A Brief Historical Relation of State Affairs from September 1678 to April 1714, 6 vols., Oxford, 1857; C. S. S. HIGHAM, The Principal Secretary of State: A Survey of the Office from 1558 to 1680, Manchester, 1923; M. A. THOMSOM, The Secretaries of State 1681-1782, Oxford, 1932. 127 Edward Raymond TURNER, «The Development of the Cabinet, 1688-1760», The American Historical Review, vol. 18, nº 4, 1913, pp. 751-768. 128 Robert BALE, «A treatise of the Office of a Councellor, and Principal Secretarie to her Ma[jes]tie» publicado por C. READ, Mr. Secretary Walsingham and the policy of Queen Elizabeth, I, Oxford, 1925 e Nicholas Faunt, «Nicholas

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Rompendo com a perspectiva biográfica e genealógica, que tendia a absorver a

historiografia de princípios do século XX, os estudos de Florence Evans vão destacar-se por

uma análise dos «emolumentos» dos secretários, procurando também identificar as resistências

do ofício inglês medieval no âmbito dos papéis – o Principal Secretary – ao longo do século XVII.

Esta reconstituição das tendências e persistências institucionais, permitiria, em parte, cortar com

o enfoque providencialista do secretary como statesmen129.

Neste plano surge também o magistral trabalho de Conyers Read sobre a acção palaciana

dos secretários, abundantemente documentado por fontes coetâneas, com destaque para o tema

da espionagem e da manipulação. O autor funde a análise biográfica do secretário com a acção

diplomática, respigando aspectos conjunturais – como as repercussões da acção dos secretários

na noite de S. Bartolomeu, as ligações com as Províncias Unidas ou o confronto do reino de

Inglaterra com a Monarquia Católica. Em todo o caso, as críticas podem ser direccionadas para a

pouca problematização dos confrontos cortesãos, sem a devida contextualização com os

aspectos específicos da mentalidade da época moderna130. No âmbito de uma perspectiva

biográfica, mais atenta às implicações sociológicas dos percursos individuais, merece ainda

destaque o estudo de R. Wernham, uma documentada análise da ascensão de William Davison,

um obscuro servidor que ascende a principal secretary no reinado de Elisabeth, em 1586131.

Nos anos cinquenta, o monumental estudo de Geoffrey Rudolph Elton apontou para

uma analítica da transformação institucional que iria fazer escola e cristalizar uma leitura clássica

da “estadualização” do poder régio, com claro destaque para os secretários132. Neste sentido, a

criação do «estado» independente e soberano, a formação de uma monarquia constitucional com

supremacia régia no parlamento, a par de uma burocracia moderna, seriam vectores muito

valorizados pela abordagem de Elton. Este processo, historicamente definido no século XVI

pelo combate com a supremacia político-constitucional do papado e pela emergência do

parlamento como fonte de legitimidade, resultaria num fenómeno determinante para o assunto

que aqui nos ocupa: uma suposta construção administrativa «more efficient and bureaucratic and

Faunt’s Discourse Touching the Office of Principal Secretary of Estate, &c. 1592.», The English Historical Review, 20, 1905, pp. 499-508. Beale e Faunt, autores dos textos desempenharam funções como secretários “particulares” do secretary of state, Francis Walsingham, no final do século XVI, tendo os textos citados sido modelares na formação de uma prática dos secretários do rei, bem como na defesa da maior estruturação da secretaria de estado. 129 Florence M. Greir EVANS, «Emoluments of the Principal Secretaries of State in the Seventeenth Century», English Historical Review, 35, 1920, pp. 513-528; Florence M. Greir EVANS, The Principal Secretary of State, A Survey of the Office from 1558 to 1680. Manchester University Press, Manchester, 1923. 130 C. READ, Mr. Secretary Walsingham and the policy of Queen Elizabeth, 3 vols., Oxford, 1925. 131 R. B. WERNHAM, «The Disgrace of William Davison », The English Historical Review, vol. 46, nº. 184, 1931, pp. 632-636. 132 G.R. ELTON, The Tudor Revolution in Government: administrative changes in the Reign of Henry VIII, (1953), Cambridge University Press, Cambridge, 1962.

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less dependent on the kings household». Assim, a importância do principal secretary como centro

da administração, enquanto detentor do selo privado do rei e do sinete, coabitou com a

depreciação do peso “administrativo” da casa real, sofrendo estas alterações “racionalizadoras”.

A leitura de Elton, seguindo de perto os estudos de Weber, refere o processo como uma

passagem para uma utilização dos «national bureaucratic methods and instruments». Assim, o

ano de 1530 terá assinalado a substituição dos servidores do rei por uma separação territorial

mais alargada do secretary of state133. Embora não seja difícil entrever aqui algum exagero sobre a

eficácia transformacional, levada a cabo pelo “toque de midas” racionalizador da administração

escrita, influenciado pelo tom weberiano, as intuições de G. Elton são, em grande medida, das

mais solidamente informadas.

Na década de 1960 a acumulação da informação genérica, e das visões sistémicas, fez

surgir novamente os estudos biográficos. Trabalhos sobre a composição da secretaria de estado

poderiam fornecer dados significativos para clarificar o real peso da transformação

“burocrática”. Assim, os estudos de Alan Smith sobre o exercício do secretário Wiliam Robert

Cecil, permitiram observar pela primeira vez, de forma sistemática, o enraizamento social da

secretaria de 1580 a 1612, bem como a sua estrutura institucional. O seu sintético, mas profícuo

levantamento, permitiu identificar as relações entre os secretários e os seus patronos, as funções

de especialização entre os assistentes dos secretários, ou a repercussão das alterações nos

emolumentos no raio de acção “administrativo” das secretarias134. Por outro lado, a

especialização de um autor como F. Emmison nos «Tudor studies», sobretudo no contexto do

“governo”, permitiu articular um enfoque “político”, no sentido de identificação individual do

cortesão, com as implicações sistémicas das escolhas individuais, isto através da análise do

percurso biográfico de William Petre, secretário em meados do século XVI135.

Em 1972, o monumental levantamento Office-Holders in Modern Britain, levado a cabo pelo

Institute of Historical Research – com especial destaque para a publicação em 1973 do volume

Officials of the Secretaries of State 1660-1782 –, retomou a perspectiva da eficácia de “governo”, de

acordo com a neutralidade institucional do “estado”. Em todo o caso, se a análise da genealogia

133 G.R. ELTON, The Tudor Revolution in Government…, pp. 415-425. Uma boa crítica das considerações de Elton, considerando a utilização historiográfica da “burocracia” na época moderna, Revolution Reassessed: Revision in the History of Tudor Government and Administration, Christopher Coleman and David Starkey,(eds.), Oxford, 1986. 134 Alan G. R. SMITH, «The secretaries of the Cecils, circa 1580-1612», The English Historical Review, vol. 83, nº 328, Jul. 1968, pp. 481-504. 135 F. G. EMMISON, «A Plan of Edward VI and Secretary Petre for Reorganizing the Privy Council’s Work, 1552-3», Bulletin of the Institute of Historical Research, 31, 1958, 203-210; F. G. EMMISON, Tudor Secretary, Sir William Petre at Court and at Home, Harvard University Press, Cambridge, 1961.

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institucional do cargo é muito escassa, a disposição da informação on-line permite hoje aceder a

uma enciclopédica massa de informação documental sobre as secretarias de estado inglesas136.

Os anos oitenta trouxeram nova preocupação com a dimensão económica da

administração. C.S. Knighton salientou a evolução da acção dos secretários sobre os aspectos

financeiros durante o governo de Cromwell. Assim, esta mutação do governo económico, teria

correspondido à emergência do conceito de state, algo que, como veremos em detalhe, sucederá

também na Península Ibérica. Assim, também em Inglaterra apenas no final do século XVI os

secretários teriam passado de principal secretary a secretary of state, com tudo o que isso significa de

transformação dos modelos de governo137.

A partir dos anos noventa, o processo global de afirmação das democracias liberais

contemporâneas conduziu a historiografia a uma inevitável recuperação da «história política», o

que permitiu à «história institucional» – mais informada metodologicamente, recuperar algum

terreno perdido com o “economicismo” dos anos sessenta e setenta. São vários os estudos que

regressam à importância dos secretários e dos “gabinetes políticos” na condução dos

acontecimentos, com a inevitável emergência da diplomacia. O trabalho de F. Platt aponta para a

especialização do principal secretary nos «foreign affairs», no governo da rainha Elisabete do,

indicando a supremacia das matérias diplomáticas no perfil dos oficiais: selecção, treino e

direcção do corpo diplomático, elaboração da correspondência, inventariação e arquivo do

material produzido pelos diplomatas ingleses138.

Por sua vez, a análise dos organismos de governo (Conselhos, Secretarias, Parlamentos)

resultou na historiografia anglo-saxónica numa genealogia de estudos sobre a eficácia do

«estado» como criação transversal decorrente da “legitimidade política”, do monopólio da força

e da construção de exércitos e do financiamento e agilização do sistema fiscal139.

Mais recentemente, a implementação da informação e da comunicação como factores

determinantes da “política”, tem aberto pistas interpretativas bem mais interessantes no

136 Office-Holders in Modern Britain, Volume 2, Officials of the Secretaries of State 1660-1782, London, 1973, www.british-history.ac.uk/source.aspx?pubid=72. Numa perspectiva similar David KYNASTON, The Secretary of State, Suffolk, 1978. 137 C.S. KNIGHTON, ‘The Principal Secretaries in the Reign of Edward VI: reflections on their office and archive’, C. Cross and others (ed.), Law and Government under the Tudors. Law and Government Under the Tudors: Essays Presented to Sir Geoffrey Elton, Cambridge University Press, Cambridge, 1988, pp. 163-177. 138 F. Jeffrey PLATT, «The Elizabethan "Foreign Office"», The Historian, Vol. 56, 1994 139 A título de exemplo, as colectâneas de estudos dirigidas por Richard Bonney, Economic Systems and State Finance, Oxford University Press, Oxford, 1995 e The Rise of the Fiscal State in Europe, c. 1200-1815, Oxford University Press, Oxford, 1999.

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momento de analisar os secretários. Paul Griffiths procurou perceber a importância da selecção

da informação na condução dos métodos de «governo régio», apontando para a emergência do

“público” e do “privado”, fenómeno que deve ser lido em estreita articulação com o segredo.

Griffiths propõe o estudo da formação de opiniões públicas, da percepção da autoridade, e da

especulação, fornecendo um quadro de análise institucional que pode finalmente ultrapassar o

cada vez mais inócuo – quando aplicado ao mundo moderno – conceito de “política”140. Neste

sentido os estudos de Blair Worden e Anthony Grafton procuraram identificar a estreita relação

entre a escrita e a fundamentação política da técnica, inquirindo a ciência e o humanismo

filosófico nas suas relações com a mutação dos sistemas de poder141.

Por outro lado, alguns trabalhos de fôlego procuraram reconstituir, num quadro

cronológico alargado, a acção de um conjunto de oficiais e de ofícios especializados em “papéis”.

Perspectivando uma análise do recrutamento, do perfil profissional, bem como discutindo a

actuação dos oficiais e as formas de registo, o estudo de Jacqueline Vaughan, sobre os clerks do

“Conselho Privado” dos Tudor, procura estabelecer uma relação estreita entre as prestações

individuais dos oficiais e a sedimentação institucional do cargo142. Também a análise de Patrick

Collinson sobre Robert Beale, como vimos, um leal servidor com um longo tempo de controlo

sobre os papéis e diplomacia da rainha Elisabete, procura identificar de que forma o percurso

individual do oficiais afecta a memória institucional do cargo, procurando ultrapassar a por vezes

artificial dicotomia entre serviço patrimonial e serviço burocrático143.

A terminar, importa destacar o belo texto de Brandon Whiting Christopher, autor de

uma tese de Doutoramento apresentada em 2007. Christopher apresenta um dos mais

interessantes e fecundos trabalhos sobre o problema da “burocracia” e da sua leitura

140 Paul GRIFFITHS, «Secrecy and authority in late sixteenth and seventeenth century London», The Historical Journal, nº 40, Cambridge University Press, Cambridge, 1997, pp. 925-951. Oxford, 1997. Numa perspectiva bem mais informada do ponto de vista metodológico, assim como explorando os aspectos sistémicos do sistema de poder, o enfoque institucionalista, a representação e as práticas do poder, são analisados os processos de transformação np governo, assaz polémicos na historiografia inglesa, onde os secretários e o sistema burocrático adquirem enorme relevância. O estudo de M. Braddick apresenta alguns relevantes dados comparativos, Michael J. BRADDICK, State Formation in Early Modern England c. 1550-1700, Cambridge University Press, Cambridge, 2000. Um conjunto de ensaios de G. Bernard vem submeter a crítica a relativismo institucional e os excessos do pós-modernismo mergulhando no habitual relativismo político iinverso: um tratamento linear dos problemas políticos, da monarquia, a com factores como a liderança ou a conflitualidade cortesão baesadas apenas nas ambições psicologistas do poder, G. W. BERNARD, Power and Politics in Tudor England, Aldershot and Burlington, Ashgate, 2000. 141 Anthony GRAFTON, Defenders of the Text: The Traditions of Scholarship in the Age of Science, 1450-1800, Harvard University Press, Harvard, 1991; Blair WORDEN, The Soldiers, Writers and Statesmen of the English Revolution, Ian Gentles, John Morrill and Blair Worden (ed.), Cambridge University Press, Cambridge, 1998. 142 Jacqueline D. VAUGHAN, Secretaries, Statesmen and Spies, The clerks o the Tudor Privy Council, c. 1540-c.1640, University of St. Andrews, (Dissertação de Doutoramento), School of History, 2006. 143 Patrick COLLINSON, «Servants and citizens: Robert Beale and other Elizabethans», Historical Research, 79, 2006, pp. 488–511.

30

historiográfica144. Na verdade, o autor coloca o problema burocrático na devida perspectiva: a

delegação da autoridade, fruto de um desejo de tudo observar e da inabilidade para confiar em

observações de outros sujeitos, resultando na disciplina da vigilância. Assim, o estudo procura

relacionar o trabalho “burocrático” com o produto desse trabalho – o documento – sem cair nos

modelos demasiado abstractos dos tipos weberianos, que opõem de forma pouca satisfatória o

estado patrimonial dos secs. IV-XVIII ao estado burocrático, secs. XIX-XX, de forma a

observar de que forma a época moderna produz um tipo específico de burocracia.

2. Uma “genealogia institucional” para a época moderna

Posto o panorama geral da historiografia, importa agora clarificar a abordagem aqui

seguida. Qual o enfoque de análise dos secretários que norteou a recolha do material empírico e

de que forma esse material condicionou depois a problematização do tema?

***

Na segunda metade do século XX, a valorização historiográfica da «justiça», que

descrevemos já nos seus traços gerais, deveu-se a uma «abstinência do direito» – para utilizar a

expressão de Bartolomé Clavero – praticada por toda a historiografia do pós-guerra, à cabeça da

qual estavam os vários marxismos145. Acontece que a esta abstinência do direito sucedeu uma

certa “congestão” do jurídico, o que tem levado os historiadores a forçar a nota da dogmática

jurídica como paradigma explicativo das relações sociais.

Vimos que a história institucional, horizonte teórico da investigação que agora se

apresenta, procurou resolver este problema pela integração da crítica foucaultiana do poder.

Gilles Deleuze, um dos filósofos herdeiros da crítica social mais informados das últimas décadas

do século XX, escreveu que com os estudos de Michel Foucault surgia, finalmente, na análise

social do poder, algo de novo depois de Marx146. Assim, sabemos hoje que, não só o direito não

144 Brandon W. CHRISTOPHER, «“Officious men of state”, Early modern drama and early english bureaucratic identity», Department of English, Queen’s University, Kingston, September, 2007 145 Entrevista dirigida por António M. Hespanha a Bartolomé Clavero, Penélope, 1988, p. 104. 146 Gilles DELEUZE, Foucault, Apesar da fortuna dos estudos foucaultianos, sobretudo ao longo dos anos oitenta, o seu âmbito de influência acabou por ficar acantonado em nichos do saber (Psicologia, Ciências da Educação). Apenas na década de 1990 começou a verificar-se um novo interesse pelas leituras de Foucault no âmbito das «áreas duras» das ciências sociais. A título de exemplo, ver The Foucault Effect, Studies in Governmentality, Michel Foucault, Graham Burchell, Colin Gordon, Peter Miller, University of Chicago Press, Chicago, 1991. Além disso a publicação, já depois de 2000, dos seus cursos no Colégio de França estão a generalizar um Foucault muito mais acessível aos problemas metodológicos do institucionalismo. Sobre o curso de Foucault, Il faut defendre la société, e suas implicações na história institucional moderna, ver António M. HESPANHA, «Marginalia sobre dois seminários de história do poder», Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 4.6, 2003, pp. 165-193

31

possui verdadeira história, como, depois de Foucault, também a história do poder não possui

verdadeira representação formal, nem nos conteúdos do direito, nem nos conteúdos da

linguagem. Há, pois, que procurar um outro campo de análise, a conflitualidade, onde tanto a

linguagem como o direito terão sido, sobretudo, os instrumentos da luta.

Deste modo, seguimos duas pistas centrais que têm aliás uma longa linhagem de estudos

nas ciências sociais: a perspectiva do conflito como motor dos sistemas de governo patrimoniais

e o papel da formação da corte nos séculos XVI e XVII como processo determinante nos usos

sociais da época moderna147.

2.1. A genealogia institucional.

O «jurisdicionalismo» tem servido de explicação dominante das relações institucionais na

época moderna. Porém, no âmbito das «secretarias de estado» será necessário testar dois

aspectos fundamentais: como se impõe a eficácia e o ocaso do «jurisdicionalismo» como

explicação das relações de poder e de que forma as «secretarias de estado» se relacionam com

este processo; mas também qual o significado do poder quando aplicado ao institucionalismo na

época moderna.

Comecemos pela eficácia do “jurisdicionalismo”.

É necessário clarificar as relações problemáticas – do ponto de vista teórico – entre a

formação da secretaria de estado – entendidas como fenómeno institucional – e o ocaso do

“jurisdicionalismo” – entendido como paradigma das relações de poder na época moderna.

Deve reconhecer-se que as instituições não são meras produções de sentido. Antes

resultam de enfrentamentos reais entre grupos e indivíduos onde concorrem diferentes tipos de

força que variam de acordo com a estrutura social e o meio histórico determinado. Por sua vez, a

produção institucional age sobre os paradigmas discursivos. Assim, todo o paradigma discursivo

– e o jurídico é sobretudo uma forma de linguagem, uma jurisdictio, dizer o direito, pronunciar o

juízo, falar – resulta de produções institucionais. Mas as mutações institucionais resultam das

relações específicas entre os indivíduos e da reprodução dessas relações. Neste sentido, a

relevância do «secretátio de estado» na época moderna decorre de uma produção institucional

que não só resulta numa nova forma de descrever o poder, como inter-age com novas formas de

147 Estas linhas, apesar dos estudos centrais de Foucault e Elias que aqui fornecem a principal orientação teórica no tratamento dos secretários, foram determinadas em muito graças aos estudos de Werner SOMBART, Luxus und Kapitalismus, Munique, 1922 e Niclos POULANTZAS, Pouvoir politique et classes sociales, Paris, 1971. Ambos os estudos têm tradução portuguesa.

32

relação entre os grupos. Daí que o jurisdicionalismo enquanto fenómeno prático-discursivo

deixe de fora uma série de fenómenos determinantes. Como é compreensível, não trataremos

aqui das razões que levam à recomposição social dos grupos e das suas relações mas apenas da

materialização institucional dessas relações de poder. Em todo o caso, nessa materialização de

novas relações de poder é necessário ultrapassar o âmbito dos discursos.

Como é bom de ver, estamos sobretudo no campo das produções ideológicas sobre o

poder. Não estamos, contudo, a regressar à metáfora topográfica da ideologia como super-

estrutura do modo de produção. Aceita-se que apenas por motivos de análise se podem

seccionar as relações de poder da produção de ideias sobre o poder. É sabido que o conceito de

ideologia é problemático. No entanto, seria inútil recusar os ultrapassados conceitos de

ideologia, ou mesmo de «aparelhos ideológicos do estado» (neste caso, do poder régio), não os

substituindo por uma explicação sobre as transformações da eficácia dos servidores do rei na

época moderna. Sobretudo se pensarmos que o caminho para interpretar a longevidade das

instituições “monárquicas” tem sido, sobretudo, uma recuperação da teologia medieval dos “dois

corpos do rei” ou uma leitura muito optimista das virtualidades representativas do cerimonial e

do poder simbólico das imagens da realeza. Um bom exemplo disto é a crítica feita por P.

Bordieu da «oposição mecânica», frequentemente estabelecida na explicação institucional, entre

«meio» e «consciência», pretendendo Bourdieu substituir a dita causalidade por «uma espécie de

cumplicidade ontológica»148. Se é necessário reconhecer que o mecanicismo da primeira oposição

é problemático, esta utilização de um conceito tão complexo como «ontologia», para relacionar o

meio social com a produção de mentalidades, vem colocar ainda mais problemas.

Assim, podemos estabelecer um primeiro ponto: este estudo segue em busca, não das

efectivas razões das transformações sociais, mas da sua materialização ideológica nas instituições

régias (neste caso, numa em particular, a «secretaria de estado»). Porém, a tese aqui defendida

assenta precisamente numa leitura da formação de ideologias na época moderna: a produção de

uma instituição, «a secretaria de estado» vai desempenhar um papel fundamental na produção

das relações institucionais. Por outras palavras, a ideologia não é apenas uma ilusão resultante da

hegemonia cultural (de ressonâncias Gramscianas) de um grupo dominante (neste caso, os

letrados ou os juristas ao serviço do rei). A ideologia integra a própria alteração das relações

sociais, fazendo confundir a realidade do poder com a sua formulação, ocultando os conflitos e

tornando “aceitáveis” as relações de força.

148 Pierre BOURDIEU, O poder simbólico, (1989), Difel, Lisboa, 2001, p. 83.

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Porque razão é necessário alterar a ocultação das relações de poder, de força, numa nova

produção institucional? Precisamente porque as relações sociais se alteraram e é necessário

torná-las compreensíveis, reduzi-las a uma nova materialidade. Se quisermos utillizar a

conceptualização de Douglass North, as instituições resultam dos alinhamentos entre as

organizações (associações mais espontâneas e menos consensuais dos grupos) de acordo com a

capacidade de selecção da informação operada pelos grupos que detêm o comando sobre as

relações sociais149. No caso da época moderna, o rei e o seu círculo íntimo de “favoritos” seria,

nitidamente, uma organização detentora do comando, podendo esse comando, contudo, assumir

diferentes formulações institucionais conforme o equilíbrio entre os grupos. Eis porque razão a

«secretaria de estado» é determinante para o entendimento das mutações institucionais no século

XVII. O «secretário de estado» encontra-se no coração de uma nova materialização das relações

de poder: uma nova instituição, com os seus instrumentos, o seu discurso, mas também as suas

relações de força que não devem ser reduzidas ao discurso.

Concretizando.

Se o paradigma “jurisdicionalista” é central para a avaliação da produção e recepção de

textos seiscentistas sobre a repartição do poder – numa sociedade onde alguns dos produtores

formais do saber eram juristas – as práticas sociais nem sempre se viam tão rigidamente

enquadradas pelos conteúdos do jurídico, mesmo considerados estes na sua forma

historiográfica mais sofisticada – ou seja, salvaguardando a flexibilidade do direito comum, a sua

atenção à particularidade do caso e a não confusão dos vários direitos com a lei régia150.

Carlos Garriga, um historiador institucional, num texto denso, bem elaborado, mas

sintomático, propõe a recuperação da “teologia” e do “direito” como dados antropológicos

locais – i.e., dependentes da história e não de uma natureza histórica dada de uma vez por

todas151. Neste sentido, o “poder político” na época moderna – já de si uma formulação tão

inadequada como “estado” – surge descrito como a capacidade de leitura e declaração de uma

ordem jurídica assumida como existente. Esta inadequação dos conceitos contemporâneos, não

obstante a pertinência de alertar para um uso cuidado da linguagem histórica, tem surgido como

obsessão que pretende dar conta do fosso intransponível entre as «claves» de leitura do passado,

«tan ajenas a las nuestras», e a especialização profissional dos historiadores. Assim, Garriga,

149 Douglass NORTH, Institutions, Institutional Change and Economic Performancel, Cambridge University Press, Cambridge, 1990, pp. 8-16. 150 Ver a título de exemplo as explicações de António M. HESPANHA, «Depois do Leviathan...», pp. 56-57. 151 Carlos GARRIGA, «Orden jurídico y poder político en el Antiguo Régimen», Istor, IV, 16, 2004, http://www.istor.cide.edu/archivos/num_16/dossier.html.

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fazendo-se eco da mais informada historiografia institucional152, defende que, para as sociedades

da época moderna, por baixo da complexidade e subtileza da elaboração jurisprudencial,

figuraria uma ideia capital para a configuração politico-jurídica: a ideia de que o poder político

está «sometido a – y limitado por – el derecho». Acontece que, esta é, precisamente, uma ideia

que podia ser adequada ao “estado liberal”, ou ao estado de direito democrático do século XX.

Na verdade, toda a elaboração conceptual da linguagem vive o dilema da mediação entre

o objecto (neste caso o passado) e a compreensão do auditório, homens dotados de uma

linguagem contemporânea. Neste sentido, o problema é muito mais o da fronteira disciplinar,

que fez os historiadores do direito erigirem o jurídico como espaço de domínio, do que o da

pertinência conceptual.

Daí que a emergência da “monarquia administrativa” – a implosão de factores tão

inabaláveis como a teologia ou o direito – seja explicada com «a lenta emergência», juntamente (e

em conflito) com a monarquia jurisdicional, da dinâmica administrativa. Segundo a descrição de

Garriga, esta dinâmica, orientada ao exercício do poder sem ater-se aos requisitos processuais da

iurisdictio, iria desembocar na absolutização do poder político (desvinculando-o do direito

tradicional) e na emergência do “Estado”. O problema é que esta descrição, embora pertinente,

deixa intocado o problema da das diferenças estruturais entre jurisdicionalismo e administração,

diferenças fundamentais para entender a afirmação do «secretário de estado». Este não

esclarecimento acerca do trânsito do governo régio decorre do facto da história institucional se

ter ocupado em reproduzir o que os textos do século XVI e XVII diziam sobre as sociedades

coevas, e não em tratar alguns problemas históricos que entretanto têm sido deixados num plano

secundário: os problemas da mudança e do conflito, da “contradição” entre os dois sistemas153.

Deve, por isso, enquadrar-se a mutação institucional do “jurisdicionalismo” para o

“cameralismo” numa perspectiva mais alargada, não reduzindo as explicações sobre as relações

152 Relembre-se que esta não é, de todo, a perspectiva adoptada por António M. HESPANHA, «Las categorias de lo politico y de lo juridico en la epoca moderna», Ius Fugit, Revista interdisciplinar de estudos historico-jurídicos, 3-4, 1996, pp. 63-100, onde o jurídico é devidamente enquadrado na sua função ideológica. Conforme clarificou António M. Hespanha, as construções dogmáticas dos juristas, e o seu significado “político”, funcionaram como instrumentos de «constituição/expropriação do poder político» faltando explicar «porquê e de que maneira têm peso prático no terreno da luta política», António M. HESPANHA, «Representacion dogmatica y proyectos de poder», La Gracia del derecho, Economia de la cultura en la edad moderna, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1993, p. 63. 153António M. HESPANHA, «Para uma teoria…», p 46-47. O processo de dissolução da estrutura política «pluralista» deve ser colocada à luz dos conflitos entre grupos sociais e das lutas concretas pelo poder, sabendo que a questão colocada nos termos das classes feudais e burguesas não responde – é hoje evidente – à complexidade do jogo político-social. Não deve cair-se numa dimensão socialmente «assexuada» da Coroa – projecção de uma suposta “neutralidade” embrionária da regulação moderadora do “Estado contemporâneo” p. 49. Assim as questões fundamentais da explicação, levantadas nos anos oitenta por António Hespanha, continuam, em larga medida, por esclarecer: i) sobre a autonomia do político; ii) sobre a dinâmica própria das transformações político-institucionais; iii) sobre a interferência das trocas materiais; iv) sobre a interferência dos aspectos ideológicos, p 58.

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de poder aos efeitos do direito. Por outras palavras, no momento de analisar a composição do

poder, e não os seus efeitos, parece-nos que o direito, na sua variedade de sedes (ou «estados»,

para utilizar um conceito da época), responde a estímulos exteriores ao plano “jurídico”.

Isto explica todo um universo de práticas do poder excluído pela dogmática e pelo

“jurisdicionalismo”. Como ensina António M. Hespanha, num texto claríssimo a esse respeito,

existe uma distorção na aceitação das finalidades discursivas do direito: o sistema dogmático do

direito comum, dos séculos XVI e XVII, era incapaz de integrar instituições que não resultassem

descritivas segundo critérios de justiça. Apenas no âmbito jurisdicional (iurisdictio e imperium) se

colocavam as interpretações dos textos, englobando «actividades de poder (ou agentes de poder)

que se consideravam jurisdicionais»154. A «opulência doutrinal da literatura jurídica» sobre estas

matérias opõe-se, com estranheza para o historiador das instituições, à «indigência quanto às

«funções políticas» não integráveis no conceito de jurisdição – funções “fiscais”, “financeiras”,

“militares”, “economico-politicas”, de “polícia”155.

A questão é de primeira importância para o nosso tema, pois explica a pouca atenção

conferida aos «secretários de estado», ausentes, por exemplo, das sínteses de direito erudito

como as Ordenações do reino. No entanto, é inegável – é o que tentaremos demonstrar – que a

sua efectivação no exercício do poder é de primeira instância, mesmo que a grelha jurisdicional

seja inadequada para entender o seu processo de afirmação nos séculos XVI e XVII156.

Neste sentido, convém clarificar que não é o mesmo descrever factores de poder, na

disputa e multiplicação de uma série infinita de relações entre indivíduos (onde o jurídico é

apenas uma ínfima parte do processo), ou descrever os meios pelo qual esse poder se difunde e

se materializa ideologicamente (onde o jurídico, convém reconhecer, ocupa, na época moderna,

uma posição importante). Como expressão do poder comunicativo, ou, quisermos, expressão do

poder na linguagem “política” dos séculos XVI e XVII, o jurídico reinou, de facto. Porém,

assiste-se nas “mutações administrativas”, em curso desde meados do século XVII, ao seu ocaso

como padrão de comunicação157. Por outro lado, como dissemos, pode dizer-se que também o

paradigma liberal-constitucional se encontra atravessado pelo direito. Pode mesmo, com alguma

154 António M. HESPANHA, «Representacion dogmatica y proyectos de poder…», p. 67. 155 António M. HESPANHA, «Representacion dogmatica y proyectos de poder…», p. 70. 156 Isto explica também que os âmbitos não jurídicos do poder fossem considerados na esfera «privada do rei», «regidos por normas diferentes e enquadrados por um marco-teórico dogmático próprio», o que conferia ao rei uma capacidade de manobrar com certa arbitrariedade, digamos, de forma extraordinária, «liberto do constrangimento dogmático da jurisdição». Assim, os juristas viam neste terreno o mundo da “tirania” régia e do procedimento abusivo, o que explica, em parte, os ataques sofridos pelos «secretários de estado» ao longo do século XVII, António M. HESPANHA, «Representacion dogmatica y proyectos de poder…», pp. 71-72. 157 Peter BURKE, Languages and Communities in Early Modern Europe, Cambridge University Press, Cambridge, 2004.

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dedicação, encontrar-se uma supremacia do “jurídico” em todos os tempos históricos ocidentais.

Como não o fazer, estudando sociedades que apenas são capazes de pensar o poder através do

caldo católico-romano, onde, como P. Prodi tão bem mostrou, impera a matriz da justiça?

Porém, nunca é demais lembrar que não existe total homologia entre o poder e os

discursos sobre o poder. Por isso, importa identificar que as condições específicas de uma dada

transformação institucional num contexto histórico, como a emergência da secretaria de estado

nos séculos XVI-XVII, não pode reduzir-se a conflitos jurisdicionais. Assim, parecem existir

razões para reconhecer que uma utilização generalizada do jurídico, como explicação dos

mecanismos do poder, nos deixa à porta das mudanças mais subterrâneas operadas no interior

do campo jurídico. Relações de poder que estavam em profunda articulação, não só com a

dogmática jurídica mas com outro tipo de discursos e relações presentes nas sociedades da época

moderna.

Com efeito, apenas na equação das alterações sociais e dos conflitos se explica porque

razão o “jurídico” é eficaz, não como campo dotado de uma produção de sentido autónoma,

mas em articulação com o meio-social. Duas conclusões: a) o meio social, a forma e a eficácia do

jurídico dependem mais de uma “crítica da terra” (análise das relações entre grupos, luta pelos

recursos, análises que não devem ser reduzidas à “economia”) do que das “crítica do céu” (a

hipotética eficácia semiológica do jurídico e da teologia); b) a erupção do jurídico como

explicação das relações sociais no Antigo Regime depende, em grande medida, de um ocaso das

teorias historico-sociológicas marxistas e da sua inadequação às relações de poder no Antigo

Regime.

Se é verdade que as teorias do «modo de produção» não encontram correspondência

total em sociedades patrimoniais não deve por isso regressar-se a uma explicação do poder na

época moderna assente sobre a uma conflitualidade que não coloque o problema de uma teoria

do comportamento humano adequada ao horizonte histórico em análise, aspecto que trataremos

na segunda alínea desta secção quando nos referirmos à sociedade de corte.

Assim, e concluindo, é necessário clarificar, num segundo ponto, de que se fala quando

se fala de poder, sob pena de se esvaziar de todo o conceito de poder e cair numa utilização

indistinta de “política”.

A começar saliente-se, uma última vez, a não correspondência entre origem do poder e

os discursos sobre o poder, ressalvando-se, uma vez mais, que o poder não é substância nem

propriedade, seja esta propriedade expressa pelo direito, pela lei, pela espada ou pelo ouro.

37

Neste sentido, sabendo que o poder não é propriedade adquirida, mas resultado de uma

permanente “guerra social”, infinitamente actualizada na construção e transformação

institucional – onde se utilizam “armas” muito diversas – é necessário entender que a suposta

omnipresença do jurídico soçobrou no mapa das conflitualidades não resolvidas158. De acordo

com Foucault, o poder é sobretudo mecanismo, procedimento, relação. Desta forma, «nem a

dialéctica (como lógica de contradição), nem a semiótica (como estrutura da comunicação)»

podem dar conta destas relações tensas, desta «inteligibilidade intrínseca dos confrontos». A

“dialéctica” marxista teria evitado a «realidade aleatória e aberta» da evolução social reduzindo-a

ao esqueleto hegeliano da razão; e a “semiologia” tem sido uma maneira de evitar o seu carácter

violento, sangrento e mortal, reduzindo-a à forma apaziguada e platónica da linguagem e do

diálogo», como vimos, solução formalizada na institucionalização do jurídico como factor de

explicação159. Não é de estranhar que algumas críticas recentes ao “jurisdicionalismo”, pouco

avisadas, surjam precisamente no cruzamento da história colonial, onde a memória dos

confrontos – como a escravatura – gera os equívocos mais traumáticos.

A primeira consequência desta fluidez do poder é a necessária diferenciação entre os

grupos em conflito e a expressão institucional dos grupos.

Neste sentido, a utilização, de uma forma unívoca, da expressão «Coroa», tende a tornar-

se pouco operacional para a descrição dos poderes em confronto no campo de acção da

«secretaria de estado». Na verdade, esta consideração da Coroa como realidade unívoca, que

neste trabalho não pode ser alvo de uma crítica aturada, pelo que manteremos a sua utilização,

deve-se ainda à circunstância cultural do Portugal oitocentista – onde se formou o «espírito da

inquirição historiográfica» – ao identificar a administração com uma suposta « neutralidade do

poder », facto que foi relegando o «sistema monárquico para» a história do direito, onde o

vínculo aos estudos da dogmática jurídica, e a crítica liberal das monarquias corporativas,

impediu a análise dos aspectos disfuncionais da «administração» e a descrição da emergência do

secretário como um fenómeno de “disrupção” – e conflito – no interior da própria “Coroa”.

Estes problemas encontram-se bem documentados nos estudos de Pierangelo Schiera, pelo que

não é necessário determo-nos mais nesta questão160.

158 Sobre a conflitualidade ministerial na corte ver o trabalho modelar de Charles FROSTIN, «L’organisation ministérielle sous Louis XIV, cumul d’attributions et situations conflictuelles (1690-1715)», Revue historique de droit français et étranger, 1980, n° 2, pp. 201-226. 159 Michel FOUCAULT, Em defesa da sociedade…, pp. 20 e ss. 160 Uma síntese em Pierangelo SCHIERA, «Sociedade de «estados », de «ordens» ou «corporativa», Poder e Instituições..., pp. 145-153.

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Resta dizer que os «secretários de estado», emergem nesta fractura entre dispositivos de

poder, onde se confrontam velhas práticas e novos mecanismos de dominação que atravessam

todos os saberes tradicionais, incluindo o jurídico. Os secretários vão constituir uma nova

dimensão institucional, onde o controlo da comunicação e o bio-poder – como conjunto de

técnicas de controlo das populações – vão emergir como novo paradigma161. Veremos com mais

detalhe esta evolução no desenvolvimento do texto.

Por agora, deve esclarecer-se qual a especificidade social do período cronológico

proposto, de forma a integrar a afirmação dos «secretários de estado» nesta dimensão plural do

poder como relação e nesta dimensão múltipla da corte (e das suas instituições) como resultado

da conflitualidade social.

2.2. A luta de corte

Parece evidente que esta investigação teria sempre que estabelecer alguns princípios de

leitura dos dados, de forma a surpreender o problema da afirmação das «secretarias de estado»

como questão específica no âmbito das monarquias corporativas, mas também, como vimos, de

forma a não utilizar indiscriminadamente o jurídico como valor central de toda a efectivação do

poder.

Assim, é necessário clarificar que a conflitualidade pode assumir tácticas diversas, de

acordo com as estruturas da sociedade observada. De acordo com António M. Hespanha, os

efeitos institucionais reflectem sempre tensões e estratégias sociais162. Como dissemos, no

âmbito da luta, as instituições reflectem a articulação dos conflitos com as necessidades globais

dos indivíduos e sua repercussão na totalidade do sistema, segundo «garantias de condições de

estabilidade», e «eliminação de riscos que conduzam a conflitos estruturais» 163. Ora, foi

sobretudo esta perspectiva que aqui quisemos seguir: entender a formação das secretarias de

estado nas suas articulações com o sistema social e interpretar a sua genealogia como uma

produção, onde as instituições são uma janela da « luta social» e o produto « equilibrado » de um

conflito164.

161 Ver sobretudo Michel FOUCAULT, População, segurança, território…, pp. 1-2, pp. 87-115. 162 «Prefácio» à versão original de As Vésperas do Leviathan, 1º volume, edição de autor, 1986. 163 Não são causa do modo de produção – projecção ideológica de uma qualquer estratificação social –, «nem instrumento da apropriação do sub-produto social». Para uma crítica das leituras economicistas de Marx, António M. HESPANHA, A história do direito na história social..., p. 33. 164 Foucault colocou com clareza a questão: «Creio que aquilo que se deve ter como referência não é o grande modelo da língua e dos signos, mas sim da guerra e da batalha. A historicidade que nos domina e nos determina é belicosa e não linguística. Relação de poder, não relação de sentido. A história não tem “sentido”, o que não quer

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Para tal é necessário aplicar o sistema de corte ao problema específico dos secretários do

rei.

Conforme sublinhou Norbert Elias, durante muito tempo – assimilando os perspicazes

trabalhos de Max Weber – o estudo da administração e o modo de governo ofuscou a

«socialização» cortesã165. Neste sentido, o modelo “burocrático” não deve ser aplicado sem a

devida análise da sociedade específica onde ocorre a “burocratização”166.

Daí que, em primeiro lugar, seja necessário estabelecer alguns princípios da sociedade de

corte para estruturar a análise aqui adoptada.

Em primeiro lugar, deve tomar-se a concepção da corte como uma sociedade onde as

relações entre indivíduos (familiares, simbólicas) geram códigos de dependência recíproca e cuja

reprodução supõe um equilíbrio móvel de tensões167. Em segundo lugar, os cortesãos não

deixam de estar em oposição, por vezes até à morte, e de estabelecer ligações muito vastas com

os territórios mais vastos de onde emerge a sociedade de corte. Assim, a afirmação de um ofício

como o «secretário de estado» da Coroa de Portugal resulta, em simultâneo, da vida global do

reino e das suas extensões imperiais, dos projectos de poder individuais e da “vida” de um

sistema social – a corte – que reage também sobre o indivíduo com os seus mecanismos

concretos. As consequências para a descrição institucional são óbvias, uma vez que, para uma

justa consideração de um tipo cortesão – o «secretário de estado» – deveria esboçar-se: a) uma

descrição da relação entre a evolução global das sociedades (grupos humanos e seus processos) e

a corte; e b) uma descrição sobre os efeitos resultantes da acção dos indivíduos no contexto do

funcionamento da «casa do rei».

No campo a) temos, a título de exemplo, factores muito complexos como o afluxo de

especiarias nos séculos XVI-XVII e de metais preciosos nos séculos XVI-XVIII; o crescimento

das cidades, com as consequências demográficas – que alguns historiadores elegem como o

factor chave de toda a transformação histórica; a dinâmica da guerra, com os seus vectores

dinásticos e comerciais; a expansão ultramarina, com a sua dupla função simbólica e material.

Todos estes factores precipitaram alterações nos mecanismos de apropriação dos recursos,

dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder ser analisada nos seus detalhes mais pequenos», Michel FOUCAULT, «Nietzsche, la généalogie, l’histoire», Dits et écrits I, 1954-1975, Gallimard, Paris, 2001, pp. 1004-1024. 165 Norbert ELIAS, A sociedade de corte, (1969), Estampa, Lisboa, 1995, pp. 91-119. 166 Jean-Pierre SAMOYAULT, Les bureaux du secrétariat d’État des Affaires étrangères sous Louis XV, Paris, Pedone, 1971; Françoise DREYFUS, L’Invention de la bureaucratie : servir l’État en France, en Grande-Bretagne et aux États-Unis (XVIIIe-XXe siècle), La Découverte, Paris, 1999. 167 Pedro CARDIM,, «A Casa Real e os orgãos centrais de governo no Portugal da segunda metade de Seiscentos», Tempo, vol. 7, nº 13, Julho, 2002.

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sendo consensual que a produção de novas “ficções” institucionais, como a «secretaria de

estado», ou numa perspectiva mais vasta a Coroa, explica o “engrossamento do aparelho

político-administrativo”. Da mesma forma, a consequente expropriação dos “poderes políticos”

dos corpos periféricos – causa dos motins e revoltas que vão surgir na Europa do séc. XVII,

com «as revoltas de natureza nobiliárquica anti-central» – estará intimamente ligada à emergência

do «secretário de estado»168. Como é evidente, este processo não pode aqui ser tratado nas suas

implicações mais profundas, embora deva estar presente como pano de fundo, cenário sem o

qual não pode entender-se o crescimento da “burocracia” em torno do rei e a consequente

“curialização” do sua entourage aristocrática. Tudo isto decorrendo num complexo jogo de

relações, onde as mercês e a atribuição de ofícios, a construção de equipamentos político-

administrativos – em suma, a operacionalidade do sistema de poder e os seus custos – adquirem,

como veremos, um lugar determinante. Pode dizer-se que é também deste caldo social que as

«secretarias de estado e mercês» vão surgir na corte da Coroa de Portugal no final do século

XVI.

Porém, é em torno do segundo grupo de questões – o campo b) – que se discutirá a

afirmação do «secretário de estado», tendo em conta os aspectos mais directamente relacionados

com a pulsão da distinção, pelo mando, no espaço da corte169.

A intensificação do rei como cabeça do reino, por meio de uma “abstracção” do seu

poder, que implicou a separação da nobreza das restantes “classes”, explica-se pela evolução de

grupos lutando pelo protagonismo de corte, grupos que se pretendem escolhidos pelo

“Príncipe”, de acordo com um complicado jogo de parcialidades, com respectivas valências e

ramificações no reino. Conforme ensinou N. Elias, este equilíbrio de forças permitia ao rei estar

no vértice do sistema e regular o restante conjunto. Por outro lado, o rei era também uma

produção do conjunto, o que vem colocar em causa, como bem viu Bourdieu, a inapropriada

dicotomia entre social e individuo170. Na verdade, a corte é a forma historicamente determinada

da mais relevante produção institucional do poder nos séculos XVI-XVIII. Embora Pierre

168 Retomamos aqui a perspectiva de António M. HESPANHA, «Para uma teoria…», p 46-56. 169 No seguimento dos textos de F. NIETZSCHE, Para Além do bem e do mal, «todo o ser vivo quer expandir a sua força, a própria vida é vontade de poder». No mesmo sentido, um texto muito elogiado por Karl Popper, publicado por Bertrand RUSSEL, O Poder, uma nova análise social, (1938), Fragmentos, Lisboa, 1990, «Só percebendo que o amor ao poder é a causa das actividades importantes nos assuntos sociais é que a história, quer seja a antiga ou a moderna, pode ser interpretada correctamente», p. 13. 170 Esta questão aponta para uma outra genealogia de problemas, determinante para a formação de imagens historiográficas sobre a formação de instituições que relevam da querela entre individualismo metodológico (cristalizações do pensamento liberal e individualista de Stuart Mill e Jeremy Bentham, através dos estudos de Joseph Schumpeter ou F. Hayek) e o combate desse individualismo pelos críticos da economia política como Marx, linhas depois retomadas por Althusser. A este respeito ver Geoffrey HODGSON, Economics and Institutions, Polity Press, Cambridge, 1994, p. 56 e ss.

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Bordieu tenha apontado para uma leitura algo “maquinal” do sistema, não reconhecendo ao rei

uma certa proeminência sobre o funcionamento das hierarquias, a verdade é que os conflitos

apenas se explicam mantendo uma hierarquia real de posições. Como explicou magistralmente

Foucault, a partir de uma crítica de Thomas Hobbes, onde não há diferença não há luta. De

outro modo, como se explicaria a luta de corte se não pela vontade de obter uma posição de

destaque junto do rei? É certo que podemos tentar distinguir entre uma supremacia do rei e uma

percepção cortesã da supremacia do rei aspectos que, tal como no jurídico, poderiam não

corresponder totalmente. Contudo, as próprias relações entre os diferentes grupos cortesãos

exprimem-se em termos de «hostilidade e a sua história é uma história de lutas de grupos,

parcialidades, classes se quisermos utilizar o termo despido da usa unicidade político-

económica»171. Com efeito, «cada forma de dominação é o reflexo de uma luta social e a

concretização da partilha do poder dela resultante»172.

Com efeito, estes pressupostos são de primeira importância para a leitura da emergência

do «secretário de estado». Conforme recordou Peter Burke, os secretários e validos foram por

muito tempo mal compreendidos, identificados no plano simplista do tacticismo cortesão,

crescendo à sombra de um rei fraco, sem que a estas análises correspondesse uma justa

consideração do sistema de corte173. Com efeito, os secretários, como teremos oportunidade de

explicar, «surgiam também como mecanismos para iludir a formalidade do sistema». Burke

refere-se ao papel social como conceito que explica muito do perfil da actuação dos tipos

históricos como resposta a uma tensão entre conflitos sociais e necessidades gerais174. Desta

171 Chartier aponta para uma distanciação de Elias relativamente Marx, mas também à escola histórica liberal. Roger CHARTIER, A história cultural, Difel, Lisboa, 2002, pp. 108 e ss. 172 Como bem viu Elias, as formas sociais decorrem de conflitos prévios, estruturam-se a partir da cristalização da força. É o mesmo sentido que vimos Foucault conferir às instituições como prolongamento da «guerra por outros meios». Num sentido contrário, as teorias de Bordieu apontam para uma dimensão excessivamente sistémica do funcionamento da corte como sistema social fechado, muito próximo da reflexão de Luhman, que nos parecem falhas de dados históricos empíricos e de um conhecimento adequado das possibilidades de actuação do rei, Pierre BOURDIEU, O Poder simbólico..., pp. 84-84. Ou seja, nem todo os participantes da cadeia de relações de corte, beneficiavam das mesmas capacidades de actuação sobre as instituições, sendo que o rei, não sendo «absoluto» não era também um mero vassalo, convém recordar. Claro que se abriam perspectivas de funcionamento do sistema que podiam por em causa a legitimidade régia (veja-se a queda dos secretários de estado de Portugal e do próprio D. Afonso VI). Ver a já citada biografia de D. Afonso VI, por Ângela Barreto XAVIER & Pedro CARDIM. Contudo, estas situações resultavam de fragilidades que fossem consideradas evidentes – à luz do saber jurídico da época – constituindo raríssimas excepções ao funcionamento do sistema que, em geral, depositava no rei uma larga discricionariedade de poder, ainda que, em última análise, esse poder resultasse do funcionamento global do sistema, inversão que, parecendo um barroquismo, não o é pois coloca o poder na campo dos conflitos e não na zona dos sistemas simbólicos. Há portanto que distinguir entre um sistema corporativo onde o rei assume o fecho da abóbada, na feliz expressão de Braudel, mantendo – apesar de todos os limites hoje conhecidos – uma forte capacidade de intervenção sobre o sistema, e um mundo maquinal e estruturado por relações «informatizadas» que nos parecem mais próximos das sociedades mediatizadas do século XX e menos das sociedade de corte do século XVII. 173 Peter BURKE, History & Social Theory, Polity Press, Cambridge, 1992, pp. 47-48. 174 Peter BURKE, History & Social Theory ..., pp. 49 e ss.

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forma, a corte, como horizonte de produção institucional dos diferentes níveis de poder do rei

(conselhos, tribunais, secretarias, ofícios da casa real), será considerada sobretudo na sua

dimensão conflitual e hierárquica.

Quais as aplicações específicas deste conjuntos de questões teóricas aos secretários do

reino de Portugal?

Os estudos de António M. Hespanha175 e Diogo Ramada Curto176 fornecem algumas

pistas neste sentido.

Em primeiro lugar, é necessário ter em conta a especificidade da evolução dos secretários

num reino, muitas vezes descrito como «sem corte», onde prevaleceria a austeridade, sobretudo

entre os séculos XVI e XVIII. Porém, como ficou dito, o funcionamento da corte não decorre

apenas do grau de luxo mas da tipologia das relações estabelecidas. Como é sabido, o luxo, tal

como a riqueza, é sempre uma questão de proporção relacional. Neste domínio, os princípios

indicados por António M. Hespanha, sobretudo no que toca às relações com o «governo»,

mantêm a pertinência do sistema de corte na sua aplicação ao caso português. Sobretudo se

pensarmos no sentido de «mecanismos e hábitos» que vão enraizar o interesse do rei como

interesse geral, fazendo coincidir a dimensão da «Casa», o pudor das relações familiares, a honra,

o amor, o afecto, como valores sociais determinantes para a acção dos indivíduos, numa

desmultiplicação de hierarquias de domínio que muitos dos cortesãos pretendem encabeçar177.

No que toca às razões pelas quais estes valores estruturam a acção dos cortesãos,

entrando mesmo em conflito com o «jurisdicionalismo», e afirmando os secretários como

oficiais determinantes do sistema, deve ter-se em conta, ao longo do estudo, o capital de

mudança que acompanha o sistema de corte, não o reduzindo a uma outra “estrutura fechada”

que substitua o “jurisdicionalismo”.

Em primeiro lugar, o “artificialismo” – onde vai surgindo a “utilidade” como factor

determinante do comportamento – como o culto de um «aparência conjunturalmente adequada»,

norteia, crescentemente, ao longo do século XVII, as relações entre os secretários e os restantes

cortesãos178. Pode até dizer-se que, à luz das transformações em curso, o secretário é a forma-

poder do cortesão. Entre a utilidade como conservação da ordem e a utilidade como

maximização da riqueza, o secretário emerge como operador primordial. Ainda que exista uma

175 António M. HESPANHA, «La Corte», La Gracia del derecho…, pp. 177-201. 176 Diogo Ramada CURTO, A Cultura Política em Portugal (1578-1642), Comportamentos, ritos e negócios, 2º vol., Tese de Doutoramento em Sociologia Histórica, FCSH, UNL, Lisboa, 1994. 177 Pedro CARDIM, «Amor e amizade na cultura política séculos XVI e XVII», Lusitânia Sacra, 2º série, t. XI, 1999. 178 António M. HESPANHA, «La Corte...», p. 179.

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clara diferença entre o modelo patrimonial (onde prevalece a hereditariedade do ofício, a

protecção do segredo, a economia familiar, o vínculo pessoal, a unidade de interesses) e o

modelo burocrático (abstracção, o vínculo a uma «entidade política», a abertura e sistematização

da informação, a disparidade de interesses) o «secretário de estado» destaca-se precisamente por

ocupar um lugar ambíguo nessa transição. Na verdade, como tivemos oportunidade de salientar,

os secretários vão emergir num momento em que a produção de «mercadorias», a monetarização

da economia, e o controlo do território, se estão a generalizar socialmente no reino de Portugal,

provocando uma torrente de «papéis» no sentido da corte179. Não por acaso, a utilidade vai andar

a par com a abstracção do sistema de «governo», no momento em que o «valor», também na sua

expressão abstracta, começa a penetrar as relações económicas, substituindo-se a dominação de

pessoas por pessoas “sacralizadas” (a corte) por uma dominação de estruturas sociais

“sacralizadas” (o sistema burocrático)180.

Ora, esta oscilação dos mecanismo de «governo» abrem para a importância da

comunicação no centro de decisão, onde a dimensão da presença física, dominante ao longo do

século XVII, vai começar a fracturar-se pela importância do controlo sobre a informação,

através de formas de comunicação não presenciais, o que mais uma vez no devolve a

preponderância dos secretários na sua relação com o sistema de corte.

179 As relações entre política e economia na formatação institucional da «administração» têm ganho novo vigor nos últimos anos. A bibliografia é abundante. Ver, a título de exemplo, State and Trade: Government and Economy in Britain and the Netherlands since the Midle Ages, S. GROENVEL & M. WINTLE (eds.), Zutphen, 1992; M ‘t HART, The Making of a Bourgeois State, War, Politics and Finance during the Dutch Revolt, Manchester, 1993; DE VRIES and A. Vander WOUDE, The First Modern Economy Sucess, Failure, and Perseverance of Dutch Ecomony, 1500-1815, Cambridge, 1997; David ORMROD, The Rise of Commercial Empires, England and the Netherlands in the Age of Mercantilism, 1650-1770, Cambridge University Press, Cambridge, 2003. 180 Anselm JAPPE, As aventuras da mercadoria, Antígona, Lisboa, 2006, p. 127 e ss. A tese de Werner Sombart sobre o desenvolvimento do sistema de corte sublinha o papel da transformação transversal das relações amorosas, em profunda articulação com o luxo e a própria dinâmica do «capitalismo», no sentido Braudeliano da expressão, Werner SOMBART, Luxo y capitalismo, (1913), Alianza Editorial, Madrid, 1979. É claro que a adequação desta leitura genérica dos principais vectores desta evolução da corte – como a decadência da instituição da cavalaria, a urbanização e « funcionalização » da nobreza, a « centralização política » da polissidonia, a complexificação do sistema de arquivos e despacho documental e a monetarização – depende da evolução conjuntural de cada uma das diferentes cortes europeia, SOMBART, Luxo y capitalismo, pp. 10-11. Para o caso português, o trabalho de Ramada Curto sobre o discurso político confirma a generalidade deste processo, Diogo Ramada CURTO, O discurso político em Portugal…pp. 142 e ss. Há, contudo, alguns aspectos a matizar. Mafalda Soares da CUNHA, «Relações de poder, patrocínio e conflitualidade e conflitualidade. Senhorios e municípios (século XVI-1640», Municípios no Portugal Moderno, Mafalda Soares da Cunha e Teresa Fonseca (eds.), Colibri-CIDEHUS, Lisboa, 2005, pp. 87-108 e Nuno G. MONTEIRO, O Crepúsculo dos grandes, A casa e o Património da Aristocracia em Portugal (1750-1850), INCM, Lisboa, 2003, pp. 246 e ss. insistiram na implantação territorial da nobreza e no carácter meridional da corte, o que teria significado um lento desenvolvimento destes factores expresso, por exemplo, na separação dos sexos e numa inusitada austeridade dos costumes palacianos, pelo menos até ao século XVII. O assunto permanece sem estudo adequado, sendo que a informação se baseia muito em relatos de viajantes, sempre complexo na sua crítica interna, porque muito sensíveis à construção «exótica» do observado. Os relatos dos secretários do rei no século XVI apontam para uma relativa proximidade nas relações cortesãs entre secretários e rainhas e mesmo entre amas da rainha e oficiais do rei.

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Neste particular aspecto da especificidade cortesã, considerada como problema m torno

do processamento da informação, Ramada Curto salienta que a corte supõe «actos de

comunicação» e um «padrão de racionalidade», onde a «interdependência dos agentes» o «sistema

de etiqueta», o «exercício quotidiano», o «autocontrole», a «repressão das pulsões e o cálculo ou a

avaliação das posições em que cada um se contra» definem-se como valores estruturantes181.

Com efeito, o facto do controlo da informação constituir um tipo de poder, «característico do

cortesão», «nas redes dos fidalgos, nas suas terras e mesmo no ultramar que vão ter extensões

nas gazetas, novas de Corte e nos periódicos» confirma o que ficou dito no que respeita ao lugar

determinante do «secretário de estado», quer quanto à extensão da eficácia territorial da luta de

corte, quer quanto à dimensão fundamental da expansão no potenciar do volume de papéis.

Tudo isto deve conduzir-nos a uma observação dos secretários do rei como elementos

decisivos no interior do sistema cortesão. Estes servidores dos papéis vão actualizar o papel do

rei no sistema de corte, segundo os novos dados da expansão, da monetarização, da guerra

moderna, acentuando, pela ficção informacional, a suposta neutralidade funcional do poder182.

Postas as questões teóricas que subjazem à recolha dos dados sobre o tema, finalizamos

com a apresentação das principais fontes utilizadas, seguindo-se uma curta apresentação do

percurso escolhido para o alinhamento e tratamento das questões elencadas nesta introdução.

3. O plano do texto e as Fontes

Comecemos pelo trabalho de circunscrição e exegese das fontes.

Seria fundamental testar «o Arquivo administrativo como sistema de significações». Tal

como afirmou José Subtil, impunha-se no estudo institucional das secretarias de estado um

inquérito de arquivo, não só como depósito de conteúdos passíveis de serem utilizados no

momento de tecer um discurso historiográfico, mas também como espaço onde a estrutura e a

tramitação “burocrática” fossem questionadas na sua forma de afectar o discurso histórico183.

Porém, tal abordagem não é possível.

As dificuldades advêm em primeiro lugar da inexistência de um corpo documental

específico por onde se pudesse traçar uma linha de abordagem, tal como sucede no caso dos

181 Diogo Ramada CURTO, A Cultura Política em Portugal..., pp. 475-476. 182 Diogo Ramada CURTO, A Cultura Política em Portugal..., pp. 478-480. 183 José SUBTIL, O Desembargo do Paço..., pp. 105 e ss.

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núcleos da «Secretaria de Estado» no Archivo General de Simancas para o caso da Monarquia

Católica.

Logo à cabeça de todos os problemas está a dificuldade em estabelecer o quadro dos

oficiais a ter em conta como «secretários de estado». Isto porque não existe total

correspondência entre as «cartas de nomeação» para a Secretaria de Estado, do Registo Geral de

Mercês, e a efectiva relevância e serviço dos oficiais nomeados. Daí que, na circunscrição dos

«secretários de estado», tenhamos optado por fazer uma avaliação da participação informal

(assinatura de despachos, participação em negociações, etc), tentando depois identificar qual a

área de serviço (estado, mercês ou assinatura) uma vez que o registo formal nada nos diz sobre a

ocupação das secretarias. A corroborar esta opção, basta ter em conta que Pedro Vieira da Silva,

talvez o mais influente «secretário de estado» do século XVII, não consta do Registo Geral de

Mercês.

Por outro lado, é sobejamente conhecido que não se conservaram as colecções dos

hipotéticos arquivos de Lisboa das secretarias de estado dos séculos XVI-XVIII – suspeita-se

que vária documentação pode estar dispersa por diferentes núcleos arquivísticos, se não se

perdeu quase totalmente no terramoto de 1755184. As colecções epistolares dos secretários que se

conservaram são intermitentes e fragmentadas, de difícil leitura histórica – devido a essa mesma

fragmentação cronológica – e muito disseminadas por núcleos e arquivos, além de que muito

omissas quanto ao funcionamento institucional, reportando-se sobretudo à comunicação

informal e conjuntural dos problemas de “governo”. Além disso, o carácter ambíguo, “público-

privado”, dessa documentação de Antigo Regime contribuiu para a sua dispersão, sabendo que

os secretários, pelo menos até meados do século XVIII, utilizavam com alguma indistinção o

espaço da corte e o espaço doméstico para produzir e arquivar os seus materiais.

Na verdade, à excepção de algumas colecções do Arquivo Histórico Ultramarino –

«Avulsos» do Reino, Conselho Ultramarino e «Códices das Secretarias» das Capitanias da América –

que permitem recolher alguns dados da comunicação institucional, e do Núcleo do Ministério dos

Negócios Estrangeiros da Torre do Tombo – que para finais do século XVII e início do século

XVIII, possui um significativo volume de informação – não se encontram muitos outros núcleos

documentais – em quantidade ou qualidade – que permitam um estudo aprofundado das

«secretarias de estado». Do mesmo modo, a quase inexistência de trabalhos genéricos sobre o

184 Albano Alfredo de Almeida CALDEIRA, «Memória sobre o serviço do Registo de Mercês», Boletim das Bibliotecas e Archivos Nacionais, Coimbra, 2º ano, 1903; Luiz Teixeira de SAMPAYO, O Arquivo Histórico do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Coimbra, 1926; conde de TOVAR, «O Arquivo do Conselho de Estado», Anais da Academia Portuguesa de História, II série, Vol. II, Lisboa, 1960, pp. 61 e ss.

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recrutamento social dos letrados da Corte, sobre a prática diplomática dos arquivos do Antigo

Regime, sobre os circuitos dos «papéis» nos séculos XVI-XVII, dificultam uma «reconstrução

institucional» das secretarias de estado.

Em todo o caso, foi possível recolher dados determinantes através das fontes

administrativas (Ofícios, Avisos, Decretos, Cartas) dispersas pelo magma normativo presente no

Jus Lusitaniae tendo em conta os padrões de autoria e assinatura dos respectivos «secretários de

estado»185. Por outro lado, uma variedade de arbítrios sobre questões institucionais pôde ser

recolhido em colecções da Torre do Tombo como os Manuscritos de São Vicente ou os Manuscritos

da Livraria. Além disso, recorremos às colecções de correspondência, pertencentes a

«secretários de estado», depositadas no Ministério dos Negócios Estrangeiros, ou ainda a numerosas

cartas dirigidas aos secretários do rei, inventariadas no Corpo Cronológico. Na Biblioteca da Ajuda,

consultaram-se sobretudo os Livros do Governo e as Colecções de Papéis e Cartas de secretários.

Merecem ainda destaque as Collecções de epistolografia da Biblioteca Pública de Évora.

Em segundo lugar, procurámos colmatar a ausência de arquivos com o estudo exaustivo

de alguns clássicos historiográficos, muito densos no que respeita à transcrição de fontes, com

especial destaque para as obras já citadas de Francisco Trigozo Morato, Conde de Tovar, mas

também os estudos de Queirós Veloso186, JoaquimVeríssimo Serrão187 e Santiago Luxán

Meléndez188.

Quanto à estrutura do texto.

Em primeiro lugar, o capítulo I pretende fornecer o quadro geral onde se produziu a

emergência da Secretaria de Estado, passando em revista a dimensão da escrita na assistência do

poder régio assim como as raízes medievais destes ofícios de escrita e de produção documental,

sem com isso se pretender qualquer “expedição em busca das origens”. Como ficará claro,

pretende identificar-se o conjunto dos principais cargos da escrita régia, no jogo das suas

intermitências, de modo a compreender como a memória destes ofícios jogou um papel

determinante na estruturação do poder régio.

185 Toda a produção normativa da Coroa citada ao longo do texto, sem indicação da referência bibliográfica, pode ser encontrada, através de busca pela data da norma, em http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt. 186 Queirós VELOSO, O interregno dos Governadores e o breve reinado de D. António, 1956, Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1956.

187 Joaquim Veríssimo SERRÃO, Governo dos Reis Espanhóis (1580-1640), vol. IV, História de Portugal, Lisboa, 1978. 188 Santiago LUXÁN MELÉNDEZ, La Revolución en Portugal, sus fundamentos sociales y sus caracteres nacionales, El Consejo de Portugal (1580-1640), Universidad Complutense, Madrid, 1988.

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Em seguida, apresenta-se, ao longo dos capítulos II, III e IV, uma descrição da

conflitualidade entre grupos. Esta descrição pretende identificar a evolução das parcialidades de

corte, tentando surpreender alguns traços dos restantes poderes com significativa representação

– cidades, aristocratas, negociantes, eclesiásticos, oficiais da milícia, oficiais ultramarinos – e a

forma como vão afectando a “formação” do secretário. A formação institucional da Secretaria

de Estado será aqui caracterizada na sua expressão mais tradicional – enquadramento normativo,

funções, raio de acção – mas tentando surpreender o “direito” na espessura dos seus interesses e

em articulação com as lutas palacianas.

O capítulo V faz o ponto da situação da emergência do secretário, identificando a

migração do modelo secretarial para outras instituições da Coroa e do reino, procurando medir

as consequências da eficiência dos «secretários», considerados na sua dimensão mais

funcionalizada. Sem um teste da generalização do modelo secretarial, sobretudo no interior das

restantes instituições que materializam o poder do rei, não seria possível avançar para uma rápida

descrição sobre a influência dos secretários, sobretudo no que respeita à mudança nos discurso

sobre poder e respectivos paradigmas de “governo”

Por último, o capítulo VI procura identificar os valores que presidiram à implantação dos

«secretários de estado» no seio da corte, tentando desenhar o “círculo” da sua afirmação, fugindo

à causalidade linear, mas tentando identificar as estratégias da sua afirmação. Quer recuperando a

eficiência da sua relação de dominação com os outros poderes concorrentes (cortes, câmaras,

tribunais, conselhos), quer surpreendendo os principais elementos de uma nova sciencia do

governo, forma emergente de dominação moldada, em grande parte, pelos saberes que os

secretários vão adestrando na sua prática quotidiana.

I GENEALOGIA DA CORTE E ESCRITA DO PODER

O estudo dos sistemas de poder, dada a constatação de uma certa continuidade da

organização social entre os séculos XI-XIII e os séculos XVII-XVIII, tem justificado, na

historiografia da época moderna, as cada vez mais abundantes incursões nos fundamentos

medievais das instituições. Para efectuar um enquadramento do secretário, e das razões da sua

emergência, no quadro conflituante dos poderes no espaço da coroa, será necessário perceber os

fundamentos dos ofícios da escrita e o jogo de influências recíprocas travado pelos principais

ofícios da Casa Real. Na verdade, desde muito cedo se manifestou uma tendência do rei de

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Portugal para escolher, como instrumento do seu governo, um oficial com experiência dos

“papéis” e dos «negócios públicos» – liberto de constrangimentos “político-jurídicos” – passível

de encabeçar um prática do poder, fora dos circuitos conhecidos e controlados pelos restantes

cortesãos. Apenas por uma cuidadosa aproximação à emergência dos ofícios da escrita nos

séculos XIV-XVI (notário, chanceler, escrivão da câmara, escrivão da fazenda, secretário do rei,

escrivão da puridade, secretários particulares dos reis, secretário de estado) será possível entrever

o jogo de sombras disputado entre os monarcas e os poderes concorrentes no reino, entre os

séculos XVI-XVII. Jogo que resultou das estratégias de ascensão dos indivíduos, em parte

decorrentes de lógicas corporativas do mundo letrado, em parte fruto da conjuntura específica

de cada um dos reinados - dada a importância da confiança régia na estruturação da Corte189.

Começamos pelos fundamentos da escrita na dinâmica cortesã.

1. O lugar da escrita na corte régia Simplificando muito a leitura, a memória da prática do poder na mundividência medieval

era sobretudo a memória da organização da antiguidade greco-romana. Daí que a tradição do

registo marcasse a capacidade do mando: apenas aquilo que era dito e registado, conhecia uma

efectiva existência, quod non est in acta non est in mundo. São muitos os indícios que associam a

dinâmica da escrita à formação dos organismos de poder. Jack Goddy, um antropólogo com um

largo trabalho comparativo entre as civilizações antigas e as formas “políticas” de organização

social, chamou a atenção para as relações entre a génese da escrita, o desenvolvimento da grafia,

a formação da propriedade e a circulação monetária190. Desta forma, a genealogia dos principais

campos de poder na época moderna pode ser intimamente relacionada com o desenvolvimento

dos usos da escrita. A fixação dos conteúdos da linguagem, por meio da escrita, num dado

momento histórico, conduzia à necessidade posterior de especialistas na descodificação desses

materiais. A passagem do tempo impunha que juristas e sacerdotes operassem a exegese de

textos que se tornavam incompreensíveis para os restantes indivíduos. Por esta razão, o direito, a

religião e a marcação escrita do poder iriam caminhar a par. Com efeito, a importância da

tradição “político-administrativa romana” marcou a evolução das estruturas eclesiásticas, onde,

189 Fundamentais os trabalhos clássicos de A. G. DICKENS, The Courts of Europe, Politics, Patronage and Royalty, 1400-1800, London, Thames & Hudson, 1977 e H. G. KOENIGSBERGER, «Republics and Courts in Italian and European Culture», Past and Present, 83, 1979, pp. 32-56. 190 Jack GOODY, A lógica da escrita e a organização da sociedade, Edições Setenta, Lisboa, 1987, pp. 57-59.

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como sabemos, o direito romano assumiu uma relativa continuidade191. Segundo Bernardo Sá

Nogueira, a importância das «instituições romanas» na confecção de instrumentos públicos -

como por exemplo o officium tabellionatus - deveu-se à tradição «romano-vulgar», popularizada

pelo costume e pela «formatação «académica» do “direito justinianeu”. Progressivamente, os

soberanos vão utilizar a lex regia que os jurisconsultos clássicos atribuíam ao imperador para

circunscrever a produção escrita dos documentos192.

Quais as razões desta eficácia?

Por um lado, faziam curso os aspectos relacionados com a contagem dos “instrumentos

humanos do poder”, onde os censos, o controlo das famílias, das casas, dos homens disponíveis

para a guerra, das trocas comerciais, da coordenação de armazéns, do racionamento alimentar,

impunham a especialização do registo. Por outro lado, a escrita revelava-se o principal recurso na

progressiva implantação de “formas doces” do mando, criando uma magia inerente à grafia dos

signos, associando o carisma da propriedade com a expressão da beleza.

Mas esta “utilidade” da escrita veio colonizar o desenvolvimento da função de serviço ao

poder do rei, já em franco desenvolvimento nas sociedades de cultura oral. Temos, por isso, que

distinguir entre a funcionalidade social do ofício e a funcionalidade social da escrita.

No que toca à construção de uma mundividência do ofício.

O «ofício» difundiu-se como recurso do poder régio, decorrente de um sentido de dever,

numa primeira fase enquanto noção abstracta (o serviço de um determinado negotium, no sentido

de uma actividade servindo o dever humano de acção, no serviço, na ajuda ao próximo) vindo

depois a adquirir a carga semântica associada à administração da res publica193. Contudo, esta

adaptação do fundo jurídico romano não deve ser exagerada nas suas consequências históricas,

pelo menos para cronologias anteriores ao século XVI. Não obstante a influência das Partidas de

Afonso X – saturadas do romanismo de origem bolonhesa e canalizando muita da influência do

“direito justinianeu”, renovado pelos comentadores e glosadores –, apenas com a explosão

191 Para um levantamento genérico destas continuidades ver a obra clássica de Franz WIACKER, História do Direito Privado Moderno, FCG, Lisboa, 2004, pp. 15-38. Mais recentemente uma boa síntese em Hagen SCHULZE, État et Nation dans l’histoire de l’Europe, Seuil, Paris, 1996, pp. 1-42. Para os processos de codificação do direito romano, bem como as suas principais linhas de evolução, ver Mário BRETONE, História do Direito Romano, Estampa, Lisboa, 1990, pp. 263-299. 192 Bernardo de Sá NOGUEIRA, Tabelionado e instrumento público em Portugal, Génese e Implantação (1212-1279), I vol., Dissertação de Doutoramento em História, FLUL, Lisboa, 1996, pp. 4-8. 193 CÍCERO, Dos Deveres (De Officiis), Edições 70, Lisboa, 2000, pp. 15-75 e p. 166.

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filológica dos “renascimentos” decorrerá uma assimilação plena da teoria dos ofícios públicos de

tradição romana194.

Como é sabido, o serviço do rei na transição para a época moderna foi profundamente

informado por esta concepção do ofício. A importância do vínculo pessoal, da pouca relevância

do pagamento (merces, mercenarius), a identificação entre o ofício e a nobilitação, a honra, conferiu

ao serviço uma concepção “patrimonialista”. Além disto, o campo semântico do «ofício público»

foi também informado por aspectos mais mecânicos da vida social (officium, ministerium) com

raízes quer no direito romano quer no direito canónico, onde existiam raízes das ideias de

fidelidade e competência – em ordem à obtenção dos resultados pretendidos – o que conferiu às

estruturas de «governo» uma dimensão mais funcional e dinâmica195.

No que toca à importância da escrita.

Tanto a divisão das matéria a «governar» como a manutenção do segredo nas técnicas de

poder foram, gradualmente, impondo a eficácia dos especialistas da escrita196. A formação dos

oficiais da Coroa de Portugal, empreendidos pelo ensino na esfera da Igreja, consistiu no ensino

trivial (o trivium – gramática, lógica e retórica) onde o manejo da língua seguiu de perto a

constituição do poder. Os «escrivães» ou «notários» (funções que primeiro emergiram

formalmente na esfera do poder régio) foram sendo escolhidos sobretudo entre eclesiásticos,

especialistas por excelência nas “artes da palavra”197. Não será de mais sublinhar o papel fulcral

da mundividência eclesiástica na formação dos primeiros oficiais régios que eram eles mesmos,

194 No século XI, a influência do direito romano fez-se também pelos eclesiásticos que, com profundo conhecimento do direito justinianeu, ocuparam diversas dioceses na Península. Gama Barros fez uma interessante arqueologia da legislação medieval, relacionando essa geometria jurídica com a influência romana, quer por meio da reforma justiniana, quer por meio dos códigos visigóticos. A consequência da introdução da língua vernácula nos actos públicos, na transição do século XII para o século XIII, terá tido consequências determinantes na preponderância dos ofícios da escrita, porque a uma nova agilidade dos oficiais, escrevendo na sua língua materna, terá correspondido a aproximação entre o «tempo político» da vontade do rei e a produção dos seus efeitos, expressos nas normas, Henrique G. BARROS, História da Administração Pública em Portugal..., t. III, pp. 113-117. 195 Sobre a teoria do ofício público ver António M. HESPANHA, História das Instituições..., pp. 384-398. 196 Um bom exemplo desta reflexão em torno do segredo, do auxílio régio, e da importância da manipulação dos «papéis políticos», em Secretum, Secretorum, nine english versions, Oxford University Press, 1977, um texto pseudo-aristotélico que penetrou na cultura medieval europeia pela tradução árabe e depois pelas várias versões latinas. As adaptações do texto inglês são diversas, sendo a mais comum reveladora dos problemas em questão: «The Book of the Science of Government, on the Good Ordering of the Statecraft». 197 Um exemplo da profunda ligação entre o exercício da análise de textos, da eficácia do cuidado de si, e do governo da «República», na monumental obra Henri de LUBAC, Exégèse Médiévale, Les quatre sens de l’Écriture, 4 vols., Aubier, Paris, 1959-1964.

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em grande medida, monges ou sacerdotes198. Segundo José Mattoso, «desenvolveu-se na

comitiva régia o grupo de clérigos com funções religiosas e técnicas» processo que remonta ao

reinado de D. Afonso Henriques199. É indiscutível que a generalização do registo escrito, fosse

no elenco do direito régio, fosse na fixação dos ofícios, introduziu nas linguagens do poder um

carácter transformador. A escrita reduziu particularidades e padronizou a comunicação. Também

o registo das decisões concelhias (posturas) envolveu novas dimensões do serviço escrito

(escrivães, tabeliães ou notários) num sistema de poder cada vez mais fundamentado pela

comunicação escrita. A carta redimensionou o espaço passível de ser governado, originando a

crescente dependência de enormes grupos humanos perante os que detinham a capacidade de ler

e escrever200.

A formação de uma sociedade de Corte esteve intimamente ligada ao triunfo destes

«letrados» e «hombres de pluma», através dos quais o rei agilizou a sua rede de influências201. O

funcionamento dos sistemas de poder nos reinos medievais, logo desde os séculos XI-XII,

implicou um conjunto de oficiais que analisavam documentos na presença do rei, dirimiam

conflitos, impunham arbitragens por meio destes manuscritos reais, que eram ainda, em larga

medida, instrumentos sagrados do poder. Em todo o caso a monopolização não foi total e a

investidura de “especialistas documentais” continuou a conviver com a pulverização do poder

entre reis, senhorios e cidades. Assim, ao longo do século XIII-XIV, a utilização da escrita pelo

198 A prática da “administração” eclesiástica desempenhou um papel modelar nos círculos cortesãos, fornecendo uma espécie de protótipo para a formação institucional dos “Estados modernos”. O segredo, além de elemento fundamental na construção etimológica do conceito de secretário, manteve-se como uma característica estrutural no exercício do ofício. «Guarda o secretario os segredos quando os calla» dizia Bluteau, não escamoteando o profundo significado “político” da afirmação. Segundo Cassiodoro, os «secretários deviam ser como as gavetas, que nunca se abrem, senão quando necessita o senhor de alguma coisa». A associação entre a palavra latina secretarium, e o antiquíssimo significado de «Archivo», já presente no Código de Justiniano, impregnava o ofício com uma característica muito específica: a capacidade de ser depositário de informação e a possibilidade de escolha na selecção desses materiais. O secretário não só acumulava como seleccionava e arrumava a informação, detendo o poder de, no mesmo sentido privilegiado, condicionar o acesso a essa mesma informação. As referências das «Sessões do Sínodo Lateranense de 642 – Sub titulis quinque – Secretariorum», como revela Bluteau, confirmavam a estreita relação entre os “ofícios políticos” e um fundo cultural eclesiológico no seio do qual a Teologia revelava uma crucial importância. Este facto nem sempre se encontra devidamente valorizado pelos historiadores, no momento de descrever os ofícios régios a partir de uma perspectiva institucional. Para uma síntese da tratadística moral e teológica na História Institucional Moderna ver António M. HESPANHA, Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1997, pp. 15-57. 199 José MATTOSO, Identificação de um país, Ensaio sobre as origens de Portugal, 1096-1325, II, Composição, Lisboa, Estampa, 1985, pp. 99-100. Ver ainda Henrique G. BARROS, História da Administração Pública em Portugal dos séculos XII a XV…, t. III, pp. 219 e ss. e Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis e regentes de Portugal desde os antigos tempos da Monarquia até à aclamação de el-Rei D. João IV», História e Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, 2ª série, T. I, parte I, 1843, p. 28. 200 António M. HESPANHA, «Centro e Periferia nas estruturas administrativas de Antigo Regime», Ler História, nº 8, 1986. Para uma abordagem sobre as raízes antropológicas do fenómeno, o trabalho magistral de Jack GOODY, The domestication of savage mind, Cambrige University Press, Cambridge, 1977. 201 Seguimos aqui a interpretação de Fernando BOUZA ÁLVAREZ, Del escrivano a la Biblioteca…, p.75. Para uma aplicação dos problemas do “livro” à dinâmica de corte, ver, do mesmo autor, El Libro y el Cetro…, pp. 13 e ss.

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rei não suprimiu totalmente o conflito pela legitimidade da escrita. Porém, o “documento”

adquiriu uma notável relevância e passou a figurar como o mais sistemático instrumento do

conflito202.

Os estudos fundamentais de Ana Isabel Buescu chamaram a atenção dos historiadores para a

importância da «persistência e do prestígio do manuscrito» nas estratégias de afirmação da

Coroa203, onde sobressaíam escrivães e secretários204. Sob a “sacralidade do manuscrito”,

decorrente de um mundo organizado de forma patriarcal numa base rural, a escrita ia permitindo

um lento domínio do espaço e dos homens, sobretudo pela construção de cada vez maiores

segmentos de documentação (Arquivos e Tombos), onde a compilação da informação permitiu

conduzir, enumerar, analisar, as diferentes realidades da vida social205. Processo que pode ser

descrito como uma “territorialização” da vontade régia, assente sobre uma dimensão projectual

que foi conhecendo ao longo dos séculos XV e XVI uma dimensão cada vez mais elaborada, no

sentido de obter conhecimentos sistemáticos. Processo que, em certa medida, foi possibilitando

um conhecimento analítico dos domínios reais e das suas fronteiras e que pode explicar,

também, o processo de crescente intermediação na cobrança das rendas senhoriais. Esta

dinâmica, sabemo-lo hoje, esteve directamente relacionada com os instrumentos de

conhecimento do território e a mutação do sistema de poder, independentemente da divisão

cronológica que se pretenda adoptar para descrever o trânsito entre o paradigma corporativo e o

paradigma estadual206.

Na verdade, terra e gente foram adquirindo uma espessura escrita. Reflexão “política”,

enumeração, escrita e poder régio, foram factores em profunda articulação na gestação dos

reinos ibéricos207, que culminaram em sistemas de poder mais complexos, tanto na sua rede de

domínios, como na execução de relações ou no controlo empreendido pelos cada vez mais

atractivos novos centros de poder - as cortes régias. Tal como mostrou Rita Costa Gomes, a

202 Bernardo de Sá NOGUEIRA, Tabelionado e instrumento público em Portugal…, pp. 24 e ss. 203 Para uma evolução cultural do manuscrito na época moderna, Ana Isabel BUESCU, «A persistência da cultura manuscrita em Portugal nos séculos XVI e XVII», Ler História, 45, 2003, pp. 38 e ss. 204 Sobre o trabalho cronístico de representação do poder régio, Ana Isabel BUESCU, «Cultura impressa e cultura manuscrita em Portugal na Época Moderna, uma sondagem», Memória e Poder, Ensaios de História Cultural (Séculos XV-XVIII), Lisboa, Cosmos, 2000. 205 Uma síntese desta evolução em Rita MARQUILHAS, « Escrita e administração» primeiro capítulo de A Faculdade das Letras, Escrita e Leitura em Portugal no século XVII, INCM, Lisboa, 2000, pp. 14-32. 206 Para uma crítica do processo a partir dos «condicionamentos estruturais do poder político» e da «estrutura político-geográfica» do reino ver HESPANHA, As Vésperas..., pp. 61-111. 207 Uma boa síntese do tema no estudo clássico de Alfonso GARCIA GALLO, « La division de materia administrativa em España moderna », Actas del II Symposium de Historia de la Administracio, Madrid, 1971, pp. 294 e ss.

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corte, o rei, e os seus oficiais especializados na produção documental, cumpriam um importante

papel na estruturação dos territórios208.

Tome-se, a título de exemplo, o caso da autenticação. Compreende-se a sua importância

se pensarmos que os processos de certificação documental impediam a generalização da fraude,

permitiam que o rei arbitrasse os conflitos com decisões unívocas209. Estes meios (a declaração

do dia e ano, sinais públicos; os recortes nos instrumentos utilizados, os selos rodados,

pendentes, ou de chapa, as assinaturas, o papel selado) garantiam a indisponibilidade dos

documentos através dos quais se expressava o «governo»210. Os «Sinais Públicos», utilizados

desde o século XIII, tornaram-se constantes nos «notários» e «tabeliães do rei», sendo alguns

acompanhados de registos frásicos (como Spes mea in Deo est) trabalhados com formas singulares

no sentido de impedir a contrafacção211. A produção de documentos “únicos” garantia a

funcionalidade social do poder régio potenciando, simultaneamente, a fixação de um vasto

conjunto de oficias da escrita no espaço da Corte.

Porém, a Corte não era um lugar onde o poder brotasse de forma unívoca. Os modelos

de «governo», tal como os seus instrumentos, foram profundamente afectados pela “luta” entre

vários grupos. Conflito motivado quer pela tensão entre coroa e a aristocracia, na delimitação de

espaços de domínio, quer pelo acesso aos recursos (simbólicos e materiais) disponibilizados pelo

reino. A variação das funções de poder, decorrente das relações de conflito entre os indivíduos,

foi originando diversos modos de aplicar o poder, com outras tantas formas de entender a

redacção e a produção de «papéis». É desta multiplicação de funções formais na produção

documental régia, e da respectiva “luta” no acesso aos assuntos de «governo», que trataremos em

seguida.

2. Corte e domínio dos «papéis»: arqueologia de um conflito

208 Sobre a dimensão territoral da curialização, em especial numa época de cortes itinerantes, ver a nova edição do já clássico estudo de Rita Costa GOMES, The Making of a Court Society. Kins and Nobles in Late Medieval Portugal, Cambridge University Press, Cambridge, 2003. 209 Nas Cortes de Évora de 1372 os povos pediram ao rei que as «cartas» passassem de forma inequívoca pela Chancelaria, devido à multiplicação de documentos falsificados, Fortunato de ALMEIDA, História de da Igreja em Portugal, vol. II, Porto, 1968, pp. 44-46. 210 João Pedro RIBEIRO, Observações Historicas e Criticas para servirem de Memorias ao Systema da Diplomacia Portugeza, Tipografia da Academia Real das Ciências de Lisboa, Lisboa, 1798. 211 João Pedro RIBEIRO, Observações Historicas…, pp. 125-126.

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Na produção de uma sociedade de Corte, os conflitos entre parcialidades, e mesmo entre

oficiais do rei, devem ser colocados em primeiro plano. Para levar a cabo uma distinção entre os

oficiais da escrita devem ser tidos em conta alguns problemas resultantes do estudo da

organização “administrativa” e do funcionamento da Corte. Como notou António Hespanha,

num artigo seminal acerca das relações entre centro e periferia, todos os sistemas de poder são

contraditórios e habitados por estratégias, tecnologias, instrumentos que correspondem às

«tensões reais dos grupos em presença»212.

Em todo o caso, a narrativa conflitual que vai seguir-se neste estudo, e atendendo ao seu

carácter cortesão, deve ser lida como ponto de chegada de inúmeras tensões organizadas sobre o

território (reino e conquistas) – que aqui não é possível analisar por razões de circunscrição

temática. Esta ressalva tem muita importância, sob pena de reduzirmos os conflitos à

dramaticidade pseudo-emocional dos indivíduos na “luta” palaciana. Como é óbvio, o «Paço»

tem aqui o seu lugar. Mas não é menos certo que os acontecimentos da Corte são, em diversas

ocasiões, o rendilhado espumoso de um oceano profundo.

Nas Cortes das primeiras dinastias da Coroa de Portugal, a designação dos oficiais da

escrita foi oscilando no seu significado. Tanto o «chanceler» como o «notário» auxiliavam os

monarcas nas contestações ao direito exercido pela Santa Sé, a nobreza, ou o domínio senhorial

eclesiástico. Estes servidores tornaram decisiva a sua influência, de tal modo que os “ministros

de Roma”, quando pretendiam atingir os direitos régios, não hesitavam em responsabilizar os

responsáveis pelos «papéis» dos reinos e monarquias como os principais ministros do poder.

Pelos séculos XI-XII os «notários» do rei tinham uma relevante preeminência sobre «escrivães» e

«secretários», no âmbito das tradições “administrativas” oriundas dos Concílios Toledanos213.

Em todo o caso, podemos identificar três tipologias de oficiais tardo-medievais determinantes na

construção “administrativa” dos «secretários de estado»: chanceler-mor, escrivão da puridade e

secretários do rei.

Deste modo, para entender melhor como as vicissitudes da Corte afectaram o perfil do

secretário de estado no período moderno, deve antes passar-se em revista a evolução das

principais características jurisdicionais dos ofícios relacionados com os «papéis» do rei.

212 António M. HESPANHA, «Centro e Periferia…», pp. 47 e ss. 213 Fr. Francisco do Santíssimo SACRAMENTO, Epitome unico da dignidade de grande y maior ministro da Puridade e de sua muita antiguidade e excellencia, Lisboa, 1665, p. 28. Sobre os concílios ver Antonio GARCÍA Y GARCÍA, «Para una interpretación de los concilios y sínodos », Iglesia sociedad y derecho, António García y García (ed.), Universidad Pontificia de Salamanca, Salamanca, 1985, pp. 373-388.

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a) «Chanceler-mor»

O primeiro ofício a destacar-se na coordenação do despacho régio terá sido o

«chanceler-mor». No século XIII, o «chanceler» coordenava o conjunto dos oficiais da escrita,

«escrivães», «notários», «tabeliães» e «guardas dos selos»214. Carvalho Homem, num notável

estudo sobre as práticas administrativas do reinado de D. Pedro I, baseando-se sobretudo na

análise dos «escatocolo» das cartas régias, data de 1361 as primeiras Ordenações conhecidas sobre

desembargo das petições, onde o «Chanceler» ou quem possuísse o selo, devia estar presente no

desembargo régio215. Depois de devidamente analisado na Chancelaria, o documento seria

firmado com o selo régio, em princípio por si detido (ou ministro da sua dependência, guarda-

selos ou tenente dos selos). Só depois desta verificação a ordem do rei, na sua expressão escrita,

assumia a sua plena «autoridade pública». Apesar da Chancelaria ter um Arquivo e Secretaria

fixos em Lisboa, o «Chanceler» acompanhava o rei na sua itinerância216.

Importa reter desta primeira conjuntura “administrativa” dois dados relevantes: i) todos

os ofícios documentais se encontravam no século XIII subordinados ao «chanceler d’Elrei» ou

«chanceler da Corte» (ou mesmo no caso apresentado vedor da chancelaria); ii) a interferência de

D. Pedro I na prática do despacho do chanceler e dos seus servidores fez-se através da criação

de um ofício lateral ao chanceler (o vedor da chancelaria) aglutinando as suas funções e

acrescentando a esse novo vedor uma maior dimensão de execução, confirmada pelas assinaturas

das cartas régias217.

Nas Ordenações Afonsinas (OA) conservou-se o destaque do «chanceler» como ofício

primordial da Casa Real. Com efeito, na segunda metade do século XV, o «chanceler-mor» tinha

uma actividade intensa, actuando como conselheiro do rei e enviado às Cortes da Europa218. A

sua relevância assentava sobre a execução “exterior” da vontade régia, na sua forma escrita. Isto

214 Com D. Sancho I o cargo de chanceler era já o terceiro na hierarquia dos oficiais régios, ascensão confirmada pela continuidade do magister Julião, chanceler-mor com preponderância até ao principio do reinado de D. Afonso II nas questões de «governo» e «justiça», Henrique da Gama BARROS, História da Administração Pública..., t. III, p. 219. 215 Armando L. C. HOMEM, «Subsídios para o estudo da administração central no reinado de D. Pedro I», Portugal nos finais da Idade Média, Estado, instituições, sociedade política, Livros Horizonte, Lisboa, 1990, p. 63 e ss. O estudo de Carvalho Homem chama a atenção para um facto de extrema relevância, se quisermos perspectivar a mutação dos ofícios do ponto de vista da “luta”: a nomeação de um novo ofício – o «vedor da chancelaria», desempenhando as funções tradicionalmente consagradas ao chanceler, resultou de uma remodelação de servidores por D. Pedro I, feita a partir de 1361. Este novo vedor da chancelaria teria uma participação bem mais activa nas decisões régias, além da tradicional utilização dos selos no processo de confirmação documental. 216 Sobre a actuação do chanceler na corte, Marcello CAETANO, Lições de História do Direito Português…, p. 153 e ss. 217 Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Escrivães...», p. 159. 218 Ver Judite Antoniete Gonçalves de FREITAS, «Temos por bem e mandamos», a burocracia régia e os seus oficiais em meados de Quatrocentos (1439-1460), Dissertação de Doutoramento em História da Idade Média, Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Porto, 1999, vol. I, pp. 88-96.

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porque se entendia que quanto aos ofícios da «puridade», assim como o capelão mediava a

relação entre Deus e o rei, o «chanceler-mor» era o privilegiado mediador entre o rei e os

homens, no que tocava a «coisas temporais»219. Cabia ao «chanceler-mor», aferir da

legalidade das decisões régias em face das normas já fixadas, tendo como referência essencial as

OA. Esta acção fazia-se sentir sobretudo no circuito interno das deliberações; desde a emissão

da decisão régia, até ao momento da selagem definitiva em documento formal220. Como

veremos, existiram particularidades e indefinições de competência quanto à forma de despachar

«negócios» ou quanto à hierarquia de posse dos selos régios, aspectos que foram estimulando

disputas com o escrivão da puridade e os secretários221. Em caso de dúvida em matéria de

«graça», era o «chanceler-mor» quem devia expor directamente ao rei o problema. Em matéria de

«justiça» devia conduzir à questão à «Mesa da Relação» a que o acto pertencesse222.

Já no início do século XVI, as OM223 demarcavam de forma mais clara o perfil do

«chanceler-mor: cabia-lhe ver todas as coisas que fossem despachadas por cartas (do rei,

desembargadores e outros oficiais)224; colocar comentário nas cartas dos desembargadores ou

oficiais quando se verificassem erros ou contradições; enviar essas cartas anotadas ao porteiro da

relação para que o desembargador ou oficial, autor da carta, pudesse corrigir a sua redacção225.

Após a análise das cartas, o chanceler deveria colocar-lhes o respectivo selo226. Cabia ao

«chanceler-mor» publicar as Leis e Ordenações, primeiro em audiência e depois na Chancelaria.

Tinha ainda o poder de dar «cartas de mercê» a «escrivães» ou a todos os que pudessem fazer

219 Desenvolvimento do tema em Henrique G. BARROS, História da Administração Pública…, t. III, p. 230 e ss. 220 Pedro França REIS, Conselheiros e Secretários de Estado de Portugal …, pp. 20-32. 221 Desde o reinado de D. João I existiam o selo do camafeu, o dos contos (decorrente da autonomia e especialização deste órgão em relação á Casa do rei), o da câmara e o da puridade. Sobre o funcionamento da Chancelaria no fim da idade média, com descrição das tipologias documentais, Vasco Rodrigues dos Santos Machado VAZ, A boa memória do monarca, os escrivães da chancelaria de D. João I (1385-1433), Dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras Universidade do Porto, Porto, 1995. 222 Tinha ainda o poder de «conhecer as suspeições» postas aos Desembargadores ou a outros oficiais da corte. Confirmava documentação importante como a apresentação das Igrejas ou provimento de ofícios (tabeliães, escrivães, procuradores, contadores, inquiridores e porteiros), Henrique G. BARROS, História da Administração Pública…, t. III, p. 231. Com as Ordenações Manuelinas (OM), Livro I, Título II, nº 7, são referidas as suspeições dos Vedores da Fazenda, Desembargadores e todos os oficiais da Corte. 223 Sobre o complexo problema das edições das OM ver João José Alves DIAS, «A primeira impressão das Ordenações Manuelinas, por Valentim Fernandes», Portugal, Alemanha, África, Do Colonialismo Imperial ao Colonialismo Político, Actas do IV Encontro Luso-Alemão, Edições Colibri, Lisboa, 1995, pp. 31 e ss. 224 Pela consagrada associação entre nobreza e serviço do rei dispunha-se que o «chanceler» fosse «de boa linhagem, e bom siso, discreto, e letrado, e vertuoso, de sã vontade, boa consciencia, e justo, e de gracioso e bom acolhimento das partes, pera que os que com elle teuerem que neguociar sem algua dificuldade o virem requerer; e de tal entendimento, e memoria, que saiba conhecer erros e minguoas das escripturas, que por elle ham de passar, e que se lembre que nom sejam contrarias huas das outras; e que inteiramente guarde os segredos da Justiça (...)», OM, Liv. I, Tit. II. 225 Nos casos em que a carta a corrigir estivesse assinada pelo rei, o chanceler devia procurar directamente sua magestade para que aí, na presença real, colocasse as dúvidas que tivesse. 226 O porteiro da Chancelaria encerraria esse material num saco, levando-as depois rapidamente à Casa da Chancelaria para serem enviadas OM, Liv. I, Tit. II, nº 6.

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«sinais públicos» e testemunhar como «tabeliães públicos». Devia «dar juramento» a todos os

ofícios dignos de registo na Casa Real, incluindo o «escrivão da puridade», tal como a todos os

conselheiros do rei, validando com a sua assinatura e selo a concretização da nomeação régia227.

Ainda no reinado de D. Manuel executou-se a «Leitura Nova da Chancelaria Régia», que

simplificava o tratamento documental e procurava fornecer mais rigor à informação em

circulação228. A emergência da «Casa do Cível», com chancelaria própria, encurtou o alcance da

«Chancelaria» no que diz respeito ao expediente em matéria de «justiça»229.

A multiplicação do expediente, comum a toda a Europa em meados do século XVI,

colocou sérias mutações à organização das Cortes. O «chanceler-mor» ao controlar os «Livros da

Chancelaria de Corte», onde eram registadas as «cartas de doacção», «cartas de perdão», «ofícios»,

«aforamentos» e «mercês», detinha uma importância decisiva na “economia do poder”.

Porém novas necessidades de articulação entre o registo, o processo de avaliação das

mercês, e a decisão régia, colocaram dificuldades à posição do «chanceler-mor», numa altura em

que um outro oficial da escrita, o «escrivão da puridade», vinha adquirindo protagonismo.

Todavia, não se julgue que estas alterações enfraqueceram de forma total o papel da

Chancelaria no processo legislativo. Até ao século XVII, o «chanceler-mor» continuou a

beneficiar de grande protagonismo no que respeito à confirmação documental, embora fosse

perdendo protagonismo na decisão. De acordo com as Ordenações Filipinas devia «conhecer os

erros e faltas das escrituras», vendo com boa diligência todas as coisas que os Desembargadores

do Paço, Vedores da Fazenda, Desembargadores da Fazenda, Provedor mor das Obras e Terças,

e todos os oficiais da Corte, cujos despachos tinham que passar pela Chancelaria, tirando as

cartas e sentenças da Casa da Suplicação. Se a carta ou sentença a selar fosse contra as

Ordenações ou Direito, o chanceler-mor podia não selar, colocando na carta um comentário

(glosa) a fim de ser corrigida230. Prova de que estes poderes eram exercidos na luta de corte são

227 OM, Liv. I, Tit. II, nº 37. 228 Ana Isabel BUESCU, «A persistência da cultura manuscrita…», pp. 19 e ss. 229 As nomeações para a Chancelaria ocorreram sobretudo no sector eclesiástico. Para uma aturada análise da composição social dos titulares do cargo ver Pedro França REIS, Conselheiros e Secretários de Estado de Portugal…, p. 32-33 e notas. No reinado de D. João III, esta nova configuração da Chancelaria afectaria o «chanceler-mor», «chanceler da Casa da Suplicação», «juiz da Chancelaria» e «desembargadores do Paço». Registaram-se em 1548 algumas perturbações na assinatura e numeração dos Livros devido ao facto de o chanceler-mor não reunir condições para o fazer. Sobre as conotações económicas do registo em Chancelaria, Maria Leonor G. da CRUZ, A Governação de D. João III, a Fazenda Real e os seus vedores, Centro de História da UL, Lisboa, 2001, pp. 193 e ss. Permanecem com interesse os trabalhos de Pedro de AZEVEDO, «Os livros da Chancelaria mor da Corte e do reino », Archivo Histórico Portuguez, vol. IV, pp. 449 e ss e José PESSANHA, Uma rehabilitação historica – Inventários da Torre do Tombo no século XVI, Archivo Histórico Portuguez, vol. III, pp. 287 e ss. 230 Ordenações Filipinas (OF), Liv. I, Tit. II, nº 2.

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os inúmeros conflitos entre a Chancelaria e os Secretários de Estado na promulgação de leis e

mercês régias durante o século XVII.

Para concluir esta breve caracterização, podemos dizer que a perda de influência do

«chanceler-mor» se explica por duas ordens de razões: i) o aumento da participação do rei na

administração escrita em detrimento das ocupações militares (criando outros oficiais em torno

da Câmara régia) foi esvaziando o poder da Chancelaria, organismo outrora especializado na

emissão documental e com assinalável autonomia devido à pouca participação dos monarcas nos

processos letrados; ii) num outro plano, o carácter «formalista» do ofício, muito marcado por

conhecimentos “diplomáticos” foi relegando o «chanceler-mor» para uma posição subalterna

dentro do sistema da Corte.

Exemplo deste processo de esvaziamento ‘decisório’ da Chancelaria é o facto de no

primeiro quadro de oficiais do Conselho de Portugal (c. 1581-1583) constar um «chanceler-mor»,

isto ainda durante a permanência de D. Filipe I em Portugal. Quando o monarca retornou a

Madrid, o «chanceler-mor» previamente indicado não seguiu com a comitiva. Segundo Luxán

Meléndez a decisão foi explicada pelo rei apenas por « justas considerações », suficientes para

dispensar a nomeação e « riscar o ofício do Quadro ». O ofício de Chanceler não voltou a

integrar a disposição do Conselho de Portugal231. Não existem estudos sistemáticos sobre a

acção da Chancelaria na Coroa de Portugal nos séculos XVII e XVIII mas não será arriscar

muito dizer que o ofício se transformou, de forma gradual, num cargo honorífico e formal, com

pouca capacidade de afectar directamente a decisão régia. Contudo, sobretudo nos períodos de

instabilidade da Corte (1630/1640) ou durante a crise que levou à deposição D. Afonso VI

(1667-1668) a chancelaria constituiu um lugar chave para a oposição ao poder do rei.

b) O «escrivão da puridade»

231 Sobre as funções do «chanceler-mor do Conselho de Portugal», Santiago LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal, sus fundamentos sociales y sus caracteres nacionales, El Consejo de Portugal, 1580-1640, Universidad Complutense, Madrid, pp. 102-103.

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A emergência do «escrivão da puridade» marca de uma forma mais significativa o perfil

da escrita do poder ao longo do período moderno232. Na verdade, as suas competências vão

desenvolver-se em torno do despacho, numa mais alargada gama de matérias. No Antigo

Regime, a «puridade» era identificada com a intimidade do segredo. A importância desta relação

entre segredo e poder era confirmada na memória popular através de um conhecido adágio: «a

quem dizes a tua puridade, dás a tua liberdade». Também segundo uma famosa «ode» de Luís de

Camões «os furtos da puridade eram furtos secretos, secretas comunicações»233. Neste sentido, a

«puridade» do príncipe, estava associada à declaração da sua vontade afirmando-se o segredo

como tópico chave da «república»234. Como bem se vê, a «puridade» abria o percurso deste oficial

para uma outra dimensão do poder régio.

Numa perspectiva mais institucional, a emergência do «escrivão da puridade»

correspondeu à necessidade de supervisão do trabalho e chefia do pessoal administrativo das

repartições que elaboravam os documentos régios. Segundo um belo estudo do conde de Tovar,

o ofício surgiu no século XIII, cerca de 1250, designando um oficial do rei que «tinha à sua

guarda o selo particular destinado a autenticar as missivas (documentos de importância manifesta

ou grande segredo) a que apenas um círculo restrito devia ter acesso»235. Apenas a partir de 1250,

a designação «escrivão da puridade» passou a significar uma certa proeminência sobre os

restantes servidores do despacho. O rei procurou com este novo cargo controlar a proliferação

de ofícios de redacção, submetendo a este oficial os «papéis» da Câmara régia236. De qualquer

forma, o «escrivão da puridade», abrindo correspondência diplomática e podendo entrar a

qualquer hora na câmara do rei, estava ainda no reinado de Afonso IV inteiramente subordinado

232 Seguimos de muito perto o excelente trabalho de Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Escrivães da Puridade…, pp.153-218. Henrique G. BARROS, História da Administração Pública…, t. III, pp. 221-229, resumiu a informação dos três estudos de Morato, que são em grande medida ainda a base do trabalho de Paulo MERÊA, Da minha Gaveta…pp. 1 e ss. Em sentido contrário, Conde de TOVAR, «O Escrivão da Puridade», Estudos Históricos, Tomo III, vol. 6, Lisboa, 1961. 233 Rafael BLUTEAU, «Puridade», Vocabulário Portuguê e Latino, 1720, vol. VI, pp. 832-833. 234 Fr. Francisco do Santíssimo SACRAMENTO, Epitome..., p. 9. 235 «Regimento» no reinado de D. Pedro I, em 1361. Segundo o conde de Tovar, a denominação não surge no Regimento mas numa Carta Régia dada em Portel a 20 de Dezembro de 1362, Conde de TOVAR, «O Escrivão da Puridade», Estudos …, pp. 31-36. 236 No reinado de D. Pedro I surge pela primeira vez a designação de «escrivão da puridade». De acordo com Francisco Morato, «Gonçalo Vasques de Goes» surge nas «Crónicas» de Fernão Lopes como «Privado d’ElRei». Quanto às competências do cargo neste reinado justifica-se uma longa citação pelo seu carácter modelar: conta o cronista que todas as petições enviadas ao rei «hião á mão do Escrivão da Puridade, e elle as dava a hum Escrivão qual lhe prazia o qual tinha o cargo de as repartir, e dar cada uma aos Desembargadores, a que pertencião. As petições que eram desembargos de commum curso, aqueles por que havião de passar, mandavão logo fazer as Cartas a seus Escrivães. As petições que eram de graça e mercê, que pertencião á sua fazenda, fazia-as por um dos Vedores em ementa a seu Escrivão; e escrito ficava na não do Desembargador, que depois as desembargava com ElRei; e o Chanceler estava presente quando podia », Fernão LOPES, Crónica de D. Pedro I, cit. por Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Escrivães da Puridade...», p. 162.

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ao «chanceler» e circunscrito, no seu exercício, a linhas vagas que variavam segundo a

distribuição do poder na Corte237.

Porém, a sua crescente “eficácia” na supervisão dos oficiais da escrita relegou o

«chanceler-mor» para aquilo a que Carvalho Homem chamou uma «burocratização da

Chancelaria»238. Na verdade, a possibilidade de decisão em matérias informais, e o seu acesso ao

«selo régio», conferiram ao «escrivão da puridade» alguma vantagem sobre o chanceler-mor»239.

Na opinião de Marcelo Caetano, o facto de os «chanceleres-mores» estarem sobretudo

vocacionados para actos públicos oficiais, i.e., de acordo com o direito do reino, originou uma

certa cristalização das possibilidades de actuação da Chancelaria. Com efeito, o «escrivão da

puridade», actuando na intimidade do rei, sendo menos exposto a mecanismos processuais

restritivos, como os que eram praticados na Chancelaria, adquiriu rápida importância nos

mecanismos de decisão240. A si passaram a ser cometidos os «negócios» mais secretos e mais

reservados. Sendo o oficial de escrita mais chegado ao monarca acabou por tornar-se, no início

da época moderna, o homem mais forte da corte.

Com efeito, a emergência do «escrivão da puridade» absorveu o processo

“administrativo”, os mecanismos de decisão e mesmo o desenho das prioridades na execução

dos “negócios públicos”. O crescimento dos poderes do rei obrigou à manutenção da

continuidade das decisões, de forma a responder a todas as solicitações dos vassalos: não haveria

aumento do poder régio sem a correspondente capacidade de tratar as «petições» dos vassalos.

Deste modo, mesmo na ausência do monarca, o «escrivão da puridade» devia ter “acesso” à sua

assinatura para firmar a documentação e prosseguir o despacho241. Em matéria de «Fazenda»,

dava ordens para despesas extraordinárias e assistia em lugar do rei com os Vedores, estando-lhe

cometido o recebimento de todo o dinheiro das escrituras, bem como a respectiva possibilidade

de pagar os seus oficiais, escolhidos segundo critério próprio242. Apesar de o cargo ser cada vez

mais relevante não existia um cursus honorum definido.

Segundo Rita Costa Gomes, esta ascensão dá-se no sentido de uma “personalização” do

poder que visou responder aos espartilhos da tramitação processual, onde, como vimos, os

237 Luís Rebelo da SILVA, História de Portugal nos séculos XVII e XVIII…, vol. V, pp. 406-407 238 Sobre o processo, Armando L. C. HOMEM, O Desembargo Régio, (1320-1433), INIC, Porto, 1990. 239 Contudo, a questão da propriedade do «selo régio» é um assunto complexo, Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Escrivães da Puridade…», p. 160 e ss. 240 Marcello CAETANO, Lições de História do Direito Português…, p. 153 e ss. 241 Armando L. C. HOMEM, « Subsídios para o estudo da administração....», p. 71 e ss. 242 Luís Miguel DUARTE, D. Duarte, Círculo de Leitores, 2005, pp. 193-195.

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oficiais da câmara do rei adquiriram proeminência sobre a Chancelaria243. Deste modo, na

segunda metade do século XV, o «escrivão da puridade» agregou uma série de poderes antes

dispersa por diferentes oficiais da corte. O conde de Tovar, no precioso estudo que consagrou

aquele ofício dividiu as novas atribuições em três grandes áreas: «cortes», «negócios externos» e

«assuntos militares»244. Começavam a definir-se em torno dos oficiais de escrita um conjunto de

matérias determinante no «governo» do reino e na produção de «papéis».

No final do século XV, na transição entre os reinados de D. Afonso V e D. João II, os

«escrivães da puridade», a par de alguns outros sectores do poder régio, vão passar por

significativas transformações. O «escrivão da puridade», D. João da Silveira, mais tarde Barão do

Alvito, adquiriu um poder sem precedentes, anexando ao poder informal da «puridade», a

nobilitação245. Apesar do percurso aparentemente linear destes servidores da escrita régia, a

instabilidade da sua posição confirmou-se pela “luta” que brotou da sua própria influência sobre

o equilíbrio de poder. Quando D. João II empreendeu uma recuperação de vários domínios

(alienados pela graça régia ao poder senhorial), chamando a si a fonte da riqueza territorial e

iniciando um governo político menos condicionado pelos direitos concorrentes do poder régio,

adicionou a uma autoridade fortalecida pelo crescimento da Corte – através de títulos mantidos

pela liberalidade régia e alimentados com empregos palacianos – uma prática do poder mais

violenta nos seus propósitos246.

No âmbito de um processo que teria, inevitavelmente, as suas vítimas, o filho do Barão

do Alvito, seguindo já na assistência do despacho régio no impedimento ou na ausência do seu

pai, envolveu-se numa conspiração liderada pelo duque de Viseu. A 22 de Agosto de 1584, numa

conjura em Palmela, a reacção de D. João II, morto o duque (apunhalado pelo rei) não deixou de

243 Para uma boa síntese sobre a estabilização da corte régia e a emergência do «escrivão da puridade», Rita Costa GOMES, The making of a court society..., pp. 42-46. 244 Conde de TOVAR, «O Escrivão da Puridade», Estudos …, pp. 80-87. 245 João da Silveira iniciou as funções de «escrivão da puridade» desde o final do reinado de D. Afonso V. Nobilitou-se, tornando-se também chanceler do rei e embaixador de missões delicadas. Foi agraciado com o título de Barão do Alvito, padrinho de princesas e regedor da Casa da Suplicação, seguindo como «escrivão da puridade» depois da ascensão definitiva de D. João II ao governo do reino em 1481. Desempenhou o mesmo cargo até à sua morte, decorrida em 1484. Sobre a ascensão social do «escrivão da puridade», IAN/TT, Chancelaria de D. João II, «D. João da Silveira, Carta de Barão do Alvito», Liv. 6, fl. 126v; «Carta para ele e seus descendentes se chamarem Dom», Liv. 19, fl. 146; «Carta para fazer uma fortaleza nas suas terras do Alvito», Liv. 3, fl. 42v; «Carta para as suas terras serem baronia e se chamar senhor de Alvito», Liv. 1, fl. 98; «Carta para suceder nas terras da Coroa», Liv. 6, fl. 126v; «Doacção de Aguiar, Ouriola e seus Direitos, Jurisdições», Liv. 6, fl. 227; «Doacção de Alvito e suas rendas, Jurisdições», Liv. 6, fl. 125; «Doacção das Jugadas de Coimbra», Liv. 26, fl. 91. 246 Eduardo d’Oliveira FRANÇA, O poder real em Portugal e as origens do absolutismo, Universidade de S. Paulo, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, S. Paulo, 1946, pp. 150-156. Sobre a dinâmica adinistrativa Manuela MENDONÇA, D. João II, um percurso humano e político nas origens da modernidade em portugal, Estampa, Lisboa, 1991, pp. 309-380. Ver a título de exemplo os números aí apresentados sobre a redução de títulos após o crescimento verificado no reinado de D. Afonso V, pp. 377 e ss.

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provocar comoção entre os oficiais régios. Fernão da Silveira, «escrivão da puridade», foi julgado

à revelia e condenado a «cruel morte natural»247. Além da grave condenação, a sentença referia o

elevado grau de traição de um homem que tinha sido criado pelo rei desde «moço pequeno»,

sendo-lhe sempre concedida «muita honra», «mercê» e «muita renda». A gravidade da traição

deste oficial era agravada pelo facto de ser depositário dos «segredos e comsselhos» do rei, tendo

servido muitas vezes como «escrivão da puridade»248. Fernão da Silveira conseguiu escapar para

terras gaulesas, mas aí foi assassinado em 1489, por ordem e pagamento do rei. A obstinação do

rei em perseguir o «escrivão da puridade» não terá sido apenas uma questão de fúria vingativa. A

sua aniquilação, a milhares de quilómetros de distância, cinco anos depois dos violentos

acontecimentos de Palmela, explica-se por aquilo a que mais tarde se designaria “razão de

estado”249. Como bem viu Joaquim Romero Magalhães, um «escrivão da puridade» « não podia

deambular, desafecto ao Reino, pelas cortes da Europa, encerrando informações preciosas »250.

O caso revela como o desempenho “exemplar” podia conferir a um dado ofício um

grande protagonismo – contribuindo para afirmar uma nova configuração da administração,

ligando a prática e a teorização jurídica da “constituição política”. Porém, também uma

experiência traumática podia ditar o fim das virtudes associadas a um dado lugar de poder. Foi o

que sucedeu após a morte de Fernão da Silveira. D. João II optou por não mais nomear

«escrivão da puridade», sendo o despacho entregue a dois «secretários da Câmara régia»,

cortesãos da confiança do rei, Álvaro Lopes e António Garcês251. Neste sentido, a luta

conjuntural marcava de forma indelével as soluções “administrativas”. Contudo, convém

reconhecer que a “luta” se fez também com a memória institucional i.e., com os dados

conferidos pela experiência dos reinados anteriores e com a memória desses «governos», o que

levava a Coroa a mudar a configuração dos ofícios252.

Durante o século XV, além do «escrivão da puridade», outros oficiais da Câmara do rei

ganharam um assinalável protagonismo. De acordo com um estudo de Vasco Vaz, sobre o

247 Rui de PINA, Croniqua delrei Dom Joham II, Atlântida, Coimbra, 1950, Cap. XXXVII, pp. 56-63. 248 Rui de PINA, Croniqua delrei Dom Joham II…, Cap. XXXVII, pp. 56-63. 249 Entendida aqui como mera justificação de uma dada acção política, se bem que o conceito seja polissémico. Ver por todos Raison et Déraison d’état, Yves Charles Zarka (dir.), Presse Universitaires de France, Paris, 1994. 250 Uma boa síntese dos acontecimentos em Joaquim Romero MAGALHÃES, «Os Régios Protagonistas do Poder», No Alvorecer da Modernidade, (1480-1620), História de Portugal, vol. III, Estampa, Lisboa, 1997, 437-443. 251 Conde de TOVAR, «O Escrivão da Puridade», Estudos …, p. 61. 252 Note-se que grande parte da informação recolhida no estudo do conde de Tovar deve-se a um manuscrito, solicitado por D. Afonso V a Álvaro Gonçalves, versando precisamente sobre as «normas antigas que se observavam nos reinados» acerca das competências do «escrivão da puridade». Conforme sintetizava Álvaro Gonçalves, o rei mudava os «encarregos [dos ofícios] de huns em outros». O material recolhido dos reinados de D. João I e D. Duarte seria usado na elaboração do primeiro «Regimento do escrivão da puridade dado em 1540», Conde de TOVAR, «O Escrivão da Puridade», Estudos …, p. 75 e documento transcrito em apêndice, pp. 158-161.

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despacho de D. João I, os escrivães da Câmara e os escrivães da Fazenda, oficiais práticos,

voltados para o despacho quotidiano, vinham adquirindo crescente protagonismo253. Esta

multiplicação de ofícios agudizava a conflitualidade da Corte. O exercício do poder foi

conferindo ao rei uma dimensão mais “burocratizada”, modificando a natureza simbólica da sua

legitimidade, monopolizando espaços cada vez mais alargados de acção.

Para entender estes ritmos de mutação institucional, bem como a emergência de um ethos

administrativo da Coroa, deve procurar-se o sentido da “luta” de Corte.

No final do século XV, o rei de Portugal, D. João II, começou a ser, na feliz expressão

de Joaquim Romero Magalhães, «alguma coisa mais do que um senhor»254. Este «qualquer coisa»

prendia-se com a produção de uma ideia de poder régio baseada no conceito de “arbitragem”.

Nesta perspectiva, não deve espantar-nos o sacrifício do «escrivão da puridade»: parte da sua

função, como da explicação da sua rápida ascensão, prendeu-se com as virtualidades da sua

utilização como “testa de ferro” dos conflitos no contexto da expropriação dos direitos

“particulares” por uma soberania régia em ascensão.

Após o rápido esvaziamento do cargo ocorrido no reinado de D. João II, D. Manuel I

proveu um novo «escrivão da puridade», D. Diogo da Silva de Meneses, conde de Portalegre.

Todavia, terá sido por esta época que o cargo sofreu um primeiro golpe, recuando para uma

dimensão mais honorífica, de menor influência na decisão. Em todo o caso, conforme sublinhou

João Paulo Oliveira e Costa o processo de sedentarização da Corte teve consequência ao nível da

produção documental. O rei revelava uma estreita preocupação com o «governo» e segundo as

«Crónicas» de Damião de Góis assinava em público, pelo menos três vezes por semana,

auxiliado pelo «escrivão da puridade», pelos «escrivães da Fazenda» e «escrivães da Câmara

régia», permanecendo todos de joelhos em redor da mesa onde o rei assinava255.

Assim sendo, que competência foram então mantidas pelo «escrivão da puridade» no

reinado de D. Manuel I?

Em primeiro lugar, a importância do segredo régio continuava a impor que o cargo devia

ser exercido pelas pessoas com mais prática e habituadas aos assuntos do despacho. Em 1521 as

253 Vasco Rodrigues dos Santos Machado VAZ, A boa memória do monarca, os escrivães da chancelaria de D. João I (1385-1433), Dissertação de Mestrado, Faculdade de Lestras Universidade do Porto, Porto, 1995. 254 Uma leitura deste processo em Joaquim Romero MAGALHÃES, «As estruturas políticas da Unificação», No Alvorecer da Modernidade…, pp. 62 e ss. 255 João Paulo Oliveira e COSTA, D. Manuel I, Círculo de Leitores, 2005, pp. 125-126.

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Ordenações Manuelinas256 confirmaram a dimensão honorífica do ofício. Devia assistir a todos os

actos públicos da Corte, reduzindo-os a escrito e certificando-os, sendo por vezes nomeados

«escrivães da paridade», especificamente para esses actos. Tal com o «regedor», o «governador»,

o «chanceler-mor» e o «vedor da Fazenda», o «escrivão da puridade» gozava, nesta época, de

privilégios, graças e mercês, e liberdades” contemplados nas Ordenações, tirando partido de ser

uma das pessoas «mais chegadas» ao soberano no exercício do seu ofício257. Segundo o

Testamento de D. Manuel I, ficava estabelecido que, até o Príncipe D. João chegar aos vinte

anos e assumir o governo do reino, devia o «escrivão da puridade» substituir o conde de Vila

Nova na função de confirmar os «Alvarás» que tocassem à «Justiça». Contudo, confirmou-se a

redução da sua intervenção, ficando remetido a matérias «forenses».

Com D. João III, o cargo de «escrivão da puridade» sofreu novas convulsões. Depois de

D. António de Noronha258 foi nomeado D. Miguel da Silva (de Meneses), filho de D. Diogo da

Silva (de Meneses), primeiro conde de Portalegre e, como vimos, também «escrivão da puridade»

de D. Manuel I, o que confirma o acentuar dos laços de hereditariedade na transmissão do cargo.

As suas competências diplomáticas levaram-no a Roma onde alargou as suas influências na Santa

Sé e obteve a inclusão na lista de promoção cardinalícia de Paulo III em Setembro de 1539259.

Regressado à Corte, D. João III, talvez desagradado com um processo que decorreu á sua

margem, nunca permitiu que D. Miguel voltasse a Roma para ser investido cardeal. Este, sem

outra solução à vista, saiu de Portugal em 1541 em direcção a Roma, não obstante as tentativas

empreendidas por D. João III para travar o seu caminho260. Aí foi investido cardeal e não mais

regressou ao reino. Este incidente provocou uma ruptura na continuidade das nomeações. O

«escrivão da puridade» voltava a desobedecer ao monarca, tirando partido pessoal do acesso

256 OM, Liv. I, Tit. 2, nº 37. 257 OM, Liv. I, Tit 43. 258 Transitou do reinado anterior, continuando no serviço do rei. Referendou o diploma de 14 de Abril de 1524 e foi nomeado pelo rei como procurador no «Tratado de Casamento entre a Infanta D. Isabel e o Imperador Carlos V», segundo a procuração escrita pelo secretário do rei, António Carneiro, efectuada a 6 de Outubro de 1526, Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Escrivães...», pp. 196-197. 259 Sobre a evolução da actividade diplomática em meados do século XVI ver Pedro CARDIM, «A diplomacia portuguesa no tempo de D. João III, Entre o Império e a reputação», D. João III e o Império, Actas do Congresso Internacional comemorativo do seu nascimento, Lisboa, 2004, pp. 627-660 sobre D.Miguel da Silva ver p. 631 e biblio. aí cit. 260 O rei demitiu o «escrivão da puridade» das suas funções, confiscou todos os seus bens, considerando o novo cardeal romano impróprio para herdar ou legar bens do reino, e impondo severas penalizações para quem comunicasse com D. Miguel da Silva ou tratasse negócios seus. De nada valeram as instâncias diplomáticas da Santa Sé. D. João III chegou mesmo a tentar várias soluções para conflituar a relação entre o cardeal o papa, sem sucesso. Segundo a Carta do rei o «escrivão da puridade» ter-se-ia ausentado do reino sem a devida autorização, indo a Roma para ser investido cardeal sem que, entretanto, tivesse entregue no Paço as «cartas e escrituras de grande substancia e segredo que, como escrivão da puridade que era, em seu poder tinha», facto que conduziu à sua desnaturalização e suspensão do cargo que até aí tinha ocupado, Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Escrivães», p. 197 e ss. e Fortunato de ALMEIDA, História da Igreja em Portugal…, pp. 661-669 e extensa bibliografia aí citada.

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privilegiado aos corredores do poder. A dimensão patrimonial do ofício chocou com a

instrumentalização régia e o serviço do reino.

Este incidente foi rapidamente aproveitado por outros oficiais da Corte. Na ausência do

«escrivão da puridade», serviam os «secretários do rei», ou «secretários da câmara», tal como

aconteceu com António Carneiro e depois com Pedro de Alcáçova Carneiro, os primeiros

secretários a ocuparem de forma muito vincada o espaço da Corte261. O tratamento informal das

matérias, nas áreas da «Fazenda», «Mercês», «Petições» e «Cartas Régias» passou a ser controlado

por esta família de secretários, correspondendo a sua actuação a uma nova fase da “escrita

régia”. Como veremos com mais detalhe, os secretários faziam aqui a sua entrada de leão no

espaço privilegiado do despacho régio, provocando um conflito endémico com os «escrivães da

puridade», tensão que duraria, pelo menos, até cerca de 1600262.

c) O «secretário do rei».

Vimos como na organização dos oficiais régios, pelos séculos XIII-XIV, além do

«escrivão da puridade», um outro conjunto de ministros desenvolveu competências no controlo

dos «papéis» do rei. Denominados «escrivães» assumiam responsabilidades «mecânicas» no

despacho da «Câmara do rei». Como é sabido, esta dimensão mecânica tinha um sentido de

ofício técnico, pouco qualificado socialmente. Esse conjunto de servidores preparava e redigia

todo o despacho relacionado com os assuntos do monarca – na sua dimensão de “grande

senhor” – no âmbito da sua «Câmara» ou «Gabinete263. Podemos estabelecer o reinado de D.

Dinis (1279-1325) como o primeiro momento onde surge, com prova documental, a designação

de «secretário». Esta referência, pela raridade do termo à época, pode ser lida como forma de

distinção de um dos redactores documentais. Segundo Aragão Morato, no século XIV, o ofício

261 Pedro França REIS, Conselheiros e Secretarios de Estado de Portugal…, p. 58 e ss. Alcáçova Carneiro serviu nas funções de «escrivão da puridade», exercendo esse ofício sobretudo depois da morte do pai, António Carneiro, Secretário de D. Manuel e D. João III. Contudo, e não obstante o seu desempenho pontual nestas funções, o seu percurso será tratado no contexto dos secretários do rei. 262 Com D. João II, a tensão entre o «secretário» e o «escrivão da puridade» era já manifesta. Na «Fórma da Omenagem, que fazem os Alcaides móres dos Castelos das Cidades e Villas dos Reynos», o «preito e menagem» devia ser lido «alto» pelo «Escrivão da Puridade ou o pelo Secretario». Em todo o caso, seria o Escrivão da Puridade a assinar o documento, «e eu (...) Escrivão da Puridade que esta menajem por mandado do dito Senhor fez escrever, e estive ao tomar della, e tambem assiney». Ver J. J. L. PRAÇA, Colleção de leis e Subsidios para o estudo do Direito Constitucional Portuguez, vol. I, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1832, p. pp. 102-103. Veja-se ainda Garcia de RESENDE, Chronica de el-Rei D. João II, Biblioteca de Classicos Portuguezes, Lisboa, 1902, cap. XXVII. 263 A. H. de Oliveira MARQUES, Portugal na crise dos Séculos XIV e XV, Nova História de Portugal, vol. IV, Editorial Presença, Lisboa, 1987, pp. 289-291.

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de «secretário» era ainda inferior ao de «escrivão da Câmara» (ou «escrivão d’Elrei») e, claro, ao

«escrivão da puridade»264.

Os «secretários» foram por diversas vezes chamados a desempenhar a assistência de

embaixadas. A importância da informação de que passaram a dispor – desempenhados esses

serviços e acedendo esses oficiais a matérias e actores políticos de grande relevância – potenciou

o papel institucional dos «secretários» na Corte.

No âmbito do trabalho “mecânico” da produção documental, o «secretário» foi-se

notabilizando como assistente das Cortes. Um exemplo, entre os vários que podiam ser

apresentados, diz respeito à reunião de Cortes em Lisboa de 1439, onde dois «Secretários

d’Elrei» acompanharam os trabalhos265. Alguns «secretários» mais destacados podiam ser

providos como «escrivães da puridade», nesta época ainda o ofício mais relevante do

despacho266.

Em meados do século XV, mais propriamente no reinado de D. Afonso V, deu-se uma

generalização da designação «secretário». Um monumental estudo da burocracia régia entre 1439

e 1460, levado a cabo por Judite de Freitas, revela que os «secretários» começam

progressivamente a surgir cada vez mais sistematicamente no «protocolo» final das cartas de

subscrição régia267. Esta ascensão decorria em parte do trabalho dos «secretários» como

intermediários na elaboração e redacção dos documentos. Assim, a «Câmara do rei» ia

absorvendo as funções da Chancelaria, do mesmo modo que os «secretários» começavam a

preencher os espaços entre os «escrivães da puridade» e os «escrivães da fazenda». Em ambos os

casos, a sua preponderância devia-se a uma maior capacidade de acção, fruto da escassa

regulamentação do ofício.

264 Distinção concedida a «Estevão da Guarda pelos seus serviços ao rei», trabalhando como fiel depositário do segredo régio e responsável pelo despacho. Foi «Escanção mor, Procurador na trégua e concordia com o Infante Fr. Francisco Brandão», Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis e regentes de Portugal desde os antigos tempos da Monarquia até à aclamação de el-Rei D. João IV», História e Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, 2ª série, t. I, parte I, 1843, pp. 28 e ss. 265 Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários...», p. 32. 266 Lopo Afonso, surgiu como «Secretário d’Elrei» em 1440 e em 1442 foi «enviado» a Castela. A 5 de Março de 1444 recebeu o provimento de «escrivão da puridade», Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», p. 30. 267 Judite Antoniete Gonçalves de FREITAS, «Temos por bem e mandamos...», pp. 103-104.

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Porém, como é sabido, devemos entender estas designações de ofícios como «mercês»

que nem sempre tinham correspondência com uma funcionalidade especificamente

formalizada268.

Por exemplo, no século XV, o escrivão da Fazenda comportava uma dimensão fluida.

Podia, por vezes, a sua actividade confundir-se com a de um auxiliar coordenador do despacho

dos Vedores da Fazenda. Podia também acumular funções com o ofício de «escrivão da câmara»

e surgir na esfera do rei e dos mais altos oficiais da «Câmara régia». Mas podia ainda ser

estritamente afecto aos «vedores da Fazenda», apenas despachando assuntos de fazenda. No que

diz respeito ao despacho, a produção de documentos régios, continuou a ser controlada pelos

«escrivães da puridade», seguidos de perto pelos «escrivães da Câmara» e pelos «escrivães da

Fazenda». Apenas no final do século XV começa a estabilizar-se uma tendência muito constante

do cursus honorum da “burocracia” régia: os «escrivães da Câmara» de maior destaque no serviço

do rei, passavam a «escrivães da Fazenda» e depois a Secretários do rei269. Na verdade, os

«secretários» reconheciam ainda superioridade aos «escrivães da puridade», talvez em matéria de

conselho e condução de matérias, mas a partir do reinado de D. João II, davam já ordens aos

«escrivães da Câmara», ficando estes cada vez mais voltados para os assuntos “particulares” do

rei, com competências em matéria de redacção e execução prática dos “papéis”. Com a

emergência de um despacho corrente, acentuava-se a diminuição de influência da Chancelaria no

processo de decisão sobre «ordens régias», a não ser, por vezes, nos aspectos formais ou na

articulação jurídica das normas270.

No âmbito desta tendência, Álvaro Lopes – servindo nos reinados de D. Afonso V e D.

João II – foi um dos primeiros «secretário» a transcender a dimensão “mecânica” do ofício271. As

suas funções não se limitavam a escrever e a entregar cartas: assistiu aos conselhos do rei,

representou o reino em Roma e na corte dos Reis Católicos em missão diplomática. Contudo a

acção de Álvaro Lopes terá vindo a decair durante o reinado de D. João II, o que sublinha a

importância da ligação pessoal ao rei no protagonismo cortesão dos «secretários».

268 Sobre o estatuto do serviço na Câmara régia nos fins da idade média ver Rita Costa GOMES, The making of a court society..., pp. 257.259. 269Luís Rebelo da SILVA, História de Portugal nos séculos XVII e XVIII…, vol. V, p. 390. 270 Francisco Trigozo MORATO, “Memória sobre os Secretários dos reis..., p. 35. 271 IAN/TT, Chancelaria de D. João II, «Carta de Notario geral deste Reinos», Liv. 26 de D. Afonso 5º, fl. 14v. «Secretário» de D. Afonso V e sua «longa criaçam». Acompanhou o rei em África, nas representações diplomáticas e em batalhas com Castela. A figura de Álvaro Lopes merece um estudo de caso. Veja-se o estudo do Conde de TOVAR, As Memórias de Álvaro Lopes Secretário de lRei D. João II, Lisboa, 1932 e ainda Frazão de VASCONCELOS, Alguns Subsídios sobre Álvaro Lopes de Chaves, Secretário dos Reis D. Afonso V e D. João II, Separata da Revista de Arqueologia, vol. II, Lisboa, 1936.

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O reinado de D. João II correspondeu a um forte investimento da Coroa nos

«secretários». Para tal terão contribuído os acontecimentos traumáticos, atrás descritos, vividos

com o «escrivão da puridade». Pedro da Alcáçova, aproveitando a queda em desgraça de Fernão

da Silveira, foi quem mais se destacou no controlo dos «papéis» do rei, servindo também como

«notário público»272. Este «secretário» daria origem à linhagem dos Alcáçova Carneiro, família

que marcaria de forma irreversível a eficácia dos «secretários do rei»273. Porém, a memória dos

«escrivães da puridade» estava ainda demasiado viva para que pudesse decretar-se o fim das suas

virtualidades “administrativas”. Por outras palavras, existia ainda demasiado capital político nas

valências do «escrivão da puridade» para que o rei abdicasse de recorrer a essa funcionalidade na

disposição dos equilíbrios de Corte. Os «estilos» e a memória da actuação destes dois “tipos” de

servidores iriam marcar a “luta” entre cortesãos durante mais de um século. É deste conflito,

entre «secretários do rei» e «escrivães da puridade», que trataremos em seguida.

272 António Caetano de SOUSA, Provas, t. II, pp. 123 e ss. 273 Pedro da Alcáçova, sogro de António Carneiro, foi escrivão da Fazenda de D. João II, antes de ser secretário de D. Manuel. António Carneiro, seu genro, foi «Capitão Donatário da Ilha do Príncipe e do Conselho do Rei, Comendador da Ordem de Cristo». Casou António Carneiro com uma filha de «Pedro d’Alcaçova e teve como filho Pedro de Alcaçova Carneiro». Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», pp. 41-42.

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II O SECRETÁRIO: O SERVIÇO DO REI E DO REINO

NA FORMAÇÃO DE UM SERVIDOR (1530-1578)

A emergência de um «secretário do rei», entre os reinados de João II e D. Manuel I, não

correspondeu a uma consagração formal das suas competências, como sucedia em relação a

outros importantes ofícios da Casa Real, tal como os «chanceleres-mores» ou os «escrivães da

puridade», cujos privilégios estavam inscritos nas Ordenações do reino274. Deste modo, enquanto,

por exemplo, os «escrivães da puridade» beneficiavam de um longo rol de serviços prestados ao

monarca – sendo os seus titulares homens nobilitados – os «secretários» eram recrutados em

camadas intermédias do oficialato. Em todo o caso, na transição entre o século XV e o século

XVI, «os secretários» foram afirmando a sua intervenção na corte, quer pela apropriação de

algumas competências do «escrivão da puridade» quer pela criação de uma prática específica.

Dois factores devem ser tidos em conta nas páginas que em seguida acompanharão este

processo: a “luta” de corte estruturava a “repartição social do poder” mas, nesta repartição,

começava a verificar-se uma tendência de separação entre serviço do rei e serviço do reino.

1. O conflito pelo serviço do rei: «escrivães da puridade» e

«secretários»

Fizemos já notar que, no final do século XV, o «secretário» António Carneiro, depois de

iniciar os seus serviços como «escrivão da câmara», alcançou um razoável controlo do

«despacho». Após um tempo de conflitualidade com D. João II, o «secretário» recuperou o seu

protagonismo junto do rei, sendo investido na escrita do necessário ao cumprimento do

testamento do «monarca» em 1495.

A morte do rei e a transição de reinados não afectou esta evolução. Com D. Manuel I os

«secretários» continuaram a conduzir as práticas jurídico-testamentárias ocupando-se em muitos

274 IAN/TT, Chancelaria de D. João II, «António Carneiro, Carta de Escrivão da Câmara Real», Liv. 17, fl. 4 ; Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», p. 40.

70

outros assuntos de «governo». Na primeira década do século XVI, António Carneiro despojou o

«escrivão da puridade» do auxílio da decisão régia275. Porém, a indeterminação processual era

ainda grande. Para este primeiro momento na emergência do «secretário», como ministro

determinante na condução dos «papéis» do rei, concorreu o crescimento dos assuntos associados

às «conquistas», começando a mencionar-se, na documentação, a especificidade do despacho das

«matérias da Índia», em franca ascensão no reino276. Também a fixação da Corte e a emergência

de uma mais activa vida cortesã generalizou o cargo no âmbito dos serviços prestados a pessoas

reais277. A carta de nomeação de António Carneiro como «secretário» de D. Manuel, dada em 16

de Abril de 1509, invocava já a posse de todos os privilégios dos «Secretarios dos Reis seus

Antecesores». Nesta altura foi dado ao «secretário» o controlo sobre os registos da Chancelaria,

estabelecendo-se uma primeira ligação entre o «despacho da Índia» e o processo de concessão de

mercês. Estas novas competências, além de confirmarem formalmente a concessão de

«privilégios» aos «secretários», consagravam também uma nova “dignidade cortesã” do ofício.

Com D. João III manteve-se o crescendo de eficácia e dignificação do «secretário». O já

narrado episódio da nomeação de D. Miguel da Silva como cardeal – no momento em que

desempenhava as funções de «escrivão da puridade» do rei – desgastou ainda mais o prestígio do

cargo. O incidente implicou acontecimentos traumáticos – a exasperação do rei por não

conseguir controlar um dos seus mais importantes oficiais – condicionando, nos anos seguintes,

as possibilidades de actuação do «escrivão da puridade». O rei, agindo sempre com prudência –

tornou-se lendária a sua forma lenta de decidir – não voltou a conferir o cargo da escrita da

puridade a nenhum outro cortesão. Convém, no entanto, lembrar que, antes do conflito entre o

rei e D. Miguel da Silva, as atribuições do «escrivão da puridade» vinham sofrendo uma certa

erosão. De acordo com o que nos conta Ana Isabel Buescu, D. Miguel da Silva, antes de partir

para Roma, notou que o rei tinha reduzido as suas funções a actos externos e oficiais, correndo

«os negócios de vulto e os segredos mais importantes pela mão de António Carneiro, e depois

por Pedro da Alcáçova Carneiro», «secretários» que possuíam a confiança do monarca e a

“realidade” do poder278.

275 BA, 51 – 5 – 60, «Índices de várias histórias civis, indez das guerras da flandres por Antº Carnº», fls. 77v-86v, onde se verifica a especialização dos «secretários» no aconselhamento do rei em assuntos «politicos». 276 IAN/TT, Chancelaria de D. João III, Liv. 42, fl. 97. A Carta de nomeação de «secretário» passada a Pedro Alcáçova Carneiro, a 16 de Março de 1530, refere os serviços prestados nesta época, por seu pai, no «despacho da Índia». 277 IAN/TT, Chancelaria de D. Manuel I, «Secretario de El Rey, Carta a Jorge Garcês», Liv. 26, fl. 12v; «Secretario do Infante D. Afonso, Carta a Afonso Dias», Liv. 25, fl. 127v; «Secretario do Príncipe, Carta a Francisco Carneiro», Liv. 10, fl. 48v. 278 Sobre o «governo» de D. João III, Ana Isabel BUESCU, D. João III, Círculo de Leitores, 2005, pp. 181-190 e sobre o «despacho», pp. 219-223.

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Com efeito, a ascensão dos «secretários» decorria de uma transformação nas

características do «despacho». O expediente dos «negócios» tinha vindo a avolumar-se,

tornando-se mais complexa a sua resolução. Numa época em que a configuração dos cargos

dependia, em grande medida, da realidade conjuntural, alguns oficiais de Corte – «secretários»,

«escrivães da Câmara» e «escrivães da Fazenda» – tinham aproveitado o enfraquecimento do

«escrivão da puridade», e os consequentes momentos de indeterminação de competências, para

ganharem espaço, chamando a si o maior número de «matérias».

António Carneiro, o «secretário» que tinha adquirindo maior relevo no espaço da Câmara

régia, vai apostar no fortalecimento do seu cargo, ganhando legitimidade nos actos da decisão e

constituindo-se no mais importante coordenador do despacho de D. João III. Nas palavras de

Joaquim Romero Magalhães, os «secretários» actuavam na «sombra», tentando potenciar a sua

crescente – mas ainda frágil – valia cortesã. Lembre-se que os seus «privilégios», apesar de serem

confirmados nas «Cartas de nomeação» não tinham qualquer reconhecimento formal nas

Ordenações do reino. Apesar desta fragilidade formal, procuravam distribuir as «migalhas de poder

que o rei deixava cair», sugerindo influências e multiplicando relações com os potenciais

peticionários279.

O evidente crescendo de poder do secretário António Carneiro confirma-se pelo amplo

leque de assuntos em que passava a ser solicitada a sua interferência nos processos de decisão.

Em primeiro lugar deve notar-se uma clara preponderância nos negócios ultramarinos:

controlo sobre o negócios de escravos280, sobre a partida de navios para a costa africana281 e

armação das frotas, providências sobre as equipagens, regulação dos canais de comunicação com

os vice-reis da Índia, onde se reportava a situação daquele estado e a despesa dos ofícios da

Fazenda Real282. Depois, o já clássico «governo» dos negócios diplomáticos, sendo que o

secretário trocava correspondência com os embaixadores, tendo acesso a importantes notícias

das mais diversas cortes, controlando os pagamentos dos ordenados dos enviados e as despesas

diplomáticas em geral, regulando a publicação de assentos de paz e a ratificação de tratados283.

Esta importância era notada pelo enviado de Castela que sublinhava a importância do secretário

e respectiva presença num «Conselho secreto» onde se decidiam as principais matérias de

279 Joaquim Romero MAGALHÃES, «Os Régios Protagonistas do Poder», No Alvorecer da Modernidade…, pp. 449-452. 280 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 4, n.º 102. 281 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 34, n.º 22. 282 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 66, nº 12. 283 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 50, nº 85, mç. 6, n.º 13, mç. 36, nº 98 e mç. 21, nº 51.

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«governo»284. Sintomático deste protagonismo nas relações diplomáticas é o facto da rainha de

Castela escrever, em 1527, a António Carneiro, pedindo ao rei, por intermédio do secretário, a

nomeação de António de Azevedo Coutinho, enviado da corte de Portugal, como chanceler-mor

do reino285.

Num segundo nível pode indicar-se a multiplicação de pedidos de favorecimento e a

agilização de processos bloqueados nas instituições da corte, de onde resultaram redes de

influências formadas por cortesãos agradecidos pelo «bom despacho» do secretário António

Carneiro286. Este podia obter «Instruções régias» que lhe conferiam poder para representar o rei

(1520)287. Eram também comuns os pedidos de intervenção do secretário para que, perto do

soberano, alcançasse nomeações de recém licenciados como «juízes de terras», confirmações de

pedidos de tenças ou dadas de ofícios288. O secretário ia acumulando informação, crescendo em

prestígio, o que lhe permitia ser solicitado para dirimir conflitos de jurisdição289, ser intermediário

de cartas de eclesiásticos para o rei, ter a capacidade de intervir junto de bispos e cardeais no

sentido de obter provisões de ofícios, colocações de igrejas, nomeações para visitações de

arcebispados290, ou a renovação de nomeações e outros negócios importantes291.

No que toca a uma maior extensão deste poder aos «povos» do reino, surgem,

igualmente, os primeiros indícios, através dos pedidos dos Concelhos ao secretário, no sentido

de conservarem privilégios (1533) ou rogando por intervenção que impedisse a «imposição de

Justiças» (1526)292. Neste sentido, emergem também funções relacionadas com o governo da

Fazenda293, como o controlo sobre a valia do pão e linho dos campos de Coimbra (1517), sobre

a entrega de bens de Fazenda, rendimentos de mosteiros, negociações fiscais em senhorios –

como a dízima do pescado em terras do duque de Bragança – arrematação e dívidas de contratos

(1527), pedidos para decisões sobre capelas (1528)294, tomada de contas nos almoxarifados

284 Correspondance d’un Ambassadeur Castilhan au Portugal, dans les annés 1530, Lope Hurtado de Mendoza, comentário e apresentação Aude Viaud, CCCG, Lisboa-Paris, 2001, pp. 90 e cartas onde o secretário é citado, pp. 400-437. 285 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 37, nº 34. 286 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 6, nº 61, mç. 12, n.º 45, mç. 40, nº 46. 287 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 26, nº 75 288 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 36, nº 97, mç. 48, nº 33, mç. 36, nº 87. 289 Por exemplo, entre o arcebispo de Braga e os corregedores (1523), IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 29, n.º 121. 290 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 20, n.º 14, mç. 19, n.º 19, mç. 8, n.º 124 e Parte I, mç. 14, n.º 61, mç. 21, n.º 13. 291 Na ausência dos arcebispos (sobretudo por morte), o secretário podia mesmo tomar decisões sobre a nomeação de ofícios e arrendamentos de terras, IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 49, nº 46 e mç. 13, nº 70. 292IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 34, n.º 1, mç. 54, nº 15. 293 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 21, n.º 44, mç. 26, n.º 51, mç. 37, nº 6 e mç. 43, nº 87. 294 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 38, nº 41 e nº 58, mç. 41, nº 126, mç. 44, nº 93.

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(1530) ou mesmo notícias sobre os negócios dos mercadores (preços, quantidades

transaccionadas e modo de pagamento)295.

Esta influência do secretário vai também crescer na área de influência do Desembargo

do Paço, passando António Carneiro a remeter cartas régias para despacho de «autos de justiça»,

pelo menos entre 1507 e 1533296. Os corregedores e ouvidores reportavam ao secretário decisões

da maior importância, tais como a libertação de presos (1519)297. Em 1526, o duque de Bragança

recorre ao secretário António Carneiro apresentando uma queixa sobre os desembargadores da

Casa da Suplicação avocarem a si demandas pertencentes ao seu «estado e jurisdição». O duque

solicitava ao secretário para que este produzisse junto do rei um «alvará» determinando a

nomeação de um «juiz privativo»298. Do mesmo modo, passam a ser numerosos os pedidos para

mudança de oficiais de terras299. Surgem também solicitações de intervenção nos processos de

justiça, como o controlo sobre a inquirição de testemunhas (1529)300

Para além do crescendo informal deste poder “executivo”, um outro tópico deve ser tido

em conta nesta fase do processo.

Na “economia da cultura” do Antigo Regime, as relações familiares estruturavam a

prática política301. Deste modo, a dimensão patrimonial do oficialato tinha repercussões ao nível

de uma reprodução “profissional” no espaço da família. Vimos como António Carneiro

beneficiou da actuação do seu sogro, Pedro de Alcáçova. Depois da morte de António Carneiro,

em 1545, será precisamente o seu filho, Pedro de Alcáçova Carneiro, a corporizar, de forma

ainda mais visível, a ascensão cortesã do «secretário». Num expressivo texto, produzido no

contexto das habituais relações de serviços – «Vida do Conde da Idanha, Pero de Alcáçova

Carneiro, escrita por ele mesmo»302 – o «secretário» Pedro da Alcáçova Carneiro narra o fio dos

acontecimentos no seu percurso “administrativo”. Apesar do cuidado que deve ser colocado na

interpretação desta narrativa, a sua dimensão biográfica permite surpreender alguns dos

295 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 39, nº 79, mç. 45, nº 80. 296 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 39, nº 78. 297 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 25, nº 125. 298 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 34, n.º 61 299 Tal como sucede em 1528, pedindo-se ao secretário que «mude» o meirinho de Campo Maior para Estremoz, IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 38, nº 107. 300 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 42, nº 12. 301 Ver o clássico trabalho de Daniela FRIGO, Il padre di famiglia. Governo della casa e governo civile nella tradizione dell’«economica tra Cinque e Seicento, Bulzioni, Roma, 1985. 302 Relações de Pero de Alcáçova Carneiro Conde da Idanha, do tempo que êle e seu pai, António Carneiro serviram de secretários (1515-1568), revistas e anotadas por Ernesto de Campos de Andrada, Imprensa Nacional de Lisboa, Lisboa, 1937.

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momentos chave no processo de ascensão político-social destes oficiais. Por conseguinte, a

descrição da vida do «secretário» impõe que nos demoremos um pouco no seu comentário.

Em primeiro lugar há que destacar a importância da «Casa» na formação de Pedro de

Alcáçova Carneiro, numa época em que os secretários se “forjavam” no mundo da Corte, sem a

mundividência da formação universitária das «Leis» e «Cânones»303. Assim, o filho do velho

«secretário» de D. João II e D. Manuel I, aprendeu no espaço da «família», por ordem do seu pai,

a ler e a escrever o «pouco latim que soube»304. Com treze anos, iniciou a escrita em «coisas de

seu cargo e ofício» crescendo, nas coisas que escrevia e na sua qualidade, sendo iniciado na

capacidade do segredo e da dissimulação. Ainda não tinha catorze anos quando viu pela primeira

vez D. João III, no processo de «assinatura das vias das cartas da Índia». Iniciou-se com

trabalhos rudimentares lançando pó sobre os documentos, prática que se destinava a impedir

que os sinais régios fossem danificados. O rei terá simpatizado com o «moço», rindo da forma

atrapalhada com que o jovem aprendiz de «secretário» empreendia aquelas tarefas.

Com efeito, Pedro Alcáçova Carneiro passou a comparecer regularmente no despacho

em todas as assinaturas, sempre na companhia do pai. Quando António Carneiro adoecia,

mandava o seu filho assistir o rei com as cartas prontas para assinatura, sendo muitas destas

cartas escritas pelo jovem Alcáçova Carneiro, mesmo quando se tratava de «matérias muito

graves, e para pessoas gravíssimas». A dimensão afectiva deste processo de influência, mesmo

descontando a auto-análise, parece inegável305. O próprio rei corrigia a leitura de Alcáçova

Carneiro, não sendo muito arriscado sugerir a inegável utilidade que o «monarca» teria em ser ele

próprio o responsável pela educação “prática” do seu «secretário». O rei emendava as cartas e

corrigia os documentos escritos pelo jovem oficial. Quando o «secretário» atingiu os dezasseis

anos, D. João III estabeleceu que Pedro da Alcáçova Carneiro estivesse presente no Conselho

do rei – mesmo quando se encontrava presente António Carneiro – não só na leitura das cartas

mas também durante o voto dos Conselheiros306.

Como era de esperar, o facto desencadeou protestos. Não há razões para duvidar da

animosidade, relatada por Alcáçova Carneiro, que os Conselheiros tinham pelo recém

promovido «secretário». Durante os processos de votação, e perante a importância das matérias

discutidas, punham os olhos no «secretário», mostrando na suspensão do voto, e «nos mais

303 O mais completo estudo sobre os modelos educativos da «Casa real», na sua relação com a virtude cortesã, Ana Isabel BUESCU, Imagens do Príncipe, Discurso normativo e representação (1525-1549), Cosmos, Lisboa, 1996, pp. 131-135. 304 Relações de Pero de Alcáçova Carneiro..., p. IX. 305 Relações de Pero de Alcáçova Carneiro..., p. X 306 Relações de Pero de Alcáçova Carneiro..., p. XI.

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gestos que para isso faziam», o seu desacordo perante o facto de se discutirem assuntos tão

relevantes ante a inexperiência e a juventude daquele oficial. De acordo com o «secretário», em

muitas ocasiões, o rei dissimulava e mandava que continuasse a discussão e as votações. António

Carneiro, nessa época ainda o «secretário» mais influente, manifestava a sua preocupação perante

a inaudita situação, temendo pelo futuro do filho, facto que assinala as dificuldades encontradas

pelos «secretários» no seu processo de ascensão307.

Estas “imagens” da vida cortesã não se encontram comprovadas por outra

documentação, mas, descontando a dimensão auto-representativa – comum neste tipo de

“dissimulação” biográfica –, tudo leva a crer que a situação fosse de facto embaraçosa e, até

mesmo, perigosa para as aspirações do «secretário».

Depois da morte de António Carneiro, Pedro da Alcáçova Carneiro foi adquirindo uma

maior autonomia no «despacho» régio.

Apesar de D. João III ter cometido a um dos mais poderosos cortesãos, o Conde do

Vimioso, D. Francisco de Portugal, a elaboração das cartas sobre as matérias mais relevantes, o

rei estabeleceu também que o conde fosse secundado por Pedro de Alcáçova Carneiro. Ocupou-

se o «secretário» nesta assistência entre os dezassete e os vinte e dois anos, trazendo as cartas ao

Conselho do rei, lendo e corrigindo as «matérias» segundo a decisão dos conselheiros308.

Sempre que o rei se ausentava da Corte, seguia-o o seu jovem «secretário». Apoiado por

influentes aristocratas, como o conde da Castanheira, D. António de Ataíde, então muito

próximo do rei, o «secretário» foi adquirindo influência no Conselho. Durante as deslocações da

Corte era uma outra destacada figura da aristocracia, o conde do Vimioso – como vimos,

responsável pelo despacho – quem financiava o «secretário». Apesar da conflitualidade latente

entre estes dois cortesãos – o conde do Vimioso e o Conde da Castanheira – Alcáçova Carneiro

manteve o relacionamento estreito com ambos, não perdendo nunca o equilíbrio entre as duas

parcialidades.

Com o envelhecimento do conde do Vimioso, o rei autorizou o «secretário» a «notar as

cartas» e a «lançá-las» ao Conselho. O «secretário» elaborava, por seu próprio punho, as

«lembranças» escritas onde constavam as matérias a despachar o que lhe terá causado alguma

307 Em diversas ocasiões, o desconforto de António Carneiro terá levado o velho «secretário» a «acenar para que o seu filho abandonasse a sala», acção que o rei normalmente impedia, confiando na estreita relação que mantinha como o «moço secretário», Relações de Pero de Alcáçova Carneiro..., p. XII. 308 Relações de Pero de Alcáçova Carneiro..., p. XIV.

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perturbação, dada a sua inexperiência. Não é necessário sublinhar que a redacção destas

«lembranças» pressupunham escolhas determinantes para a evolução do «governo» régio309. Os

documentos eram depois verificados com o Infante D. Luís, os dois condes, e a Rainha D.

Catarina. Beneficiando da experiência destes cortesãos, e adestrando a sua escrita nas reuniões

desta cúria régia, o «secretário» foi alargando a sua influência a áreas que não estavam, cerca de

1530, cometidas à sua jurisdição, tanto nos «despachos das pessoas» («Partes» e «Mercês»), como

nas matérias de «Fazenda». Nesta altura, o «secretário» passou a monopolizar o «despacho».

Quando o rei escrevia para D. Catarina – como sabemos, determinante no «governo» do reino310

–, qualquer que fosse a matéria, costumava estar presente Alcáçova Carneiro, velando pelo

segredo, «fecho» e transporte das cartas. Os documentos escritos por mão régia (ao «Papa», ao

«Imperador», aos «Reis», aos «Príncipes» e «Princesas»), eram todos notados pelo «secretário» que

elaborava as minutas, material que o rei depois emendava e reorganizava311.

Gradualmente, Pedro de Alcáçova Carneiro foi potenciando as suas próprias redes de

interesse, tirando partido do já largo conjunto de assuntos dominado pelo seu pai, o secretário

António Carneiro. Tratando de matérias decisivas, como os negócios da Inquisição e bula do

perdão geral para cristãos-novos312 ou os assuntos diplomáticos na cúria romana313, a sua

capacidade de intervenção, fruto desta conjuntura de proximidade real e favorecimento cortesão,

dispensou, durante a década de 1540, o reconhecimento jurídico-formal do seu poder. A sua

influência permitia utilizar instrumentos poderosos, no âmbito da conflitualidade de corte, como

a obtenção de alvarás de confirmação de sentenças (1540)314 ou suspeitas sobre juízes que

produziam pareceres desfavoráveis aos interesses dos cortesãos seus filiados. Por outro lado,

eram recorrentes as notícias de encomendas e fornecimentos da corte, ou por intermédio da

corte, que reforçavam a dimensão distributiva do poder do secretário315. Além disso, o secretário

utilizava a sua proximidade do rei para se insinuar. Os cortesãos solicitavam muitas vezes

conselhos, perante a recusa de mercês, sobre o procedimento a ter de modo a contornar os

mecanismos formais de recusa316. No despacho, o secretário adquiriu um protagonismo sem

precedentes. Em 1547, o cardeal-infante escreveu ao secretário Pedro de Alcáçova Carneiro,

pedindo a sua intervenção para que o rei despachasse «Provisão» autorizando a chancelaria do

309 Relações de Pero de Alcáçova Carneiro..., p. XV. 310 Sobre a participação de D. Catarina no «governo» ver a notável biografia recentemente publicada, Ana Isabel BUESCU, Catarina de Áustria, Esfera dos Livros, 2007. 311 Relações de Pero de Alcáçova Carneiro..., p. XVI. 312 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 79, nº 84. 313 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 103, nº 96. 314 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 68, nº 15. 315 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 104, nº 30 e nº 39. 316 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 106, nº 89.

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cardeal a selar cartas com selo de cera pendente317. Na verdade, as decisões em torno da

legitimidade documental no espaço da corte eram dominadas pelo secretário.

Depois da morte de D. João III, o «secretário», “naturalmente”, perdeu alguma da sua

influência, o que confirma, em certa medida, a veracidade do seu relato acerca da muito estreita

relação com o rei318.

Contudo, Pedro da Alcáçova Carneiro resistiu ao abalo traumático da mudança de

reinado. No momento da morte de D. João III foram convocados ao Paço, por ordem da rainha

Dona Catarina, os principais aristocratas do reino, os oficiais mais destacados dos Tribunais, os

Vereadores do Senado da Câmara de Lisboa e, como não podia deixar de ser, o «secretário»

Alcáçova Carneiro, o maior especialista da Corte na produção documental.

Os mais influentes cortesãos tinham notícia de um testamento, ditado pelo rei, e redigido

pelo «secretário», onde constavam os contornos de uma hipotética regência. Esses

«apontamentos» – sejam eles falsos, originais ou semi-verdadeiros – mesmo incompletos,

revelaram-se determinantes para o alinhamento das parcialidades na configuração da regência e

para a estabilização do reino, sendo de imediato aceites como fiéis319.

O «Testamento» nomeava como tutora do neto do rei – e herdeiro da Coroa –, D.

Catarina, lavrando a nova configuração de «governo». A «escritura», onde se confirmou a

regência da rainha, em 1557, apontava Alcáçova Carneiro como conselheiro do rei, seu «seu

secretario, e Secretario da dita Senhora Raynha, Notario publico geral em todos os regnos, e

Senhorios delles»320. Além disso, o «secretário» viu serem-lhe cometidas responsabilidades em

matéria de correspondência diplomática bem como a coordenação de todos os servidores

associados ao despacho.

317 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 79, nº 143. 318 Entre outras funções inerentes ao «governo da Casa», era o secretário quem determinava as refeições e mantimentos do rei, IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 75, nº 43. 319 Vale a pena transcrever a síntese de Barbosa de Machado: «Como pela morte del Rey D. Joaõ o III. ficasse o Reyno destituîdo de successor capaz, que o governasse, foraõ convocados em 14. de Junho ao Palacio por ordem da Rainha Dona Catarina os Duques de Bragança, e Aveiro, os Condes da Castanheira, e Vimioso, O Regedor da Casa da Suplicação, o Baraõ de Alvito, o Chanceler môr Gaspar de Carvalho com os Vereadores do Senado de Lisboa. Estava presente a este gravissimo Congresso Pedro de Alcaçova Carneiro, Secretario de Estado, o qual sendo preguntado, se El Rey fizera testamento, onde deixasse expressa a sua vontade à cerca da regencia da Monarchia? Respondeo, que a intempestiva accelaraçaõ, com que a morte o privara da vida, lhe impedira naõ acabar os apontamentos, que para este fim tinha começado, os quaes sendo vistos, e examinados por todas as pessoas, de que se compunha taõ authorizada Assemblea, os julgaraõ por legaes, e verdadeiros», Diogo Barbosa de MACHADO, Memórias para a Historia del rey D. Sebastião, t. I, Off. Joseph Antonio da Sylva, Lisboa, 1736, p. 30. 320 Diogo Barbosa de MACHADO, Memórias para a Historia del rey D. Sebastião…, pp. 33-42.

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Na verdade, são vários os factos que confirmam a posição cada vez mais destacada do

«secretário». O tom de adulação presente nas cartas do embaixador em Roma, Lourenço Pires de

Távora, a Pedro de Alcáçova Carneiro traduzia a sua posição privilegiada na Corte, o que nas

palavras de Romero Magalhães «só se entende com os muito poderosos»321. No mesmo plano,

D. Catarina conferia às cartas redigidas pelo punho de Pedro de Alcáçova Carneiro o mesmo

significado «cortesão» das cartas escritas pela própria mão da rainha322. Esta proximidade entre

D. Catarina e Alcáçova Carneiro decorria de uma combinação de interesses, tendo o «secretário»

desempenhado papel determinante na protecção dos direitos da «Regente»323. Assim, enquanto

durou a regência, Alcáçova Carneiro foi sempre o único «secretário da Rainha» adquirindo como

oficial maior do despacho um poder muito destacado324.

Por outro lado, a memória do «escrivão da puridade» estava definitivamente afectada.

Durante a regência de D. Catarina (1557-1562) e a do cardeal-Infante D. Henrique (1562-1568) -

que veremos com mais detalhe adiante - continuou a não se verificar nomeação formal do

«escrivão da puridade»325. D. Sebastião comprometeu-se a não prover o cargo enquanto não

ascendesse ao governo pleno, determinando que as funções do ofício fossem desempenhadas

por Pedro de Alcáçova Carneiro326.

Porém, uma nova conjuntura iria originar uma prática distinta.

Os «secretários», através da família Carneiro, tinham obtido uma vitória provisória. Mas

o seu protagonismo, não obstante o controlo sobre diversas matérias e variados oficiais da

Corte, assentava sobre «mercê régia», pelo que o cargo de «secretário» continuava a ter uma

dimensão ambígua. Queirós Veloso relembra que Frei Luís de Sousa nos Annaes de ElREi Dom

João Terceiro se referia à «secretaria de Pedro d’Alcaçova», facto que documenta a dimensão

321 Joaquim Romero MAGALHÃES, «Os Régios Protagonistas do Poder», No Alvorecer da Modernidade…, p. 534. 322 BPE, «Papéis de Manoel de Melo, Monteiro-mor», CXI/I-II. 323 Queirós VELOSO, «A política castelhana da Rainha D. Catarina de Áustria, o Casamento da filha com o filho de Carlos V», Estudos Históricos, Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1950, p. 130. 324 Francisco Morato, no seu estudo clássico, afirma que Miguel de Moura nunca foi «Secretário da Rainha», pois, no discurso sobre a sua vida, confessava que, por ordem de D. Catarina, apenas teria levado uns papéis ao Conselho, «cujo Secretário era Pedro d’Alcaçova». Morato baseia-se num manuscrito de Alcáçova Carneiro – à época na sua posse – original escrito em Lisboa, a 4 Outubro de 1566, que confirmava o desempenho destas funções. Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», p. 46. 325 No acto «público» da eleição do cardeal D. Henrique, a 23 de Dezembro de 1562, foi Pedro de Alcáçova Carneiro quem desempenhou as funções de «escrivão da puridade», recebendo o selo das armas reais e entregando-o ao cardeal, continuando como «Secretário do rei cardeal», até pelo menos 1566, Diogo Barbosa de MACHADO Memórias para a Historia del rey D. Sebastião..., pp. 31 e ss. 326 «Alvará de 17 de Novembro de 1561 assinado “Raynha”», [Museu Britânico. Add. 20 846, fl. 116], cit. por Conde de TOVAR, «O Escrivão da Puridade», Estudos …, p. 67.

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patrimonial deste controlo sobre os papéis, situação passível de ser alterada em caso de quebra

de confiança do rei327.

Os períodos de regência – fruto da quebra do «governo natural» do rei – acirravam as

parcialidades de Corte. Com o crescimento de D. Sebastião, e a aproximação do momento de

este tomar a condução do «governo», decorreu um novo confronto cortesão, do qual resultaram

novos equilíbrios institucionais. De acordo com Amélia Polónia, o «secretário» Alcáçova

Carneiro, responsável por grande parte da «estratégia» cortesã de D. Catarina, falhou a nomeação

para conselheiro do novo rei, perdendo o controlo do «despacho»328. Em 1568, D. Sebastião

tomou posse do «governo». A parcialidade do cardeal rei, que vinha acumulando pretensões

contra o «secretário», utilizou um velho recurso da “luta” de Corte: Lourenço Pires de Távora,

um cortesão com experiência diplomática, escreveu um «papel» ao cardeal D. Henrique,

«contendo advertências e avisos para bom regimento do Reino, pedindo que visse e considerasse

bem se seria de muito serviço de Deos, e d’ElRei restaurar o Officio d’Escrivão da Puridade »329.

Nesse mesmo ano, D. Sebastião, rompendo com a tutela da rainha, restaurou o ofício de

«escrivão da puridade», cometendo a restabelecido ofício grande parte das tarefas de «governo»,

nomeando para seu titular Martim Gonçalves da Câmara330.

Segundo a interpretação mais corrente, esta mudança no perfil do «despacho», com

profundas consequências na condução do «governo», decorreu da necessidade D. Sebastião se

encontrar livre para a preparação da «jornada em África»331. De acordo com a “memória política”

do reino, os «secretários» trabalhavam directamente na dependência da câmara régia, pelo que a

coordenação dos «secretários», e oficiais da câmara, costumava estar cometida a um «escrivão da

puridade»332. O facto de Pedro Alcáçova Carneiro ser na época o único «secretário» formalmente

empossado terá obrigado o rei a nomear um «escrivão da puridade» de forma a controlar a

influência cortesã do «secretário»333. Rafael Bluteau, um dos mais destacados «académicos» da

327 Queirós VELOSO, «A política castelhana da Rainha D. Catarina de Áustria…», p. 118. 328 Amélia POLÓNIA, D. Henrique, Círculo de Leitores, 2005, pp 182-83. 329 D. Manoel de MENEZES, Crónica de D. Sebastião cit. por Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Escrivães... », p. 199. 330 Doutor em Teologia, era reitor da Universidade de Coimbra desde 1554. Referendou a primeira carta como «escrivão da puridade» a 28 de Fevereiro de 1571. Conde de TOVAR, «O Escrivão da Puridade», Estudos…, pp. 68-69. 331 Ver por todos Joaquim Veríssimo SERRÃO, Itinerários de El-Rei D. Sebastião (1568-1578), Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1987. 332 Para uma reflexão sobre as ambiguidades da actuação dos «secretários» no final do século XVI, Marcello CAETANO, «História da Administração central, local e corporativa », Estudos de História da Administração Pública Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 1994, pp. 317-319. 333 Sobre este atribulado período a síntese de Maria Augusta Lima CRUZ, D. Sebastião, Círculo de Leitores, 2006, pp. 148-156.

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corte de D. João V, escreveu no seu dicionário que não havia melhor remédio para diminuir os

poderes de um valido do que criar ao seu lado um «escrivão da Puridade», logo acrescentando

que, no caso concreto da regência do cardeal D. Henrique, este arbítrio, bom em si mesmo,

tinha afinal correspondido a « desfazer um valido para fazer outro »334.

Martim Gonçalves da Câmara adquiriu, de facto, um grau invulgar de protagonismo,

acumulando “instrumentos” de poder: presidente do Desembargo do Paço e presidente da Mesa

da Consciência e Ordens, vedor da Fazenda» e «escrivão da puridade», além de fazer parte do

grupo restrito dos membros do Conselho Geral do Santo Ofício. Martim Gonçalves da Câmara

e o seu irmão, o confessor do rei, Luís Gonçalves da Câmara, construíram uma poderosa aliança.

Segundo o famoso Memorial de Pero Roíz Soares, o «escrivão da puridade» rapidamente se tornou

«tudo na privança» e o «tudo neste tempo»335.

Todavia, a “luta” de Corte continuou a ditar as regras da constituição do oficialato e o

«escrivão da puridade» acabou por encontrar novas dificuldades. A ruína do seu estatuto terá

passado por um exercício de poder pouco legitimado pelos cortesãos e atravessado por alguma

prepotência. Como veremos, alguns episódios relatados pelas crónicas, apontam neste sentido.

Mesmo não sendo possível comprovar a veracidade destes incidentes, importa tê-los em conta

como sinal da enorme resistência colocada ao exercício do «escrivão da puridade».

Vejam-se alguns sinais desta conflitualidade.

Em dado momento, tendo o rei passado um «Alvará» em favor de um oficial, Martim

Gonçalves da Câmara, contrariado pela decisão, terá rasgado o documento assinado pelo rei336.

Por outro lado, eram constantes as ironias dos oficiais contra os irmãos Câmara, sublinhando o

carácter inaudito do poderio dispensado pelo rei ao «escrivão da puridade». Um desses escrivães,

ao apresentar uns «papéis» para D. Sebastião assinar, quando o rei seguia em viagem

atravessando a fronteira do Algarve com o Alentejo, confidenciou que «dali por diante olhasse

sua Alteza como punha os pees, pois entraua no Reino de Martim Gonsalves»337. Descontado a

parte que cabia à rivalidade entre oficiais rivais no espaço da escrita do rei, o crescente poderio

“económico” da família Câmara irritava grande parte da Corte338. Segundo um outro documento

334 Rafael BLUTEAU, «Puridade», Vocabuário Português e Latino, vol. VI, pp. 832-833. 335 Memorial de Pero Roíz de Soares, M. Lopes de Almeida (ed.), Coimbra, 1953, p. 44. 336 Jornada del-rei dom Sebastião à África, Crónica de dom Henrique, INCM, Lisboa, 1978, p. 21. 337 Jornada del-rei dom Sebastião à África, Crónica de dom Henrique…, p. 22 e ss. 338 Queirós VELOSO, D. Sebastião, 1554-1578, Empresa Nacional de Publicidade, Lisboa, 1945, p. 86.

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anónimo da Biblioteca Pública de Évora, um incidente com uma Dama do Paço339, casada com

um tio de Gonçalves da Câmara, a ditar um rude golpe na sua posição na Corte. D. Margarida de

Noronha, a referida Dama, depois de enviuvar casou numa posição muito inferior340. O

«escrivão da puridade» tomou o caso a peito, mandando prender D. Margarida341. Perante o

incidente, os familiares de D. Margarida de Noronha moveram influência junto de D. Catarina

que intercedeu junto de D. Sebastião. O rei, já num processo de afastamento do «escrivão da

puridade» tratou com rudeza o caso. Entrando o «escrivão da puridade» quando a Rainha D.

Catarina e o rei conferenciavam, D. Sebastião terá perguntado com que autoridade se fizera

aquela prisão. De acordo com o relato anónimo, Martim Gonçalves da Câmara «foi correndo

pelo Paço, saindo para fora, sem atinar com as portas, por onde queria sair, tendo tantas vezes

entrado por elas, e nunca mais voltou ou se atreveu a tornar ao Paço, marchando logo para fora

da Corte. El rei o não chamou mais, e tanto a rainha como D. Henrique se aborrecerão dele, de

maneira que nem o seu nome queriam ouvir»342.

Episódios como estes terão minado a confiança que o rei depositava no seu «escrivão da

puridade».

O facto é que durante a primeira expedição de D. Sebastião a África, Martim Gonçalves

da Câmara não acompanhou o rei. Retirado da Corte, durante esse período, no convento de S.

Domingos de Benfica, perdeu o controlo da situação. Após o regresso do rei, a 2 de Novembro

de 1574, a intimidade entre D. Sebastião e alguns dos mais novos aristocratas (D. Álvaro de

Castro, Cristóvão de Távora e Luís da Silva) tinha crescido durante a jornada, situação que ditou

o afastamento de Martim Gonçalves da Câmara. A estes factos, juntou-se a 15 de Março a morte

de Luís Gonçalves da Câmara, uma conjugação sombria, a que Maquiavel teria chamado a

339 D. Margarida de Noronha - filha de D. Pedro de Noronha, senhor de Vila Verde e de sua mulher D. Violante da Silveira - casada com António Gonçalves da Câmara, todos das primeiras famílias do reino. Depois de enviuvar, D. Margarida passou para o Paço da Rainha, D. Catarina, mulher de D. João III. 340 Marçal Nunes da Costa, que também era viúvo, com filhos de D. Vera Gentil, filha de Gaspar Palha, que fora embaixador de D. João III. 341 BPE, Fundo Manizola, «Motivo porque acabou o Ministério de Martim Gonçalves da Câmara primeiro Ministro de El rey D. Sebastião», cod. 592, nº 10, onde se pode ainda ler: «(...) foi algemada nas mãos, e posta sobre huma mula albardade, sahio de sua caza, acompanhada da justiça, que a foy levando pela Rua direita da Sé, e hindo defronte da porta da Igreja de S. António atirou-se ao chão, cuidando que a queriam matar em alguma praça pública». 342 BPE, «Motivo porque acabou o Ministério de Martim Gonçalves da Câmara…», cod. 592, nº 10, os relatos do fim do “ministério” de Martim Gonçalves da Câmara levantam inúmeros problemas de interpretação. A validade do documento aqui citado pode mesmo ser posta em causa se pensarmos que Martim Gonçalves da Câmara surgirá no momento da negociação de Portugal por Felipe II como um forte opositor da solução proposta pelo enviado da Monarquia Católica, Cristóvão de Moura. De resto, esse facto pode ter originado a produção de “manuscritos políticos” contra o antigo «escrivão da puridade».

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“influência da fortuna” – sem dúvida, a principal inimiga da estratégia cortesã. Em 1576 o antigo

«escrivão da puridade» abandonou o Paço sem qualquer voto de confiança do rei343.

Em todo o caso, também na interpretação historiográfica, a “luta” de Corte introduz o

seu ruído dificultando a reconstrução da “queda” de Martim Gonçalves da Câmara como

principal «ministro» de D. Sebastião. Na verdade, segundo o «secretário» Miguel de Moura –

outro dos seus fortes opositores, a quem nos referiremos mais adiante – apesar da nomeação do

«escrivão da puridade», este não «teria inteiro uso do officio nas cousas de estado, e assim foi que

nem carta de provisão deste officio teve, e eu tomei sempre as menagens, e tinha o sello da

Puridade, nem elle poz nunca vista nos papeis da secretaria»344. Martim Gonçalves da Câmara

teria sobretudo controlado o «despacho da Justiça» embora, como sabemos, isto significasse ter

acesso a um amplo leque de matérias345.

Como se pode constatar, e numa primeira visão de conjunto sobre os processos que

estamos a descrever, existia uma grande indeterminação institucional quanto a estes ofícios de

escrita. Ofícios sem «Regimento» eram ainda, sobretudo, instrumentos modelados pelos seus

titulares e pela luta de corte. O percurso de Martim Gonçalves da Câmara mostra bem até que

ponto as sociedades curiais podiam suportar imprevisíveis e fulgurantes carreiras “políticas”

desenvolvidas no seio de uma estrutura familiar de poder. Fica também claro como, por vezes,

era precário e contraditório o poder do rei, podendo ser subalternizado no despacho dos

negócios, ainda que o monarca continuasse a deter a “chave” da posse sobre os ofícios346.

343 Conde de TOVAR, «O Escrivão da Puridade», Estudos …, p. 70. 344 Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e Vida de Miguel de Moura escripta por elle mesmo, Lisboa, 1840, p. 132. 345 Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e Vida de Miguel de Moura…, pp. 121-122. 346 O tema merece um estudo específico. Ver Manuel Álvares PEGAS, Commentaria ad Ordinationem regni Portugaliae, t. VII, Ulyssipone, 1682, «Como El Rey pode tirar os officios da Iustiça & da Fazenda sem ser obrigado à satisfaçam», pp. 462, informação de feitos em que se disputavam ofícios de escrivão da fazenda e escrivão da Coroa, em questões de hereditariedade e disputa, PEGAS, Commentaria..., t. VII, pp. 467-524. De igual forma há copiosa informação sobre a suspensão de oficiais «acusados de erros», PEGAS, Commentaria..., t. VII, pp. 525-552. Duas excelentes abordagens do tema em, António M. HESPANHA, As Vésperas…, pp. 502-522 e Fernanda OLIVAL, As Ordens Militares e o Estado Moderno, Honra, Mercê e Venalidade em Portugal (1641-1789), Estar, Lisboa, 2001, pp. 126 e ss.

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2. O «Reino» e a «Índia»: os «secretários» e a construção do

«despacho».

Observámos como o protagonismo de Pedro da Alcáçova Carneiro originou a nomeação

de um «escrivão da puridade» e como, consequentemente, o seu poder provocou a oposição de

novos oficiais. Os alinhamentos da “luta” de Corte iam sendo determinados pelo controlo do

«despacho».

Na verdade, no plano menos espectacular do quotidiano “burocrático”, o «governo» das

matérias ia condicionando o perfil dos oficiais. Entre 1569 e 1578, apesar de todos os reveses

sofridos por Alcáçova Carneiro na coordenação do «despacho», o ofício de «secretário»

significou o acesso a um conjunto de procedimentos técnicos, menos conotados com a

condução do «governo». Não obstante o facto dos «secretários» continuarem a viver numa

posição muito ambígua, entre a dimensão «mechanica da escripta» e os contactos e influências

que o acesso aos «papéis» ia garantindo347.

Perante esta ambiguidade, importa fazer o ponto da situação, reconstituindo as divisões

no «despacho» régio.

Segundo o clássico estudo de Aragão Morato existiu, no século XVI, uma primeira

divisão de «escrivaninhas» entre Reino e Fazenda348. No entanto, não se encontram registos de

cartas passadas a «secretários da Fazenda». O que Aragão Morato procurava destacar seria a

emergência da escrita da Fazenda – confundindo-a com uma «Secretaria» – matéria que tinha

adquirido um especial relevo no «despacho», quer pelo tratamento de matérias ligadas à

“administração” do império, quer pelo maior destaque do despacho relativo à apreciação de

«mercês»349. Este antigo costume de resposta às «petições», apanágio do vínculo entre rei e

vassalos, tendia a fixar-se como acto pertencente à esfera dos «secretários». Todo este avolumar

da informação levaria a Coroa a produzir divisões no tratamento das matérias.

Foi em torno dos assuntos da «Índia» que se produziu uma primeira divisão de relevo.

Assim, surgiu uma primeira referência formal, associando o «secretário» com a «Índia», tal como

consta do «Alvará de 16 de Março de 1530» criando o « hoffycio de secretareo », ordenando o rei

que todos os « despachos e cousas das ditas partes da Índia e de todos hos outros reynos e

347 Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e Vida de Miguel de Moura …, p. 113. 348 MORATO, Francisco Trigozo «Memória sobre os Secretários dos reis...», pp. 49-50. 349 Sobre a evolução do despacho ultramarino, João Paulo Oliveira e COSTA, «A formação do Aparelho Central da Administração Ultramarina no século XV», Anais de História de Além-Mar, II, CHAM, Lisboa, 2001, pp. 91-102.

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provenceas » fossem cometidos a este oficial350. Para este trabalho foi nomeado Pedro de

Alcáçova Carneiro que servia como «secretário» do rei351. Apesar de não existir uma divisão

formal em torno do despacho das «cousas da India», sendo tratados os seus negócios pelo

mesmo «secretário do Reino», um largo conjunto de competências «ultramarinas», herdadas das

funções de António Carneiro, iam sendo associadas a um conhecimento específico com os seus

circuitos próprios. O «governo» da chegada dos galeões352, os assuntos de guerra e diplomacia no

«Estado da Índia»353, os «negócios da Fortaleza da Mina» (1559)354, o governo do Brasil e a

resposta às tentativas de ocupação do rei de França355, as ordens sobre «gente e matimentos para

armadas» (1561)356, as notícias sobre a cidade de Tânger e as movimentações de guerra no norte

de África (1562)357, eram matérias por vezes associadas a uma esfera de decisão independente

dos assuntos do reino.

Além disso, começou a intensificar-se uma ligação institucional entre o «despacho» da

Índia e o «despacho» da Fazenda. Estes laços nasceram da antiga atribuição do expediente dos

«negócios da Índia» ao escrivão da Fazenda, actuante na Câmara régia, antes mesmo do

crescimento institucional em Casa da Índia358. Conforme clarificou recentemente Ana Isabel

Buescu, tanto os vedores da Fazenda como os escrivães da Fazenda estavam, desde há muito na

Coroa portuguesa, associados ao «despacho» régio em matérias muito diversas, tratando de

assuntos muito vastos como o «governo» da Fazenda ou a assinatura da documentação359.

Este crescimento do «despacho», tal como a decorrente multiplicação de oficiais

necessários ao tratamento dos «papéis», provocou alterações na estrutura da «secretaria do

Reino». Esta fluidez administrativa entre as matérias da Fazenda e da Índia, levou Francisco

Rebelo da Silva, na sua História de Portugal dos séculos XVII e XVIII, a referir-se a uma divisão de

Secretarias entre «Reino» e «Fazenda», talvez influenciado pelo estudo de Francisco Morato360.

Na verdade, tornava-se cada vez mais “natural”, de acordo com a “economia da graça”, uma

350 IAN/TT, Chancelaria de D. João III, Liv. 42, fls. 97-97v. 351 Francisco M. da LUZ, O Conselho da Índia, contributo ao Estudo da Historia da Administração e do Comércio do Ultramar nos principios do século XVII, Lisboa, 1952, p. 72. 352 IAN/TT, IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 100, nº 124 e mç. 106, nº 138. 353 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 102, nº 47. 354 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 102, nº 47 e mç. 103, nº 57. 355 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 104, nº 114. 356 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 104, nº 139. 357 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 106, nº 30. 358 Joseph Newcombe JOYCE, Spanish influence on Portuguese administration, a study of the Conselho da Fazenda and Habsburg Brazil, 1580-1640, University of Southern California, 1974, pp. 45-48; António M. HESPANHA, As Vésperas..., pp. 237-239 e 245. 359 Ana Isabel BUESCU, D. João III..., p. 220 e ss. 360Francisco Rebelo da SILVA, História de Portugal dos séculos XVII e XVIII…, vol. V, pp. 402 e ss.

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cisão no «despacho» da Fazenda – nessa época misturado com as matérias da «Índia» e do

«Reino» – de modo a separar as despesas do provimento das restantes matérias. Divisão

correspondente à separação entre a atribuição de mercês, feita no espaço da Câmara régia, e o

tratamento da matéria ordinária, efectuado nas Vedorias361. Todavia, cerca de 1569, existiriam

apenas duas separações claras, ainda que nesse momento sem confirmação documental: «Reino»

e «Índia». De acordo com o exaustivo estudo de Francisco Mendes da Luz, a separação de uma

«Repartição da Índia» decorreu do avolumar dos «papéis» ultramarinos nas «escravaninhas dos

escrivães da Fazenda e do Reino»362.

Terá sido apenas depois de Pedro da Alcáçova Carneiro ser afastado da Corte que, pela

primeira vez, se deu a nomeação efectiva de um «secretário da Índia». Seria um escrivão da

Fazenda, Duarte Dias de Meneses, a tomar conta deste novo segmento do «despacho»363. Apesar

da Carta referir a data de 15 de Novembro de 1571, ordenava o pagamento dos «vencimentos do

ofício deste Julho de 1569», atribuindo-se a posse das matérias da «Repartição da India Minas

Guine Brasyl e Ilhas»364. A par deste reconhecimento formal, confirma-se uma certa distinção do

cargo por meio da «escrituração do acto de menagem» do Vice-Rei do Estado da Índia, feita daí

em diante pelo «secretário da Índia»365. Quanto às matérias do «Reino» – «negocios e cousas da

Repartição do Reino e Africa e embaixadas» – foram cometidas a outro escrivão da Fazenda,

Miguel de Moura, nesse mesmo ano de 1571366. Com a morte de Duarte Dias de Meneses em

África, em Agosto de 1578, passou o «secretário do Reino» a ocupar-se do «despacho» da Índia,

«correndo com ambas as repartições» até o ano de 1584367.

Com efeito, a «Índia» impunha-se como uma matéria da maior importância, sobretudo

no âmbito das mercês. Tanto mais que Duarte Dias de Menezes, «secretário da Índia», terá

desempenhado funções como «secretário do Reino», talvez em virtude do crescente

361 Maria Leonor G. da CRUZ, A Governação de D. João III, a Fazenda Real e os seus vedores, Centro de História da UL, Lisboa, 2001. 362 IAN/TT, Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, «Carta a Duarte Dias», Liv. 27, fl. 343v; Francisco M. da LUZ, O Conselho da Índia…, p. 69-72. 363 IAN/TT, Chancelaria de D. Sebastião, Confirmações Gerais, «Duarte Dias, Carta de Escrivão da Fazenda Real», Liv. 1, fl. 218 364 IAN/TT, Chancelaria de D. Sebastião, Doacções, Liv. 27, fl 343 v. 365 Francisco Mendes da LUZ, O Conselho da Índia…, p. 72. 366 IAN/TT, Chancelaria de D. Sebastião, Liv 25, fl. 205v. 367 Francisco M. da LUZ, O Conselho da Índia…, pp. 72-75.

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protagonismo de Miguel de Moura, que aspirava ascender a uma posição de coordenação geral

de maior prestígio cortesão368.

Cumpre agora observar com mais detalhe o percurso de Miguel de Moura uma vez que a

sua ascensão na Corte corresponde a uma fase determinante da emergência dos «secretários».

Miguel de Moura iniciou o serviço da escrita como escrivão da Fazenda369

acompanhando D. Sebastião no despacho e tirando partido de uma actuação alargada entre os

«negócios públicos»370 e a Câmara Régia, tanto no «governo» do reino, «como em escrituras

particulares»371. Em todo o caso, o seu percurso revela que o percurso dos «secretários» era ainda

muito marcado pelos aspectos “aviltantes” da escrita.

Numa biografia, marcada pelo tom das «relações de serviços», diz ter sempre rejeitado o

encargo de receber «petições», porque «este genero de occupação repugnava a sua natureza», isto

apesar da rainha D. Catarina ter pretendido nomeá-lo para o efeito. Este contraditório

comportamento – que levava os ministros da corte a disputarem um cargo, para depois

renunciarem – pode explicar-se pelo controlo das respostas às «petições» e mesmo pelo ethos do

serviço onde a obtenção da «mercê» podia não corresponder a um exercício efectivo do cargo372.

Um dos muitos exemplos diz respeito à forma como Moura disputou o «despacho das mercês»

com João Álvares de Andrade. Numa outra dimensão, Miguel de Moura dizia-se avesso ao trato

com «multidões», tarefa a que não podia eximir-se o responsável pelas «petições». Este cargo

acabava por ser ocasionalmente desempenhado por diferentes oficiais da Câmara régia, tal como

sucedeu com Sebastião Dias, André Soares ou Manuel Quaresma Barreto373.

368 Duarte Dias de Meneses terá passado um «Alvará», feito em Évora a de 21 de Outubro de 1573, cit. por Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os secretários dos reis...», p. 53. No mesmo sentido, Luís Rebelo da SILVA, História de Portugal dos séculos XVII e XVIII..., vol. V, pp. 408-409. 369 Órfão, foi criado pelo conde da Castanheira. Para uma visão alargada do percurso biográfico de Miguel de Moura ver Francisco de Sales LOUREIRO, Miguel de Moura, 1538-1599, Secretário de Estado e Governador de Portugal, Lourenço Marques, 1974. 370 Expressa por exemplo na representação do mando régio em Cortes: «e eu Miguel de Moura do Conselho de S.A. seu Secretario; me mandou S.A., que de sua parte propuzesse, e dissesse aos ditos Estados, que a causa, por que mandou chamar as Cortes, (como S.A. lho já comunicou) foi para tratar da quietação, e assocego destes Reynos », «Auto das Cortes de Lisboa, congregadas no ano de 1579, pelo Senhor Rei D. Henrique, com os Juramentos, que nelas se prestarão», J.J.L. PRAÇA, Colleção de leis e Subsidios …, pp. 148-151. 371 Sobre o início do serviço de Miguel de Moura, Francisco de Sales LOUREIRO, Miguel de Moura..., pp. 109 e ss. 372 Para um abordagem extensa da «economia da mercê», Fernanda OLIVAL, As Ordens e o Estado Moderno..., pp. 26 e ss. 373Manoel Quaresma, escrivão da Fazenda, desempenhou o serviço ocasional nas petições, sendo depois Vedor da Fazenda. Terá desempenhado funções como secretário na visita ao Alentejo (1573), na jornada a Guadalupe (1576) e em África (1578) onde morreu, Luís Rebelo da SILVA, História de Portugal dos séculos XVII e XVIII..., vol. V, p. 408.

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No entanto, o pouco prestígio da «mechanica da escrita» permitia, por outro lado, que os

«secretários» se impusessem por uma estratégia de desempenho “técnico”. Foi o que se verificou

com um diverso número de matérias, como a alteração da moeda – a questão dos «patacões» –,

onde o «secretário» mostrou capacidade de mando e destreza na produção documental de um

assunto tão delicado como as alterações monetárias. Todavia, a “dissimulação” cortesã

permanecia como factor determinante. Daí que o «secretário» tenha evitado acompanhar D.

Sebastião, numa viagem do rei a Almeirim. Não tendo a sua reputação devidamente

fundamentada, temeu afastar-se do seu ambiente, não arriscando o “confronto” com os

exigentes “itinerários régios”. A capacidade de medir com exactidão o tempo “político”, optando

por uma intervenção enérgica ou por um recuo estratégico, era um factor determinante para o

“sucesso” dos secretários. É certo que Miguel de Moura se tinha notabilizado em matéria de

Fazenda, sobretudo pela capacidade de tratar a informação e determinar a alteração da moeda.

Porém, não hesitava em considerar-se um «ministro cortesão» com tudo o que isso significava de

jogo político propriamente dito.

Apesar do relevo alcançado por Miguel de Moura, sobretudo depois de Martim

Gonçalves da Câmara ter perdido influência, cerca de 1574, convém sublinhar que a tensão entre

«secretários do Rei» e «escrivães da puridade» continuaria a marcar o perfil do «governo».

Se é um facto que o «secretário» ia lançando as suas raízes de uma forma cada vez mais

profunda, não é menos verdade que o «escrivão da puridade» parecia ainda capaz de corporizar

uma solução na organização do «despacho», misturando elementos do valimento, a partir de um

recrutamento socialmente mais qualificado, impondo por isso maior hierarquização quanto aos

oficiais da câmara régia. Por oposição, o «secretário», com a sua actuação de cariz «mecânico»,

em crescente articulação com o tratamento de questões de Fazenda e a monopolização dos

«papéis» do Conselho do rei, ia sedimentando a sua eficácia na cultura da Corte. Neste sentido, é

necessário observar de que forma a criação do Conselho de Estado potenciou o perfil do

«secretário», tarefa que levaremos a cabo nas próximas páginas.

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3. A emergência do «Conselho de Estado» e os «secretários do

estado».

De acordo com o processo que estamos a acompanhar, a “formação” do «secretário»

decorreu de um conjunto de funções auxiliares ao «governo» régio. Assim, a emergência do

«secretário de estado» não deve ser reduzida à criação de um secretário assistente ao «despacho»

do Conselho de Estado. Contudo, a criação deste órgão potenciou algumas das características do

ofício. Nas linhas que se seguem procuraremos mostrar que o funcionamento do Conselho e o

processo de afirmação do «secretário do estado» não se relacionam de forma linear.

Deste modo, devem reconhecer-se em primeiro lugar alguns aspectos que colocam a

criação do Conselho de Estado no âmbito da neutralização dos «secretários».

Antes de mais, a formalização do Conselho de Estado decorreu da necessidade de

legitimar a decisão do rei, fora dos conteúdos “técnicos” em crescente eficácia. Contribuíram

para a formalização do Conselho, tanto a prática dos anteriores monarcas, invocando-se o

“auxílio político do rei”374, como o papel que o «Conselho» tinha desempenhado numa

conjuntura de estabilização do poder, após a morte de D. João III, em 1557.

Em segundo lugar, deve aqui ser ponderada a influência do modelo castelhano. A

constituição do Consejo de Estado em Castela, em 1526, respondia, de certa forma, ao excessivo

protagonismo dos «secretários» de Carlos V, pretendendo balançar-se o governo jurisprudencial

dos letrados com o peso da integração da aristocracia no «governo régio», compensando a

ausência do imperador375.

No que diz respeito à Coroa de Portugal, segundo Maria do Rosário Cruz, o Conselho de

Estado pretendia impedir que o rei se servisse de um só colaborador, mas também

responsabilizar a acção do soberano «a nível interno», regulando o funcionamento da Corte

através de uma assembleia376. Tal como Francisco Sales Loureiro recorda, a criação do Conselho

de Estado trazia um certa carga de «neutralização política» pelo menos como era entendido pelos

374 Neste sentido, as sugestões de Lourenço Pires de Távora, cit. por Pedro CARDIM, «A diplomacia...», p. 659 e bibliografia aí citada. 375 Feliciano BARRIOS PINTADO, El Consejo de Estado de la Monarquía española, 1521-1812, Madrid, 1984; M.J. RODRÍGUEZ-SALGADO, The Changing Face of Empire, Cambridge University Press, Cambridge, 1988; José António ESCUDERO, «El Gobierno de Carlos V hasta la muerte de Gattinara, Canciller, consejos y secretarios», El Imperio de Carlos V, Procesos de agregación y conflitos, Bernardo Garcia Garcia (dir.), Fundación Carlos Amberes, Madrid, 2000, pp. 83-96. 376 Maria do Rosário CRUZ, As Regências na menoridade de D. Sebastião, Elementos para uma História estrutural, vol. I, INCM, Lisboa, 1992, pp. 71-73, para o problema do estatuto dos conselheiros do rei desde o reinado de D. João II, pp. 63-68.

89

«três Estados» nas Cortes de 1562-1563 onde se pedia que na formação do conselho não

houvesse precedências nos votos377.

Estes aspectos interessam ao tema que nos ocupa na medida em que a formação do

Conselho de Estado pode ser vista como uma tentativa de neutralizar o “valimento” de um

ministro da Corte, fosse o «escrivães da puridade» ou o «secretário». No caso dos «secretários», o

perigo revestia-se de uma especial visibilidade, em relação a um passado recente, onde

despontava o exemplo de Pedro da Alcáçova Carneiro. A complexidade da relação entre o

«secretário do rei» e o Conselho de Estado torna-se bem patente se pensarmos que o Conselho

do rei começa por ganhar maior protagonismo durante a regência do cardeal D. Henrique,

opositor declarado do protagonismo adquirido pelo «secretário» Alcáçova Carneiro. Do mesmo

modo, o ano da formalização do Conselho, através do «Regimento do Conselho de Estado»,

dado em 1569, é, como ficou dito, precisamente o ano da reactivação do «escrivão da puridade»,

através de Martim Gonçalves da Câmara378.

Daí que a elaboração do «Regimento do Conselho de Estado de 8 de Setembro de 1569»

represente um enfraquecimento dos poderes dos «secretários» e não o seu momento “alfa”.

Observando as competências dos «secretários» assistentes ao Conselho de Estado fixadas

no «Regimento», veremos que não existe, de facto, uma correspondência linear entre estes novos

oficiais e o «secretário do rei» ao estilo de D. João II ou D. João III. O «secretário» devia assistir

nas reuniões do Conselho (três vezes por semana, de manhã ou de tarde) durante as duas horas

de reunião, não tendo poder de voto379. Devia assentar as «Resoluções» em papel, com os

principais fundamentos dos votos dos conselheiros. Feitos e assinados os assentos, seria o

«secretário» a levá-los ao rei, ficando ainda responsável pelas «Provisões» necessárias de acordo

com a sua jurisdição. Os «papéis» do Conselho podiam ser despachados por mais do que um

«secretário», conforme as matérias e o volume de trabalho em causa. A repartição de matérias

seria provavelmente aquela que vinha a desenhar-se desde 1530: «Índia» e «Reino», tendo cada

um dos «secretários» um livro onde registar as determinações tomadas nos «negocios da sua

repartição», depois dessas determinações serem assinadas pelo rei. Para as matérias pertencentes

a outros Tribunais, o «secretário» devia passar «Portarias».

377 Francisco de Sales LOUREIRO, D. Sebastião, antes e depois de Alcácer Quibir, Lisboa, 1978, p. 45. 378 Isto apesar da formalização do cargo apenas se ter dado em 1571, depois da neutralização de Alcáçova Carneiro. 379 Luís Rebelo da, História de Portugal dos séculos XVII e XVIII…, pp. vol. V, 396-397.

90

No que diz respeito ao estatuto destes «secretários», não deve confundir-se a sua posição

cortesã com aquela ocupada pelos «secretários» do rei. A elaboração de um «Regimento do

Conselho de Estado», em 1569, respondia essencialmente à criação de um órgão sinodal que era

uma reacção à concentração do poder «ministerial». Pouco tempo depois, em 1571, seriam

nomeados como «secretários» Duarte Dias de Meneses e Miguel de Moura, oficiais que podiam

servir eles próprios no Conselho de Estado ou enviar oficiais menores da sua «Repartição». A

situação era muito fluida, dependente das conjunturas e das matérias a discutir. Além disso a

menção de um «secretário do Conselho de Estado», não generalizou a designação documental

«Secretário de Estado», nomenclatura que, como veremos, se generalizou num contexto distinto.

O caso de Miguel de Moura ilustra a complexa relação entre a ascensão política do

«secretário» e a assistência ao Conselho de Estado.

O secretário conta que começou a destacar-se participando no Conselho do rei, a pedido

de D. Catarina, tendo com a Rainha relação de grande intimidade no «despacho»380. Porém, até

então, servia o rei em «escripturas particulares» em que não estando o «secretário» presente, ele

escrevia «da sua mão»381. Numa das sessões do Conselho, como era habitual nos ajudantes dos

«secretários», fez um borrão dos votos. A rainha pediu que desse o papel ao «secretário» titular

do ofício – provavelmente Alcáçova Carneiro –, o que Moura terá recusado justificando que

apenas ele podia ler aquele papel riscado. Lendo-o perante o Conselho, os ministros terão

considerado que não só expressava os votos como, na sua «substância», revelava mais «razões»

do que aquelas que os conselheiros tinham dado»382.

Duas conclusões podem ser tiradas. Por um lado, no que diz respeito à assistência ao

despacho pode concluir-se que podiam participar nesse trabalho outros oficiais, “«secretários»

do secretário titular” – como o próprio Miguel de Moura veio a possuir – escrivães da Câmara,

escrivães da Fazenda ou outros oficiais que os monarcas solicitassem383. Por outro lado, a

margem de intervenção destes oficiais já implicava alguma possibilidade de opinião no que toca à

elaboração dos «Pareceres». O reconhecimento que os conselheiros faziam da existência de mais

«razões», na expressão escrita dos seus votos, dos que as que tinham sido dadas oralmente,

sugere um importante trabalho de composição “técnica” do voto.

380 Miguel de Moura afirmou que, em diversas ocasiões, a rainha D. Catarina ordenou que abrisse «a porta de noite para lhe levar papeis, estando já o Paço fechado, com os moços do monte fora, e ele com cama feita, e sem mando», Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e Vida de Miguel de Moura …, p. 107. 381 Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e Vida de Miguel de Moura …, p. 121. 382 Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e Vida de Miguel de Moura…, p. 114. 383 Refere Miguel de Moura que Lopo Soares já antes da nomeação formal de «secretário» participava nos Conselhos de D. Sebastião e D. Henrique, Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e Vida de Miguel de Moura…, pp. 125 e ss.

91

Não obstante, o «secretário do Reino» podia coincidir com o secretário do Conselho de

Estado. Em 1570, os «Assentos copiados de hum livro delles feito pelo secretário Miguel de

Moura e assinados pelo Conselho de Estado (…)» revelam uma viva actividade do «secretário»

presente no Conselho. Os temas aí tratados versam sobre diplomacia, fortificação das praças e

assuntos militares384. Com efeito, o «secretário» Miguel de Moura utilizava a discussão das

matérias mais relevantes do Conselho de Estado para potenciar as relações no Paço, onde os

cortesãos reconheciam que «uns que eram do Rei, outros da Rainha e outros ainda do Cardeal e

que, somente ele [Miguel de Moura] era de todos os três».

Em todo o caso, os «secretários» podiam insinuar-se no serviço régio sem ser através do

Conselho de Estado. Tanto mais que, como bem notou António M. Hespanha, o Conselho de

Estado não desempenhava nesta época papel de coordenação. Tanto Pedro da Alcáçova

Carneiro como Martim Gonçalves da Câmara assumiram uma dimensão “ministerial” que

transcendia o trabalho de assistência ao Conselho de Estado385

4. Os secretários e a “castelhanização” do «governo»

A par da criação do Conselho de Estado, deve ser avaliado um outro aspecto

normalmente associado à emergência do secretário. Antes da integração na Monarquia Católica,

já se verificava na Coroa de Portugal um certo mimetismo entre os modelos castelhanos e

portugueses da organização do oficialato, quer pela criação de conselhos especializados no

aconselhamento da decisão política – como vimos, a criação do Conselho de Estado –, quer na

prevalência dos «secretários» como os funcionários mais aptos no apoio “técnico” da decisão386.

Neste capítulo, a questão era mais sensível.

As viagens de D. Sebastião colocavam sempre novas dificuldades na configuração do

«despacho», sobretudo se pensarmos que, não obstante os planos militares do rei, estava em

marcha um nova forma de legitimar o “processo político” e formalizar o seu «despacho escrito»,

além de uma profusão normativa.

Importa conhecer com mais detalhe as consequências destas transformações.

384 Documentos Inéditos para a História do Reinado de D. Sebastião, Joaquim Veríssimo Serrão (ed.), Separata do Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1958, p. 66. 385 António M. HESPANHA, As Vésperas..., p. 289. 386 Francisco Mendes da LUZ, O Conselho da Índia…, p. 71

92

Quando D. Sebastião partiu para África deixou no reino quatro Governadores,

juntamente com o «secretário» Miguel de Moura. Este ficou responsável pela difícil transição do

«governo régio», entre o rei ausente e o cardeal D. Henrique, sendo que este recusava o peso do

«mando», agravando-se esta situação com proliferação de decisões que não apoiava. Segundo D.

Sebastião, o «secretário» representava uma solução para «reduzir» as relações familiares a relações

“políticas” ; « não de tyo e de afilhado a padrinho mas como Rey a Infante, e Senhor a Vassalo »

387. A mediação de Miguel de Moura interpunha na relação familiar uma dimensão institucional.

O «secretário» tinha privilégios idênticos a todos os Governadores, tanto no voto como no

assento, acedendo às chaves do «selo régio»388. O facto de lhe não ser concedido o título de

governador foi justificado pelo rei, nas palavras de Moura, com a necessidade do «secretário»

ficar mais livre para mediar o «governo» sobre o reino, deixando-o por «governador dos

governadores»389. Contudo, talvez D. Sebastião soubesse ser de pouca prudência – podendo

mesmo ser considerado um acto de «tirania», mostrando extremo desrespeito pelos costumes da

Coroa – nomear formalmente um mero «secretário» como Governador do reino.

De qualquer modo, o «secretário» Miguel de Moura ia acumulando funções, adquirindo

grande preponderância na Corte390. Com efeito, os «secretários» procuravam “dirigir” o

«governo» neutralizando os órgãos da Coroa. Pedro da Alcáçova Carneiro teria tentado, quando

servia interinamente como «escrivão da puridade», obter a Presidência do Desembargo do Paço,

o que correspondia a uma tentativa de unificar dois dos principais instrumentos políticos: a

Câmara régia e o Desembargo do rei391. Miguel de Moura afirma que a Presidência do

Desembargo do Paço seria inerente ao ofício de «escrivão da puridade», que actuaria também

como Presidente da Mesa da Consciência, poderes que, até então, apenas tinham sido reunidos

pelo poderoso, Martim Gonçalves da Câmara392. Conforme mostrou Maria do Rosário Cruz, no

âmbito do controlo do processo de decisão política, os ministros do rei procuravam que o

Desembargo do Paço fosse mais dependente dos ministros directamente afectos ao rei,

387 Francisco de Sales LOUREIRO, Miguel de Moura…, p. 93. 388 O «selo régio» tinha-lhe sido entregue pouco antes da partida do rei, Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis... », p. 52 ; Luís Rebelo da SILVA, História de Portugal nos séculos XVII e XVIII…, vol. V, pp. 408-409. 389 Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e Vida de Miguel de Moura …, p. 123. 390 Com particular destaque para os «negócios diplomáticos entre 1579 e 1580, IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 111, nº 69 e nº 78. 391 Para uma reflexão sobre a evolução do Desembargo do Paço na segunda metade do século XVI ver Maria do R. CRUZ, As Regências na menoridade…, vol. I, pp. 103-114. Sobre a complexa questão da manipulação das presidências do Desembargo do Paço ver António M. HESPANHA, História das Instituições…, p. 357 e ss., sobre a fundamentação político-jurídica do Desembargo, ver João Pinto RIBEIRO, Lustre ao Desembargo do Paço, I, Oficina de José Antunes da Silva, Coimbra, 1729, pp. 45-50. 392 Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e Vida de Miguel de Moura …, p. 125.

93

acentuando também a comunicação, no decorrer do despacho, com outros tribunais do reino,

onde os escrivães da câmara desempenhavam um papel essencial393. Na verdade, pode distinguir-

se aqui uma tentativa para forçar um sistema disruptivo a uma “cerebração” que hierarquizasse

as decisões e disciplinasse os processos de circulação documental. Contudo, o horizonte dessa

mutação estava ainda distante.

A verdade é que a morte do rei D. Sebastião, nos areais do norte de África, em 1578, deu

origem a uma crise dinástica que voltaria a agitar a configuração do «despacho» e a distribuição

dos poderes na corte.

Durante o reinado do cardeal D. Henrique não ocorreu nomeação formal do «escrivão

da puridade». Importa notar que o «secretário» Miguel de Moura, recuperando uma prática do

tempo de D. João III, serviu como «escrivão da puridade» nos «actos publicos da Corte »394.

Contudo, num momento de profunda “crise”, “política e financeira”, a situação do «secretário»

continuava a ser muito incipiente do ponto de vista formal. Perante as complexas condições do

reino, Miguel de Moura afastou-se gradualmente do «governo».

Na verdade, não surpreende que o Cardeal D. Henrique, a pouco mais de um mês da sua

coroação, mandasse prender a 2 de Outubro de 1578, um antigo «secretário», Pedro da Alcáçova

Carneiro, intimando-o a responder a uns «Apontamentos» assinados pelo Corregedor da Corte,

Rui de Matos de Noronha, em que lhe eram imputadas graves culpas na precária situação

“económica” do reino e na própria «jornada de África»395. Além disso, era ainda acusado de ter

angariado meios financeiros de forma lesiva para todos os «estados» do reino396. Segundo

Queirós Veloso estes «Apontamentos», e mesmo a «ordem de prisão» do cardeal, respondiam a

uma opinião corrente no reino, à qual seria imprudente não dar seguimento. O «secretário»,

Pedro da Alcáçova Carneiro lembrava que o tratamento era inadequado e que mesmo os

«Apontamentos» não referiam nenhuma das acusações mais graves normalmente imputadas aos

«secretários» – não existia «traição, nem roubo, nem rompimento de segredo»397.

A verdade é que, neste último quartel do século XVI, apesar de um frágil estatuto

jurídico, o «secretário» afirmava o seu poder na Corte, o que lhe garantia, apesar dos

393 Maria do R. CRUZ, As Regências na menoridade..., p. 113. 394 Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Escrivães…», p. 205. 395 Queirós VELOSO, O reinado do Cardeal D. Henrique, vol. I, A perda da Independência, Empresa Nacional de Publicidade, Lisboa, 1946, p. 69. 396 Amélia POLÓNIA, D. Henrique…, p. 198. Também aqui, a estrutura das acusações sugere a castelhanização da Corte. António Perez, «secretário» de Felipe II seria envolvido num processo semelhante. 397 Queirós VELOSO, O reinado do Cardeal D. Henrique..., p. 70.

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“ostracismos” e dos “processos”, uma recorrente eficácia. Daí que perante os graves contornos

da “crise dinástica”, os «secretários» Pedro da Alcáçova Carneiro e Miguel de Moura vão ser

chamados a desempenhar um papel fundamental, como se em torno do «secretário» gravitasse já

um pouco da simbólica presença do poder, conferida pelo domínio dos «papéis», outrora

pertencente ao rei. Com efeito, começa a verificar-se um lento processo de «sacralização» do

poder do «secretário», decorrente do domínio sobre os «negócios» – as operações obscuras, os

pequenos favores nos conselhos, os ofícios solicitados, o controlo das informações de serviços –

ainda que no meio de uma encarniçada “luta” que iria colocar em causa os limites da

«monarquia» e a própria legitimidade do poder régio. O capítulo que se segue, procura descrever

este atribulado processo.

95

III

“MODERNIZAÇÃO POLÍTICA” E CONFLITO DE

«JURISDIÇÕES»: A CONSOLIDAÇÃO (1578-1640).

Se quisermos caracterizar a integração do reino de Portugal na Monarquia Católica,

devemos, antes do mais, sublinhar as transformações na forma de «institucionalizar a

“comunicação política”»398. Por conseguinte, devemos centrar a análise dos «secretários de

estado» no plano das ligações entre o “cérebro” da monarquia e os vassalos da Coroa de

Portugal, sabendo que o modo de «governo» passou a estar condicionado por aquilo a que

Fernando Bouza Álvarez designou uma « economia da ausência régia »399. A mutação no

equilíbrio dos poderes começou por criar instabilidade nas atribuições dos oficiais da Câmara

régia e dos «secretários» do Conselho de Estado em Lisboa. Contudo, a necessidade de alimentar

os fundamentos do poder régio – com o exercício “gracioso” da justiça – numa nova realidade

“constitucional”, onde a distância multiplicava a necessidade de intermediações, acabou por

potenciar – com o decorrer dos anos e o avolumar das «petições» – o papel destes oficiais,

seguindo-se a consolidação de um tipo de serviço “proto-burocrático”. Esta nova centralidade

do «despacho» – como veremos, bem presente no surto normativo dedicado a questões

processuais – acentuou ainda mais a transformação das “relações políticas” no reino. Sobretudo

porque na década de 1630, um feixe de questões em torno da representação do poder e da sua

concretização “burocrática”, conduziu os «secretários de estado» a uma expansão do seu raio de

acção, de onde sobraram consequências para o plano “constitucional” da Coroa de Portugal:

algumas foram cortadas pela raiz em 1640, outras nem tanto.

398 A expressão é de António M. HESPANHA, «O governo dos Áustrias e a “modernização” da constituição política portuguesa», Penélop, Fazer e desfazer a história, 2, 1989, pp. 50-73. 399 Fernando BOUZA ÁLVAREZ, «Introdução, Cartas, traças e sátiras, Política, cultura e representações no Portugal dos Filipes (1580-1668) », Portugal no Tempo dos Filipes, Política, Cultura, Representações (1580-1668), Cosmos, Lisboa, 2000, p. 23.

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A importância destas modificações levou António M. Hespanha a associar o «governo»

dos Áustrias a uma «“modernização” da constituição política portuguesa»400. Neste capítulo III

trataremos de descrever a actuação dos «secretários» e dos principais ofícios da escrita do rei em

todo este processo.

1. A «negociação de Portugal» e a escrita da integração.

Como é sobejamente conhecido, a partir de 1578, Felipe II negociou de forma demorada

os contornos do futuro «governo» do reino de Portugal, preocupando-se em especial com o

circuito dos «papéis»401. Contudo, não era simples mobilizar oficiais especializados e fidelizá-los a

métodos mais lestos de «despacho», sobretudo se pensarmos na distância que agora separava

Lisboa do novo centro “político”. Além do mais, esta forma de «governo» dificilmente seria

efectivada sem significativas concessões aos servidores do rei em Lisboa – tanto do ponto de

vista financeiro como no que diz respeito à alienação de parte das jurisdições reais –, tudo isto

com consequências contraditórias ao nível da “comunicação política”. Por outras palavras, a

hierarquização e agilização das cadeias de transmissão dependia de significativas concessões que

incluíam conferir aos elos dessas cadeias – escrivães, secretários – uma autonomia que,

inevitavelmente, serviria os interesses corporativos de uma “burocracia” em ascensão. Pedro

Cardim sugeriu que este tipo de resistência corporativa, no que diz respeito à concessão de

ofícios de «Justiça» e «Fazenda» no reinado de D. Filipe I, não foi facilmente harmonizada com

os planos de governo decididos em Castela402. Daqui resultaram inúmeros conflitos endémicos

que têm sido explicados no âmbito desta contradição insolúvel – entre a necessária concessão de

autonomias e a vontade de controlo – presente no “código genético” da integração da Coroa de

Portugal na Monarquia Católica, logo a partir de 1581403.

400 António M. HESPANHA, «O governo dos Áustrias…», pp. 50 e ss. Veja-se ainda Mafalda Soares da CUNHA, «O Império Português no tempo de Filipe III. Dinâmicas Político-Administrativas» investigação realizada no âmbito do projecto Optima Pars II – As elites portuguesas de Antigo Regime, Projecto POCTI/HAR/35127/99 financiado pela FCT/MCTES, (inédito). 401 Duas excelentes análises deste conturbado período em Fernando BOUZA ÁLVAREZ, Portugal en la Monarquia Hispanica (1580-1640), Filipe II, las cortes de Tomar y la genesis del Portugal Catolico, 2 vols., Universidad Complutense, Madrid, 1987 e Carlos J. Margaraça VEIGA, Poder e Poderes na crise dinástica (1578-1581), (Dissertação de Doutoramento), FLUL, 1999. 402 Pedro CARDIM, «Política e identidades corporativas no Portugal de D. Filipe I», Estudos em homenagem a João Francisco Marques, vol. I, FLUP, pp. 277-306. 403 Duas análises desta evolução muito detalhadas em António Oliveira, Poder e oposição política em Portugal no período filipino (1580-1640), Difel, Lisboa, 1991 e Jean-Frédéric SCHAUB, Le Portugal au temps du comte-duc d’Olivares (1621-1640), le conflit de juridictions comme exercice de la politique, Casa Velázquez, Madrid, 2001.

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Neste sentido, pareceu a vários dos mais influentes cortesãos em Madrid, que a definição

da estrutura administrativa podia transformar-se num problema sério, se a mutação não fosse

mediada por oficiais bem integrados nos «complicados» processos de «despacho» dos

portugueses. O duque de Alba, por exemplo, olhava com pouca tranquilidade para o problema

da tramitação dos papéis portugueses, temendo pelo impacto que a demora da assimilação dos

processos provocaria no governo404.

Além destes problemas, relacionados com a assimilação do «despacho» da Coroa de

Portugal, o recrutamento de oficiais do reino teria que ter em conta os equilíbrios cortesãos

estabelecidos no reinado do cardeal D. Henrique. Equilíbrio que, também ao nível do

«despacho», não convinha perturbar em demasia, sob pena de os enviados castelhanos em

Lisboa falharem uma negociação “sem armas”405. Acresciam a esta difícil situação de integração

“dinástica”, os aspectos potencialmente “explosivos” de qualquer mudança de reinado. Deste

modo, as alterações no perfil da administração teriam que se afigurar como uma damnatio

memoriae do tempo imediatamente anterior, a fim de convencer os corpos do reino da bondade

da nova solução de governo406. No entanto, o “factor «Castela»” impunha que as virtualidades

das novas soluções de governo não perturbassem em demasia os tradicionais canais da

comunicação entre o rei e os seus vassalos. Neste sentido, era necessário apresentar as vantagens

do “tempo novo”, mas moderando essa novidade com a manutenção do “estatuto reinícola” de

Portugal e a «antiguidade dos seus foros» – para utilizar uma expressão cara ao discurso político

da época –, não permitindo que o «governo» de Felipe II pudesse ser identificado com uma

«usurpação».

Neste capítulo, o acesso ao património documental da monarquia e a capacidade de

produzir discursos “políticos” eficazes conduziram os «secretário» ao primeiro plano da cena

negocial. Felipe II procurou rapidamente obter uma equipa de «secretários» e ministros que o

“aproximassem” de Portugal. Esta delicada negociação, decorrida entre 1578 e 1581,

transformou os especialistas da escrita num “capital político” de valor incalculável407. Assim,

ainda o cardeal D. Henrique reinava e já Felipe II, através de Cristóvão de Moura, seu enviado,

404 Fernando BOUZA ÁLVAREZ, Portugal en la Monarquia hispânica..., pp. 261-369 e p. 370. 405 Toda a questão jurídica evoluiu sobre este pano de fundo, Mafalda Soares da CUNHA, «A questão jurídica na crise dinástica», No Alvorecer da Modernidade…, pp. 465-472. 406 Fernando BOUZA ÁLVAREZ, «La magestad de Felipe II, Construcción del mito real», La Corte de Felipe II, José Martínez Millán (org.), pp. 37-72, sobretudo a p. 39. 407 São famosas as considerações de Cristóvão de Moura a propósito de «compor e tocar caveiras de mortos» dizendo que seriam de «virgens» a fim de pagar a Miguel de Moura os seus serviços, uma vez que o influente secretário se encontrava obcecado pela obtenção de relíquias, Fernando BOUZA ÁLVAREZ, D. Filipe I, Círculo de Leitores, 2005, p. 115.

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se preocupava em obter os serviços de um «secretário». O representante do Rei Católico em

Lisboa dava conta de uma conversa onde Pedro de Alcáçova Carneiro confidenciava poder

garantir a adesão do reino de Portugal de uma forma pacífica. O historiador Queirós Veloso,

num extenso e detalhado estudo sobre o reinado do cardeal D. Henrique, notou a importância

fulcral deste antigo «secretário», cuja experiência e influência terá sido um elemento fundamental

no sucesso da integração. Não por acaso, Cristóvão de Moura viria a referir-se a Alcáçova

Carneiro como «diabólico personaje»408. Claro está que esta animosidade se devia também ao

caríssimo preço a que o «secretário» fazia pagar os seus serviços, consciente do seu saber

“técnico” e da sua rede de influências bem enraizada na arquitectura “político-administrativa” do

reino. Porém, restam muitas dúvidas sobre o papel primordial de Alcáçova Carneiro no

estabelecimento da comunicação entre a corte de Portugal e os oficiais de Felipe II409.

Em todo o caso, que instrumentos possibilitaram ao «secretário» esta exuberante

capacidade de intervenção?

O “capital político”, conferido por longos anos no «despacho» dos reis de Portugal,

decorria da longa experiência de Alcáçova Carneiro em redigir «papéis» – fossem «Consultas»,

«Respostas», «Resoluções» ou as «ementas» do Conselho do rei – sobre delicadas «matérias de

estado», para não falar da extensa documentação que estes servidores mantinham nos seus

arquivos. «Secretários» como Alcáçova Carneiro tinham acesso a informação privilegiada que,

além do mais, guardavam durante muito tempo, uma vez que despacham em casa e mantinham

consigo os papéis das «secretarias» que lhes pertenciam, segundo a dimensão patrimonial dos

seus ofícios410. Daí que alguns anos mais tarde, no momento da morte deste influente

«secretário», o conde de Portalegre, D. João da Silva, afirmaria, numa carta a Cristóvão de

Moura, que não existia ministro no mundo que mais tempo tivesse «asistido á los Consejos y al

manejo de las cosas de Estado»411.

Com efeito, o Rei Católico, com um largo conhecimento da crescente importância dos

«papéis» no «governo» da monarquia, não hesitou em efectuar todos os esforços para obter o

favor destes dos dois mais relevantes «secretários» portugueses: Pedro da Alcáçova Carneiro e

Miguel de Moura. Exemplo da eficiente colaboração que se estabeleceu entre D. Filipe I e os

«secretários» foram as negociações efectuadas por Miguel de Moura, trabalhando com os

408 Queirós VELOSO, D. Sebastião…, pp. 73 e ss. 409 BPE, «Carta que escreveu Pedro da Alcáçova Carneiro a um privado do rei D. Filipe, quando pretendia o título de conde (1590?)», cod. CIII / 2 – 26, fl. 233. 410 Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e Vida de Miguel de Moura…, p. 130. 411 Cit. por Francisco CAEIRO, O Arquiduque Alberto de Austria, Lisboa, 1961, p. 122.

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embaixadores da Monarquia Católica a «Concórdia Real» de 1579, onde se procurava actualizar

os artigos de Lisboa de 1499412. Com efeito, este trabalho de “arqueologia jurídica” era terreno

fértil para os «secretários» brilharem, dado o seu domínio dos arquivos e a sua capacidade de

simplificação de conteúdos, bem como a agilidade na produção de sínteses de «Votos» e

«Pareceres». Percebe-se que, neste ponto, pelo menos durante o período do «governo Áustria

(entre 1579 e 1640), a formação jurídica – sobretudo por um certo adestramento na prolixidade

– fosse menos eficaz na hora de expressar num documento escrito, de cariz “constitucional”,

uma variedade de princípios de «governo». É verdade que a especulação jurisdicional estruturava

o “campo" onde evoluía a “luta” de Corte. Contudo, sob esta omnipresença da «justiça», emergia

uma racionalidade diversa, menos afecta aos «direitos» e mais sensível a uma extensão do «direito

régio» como veículo dos interesses “administrativos”.

Na verdade, os «secretários» vincaram a sua posição ao mediarem este complexo

processo de negociação. Em todo o caso, a necessidade de encontrar uma solução que

submetesse o oficialato, e salvaguardasse, do ponto de vista formal, a hierarquização dos

circuitos documentais, veio conferir nova vitalidade ao «escrivão da puridade».

Com a morte do rei D. Henrique, a 31 de Janeiro de 1580, um conjunto de

Governadores passou a reger o reino. Miguel de Moura pediu para deixar o cargo de «secretário»

mas, na verdade, pouco tempo depois, ele e uma sua “criatura”, Lopo Soares, elaboravam

documentação de primeira importância, tal como a «Carta Patente» de 12 de Junho de 1579 que

consagrava os poderes dos novos Governadores e Defensores do reino413. Lopo Soares tinha

adquirido protagonismo num outro período, igualmente atribulado: os dias imediatos à morte de

D. Sebastião em África414. Elaborar e redigir este tipo de documentação significava aceder à

forma do «despacho». Como é bom de ver, a redacção destas normas obedecia aos mecanismos

próprios da sociedade de Corte mas também – cada vez mais – ao saber especializado dos

oficiais de escrita. Este saber “técnico» podia representar alguma indeterminação hierárquica,

colocando problemas na domesticação dos oficiais. Neste sentido, a primeira solução dos

Governadores, no sentido de normalizar o «despacho», passou pela experiência de Martim

Gonçalves da Câmara, antigo «escrivão da puridade». O antigo «ministro» de D. Sebastião,

aguardava em Santarém o desenrolar dos acontecimentos esperando o momento para subordinar

412 Para um resumo do complicado processo de negociação ver Fernando BOUZA ÁLVAREZ, D. Filipe I…, pp. 69-74. 413 José Maria de Queirós VELOSO, O interregno dos Governadores e o breve reinado de D. António, 1956, Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1956, p. 6 414 Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e Vida de Miguel de Moura …, p. 125.

100

os oficiais da Corte415. Todas as parcialidades em confronto tentavam adquirir os serviços destes

especialistas documentais.

A actuação dos oficiais de escrita, embora tendo em conta as subtilezas de Corte –

relações de clientela, fidelidades corporativas e mesmo uma opinião «popular» ganhando peso

crescente – era determinante para o controlo do «despacho». Miguel de Moura, e os seus oficiais,

com o agudizar da situação e a aproximação de Felipe II, optaram por se distanciar do Paço416. A

prudência aconselhava a não tomar partido com demasiada rapidez. Perante este vazio, os

Governadores formalmente empossados, perante o avolumar dos «papéis» numa autêntica

batalha jurídica e “burocrática”, sentiram necessidade de se fazer representar por oficial

especialista no tratamento da documentação. Embora não exista «Carta de confirmação», os

Governadores nomearam como «secretário», um antigo escrivão da Câmara de D. Sebastião e D.

Henrique, Bartolomeu Fróis417.

Nesta altura, também Felipe II, acercando-se de Portugal, pretendeu agir com mais

determinação nesta “guerra de «papéis»”, comunicando a Cristóvão de Moura que, chegando a

Badajoz, precisaria de um «secretário» português, com prática na coisas de Portugal, capaz de

redigir «Cartas» e «Decretos»418. Cristóvão de Moura sugeriu dois escrivães da Fazenda: Nuno

Álvares Pereira, já conhecido do rei, e Lopo Soares – como vimos, um oficial do «secretário»

Miguel de Moura419. O rei preferiu Nuno Álvares Pereira, dado o seu domínio do castelhano, e

nomeou-o seu «secretário». Este movimento de captação de oficiais da escrita revela bem a

importância dos «papéis» na captação da “legitimidade de «governo»”. Numa segunda fase da

negociação de Portugal, foi a Nuno Álvares Pereira que o «secretário» de Felipe II em Madrid,

Gabriel de Zayas, pediu nomes de «ministros» portugueses para o «despacho» das matérias mais

415 Relembre-se que ficava consagrado no documento que todas as «Cartas», «Provisões», «Alvarás» e «Papéis», deviam ser assinados pelos Governadores. Os documentos mais importantes seriam assinados pelos cinco e os restantes por apenas três. Todas as «Provisões» de «Justiça» e «Fazenda» deviam ser lidas por um escrivão da fazenda «dos mais lidos e práticos», ficando o escrivão sentado – no despacho dos governadores com os oficiais respectivos das matérias – num «escabelo arredado da mesa», com outro «diante que porá os papéis», escrevendo o que fosse necessário. No entanto, as movimentações de corte e a consequente produção de «papéis» provinham de origens muito diversas, Queirós VELLOSO, O interregno dos Governadores..., p. 149. 416 BPE, «Cartas de Miguel de Moura a Manuel de Mello, Monteiro-mor», cod. CXI / 1 – 11, nº 36. 417 Em Maio de 1580, foi este secretário quem, numa primeira fase, negociou com Cristovão de Moura a forma da escolha e juramento do novo rei. Bartolomeu Fróis escreveu inúmeras cartas a Cristovão de Moura, em nome dos Governadores, tentando gerir uma difícil situação no reino, Queirós VELOSO, O interregno dos Governadores …, p. 142 e ss. 418 Queirós VELOSO, O interregno dos Governadores..., p. 95. 419 Queirós VELOSO, D. Sebastião…, pp. 274-275.

101

importantes como «Estado, Fazenda, Governo e Justiça»420. Não restam dúvidas sobre a eficácia

dos «secretários» neste contexto. Na verdade, em momentos de mutação dinástica, os cortesãos

sabiam que esta “dança” de «secretários» significava jogar o acesso a importantes «mercês».

Entretanto, junto dos Governadores, perante as rápidas transformações, o «secretário»

Bartolomeu Fróis tentava garantir a sua sobrevivência como «secretário» do reino. Cristóvão de

Moura refere numa das suas cartas que um importante documento, sobre a ilegitimidade do

prior do Crato, estava na posse daquele oficial421. Fróis, foi qualificado como «secretário de

estado» pelo enviado do Rei Católico, talvez para demonstrar a Felipe II, menos familiarizado

com a “administração” portuguesa, a importância do «secretário» dos Governadores – não

correspondendo esta designação a uma nomeação formal. O que é facto é que o «secretário», ao

invocar a posse de um documento precioso, pretendia negociar a sua posição. Porém, o seu

rasto desaparece da documentação, sugestão de que terá sido “engolido” na voragem dos

acontecimentos.

Não obstante esta emergência da eficácia do «secretário», que temos vindo a sublinhar, a

constatação da sua importância não correspondeu à sua imediata consagração como o mais

relevante oficial da Corte. Devido à dispersão de poderes na Coroa de Portugal, o ofício de

«secretário» conheceu mesmo um recuo, do ponto de vista formal, nestes anos de negociação

“constitucional”, fruto da necessidade de criar uma nova legitimidade “administrativa” que fosse

capaz de, como ficou dito, moderar o acesso aos «papéis» – regulando o trabalho das secretarias

– e restaurar a antiga tradição reinícola da «escrita da puridade».

Claro que, do ponto de vista prático, a situação era muito mais versátil. Os dois

«secretários» mais influentes do reino tinham aumentado as suas competências. Miguel de Moura

multiplicou-se na redacção de «instrumentos públicos». Além da «Concórdia de 1579 – já

referida – copiou também os «25 capítulos do Memorial das Cortes de Almeirim» para

comunicação às Cortes de Tomar, misturando, desta forma, os seus serviços com a génese

420 Queirós VELLOSO, O interregno dos Governadores..., p. 202. Nesta fase, o desempenho do «secretário» Nuno Álvares Pereira foi crucial. Se tomarmos como exemplo um dos vários documentos por si redigidos, o Advertimiento cerca de las cosas que se han pedido por parte de los Duques de Braganza, observamos a importância das matérias sobre as quais estes secretários esgrimiam argumentos. Utilizando a linguagem jurídica para defesa dos propósitos de Felipe II, os papéis versavam sobre as formas de jurisdição real, em matéria de «Fazenda» e «Justiça», tratando problemas relacionados com as rendas do rei no âmbito dos senhorios. Sobre o importante desempenho de Nuno Álvares Pereira junto de Felipe II, na avaliação dos pedidos de «mercês» da duquesa de Bragança em troca da renúncia ao trono de Portugal, Queirós VELOSO, O interregno dos Governadores…, 1956, pp. 263-265 e 274. Sobre o mesmo assunto ver ainda Fernando BOUZA ÁLVAREZ, D. Filipe I…, pp. 181-183. 421 BACL, Relación de lo que pasó com Bartolomé Froiz, secretario de Estado, y lo que respondieron sobre ello don Cristobal de Mora y Molina. De Almeirim, a 21 de Março 1580, Ms. 467, fl. 299.

102

“constitucional” do «Portugal Católico»422. Também Alcáçova Carneiro, fruto do seu trabalho de

bastidores durante o ano de 1579, assumiu, definitivamente, o estatuto de Vedor da Fazenda e

conselheiro do vice-rei423. Começou por ver levantado o desterro a que tinha sido submetido

pelo cardeal, fazendo parte dos que, primeiramente, juraram e reconheceram Felipe II como D.

Filipe I, rei de Portugal nas Cortes de Tomar de 1581424. Pouco tempo depois foi reconduzido a

todos os ofícios e dignidades e agraciado com o título de conde da Idanha425.

A dispersão de poderes a que nos temos referido, significou que o processo de

estabilização do «despacho» não foi um processo linear. Importa recordar que este período se

revestiu de uma grande complexidade quanto ao trabalho dos «secretários» e que, dada a

multiplicidade de direitos em confronto – bem como a dificuldade em fundamentar

legitimidades consensuais – não era fácil adquirir uma supremacia plena sobre a circulação

documental.

A nomeação formal de um novo «escrivão da puridade», em 1582, deve ser lida neste

contexto. Como se explica o regresso deste ofício sem nomeação formal desde o reinado de D.

João III?

Observámos a forma como o antigo «escrivão da puridade», Martim Gonçalves da

Câmara, procurou manter as suas prerrogativas sobre o «despacho». Gonçalves da Câmara terá

expedido «Cartas» e «Ofícios» sem ordem dos Governadores426. Enviado a negociar com os

povos em Santarém, utilizou as suas competência informacionais. Como os «povos» alegavam o

direito de eleger o rei, aceitou fornecer dos arquivos reais os documentos que pudessem

422 Queirós VELLOSO, O interregno dos Governadores..., p. 54. 423 Queirós VELLOSO, O reinado do Cardeal D. Henrique…, p. 79. 424 José António ESCUDERO, La Creacion del Consejo de Portugal, Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Estudos em homenagem aos Profs. Paulo Merêa e Guilherme Braga da Cruz, Coimbra, 1983, pp. 1-20. 425 IAN/TT, Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Confirmações Gerais, «Alvará para mandar vir da Índia 6 quintais de cravo», Liv. 3, fl. 192; «Carta das Alcaidarias mores de Campo Maior», Liv. 13, fl. 99; «Carta de Conselheiro», Liv. 2, fl. 155; «Carta de Privilégio de Desembargador», Liv. 1, fl. 172v. Veja-se ainda Queirós VELOSO, O reinado do Cardeal D. Henrique..., pp. 79-80. 426 Enviando este antigo «escrivão da puridade», como especialista na negociação política, os Governadores pretendiam controlar o «braço popular», uma vez que era temida reacção violenta. Gonçalves da Câmara tinha sido sete anos «ministro omnipotente de D. Sebastião». Aí discursou aos Procuradores dos Conselhos, pedindo que colaborassem com os Governadores, «aceitando com igual justiça todos os pretendentes à sucessão», Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e Vida de Miguel de Moura…, Lisboa, 1840, p. 140.

103

fundamentar esta posição427. A acção de Martim Gonçalves da Câmara explica, em parte, a

decisão do novo rei, D. Filipe I, de voltar a nomear um oficial que pudesse neutralizar o antigo

«escrivão da puridade» e travar a dispersão documental. Deste modo, a nomeação formal de um

novo «escrivão da puridade» correspondeu ao processo de normalização do «despacho»

permitindo, em simultâneo, utilizar um cargo tradicional da Coroa de Portugal para submeter o

trabalho dos «secretários». Assim, foi o «escrivão da puridade» quem leu o «juramente, preito e

menagem», com que D. Felipe I formalizou o pacto com os principais “grupos” do reino

durante as Cortes de 1581. Foram mantidos nas mãos do «escrivão da puridade» – no respeito

pelo costume cerimonial dos portugueses – o domínio sobre os «selos da puridade», depositados

sobre uma almofada assente num estrado pequeno, estando Moura sentado num degrau do

« estradinho junto da dita almofada».

Miguel de Moura foi mais rápido a impor os seus serviços, sendo formalmente nomeado

«escrivão da puridade» de D. Filipe I em 1582428. Claro que a sua prática como «secretário» terá

tido influência na escolha. Todavia, Miguel de Moura, dando seguimento a esta prática de

submissão dos «secretários», procurou a partir desse momento, e sobretudo na composição do

seu percurso biográfico, menosprezar a sua actividade de «secretaria», explicando que a sua

nomeação como «escrivão da puridade» pretendeu sublinhar a superioridade de um ministro que

coordenasse todo o despacho do reino. Sabemos, contudo, o quanto Miguel de Moura procurou

desqualificar o «escrivão da puridade» entre 1569 e 1578429. Na verdade, a “luta” de Corte tudo

transfigurava. Ou, pelo menos, quase tudo.

Com efeito, Gonçalves da Câmara acabou por não conseguir recapturar, daí em diante,

os espaços de poder no Paço. Este momento reveste-se de particular importância pois pela

primeira vez um «secretário», formalmente empossado em Chancelaria, reúne também a

nomeação formal como «escrivão da puridade». Ao fazê-lo, mesmo que apostado em valorizar o

seu novo cargo, acaba por, paradoxalmente, estabilizar a posição dos «secretários». Esta

427 Queirós VELOSO, O interregno dos Governadores…, pp. 9-11. Em todo o caso, Martim Gonçalves da Câmara parece ter apoiado as parcialidades anticastelhanas (p. 74) atacando Felipe II no conselho de Estado e conseguindo a criação, em 1580, de uma Junta da Defesa do Reino (p. 75). Redigiu uma carta que alguns Governadores terão assinado «sem ler» em que se incitavam os prelados a que, por meio do baixo clero, exortassem as populações a defenderem com armas o reino (p. 76), propondo também a venda de jóias da coroa para o pagamento de soldados (p. 116). 428 Por «Carta» de 15 de Dezembro de 1582 foi formalmente nomeado: os «dedicados serviços de Miguel de Moura, do Conselho de Estado, pelos quais se faz merce do meu officio de escryvao da puriydade, assi pello modo e maneira, e com aquelles poderes, superiorydade, preheminencias, autorydade, Honras, graças, priuilegios, merces e franquezas », Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Escrivães da puridade...», pp. 217-218. 429 No «Auto do Levantamento e Juramento de Felipe II» esteve presente Miguel de Moura do Conselho de Estado «que servia de seu Escrivão da Puridade», sendo notários publicos Lopo Soares e Valério Lopez, J.J.L. PRAÇA, Colleção de leis e Subsidios…, p. 182.

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acumulação decorria também do processo que, entre 1578 e 1583, sob a superfície da aparatosa

conflitualidade, tinha conduzido a escrita régia a uma nova fase do seu desenvolvimento.

Outro dos aspectos que importa destacar nesta consolidação dos «secretários», prende-se

com o crescente protagonismo dos escrivães da Câmara régia, passando estes, em diversas

ocasiões, a desempenhar o ofício de «secretário». Os escrivães da câmara do rei, bem como os

escrivães da Fazenda430, vinham adquirindo um crescente protagonismo. Convém recordar que

vinham crescendo exponencialmente desde o reinado de D. Sebastião, acompanhando a

multiplicação de «papéis» e constituindo um “exército de servidores”431.

As razões desta ascensão, no circuito do «despacho» régio, prendem-se com a

formalização do “trabalho de secretaria” e podem ser facilmente descritas.

Com efeito, a actuação dos escrivães da Câmara régia vinha crescendo em intensidade

desde meados do século XVI. A fixação da Corte em Lisboa e o crescimento exponencial do

«despacho» potenciou o seu poder. Estes oficiais tinham o seu âmbito de acção associado aos

«papéis» que o rei tratava sem necessidade de grande assentimento institucional, i.e., sem que

fosse necessário – em princípio – o complexo de tramitação comum a outros órgãos da

monarquia como o Desembargo do Paço ou a Chancelaria. Porém, esta fluidez de acção causou

problemas no controlo do processo documental. É certo que o aumento do volume dos papéis

beneficiou, em primeiro lugar, a sua influência dos escrivães. A sua multiplicação veio, contudo,

acentuar os problemas de harmonização entre autonomia e controlo hierárquico. Por outras

palavras, num reino em mutação, com os vínculos de fidelidade régia enfraquecidos, cuja

430 A título de exemplo, foram dois Escrivães da Fazenda que citaram os pretendentes, naturais do reino, à Coroa de Portugal em fevereiro de 1579. Francisco Serrão, irmão do Provincial da Companhia de Jesus, citou D. Catarina e Nuno Álvares Pereira citou D.António, Prior do Crato, Queirós VELOSO, O Reinado do Cardeal D. Henrique, p. 177. 431 Sobre os escrivães, ver as cartas de nomeação IAN/TT, Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, escrivães da Câmara Real: «Carta a Álvaro Fernandes de Mello», Liv. 20, fl. 341v; «Carta a António Moniz de Fonseca», Liv. 38, fl. 209v; «Carta a Baltazar Vaz Ramos», Liv. 44, fl. 277v; «Carta a Bartolomeu Fróis», Liv. 2, fl. 24; «Carta a Jorge Lobato», Liv. 3, fl. 146v; «Carta a Francisco Nunes de Pavia», Liv. 42, fl. 387; «Carta a Gaspar Beleagoa», Liv. 42, fl. 351; «Carta a João da Costa», Liv. 37, fl. 280v; «Carta a João Ribeiro», Liv. 39, fl. 18; «Carta a João de Seixas», Liv. 16, fl. 139v; «Carta a Lopo Soares», Liv. 39, fl. 163v; «Carta a Lourenço de Figueiró», Liv. 43, fl. 92; «Carta a Manoel Antunes», Liv. 43, fl. 68v; «Carta a Manoel Godinho de Castelo Branco», Liv. 38, fl. 212v; «Carta a Miguel de Moura», Liv. 15, fl. 142; «Carta a Nicolau Luís de Azevedo», Liv. 22, fl. 198v; «Carta a Pantaleão Rebelo», Liv. 19, fl. 57v; «Carta a Pedro da Costa», Liv. 46, fl. 166; «Carta a Pedro Sanches», Liv. 12, fl. 67; «Carta a Pedro de Seixas», Liv. 45, fl. 102v; «Carta Rodrigo Sanhes», Liv. 45, fl. 206; «Carta a Roque Vieira», Liv. 39, fl 154; «Carta a Sebastião a Costa», Liv. 19, fl. 311v; «Carta a Simão Borralho», Liv. 44, fl. 62; «Carta a Valério Lopes», Liv. 10, fl. 109v. Quanto aos escrivães da Fazenda: «Carta a Diogo Velho», Liv. 15, fl. 231v; «Carta a Duarte Dias», Liv. 1, fl. 218; «Carta a Álvaro Pires», Liv. 2, fl. 24; «Carta a Bartolome Fróis», Liv. 2, fl. 24; «Carta Francisco Serrão», Liv. 32, fl. 148; «Carta a Gabriel de Moura», Liv. 32, fl. 38v; «Carta a Jerónimo Mexia», Liv. 2, fl. 406v; «Carta a João Castilho», Liv. 34, fl. 160; «Carta a Jorge da Costa», Liv. 34, fl. 188v; «Carta a José Lobo», Liv, 37, fl. 250; «Carta a Lucas Salvago», Liv. 9, fl. 102; «Carta a Manuel Soares», Liv. 14, fl. 589v; «Carta a Martinho Vaz», Liv. 10, fl. 390; «Carta a Sebastião da Costa», Liv. 19, fl. 251.

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negociação implicava um grande volume de informação – bem como a necessidade de eficácia,

na redacção e elaboração de documentos “constitucionais” – o trabalho destes escrivães foi

determinante. Um exemplo desta importância prende-se com as reuniões de cortes, onde os

escrivães da câmara adquiriam revelo no trabalho documental, tanto nas funções de «notários

públicos» na sessão de abertura, como no processamento da informação apresentada pelos

estados432.

A sua importância no «despacho», ou no trabalho das cortes, decorria da sua própria

natureza de auxiliares do rei, partilhando dos espaços reais. No Paço da Ribeira, ao qual D. Filipe

I dedicou uma especial atenção através da sua revitalização, os aposentos do soberano tinham

ligação com a sala grande através da Câmara Régia433. A sala grande era o espaço onde decorriam

as principais cerimónias, as refeições reais e as recepções de embaixadores, conforme muitas

vezes, no passado, testemunhara o «secretário» do rei. Na «ante-câmara» podia decorrer o

«despacho», espaço onde os escrivães acediam á intimidade do rei. Conforme relata o cronista

Francisco de Andrada querendo o monarca tratar qualquer «negócio» passava a esse lugar434.

Também por aqui podiam dormir «moços fidalgos», talvez, por vezes, «secretários» e escrivães.

O espaço da câmara era um espaço fluído onde a influência e os grupos de interesse se podiam

sobrepor aos mecanismos formais de decisão. Desfrutavam da proximidade das pessoas reais,

com tudo o que isso podia significar de contrapartidas cortesãs. Os oficias da câmara

acompanhavam os soberanos nos momentos solenes, adquirindo um vasto conhecimento dos

saberes “políticos” 435.

Fruto da sua importância “técnica”, em 1582, foram acrescentados os ordenados dos

Escrivães da Câmara e da Fazenda. Cumpre dizer que os secretário começavam normalmente a

sua carreira como escrivães da Câmara, passando depois à escrita da Fazenda. Tanto Bartolomeu

Fróis como Lopo Soares iniciaram o seu serviço como Escrivães da câmara436. Em 1586 foi

reafirmado um «Alvará» de 1574 onde se proibia aos escrivães da Câmara subscreverem «Cartas»,

432 Visconde de SANTARÉM, Memórias e alguns documentos para a História e Teoria das Côrtes Geraes, (1824), Imprensa da Portugal-Brasil, Lisboa, 1924, p. 22. 433 Nuno SENOS, O Paço da Ribeira, 1501-1581, Editorial Notícias, Lisboa, 2002, pp. 131-135. 434 Nuno SENOS, O Paço da Ribeira..., pp. 137-138 435 A título de exemplo, em 1581 o Arquiduque Alberto assistiu em Tomar, a partir dos seus aposentos, observando por uma janela, o juramento de D. Filipe I, «rodeado pelos seus mordomos e os da sua Câmara », Fernando BOUZA ÁLVAREZ, Cartas para duas infantas Meninas, Portugal da Correspondência de d. Filipe I para as suas filhas (1581-1583), CNCDP, Dom Quixote, Lisboa, 1998, p. 74. 436 IAN/TT, Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, escrivão da Câmara Real, «Carta a Bartolomeu Fróis», Liv. 2, fl. 24; (Confirmações Gerais) escrivão da Câmara Real, «Carta a Lopo Soares», Liv. 39, fl. 163v e ainda escrivão da Fazenda Real, «Carta a Bartolomeu Fróis», Liv. 2, fl. 24.

106

«Alvarás», «Regimentos» ou «Provisões» se não estivessem devidamente habilitados, ordenando-

se ao Desembargo do Paço que controlasse o procedimento437.

A preocupação com o controlo documental decorria da fluidez de competências e da

própria amplitude de actuação deste servidores da Câmara régia. Existia uma certa permuta

institucional entre o regime jurídico dos Escrivães da Câmara régia e os Escrivães do

Desembargo do Paço e Corregedores da Corte, por vezes denominados como Escrivães da

Corte, uma vez que estes títulos apenas diferenciavam os Tribunais onde serviam os escrivães e

não a sua acção “burocrática”. Deste modo, a sua influência estendia-se por um espaço muito

alargado. No sentido de controlar este servidores, os Desembargadores do Paço examinavam os

oficiais candidatos, sendo que os escrivães não podiam abandonar a Corte sem autorização438.

Porém, importa sublinhar que a necessidade de atender ao maior volume de «papéis»

originou uma multiplicação destes servidores e levou a Coroa a estreitar ainda mais as medidas

de controlo439. Os escrivães não podiam pedir às «partes» papel ou pergaminho pois o papel

necessário seria dado depois de verificadas as «Cartas» na Chancelaria. Deviam comprar, em caso

de processos a instruir, o seu próprio papel, não o aceitando das «partes» sob pena de suspensão

do ofício por um ano. Deve notar-se também a preocupação com a identificação do dia, mês,

ano da carta bem como da assinatura do escrivão no sentido de mapear os tempos de trabalho

dos oficiais da escrita e do próprio andamento dos processos.

Por outro lado, a protecção da informação, expressa pelo controlo no acesso aos

«papéis», preocupava cada vez mais a Coroa. Proibia-se o envio de moços para transporte da

documentação aos desembargadores, prevendo-se que seriam os próprios escrivães a entregar

todo o material440. Quanto aos escrivães da Fazenda, estavam obrigados às mesmas prescrições,

diferenciando-se apenas a observância de uma tabela própria de emolumentos a cobrar pelas

«Cartas», «Alvarás» ou outras escrituras441.

437 «Provisão de 16 de Setembro de 1586». 438 OF, Liv. I, Tit. LXVI, nº 21 nota 1. 439 De tal forma que o «Alvará de 25 de Setembro de 1601» aplicou aos «secretários» – e quaisquer ministros do «despacho» – a antiga pretensão da Coroa para que se não executassem «Portarias» ou «Cartas», sem a devida confirmação régia, isto sob pena de proibição perpétua de exercício do ofício. 440 OF, Liv. I, Tit. XXIV, nº 1-48. 441 Os escrivães no momento de emitir padrões de Juro (títulos de «dívida pública») recebiam 500 reis, cobrando o mesmo rendimento dos «Padrões de tença e «Provisões» passadas pelo rei como Governador dos Mestrados das Ordens». Pelos «Alvarás» de tenças, 400 reis; pelas «Cartas», 200 reis; por outros «Alvarás», 60 reis; pelas «Cartas de Ofício», 100 reis por cada; pelas «Cartas por renunciação» ou «Alvará de lembrança», 200 reis; OF, Liv. 1, Tit. LXXXII, nº 1-11.

107

Como vimos, vários oficiais podiam despachar, conforme solicitação do rei ou conforme

a qualidade dos negócios. Estava nesta particular situação toda a matéria de «Graça». No que diz

respeito ao volumoso trabalho de assistência às «petições» – de acordo com o «Regimento do

Arquiduque Alberto», dado em 1583 – era formalmente atribuído o seu controlo a um escrivão

da Câmara, sendo este a encaminhar o assunto para os «ministros» respectivos442. Neste sentido,

Aragão Morato refere no seu clássico estudo que as «mercês» continuavam a merecer uma certa

especificidade “administrativa” sendo, durante o «governo» do Arquiduque Alberto, o escrivão

da Câmara, Francisco Serrão, o responsável pelas «petições»443.

Em suma, os escrivães da Câmara tinham uma participação relevante na assistência ao

«despacho» régio e na ligação entre instituições444, além de escreverem, na presença do vice-rei, o

expediente necessário445. A emergência das secretarias não deixa de ser também uma resposta a

esta multiplicidade de oficiais, cuja actuação a Coroa procurou agregar na dependência de um

oficial intermédio – o «secretário» – solução com tradição no reino de Portugal, sob a designação

de «escrivão da puridade».

2. Secretários das «matérias de Estado» em Lisboa

Como temos visto, a “crise dinástica” lançou sobre a circulação dos «papéis», e a decisão

política, um forte abalo. Este foi um tempo de alguma indeterminação quanto à nomeação de

«secretários». Ainda que a ausência de fontes não permita clarificar totalmente as inúmeras

dúvidas sobre este período, passaremos a uma identificação institucional dos «secretários» do

«Reino» e da «Índia» e dos «secretários» da transição entre 1580 e 1583, servidores que terão

actuado junto dos Governadores e vice-reis de Portugal no Paço da Ribeira – dada a sua

importância na consolidação do «secretário de estado» –, deixando para a secção 3 o caso

particular do «secretário» do Conselho da Índia e para a secção 4 os «secretários» do Conselho de

Portugal.

442 Francisco CAEIRO, O Arquiduque Alberto de Áustria..., pp. 512 e ss. 443 Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», pp. 64-65. 444 Deviam redigir todas as «Cartas» de pergaminho, «Cartas» de ofício (desembargador, corregedor, juízes de Fora ou outros ofícios, para ajudantes de escrita (escreventes) de escrivães e tabeliães, almotacés em três meses, letrados sem todos os requisitos) «Cartas» de doação de terras, confirmações de jurisdição, Alcaidarias mores, «Cartas» de Privilégio; «Alvarás» ou «Provisões»; e «Alvará» que valha como «Carta» (sem tempo limitado), OF, Liv. I, Tit. LXXXII, nº 12-19. 445 Faziam-no também em vários tribunais, como o Desembargo do Paço ou o Conselho da Fazenda. Manuel Álvares Pegas, no seu Comentário ás Ordenações Filipinas, refere que eram enquadrados juridicamente pelo disposto quanto aos Escrivães do Desembargo do Paço, bem como pelo Regimento do Desembargo do Paço, OF, Liv. I, Tit. XXIV.

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Quanto aos «secretários» com participação no «despacho» entre 1579 e 1581.

Na verdade, perante a indefinição do «governo», até à consolidação da Patente de mercês

aprovada em Tomar, existem indícios sobre um conjunto muito indefinido de servidores. Miguel

de Moura era formalmente o «secretário do Reino», se bem que Lopo Soares tenha também

despachado nessas funções. Por outro lado, vimos que Bartolomeu Fróis serviu também como

«secretário», nomeado pelos governadores depois da morte de D. Henrique, pelo menos até

1580446. Durante o fugaz governo de D. António, aclamado rei pelos «Povo de Lisboa, parte da

nobreza e clero», em Junho de 1581, foram nomeados conselheiros de Estado bem como um

Secretário. Manuel de Faria e Sousa escreveu na Europa Portuguesa que, passando na Praça de

Madrid, viu à venda um «brazão de armas bem iluminado (…), escrito pelo Secretário Diogo

Botelho», contendo a assinatura de D. António como rei»447. Também o pretendente à Coroa de

Portugal requisitou os serviços de Nuno Álvares Pereira, e do filho Pedro Álvares Pereira,

«secretários» que já acompanhavam o rei em Badajoz, em 1579. Até 1583, data em que

regressaram a Madrid com o Conselho de Portugal, os dois estiveram em Lisboa, no Paço da

Ribeira, despachando com o rei448. Durante esta estadia, Nuno Álvares Pereira tinha já definido o

seu estatuto como «secretário do rei»449. Joaquim Veríssimo Serrão, com extenso conhecimento

deste período, refere que Nuno Álvares Pereira teria desempenhado funções como «secretário»

do «Reino», até ser nomeado «secretário do Conselho de Portugal»450. Neste sentido, Miguel de

Moura, Lopo Soares, Bartolomeu Fróis, Diogo Botelho e Nuno Álvares Pereira terão

despachado como «secretários do Reino».

Quanto ao desempenho dos «secretários» do arquiduque Alberto depois do regresso de

D. Filipe I a Castela.

Como ficou dito, a nomeação de Miguel de Moura, como «escrivão da puridade»,

pretendeu unir as funções de coordenação e representação em Cortes, num momento em que

necessidade de solidez nos actos “constitucionais” do Portugal dos Filipes não permitia grandes

inovações. Depois das Cortes de Tomar, em 1581, formalmente, o «secretário» da «cousas da

Índia» e dos «negócios e cousas da Repartição do Reino e Africa e embaixadas», continuava a ser

446 A referência pertence à Crónica de Felipe II de Castella, cit. por Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», p. 63. Também Queirós VELOSO, O interregno dos Governadores…, p. 122, cita uma carta de Cristóvão de Moura em que refere Bartolomeu Fróis como «secretário de estado». 447 Francisco MORATO, «Memória sobre os secretarios dos reis...», p. 55 448 Santiago LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal..., p. 117. 449 Segundo documento original pertencente a Francisco MORATO, «Memória sobre o secretários dos reis...» p. 54 450 Joaquim Veríssimo SERRÃO, Governo dos Reis Espanhóis (1580-1640), Vol. IV, História de Portugal, Lisboa, 1978, p. 15.

109

Miguel de Moura. Seria então necessário prover novos «secretários» que trabalhassem sob alçada

do «escrivão da puridade» em concordância com o «Regimento de Arquiduque Alberto».

Antes de mais, é importante notar que o «Regimento» consagrava, ainda que de forma

implícita, a notável ascensão social de dois dos antigos «secretários» da Coroa, Moura e Alcáçova

Carneiro. Entre os 33 capítulos, com data de 31 de Janeiro de 1583, mencionava-se um conselho de

governo, composto por três dos conselheiros de Estado: o Arcebispo de Lisboa, D. Jorge de

Almeida e nada mais, nada menos, do que esses antigos «secretários» – Pedro de Alcáçova

Carneiro, agora Vedor da Fazenda, e Miguel de Moura, agora «escrivão da puridade». É

necessário assinalar que, cobertos com o “manto” da escrita da puridade e da Vedoria da

Fazenda, os «secretários» atingiam o mais alto lugar do «governo» do reino.

No que diz respeito ao trabalho efectivo da produção documental e «despacho» das

matérias, devia o Arquiduque reunir com o conselho de Estado todas as segundas-feiras à tarde,

ordinariamente, ou sempre que se justificasse, dando audiência todas as terças e quintas-feiras

pela manhã auxiliado pelos oficiais da Câmara régia451. Não há dúvida de que o tópico da

comunicação política preocupava D. Filipe I. Segundo o «Regimento», os «papéis» e «Provisões»

contendo decisões de «governo» deviam ser assinados pelo rei embora, em caso de urgência, D.

Filipe I previsse no «Regimento» que o Arquiduque assinasse em nome do rei.

No que toca à comunicação entre os «secretários» em Lisboa e o Conselho de Portugal

trataremos da sua evolução mais adiante, quando nos referirmos aos «secretários» daquele

conselho.

Quanto às recomendações relativas à importância da comunicação, presentes no

«Regimento», deve dizer-se que a tendência, aí consagrada, para controlar a circulação entre

«Repartições» iria marcar a génese do «secretário de estado». Em 1584 foi passada uma carta de

ofício de «Secretário» a Diogo Velho para servir «nas cousas do Estado a Repartição da India

Brasil Mina e Giné»452. A produção desta «Carta de nomeação» corresponde a uma importante

zona de mutação. Com esta referência às «cousas do Estado» emergia na terminologia das cartas

passadas aos «secretários» uma clara ligação entre o funcionamento da «Repartição» e o despacho

das «matérias de Estado». Não se fazia ainda qualquer referência a uma «secretaria de estado»,

mas a referência à circunscrição «estado» remetia para uma “dignidade” que abria o trabalho do

«secretário» para os assuntos de «governo», agora na esfera da jurisdição régia. A diferenciação

451 Francisco CAEIRO, O Arquiduque Alberto de Austria…, pp. 95 e ss. 452 IAN/TT, Chanceleria de Filipe I, Liv. II, fl. 57v. e Francisco Mendes da LUZ, O Conselho da Índia..., pp. 365-369.

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que se pretendia introduzir com o conceito de «estado» dizia respeito à conservação do status real

mas, cada vez mais, remetendo para acções “voluntárias”, activas, e não apenas como gestão

corrente dos negócios que vinham à presença do rei. Despachar as «coisas de estado» seria agir

não só de uma forma conservativa, quanto às prerrogativas dos corpos, mas defender a

generalidade das posses do rei (o seu «estado») entendidas como corpo da «República». Ocorria,

portanto, a fusão entre os «corpos» e o «corpo» o que, paradoxalmente, como veremos,

produziria o início de uma separação mais vincada entre «particularidades» e «público», separação

que nascia, precisamente, da reacção dos corpos à inclusão do seu «governo», da sua jurisdição,

no âmbito do «estado» do rei. Porém, deve esclarecer-se que esta menção às «cousas de Estado»

se relacionava com as «matérias da Índia», “território jurídico” onde – mais do que em qualquer

outra zona – devido à maior fragilidade do costume, se deu uma maior especialização com uma

rápida acumulação de poderes por parte dos secretários453.

Quanto à «Repartição do Reino», o seu «despacho» permanecia numa certa

indeterminação, o que correspondia tanto à indefinição institucional dos «secretários» como à

vitalidade com que no reino os restantes «estados» – nobreza, eclesiásticos, vilas e cidades,

conselheiros, oficiais de guerra – puxavam a si, com mais determinação, as prerrogativas

jurisdicionais. Trataremos este problema com maior detalhe no capítulo VI deste estudo.

Por agora interessa-nos, sobretudo, identificar com mais rigor a evolução de

competências destas «Repartições» onde, até cerca de 1604, dois «secretários» vão destacar-se:

Lopo Soares e Cristóvão Soares454.

Estes «secretários» trabalhavam na dependência de Alcáçova Carneiro e Miguel de

Moura. Isso explica que, apesar das referências na documentação sobre diversos oficiais, estes

não tenham sido notados pela historiografia como «secretários do reino» e tenham sido

ofuscados pelo maior “peso” dos dois vetustos «secretários». Porém, tanto Lopo Soares como

Cristóvão Soares produziram documentação como «secretários», e não só ao nível da mera

redacção. Lopo Soares, actuando na Câmara régia desde o reinado de D. Sebastião, assinou

como «secretário» entre 1584 e 1597455. Exemplo deste serviço foi a redacção do «Regimento»

sobre «as coisas que tocavam à ordem, governo e serviço da Real Capela», aspecto notado por

Veríssimo Serrão, embora aqui não seja claro se a redacção correspondeu a um de mero

453 Para uma perspectiva mais moderada quanto a estes efeitos, António M. HESPANHA, «Justiça e administração…», pp. 381-468. Também destacando os aspectos disruptivos das conquistas face ao poder régio, uma boa síntese recente, António M. HESPANHA, «Depois do Leviathan…», pp. 55-66. 454 IAN/TT, Chancelaria de D. Filipe II, «Secretário de Estado, Carta a Cristovão Soares», Liv. 16, fl. 168v 455 BA, 44-XII-46, fls. 19-19v.

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“trabalho mecânico” de escrita da norma ou a uma intervenção mais activa na sua construção

jurídica456. Em 1584, uma carta, dirigida a Lopo Soares, dá nota dos sensíveis conflitos na corte,

destacando-se o secretário na redacção de «papéis» e na estabilização do processo político457. Na

verdade, Lopo Soares trocou correspondência com os bispos do reino, decidiu em matéria de

pequenos ofícios de justiça (1591), e controlou os negócios diplomáticos em Roma458. Na década

de 1590 começou também a destacar-se Cristóvão Soares que, pelo menos desde 1593, assinou

como «secretário» diversas «Cartas Régias»459. Em 1598 trata dos requerimentos ao rei e aos

governadores de Portugal460. Cerca de 1603, despacha assuntos muito diversos: sobre os limites

da jurisdição do colector apostólico; queixas sobre corregedores; consultas de comendas461;

diversas solicitações de pagamentos devidos por oficiais régios; negócios com os bispos a

propósito de jurisdições e pedidos de adiamento de sindicâncias de juízes de Fora462. Com efeito,

Cristóvão Soares vai ter um papel determinante na sedimentação formal do ofício, de tal modo

que, em 1606, o duque de Lerma escreve ao secretário de estado informando-o ser conhecedor

da sua pontualidade e dando notícia de que seria retribuído pelo seu serviço463.

Porém, não é fácil reconstituir o trabalho da «Repartição do Reino» nesta fase, dada a

fluidez entre as «matérias». Por diversas ocasiões, «secretários» da Índia, como Diogo Velho,

efectuaram «despacho» nas matérias do «Reino», assinando documentação diversa.

Sendo tão fluidas as fronteiras entre as «Repartições da Índia» e do «Reino» cerca de

1583-1604, que conclusões podem ser desenhadas sobre o conjunto de oficiais que despachavam

em Lisboa?

As Ordenações Filipinas em 1603, produzidas já durante o reinado de D. Filipe II, referem-

se aos «secretários» de uma forma pouco precisa.

Em primeiro lugar, são sugeridas diferenças entre os «secretários» – considerados de uma

forma genérica – e o oficial responsável pelas «petições» – «Nossos Secretarios, e a pessoa que

connosco despachar as petições do Estado». Em princípio as Ordenações referiam-se a uma

tradição da Coroa de Portugal em nomear oficial específico para o «despacho das petições»,

como vimos, normalmente um escrivão da Fazenda. Em todo o caso, as Ordenações conferiam,

456 JoaquimVeríssimo SERRÃO, Governo dos Reis Espanhóis …, pp. 34 e ss. 457 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 111, nº 109. 458 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 112, nº 71, nº 76, nº 79. 459 Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», pp. 61-63. 460 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 114, nº 27. 461 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 114, nº 91, nº 117, nº 144. 462 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 115, nº 116 e nº 139. 463 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 114, nº 146.

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sem distinção, a qualquer destes oficiais, os «privilégios dos Desembargadores», facto que

assinala uma diferença fundamental relativamente às Ordenações Manuelinas e que confirma a

ascensão dos «secretários» no espaço do Corte464

Manuel Álvares Pegas, no seu comentário às Ordenações Filipinas parece também não

resolver a questão, mencionando, sem grande distinção formal, diferentes terminologias:

«secretários do rei», «secretários de estado», «secretários do príncipe» reflectindo, como é sabido,

a tradição dogmática dos textos latinos, por vezes sem grande correspondência com a realidade

organizativa dos actos de poder465.

Com efeito, a indistinção era muito acentuada. Não muitas décadas depois, em

comentário manuscrito a estas referências, Tomé Pinheiro da Veiga, Procurador da Coroa de D.

João IV, referia que em Agosto de 1645 não se conhecia nas «Secretarias de Estado» o exacto

significado daquela referência das Ordenações466. Isto dá nota da dificuldade em estabelecer, com

exactidão, qual o estatuto dos oficiais do «despacho». No entanto, tudo aponta para que esta

distinção, presente nas Ordenações Filipinas, se referisse às diferenças entre «secretários» (com

posse formal do cargo – que podiam ou não assistir ao Conselho de Estado) e os oficiais que,

junto do Governo em Lisboa, despachavam negócios no espaço da câmara, que podiam ser

escrivães da Fazenda, da Câmara, ou mesmo oficiais dos «secretários»467.

Na verdade, existiam os «secretários» com Repartições» formalmente atribuídas – como

Diogo Velho – os «secretários» que despachavam «petições» com o vice-rei – como Lopo Soares

ou Cristóvão Soares – e ainda os «secretários» que assistiam ao conselho de Estado, podendo

estes coincidir ou não com os «secretários da Repartições», conforme a importância da matéria a

tratar. Como vimos, era normal os «secretários do Reino» enviarem ao Conselho de Estado os

464 OF, Liv. 1, Tit. II, nº 59. Além disso, as Ordenações referiam ainda que os «secretários» podiam trazer os seus contendores à Corte, OF, Liv. 3, Tit. V, nº 2. 465 Manuel Álvares PEGAS, Commentaria..., t. I, Ulyssipone, 1669, pp. 415-416. Sobre o poder dos «escritos dos secretários», «Secretarij status, & munerum tenentur jurare; Secretarijs Principis credendum est; Secretarijs scientia habetur pro scientia Principis; Epistola Secretarij Status circa munera, & benefici facta à Principe alicui, plenè creditur, & per illam solum justificatur; Quod etiam amplia procedere in Secretarijs status, & munerum de quibus. In quo aduerte quod secretarij Principis in his quae dicunt, credendum esta, ut tenet. Ubi etiam quod ipsorum scientia habetur pro scientia Principis ibi multus resert; Quare Epistola Secretarijs status circa munera, & beneficia facta à Principe alicui, plenè creditur, & per illam solum justificatur». Também Manuel Álvares PEGAS, Commentaria..., t. X, Ulyssipone, 1689, pp. 65-66, «Utrum ex Epistola Secretarij Regis, in qua afferit Regem fecisse concessionem alicui, probetur concessionem fuisse factam, ita ut ex illa possit petere bona in Epistola, & assertione comprehensa, & in judicio actionem proponere contra possessorem talium bonorum titulum à Rege postea habentem?». 466 Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», p. 64. 467 Apesar de Aragão Morato negar o estatuto de «oficiais públicos» ao «secretários» “particulares do rei” – decorrente de uma visão destes oficiais segundo os critérios formalistas da “adminstração liberal”.

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seus próprios «secretários», tal como sucedeu com Miguel de Moura que, durante o reinado do

cardeal D. Henrique, terá enviado por diversas vezes Lopo Soares468.

Postas estas distinções, mais ou menos fluidas, entre 1580 e 1599 podemos avançar na

caracterização das secretarias em Lisboa.

A emergência de uma nova terminologia pode datar-se entre os anos de1600 e 1602.

Nesta época, conhecemos com algum detalhe a organização do «despacho» em Lisboa, através

da correspondência trocada entre ministros do rei (o vice-rei em Lisboa e o duque de Lerma em

Valhadolid) a propósito da divisão das secretarias no Conselho de Portugal. O vice-rei, Cristóvão

de Moura, dava conta da existência de dois «secretários» despachando no reino: « o secretario

que agora chamamos de Estado », em substituição da expressão «secretário do Reino», e o

secretário das «matérias da Índia», onde confluíam os «negócios ultramarinos» e a apreciação,

registo e despacho de mercês469.

Deste modo, destacava-se pela primeira vez, e de forma clara, um «secretário de estado»,

na época Cristóvão Soares470.

No que toca a matérias de «Fazenda», no momento destacadas das «Repartições», eram

os escrivães da Fazenda quem as despachava. Quanto à «Justiça», eram os escrivães da Câmara

quem continuava a tutelar esse tipo de matérias, segundo uma tradicional divisão por

Comarcas471. Convém notar que nesta correspondência se dava nota de um maior rigor na

separação de matérias, dividindo as «cousas de Estado » das « cousas ordinarias de vassalos para

seu Rey »472.

Conforme notou Fernando Bouza Álvarez, num reino de monarca “ausente”, a

organização do «despacho» tornava-se um problema central, pelo que estas considerações de

1602 sobre o circuito documental, denotam a séria preocupação dos oficiais responsáveis pelo

468 Queirós VELOSO, O reinado do Cardeal D. Henrique…, p. 328. 469 Carta de Cristovão de Moura, Lisboa, 31 de Outubro de 1602, cit. por Francisco M. da LUZ, O Conselho da Índia..., Lisboa, 1952, pp. 77-78. A carta encontra-se publicada nas pp. 377-378. 470 IAN/TT, Chancelaria de D. Felipe II, «Secretário de Estado, Carta a Cristovão Soares», Liv. 16, fl. 168v. 471 «Provisão de 16 de Setembro de 1586». A prática do «despacho» por escrivães continuou a provocar enormes resistências, tanto de ordem processual – pela dispersão da informação – como de ordem organizativa – pela disseminação do poder sobre a documentação régia. Assim, em 1586, D. Filipe I reafirmou a «Provisão» de D. Sebastião para que os escrivães da Câmara não pudessem assinar «Cartas», «Provisões» ou «Alvarás». Na verdade, inúmeros documentos eram assinados na câmara régia, sem a devida aprovação. Foi ordenado ao Desembargo do Paço e à Chancelaria que não confirmassem qualquer documento deste tipo, sem verificar se o processo de aprovação seguira o curso normal (assinatura confirmada pelo rei). 472 Francisco Mendes da LUZ, O Conselho da Índia..., pp. 378 e ss.

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«governo» de D. Filipe II, na Corte da Monarquia Católica473. É certo que aos «ministros» e

tribunais portugueses tinha sido conferida alguma autonomia no «despacho». Porém, muitas

eram as «cédulas» firmadas sem passarem pelos vice-reis ou pelo Conselho de Portugal. Os

«papéis» eram dirigidos aos escrivães da Câmara e aos escrivães da Fazenda e por eles eram

despachados474. Esta situação representava um certo descontrolo do «governo» Áustria,

sobretudo se pensarmos no que isto significaria de consequências para os processos de

atribuição de «ofícios» e «mercês».

Além desta “burocratização” em curso – cujo aumento exponencial das «Consultas»

potenciava ambições próprias – a multiplicação de «papéis», não devidamente autenticados,

decorreu também de um novo período de vazio no controlo do «despacho». Relembre-se que

em 1593 o vice-rei arquiduque Alberto tinha regressado a Madrid, sendo nomeado um novo

colégio de Governadores onde Miguel de Moura terá assumido uma posição de destaque. O

Conselho de Estado continuou em Lisboa, formando-se com os Governadores do reino

escolhidos para o efeito, o bispo de Viseu e D. Cristóvão de Moura475. Mas logo em 1600, o

«despacho» dava sinais de uma certa paralisia. Miguel de Moura morreu nesse ano e os cinco

Governadores foram substituídos por Cristóvão de Moura, nomeado Vice-rei com poderes

semelhantes ao arquiduque Alberto. De acordo com Veríssimo Serrão, o novo vice-rei prometeu

aumentar a intensidade do «despacho», oferecendo audiência às «terças e quintas» conforme o

costume do reino, o que faz supor que esta prática teria caído em desuso476.

A defesa que o vice-rei, Cristóvão de Moura, e o seu «secretário de estado», Cristóvão

Soares, fizeram das jurisdições dos escrivães da Câmara e da Fazenda, chocava com os

propósitos do duque de Lerma em “olear” o funcionamento das secretarias de acordo com o

funcionamento do Conselho de Portugal. Contudo, nos reinados de D. Filipe II e D. Filipe III,

473 Sobre esta conjuntura, Fernando BOUZA ÁLVAREZ, «A saudade dos reinos e a semelhança do rei», Os vice-reinados de príncipes no Portugal dos Filipes», Portugal no Tempo dos Filipes..., pp. 111-126. 474 Sobre a evolução do «despacho», ver Fernando BOUZA ÁLVAREZ, D. Filipe I..., pp. 230-238. 475 D. Miguel de Castro, arcebispo de Lisboa; conde Portalegre, D. João da Silva, conde de Santa Cruz, D. Francisco Mascarenhas; conde de Sabugal, Duarte de Castelo Branco, e Miguel de Moura que, como ficou dito, viria a fazer parte deste colégio de governadores entre 1593 e 1599. 476 Joaquim Veríssimo SERRÃO, «A chegada do vice-rei D. Cristovão da Moura em 1600. Um documento Inédito», Colectânea de Estudos em Honra do Prof. Doutor Damião Peres, Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1975, pp. 205-213.

115

vão ser reduzidos os oficiais da Câmara régia, o que correspondeu a uma rápida ascensão de

escreventes e oficiais maiores e menores actuando na dependência das secretarias de estado477.

O valido de D. Filipe II, insistiu na disciplina do «despacho» e, em 1604, por não se

cumprirem as recomendações processuais na produção documental, voltou a ordenar-se que os

oficiais de escrita respeitassem escrupulosamente o circuito da produção dos documentos

régios478. Pretendia-se que as consultas dos tribunais fossem inequivocamente remetidas ao vice-

rei que as enviaria com a sua correspondência ordinária ao Conselho de Portugal, de onde

subiriam ao rei, ficando as consultas originais na corte da Monarquia Católica e respondendo-se

para Lisboa através das «Cartas régias». Percebe-se que a pulsão “autonómica” da “burocracia”

em Lisboa, começava a dotar-se de um ethos próprio que não respondia, pelo menos de forma

linear, nem ao estímulo do Vice-rei, nem ao Conselho de Portugal, nem às ordens de Lerma em

Valhadolid. A partir de 1604 vão ser inúmeras as tentativas de resolver as contradições da

produção documental, sendo que a disputa dos oficiais para obter o despacho das matérias mais

lucrativas marcou a evolução do perfil institucional das secretarias.

477 A consulta dos Índices das Chancelarias, embora não permita tirar conclusões definitivas permite uma sondagem das nomeações destes ofícios IAN/TT, Chancelaria de Felipe II, Padrões e Doações, escrivães da Câmara Real: «Alvará a Bartolomeu Fernandes», Liv. 28, fl. 110; «Carta Duarte Correia de Sousa», Liv. 32, fl. 221; «Carta a Sebastião Perestrelo», Liv. 11, fl. 176v. Quanto aos escrivães da Fazenda Real: «Carta a Gaspar Fernandes Redovalho», Liv. 8, fl. 220; «Carta a João Álvares Soares», Liv. 28, fl. 70v; «Carta a Luís Álvares de Azevedo», Liv. 31, fl. 136v; «Carta a Manuel de Azevedo», Liv. 16, fl. 284; «Carta a Mateus Pires», Liv. 9, fl 240; «Carta a Pedro de Paiva», Liv. 12, fl. 272v; «Carta a Sebastião de Abreu», Liv. 29, fl. 215v; «Carta a Sebastião Perestrelo», Liv. 11, fl. 176 478«Alvará de 13 de Dezembro de 1604» reconfirmou o estabelecido no «Alvará de 1601», uma vez que a prática não tinha cessado. O rei mandou então expressamente ao vice-rei que fizesse cumprir a proibição e fizesse o registo deste «Alvará» nos Livros do Desembargo do Paço, Casa da Suplicação, Relação do Porto, Conselho da Índia, Conselho da Fazenda e Mesa da Consciência, ordenando ainda o envio dos «treslados» do «Alvará», assinados pelo Doutor Pedro Barbosa do Conselho de Estado e chanceler-mor do reino, aos ouvidores e corregedores das Comarcas, para uma eficaz difusão do conteúdo legislativo, impondo, como o «Alvará», que se reformava o valor de «Carta régia» (sem embargo das OF, Liv. 2, Tit. XL).

116

3. As «matérias ultramarinas» no Conselho da Índia e o controlo da

Fazenda pela Secretaria de Estado.

Nesta fase, o «despacho» sofria as consequências naturais da disputa pelo equilíbrio de

poderes. Ao vice-reinado de Cristóvão de Moura sucederam dois fugazes governos (D. Afonso

de Castelo-Branco, 1603-1604 e D. Pedro de Castilho479, 1605-1607) atravessados por complexas

questões com os «cristãos-novos» e com as Províncias dos Países Baixos. Por outro lado, como

temos vindo a sublinhar, o governo “burocrático” do reino encontrava-se num processo de

crescente autonomização. Há casos de alteração dos conteúdos da documentação régia,

efectuada pelos escrivães da Mesa da Consciência, no momento de copiarem as ordens para

difusão interna do reino480. Neste contexto, o disciplinamento do «despacho» e o «governo» da

enorme afluência de matérias ultramarinas emergiu como uma questão decisiva, dando origem à

criação do Conselho da Índia em 1604481.

A criação do Conselho tem sido vista como parte de um movimento mais vasto de

recrudescimento dos conselhos mas também como resposta à necessidade de voltar a criar

correspondências entre os órgãos da monarquia em Valhadolid e o «despacho» em Lisboa482. É

neste sentido que deve ser lida a vontade de clarificar as «matérias de estado» no contexto do

“império”. Com efeito, em 1604, foi ordenado a Diogo Velho, «secretário» da «Índia, Brasil,

Mina e Guiné», que entregasse ao novo tribunal todos os papéis que tivesse em seu poder.

Embora não exista «Carta de confirmação», foi João Brandão Soares que substituiu

Diogo Velho nas «matérias» da Índia, desenvolvendo o seu trabalho no âmbito do Conselho em

1604483. Não é muito claro qual o destino da secretaria da «Repartição da Índia» mas tudo indica

que o seu despacho passou a ser tramitado pelo novo Conselho. Na verdade, existe um conjunto

de servidores que despacharam na secretario do Conselho484, mas que surgem também a assinar

479 Joaquim Veríssimo SERRÃO, Governo dos Reis Espanhóis..., pp. 63-68 e bibliografia citada. 480 Joaquim Veríssimo SERRÃO, Governo dos Reis Espanhóis..., p. 67 e notas. 481 Regimento de 3 de Agosto de 1604, dado por Felipe II. Uma cópia do «Reg. de 25 de Julho de 1604», Valhadolid, encontrava-se depositado na Torre do Tombo, no século XVIII, Liv. 2 das Leys, fol. 7, António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol. VII, Coimbra, 1949, p. 110. Ordena-se a entrega de uma cópia impressa do Regimento a cada um dos Conselheiros e ao Secretário do Conselho da Índia. Francisco Mendes da LUZ, O Conselho da Índia..., pp. 402 e ss. 482 Para um enquadramento genérico destas correntes historiográficas, Diogo Ramada CURTO, «Filipe III (II de Portugal)», No Alvorecer da Modernidade…, pp. 481-484. 483 No mesmo sentido, Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», p. 72 e Santiago LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal..., p. 495. 484 IAN/TT, Chancelaria de D. Felipe II, «Secretário do Conselho da Índia, Carta a António Campelo», Liv. 17, fl. 272v; «Secretário do Conselho da Índia, Carta a António Velles», Liv. 18, fl. 22; «Secretário do Conselho da Índia, Carta a João Brandão Soares», Liv. 17, fl 51; «Secretário do Conselho da Índia, Carta a Pedro da Costa», Liv. 17, fl. 32

117

matérias no momento em que, dissolvido aquele órgão, em 1614, foi recuperado

provisoriamente o cargo de «secretário do Estado da Índia», exercido por oficiais como Pedro da

Costa, António Velles de Cimas485 ou António Campelo486.

Que consequências trouxe o Conselho da Índia à efectiva separação de matérias entre as

secretarias em formação?

Não era fácil disciplinar procedimentos enraizados na prática da Corte. Desde há muito

que os assuntos ultramarinos eram disputados tanto pelos escrivães da Fazenda como pelos

«secretários» do Reino. O «Regimento» de 1604 assinalava que o Conselho devia despachar todas

as matérias e negócios das “terras ultramarinas”, assim de «Estado e Governo, como de Guerra,

Justiça e Fazenda, e Eclesiásticas, e de qualquer outra qualidade que pertencessem aos Estados

da Índia, Brasil, Guiné, Ilhas de São Tomé, Cabo Verde, Angola, exceptuando as Ilhas da

Madeira e Açores, bem como os lugares de África»487. Esta nova forma do «despacho» procurava

remediar as necessidades das conquistas, centralizar os avisos e informações do império, de

forma a saber se aquilo que o rei mandara prover fora efectivamente cumprido. De forma a dar

seguimento a esta intenção, a regulamentação régia foi esclarecendo, mais incisivamente, o

funcionamento da Secretaria tentando “funcionalizar” a sua estrutura : ninguém poderia aí

escrever para além dos oficiais, sendo que estes dependiam totalmente dos «secretários»,

podendo ser despedidos a qualquer momento488.

A par da regulação da secretaria do Conselho da Índia, o «governo» Áustria deparava-se

com problemas antigos do «despacho» na nova secretaria de estado. Cerca de 1607, corriam

notícias sobre os escrivães da Mesa da Consciência e Ordens alterarem o conteúdo das

«Portarias» dos «secretários» no momento de efectuar a divulgação da documentação exarada,

fossem «Provisões» ou «Alvarás»489. Também o Desembargo do Paço interferia no circuito

documental contornando o direito régio sem «Consulta» do Conselho de Portugal490.

485 AHU, Reino, cx. 2, pasta 37. Assinou como «secretário» um «Regimento» de 29 de Janeiro de 1607, bem como diversos «Alvarás» e «Cartas» até 1611, Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», p. 72. 486 Assinou como secretário pelo menos um Alvará de 27 de Março de 1612, Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», p. 72. 487 Francisco Mendes da LUZ, O Conselho da Índia..., p. 577. 488 Embora a sua contratação implicasse o exame prévio do Conselho da Índia, «Carta Régia sobre os Secretários do Conselho da Índia, de 13 de Agosto de 1605 », publicada por Francisco Mendes da LUZ, O Conselho da Índia..., pp. 402-403. 489 «Carta Régia de 30 de Junho de 1607». 490 «Carta Régia de 20 de Julho de 1607».

118

Este tipo de interferências decorria da complexidade do circuito documental,

complexidade que os recorrentes esforços dos oficiais em Madrid ou em Vallhadolid não

conseguia simplificar. Fernanda Olival, numa recente biografia de D. Filipe II, descreveu parte

desse complicado processo. Qualquer vassalo podia entregar «petições» no Paço da Ribeira ou

na casa do vice-rei, lugares a partir dos quais o escrivão da Câmara encaminharia o material

peticionário para o Tribunal respectivo491. Normalmente, uma segunda instância, levava as

petições a subirem em «Consulta» ao vice-rei e conselheiros de estado, com «Pareceres» redigidos

pelo «secretário de estado» ou pelo «secretário da Repartição da Índia», sendo posteriormente

assinados pelos vice-reis. Segundo a recomendação régia de D. Filipe I, quando se tratava de

«petições» sobre «mercês» relevantes, ou matérias de «governo» de maior importância, os

«papéis» deviam seguir ainda para a Corte da Monarquia Católica, a fim de se consultar o rei, por

intermédio do Conselho de Portugal. Em Valhadolid, e depois novamente em Madrid, os

«secretários do Conselho de Portugal» controlavam toda a tramitação, devolvendo a resposta

final ao vice-rei em Lisboa. A partir desta «Consulta» régia, um dos «secretários» em Lisboa

remetia a informação para o Tribunal respectivo, atingindo-se o final do circuito com a

devolução da decisão às «partes».

Nesta breve descrição que temos vindo a desenhar, deve ser tido em conta, tanto a

complexidade inerente aos diferentes tipos documentais como as particularidades do

funcionamento «polissidonal» da monarquia. Lembre-se que os «secretários do Conselho da

Índia» trabalhavam em estreita colaboração com a «secretaria de estado», por onde se

despachavam as «matérias de estado» e o «serviço ordinário» do vice-rei, complicando ainda mais

o circuito peticionário destas matérias492.

Depreende-se, portanto, que as dificuldades de “comunicação política” fossem

acentuadas. Não espanta que permanecesse na ordem do dia a vontade de simplificar este estado

de coisas. Desde 1608 que o vice-rei, de novo Cristóvão de Moura, pressionava os «ministros» na

Corte do Rei Católico, no sentido de alterar a configuração da “burocracia” dos assuntos

portugueses, o que tinha sérias consequências para os «secretários de estado» em Portugal e para

a relação destes com a «secretaria do novo Conselho da Índia»493. Com efeito, as «matérias

ultramarinas» eram fortemente disputadas, o que levou Rui Dias de Menezes, filho do antigo

«secretário da Repartição da Índia, Duarte Dias de Meneses, a conseguir ser nomeado em 1609

491 Fernanda OLIVAL, D. Filipe II, Círculo de Leitores, 2006, pp. 134-140. 492 IAN/TT, Chancelaria de Felipe III, «Secretário do Conselho da Índia, Carta a António Campelo», Liv. 17, fl. 272v. 493 Santiago de LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal..., pp. 225-228

119

«Secretário de Estado da Repartição da Índia, Brasil, Mina, Guine», trabalhando na dependência

do Conselho da Índia494. Por outro lado, o caso de Duarte Dias mostra como a divisão de

«matérias» era pouco circunscrita, havendo uma grande fluidez entre os assuntos ultramarinos e

o tratamento das «petições» e «mercês»495.

Na verdade, a vida atribulada do Conselho, disputando com a Mesa da Consciência, ou o

Conselho da Fazenda, grande parte do «despacho», tinha despertado inúmeros conflitos, o que

levou o «secretário de estado», Cristóvão Soares, a preparar, em Abril de 1613, um «Projecto de

Novo Regimento do Conselho da Índia». Convém lembrar que Cristóvão Soares trabalhava

como «secretário» desde o final da década de 1590, surgindo formalmente como «secretário de

estado» pelo menos desde 1602. Entre 1610 e 1614 era ele quem remetia habitualmente ao

Conselho da Índia para «despacho» as «matérias de estado» relativas ás conquistas496, controlando

de perto a informação sobre contratos e arrematações497. Neste sentido, o «Projecto» visava

agilizar a comunicação entre a secretaria do Conselho da Índia e a secretaria de estado. Deve

notar-se que pela terceira vez, depois de Alcáçova Carneiro em 1530 e de Miguel de Moura em

1578, um «secretário» procurava unificar sob a sua coordenação todo o «despacho» régio.

Apesar da sua aplicação não se ter verificado, o «Projecto» permite descrever a evolução

do despacho no Conselho da Índia bem como as ligações com o «despacho» do reino498.

A nova configuração – elaborada por Cristóvão Soares – apostava na separação das

«matérias», para garantir a agilidade do despacho. Este «Projecto», dando nota das diferenças

entre os conteúdos respigados do «Regimento» anterior e as inovações, confirmava o aumento

dos «negócios», passando estes a estar cometidos a dois «secretários», secundados cada um por

dois oficiais, reflectindo uma tendência, também nos assuntos do «governo» do reino, cada vez

mais emergente: a divisão entre «Estado» e «Mercês»499. No que diz respeito à atribuição destas

matérias, o «secretário» mais experiente devia encarregar-se do despacho das «matérias de estado,

guerra, justiça, fazenda, eclesiástico e de governo, tanto da Índia como das diferentes partes

ultramarinas», sendo, na opinião do «secretário de estado», Cristóvão Soares, os «negócios» de

494 IAN/TT, Chacelaria de Filipe II, Liv 20, fl. 187v. A «Carta» é de 27 de Setembro de 1609. 495 IAN/TT, Chancelaria de Filipe II, Liv 23, fl. 158v. Continou no serviço pelo menos até 1623, despachando também matérias de Fazenda. Assinou «Cartas Régias», em 1624, Leis de 1625 e 1628, um «Aviso» em 1625, «Cartas» dos Governadores para o rei em 1625. Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», pp. 70-73. 496 AHU, Reino, cx. 1, pasta 87 e pasta 120. 497 AHU, Reino, cx. 1, pasta 148. 498 «Projecto de Novo Regimento do Conselho da Índia», publicado por Francisco M. da LUZ, O Conselho da Índia..., pp. 524-576. 499 «Projecto de Novo Reg. do Conselho da Índia»..., pp. 549-550.

120

maior dificuldade. Ao «secretário» menos experiente eram cometidos os «despachos» de «mercês

e ofícios»500. Quanto aos processos de circulação documental, o «Projecto» era muito minucioso,

respondendo à crescente formalização de um trabalho de «secretaria», integrando a preocupação

com a rapidez e autonomia do processo e cortando, em parte, com o conceito de «Repartição».

O conjunto de «Cartas» e «Despachos», enviados ao Conselho, seria controlado pelos

«secretários», devendo este – em caso de notificação – dar seguimento de forma pronta às

«Consultas» consideradas urgentes. Os «secretários» devia ainda gerir a recepção e arquivo das

diferentes vias desta correspondência, bem como zelar pelo envio de contínua informação do

Conselho para as «conquistas»501, além de redigir as «Consultas» onde figurariam os resultados

das atribuições de «mercês», cabendo ao rei sancioná-las de forma definitiva. É fácil depreender

que os «secretários» adquiriam capacidade para influenciar decisões, controlando o circuito das

«Consultas» entre Presidente, conselheiros e rei502.

Todavia, as remodelações propostas não resolveram o problema da conflitualidade e o

vice-rei Cristóvão de Moura, segundo Luxán Meléndez, tudo fez durante o seu último ano de

vida para que o Conselho fosse extinto503. A pressão exercida em Madrid pelos vassalos

portugueses, no sentido de obter de recursos, tendeu a fortalecer o peso da secretaria de estado,

a partir da qual seria mais fácil coordenar o «governo» dos papéis e centralizar a informação. Foi

por aqui que passou a estratégia do «governo» Áustria a partir de 1615. Segundo Fernanda

Olival, na sequência dos poderes dados ao novo vice-rei, D. Frei Aleixo de Meneses (1614-

1615), os vedores e conselheiros da Fazenda tinham de apresentar semanalmente relação dos

contratos e arrendamentos504. Este facto possibilitou aos secretários de estado controlarem de

perto as matérias de «Fazenda»505. Por outro lado, com a extinção do Conselho da Índia em

1614, o conselho de Estado em Portugal aumentou o volume de trabalho, o que, certamente,

terá potenciado também a influência da secretaria de estado506.

500 «Projecto de Novo Reg. do Conselho da Índia»..., pp. 543-544. 501 «Projecto de Novo Reg. do Conselho da Índia»..., p. 547. 502 «Projecto de Novo Reg. do Conselho da Índia»..., pp. 551-553. 503 Santiago de LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal..., p. 258. Um resumo da complexa conflitualidade em Madrid entre Moura e Lerma, Joaquim Veríssimo SERRÃO, Governo dos Reis Espanhóis…, pp 79-81. 504 Fernanda OLIVAL, D. Filipe II…, pp. 130-131. 505 AHU, Reino, cx. 1, pasta 158. Ia sendo comum fazer «Requerimentos» ao «secretário de estado» para que desbloqueasse questões de Fazenda, tais como pagamentos ou contratos. 506 Neste período não é fácil identificar qual a exacta relação do «secretário de estado» – que vai crescendo em importância jurisdicional – com o Conselho de Estado, confundindo-se a actuação deste último tribunal com a prática de um «Conselho de Governo» formado por três conselheiros.

121

Em todo o caso, a delimitação das «matérias ultramarinas» permanecia por resolver,

ameaçando transformar-se num problema insolúvel. Em Junho de 1615 foi nomeado Vice-Rei o

conde de Salinas, D. Diogo da Silva, servindo interinamente D. Miguel de Castro, arcebispo de

Lisboa. O Conselho de Portugal produziu dois «Regimentos», um de 14 de Agosto de 1615 e

outro de 21 de Março de 1616, onde se verificava a necessidade de clarificar o tratamento dos

assuntos da Índia507. Entretanto, em 1616, foi ordenado que as matérias ultramarinas fossem

novamente enquadradas por um «secretário da Índia»508. Na época, continuava a ser Rui Dias de

Meneses o único «secretário da Índia» formalmente empossado509. O facto é que o encerramento

do Conselho deve ter precipitado os «papéis» da «Índia» num caos institucional. Com efeito, logo

em 1617, surgiu uma nova ordem alertando o vice-rei para o descuido a que tinham chegado os

«negócios» ultramarinos510. No mesmo sentido, o «Regimento» concedido ao vice-rei conde de

Salinas, D. Diogo da Silva, tinha sido previsto que os assuntos ultramarinos fossem tratados em

dois dos dias do despacho semanal, com a presença do «secretário de Estado da Repartição da

Índia»511. O recurso não surtiu efeito e o vice-rei respondeu a esta pressão disciplinadora com a

demora dos circuitos portugueses, incluindo a própria secretaria de estado512. Por sua vez, o

«secretário de estado» defendia-se com a morosa tramitação do Conselho de Portugal, dizendo

que, recentemente, tinham sido despachadas em Lisboa mais de mil «Consultas», permanecendo

a maioria sem resposta513.

Na verdade, o problema da agilização do «despacho» nas secretarias prendia-se com a

antiga dificuldade de harmonização entre a eficiência e o controlo, uma vez que o direito régio

continuava a impor aos «secretários» a obrigatoriedade da assinatura régia. Em Novembro de

1618 foi confirmada a validação das ordens dadas pelo duque de Lerma e pelo duque de Uceda,

no sentido de que o «secretários» dos tribunais e conselhos remetessem com rapidez todas as

«Ordens régias» que por esse tribunal tivessem que executar-se a todos os outros. Estas ordens,

507 Santiago de LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal..., p. 260. 508 «Carta Régia de 11 de Janeiro de 1616». 509 IAN/TT, Chancelaria de D. Filipe II, «Secretário de Estado, Carta a Rui Dias de Meneses», Liv. 20, fl. 181v, Liv. 23, fl. 158v. surge na documentação, «Alvara de lembrança de uma capela a seu filho de 1633, como do Conselho do rei, Secretário do rei, Escrivão da Fazenda e Confirmações, e Secretário das Mercês e Estado da Índia», Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», p. 78 510 «Carta Régia de 5 de Dezembro de 1617». 511 IAN/TT, Manuscritos da Livraria, 2674, carta 285. 512 AHU, Reino, cx. 2, pasta 8. A morosidade explica-se entre outras coisas pelo facto de, como vimos, a secretaria de estado começar a centralizar várias matérias de Fazenda. 513 IAN/TT, Manuscritos da Livraria, 2674, carta 285.

122

bem como as mercês, emanadas pelos tribunais deviam seguir debaixo de assinatura régia514. Ora

este tipo de generalização do direito régio, procurava unificar um «política» normativa através da

sistematização da informação, de modo a que os Tribunais actuassem de forma consertada.

Assim, no que dizia respeito à generalidade do «despacho», os Tribunais deviam ser avisados das

resoluções tomadas. Apenas as «Provisões» dos «negócios» cuja principal matéria residisse nos

próprios Tribunais deviam aí ser despachadas o que, como é bom de ver, resultava numa

enorme ambiguidade de competências515. Estas medidas esbarravam no moroso tempo de

resposta de um «governo manuscrito», criando ainda mais problemas de comunicação. De forma

a corrigir esta desarticulação endémica, ainda em 1618, equacionou-se novamente a

correspondência das secretarias de Lisboa e do Conselho de Portugal.

A situação era de tal forma decisiva que, em 1619, a viagem de D. Filipe II a Portugal

teve como uma da mais notáveis preocupações solucionar os problemas de tramitação

“burocrática”. A nomeação de D. Manuel de Castelo Branco, conde de Vila Nova, como

«escrivão da puridade», pode eventualmente ser vista como uma tentativa de voltar a uma

solução de coordenação com alguma tradição no reino516. Todavia, esta nomeação destinava-se

apenas à coordenação cerimonial, passando por «actos e juramentos» na forma «em que servirão

os outros escrivães da puridade»517. Por um lado, estes «actos» não representavam agora o

mesmo que na anterior crise dinástica. Por outro lado, o «secretário de estado» tinha adquirido,

por força da praxis castelhana, uma posição muito mais consistente, estatuto que, nessa mesma

visita, foi consagrado por uma outra simbologia de igual ou superior representatividade à

coordenação dos «actos e juramentos»: D. Filipe II ordenou que tanto nas «Audiências» como

nas «comidas públicas» pudessem estar presentes os «Grande do reino, Conselheiros de Estado,

Presidentes de Tribunais, Vedores da Fazenda, o Regedor, o Governador, os Oficiais da Casa

Real e os Secretários de Estado»518.

514 «Carta Régia de 15 de Novembro de 1618», contendo «Ordens» assinadas pelos duques de Lerma e Uceda. Remessa de cópias das «Ordens Régias pelos Secretários dos Tribunais, Mercês, Ordens Gerais, tenham assinatura Régia». 515 No contexto desta ambiguidade de competências, Francisco Trigozo Morato sugere alguns secretários que terão servido ocasionalmente: António Sanches de Farinha terá assinado documentos como secretário, Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», p. 77. Além disso, de acordo com o papel de Diogo Soares, também Marcos Tinoco, que viria a ser Secretário do Conselho Ultramarino, depois de 1643, AHU, Reino, cx. 11-A, pasta 5, e Francisco Coelho e Manuel Pereira, teriam também despachado como secretários, «mas de pouca consideração no seu ofício», o que explica a sua ausência das fontes administrativas, BPE, «Documentos vários, Papel que Diogo Soares escreveu ao rei de Castela sobre sujeitos de Portugal», CV / 2 – 19. 516 «Alvará de 13 de Julho de 1619». 517 Conde de TOVAR, «O Escrivão da Puridade», Estudos …, pp. 72 e ss. 518 Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários...», p. 72.

123

Em todo o caso, a vinda do rei, pouco acrescentou ao funcionamento do «despacho»,

aplicando-se em 1620 uma sentença do Desembargo do Paço, de 19 de Março de 1619, que

procurava resolver dúvidas sobre a tutela das «matérias do Estado da Índia e partes

ultramarinas»519. Na verdade, a generalização da designação «secretários de estado» a todos os

«secretários» – bem como a crescente importância do secretário das «matérias de estado» – vinha

provocando conflitos entre Rui Dias de Meneses e Cristóvão Soares. Rui Dias de Meneses, filho

do «secretário da Índia», Duarte Dias de Meneses, reclamava para si o «despacho das cousas da

índia»520. Por sua vez, o «secretário de estado», procurava alargar o «governo» a todos os campos

da decisão. Os conflitos não foram completamente resolvidos pois uma nova «Carta Régia»

procurava clarificar, em Julho de 1621, que competia ao «secretário de Estado das cousas da

Índia» despachar as «Cartas Patentes dos Governadores Ultramarinos»521.

O problema decorria de uma indeterminação do campo das «mercês» e da «guerra» e do

consequente «governo» da «Fazenda», no âmbito das «conquistas». Na sequência de um processo

há muito em curso, o «secretário de estado» vinha anexando competências em matéria de

fazenda real. Daí que em 1622, o «secretário de estado» fosse também o «secretário do Conselho

da Fazenda». Cristóvão Soares escrevia sobre as ordens dos Governadores do Reino (nesta

época D. Diogo de Castro e D. Diogo da Silva), sobre a averiguação de contas, sobre contratos,

sobre o procedimento de capitães e oficiais destinados às naus e sobre a responsabilidade dos

mantimentos da Armada da Costa522. Em 1625, o mesmo «secretário de estado» transmitia

ordens dos Governadores do Reino sobre o recrutamento de gente para ir à Índia, articulando

nesta questão as «Consultas» do Conselho da Fazenda523. A estreita relação entre a secretaria de

estado e as matérias de fazenda foi o “cavalo de Tróia” que tinha permitido invadir a «Repartição

da Índia»524.

Num plano da agilização dos «assuntos portugueses», o «governo» Áustria procurava

disciplinar estes conflitos, fazendo crescer os mecanismos de sindicância. A nova dinâmica

política, impulsionada pelos oficiais de D. Filipe III, produziu um conjunto de normas que

519 «Carta Régia de 14 de Janeiro de 1620». O conflito remontava a 1600 com o anterior «secretário da Rpartição da Índia», Diogo Velho. 520 AHU, Reino, cx. 3, pasta 16. A título de exemplo, o «secretário de estado», Cristóvão Soares, tinha assinado «Portarias» atribuindo ofícios de Fazenda, como o de escrivão da Casa da Índia. 521 «Carta Régia de 7 de Julho de 1621». 522 AHU, Reino, cx. 3, pasta 51. Nesse ano de 1622, o mesmo secretário escrevia sobre ordens dos governadores referentes às rendas para o fabrico e apresto das naus da Índia e aos seus mantimentos. 523 AHU, Reino, cx. 3, pasta 65. 524 AHU, Reino, cx. 5, pasta 11. Em 1622 o Conselho da Fazenda despachava o ofício de guarda-livros da Secretaria. AHU, Reino, cx. 3, pasta 86.

124

pretendia disciplinar o oficialato. Através dos textos normativos de 1621525, 1622526 e 1623527,

pretendia-se que os «secretários» – bem como outros ministros de «Justiça» e «Fazenda» –

actuassem sob uma vigilância mais apertada, declarando posses e vencimentos. Deste modo,

todos os «secretários com exercício», e os restantes ministros528, antes de receberem os

documentos formais das suas nomeações («Títulos» e «Provisões») deviam apresentar nos

Conselhos e Tribunais – onde eram exarados os documentos – relação e inventário de todos os

bens que tivessem ao tempo em que entravam no serviço régio. Do mesmo modo, sempre que

se verificassem promoções, os «secretários» seriam obrigados a renovar o «inventario de bens e

fazenda», com nota do «crescimento ou diminuiçam» que eventualmente ocorresse529. O

controlo dos «secretários» revestia-se de importância capital, uma vez que todas estas medidas

poderiam revelar-se infrutíferas se os especialistas na produção documental encontrassem meios

de passar os «Títulos» e «Cartas patentes» sem a respectiva apresentação dos bens530.

É conhecido como a partir de 1621, a emergência do valimento do conde-duque de

Olivares, alçado ao poder por D. Filipe III, imprime ao «governo» das «matérias portuguesas»

uma nova dinâmica. Deste modo, a questão do controlo dos bens, da sindicância e da

coordenação entre a acção dos secretários e a obediência aos propósitos gerais do «governo»

tornou-se um ponto de esforço do direito régio. Tanto em 1623, com a reafirmação dos

princípios de controlo do oficialato531 e a tentativa de criar uma «relação dos ofícios» existentes

em Portugal, como em 1624, com um novo «Regimento do Conselho de Estado»532, o governo

de Olivares procura sacudir as secretarias de estado. De qualquer modo, era um facto

consumado que o «secretário de estado», em Lisboa, ia fortalecendo os seus poderes. Em 1627,

Cristóvão Soares era solicitado por importantes aristocratas, como o duque de Bragança ou o

marquês de Gouveia, a propósito de devassas e negócios, tratados na corte, decorrentes de

525 «Carta Régia de 14 de Setembro de 1621». 526 «Carta Régia de 22 de Janeiro de 1622». 527 «Carta de Lei de 31 de Janeiro de 1623». 528 «Prezidentes de meus Conselhos e trubunaes, Visorreys e Conselheiros, sem exceptuar algum, Governadores, meus Secretários com exercício, Desembargadores, Corregedores do Cível e Crime da Corte, e da Relação da Casa do Porto, e todos os ministros do Conselho de minha Fazenda». 529 BA, 51 – X – 1, Governo de Portugal pelo Conde de Castro, vol. I, «Livro das Cartas de S. Mag escritas ao Governo de 2 de Agosto de 1631 até 31 de Dezembro do ditto ano». Note-se a recomendação do mesmo rigor para os oficiais da Casa Real com especiais responsabilidades sobre dinheiro entre os quais se contavam maioritariamente ofícios de escrita: «os escrivães da Fazenda e da Câmara, escrivães do Crime, escrivães do Publico e escrivães do Judicial». Como não podia deixar de ser, a «Carta» terminava com especial recomendação para os ministros que assistiam ao «despacho, resolução e maneio das matérias e negócios (...) de qualquer qualidade e dignidade e condição que fossem», sem excepção alguma. Eram também obrigados a dar relação dos seus bens, no seguimento de dez dias a seguir à publicação da «Ordem». 530 «Carta Régia de 5 de Março de 1625», proibia-se que, não podendo os Governadores passar certidões, não se passassem pelos «secretários». 531 «Decreto de 31 de Janeiro de 1623». 532 O Reg. é mencionado no «Decreto do 31 de Março de 1645».

125

conflitos nas suas terras533. Esta influência criava uma rede muito variada de interesses. Apenas

uma intervenção alargada do «secretário de estado» do Conselho de Portugal conseguiria

imprimir à secretaria de estado em Lisboa uma mais estreita subordinação dos secretários do

reino aos desígnios olivaristas.

4. «Secretários de estado» de Portugal na corte dos Filipes

Não é possível entender a evolução da secretaria de estado em Lisboa, sem a devida

análise das secretarias do Conselho de Portugal. Com isto, queremos chamar a atenção para o

facto dos «secretários» na Corte da Monarquia Católica passarem a ser – a partir de 1600-1602 –,

antes do mais, «secretários» do «rei de Portugal», o que significava, como veremos, um vínculo

ao rei e não ao Conselho. As consequências para o perfil dos «secretários» são de primeira

ordem, uma vez que este princípio de serviço ao rei confirma a diferenciação entre os

«secretários de estado», afectos a «governo» da «República», e os «secretários» afectos aos

Tribunais – detentores de um menor “capital social” –, mesmo que estes Tribunais fossem o

Conselho de Estado ou o Conselho de Portugal.

Vejamos como se processou a evolução do serviço dos «secretários de estado» em

Madrid e das secretarias do Conselho de Portugal.

Nas negociações acerca do governo da Coroa de Portugal, ficou estabelecido que os

«assuntos portugueses» seriam tratados por um Conselho que seguiria o rei nas suas deslocações

e «governo» quotidiano. No «despacho» desse Tribunal, seria determinante o desempenho do

«secretário e dos seus oficiais – dois escrivães da Fazenda, dois escrivães da Câmara, um

tesoureiro e escrivão respectivo534. Através do «Regimentos do Conselho de Portugal» de 27 de

Abril de 1586, foi estabelecido o modelo geral de actuação da secretaria535. Os «secretários»

deveriam recolher os «Votos» por escrito, elaborar as «Consultas», submetendo este material à

apreciação régia. Recebiam novamente as «Consultas» com o «Parecer» do rei e elaboravam com

base nessa deliberação a versão final. Por último, devolviam às «partes» a decisão. Por

conseguinte, o «secretário» do Conselho redigia todo o material das consultas e «despacho» das

533 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 117, nº 102 e nº 138. 534 O Tribunal seria composto por um eclesiástico (conselheiro de Estado), um vedor da Fazenda (conselheiro de Estado), um chanceler-mor, dois desembargadores do Paço. Foram nomeados para este Conselho (D. Jorge de Ataíde, bispo de Viseu; Cristovão de Moura, depois marquês de Castelo Rodrigo; os ouvidores Pedro Barbosa e Francisco Nogueira. 535 IAN/TT, Manuscritos da Livraria, nº 2608, fls. 18v-20v e 21-22.

126

partes, assumindo grande relevo na comunicação entre rei e o Conselho, intermediação

potenciada pela ausência de um «Presidente». Assim, todos os «papéis» trocados entre a Coroa

de Portugal e a Corte da Monarquia Católica deviam passar pelas mãos do «secretário» do

Conselho de Portugal, constituindo-se, este, no «cérebro» da comunicação entre os

«portugueses» e o governo régio em Madrid536.

Estas indicações gerais foram “afinadas” pelo «Regimento do Secretário do Conselho de

Portugal», também de 27 de Abril de 1586.

Diversas preocupações circunscreviam a actuação do «secretário».

Em primeiro lugar, as questões relacionadas com a “corrupção”. O «secretário» não

devia tomar dinheiro, ouro ou prata, jóias, cavalos de nenhum ministro ou negociante, mesmo

que estes elementos fossem facultados por empréstimo ou oferecidos de forma inteiramente

livre. Estando o Conselho encarregue da fixação dos contratos da Fazenda Real, o «secretário»

devia entabular as negociações, mas sem entrar em «convites, ‘jogos’ ou familiaridade excessiva».

Depois recomendava-se especial cuidado com o «segredo», submetendo-se o «secretário» à

autoridade dos Conselheiros537. Acrescia ao controlo da “informação oral” a preocupação com a

guarda da chave do Conselho e a vigia da pronta saída dos correios. Também a eficácia na

redacção e elaboração do «despacho», e o controlo dos oficiais dos «secretários» – que ficavam

inteiramente proibidos de estabelecer relações, negócios ou representações, por conta própria –,

deviam ser cuidadosamente vigiados. Por último, determinavam-se medidas para cercear o

crescimento “político” do «secretário», ordenando-se que este não «falasse senão em reposta ao

que fosse perguntado», devendo tratar os conselheiros «com respeito», efeitos de um justificado

receio perante o poder fáctico do «secretário» que, mesmo subalternizado em termos de prestígio

cortesão, adquiria, de forma comum, o controlo do «despacho» em muitos dos Conselhos da

Monarquia.

Com efeito, não obstante estes “mecanismos de segurança”, não tardou muito até que

Pedro Álvares Pereira, filho do primeiro «secretário» do Conselho de Portugal – Nuno Álvares

Pereira, que tinha servido até à data da morte, em 1586 – transcendesse o estatuto de «secretário»

do Conselho, unindo a esse ofício o «voto» de conselheiro. A sua grande influência junto do

vice-rei em Lisboa permitiu a multiplicação das suas ligações na Corte de D. Filipe II,

constituindo-se no principal interface da comunicação. Nesta altura, a conflitualidade no processo

536 Santiago de LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal..., p. 110. 537 O «Decreto de 28 de Julho de 1621», estranhava a «falta do segredo devido» no Conselho de Portugal.

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de «despacho» decorria da actuação de uma Junta da Fazenda que procurava controlar o trabalho

dos Conselhos. Apanhado nesta “guerra” entre Juntas e Conselhos, o «secretário» Pedro Álvares

Pereira, acabou por ser fortemente atacado pelo «secretário de estado» de D. Filipe II, Pedro de

Franqueza e em 1602, no contexto da reforma do Conselho de Portugal, foi afastado da

«secretaria»538. Todavia, o protagonismo alcançado por Pedro Álvares Pereira terá acelerado a

modificação do «despacho», sobretudo no que tocava a «matérias de mercês».

Segundo Luxán Meléndez, o crescente aperto da Fazenda Real, na Monarquia Católica,

tornava o controlo das «mercês» num dos mais importantes actos de «governo»539. Pressionado

pela necessidade de controlar o processo de decisão, o duque de Lerma deu nova organização à

secretaria do Conselho de Portugal, em 1602, dividindo os negócios por quatro «Repartições»,

cada uma com «secretário» respectivo540. Surgiu então um primeiro grupo alargado de oficiais,

com o intuito de fazer frente à multiplicação de «papéis»: Martim Afonso de Mexia541 foi

nomeado «secretário de Estado e Justiça»542; Fernão de Matos543, «secretário dos assuntos

Eclesiásticos e ordens militares»; Luís de Figueiredo, «secretário do Património e Fazenda

Real»544; Francisco de Almeida e Vasconcelos, secretário das Petições e Mercês»545. Esta reforma

introduzia uma outra particularidade de muitas consequências para o tema que nos ocupa. Os

«secretários» eram agora nomeados como «Secretários de Estado de Portugal», com vínculo ao

rei, podendo mesmo ser decidido, por ordem régia, o trânsito de «secretários» entre Lisboa e a

538 Santiago de LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal..., pp. 114-117 e notas. 539 Santiago de LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal..., uma boa síntese do problema no clássico trabalho de Antonio DOMÍNGUEZ ORTIZ, Política e Hacienda de Felipe IV, Madrid, 1960. Têm sido muito destacados os aspectos relacionados com a pressão financeira decorrente da guerra e não tanto os aspectos relacionados com a estrutura distributiva da riqueza. Um boa crítica em J. E. GELABERT, La bolsa del rey, Rey, reino y fisco en Castilla (1598-1648), Barcelona, 1997. 540 «Decreto 11 de Maio de 1602», do duque de Lerma sobre a «divisão das Secretarias de Estado no Conselho de Portugal em Madrid». Por estarem no reino Francisco de Almeida e Luís de Figueiredo, ordena que se escrevam «Cartas» para que compareçam em Madrid e guardem segredo das nomeações até chegarem», [AHNM, Estado, Liv. 81, fl. 99], publicado por Francisco M. da LUZ, p. 375. 541 D. Martim Afonso Mexia teve uma fulgurante ascensão social. Seguiu «Letras», estudou na Universidade de Salamanca, onde foi «Lente de Teologia». Voltando ao reino, foi «beneficiado» em S. Salvador de Elvas, chantre de Guimarães, desembargador e prelado de Tomar, «agente dos Negócios do reino» em Roma, passando depois a deputado da Mesa da Consciência e Ordens. Foi ainda Bispo de Leiria, Bispo de Lamego, Bispo de Coimbra, além de Governador do reino entre Setembro de 1621 e 30 de Agosto de 1623, data da sua morte, António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol. VII, p. 110; Luís Rebelo da SILVA, História de Portugal dos séculos XVII e XVIII…, vol. III, p. 565. Para uma síntese biográfica, Fortunato de ALMEIDA, História da Igreja em Portugal…, vol. III, pp. 763, 829 e 839. 542 Foi ele a coordenar a elaboração do «Reg. do Conselho da Índia» dado em Valhadolid a 25 de Julho de 1604. 543 IAN/TT, Chancelaria de D. Filipe II, «secretário de estado, Carta a Fernando de de Matos», Liv. 9, fl. 334v e Liv. 12, fl. 311v. Irmão de Afonso de Lucena (secretário da duquesa de Bragança e pai de Francisco de Lucena), cónego da Sé de Lisboa e Évora, secretário de Ordens e de estado no Conselho de Portugal em Madrid, e conselheiro Eclesiástico. 544 IAN/TT, Chancelaria de D. Filipe II, «secretário de estado, Carta a Luís de Figueiredo», Liv. 7, fl. 271v. 545 IAN/TT, Chancelaria de D. Filipe II, «secretário de Estado, Carta a Francisco de Almeida de Vasconcelos», Liv. 10, fl. 163

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Corte do Rei Católico, factor que reforçava a dimensão funcional das secretarias. No entanto,

recusava-se qualquer diferenciação hierárquica entre os diferentes «secretários de Estado»,

reforçando o peso corporativo da “burocracia” o que, de certa forma, contrariava a

funcionalidade pretendida.

Assim, mantiveram-se algumas dificuldades estruturais no trabalho dos «secretários».

Várias eram as sugestões para agilizar a produção documental, obedecendo a outros tantos

projectos de controlo sobre a decisão. Cristóvão de Moura propunha a remodelação do

Conselho de Portugal preferindo o aumento do número de «letrados», para abarcar com mais

determinação os assuntos de «Justiça». Por outro lado, o duque de Lerma procurava fazer

corresponder a estrutura do «despacho» na Corte de Valhadolid com a estrutura do «despacho»

em Lisboa546. Chegou mesmo a propor-se uma divisão das secretarias em Lisboa, ligando uma ao

Desembargo do Paço e outra ao Conselho de Estado, de forma a canalizar directamente a

informação ao Conselho de Portugal, de acordo com a temática das «Consultas» e sem outras

instâncias intermediárias.

Entretanto, em 1605, Martim Afonso de Mexia deixou a «secretaria de Estado» e foi

substituído pelo «secretário do Conselho da Índia» em Portugal, João Brandão Soares, operação

que pretendia estreitar os canais de comunicação e colocar no processo de decisão especialistas

com prática do «despacho» em Portugal547. No âmbito deste esforço de adequação às matérias da

Coroa de Portugal, Luís de Figueiredo passou a servir com o título de «secretário do Reino,

Contos, Africa e Ordens», enquanto Francisco de Almeida e Vasconcelos viu as matérias de

petições serem enquadradas pelo título de «secretário da Índia e Conquistas» de acordo com a

tradição portuguesa548.

Estas alterações potenciavam ainda mais os projectos autónomos da “burocracia” que se

ia autonomizando pelo reforço dos mecanismos processuais. Daí que, em 1607, tenha sido

criada uma «Junta» para nova reconfiguração do Conselho de Portugal. Desse organismo saiu

uma «Consulta» de 22 de Setembro de 1607, defendendo a redução do número de «secretários».

Nesta altura, Brandão Soares – o oficial menos enraizado na Corte –, abandonou o ofício de

«secretário do Conselho de Portugal». No âmbito da simplificação, Fernão de Matos passou a

servir como «secretário de Estado, Fazenda, Ordens militares, Justiça, Governo e provisão de

546 Santiago de LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal..., p. 167. 547 IAN/TT, Chancelaria de D. Filipe II, «secretário de estado, Carta a João Brandão Soares», Liv. 11, fl. 181 e Liv. 16, fl. 35. 548 Santiago de LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal..., p. 174.

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ofícios», enquanto Francisco de Almeida voltou a servir como «secretário de petições, mercês,

Fazenda, usando ambos o título de «Secretário de Estado», sem hierarquia ou precedências entre

eles, desaparecendo do Conselho os escrivães da Fazenda e sendo reduzido a um, o número de

escrivães da câmara549. Estas alterações, que pressupunham a nomeação de um Presidente –

medida que não chegou a efectivar-se –, não resolveram a enorme conflitualidade em torno da

decisão, muito agravada pela secretaria do Conselho da Índia que, em Lisboa, vinha aumentar

ainda mais o envio de «papéis» para o centro da Monarquia com as consequentes pressões

“burocráticas.”

O «despacho» dos «assuntos portugueses» atingiu níveis de morosidade insustentáveis e o

Conselho entrou num período de paralisia. Nesse momento, o «secretário», Fernão de Matos,

assegurou o funcionamento até cerca de 1609-1610550. As decisões sobre o modo de «governo»

de Portugal, ao qual se encontrava estreitamente ligado o modelo do «despacho», encontravam-

se dependentes de uma hipotética visita do rei a Portugal. Nesses anos previam-se mudanças,

confirmadas por decisão real, para novo encerramento do Conselho e substituição de todos os

conselheiros, à excepção dos dois «secretários». Entre 1612 e 1614, o Conselho de Portugal

permaneceu fechado, exceptuando-se o serviço das «secretarias», uma vez que os conselheiros

eram acusados de paralisar o «despacho», duplicando as instâncias de decisão. Começava a

generalizar-se a opinião de que apenas um «secretário» devia receber as «Consultas» dos

conselhos da Coroa de Portugal.

A falta de coordenação entre as secretarias acentuava a morosidade do «despacho». É

necessário sublinhar que a indeterminação de competências na provisão de ofícios, potenciava a

conflitualidade entre «secretários», inflamando a “luta” de Corte. As disputas entre «secretários»

pressupunham o controlo dos «papéis» e mesmo a promoção de oficiais das suas secretarias551.

Este tipo de ingerência implicava a articulação com o «secretário de estado», em Lisboa, em

torno das matérias de Fazenda. Apesar de um latente conflito cortesão, entre secretários e

conselheiros, as secretarias de Estado, em Lisboa e no Conselho de Portugal, travavam uma

batalha paralela, “usurpando” funções de outros secretários, sobre em matérias ultramarinas. Daí

que também o «secretários de estado» do Conselho de Portugal – em paralelo com um processo

que acompanhámos em Lisboa – tenha reforçado a sua posição, recebendo novas competências:

549 Santiago de LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal..., p. 175 e ss. Seguimos de muito perto o trabalho do autor. 550 BPE, «Carta de Fernão de Matos remettendo a El-Rei os despachos para os nomeados para Conselho Geral», Madrid, 4 de Fevereiro de 1610, cod. CV / 2 – 9 a fl. 421. 551 IAN/TT, Manuscritos da Livraria, 2608, fls. 131-131v.

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os «ofícios de Capitão das naus da Índia» e todos os ofícios superiores de Fazenda passaram a

depender da secretaria de Estado do Conselho de Portugal552. No ano de 1614, Fernão de Matos

foi substituído pelo sobrinho, Francisco de Lucena553. Filho de um antigo oficial da Casa de

Bragança554, desde cedo formado nos “corredores do poder”555, surgiu com naturalidade na

secretaria de Estado556. Este novo «secretário» veio potenciar a capacidade de trabalho da

«secretaria»557, criando ligações com o secretário de estado em Lisboa, Cristóvão Soares558.

Causalmente ou não, o certo é que, em 1615, um «Decreto» do duque de Lerma remetia

novamente os conselheiros a uma situação de fragilidade, encerrando o Conselho e ordenando

que o «despacho» continuasse nas mãos dos dois «secretários».

Até 1621, acentuou-se a discussão sobre a forma do «governo» do reino de Portugal

multiplicando-se os arbítrios que pediam a redução dos assuntos portugueses à coordenação de

um só «secretário». Neste contexto, deve sublinhar-se a emergência da “política olivarista” com a

abertura de um novo cenário no «despacho».

552 Santiago de LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal..., p. 258. 553 Terá nascido entre Julho de 1578 e Fevereiro de 1579. Terá estudado em Vila Viçosa na Corte dos duques, no Colégio das Artes, onde se ensinava latim, grego, retórica. Lucena casou com D. Francisco de Castro Melo de Noronha e Faro, parente próxima dos duques de Bragança. Deste casamento nasceu Afonso de Lucena Almeida e Noronha, fidalgo da Casa Real, Comendador da Ordem de Cristo e Secretário do Conselho de Portugal em Madrid antes e depois da restauração, José Emídio AMARO, Francisco de Lucena, Sua vida, Martírio e reabilitação, Subsídios para a História do reinado de D. João IV, Edição do Instituto para a Alta Cultura, Lisboa, 1945, pp. 86 e ss. 554 Afonso de Lucena, nascido em Maio de 1548, licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, e entrou para o serviço da Casa de Bragança aos 27 anos de idade. Foi a Casa de Bragança que assegurou tenças e mercês para a continuação dos seus estudos jurídicos em Coimbra, António Caetano de SOUSA, HGCRP, t. IV, p. 452. Foi ainda desembargador do duque na corte de Vila Viçosa, notabilizando-se como secretário da duquesa D. Catarina, em defesa dos seus direitos sucessórios. Cavaleiro e comendador da Ordem de Cristo, alcaide-mor das vilas de Portel e Evoramonte. Escreveu com Félix Teixeira as Allegações de Direito que se oferecem ao muito alto, e muito poderoso Rei D. Henrique Nosso Senhor, na causa da sucessão destes Reinos, por parte da Senhora D. Catharina sua sobrinha filha do Infante D. Duarte seu irmão a 22 de Outubro de 1579, impressas em Almeirim em 1580. Para uma interpretação da reflexão política de Afonso Lucena ver Paulo MERÊA, «A ideia da origem Popular do poder nos escritores portugueses anteriores à Restauração», Estudos de História do Direito, Coimbra Editora, Coimbra, 1923, pp. 229-246. 555 Assistiu à visita de Felipe II a D. Catarina; à recepção ao Arquiduque Alberto em 1584; à passagem por Vila Viçosa da primeira embaixada japonesa mandada a Roma; conviveu com a hospedagem em Outubro de 1601, a Rainúncio, 4º duque de Parma; participou na cerimónia religiosa da ordenação e sagração de D. Alexandre, irmão do duque, apresentado arcebispo de Évora; tomou parte nas festas do casamento de D. Teodósio com D. Ana Velasco, Francisco MORATO, «Memória sobre os secretarios dos reis...», p. 87. 556 IAN/TT, Chancelaria de D. Filipe II, Liv. 29, fl. 321v. A «Carta» de 28 de Agosto de 1614 foi elaborada por Francisco Barbosa, oficial da secretaria e assinada por Francisco de Almeida Vasconcelos a 23 de Agosto de 1614. O documento pressupunha algumas limitações no serviço, dada a ligação do secretário à Casa de Bragança. Quando tratasse de coisas tocantes a pessoas e casa do duque D. João «em qualquer maneira e por remota que fosse» não correriam por Francisco de Lucena, nem se acharia presente ao despacho. Devia receber 400 000 rs de ordenado não podendo receber das partes direitos nem percalços alguns. 557 Sobretudo, agilizando a assinatura régia, BPE, «Carta de Francisco de Lucena remettendo à assinatura régia uns despachos para a visitação do Santo Officio no Brazil», cod. CV / 2 – 9, fl. 385 e «Carta de Francisco de Lucena remettendo á assinagtura regia uma carta para os inquisidores de Évora, Valladolid, Julho de 1615», cod. CV / 2 – 9, fl. 358. 558 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 116, nº 63.

131

O valido de D. Felipe III defendia um «governo» “feito «de perto»”, o que equivalia a

reforçar as ligações com o reino de Portugal, centrando a tramitação de toda a documentação

das instituições portuguesas numa secretaria em Madrid. Claro está que este modelo implicaria

reformas em Lisboa, reforçando o Conselho de Estado que actuava junto dos Governadores. A

determinação de falta de «segredo» no Conselho de Portugal, assinalada por «Decreto», em 1621,

foi, possivelmente, um expediente para acelerar estas mudanças e legitimar um futuro

«secretário» da confiança do conde-duque de Olivares559. Na verdade, como temos visto, o

crescimento do expediente acentuava a preocupação de controlo sobre os oficiais. Assim, em

1627, foi decidido que o Conselho de Portugal devia remeter ao rei, todos os Sábados, a lista dos

«despachos» de todo o expediente ordinário lavrado durante a semana, tanto no que tocasse ao

«Governo como à graça». O rei mandava também consultar a hipótese de criar um «fiscal» para

controlo das decisões em matéria de «Fazenda»560. É neste contexto de construção de inúmeros

instrumentos de sindicância do «despacho» que vai surgir o novo enquadramento institucional

das secretarias. O conde-duque de Olivares começou por colocar em prática a funcionalidade

dos «secretários», no que diz respeito à sua deslocação. Daí que, em 1628, o «secretário de

estado» Francisco de Lucena tenha sido enviado a servir no reino, a fim de negociar

contribuições para o socorro da Índia e para a defesa do Brasil. Todavia, logo em 1629, no

Porto, Lucena viu-se envolvido num motim, encontrando muitas dificuldades para apaziguar a

situação561. Após estes incidentes com o «secretário», a Coroa procurou minimizar os danos

intensificado a protecção aos «ministros»562.

Não obstante a produção de normas no sentido de funcionalizar o oficialato, ou o

crescimento da influência dos «secretário» na Corte, no “terreno”, a realização dos planos de

«governo» era bem mais delicada. Talvez pela violência da situação vivida, Francisco Lucena

requereu em 1631 o regresso a Madrid. Contudo, foi provido no cargo de «secretário das Mercês

da Índia», decisão motivada por Olivares, que pretendia colocar na Corte de Madrid um

«secretário» da sua inteira confiança. Nesta altura, com a nomeação definitiva de Lucena como

«secretário» em Lisboa, foi chamado para servir como «secretário de Estado» no Conselho de

559 «Decreto de 28 de Julho de 1621». 560 «Decreto de 21 de Janeiro de 1627». 561 Jean-Frédéric SCHAUB, Portugal na Monarquia Hispânica (1580-1640), Livros Horizonte, Lisboa, 2001, p. 89 e ss. 562 «Carta Régia de 19 de Fevereiro de 1630» e «Carta Régia de 30 de Junho de 1630», «Providências sobre o insulto feito no Porto ao Secretário de Estado». Procurou regular-se a devassa do Desembargo do Paço dirigindo uma apertada relação a executar pelo corregedor do Crime da Corte, com alçada na cidade de Porto, Gabriel Pereira de Castro, apelidando de “insulto” a acção perpetrada no Porto contra Francisco de Lucena, «Carta régia de 25 de Julho de 1630». Uma pronta «Consulta» do Desembargo do Paço deu sequência ao «papel» redigido pelo corregedor do Crime da Corte – recomendando-se a «importância do negócio e conclusão da devassa», achando testemunhas, procedendo contra quem tentasse «demorar ou encobrir o processo», «Carta Régia de 30 de Junho de 1636».

132

Portugal, Marçal da Costa, um oficial com experiência em matérias financeiras563, bem como na

secretaria das mercês564. Esta nomeação seguia a intenção de chamar para as secretarias do

Conselho de Portugal oficiais com experiência na Fazenda de Portugal, permitindo aceder aos

meandros do «governo» em Lisboa565.

Para além desta preocupação mais nítida com um levantamento rigoroso da Fazenda,

continuavam por solucionar os problemas do «despacho» no Conselho de Portugal. Entre 1630

e 1631 foram produzidas mais pelas normativas566, numa fase em que o conflito em torno da

divisão de matérias atingia o seu auge567. Tal como nas secretarias em Lisboa, também no

Conselho de Portugal o controlo das «mercês» representava um dos pontos determinantes da

“luta” de Corte, facto que levantava resistências fortíssimas à implementação de qualquer

disciplinamento. Isto porque na perspectiva dos «secretários» responsáveis pelas «provisões, o

«despacho das mercês» impunha a jurisdição em «matérias de estado», sendo que os «secretários

563 BA, 51 – X – 1, Governo de Portugal pelo Conde de Castro, vol. I, «Livro das Cartas de S. Mag escritas ao Governo de 2 de Agosto de 1631 até 31 de Dezembro do ditto ano», «Carta [d’El rei sobre a repartição das secretarias e ofícios fl. 49v. Serviu como Secretário de Estado entre Abril e Agosto de 1631». Na verdade, esta fugaz passagem pela secretaria de estado em Madrid, tendo em conta que nos seus livros constaria, mais tarde, o registo de tenças avultadas – sem menção dos serviços justificativos –, levaria o historiador Luís Rebelo da Silva a suspeitar das intenções desta nomeação. Gratificações à parte, parece claro que a sua breve ida a Madrid se inscreve num processo de recolha de informação sobre a situação da Fazenda Real. Regressaria a Lisboa ainda no ano de 1631, obtendo o título formal de «secretário», Luís Rebelo da SILVA, História de Portugal dos séculos XVII e XVIII…, t. III, pp. 390. 564 AHU, Reino, cx. 1, pasta 152, Em Novembro de 1614, Marçal da Costa surge no controlo de «papéis» muito relevantes, por ordem do vice-rei de Portugal, arcebispo de Braga, D. Aleixo de Meneses, no sentido de estes serem consultados e analisados. Em Maio de 1622, Marçal da Costa, transmitiu, por escrito, ordens dos governadores do Reino, D. Diogo de Castro e D. Diogo da Silva, dirigindo-se ao conselheiro de Estado, e vedor da Fazenda, Rui da Silva, AHU, Reino, cx. 3, pasta 69. 565 AHU, Reino, cx. 3, pasta 78, transmitindo a solicitação dos governadores do Reino sobre a existência de escrivães extravagantes da Fazenda ou sobre o estado dos navios, AHU, Reino, cx. 3, pasta 90. Existem ainda diversos «Ofícios» de Marçal da Costa ao vedor da Fazenda Real, Luís da Silva, transmitindo ordens dos governadores do Reino (D. Diogo de Castro e D. Diogo da Silva) sobre outras matérias ultramarinas. Tanto mais que, como temos sublinhado, era comum os oficiais guardarem em sua casa documentação muito relevante, AHU, Reino, cx. 4-A, pasta 10. Note-se, por último, que Marçal da Costa tinha acesso aos Livros da Casa da Índia, que eram muitas vezes requisitados pelo Conselho da Fazenda. 566 «Novo Reg. a 15 de Outubro de 1630», confirmado pelo «Alvará de 28 de Julho de 1631», sobre a incapacidade de separar as competências dos «secretarios», Francisco Manuel de MELO, Aula Política, Curia Militar: Epístola Declamatoria ao Serenissimo Principe D. Theodozio, & Politica Militar, Mathias Pereira da Sylva, Lisboa, 1720, p. 11. 567 Sobre este complexo debate, BA, 51 – IX – 11, Do Governo de Espanha, tomo III, Dos Tribunais e Ministros pertêcêntes a Portugal e desputas entre ele, «Duuidas dos Secretarios, Lembranças de Afonso de Lucena a El-Rei sobre a repartição das Secretarias que residem no conselho de Portugal» fls. 37-37v; «Ordem de S.M. com a resolução das duvidas que moveram os dois secretários de Estado e das Mercês – sobre o que toca a cada uma das suas secretarias, 11 Março de 1660», fls. 41-42v; «Secretarios do Conss.º sobre a entrega dos papéis, sobre a entrega dos papéis das Secretarias de Estado e das Mercês aos Secretarios Afonso de Lucena e Francisco de Almeida, 12 de Janeiro, 1660», fl. 43-43v ; «Decreto de S.M. pela o qual manda cumprir inviolavelmente a ordem de 11 de setembro de 1631 para os secretários se avisarem uns aos outros dos despachos, Buen Retiro, 1662, 31 de Janeiro», fl. 45; «Ordem de S.M. aos Secretários das Juntas fixas e Tribunais para se avisarem uns aos outros dos despachos, Madrid, 1631, 11 de Setembro», fl. 46. Veja-se também, BA, 51 – VI – 11, «Decreto de sua Magestade acerca do libelo que se deu contra Gaspar de Faria Severim, Secretário das Mercês acerca do título de Marquês em França, Lisboa, 1662, 11 de Outubro, Lisboa, 1663, 17 de Janeiro», nº 122; BA, 51 – VI – 20, Miscelânea, 25, «Proposta de nomes de pessoas para os cargos de Secretário de Estado e Secretário das Mercês», fl. 63.

133

de estado» defendiam a anexação do «despacho das mercês» de forma a unificar a dimensão

prebendial das monarquias sob o título de «assuntos de Estado»568. Com a agravante de qualquer

um dos «secretários» ser o ponto de chegada de vastas redes de pressão, trabalhando para

canalizar prestígio político-económico. A situação agudizava-se. Os «secretários» disputavam a

decisão, sendo claro que uma capacidade de intervenção eficaz teria que passar por um novo

plano “burocrático”, usando o «despacho» do «governo» nas secretarias de uma forma

transversal.

Nas páginas seguintes descreveremos como este estado de coisa colocava o desempenho

dos «secretários» no seu zenith, marcando o triunfo das secretarias de estado mas também a sua

trágica queda.

5. A “cabeça do leviathan”: o «secretário de estado» e o «governo».

O contexto da “política olivarista” na década de 1630 está bem documentado pelos

detalhados estudos de Jean-Frédéric Schaub e António Oliveira, pelo que não nos deteremos em

explicações muito alargadas sobre as diferentes parcialidades de Corte. Para o ponto que agora

nos interessa, importa considerar os «Novos Regimentos do Conselho de Portugal» quando

tocam o trabalho das secretarias, algumas sondagens da correspondência “administrativa dos

secretários” e o acentuado esforço normativo efectuado no sentido de disciplinar a acção das

secretarias.

Do ponto de vista da expansão do poder régio, o ano de 1631 marcou um ponto de

viragem na história das secretarias de estado. Esta implementação de uma nova dinâmica no

Conselho de Portugal teve correspondência nas extensões dos poderes do «secretário de estado»

nos circuitos “políticos” de Lisboa569.

Em primeiro lugar, as mudanças nas secretarias de estado de Portugal em Madrid.

Para dar curso ao plano do conde-duque de Olivares, no que tocava à “burocracia” dos

assuntos portugueses, foi nomeado como «secretário de Estado, Fazenda e Justiça», Diogo

568 «Carta régia 19 de Setembro de 1631» sobre a «Repartição das Secretarias» «para melhor e mais breue despacho», uma vez que o disntinção entre «matérias ultramarinas» e a «Fazenda» representava outro problema insolúvel, BA, 51 – X – 1, Governo de Portugal pelo Conde de Castro, vol. I, «Livro das Cartas de S. Mag escritas ao Governo de 2 de Agosto de 1631 até 31 de Dezembro do ditto ano», fl 49v. 569 «Decreto de 19 de Setembro de 1631».

134

Soares, um antigo escrivão da Fazenda570 com larga experiência no «governo» do reino571. O

«secretário» passava a ser o centro do «despacho», substituindo o «Presidente» e intermediando a

comunicação entre o Conselho de Portugal, Lisboa, o Valido e o rei. De igual foram, eram-lhe

cometidas as provisões dos cargos de «governo» competência que depois das «meias anatas» –

imposto sobre os ofícios –, passava a ser uma fonte de rendimentos considerável. Estas

mutações têm sido observadas de um ponto de vista “cínico” e julgadas do ponto de vista dos

réditos. Contudo, a formação de uma “cabeça” do despacho, numa posição de superioridade

face aos restantes «secretários» e devidamente remunerada – de forma a imunizar o “técnico” da

corrupção e das pressões clientelares, contrárias às intenções do valido – correspondeu a uma

clara “politização” da decisão régia, tentando dotá-la de uma blindagem institucional mais eficaz

e libertá-la das pressões informais.

Esta colocação de Diogo de Soares na secretaria de estado foi acompanhada por uma

nova configuração das secretarias572. Gabriel de Almeida Vasconcelos seria o «secretário de

Estado das Mercês, Ordens e Padroados» e Luís Falcão o «secretário de Estado da Índia e

Conquistas»573. Também se designava formalmente em Lisboa um novo escrivão da Fazenda,

Miguel de Vasconcelos, confirmando-se o regresso de Marçal da Costa à escrivaninha do Registo

das Mercês, subconjunto da secretaria das mercês em Lisboa. Diogo Soares deveria elaborar um

«Livro» onde seria registada toda a evolução da Fazenda Real de Portugal, pelo menos desde o

início do reinado de D. Filipe III. Logo no ano seguinte, em 1632, uma «Provisão» estabelecia

que as contas de todas as matérias despachadas no reino deviam ser enviadas para o «secretário»

Luís Falcão574. Duas tendências podem destacar-se: a nova configuração servia o propósito de

570 Sobre a actuação de Diogo Soares como escrivão da Fazenda e escrivão do Conselho da Fazenda, em 1612, a propósito do provimento de ofícios, AHU, Reino, cx. 1, pasta 103 e em 1618, AHU, Reino, cx. 2, pasta 78. 571 Genro de Miguel de Vasconcelos por parte de sua terceira mulher D. António de Melo e Vasconcelos, e também cunhado dele por parte de sua segunda mulher, D. Mariana de Eça, filho de João Alvares Soares, Vedor da Fazenda. Chegou a Madrid em 1631 por recomendação de Manuel de Moura, marquês de Castelo Rodrigo. Francisco Ferreira NEVES, Testamento de Diogo Soares Secretário de Estado em Espanha no ano de 1640 e fundador do mosteiro de Serém, Aveiro, 1952, pp. 10-11. A 23 de Agosto de 1649, Diogo Soares fez testamento, vindo a morrer apenas alguns dias mais tarde, a 29 de Agosto de 1649 em Madrid, na casa onde vivia na rua de Ortaleza. No mesmo dia foi aberto e lido o seu testamento a requerimento de sua mulher, D. Antónia de Melo. Sobre a actuação de Diogo Soares, Jean-Frédéric SCHAUB, Portugal na Monarquia Hispânica..., pp. 81 e ss. Para uma análise mais detalhada, Jean-Frédéric SCHAUB, Le Portugal..., pp- 226-240. 572 BA, 51 – X – 1, Governo de Portugal pelo Conde de Castro, Vol. I, «Carta d’El rei sobre a repartição das secretarias e ofícios na seguinte forma: Gabriel de Almeida Vasconcelos – a de Mercês, Ordens e Padroados; Diogo Soares – a Secretaria de Estado, Fazenda e Justiça; Luís Falcão – Secretaria de Estado da Índia e Conquistas; Miguel de Vasconcelos – o ofício de Escrivão da Fazenda; Marçal da Costa – ofício de Escrivão do Registo de Mercês, 1631, 19 de Setembro, Sobre o Conselho de Estado», fl. 51v-52. 573 A Luís Falcão tinha sido dada anteriormente «mercê do título de secretário» para que ajudasse os secretários do Conselho de Portugal nas suas «ausências e impediementos», IAN/TT, Chancelaria de D. Filipe III, Liv. 25, fl. 66. Para a análise da actuação de Luís Falcão em comunicação com os escrivães da Câmara Régia, AHU, Reino, cx. 6, pasta . O título de «secretário da Índia e conquistas» viria extinguir-se com a sua morte em 1632. 574 «Provisão de 16 de Novembro de 1632».

135

uma maior preocupação com os aspectos contabilísticos; além da formação desta rede de

“técnicos, quase todos afectos à Fazenda, a construção da malha assentava sobre uma mesma

clientela centrada no secretário de estado em Madrid575.

Dois anos depois, um novo «Regimento» dado ao Conselho de Portugal, a 3 de Março

1633, veio enquadrar a agilização do «despacho», contudo, reafirmando a “judicialização” do

processo de decisão576. Lembre-se que os «Regimentos», aplicados ou não, devem ser entendidos

como medida de um projecto de actuação e não como espelho da prática do Conselho.

Em primeiro lugar, surgiam medidas sobre o controlo do «segredo» e a rapidez da

produção documental: Os «ministros» deviam colocar «as vistas» nos papéis do «despacho»

depois dos «secretários» enviarem os papéis, controlando o processo no espaço de um dia577.

Porém, a tramitação colocava a tradicional possibilidade de se levantarem dúvidas sobre os

«papéis», sendo estes devolvidos aos «secretários», para serem analisados no Conselho, podendo

ainda subir a esclarecimento régio578.

Todavia, reforçava-se a autoridade dos conselheiros. Os «papéis» vindos do Reino para

assinar pelo rei, continuavam a ser analisados no Conselho (uma tarde cada semana) subindo

apenas à assinatura régia depois de rubricados pelos «ministros» do Conselho. Do mesmo modo,

os «secretários» deviam levar ao Conselho a listas dos despachos enviados, lendo-se depois essas

listas para que todos os ministros pudessem estar a par dos negócios a tratar a cada momento579.

Os «secretários deviam registar as listas dos «Despachos» chegados de Portugal, para que, por

esses livros, os conselheiros tivessem conhecimento dos «papéis» que estavam em poder

575 BA, 51 – VI – 2, «Carta d’El Rei D. Filipe III sobre o provimento de Miguel de Vasconcelos e Brito da serventia de Secretário de Estado de Portugal, 1635, 8 de Junho», fl. 450. 576 BA, 51 – X – 1, Governo de Portugal pelo Conde de Castro, vol. I, «Cópia do Regimento que SM mandou dar ao novo Conselho de Portugal em 3 de Março 1633», fls. 8 -14. Este Reg. seria utilizado na prática “administrativa” do Conselho pelo menos até 1662. Estabelecia-se desde logo que todos os provimentos de «governos, Prelazias, Presidencias, Capitanias, e de quaisquer cargos de justiça como de fazenda», seriam consultados pelo Conselho, precedidos de consulta e parecer do Vice-rei vonta-se depois. 577 BA, 51 – X – 1, Governo de Portugal pelo Conde de Castro, vol. I, «Cópia do Regimento que SM mandou dar ao novo Conselho de Portugal em 3 de Março 1633», fl. 9. Em matérias específicas podia existir alternativa a este formato. Por exemplo, um oficial especializado em Fazenda punha ‘as vistas’ nas «Provisões» tocantes à Fazenda mas não nas «Cartas», ainda que as fizesse o escrivão da Fazenda. Nas «Cartas» seria um conselheiro. Todas estas práticas respondiam a uma tensão entre eficácia e memória política como se vê pelo confronto que se faz de uma Carta de Pedro Álvares Pereira de 29 de Novembro de 1603. 578 BA, 51 – X – 1, «Cópia do Reg. que SM…», fl. 10. O «papel» refere que a princípio «não votavam os togados mais que nas questões de justiça, e isto se conforma com o uso dos Romanos, em que os Conselheiros letrados só votavão no civil». 579 BA, 51 – X – 1, «Cópia do Reg. que SM…», fl. 12. Os correios ordinários seriam despachados da corte cada quinze dias, às quartas-feiras, e o «secretário de estado» a quem tocasse despachá-los, devia enviá-los logo que os tivesse em seu poder e em ordem.

136

daqueles oficiais. Deste modo, os conselheiros tinham indicações para seguir de perto o

«despacho», obrigando os «secretários» a dar pronta notícia do seu conteúdo.

Vinham também referidas as clássicas preocupações com a divisão de matérias, devendo

os «secretários» devolver prontamente os «papéis» que não pertencessem à sua jurisdição. Desta

forma, o «Novo Regimento» consagrava a vontade do rei de que os «negócios das Secretarias do

Conselho andassem separados e divididos» para que nenhum «secretário» usurpasse o espaço de

um outro, nem no Conselho se pudesse despachar de outra forma. Na circulação de «papéis»

entre o rei e os «secretários», a confusão de matérias seria evitada com a anotação do nome do

«secretário» na respectiva «Consulta» junto do dia, mês e ano em que fossem iniciado o processo

de decisão. Resguardava-se, é claro, a excepção da ausência de um dos «secretários», devendo

prevalecer, nesse caso, a rapidez do «despacho», mesmo que a matéria fosse estranha ao

«secretário» presente580.

Outro dos aspectos determinantes prendia-se com a comunicação entre o rei e o reino de

Portugal. Das «Resoluções» tomadas pelo rei, em negócios e matérias consultadas, ou do

resolvido pelo Conselho (conforme o «Regimento»), deviam ser produzidas «Cartas» assinadas

«por mão régia e não em outra forma». Proibia-se que o Conselho de Portugal ou os seus

«secretários» dessem resposta às «partes» (fosse em «despachos» ou «negocios»). Deviam ser

inequivocamente remetidos ao reino para que fossem o vice-rei e os Tribunais a comunicar a

decisão. Daí que se recomendasse particular cuidado na rapidez necessária para os «despachos»

das «Cartas do vice-rei e consultas dos Tribunais portugueses581.

Por último deve salientar-se um maior cuidado na sistematização da informação. Os

«secretários» seriam obrigados a elaborar «Livros» com o registo das «Consultas», onde as

respostas, depois de devolvidas no processo de decisão, seriam também registadas, tomando-se

nota, separadamente, de todos os «despachos» enviados a Portugal e daqueles que tinham sido

«feitos às partes». Quanto à produção normativa ( «Decretos» e «Ordens»), cada «Repartição»

deveria elaborar «Livro» próprio onde seriam anotadas, de forma a possuir correspondência

entre o processo de decisão – com os «Livros de «Consultas» e respectivas «Resoluções» – e o

resultado final, expresso pelo direito régio. Sempre que esses «Decretos» ou «Ordens»

580 BA, 51 – X – 1, «Cópia do Reg. que SM…», 12v-13. 581 BA, 51 – X – 1, «Cópia do Reg. que SM…», 13v.

137

implicassem jurisdição de mais do que um «secretário» seria o «secretário de estado» do

Conselho a definir quem seguiria o processo de redacção e publicação582.

Entretanto o «Novo Regimento» apontava para a formatação dos «secretários de estado»

em Lisboa. Cada um desses «secretários», à semelhança do que se passava em Madrid, devia

remeter, por sua mão, todas as «Consultas» ao rei, e, logo que as «Consultas fossem rubricadas,

devia registar em «Livro» as que estivessem em apreciação superior, para que os «ministros»

soubessem, a todo o momento, o que estava em «consulta régia», e em que dia tinha sido enviada

a informação ao rei. Note-se uma preocupação crescente quer com a rapidez da decisão, quer

com o conhecimento exacto do andamento dos «negócios». Neste sentido, deviam ser

elaborados pelos «secretários «resumos» provisórios dos «votos», das «mercês» e dos «serviços»

em execução para que o rei tivesse notícia de tudo o que se discutia em Portugal.583

Que acolhimento teriam estas indicações na actuação dos «secretários» residentes no

reino de Portugal?

Vejamos a forma da secretaria de estado em Lisboa nesta década de 1630.

Cerca de 1631, Cristóvão Soares, o oficial que acompanhara o «despacho» durante quase

trinta anos, deixara de intervir no «despacho» e no «governo»584. Logo surgiram os antigos

problemas sobre a divisão de competências em matéria ultramarina – sobretudo no plano das

«mercês» –, conflito entre o «secretario de estado da Índia», Lucena e escrivão da Fazenda,

Miguel de Vasconcelos585. Desde 1631 que o escrivão da Fazenda, substituto de Diogo Soares

nesse mesmo cargo, vinha aumentando o seu poder de influência. Em todo caso, uma «Provisão

Régia» de 1632 determinou que se dirigissem à «Secretaria de Estado da Índia e Mercês» todo os

negócios do «Estado, governo, justiça e fazenda das partes ultramarinas»586. Todavia, após a saída

de Cristóvão Soares, Miguel de Vasconcelos iria iniciar o cerco à secretaria de estado, com

consequências decisivas para o perfil da instituição.

É preciso fazer notar que estes conflitos decorriam num plano de grande indeterminação

entre as competências de cada «secretário». No que toca à estabilização do «despacho da

mercês», apesar da existência de um verdadeiro surto normativo, a necessidade de, em

582 BA, 51 – X – 1, «Cópia do Reg. que SM…», fl. 14. 583 BA, 51 – X – 1, «Governo de Portugal pelo Conde de Castro, vol. I, «Cópia do Regimento que SM mandou dar ao novo Conselho de Portugal em 3 de Março 1633», fl. 14. 584 Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários...», p. 72. 585 «Carta Régia de 16 de Fevereiro de 1632». 586 «Provisão Régia de 16 de Fevereiro de 1632».

138

simultâneo, garantir a «justiça distributiva» e «comutativa», e obter os proveitos das imposições

sobre os cargos, tornava o problema das competências numa matéria de extrema complexidade.

Neste sentido, em 1632, os «secretários» eram obrigados a responder às «partes» no espaço de

oito dias, logo após baixarem as «Consultas» ou «Decretos» com atribuição de «mercês», para que

fossem devidamente cobrados os tributos, sob pena de não ser possível levantar as «Cartas de

Mercê» na Chancelaria587. Isto evidenciava a necessidade de o trabalho “burocrático” ter em

conta as imposições pagas pelos agraciados. Esta necessidade de recolher as imposições foi

pressionando o funcionamento “burocrático” do sistema – notificação rápida, mesmo que fora

do reino, onde devia comunicar-se aos «vice-reis, Presidentes, Governadores ou Ministros», a

mercê concedida, tirando para isso recibo do aviso – e, por isso, concorrendo para a separação

de matérias.

Na verdade, como temos vindo a sublinhar assistia-se a um crescente fortalecimento das

«mercês» e «petições» como matéria central do «governo». D. Francisco Manuel de Melo faz

remontar a este período, entre 1630 e 1640, a emergência de uma secretaria das mercês, com

autonomia específica588. Para o efeito, deve ter sido determinante a agilidade de Francisco de

Lucena, como vimos, nomeado secretário no âmbito das «mercês» desde 1631589. Como

facilmente se compreende, nesta questão das «mercês da Índia», para além dos rendimentos

sobre as «cartas de ofícios», estava em causa também o controlo sobre um amplo leque de

informações, passíveis de potenciar rendimentos em contratos e arrendamentos, alterações da

moeda, armadas do Brasil e outros tantos negócios lucrativos. O acesso à informação ia

constituindo um valor cada vez mais determinante, gerando contradições neste movimento que

temos vindo a descrever, onde a divisão de matérias e a especialização de «secretários» nem

sempre caminhava no mesmo sentido. Apesar da pressão financeira, que, como ficou dito,

impunha a especialização “burocrática” – em torno da eficácia e do controlo – o facto de essa

especialização colocar em jogo a distribuição social do poder gerava um contra movimento de

indeterminação entre «secretarias». Daí que, todo o esforço do poder régio se dirigisse para

aplacar este “remoinho” entre os assuntos de «governo» e o seu processo de decisão.

Em 1632, o conde da Castanheira escrevia ao conde-duque de Olivares pedindo

esclarecimentos acerca da confusão entre as divisões de matérias entre «Índia», «Reino» e

587 «Carta Régia de 1 de Dezembro de 1632». Sobre os «secretários de estado» escreverem às partes para que tirassem os despachos de suas Mercês. 588 Francisco Manuel de MELO, Aula Política…, p. 12. 589 IAN/TT, Chancelaria de D. Filipe III, «secretário das Mercês da Índia, Francisco de Lucena», Liv. 29, fl. 200v.

139

«petições», procurando obter uma circunscrição formal590. Na verdade, estes problemas evoluíam

num plano mais vasto: o forte debate em Madrid acerca do modelo de «governo» de Portugal,

discutindo-se o «vice-reinato de sangue ou natural», ou ainda o número de Governadores no

caso de se optar por uma solução colegial. Esta indeterminação «governativa» merece destaque

pois dela decorreu, em parte, o crescimento exponencial da influência do «secretários» em Lisboa

a partir de 1633. Finalmente, em Junho deste ano, foi estabelecido o «governo» do reino pelo

Conselho de Estado, até que se nomeasse um outro responsável, o que veio a suceder a 22 de

Julho, altura em que tomou posse D. Diogo de Castro, conde de Basto591.

Com o respectivo «Regimento» do Conde de Basto, dado em 1633, foram dadas

indicações precisas relativamente ao «despacho» do reino, medidas efectuadas com o intuito de

fazer coincidir a forma do despacho e a divisão das matérias com a nova configuração do

Regimento do Conselho de Portugal também desse ano de 1633592.

Assim, recomendava-se expressamente que os assuntos do reino, a consultar pelo vice-

rei e tribunais, deviam ser remetidos aos «secretário de estado» e «secretário das mercês» do

Conselho de Portugal. Ao «secretário de estado» tudo o que tocasse ao «Conselho de Estado e

Governo», assim como os ofícios mais prestigiados («Bispados e Governos»). Pela «secretaria das

mercês», seguiriam sobretudo os ofícios ultramarinos, «todos os negócios» das «Ordens Militares,

Universidade de Coimbra e ofícios da Mesa da Consciência». Da mesma forma, estes «secretários

do Conselho de Portugal» só comunicariam com os «secretários» do reino homólogos593. Com

efeito, podemos estabelecer nesta fase uma nova consolidação das secretarias em Lisboa: uma

secretaria de estado por onde se despachariam os assuntos de «Estado e Fazenda» e uma

secretaria das mercês responsável pelas «matérias da Índia, Padroado e Ordens». Por sua vez, a

tramitação «ordinária das matérias de Fazenda» (contratos, arrendamentos, controlo das rendas)

e de «Justiça» seriam tratadas pelo Conselho da Fazenda e Desembargo do Paço,

respectivamente594.

No que toca à comunicação com o reino, o «Regimento» acentuava as preocupações com

a agilidade do circuito e com a representação das decisões régias pelos Tribunais do reino.

Quanto ao primeiro aspecto, a preocupação com as delongas era evidente, pelo que os

«secretário» deviam pressionar os tribunais a devolver as respostas das consultas, fazendo-as

590 Cit. por Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários...», p. 74. 591 «Carta Régia de 10 de Junho de 1633». 592 «Reg. do Conde de Basto de 18 de Julho de 1633». 593 «Reg. do Conde de Basto de 18 de Julho de 1633», Tit. XI. 594 António M. HESPANHA, As Vésperas..., p. 246.

140

chegar ao rei595. Quanto à passagem das decisões pelos Tribunais, apenas excepcionalmente, o

«secretário» deveria utilizar urgência, enviando directamente a Madrid «Carta» e «Provisão»

assinada pelo Vice-Rei596. Relembrava-se que todas as «Consultas» do Vice-rei – incluindo

aquelas que subiam a Madrid – seriam elaboradas pelos «secretários» e encaminhadas aos

respectivos Tribunais. Já as «petições de mercês» directamente feitas ao rei, seriam encaminhadas

por um escrivão da Câmara régia também para os Tribunais respectivos, sem, no entanto,

possibilidade desse escrivão despachar ou fazer portaria597, proibição que cobria também a acção

dos «secretários» numa tentativa de evitar a concessão de excessiva liberdade a estes oficiais598.

Deste modo se conclui como os «Regimentos», quanto tocavam o trabalho das

secretarias, continham aspectos contraditórios. Se por um lado se aprovavam medidas de reforço

dos Tribunais no circuito documental, solicitava-se também aos conselheiros de Estado e

ministros dos Tribunais que dessem os «Pareceres» com clareza dizendo se votavam sim ou não,

e não pondo «dificuldades por ambas as partes» – ou seja, limitando a intervenção

jurisdicionalista. A questão reveste-se de particular importância para o nosso ponto de vista pois

era expressamente ordenado aos «secretários» que tivessem cuidado com a redacção final das

«Consultas», tendo em conta esta clareza, uma vez que de outra forma não seriam aceites no

Conselho de Portugal599. Estas indicações reforçavam a tensão entre o exercício do «secretário de

estado» – apostado na produção de um resultado unívoco – e o do conselheiros – vincado pela

audição e ponderação de todos os pontos de vista –, contudo, deixando-se aos «secretários» uma

certa discricionariedade na produção das «Consultas».

Em todo o caso, as ordens de Madrid reforçavam o peso do Conselho de Estado, dando

seguimento ao plano de um «governo» “directo” do reino – com intermediários informais em

Madrid, estratégia que conde-duque de Olivares alimentava desde 1621. Entre 1631 e 1634

verificam-se diversas tentativas para fidelizar o «secretário de estado» que actuava em Lisboa. Era

Felipe de Mesquita, sobrinho do anterior «secretário», Cristóvão Soares, o principal intermediário

do «governo»600. Como em 1634 continuavam as dúvidas acerca do «despacho dos negócios da

Índia em Lisboa», o rei dava ordens para que o «secretário de estado» pudesse assinar as «vias e

595 «Reg. do Conde de Basto de 18 de Julho de 1633», Tit. XLVII. Devia ocorrer de forma mais sistemática, em todos os dias (exceptuando «feriados de Igreja»), de Abril a Setembro, às sete horas da manhã, e desde Outubro a Março pelas oito horas, seguindo-se três horas de tabalho. 596 «Reg. do Conde de Basto de 18 de Julho de 1633», Tit. XLII. 597 «Reg. do Conde de Basto de 18 de Julho de 1633», Tit. XXVIII. 598 «Reg. do Conde de Basto de 18 de Julho de 1633», Tit. XLIII. 599 «Reg. do Conde de Basto de 18 de Julho de 1633», Tit. LXXIII 600 Tinha sido este oficial a endereçar uma carta a D. Filipe III noticiando que o «Governo» do reino se encontrava parado Cit. por Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários...», p. 76-77.

141

os mais papéis resolutos pelo rei» no caso de não ser possível, em tempo curto, apresentá-los à

apreciação régia601. Procurava afectar-se o «secretário de estado» à estratégia de Madrid, por

intermédio do reforço do Conselho de Estado. Simultaneamente, o conde-duque procurava

resolver o problema da divisão de competências entre secretários, ordenando que os «despachos

ordinários» efectuados cada semana fossem, essencialmente, destinados às «cousas da india e

parte ultramarinas»602.

Com efeito, as dificuldades do momento podem ser caracterizadas pela famosa cena do

desespero de Olivares «dando com a cabeça pellas paredes de como se hade formar o governo

desse reino»603. Qualquer que fosse a solução, o controlo das «secretarias» era já uma realidade

determinante de qualquer modo de «governo». Assim, uma das principais recomendações da

Princesa Margarida, chegada a Lisboa em Dezembro de 1634 para tomar posse como vice-

rainha, era a intensificação do «despacho» com uma correspondente diminuição do número de

«ministros» nele envolvido, o que veladamente, corresponderia à emergência do secretário de

Estado, Miguel de Vasconcelos como «cabeça do governo»604. Substituindo na secretaria de

estado Filipe de Mesquita, Miguel de Vasconcelos asseguraria confidência e solidez de

comunicação com os propósitos do governo régio em Madrid605. Terá sido o «secretário de

estado» em Madrid, Diogo Soares, a coordenar a estratégia de substituição de Felipe de

Mesquita, argumentando que a sua condição eclesiástica não era compatível com o exercício do

cargo de «secretário», servindo em todos os «actos de joelhos aos pés dos príncipes»606.

Rapidamente foi posto em marcha um novo perfil institucional do «secretário de estado».

Este passou a centralizar na sua «Repartição» o «despacho» do «estado» do rei, entendido de uma

forma cada vez mais alargada. Logo em 1635 era ordenado que as «Consultas» dos Tribunais

seguissem das «mãos da Princesa Margarida», directamente para os «secretários» a que tocassem,

601 Carta régia de 8 de Março de 1634 602 BA, 51 – X – 1, Governo de Portugal pelo Conde de Castro, vol. I, “Carta d’El rei sobre a repartição das secretarias e ofícios na seguinte forma: Gabriel de Almeida Vasconcelos – a de Mercês, Ordens e Padroados; Diogo Soares – a Secretaria de Estado, Fazenda e Justiça; Luís Falcão – Secretaria de Estado da Índia e Conquistas; Miguel de Vasconcelos – o ofício de Escrivão da Fazenda; Marçal da Costa – ofício de Escrivão do Registo de Mercês, 1631, 19 de Setembro, Sobre o Conselho de Estado», fl. 51v-52. 603 BPE, «Documentos vários, Cartas de Miguel de Casconcelos a Diogo Soares», CV / 2 - 19. 604 BA, 51 – VI – 2, «Carta d’El Rei D. Filipe III sobre o provimento de Miguel de Vasconcelos e Brito da serventia de Secretário de Estado de Portugal, 1635?, 8 de Junho», fl. 450; IAN/TT, Chancelaria de D. Filipe III, «Carta de 29 de Setembro de 1634», Liv. 40, fl. 32. 605 Para identificação dos novos alinhamentos entre parcialidades em Lisboa e Madrid, em torno da dupla Vasconcelos Soares, António de OLIVEIRA, «O atentado contra Miguel de Vasconcelos em 1634», O Instituto, Revista Científica e Literária, Separata dos Volumes CXL-CXLI, 1980-1, pp. 10-26.

606 Apesar de afastado do controlo da secretaria, Felipe Mesquita terá continuado a servir como «secretário» até 1636, Francisco Manuel de MELO, Epanaphoras, Imprensa Nacional, 1960, p. 77

142

de forma a intensificar o secretário de estado como «valido» do «governo»607. Por outro lado, a

própria secretaria das mercês, que, como vimos, vinha adquirindo protagonismo desde 1631,

sofreu a subordinação da secretaria de estado. Em 1636, foram considerados nulos todos os

ofícios da Fazenda passados pelo «secretário das mercês»608. Mas o processo não ficaria por aqui.

Os atritos nas cadeias de comunicação adensaram-se609. Nesse mesmo ano de 1636, uma ordem

do «secretário do estado», Miguel de Vasconcelos, reproduzida pelo Desembargo do Paço, dava

nota de que o Chanceler-mor travava na Chancelaria os Alvarás de perdões e comutações,

desrespeitando ordens emitidas ordens pelo Conselho de Portugal e devidamente assinadas em

Lisboa610. A resposta do «secretário de estado» não se fez esperar e confiscou o recebimento de

salário do Chanceler-mor611. Também a dissolução do Conselho de Portugal e a consequente

criação de «Juntas» responsáveis pelos «assuntos portugueses» – uma em Madrid e outra em

Lisboa, com Diogo Soares e Miguel de Vasconcelos à frente de cada uma delas, respectivamente

– confirmou uma certa indiferença pela tradição “constitucional” do reino612.

A nova dinâmica optava por contornar a possidónia portuguesa, pressionada pela

cobrança de «direitos fiscais»613. O secretário de estado de Portugal em Lisboa foi alvo de uma

primeira tentativa de assassinato em 1634, mostrando vontade em abandonar os «negócios de

estado». Contudo conseguindo um «Parecer» favorável à sua actuação e uma promessa de «Carta

régia» com menção de «palavras honrosas», prosseguiu o alargamento das competências do

«secretário de estado»614. Em 1639, o secretário de estado, Miguel de Vasconcelos, recebeu

ordens do rei para mandar preparar duas galés em segredo e para aí conduzir os degredados, o

que dá bem nota de como a situação se ia tornando delicada, do ponto de vista da legitimidade

das decisões615. Neste sentido, nesse mesmo ano de 1639, os seus poderes foram sendo

reforçados. Recebeu formalmente, por «Carta Régia», «toda a jurisdição privativa» para tratar do

607 «Carta Régia de 7 de Fevereiro de 1635». 608 «Carta Régia de 29 de Dezembro de 1636». 609 BA, 51-VI-39, «Parecer de Diogo Soares por ordem do conde duque a el rei de Castela quando a princesa de Mântua veio governar este reino, sobre os talentos dos ministros e fidalgos dele, e quando a nobreza de Portugal matou a Miguel de Vasconcelos se achou este papel na secretaria que lho tinha mandado», fl. 163. 610 «Provisão de 17 de Novembro de 1628». 611 «Carta Régia de 14 de Fevereiro de 1636». A «Carta Régia de 19 de Fevereiro de 1638» reafirmava o disposto quanto à proibição de embargo de mercês na Chancelaria. 612 Rafael VALLADARES, A independência de Portugal, Guerra e Restauração, 1640-1668, Esfera dos Livros, Lisboa, 2006, p. 41 e ss. 613 BA, 51 – X – 3, Governo de Portugal, vol. III, «Carta do Secretário de Estado Miguel de Vasconcelos para o 1º Conde de Castro D. António de Ataíde pedindo-lhe os papeis sobre o empréstimo da nobreza, que lhe entregou Simão Freire, como afirma do escrito junto que mandou ao 2º Conde do Prado D. Luís de Sousa, 1635, 22 de Novembro», fl 167v. 614 BPE, «Documentos vários, Cartas de Miguel de Vasconcelos a Diogo Soares, Carta de Diogo Soares Madrid, 29 de Junho de 1633», CV / 2 - 19, fl. 104. 615 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 120, nº 32.

143

«apresto e socorro da Índia», o que significava uma odiosa recolha de fundos, mas também

amplos poderes616. Todavia, com o poder do «secretário de estado», cresciam,

proporcionalmente, as resistências dos poderes concorrentes, agudizando-se o conflito, com a

constatação de que todos os despachos da Corte de Madrid eram dirigidos ao «secretário de

estado»617.

Ainda nesse ano de 1639, acentuava-se a pressão da secretaria de estado sobre o

«governo» das petições. Foi envidada ordem à Mesa da Consciência e Ordens para que agilizasse

a expedição de mercês, sendo que, em Outubro, uma nova ordem obrigava aquele Tribunal a

enviar para a secretaria de estado uma relação do trabalho feito e de tudo o que permanecia por

fazer, pelo menos desde 1635618. O «secretário de estado» assinou uma «Carta Régia»

estabelecendo que as «Provisões» dos Tribunais fossem enviadas com as «Portarias» ou «papéis»

de que se tinham formado, ordem que lhe permitiria avaliar e controlar os processos de

decisão619. Não tardaria a estalar a revolta da Corte contra o «secretário de estado», invocando

esta actuação inaudita620.

Conforme sintetizou Francisco Manuel de Melo, o assassinato de Miguel de Vasconcelos,

no dia 1 de Dezembro de 1640, significou uma consensual e violenta eliminação de um «valido

universalmente odiado»621. O facto de ser opinião comum que «derrubando em seu Menistro a

616 Carta Régia de 7 de Dezembro de 1639 617 Gastão de Melo de MATOS, «Introdução», História das Revoluções de Portugal, Abade de VERTOT, Edições Altura, Porto, 1945, p. 41. 618 «Carta Régia de 4 de Fevereiro de 1639» e «Carta Régia de 14 de Outubro de 1639». 619 «Carta Régia de 18 de Abril de 1639». 620 Embora o tema ultrapasse o âmbito do trabalho, António M. HESPANHA, «Para uma teoria...», p. 56, lembrava que os cem anos decorridos entre o fim do século XVI e o fim do século XVII correspondiam a uma época de crise financeira, não por acaso marcados pela intensa reflexão do modelo “político-administrativo”. Vem isto a propósito da explicação mais vasta da evolução das secretarias durante o período 1580-1640, como atracção a um modelo “político-institucional” imposto pela eficácia “administrativa” dos «secretários» afectos ao governo régio. Daí que se deva integrar a “modernização constitucional” do «governo Áustria», bem como os desenvolvimentos da revolta de 1640, num contexto mais vasto de factores explicativos (sobretudo o financiamento do sistema de «governo»). É de grande utilidade regressar a alguns textos clássicos, Queirós VELOSO, «A perca da independência – factores internos e externos que para ela contribuíram», Congresso Mundo Português, vol. VI, 1940, pp. 9 e ss.; Jaime CORTESÃO, «A Economia da Restauração», Congresso do Mundo Português, vol. VII, Lisboa, 1940, pp. 671-687; Virgínia RAU, «Fortunas ultramarinas e nobreza portuguesa no século XVII», Revista Portuguesa de História, t. VIII, Coimbra, 1959, pp. 1 e ss. ; Joel SERRÃO, Em torno das condições económicas de 1640, Separata de Vértice, nº 88 a 91, 1950 – 1951. 621 Os conspiradores entraram no Paço, perseguiram o «secretário de estado», apunhalaram-no e balearam-no, atirando o corpo pela janela. Depois, a fúria do povo, concretizou-se na simbólica profanação do cadáver: arrancaram-lhe as barbas e furaram-lhe os olhos, despiram o corpo, calças e sapatos e deste modo o arrastaram pela praça do palácio levando-o depois da praça até ao rossio, pelas ruas enlameadas. Ali deixaram o corpo naquela noite, onde esteve desde sábado até Domingo ao anoitecer, altura em que o Hospital da Misericórdia enviou uns irmãos que o levaram mal coberto com um pedaço de estopa. «Este fue el fin de un Ministro, cuya felicidad elevo a mandar todo aquel Reino, y cuyo desacuerdo de aver crecido tanto, desde tan poco, le trajo a la mas lastimosa desdicha. Sucesso que deve tener advertidos a muchos», Fr. Antonio SEYNER, Historia del Levantamento de Portugal, Pedro Lanaja y Lamarca, Impressor del reino de Aragon, Zaragoça, 1644, pp. 60-61

144

estatua do Principe, fazião o delicto incapaz de reconciliação» mostrava, com clareza, que se

encontrava em trânsito para o «secretário de estado» muita da dimensão “sagrada” e “política”

do rei622.

622 Francisco Manuel de MELO, Tacito Portuguez. Vida, e Morte, Dittos e Feytos de El-Rei Dom João IV, Centenário da Restauração, Rio de Janeiro, 1940, p. 264.

145

IV

AS “REBELIÕES DE CORTE” E A CONSOLIDAÇÃO DO

«ESTADO DO REI»: O TRIUNFO (1640-1706)

A historiografia portuguesa tem considerado, de forma mais ou menos consensual, que a

ruptura de 1640 começou por consolidar a preponderância do «secretário de estado»623, no

âmbito da legitimação de uma nova dinastia. De resto, o rei confiou o «governo» a poucos

oficiais – no estrito círculo do seu gabinete – num sentido inicialmente monopolizador,

estreitando o número de participantes na decisão. Relembre-se que em meados do século XVII,

não obstante os limites colocados à acção do rei, esta foi uma tendência comum a um conjunto

de monarquias e reinos624.

Todavia, como veremos – e não obstante esta tendência – a forma do «governo»

continuou a ser condicionada, pelo menos em parte, pela “luta” de corte, onde a pulverização do

poder permitia a multiplicidade de sedes de decisão. Em todo o caso, os novos problemas de

legitimidade do poder régio, saídos da ruptura de 1640, vão originar um novo enquadramento

para as secretarias de estado que culminará na “crise de 1668”. A partir daí, o «secretário de

estado» assumirá definitivamente a condução do «governo» em virtude de uma concepção mais

funcionalizada do trabalho de secretaria. Existirão, porém, momentos de transição onde não é

difícil descortinar as continuadas reacções contra a “politização” do «governo». Na verdade, não

obstante a imposição do «secretário de estado», a “luta” entre parcialidades cortesãs mantém a

sua vitalidade explicativa625.

623 De Marcello CAETANO, «O Governo e Administração Central após a Restauração», História da expansão portuguesa no mundo, vol. III, Ática, Lisboa, 1937, pp. 189 e ss. a Luís Reis TORGAL, Ideologia Política e Teoria do Estado, vol. II, Coimbra, 1982, pp. 94-104. 624 Maurizio FIORAVANTI, «Stato e costituzione», Lo Stato moderno in Europa, Istituzioni e diritto, Maurizio Fioravanti (a cura di), Editori Laterza, Roma-Bari, 2002, pp. 10 e ss. 625 António Camões GOUVEIA, «Estratégias de Interiorização da Disciplina», O Antigo Regime, António M. Hespanha (coord.), História de Portugal, Estampa, Lisboa, pp. 367-372.

146

1. O secretário responde pelo rei.

Do ponto de vista da evolução das secretarias, o reinado de D. João IV correspondeu a

um período contraditório, onde um primeiro reforço do poder do «secretário de estado» vai

originar uma bicefalia com a «secretaria de estado das mercês», muito por força da pressão social

sobre a função distributiva da justiça régia.

Na verdade, nos primeiros meses após 1640, por motivos de estabilidade do sistema de

poder, o rei optou por não alterar muito a estrutura “administrativa”. De acordo com a visão de

Francisco Manuel de Melo, o rei «aconselhado do secretario Lucena», formalmente agraciado

com o favor régio desde 6 de Dezembro de 1640, optou por «não tirar o officio nem fazer

mercê» aos ministros da Coroa, assegurando alguma continuidade, mas mantendo a expectativa

de gratificações futuras626. Deste modo, a 31 de Janeiro de 1641, Francisco de Lucena foi

nomeado «secretário de estado»627. A análise da «Carta Patente» confirma a evolução do

«secretário de estado» num plano diverso da assistência ao Conselho de Estado, tal como vinha a

suceder desde o século XVI. Com efeito, a «Carta Patente» possibilitava a Francisco de Lucena

«servir o ditto officio, e dele usar, em tudo e por tudo, como dito é, sem duvida nem embargo

algum» facto que, não extravasando muito a formalidade deste tipo de documentação, deixava,

contudo, uma certa discricionariedade ao exercício do poder628. Neste sentido, ao contrário do

que sucedia na Monarquia Católica, onde a direcção do «governo» recaiu sobre nobrezas

intermédias ou mesmo de topo, o «secretário de estado» da Coroa de Portugal consolidava uma

certa dimensão de valimento no exercício do seu cargo629. A escolha de Lucena devia-se não só à

proximidade com a Casa de Bragança, mas também a uma larga experiência da “burocracia”

régia. Todavia, logo surgiram insinuações sobre as suas supostas ligações à Corte de Madrid630,

onde permanecera o seu filho, o «secretário» do Conselho de Portugal, Afonso de Lucena.

626 Francisco Manuel de MELO, Tacito Portuguez…, pp.73 e ss. 627 Criação de uma «secretaria de estado de todos os negócios da Coroa, tanto na paz como na guerra». Com a respectiva nomeação de Francisco de Lucena, «Carta Patente de 31 de Janeiro de 1641». 628 Carta Patente de 31 de Janeiro de 1641. 629 EFO, IV, 1ª parte, p. 428; José Emídio AMARO, Francisco de Lucena…, pp. 60 e ss. A visão acerca do papel dos «secretários de estado» na ruptura de 1640 esteve longe de ser unívoca. João Pinto Ribeiro leu no conflito com os «secretários Soares e Vasconcelos» o conflito letrados versus nobres, não apoiando a imagem da nobreza como particular sofredora do ódio dos «secretários». Um e outro foram julgados como perseguidores dos “nobres e menores”, explicando-se esta actuação pela vontade de vingança da morte do letrado e pai de Vasconcelos, Barbosa de Luna, Luís Miguel OLIVEIRA, João Pinto Ribeiro, O Estado e a Socieade na Perspectiva de um Letrado, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Coimbra, 1991, pp. 57-58. 630 Correu entre os criados da Casa de Bragança que já seu pai, também havia traído os interesses da casa ducal, recebendo benefícios de D. Filipe II, Francisco Manuel de MELO, Tacito Portuguez..., pp. 70-71.

147

Na verdade, estas tensões decorriam das prerrogativas que o «secretário de estado» foi

chamando a si, agravadas por decisões que chocavam a cultura política dominante na Corte de

D. João IV631. A título de exemplo, veja-se a defesa que Francisco de Lucena fez da sua

jurisdição de «secretário de estado» a propósito das alterações do valor da moeda632. Daí que logo

nas Cortes de 1642, os «procuradores dos povos» tenham proposto acusações contra o

«governo» régio – acusações personalizadas no «secretário de estado» – o que resultou num

processo de averiguação de culpa633.

Este ambiente de crítica, se bem que motivado pela intrusão da secretaria de estado em

matérias tradicionalmente cometidas às Cortes, resultava antes de mais – sabemo-lo hoje com

alguma certeza – da “luta” pelo controlo do processo de decisão. O conde do Vimioso – um dos

principais lesados pela recente actuação do «secretário» – reunido com o ‘estado da nobreza’,

acusou Francisco de Lucena de favorecer o «governo» de Madrid e de fazer nomeações

despropositadas para os ofícios régios634. Francisco Manuel de Melo, no seu relato dos

acontecimentos, referiu a utilização de expressões violentas, a cargo dos acusadores, expressões

tais como «Piloto perfido» e «maliciozo», acusando-se o «secretário» de introduzir junto do rei

«venenozas informaçoens» de onde «procedia o descredito em que se odiavão os mayores do

Reyno»635. Em todo o caso, o conflito decorria da luta pelo controlo dos papéis de governo.

Mais uma vez, o ethos burocrático em emergência, ao lançar mão de um perigoso incitamento

anti-nobiliárquico para reforçar os seus poderes, tinha despertado a animosidade de vários

aristocratas.

Como bem sintetizaram Mafalda Soares da Cunha e Leonor Freire Costa, a forma como

o «secretário de estado» fundamentou o seu poder em termos “absolutos”, actuando com uma

espécie de “omnipresença governativa” – agravada pelo afastamento do rei dos Conselhos –,

631 Petição de Francisco de Lucena dirigida ao Conselho da Fazenda. Alega que, como «secretário de estado», tem direito a dois escravos, tal como os seus antecessores Lopo Soares, Cristóvão Soares e Miguel de Vasconcelos tinham cada ano no contrato de Cabo Verde. O caso foi deferido. Lucena auferia nesta época 60.000 rs por ano. 632 BA, 51 – VI – 1, Papéis Vários, «Ofícios de Francisco de Lucena para o Chanceler-mor, Fernão de Cabral sobre a moeda e suas respostas», 1642, «Ofícios» de 13 a 27 de Fevereiro. 633 Manuel Francisco António Coelho da ROCHA, Ensaio sobre a História do Governo e Legislação de Portugal, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1896, p. 169. 634 Segundo Leonor Freire Costa e Mafalda Soares da Cunha, estas violentas críticas deviam-se ao facto de Lucena ter travado a ascensão “político-militar” do conde do Vimioso, D. Afonso Portugal, esforçando-se o «secretário de estado», junto de D. João IV, para que a nomeação de Vimioso como Governador-general das armas do reino não fosse concretizada, Leonor Freire COSTA & Mafalda Soares da CUNHA, D. João IV, Círculo de Leitores, 2006, p. 131. 635 Francisco Manuel de MELO, Tacito Portuguez…, pp. 129-130.

148

levou Francisco de Lucena a coleccionar ódios na Corte e mesmo entre os aclamadores636.

Segundo Francisco Manuel de Melo, a forma de «despacho» utilizada pelo «secretário» era

crescentemente criticada. Aproveitando o facto das mudanças dinásticas originarem uma grande

quantidades de papéis sobre «negócios de partes», fruto da necessidade de legitimação dos novos

reis – que os vassalos exploravam multiplicando as «petições», a cujo despacho «não bastavão os

dias inteyros» – Francisco de Lucena potenciou a sua influência. Deste modo, depois de

convencer D. João IV, monopolizou a decisão sobre as «petições» dirigidas ao rei, assinando

decisões em nome do soberano e remetendo-as, depois, aos Tribunais respectivos637.

Mas o ponto crucial para a nossa história reside no facto de variadas figuras da Corte

entenderem, de forma cada vez mais consensual, que a actuação do «secretário de estado» gerava

uma «equivocação entre os mandos do Rey e do Menistro»638. Segundo os críticos de Lucena, era

este quem mandava, pois assinava as normas régias, defendendo-se depois, segundo os mesmos

críticos, com a invocação da majestade do príncipe – «Manda El rey». Já se vê qual a conclusão

desta leitura: acusavam Lucena de «maquinação», tentando travar a sua ascensão, uma vez que –

todos o sabiam – cada vez mais, o «secretário» era não só a «voz», como o «Império» do rei639.

Além desta forma de governo, pouco consentânea com o costume régio, acrescia o facto de

Lucena não ter “fidalguia” que aplacasse um pouco a novidade da sua actuação. Quando talvez

nada o fizesse prever, repetia-se o processo de Miguel de Vasconcelos.

D. João IV ainda tentou contemporizar, mas a pressão sobre o rei não permitiu uma

intervenção apaziguadora. Na verdade, durante os dramáticos acontecimentos da execução dos

principais titulares do reino Francisco de Lucena, juntamente com a Rainha, não deixou D. João

IV vacilar diante das súplicas dos cortesãos640. Sem dúvida, a memória destes factos pesou na

radicalização do discurso contra a actuação do «secretário de estado». A acção contra Lucena

pode enquadrar-se na vaga de críticas crescentes, empreendida com mais vigor pelos

“libertadores de 1640”, perante o peso excessivo dos «letrados» na decisão régia, integrando-se

636 Leonor Freire COSTA & Mafalda Soares da CUNHA, D. João IV…, p. 141. 637 Francisco Manuel de MELO, Tacito Portuguez... p. 130. 638 Francisco Manuel de MELO, Tacito Portuguez...p. 131. 639 Francisco Manuel de MELO, Tacito Portuguez... p. 132. 640 Leonor Freire COSTA & Mafalda Soares da CUNHA, D. João IV…, p. 130 e ss. Seriam executados o marquês de Vila Real e o duque de Caminha, seu filho, perante as lágrimas da duquesa de Caminha.

149

num discurso mais vasto de reivindicação, nos órgãos da Coroa, no sentido de aumentar os

conselheiros especializados em armas641.

Neste sentido, foi aberto processo contra o «secretário de estado», tendo o cuidado de

incluir nos testemunhos os delitos mais graves no que respeitava ao seu ofício642. Toda a

estrutura da acusação indica que o processo contra Lucena, inflamado pelo discurso anti-

nobiliárquico, resultava sobretudo do cunho excessivamente “político”, que o «secretário» tinha

conferido ao processo de decisão, “politização” – deve reconhecer-se – decorrente de um

recém-legitimado «governo régio»643. Neste sentido, o desrespeito pelas «partes» e a quebra de

segredo eram acusações que seguiam o mesmo argumentário das críticas outrora proferidas

contra Miguel de Vasconcelos. De acordo com a leitura de Francisco Manuel de Melo, a reacção

do «secretário de estado», dirigindo ao rei palavras violentas que identificavam os seus inimigos,

mostra como era claro o fosso entre um «governo de políticos» e o auxílio jurisdicional dos

«grandes do reino»644. Invocando a sua humildade, procurou chamar a atenção para a

desproporção das forças e caracterizar-se com um defensor do «poder régio». Contudo, a

estratégia dos seus opositores passava por corroer precisamente o apertado vínculo entre rei e

«secretário»645.

As acções consideradas criminosas cobriam uma vasta gama de delitos – acusações,

diga-se de passagem, típicas dos ataques a «validos» – colocando o «secretário de estado» numa

posição delicada646: corrupção647, correspondência ilícita, quebra de sigilo648, ofensas deliberadas e

641 Ver a título de exemplo a forma como vários documentos, de validade no mínimo duvidosa, identificaram a actuação de Vasconcelos e Soares com os ‘vícios’ letrados, BA, 51-VI-39, «Parecer de Diogo Soares por ordem do conde duque a el rei de Castela quando a princesa de Mântua veio governar este reino, sobre os talentos dos ministros e fidalgos dele, e quando a nobreza de Portugal matou a Miguel de Vasconcelos se achou este papel na secretaria que lho tinha mandado», fl. 163. Sobre a complexidade da actuação dos letrados, Luís Miguel OLIVEIRA, João Pinto Ribeiro..., pp. 67 e ss. 642 Manuel Francisco António Coelho da ROCHA, Ensaio sobre a História do Governo …, p. 169. 643 Para isso teria contribuído uma actuação de tom marcadamente «castelhano. Vejam-se as «Cópia dos Regimentos do Conselho de Portugal», anotadas pelo «secretário de estado», Francisco de Lucena, BA, 51 – IX – 11, Do Governo de Espanha, t. III, «Dos Tribunais e Ministros pertêcêntes a Portugal e desputas entre ele, sec. XVI-XVII», fls. 29-36. 644 Francisco Manuel de MELO, Tacito Portuguez..., p. 135. 645 BA, 51- IX - 8, «D. Joao IV e Conjura do Secretário de Estado, 1643 ?, fls. 6-11. 646 BNL, «Cópia da sentença condenatória de Francisco Lucena», ms. 512, fls. 275v; BA, 51 – II – 31, «Sentença porque foi degollado Francisco de Lucena Secretº de Estado d’El Rey D. Ioão o 4º, Lisboa, 1643, 21 de Abril». 647 BNL, «Cópia da sentença condenatória de Francisco Lucena», ms. 512, fls. 275v. Quanto à pouca limpeza de mãos foi acusado de «receber peitas e ser corrupto, fazer nomeações falsas, vender despachos e assuntos de governo além do uso de dinheiro da fazenda da Coroa para fins pessoais». 648 BNL, «Cópia da sentença condenatória…», fls. 275v, «Impediu que se mostrassem a D. João IV documentos importantes; apropriou-se de atribuições régias no terreno dos hábitos de ordens militares; de não ter ordem no dar; permitiu a publicação de livros contra a Igreja Católica, sem passar pelo Santo Ofício; tratava as partes com «grandes descortesias»; abusava da soberania para com os ministros da justiça».

150

acção prejudicial à nobreza649. Além disso, eram-lhe ainda imputadas a produção de «Decretos» e

«Portarias» apenas com assinatura do «secretário de estado», bem como a aprovação de despesas

da Fazenda Régia sem qualquer outra deliberação, apenas com confirmação da ordem pelo seu

sinal. Estas acusações apontam para um exercício do poder não muito diverso daquele que tinha

dominado a década de 1630, sendo que a liberdade normativa era considerada «o maior excesso,

que podia commetter um Secretario»650.

Por conseguinte, não são necessárias grandes reflexões para analisar a razão da queda em

desgraça do «secretário de estado». Lanier, o enviado francês em Lisboa, no seu relato dos

acontecimentos, mostra como o rei, ao não se pronunciar oficialmente sobre os acontecimentos

e ocupando-se pessoalmente do «despacho», procurou demarcar-se do seu «secretário», de modo

a salvaguardar a sua posição perante uma percentagem considerável da Corte e dos

«procuradores do terceiro estado».651.

Neste período decisivo, deve ter-se em consideração a actuação dos «secretários» que

actuavam no espaço da câmara régia, pois desempenharam um papel decisivo utilizando a sua

influência junto do rei para minar a posição de Francisco de Lucena. Estes oficiais, de

proveniências diversas mas quase todos ligados ao «despacho» da Casa de Bragança – ao

contrário de Lucena, afastado das secretarias aristocráticas, desde pelo menos 1614, para servir a

Coroa – foram monopolizando o espaço da Corte.

Vejamos como evoluíam esses secretários da Câmara.

649 BNL, «Copia de una Carta que un Cavaller de Portugal, Barcelona, 1643», ms. 512, fls. 176-176v. Original com representação do momento em que Francisco de Lucena é degolado com um punhal, perante o juíz de vara e dois guardas. Contém uma tradução catalã da sentença de morte do «secretário de estado» onde é qualificado como principal «ministro do rei de Portugal» e inimigo da Casa de Bragança. Tinha sido acusado: do uso de feiticeiras contra o rei; de prisão inadequada, na torre de Belém, do jesuíta Manso, imputando a razões para tal ao medo da divulgação de informações do tempo de Madrid; de ter colaborado na fuga de D. Fernando de Lodenha; prestado falsas informações sobre a prisão do seu filho, Afonso de Lucena, em Madrid; dado protecção a pessoas suspeitas vindas de Castela; ter desviado correspondência para os generais dos exércitos; cometido infidelidade ao não avisar o infante D. Duarte da revolta de 1640 em Lisboa; ter perseguido Matias de Albuquerque por este ter apreendido cartas comprometedoras. 650 BNL, «Copia de una Carta que un Cavaller de Portugal...», fls. 176-176v 651 Com todo o tipo de assuntos, no «despacho» dos pedidos endereçados pelas Cortes e o seu renvio para os diversos conselhos e tribunais a que tocavam. Esse trabalho ocupava-o desde manhã até à noite, hora a que se retirava, «Correspondance diplomatique de François Lanier résident de France à Lisbonne, 1642-1644», François Lanier e Paulette Demerson (org.), Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XXXV, 1996, pp. 785 e ss.

151

António Pais Viegas652, «secretário da casa de Bragança», havia transitado para o Paço, no

momento da rebelião de 1640. Segundo a História de Portugal Restaurado, nos primeiros tempos da

nova dinastia, assistia o rei nos «negócios maiores»653. Apesar de nunca ter obtido a nomeação

para o ofício de «secretário de estado» – note-se que a posse do cargo produzia efeitos

contraditórios no que toca ao prestígio cortesão – vinha despenhando oficiosamente trabalho na

secretaria654. Fazia parte do Conselho privado do rei que reunia todos os dias, destacando-se na

redacção de panfletos políticos. Importa lembrar que o seu título de «secretário da casa de

Bragança», fidelizando o seu exercício à «pessoa real» e permitindo o acesso aos negócios do

reino, o resguardava de críticas a que os secretários de estado estariam mais expostos. Pais

Viegas vinha assumindo particular destaque na redacção de panfletos “legitimistas” da nova

dinastia, envolvendo-se progressivamente na tomada de decisão.

Também António Cavide655 – apontado por muitos como um dos mentores do

afastamento de Lucena656 – teria assumido relevante papel na confirmação documental657, sem

nunca ter recebido nomeação de «secretário de estado» por «Carta patente». Cavide, «secretário»

do duque de Bragança desde os tempos de Vila Viçosa, tinha continuado a prestar serviços ao

rei, espreitando a possibilidade de aceder à nomeação formal como «secretário de estado», num

período de maior estabilização do poder na Corte658.

Num plano distinto, Pedro Vieira da Silva, um magistrado que se tinha destacado na

oposição a Miguel de Vasconcelos, nomeado procurador da Fazenda depois de 1640, tinha

652 Segundo António Caetano de Sousa, António Pais Viegas desempenhou funções como «secretário de estado». Foi alcaide-mor de Barcelos e comendador de Nª Sª da Caridade de Évora. Esteve ao serviço da Casa de Bragança antes e depois da Restauração. Natural de Manjões, Lisboa, filho de Sisenando de Freitas Freire e de D. Maria de Lacerda, oriundos de famílias nobres de Beja. Morreu em 1650. Ver António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol. VII, p. 129 e Pedro França REIS, Conselheiros e Secretários de Estado de Portugal …, p. 183. 653 Luís de MENESES, conde da Ericeira, História de Portugal Restaurado, António Álvaro Dória, edição e notas, vol. I, Livraria Civilização, Porto, 1945-46, p. 294. 654 Comendador de Nª Sª da Caridade, alcaide-mor de Barcelos, António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol VII, p. 129 655 Escrivão da Câmara do rei (1641), seu mantieiro, comendador de S. Pedro de Babe, Comendador dos Azeites e Lagares da Vila de Soure da Ordem de Cristo, alcaide mor de Borba, e provedor da Obras que se fizesse, por conta da Fazenda Real, escrivão da Câmara da Mesa do Desembargo do Paço e membro do Conselho da Fazenda (1647-1648). Filho de Agostinho Pires Cavide, escrivão da Almotaçaria de Vila Viçosa entre 1586 e 1598, sem nobreza conhecida, Leonor Freire COSTA & Mafalda Soares da CUNHA, D. João IV…, p. 70 e pp. 96-97. Segundo António Caetano de Sousa foi «secretário de estado» e do Conselho da Fazenda, António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol. II, pp. 397-399 e vol. VII, p. 129, terá tido a serventia da Secretaria de Estado sem que recebesse nomeação formal. 656 Ângela Barreto XAVIER & Pedro CARDIM, D. Afonso VI, Círculo de Leitores, 2006, p. 54 657 IAN/TT, Manuscritos de S. Vicente, «Memoria que se pedio dos negocios pertencentes à Secretaria de Estado», vol. 43, fls. 521-527. 658 BA, 51 – 5 – 24, «Carta de D. João IV de doação das saboarias da vila de Tomar e suas anexas e da Covilhã a António Cavide, Lisboa, 1656, 15 setembro», fls. 155-164. A mercê tinha sido propriedade de Miguel de Vasconcelos, IAN/TT, Chancelaria de D. Filipe III, «Alvará das Saboarias de Tomar», Liv. 29, fl. 110v.

152

iniciado o serviço interino na secretaria de estado, pouco depois do início das suspeições contra

Francisco de Lucena. Este importante oficial da Corte, a que regressaremos com mais detalhe,

começou por ouvir testemunhas e conduzir o processo contra o «secretário de estado»659. Como

veremos, será por seu intermédio que D. João IV restabelecerá a normalização do «despacho»,

pelo que a sua influência na condenação de Lucena terá sido decisiva.

Deste modo, a neutralização do «secretário de estado» passou, em primeiro lugar, pelo

seu afastamento do Paço, onde estes oficiais procuravam substituí-lo rapidamente, cortando as

suas ligações aos «papéis» e oficiais da secretaria de estado. Por outro lado, o carácter “abusivo”

do «governo» de Lucena, do ponto de vista da “cultura política”, confirmam-se pelo facto de o

«secretário», ao ser transportado para o Limoeiro – em carroça aberta, à vista de todos – ter sido

vítima de tumultos populares que quase ditaram a sua morte no local660. Com efeito, o incidente

atesta que a amplitude do problema tinha raízes numa “prática” que os seus inimigos facilmente

podiam conotar com o «mau governo». Também não deve ser esquecido o facto de, em 1629,

Lucena ter sido protagonista de graves tumultos na cidade do Porto – prontamente reprimidos

pelo «governo» Áustria –, acontecimento fácil de potenciar na hora de “agitar os povos” contra

o «secretário de estado».

No plano das estratégias cortesãs, também o facto da secretaria de estado se ter

imiscuído de forma incisiva em matérias de guerra, terá sido decisivo para a eliminação do seu

titular. Lucena tinha-se oposto a D. Vasco de Mascarenhas, conde de Óbidos e governador de

armas do Alentejo, e a D. João da Costa, mestre de campo e do Conselho de Guerra661.

Informações obtidas por estas duas importantes figuras militares ditaram a suspensão da ordem

de libertação do «secretário»662. No contexto de uma guerra com a Monarquia Católica, onde se

jogava o futuro do rei e do reino, a acção do «secretário de estado» tocou as três zonas proibidas

do «governo»: liberdade normativa, decisões de guerra, e fiscalidade. No dia 23 de Abril de 1643,

Francisco de Lucena foi sentenciado á morte e degolado663 por culpas de «crime de lesa

majestade, rebelião e traição ao rei»664.

659 Luís de MENESES, conde da Ericeira, História de Portugal Restaurado…, vol. II, pp. 27-28. 660 «Correspondance diplomatique de François Lanier...», pp. 785 e ss. 661 No início de 1643, estes cortesãos mandaram prender Pedro Bonete o qual, depois de torturado, lançou suspeitas sobre o «secretário de estado». Pelos relatos coevos facilmente se depreende que os interrogatórios foram conduzidos de forma premeditada – tendo sido obtida informação incriminatória, através da violenta pressão sobre Bonete, (Lucena teria recebido cartas do conde-duque de Olivares e do seu filho Afonso, ainda a desempenhar o ofício de «secretário do Conselho de Portugal» em Madrid). 662 José Emídio AMARO, Francisco de Lucena…, pp. 183 e ss. 663 EFO, IV, 1ª parte, p. 429. 664 «Correspondance diplomatique... », p. 754 e ss.

153

Em menos de três anos, dois «secretários de estado» foram assassinados na decorrência

de “lutas” de Corte. Não restam dúvidas de que algo de muito significativo se passava quanto à

mutação dos “paradigmas de governo” e da orgânica “administrativa”.

a) O «Alvará» de 1643 e a evolução das novas Secretarias.

As acusações movidas contra Francisco de Lucena corresponderam tanto às vicissitudes

da mera “luta” de Corte – onde outros «secretários», ou alguns cortesãos com relevantes cargos

militares, concorreram para eliminar o «secretário de estado» sem qualquer aliança “ideológica”

no que diz respeito ao «governo» – como a uma reacção das parcialidades mais afectas à prática

jurisdicional. Todavia, não resultou deste processo um linear enfraquecimento do «secretário de

estado». Vejamos porquê.

No contexto da luta entre parcialidades, que D. João IV, compreensivelmente, procurou

acentuar, a divisão das secretarias pode surgir, numa primeira análise, como mero mecanismo

cortesão criado para evitar a concentração de poder nas mãos de um único «secretário»665. Em

1643 o rei fez publicar um «Alvará» em que, baseado na sua experiência de «governo» de três

anos, ditou novamente uma separação do «despacho» régio por duas Secretarias666. Deste modo,

a nova configuração normativa reveste-se de uma certa ambiguidade, característica destes

primeiros anos do pós-rebelião de 1640. Neste sentido, a divisão de 1643, longe de ter sido

apenas um momento de afirmação da secretaria de estado, foi, também uma tentativa de

enquadrá-la, delimitando mais claramente a sua acção. Na óptica dos poderes concorrentes do

«secretário», encabeçados pelos principais Conselhos (Fazenda e Guerra)667, havia que travar uma

dinâmica alcançada pela secretaria de estado de Vasconcelos e Lucena. Na verdade, as divisões

665 Coincidência de funções entre o Conselho privado do rei (que reunia todos os dias e tinha fronteiras políticas imprecisas) e o Conselho de Estado. No Conselho privado assistiam os marqueses de Ferreira e Gouveia (mordomo-mor da Casa Real), o arcebispo de Lisboa, D. Rodrigo da Cunha, e o visconde de Vila Nova de Cerveira, D. Lourenço de Lima. Mais tarde entrariam neste grupo restrito o conde de Penaguião, o camareiro-mor e o padre António Vieira. Sobre o problema de órgãos coincidentes e dos conflitos daí decorrentes, Leonor Freire COSTA & Mafalda Soares da CUNHA, D. João IV..., pp. 134 e ss. 666 BA, «Alvará de 1643 criando duas Secretarias para o Despacho dos Negócios Públicos suas atribuições», Cod. 10563/164 e Cod. 894. 667 Contudo, importa matizar esta oposição, pois a identificação entre «assuntos de Guerra e Estado» vinha sendo cada vez mais dominante no processo de decisão, além de que os conselheiros de Guerra não recebiam nomeação formal, ficando dependentes do secretário, ainda que apenas «burocraticamente ». Segundo Caetano de Sousa, os conselheiros nomeados para «o Conselho de Guerra não tiram Carta ou Patente do lugar, o qual exercitam somente por aviso do secretário de estado», juntando-se o facto dos membros efectivos do Conselho de Estado – onde o «secretário de estado» vinha adquirindo protagonismo – serem também conselheiros de Guerra, o que resultaria num obstáculo à construção de uma “direcção política” própria do Conselho de Guerra, cit. por Pedro França REIS, Conselheiros e Secretários de Estado de Portugal …, p. 235.

154

das secretarias – tidas em geral como marcos de sucesso numa história do reforço dos

«secretários de estado» – foram também uma forma de circunscrever a actuação do «secretário»,

procurando limitar o crescimento de uma só secretaria de estado e remetendo – através de uma

maior prescrição das suas funções – o perfil do cargo aos originários aspectos “burocráticos”668.

Por outro lado, como é conhecido, apesar das intenções expressas pelo «Alvará» de 1643,

as novas indicações normativas não corresponderam a uma efectiva demarcação das respectivas

competências, o que explica que estas intenções de circunscrição “burocrática” dos «secretários»

eram rapidamente ultrapassadas pela vocação de “coordenação” que o cargo vinha acumulando

desde o início do século XVI669.

Deste modo, como já referimos, a divisão das secretarias reveste-se de um carácter

ambíguo e deve ser analisada no contexto das “lutas” de Corte. Em todo o caso, importa antes

de mais sondar as intenções normativas do «Alvará» de 1643. Mesmo sabendo que no plano dos

factos a evolução dos «secretários» seria mais tortuosa deve entender-se qual o sentido do

«governo» expresso no documento pois representa a tendência “política” do poder régio nesse

contexto.

É certo que se verifica uma certa moderação inicial dos poderes do «secretário de

estado», fixando-lhe bem as competências na regulação dos seus poderes sobre o reino –

impedindo que este oscilasse para o valimento – e enquadrando novamente as matérias de

«graça» num outro secretário, ao qual era formalmente conferida a área das mercês. Contudo,

começa a observar-se um entendimento mais “activo” na concepção das «matérias de estado» e

uma mais assumida dimensão monopolizadora na definição daquilo que são matérias de

«governo», aspecto consagrado pela expressão «negócios públicos» – com um claro sentido de

assuntos referentes ao «bem comum». Com efeito, no que tocava a «matérias de Estado», a

Coroa passava a considerar formalmente um conjunto de matérias mais alargado e isto tanto no

reino como em todos os Senhorios e Conquistas.

Sendo assim, qual o conjunto de competências efectivamente cometidas aos secretários

de Estado?

668 Agradecemos a Leonor Freire Costa as sugestivas indicações em torno desta interpretação. Apesar de extravasar o âmbito cronológico deste estudo, pode dizer-se que também o Regimento de 1736, tido como momento fundacional das secretarias de estado – do ponto de vista de um «governo político » – surge como reacção ao poderio alcançado por Diogo de Mendonça Corte Real. Temos neste momento em elaboração um estudo sobre o tema. 669 «Alvará de 29 de Novembro de 1643». A divisão de matérias era justificada pela mais fácil «comprehensão, e expedição dos negocios que no tempo presente accresceram tanto nesta Corôa, como é notorio».

155

Em primeiro lugar, o controlo da diplomacia, quer no tratamento do processo de

comunicação com os enviados, quer no tratamento das matérias externas670. Em segundo lugar,

o controlo sobre a comunicação normativa e a circulação dos «papéis»671, acentuando-se o rigor

da elaboração das normas e do seu transporte e regulação. Assim, a secretaria ia perdendo a sua

dimensão patrimonial começando a constituir-se numa entidade funcional. A título de exemplo,

os «papéis» passavam agora a ser fechados «em maço apartado», com sobrescrito identificativo:

«A El-Rei Nosso Senhor, pela Secretaria de Estado»672. Em terceiro lugar, a «Guerra»

propriamente dita e seu expediente, onde se assumia claramente uma dimensão de coordenação

militar: «Mandar Armadas, ou Esquadras, assim para os mares do Reino, como nos diferentes

territórios marítimos, fazer Exercitos, ou facções por terra». Em quarto lugar, a representação

«nos actos publicos» da Corte ou outros, segundo as atribuições do «escrivão da puridade»,

«tomando preitos, e homenagens, de qualquer Governo, Fortaleza, ou Capitania». Por último, o

quinto aspecto prendia-se com a atribuição dos ofícios de «governo», criando, desde logo, uma

certa permeabilidade com a secretaria das mercês, ainda que a fosse regulada uma circunscrição,

com benefício para a secretaria de estado, quanto à hierarquia dos provimentos673.

Com efeito, estas competências assinalam uma primeira formalização no sentido de

conferir um “cérebro” à emissão de ordens régias além de uma recomendação, mais ou menos

velada, no sentido de o «secretário de estado» centralizar a produção do «governo» num sentido

mais unívoco. Por outras palavras, passaria a decidir-se pela secretaria de estado tudo o que nos

Tribunais e Juntas fosse discutido e lavrado sob a forma de «Consultas» em «matéria de Estado»

– definida agora mais claramente como «governo e direcção de cousas publicas, ou provimentos

dos postos, e officios». Sinal claro do reforço dos poderes do «secretário» é o «Decreto»

670 «Alvará de 29 de Novembro de 1643», «Toda a correspondencia com outros Principes em materia de paz ou guerra, contractos, casamentos, alianças, instruções, avisos públicos, ou secretos, enviados a Embaixadores, Comissarios, Residentes, Agentes, ou quaisquer outras pessoas encarregues deste tipo de negócios». 671 «Alvará de 29 de Novembro de 1643», «Avisos de palavra, ou escritos, sobre materias tocantes ao reino e senhorios régios, controlo sobre os Regimentos, Ordens, Cartas, endereçadas aos Vice-Reis, Governadores dos Reinos, Provincias, e Praças Ultramarinas)». 672 «Alvará de 29 de Novembro de 1643». 673 Do ponto de vista da provisão de ofícios, ficavam cometidos à secretaria de estado os «Vice-Reis, Governadores de Reinos, Provincias e Praças, assim no Reino, como Ultramarinas, Generaes das Armadas, Almirantes, e todos os Officiaes grandes, de paz, e guerra, pelos quaes, com alguma superioridade, se administra o governo publico, como são os Presidentes dos Tribunaes, Conselheiros, Secretarios, e Escrivães delles, Desembargadores, Ministros da Camara desta Cidade, e quaesquer outro de igual poder e jurisdicção», bem como a criação de «novos títulos Títulos, nomeações de Bispados, e Prelazias, Officios da Casa Real, logares do Santo Officio, Reitor, Cadeiras Grandes, e despachos semelhantes da Universidade de Coimbra».

156

produzido em 1644 dando notícia de que as «Provisões» passariam a ser «sobrescritas pelos

secretário» e assinadas pelo rei, sem «vista» de quaisquer outros ministros674.

Além desta circunscrição, convém salientar que a estrutura da secretaria de estado tendia

para uma maior complexificação, por meio da multiplicação e delimitação de tarefas de um

conjunto de servidores cada vez mais numeroso (oficiais maiores, oficiais menores, porteiro,

guarda-livros, escreventes). Cumpre lembrar que, apesar da sua assistência no «despacho» do

Conselho de Estado, a função do «secretário» tendia a desligar-se progressivamente dos aspectos

“mecânicos” do trabalho escrito. Assim, mesmo quando colaborava no trabalho “burocrático”

do Conselho, as suas funções prendiam-se com a selecção dos assuntos, a coordenação das

votações e a colocação dos «papéis e negócios» em nome do rei675.

Posta esta preponderância do «secretário de estado» que matérias ficavam cometidas à

Secretaria das Mercês?

Durante o «governo» Áustria, a crescente necessidade de controlo sobre as matérias de

«mercês» vinha adquirindo um significativo peso normativo. Neste sentido, cumpre lembrar que

desde as reformas do Conselho de Portugal em 1607, os «secretários» – tanto do reino, como do

Conselho de Portugal – tinham adquirido o título de «secretários de estado», sem precedências

formais entre eles e com respectivos títulos e privilégios. Assim, a secretaria das mercês era

também uma secretaria de estado, o que introduzia uma certa contradição no que toca à

separação de matérias consagrada no «Alvará» de 1643. Nesse mesmo ano, um panfleto sobre a

situação «política e militar das armas portuguesas», denominava, justamente, em dedicatória ao

titular do despacho das mercês, o seu título administrativo como «Secretario do Estado das

materias de ultra mar, & despacho das merces»676. Como é bom de ver, esta ambiguidade entre o

estatuto dos dois «secretários de estado», originou diversos conflitos. Voltaremos a esta

conflitualidade na secção seguinte.

Para o ponto que nos ocupa, basta lembrar que a dignidade de «secretário de estado»

conferida ao titular da secretaria das mercês tinha sérias implicações nas respectivas

competências. É conhecido que a secretaria de estado das mercês tinha como primeira

competência o despacho de mercês em «matéria de graça». Nessa secretaria seriam apreciadas

todas as «Consultas, Despachos, Decretos e Ordens, Cartas e papéis» que não fossem matéria de

674 «Decreto de 2 de Fevereiro de 1644». 675 «Reg. do Conselho de Estado de 31 de Março de 1645». 676 BNL, Fundo Geral, ms. 814 / 1 P, fl. 2.

157

Estado, conforme referia o Alvará de 1643. Ou seja, a sua competência abrangia, além da

matéria tradicional de graça régia – o que nem sempre correspondia a uma circunscrição clara –

todos os negócios que não pertencessem à secretaria de estado das matérias de estado – no

sentido de «negócios públicos». Havia, como é evidente, grande indeterminação em tudo isto,

sendo que esta identificação por exclusão de partes677, deixava uma enorme margem de manobra

à actuação do titular da secretaria das mercês. No plano das praxis política, esta nova dignidade

conferida às matérias de ‘mercês e expediente’, que seguia o peso crescente da dimensão

prebendial da monarquia, normalmente associada ao despacho da Índia, resultava de uma

amputação à secretaria de estado que tinha adquirido essas competências no período final do

«governo» Áustria. Por outro lado, como vimos, algumas das «matérias ultramarinas», disputadas

desde fins do século XVI – como as nomeações dos vice-reis da Índia – foram definitivamente

cometidas à secretaria das «matérias de estado». Convém lembrar que esta deficiente

circunscrição de matérias resultou, como bem viu um autor de inícios do século XVIII, da

«semelhança» que os negócios teriam «entre si», pois a divisão correspondia mais a uma divisão

do poder dos «secretário» do que a uma efectiva especialização do «despacho»678.

Em suma, cabia ao «secretário das mercês» dirigir os processos no âmbito daquilo que

pode ser designado como o nível baixo e intermédio dos «ofícios da republica»679. Deviam

também ser apreciadas as «Consultas» de «dipensas de leis, de devaças e alçadas», «Consultas

sobre provimento de benefícios militares, quitas de dívidas à fazenda Real, pagamento de Obras

Públicas, rendimento de sizas, mercês de hábitos das três ordens, tenças, capelas, bens vagos em

matéria de ausentes e confiscados»680.

Para minimizar as sobreposições entre «secretários», recomendava-se – aliás, com alguma

novidade – uma permuta de informação entre secretarias. Deste modo, abandonava-se o

processo tradicional da regulação intermédia, antes cometida aos Tribunais de origem das

677 «Alvará de 29 de Novembro de 1643», «E todas as mais Consultas, Despachos, Decretos, e ordens, que se houverem de passar, e receber, cartas, e papéis, que não forem das materias referidas, e do despacho das mercês que eu fizer, por serviços ou graça, não sendo das que ficam apontadas, se expedirão pela Secretarias das Mercês, e Expediente, que assim se chamará». 678 Luís Caetano de LIMA, Geografia histórica de todos os estados soberanos de Europa, , vol. I., Off. de Joseph Antonio da Sylva, Lisboa, 1734-1736. Ver ainda a título de exemplo as concorridas listas de candidatos BA, 51 – VI – 20, Miscelânea, 25, «Proposta de nomes de pessoas para os cargos de “secretário de estado»e Secretário das Mercês», fl. 63. 679 Os escrivães das Câmaras do Reino, do Público, Judicial e Notas, ofícios relativos a sisas, ao cível da Corte e cidade de Lisboa, almoxarifes e escrivães, tesoureiros bem como todos os ofícios de Justiça e Fazenda, Desembargo do Paço, Conselho da Fazenda, Junta dos Três Estados, Mesa da Consciência, excepto os ministros e secretários que se proviam pela Secretaria de Estado. Também competia às «Mercês» o provimento dos lugares militares até tenente-Coronel de Infantaria ou Cavalaria, incluíndo estes. 680 «Alvará de 29 de Novembro de 1643».

158

«petições» ou ao nível da Câmara régia. Por exemplo, no que tocava a mercês, em caso de

menção da mercê de Conde ou algum «título», devia o «secretário das mercês» escrever ao

«secretário das matérias de estado» para que a «Carta» respectiva fosse passada pela sua

secretaria. Do mesmo modo faria o «secretário de estado» quando na sua secretaria se

mencionasse alguma mercê inferior. Porém, não era fácil implementar esta circunscrição pois

existia um largo leque de matérias onde as competências se interpenetravam. Note-se que na

secretaria de estado se faziam mercês inferiores sem que fosse enviado da secretaria das mercês

qualquer aviso nesse sentido. Também pela secretária das mercês se despachava matéria

relevante de comércio e diplomacia como a expedição de «passaportes» de naus «estrangeiras e

portuguesas», a fim de passarem pela Torre de Belém681.

Para além desta divisão entre secretarias de estado e mercês surge na década de 1640 uma

separação do trabalho “burocrático” no âmbito da confirmação documental. A assinatura régia e

o processo de autenticação das decisões constituíam matéria delicada. Vimos que uma das

principais acusações contra o «secretário de estado», Francisco de Lucena, tinha sido a sua

desregrada produção de «Decretos» e «Portarias» sem legitimação do rei. De qualquer modo,

apesar da eliminação de Lucena, não era fácil resolver esta disrupção da autoridade normativa

dos «secretários», em curso desde finais do século XVI e muito combatida pelo direito régio

durante a Monarquia Católica. Deste modo, a separação da «Assinatura» surgiu como ponto

culminante de um processo normativo, no sentido de controlar a produção de decisões682.

Pretendia esta regulação alcançar um equilíbrio entre a agilidade do «despacho» e o controlo

hierárquico da produção documental.

Para resolver este problema destacou-se o processo de assinatura da documentação,

produzida pelos Tribunais do reino, da tramitação restrita das duas secretarias de estado.

681 «Alvará de 29 de Novembro de 1643». Os documentos eram normalmente passados pelo secretário do Conselho Ultramarino e confirmados pela secretaria das mercês, AHU, Conselho Ultramarino, cx. 1, doc. 5. 682 «Carta Régia de 6 de Setembro de 1616», Sobre a produção de «Provisões» em casos urgentes, assinadas pelos desembargadores do Paço, vedores da Fazenda, conforme o seu objecto, para valerem por quatro meses, dentro dos quais subiriam outras à «Assinatura Real» e se recolheriam as primeiras; «Carta Régia de 15 de Novembro de 1618», Ordens assinadas pelos duques de Lerma e Uceda, sobre remessa de cópias das «Ordens Régias pelos Secretários dos Tribunais, Mercês, Ordens Gerais, para que tenham Assinatura Régia»; «Carta Régia de 17 de Junho de 1619», sobre a «Assinatura de Despachos pelo Vice-Rei»; «Decreto de 26 de Abril de 1621», sobre «Declarações nos Diplomas que subirem à Assinatura Real»; «Carta Régia de 9 de Junho de 1623», sobre «Requisitos nas Provisões, que do Conselho da Fazenda subissem à Assinatura Real»; «Carta Régia de 10 de Março de 1632» sobre a «Assinatura dos papéis tocantes à Índia»; «Carta Régia de 30 de Abril de 1636», sobre a negação da «Real Assinatura em dois Alvarás, cujas matérias deviam ser consultadas previamente»; «Carta Régia de 18 de Abril de 1639», juntando «Provisões para subirem à Assinatura Real e ordenando o envio dos despachos que as precediam».

159

Com efeito, D. João IV criou, «para mais alivio dos Secretarios e utilidade dos vassalos»

um novo «secretário da assinatura»683, para onde eram remetidos todos os «papéis» lavrados

pelos tribunais, centralizando o demorado processo da assinatura do monarca e impondo às

decisões destes Tribunais, de forma mais expedita, a confirmação régia. Tudo indica que este

«secretário» actuava no espaço da câmara régia, sem «Carta Patente», mas centralizando a

comunicação entre os Tribunais e a assinatura régia. Ficavam exceptuados os «papéis»

expressamente consagrados pelo «Alvará» de 1643 à secretaria de estado e à secretaria das

mercês e expediente, uma vez que a circulação deste material estava já cometida ao respectivo

secretário, responsável por fazer chegar a matéria à presença do rei684. Assim, o «secretário da

assinatura» devia conduzir ao rei todos os «Alvarás, Provisões, Cartas e perdões lavrados por

quaisquer tribunais» para serem por mão régia rapidamente assinados, impedindo deste modo

que toda essa documentação, não directamente atribuível ao estado e mercês, repousasse

demoradamente pelas gavetas dos Tribunais, casas dos conselheiros e corredores da Corte685.

b) Os secretários e a dádiva de mercês como «matéria de Estado»

Analisadas as intenções normativas, como decorreu o exercício do poder? Referimos que

entre os «secretários» participantes no processo que conduziu à morte de Francisco de Lucena,

foi Pedro Vieira da Silva o primeiro a destacar-se na condução das «matérias de estado»686. A

«Carta de nomeação», que lhe atribuiu formalmente o desempenho do ofício, refere que este

«Moço Fidalgo» serviria como «secretário de estado», o que atesta, neste momento, o assomo de

uma ténue separação entre o exercício «público» do cargo e a tradicional patrimonialização687.

Com efeito, a sua nomeação decorria da vontade do rei em acentuar a celeridade do

«despacho»688. Por isso, deu-se uma intensificação do trabalho “burocrático”, comparecendo o

«secretário» duas vezes por dia na secretaria de estado. Para além deste aumento da capacidade

de resposta às «petições» e «papéis» dos vassalos, pode dizer-se que o seu longo exercício do

ofício correspondeu também a uma maior separação entre o espaço da secretaria e a casa

683 António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol. VII, p. 111. 684 António Caetano de SOUSA, Provas, t. IV, p. 762; BNL, Ms. 8. 685 AHU, Reino, cx. 12, pasta 5. Neste sentido, virá a ocorrer a distinção entre «despacho» pela assinatura régia e pela via normal. 686 Pedro Vieira da Silva, doutor em leis por Coimbra, deputado do fisco, nomeado em 1627 desembargador da relação do Porto, e em 1629, desembargador dos agravos, oficial da Casa da Suplicação de Lisboa, destacado no Algarve para a punição dos levantamentos de 1637 e 1638. Depois da aclamação de D. João IV foi procurador da Fazenda, nomeado «secretário de estado» em 1642. Pedro Vieira da Silva já estaria em funções pelo menos desde a prisão de Francisco de Lucena, EFO, IV, 1ª parte, p. 501. 687 António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol. VII, p. 129. 688 «Correspondance diplomatique de François Lanier...», pp. 734 e ss.

160

“particular” do «secretário» o que contribuiu para criar na Corte uma memória, quase

consensual689, do intenso trabalho realizado nesta fase de “fundamentação administrativa” da

Coroa690.

No que toca ao seu desempenho na configuração de «matérias», Vieira da Silva

potenciou, de forma muito vincada, duas das áreas tradicionalmente cometidas ao Conselho de

Estado, mas que tinham sido consagradas de forma inequívoca no «Alvará de 1643»: a

diplomacia e a guerra.

Vejamos, em primeiro lugar, a actuação do «secretário de estado» em matéria de guerra.

A principiar a sua actuação, Vieira da Silva pretendeu uma articulação com os restantes

poderes que, nestas áreas, concorriam com a secretaria de estado (Governadores de Armas,

Desembargo do Paço, Conselho de Guerra) discorrendo sobre as «levas», recomendando aos

desembargadores o controlo dos recrutamentos nas comarcas, dando conselhos sobre a

nomeação de ministros, assinado ordens para a deslocação dos terços pagos, multiplicando

medidas sobre as fortificações691. Além disto, o financiamento da «guerra da restauração»

permitiu ao «secretário de estado» estreitar a comunicação com as câmaras o que tinha sérias

consequências no enraizamento institucional do cargo, alargando a sua influência às elites

concelhias de todo o reino.

Num segundo plano, a diplomacia.

Evaldo Cabral de Melo chamou a atenção para o papel do secretário, cerca de 1648, no

contexto de uma «Junta»692 criada para despachar matérias relativas a negócios estrangeiros

(tratando entre outros, o problema da paz com os Estados Gerais a propósito dos territórios no

nordeste do Brasil), exemplo, entre outros que poderíamos citar, que atesta o facto do

«secretário de estado» ultrapassar gradualmente a mera coordenação do «despacho» ou o simples

condicionamento indirecto dos processos burocráticos. Na verdade, o seu exercício institucional,

para lá do prestígio ocasional do titular do cargo, acercava-se cada vez mais de largos poderes no

âmbito da decisão importantes «negócios» ao nível diplomático.

689 BPE, «Avisos de Pedro Vieira da Silva ao Conde de Santa Cruz, 1648, ao Camareiro-mor, Conde de Vila Nova e ao marquês Mordomo-mor, 1648; ao Marquês de Gouveia, 1648; ao Estribeiro-mor, Pedro Guedes de Miranda, 1648», cod. CIV / 1 – 17, fls. 430 a 443; cod. CIX / 1 – 13 e CVI / 2 – 10. 690 IAN/TT, Manuscritos de São Vicente, «Memória de todos os negócios que dos tribunais pertencem à Secretaria de Estado, e referência aos vários secretários de Estado e seu relevo», vol. 12, fls. 521-522. 691 IAN/TT, Colecção de São Vicente, «Parecer do secretário de estado Pedro Vieira da Silva, dado à Raynha D. Luísa, sendo Regente», nº 12, fl. 679. 692 Composta por relevantes “actores políticos” da corte – Francisco Ferreira, D. João da Costa, futuro conde de Soure, – partido favorável à guerra com os Estados Gerais - o conde de Odemira, o conde de Penaguião e o «secretário de estado», Pedro Veira da Silva, Evaldo Cabral de MELO, O Negócio do Brasil, Portugal, os Países Baixos e o Nordeste (1641-1669), CNCDP, Lisboa, 2001, p. 128.

161

Em terceiro lugar, podemos destacar um terceiro aspecto determinante na actuação de

Pedro Vieira da Silva. Pedro Cardim destacou no seu trabalho sobre as cortes e a cultura política

de Antigo Regime, a enorme preponderância do secretário na concepção do cerimonial693. Esta

preocupação – dimensão fundamental neste período de “refundação” dinástica – levou o

«secretário de estado» a uma especialização na elaboração dos «Regimentos» que enquadravam

cerimónias da monarquia, permitindo-lhe aceder aos códigos mais representativos do poder,

como é sabido, aspecto central numa sociedade de Corte694.

Em todo o caso, a actuação do «secretário de estado», tal como se pré-anunciava no

«Alvará» de 1643, é ininteligível sem a ponderação da actuação do «secretário das mercês». Na

verdade, para além de Pedro Vieira da Silva, desde 1643 que o «secretário de estado das mercês e

expediente»695, Gaspar de Faria Severim696, se ocupava no «despacho das petições». Desde logo,

os dois «secretários» iniciaram um atribulado conflito de jurisdição sobre diversas matérias, como

por exemplo a crucial divisão entre «Fazenda» e «Mercês» na área da diplomacia.

O processo que temos acompanhado convida-nos a enquadrar esta questão mais

demoradamente – percebendo como a tensão entre «mercês» e «estado» se transformou

gradualmente no ponto central da emergência do “paradigma estadualista”. Convém assinalar

que a “luta” pelo controlo das matérias começa a ultrapassar o âmbito da conflitualidade de

Corte, lançando raízes no funcionamento global do sistema de poder. Porém, na economia deste

trabalho, interessa lateralizar estes aspectos mais globais e seguir os aspectos mais directamente

relacionados com o «despacho» dos dois «secretários». Assim, deve assinalar-se em primeiro

lugar que a divisão entre «mercês» e «estado» decorria da progressiva fusão entre a «Fazenda» e

as «matérias de estado», processo que a partir de 1640 tinha provocado sérias consequências no

plano prebendial devido à necessidade de financiar a guerra697. Daí que o conflito de jurisdições

entre «secretários», além da estrita luta de poder pessoal, decorresse, em simultâneo, do

entendimento dos ministros sobre a estrutura da Coroa – com tudo o que isto significa de

projecção “ideológica” dos grupos a que pertenciam, conforme tinham ou não visto satisfeitas as

693 Pedro CARDIM, Cortes e Cultura Política no Portugal do Antigo Regime, Edições Cosmos, Lisboa, 1998, pp. 63-65. 694 BA, 51 – VI – 9, «Aviso de Pedro Vieira da Silva, em nome de S.M. para os fidalgos, participando a morte do princípe D. Teodósio, para acompanharem o seu corpo até Belém», fl. 23v. 695 IAN/TT, Chancelaria de D. João IV, Liv. 13, fl. 375. 696 Nascido em Évora, filho de Francisco de Faria Severim, executor-mor do reino e escrivão da Fazenda Real, e de sua mulher, D. Joana da Fonseca e sobrinho Manuel Severim de Faria, chantre da catedral de Évora. Casou com D. Mariana de Noronha, filha de D. Francisco de Noronha, comendador de S. Martinho de Frazão, Pedro França REIS, Conselheiros e Secretarios de Estado de Portugal…, p. 182. 697 Apoiando a tendência para a separação entre as matérias de justiça e as de graça e mercês o texto de Fr. Francisco do Santíssimo SACRAMENTO, Epítome…, p. 58, reporta esta tendência ao reinado de D. Dinis (sec. XIII).

162

suas ambições de acumulação de capital político-económico. Em todo o caso, começa verificar-

se de forma mais notória, uma fractura entre concepções de «governo» assentes sobre a eficácia

da contenção orçamental (regulada pela transversalidade das decisões) e concepções de

«governo» controladas por uma maior divisão entre matérias e respectiva proliferação de

«secretários» (onde a eficácia do mando, e a construção da legitimidade do poder régio, se

alicerçava, em primeiro lugar, na liberalidade das remunerações que deviam merecer a dignidade

de uma secretaria específica). Assim, a autonomização da secretaria das mercês não colocava

apenas limitações à actuação do «secretário de estado», mas implicava uma outra concepção do

«governo».

Clarifiquemos um pouco a análise, voltando ao caso específico. O «secretário de estado»

Pedro Vieira da Silva invocava a primazia da sua secretaria em matéria diplomática, mesmo que

esta incluísse assuntos de «mercês», já que apenas no âmbito do «estado» existiria informação

suficiente e competente para uma decisão avisada. Conforme sublinharam Ângela Xavier e

Pedro Cardim, Vieira da Silva pretendia fechar em torno das «matérias de estado» todas as

resoluções que diziam respeito ao «governo comum» do reino, pelo que toda a matéria da alta

política (Guerra, diplomacia, fazenda) sofria a atracção centrípeta da secretaria de estado698.

Porém, a análise de um papel dirigido à regente D. Luísa, no qual se comentava a suposta

usurpação de competências da secretaria de estado pela secretaria das mercês, confirma a difícil

separação temática entre os dois lugares do «despacho» régio. O conteúdo do documento

reportava a Novembro de 1643, e resultava de um protesto do «secretário de estado» contra o

«secretário de estado das mercês e expediente». O pedido de remuneração de serviços de um

embaixador (entre outros bens, um lugar de desembargador no Porto, ajudas de custo, uma

comenda e uma igreja do padroado para o seu irmão) tinha sido apreciado na Secretaria das

Mercês. Desse modo, Pedro Vieira da Silva, preocupado com essa ingerência, tentou

fundamentar de forma mais sustentada uma suposta demarcação entre competências de «estado»

e «mercês». Aí, referia que o despacho do lugar de Desembargador e a discussão das ajudas de

custo aos ministros das Embaixadas pertenciam à secretaria de estado. Argumentava que as

ajudas de custo se davam conforme a avaliação da «qualidade das embaxadas, dos negócios

dellas», e do «tempo que durassem», processo que apenas podia ser devidamente acompanhado

com base na informação depositada na secretaria de estado699.

698 Ângela Barreto XAVIER & Pedro CARDIM, D. Afonso VI…, p. 72. 699 IAN/TT, Manuscritos de S. Vicente, «Queixa dirigida à regente D. Luísa acerca da usurpação de competências da Secretaria de Estado pela Secretaria das Mercês, 1656», vol. 12, fl. 662.

163

Pedro Vieira da Silva descreve depois as atribuições que a secretaria das mercês e

expediente vinha apropriando como as nomeações em postos de guerra700. Alegava que, embora

em teoria coubesse à secretaria de estado decidir sobre estas matérias, quem as despachava

ultimamente era a secretaria das mercês que tinha sido criada apenas para aliviar a secretaria de

estado das «couzas que não tocauão a estado», mas que crescentemente se transformava na

própria secretaria de estado701.

É necessário lembrar que a argumentação de Vieira da Silva pretendia esvaziar não só os

Conselhos e Tribunais, como as restantes secretarias, para que as «matérias de estado»

emergissem como o único lugar de «governo», apenas acessível ao «secretário» titular. Contudo,

várias resistências iam potenciando força em torno da secretaria das mercês. Vicente Nogueira,

um prestigiado enviado em Roma, apoiava o “apagamento” de Vieira da Silva pelas posições

«contratualistas» do «secretário de estado», que o prelado julgava demasiado informadas por

concepções «políticas»702. Todavia, em 1647 – 1648, Vieira da Silva estaria já secundarizado pelo

«secretário» Gaspar Faria de Severim que, entretanto, tinha conseguido controlar a condução dos

«negócios públicos» e polarizar as parcialidades contrárias à secretaria de estado de Vieira da

Silva703.

Regressando ao plano da “luta” de Corte, importa sublinhar que, não obstante o que

ficou dito sobre concepções de «governo», as tensões entre parcialidades continuavam a marcar

o ritmo da evolução das secretarias, sem outra lógica que não o acaso do conflito e a vontade de

poder. O «secretário das mercês», Faria Severim e o «secretário», António Cavide, trabalharam

para travar a ascensão de Vieira da Silva. Apesar da eficácia de Pedro Vieira da Silva, muito

apreciada na corte, a especialização do «secretário de estado» no cerimonial, e a consequente

questão quotidiana dos tratamentos, tinha as suas repercussões nos equilíbrios do Paço. Deste

modo, apesar do fortalecimento de competências do «secretário de estado», a sua actuação

700 IAN/TT, Manuscritos de S. Vicente, «Queixa dirigida à regente D. Luísa…», fl. 662v, criação de cargos de cavalaria, manter armadas e esquadras, nomeação de governos (no ultramar), desembargos, despacho de títulos, todos os ofícios (grandes) de paz e guerra, castelos e alcaidarias-mores e donatários das terras com jurisdição. 701 IAN/TT, Manuscritos de S. Vicente, «Queixa dirigida à regente D. Luísa…», fl. 663- 668. 702 BGUC, «Sobre o afastamento de Pedro Vieira da Silva (1656-1658)», ms. 714, fl. 84. 703 BPE, «Cartas de Gaspar de faria Severim, 29 de Janeiro de 1648», cod. CVI / 2 – 10, fl. 215 e «Cartas de Gaspar de Faria Severim, Janeiro de 1649», cod. CIX / 1 – 13, nº 16.

164

gerava inevitáveis descontentamentos, rapidamente aproveitados pelo secretário das mercês e

expediente704.

Com efeito, António Cavide, actuando no espaço da Câmara régia705 e trabalhando em

«matéria de Fazenda», acedeu a um conjunto de informações que, em conjunto com o «secretário

de estado das mercês e Expediente», permitiram indo anexando várias das competências

cometidas a Vieira da Silva706. A proximidade entre Cavide e o rei D. João IV garantiu ao

secretário o acesso a matérias de estreito segredo, como negociações em Roma – um meio que

exigia sempre o domínio dos canais de informação mais privilegiados – ou a tutoria de uma

bastarda do rei, questões fundamentais para travar o fortalecimento do «secretário de estado»

formalmente empossado. Com efeito, as descrições da diplomacia francesa – que, apesar de

rigorosas, nem sempre podem ser tidas como infalíveis no plano institucional, mas servem,

contudo, como “barómetro do poder” – equiparavam a responsabilidade secretarial de Cavide

aos dois secretários de estado formais707. Mafalda Soares da Cunha e Leonor Freire Costa, na sua

recente biografia de D. João IV, confirmam a importância do secretário António Cavide,

presente nas audiências semanais do rei (quartas e quintas feiras) onde as «petições» apresentadas

passavam pela sua mão708, substituindo mesmo Vieira da Silva em diversas ocasiões. Note-se que

esta substituição ocasional do «secretário de estado» nem sempre era acompanhada de nomeação

formal, o que não invalida a importância de «secretários» pessoais dos reis – como era o caso de

Cavide – no processo de neutralização da secretaria de estado709.

704 BA, 51 – VIII – 32, fls. 57-58v. Uma Carta do visconde de Vila Nova de Cerveira para o «secretário das mercês», com data de Outubro de 1650, encerrava queixas acerca do modo como aquele era tratado pela Secretaria de Estado. Dizia que não só não lhe eram enviadas instruções, mas sim aos corregedores da Comarca, não sendo tratado como bacharel, como não beneficiava, nas cartas que lhe eram endereçadas, de tratamento adequado à sua posição. 705 AHU, Ultramar, cx. 1, doc. 37. Em 1644, um escrito do escrivão da Câmara Real servindo no Desembargo do Paço, António Cavide, ao secretário do Conselho Ultramarino, Afonso de Barros Caminha, ordenava que as «Cartas Régias» não fossem alteradas. 706 Uma nova proposta de António Cavide sobre o comércio viria a resultar na criação da Companhia Geral do Comércio do Brasil. Sobre o «governo» de D. João IV, o «despacho» régio e a Companhia Geral do Comércio, Leonor Freire COSTA, O transporte no Altântico e a Companhia Geral do Comércio do Brasil (1580-1663), vol. I, CNCDP, Lisboa, 2002, pp. 477-493. 707 O «secretário de estado» seria Pedro Vieira da Silva, tendo sido também procurador da Fazenda. Tinha nesta época cerca de 45 anos. O outro era o «secretário das Mercês», Gaspar de Faria Severim: «a sa charge de Secrétaire des Grâces, apartiennent toutes les affaires des Isles, Brézil, Indes et conquestes.». O terceiro seria António Cavide, que tinha ao tempo 39 anos. Com uma relação de grande confiança com o rei, partilhava com ele muitos segredos «C'est luy qui reçoit toutes les pétitions ou requestes que l'on présente au Roy aux audiances publiques qu'il donne les mardy et jeudy à tout le monde indiféremment, les autres jours au matin aux nobles jusques à onze heures.», «Correspondance diplomatique de François Lanier...», p. 795. 708 Leonor Freire COSTA & Mafalda Soares da CUNHA, D. João IV…, p. 212. 709 BA, 50-V-37, «Aviso do Confessor de S.M. sobre haver um novo “secretário de estado» para servir na falta do primeiro », fl. 297.

165

No que diz respeito ao conflito entre «secretário de estado» e «secretário de estado das

mercês», a morte de D. João IV em 1656 veio acelerar o processo de enfrentamento entre os

dois oficiais. Ângela Xavier e Pedro Cardim destacaram que depois da morte do rei se verificou

uma tendência para o «secretário de estado» chamar a si as matérias de «governo e Justiça»,

conseguindo o secretário das mercês» monopolizar a análise das matérias financeiras, o que se

traduziu num certo impasse710O testamento do rei estabeleceu a regência da rainha D. Luísa, e o

seu «secretário» pessoal, António Cavide, estreitou a ligação com Gaspar de Faria Severim, facto

que potenciou ainda mais a influência deste último na Corte711. Porém, o processo foi

conturbado e merece que, nesta fase posterior a 1656, nos detenhamos, novamente, na sua

análise.

Nesta época era já evidente um maior peso institucional da secretaria de estado. Porém, a

decisão sobre qual o «secretário» a controlar a secretaria de estado dependia da conjuntura

cortesã e da confiança do rei. A «junta nocturna», inspirada pela junta de noche da Monarquia

Católica, reunia na secretaria de estado decidindo-se as matérias por voto. Apenas as matérias

onde surgissem dúvidas ou as que tivessem grande relevância seriam colocadas na presença da

rainha pelo «secretário de estado», Pedro Vieira da Silva712. Relembre-se que era também o

«secretário de estado» quem corporizava o mando régio, escrevendo ou levando pessoalmente

ordens às mais importantes figuras da aristocracia. Assim verificou-se um primeira fase onde os

secretários representaram uma bicefalia do «governo» que vinha já desenvolvendo-se desde 1643.

Cerca de 1653, Pedro Vieira da Silva tinha tentado reforçar o seu poder nas secretarias com a

nomeação do seu filho, Martim de Távora de Noronha, para a assistência na secretaria de Estado

utilizando-o no controlo «dos papéis das mercês». Contudo, utilizando o mesmo método do

«secretário de estado», o «secretário das mercês» conseguiu também o auxílio formal do seu filho,

Pedro Severim de Noronha713, continuando a acumular clientelas, fruto do acesso às petições.

710 Ângela Barreto XAVIER & Pedro CARDIM, D. Afonso VI…, p. 106. BA, 51 – VI – 11, «Ofício de Gaspar de Faria Severim para o regedor sobre a confirmação dos Tratados e continuação da amizade e comércio entre Portugal e Inglaterra, paço, 1660, 11 de Outubro», nº 87. 711 BA, 51 – VI – 11, «Decreto de S.M. para que o Regedor da Casa da Suplicação dê o despacho necessário para se sentenciar a causa entre o marquês de Gouveia e Gaspar de Faria Severim sobre a jurisdição do ofício de Mordomo-mor, Lisboa, 1658», nº 41; BA, 51 – VI – 11, «Decreto de S.M. anulando o decreto de 28 de Julho sobre a causa entre o marquês de Gouveia e Gaspar de Faria Severim, mandando que a causa corra nos termos ordinários, Lisboa, 1658», nº 49; BA, 51 – VI – 11, «Decreto de S.M. mandando suspender, até nova ordem, o decreto que mandava setenciar até às férias a causa que corre entre Gaspar de Faria Severim e o Marquês de Gouveia, Lisboa, 1658», nº 61. 712 Luís de MENESES, conde da Ericeira, História de Portugal Restaurado…, vol. III, p. 17. 713 IAN/TT, Chancelaria de D. João IV, Liv. 25, fl. 65 ; António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol. VII, p. 130. Pedro Severim de Faria, filho herdeiro de Gaspar de Faria Severim, foi nomeado «secretário das Mercês» por «Alvará de 24 de Setembro de 1653». AHU, Reino, cx. 11-A, pasta 29.

166

Com efeito, entre 1660 e 1661, Pedro Vieira da Silva sentiu-se numa posição

crescentemente fragilizada, uma vez que a rainha deixara de o receber e era Gaspar Severim de

Faria, na secretaria das mercês, quem verdadeiramente controlava o «despacho» da secretaria de

estado714. Contudo, a influência de António Conti, um ministro que alcançara protagonismo

insinuando-se na Câmara do infante D. Afonso, veio baralhar os dados da “luta” entre os dois

experientes «secretários». No momento em que a rainha regente se preparava para entregar o

«governo» do reino, em 1662, Conti recebia ministros estrangeiros e «tinha em seu poder os

papéis mais importantes da secretaria de estado»715. Foi apresentado à rainha um «Parecer» do

«secretário de estado», onde se resolvia prender Conti e a sua parcialidade, no momento em que

o Infante D. Afonso estivesse com a rainha no «despacho», preparando o mesmo Pedro Vieira

da Silva a fundamentação «pública» da operação716. Com a concordância da rainha, a efectiva

expulsão de Conti da Corte precipitou o avanço de um outro fidalgo da Câmara de D. Afonso, o

conde de Castelo Melhor. Esta nova parcialidade, a caminho do «governo» do reino, sofreu a

oposição do «secretário de estado», Vieira da Silva, que terá tentando furtar-se a despachar as

nomeações de seis novos conselheiros de estado717. Reunido o Conselho tomaram providências

para preparar a tomada de posse do «governo» por D. Afonso, segundo a forma e o estilo do

reino. Chamado novamente, o «secretário de estado» ter-se-á oposto a este processo.

A leitura da História de Portugal Restaurado – descontando o elogio conciliador de Pedro

Vieira da Silva – permite analisar o papel do «secretário» neste delicado momento de transição.

Na secretaria de estado estariam guardadas num «escritório», encerrado a chave, todas as ordens

necessárias à tomada de posse onde se expressava a vontade da rainha. Por outro lado, o

«secretário» confessava não ter autoridade para pedir à rainha os «selos régios» e entregá-los ao

novo rei718. A intervenção do «secretário de estado» ter-se-á revelado fundamental numa

transição pacífica, aconselhando o infante D. Afonso a sujeitar-se a «acto público» em obediência

às «cerimónias» e consequente elaboração de «instrumentos públicos» que consagravam o novo

rei no «domínio do reino». Pouco tempo depois, D. Afonso VI recebeu no Paço os «selos reais»

e a posse do «governo». Contudo, a estruturação do novo «governo», dada a manifesta

incapacidade do rei, far-se-ia pela delegação do poder num ministro que controlasse todo o

714 Processo em andamento desde pelo menos 1652, AHU, Ultramar, cx. 1, doc. 54; EFO, VI, 1ª parte, p. 24, onde se constata o crescente protagonismo do «secretário de estado das Mercês e Expediente» em Abril de 1661 quando, comunicando directamente com o senado da câmara, ordenou que se fizesse uma festa em Lisboa para celebrar a coroação do rei de Inglaterra, além de que Pedro Vieira da Silva via-se obrigado a pedir documentação a Gaspar de Faria Severim, de modo a resolver os seus problemas de «despacho». 715 Luís de MENESES, conde da Ericeira, História de Portugal Restaurado…, vol. IV, p. 59 716 Luís de MENESES, conde da Ericeira, História de Portugal Restaurado…, vol. IV, pp. 61-64. 717 Luís de MENESES, conde da Ericeira, História de Portugal Restaurado…, vol. IV, pp. 72-73. 718 Luís de MENESES, conde da Ericeira, História de Portugal Restaurado…, vol. IV, p. 75

167

“processo político”. No turbilhão destes acontecimentos nenhum dos dois secretários conseguiu

assegurar a transição. Apesar da progressiva “funcionalização” das secretarias, na sociedade de

Corte a confiança régia permanecia como um valor determinante e nenhum dos dois secretários

beneficiava de grande favor junto de D. Afonso VI.

Deste modo, depois do fortalecimento da secretaria de estado até 1656, e de uma

consolidação do «despacho» em torno da secretaria das mercês até 1661, de que resultou a

bicefalia das secretarias, verificou-se uma alteração no modelo de «governo». A necessidade de

hierarquizar o processo de decisão, fruto do clima tenso que se instalou e da manifesta

dificuldade do rei em legitimar-se na Corte, levou à recuperação de um cargo com tradição no

reino, a escrita da puridade. Nas páginas seguintes procuraremos dar conta de como tudo isto

veio afectar o perfil do «secretário de estado»

2. O «escrivão da puridade» e a bicefalia das Secretarias de Estado

A fragilidade «constitucional» do novo rei conduziu os «ministros» que circulavam na sua

órbita para a pouco apreciada solução do «valimento», sugerindo-se que a nomeação de um

«escrivão da puridade» poderia aplacar as dúvidas sobre as capacidades governativas de D.

Afonso VI. Todavia, o «secretário de estado», Vieira da Silva, recusou-se a preparar a redacção

da carta de nomeação, uma vez que, na óptica do secretário, a refundação do cargo pretendia

camuflar as funções extraordinárias de um poderoso ministro, o conde de Castelo Melhor719.

Neste contexto, foi necessário, antes do mais, encontrar um «secretário de estado» fiel aos

interesses da nova parcialidade no poder720. As privilegiadas relações de António de Sousa de

Macedo com inúmeros «ministros de estado» em Inglaterra, a sua experiência diplomática e a sua

reconhecida capacidade em matéria de «justiça», pesaram na sua nomeação para a secretaria de

719 Fernando PALHA, O Conde de Castelo Melhor no exílio, Lisboa, 1883; D. Francisco de Sousa e HOLSTEIN, O Conde de Castelo Melhor em Londres, Porto, 1916; Edgar PRESTAGE, Correspondência do conde de Castelo Melhor com o Padre Manuel Fernandes e outros, Coimbra, 1917; Eduardo BURNAY, O conde de Castelo Melhor, as suas presumidas relações com os alquimistas mágicos, filósofos, moedeiros falsos e envenenadores do século XVII, Coimbra, 1923; Edgar PRESTAGE, Castel melhor e a Rainha D. Francisca, Coimbra, 1930; Edgar PRESTAGE, A «Catastrophe de Portugal» e o Tratado da Liga de 1667 com a França, Lisboa, 1939; Mário de Sampaio RIBEIRO, 1667-1668, a destronação de el-Rei D. Afonso VI e a anulação do seu matrimónio, Lisboa, 1938. Mais recentemente, para um perfil bastante detalhado do «governo» do «escrivão da puridade», Francisco da S. de V. e SOUSA, O Ministro de Afonso VI, Luís Vasconcelos e Sousa, 3º conde de Castelo Melhor, Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, 2001. 720 Veja-se ainda Leonor Freire COSTA & Mafalda Soares da CUNHA, D. João IV…, pp. 163 e ss. Para uma análise do discurso jurídico do «secretário de estado», BPE, «Falla do Dr. António de Sousa Macedo no juramento de D. Afonso VI», cod. CV / 1 – 6 a fl. 219 e cod. CV / 1 – 7 a fl. 145.

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estado721. O novo «secretário de estado» serviria o conde de Castelo Melhor, ainda não

empossado formalmente como «escrivão da puridade», operacionalizando o controlo sobre as

«Consultas» do Conselho de Estado, vendo todas as «Cartas» e «Decretos», controlando o

expediente régio722.

Este novo enquadramento do «despacho», conduzido por uma cultura de «governo» “à

espanhola” – como então começava a dizer-se – correspondeu a uma nova agilização da

“comunicação política”. Para identificar algumas dessas significativas alterações, deve, antes de

mais, analisar-se os conteúdos jurídico-políticos da «Carta de nomeação» de Luís Vasconcelos e

Sousa, conde de Castelo Melhor, como «escrivão da puridade» de D. Afonso VI, dada a 21 de

Julho de 1662723. Não obstante a antiguidade do cargo na tradição do reino, esta recuperação

decorria da combinação entre a força da sua «memória política»724 e as características do

“valimento castelhano” – sugeridas pela diplomacia francesa – verificadas, por exemplo, na

elevada qualidade social do «escrivão da puridade» agora nomeado. No «Regimento» do ofício,

eram consagrados amplos poderes sobre todos os «tribunaes, conselhos e ministros» valendo as

721 BNL, Fundo Geral, «Memorial de Ministros», fl. 65v. António de Sousa Macedo, foi baptizado em 1606 no Porto, veio com poucos anos para Lisboa com o pai, estudando no Colegio de Santo Antão dos jesuítas. Destacou-se nos estudos de direito civil em Coimbra. Tal como uma boa parte dos secretários da segunda metade do século XVII, o novo «secretário de estado» iniciou o percurso administativo como «secretário» ao serviço da Casa de Bragança. Foi servidor nas «consultas do Desembargo do Porto» antes de 1640, multiplicando-se depois em “escritos políticos”, na defesa dos direitos de D. João IV à Coroa. Nomeado Desembargador da Relação do Porto, foi provido para a Casa da Suplicação, sendo Desembargador dos Agravos, de que tomou posse em 11 de Janeiro de 1646 o seu pai o Desembargador Gonçalo de Sousa de Macedo. Feito Comendador de Santiago de Souselas na Ordem de Cristo e de S. Eufémia de Penela na Ordem de Avis, Alcaide-mor da Vila de Freixo de Numão. Fidalgo da Casa Real e do Conselho de S. M. Trabalhou como secretário da embaixada enviada a Londres (na qual seguiam Antão de Almada e Francisco de Andrade Leitão) no âmbito da defesa diplomática do duque de Bragança, erigido cabeça do reino de Portugal. Caso invulgar de sofisticada formação jurídica, maravilhou-se em Inglaterra com a Biblioteca da Universidade de Oxford. Aí discorreu com o rei sobre os meandros formais da legitimidade jurídica de D. João IV. Em Londres estabeleceu ligações fortes com comerciantes, mais tarde membros do Parlamento. Morreu a 1 de Novembro de 1682. Para uma análise detalhada, Edgar PRESTAGE, Dr. António de Sousa de Macedo, Residente de Portugal em Londres (1642-1646), Separata do Boletim da Segunda Classe, vol. X, Academia das Sciencias de Lisboa, 1916. Cartas de Sousa Macedo nas quais se baseou Prestage em BPE, cod. CVI / 2 – 8. O «Alvará» de «secretário» foi passado a 7 de Setembro de 1662, IAN/TT, Chancelaria de D. Afonso VI, Liv. 27, fl. 371. 722 BA, 51 – VI – 9, Miscelânea, «Cartas de António de Sousa Macedo para o Marquês mordomo-mor sobre o provimento de Agostinho da Silva no lugar de cirurgião do número, vago por morte de Francisco Nunes, Paço, 1662, 11 e 15 de Novembro com as respectivas respostas», fls. 51-51v; BA, 51 – VI – 15, «Carta de António Sousa de Macedo para o Secretário do Infante D. Pedro, António Cavide, dando-lhe instruções sobre a audiência de despedida que o Infante quer dar ao Embaixador de Inglaterra, 1663, 29 de Agosto», fl. 187 723 Luís de Vasconcelos e Sousa nasceu em 1636. Entrou para o serviço do rei após o golpe de 1662, quando D. Afonso recebeu da mãe o poder. Gentil-homem da Câmara, foi chamado pela Rainha-Regente. Governou, a princípio, numa tripartição do poder, com Sebastião César de Meneses (bispo eleito do Porto) e com o 6º conde de Atouguia, D. Jerónimo Coutinho, conseguindo isolar-se no mando. Por «Carta de 21 de Julho de 1662», exerceu o cargo de «escrivão da puridade» até 23 de Novembro de 1667, com funções confirmadas pelo «Reg. de 12 de Março de 1663». Com o golpe de D. Pedro, irmão de D. Afonso VI, a 23 de Novembro de 1667 não conseguiu permanecer junto do novo regente. Morreu em 1720. 724 Luís de MENESES, conde da Ericeira, História de Portugal Restaurado…, vol. IV, p. 79. Deve notar-se que para a elaboração da «Carta» de nomeação não foram encontrados documentos que pudessem fundamentar a sua estrutura. Desse modo, o rei ordenou ao «secretário de estado» que a carta fosse elaborada a partir das recomendações do Conde de Castelo Melhor.

169

ordens do «escrivão da puridade» de plenitudine potestatis e «poder real, «sem embargo de qualquer

ordenação, lei ou privilégio de qualquer outro ofício ou regimento que neste se derrogue em

todo ou em parte»725. O problema é que, de acordo com uma sugestiva frase do autor da

Catatrophe do Reino de Portugal, «o valimento» opunha-se à «conservação da republica», o que

conduzia todos os «validos» a uma «idade critica», onde a «republica, acodindo a sua vida,

arruinaria o valimento & o sepultaria»726. Daí a preocupação em legitimar o cargo e inscrevê-lo

na longa linhagem dos ofícios portugueses. A obra de Fr. Francisco do Santíssimo Sacramento,

Epitome unico da dignidade de grande y maior ministro da Puridade, impressa em 1665, vem cumprir esta

função de enquadramento do «escrivão da puridade», pretendendo combater uma veemente

crítica contra o modelo castelhano muito difundida na Corte. Na verdade, não era fácil

contornar estes ataques, uma vez que a actuação dos «ministros» régios corria num sentido

“castelhanizado”, no sentido comissarial, verificando-se até algumas proximidades directas dos

novos protagonistas com figuras do «governo olivarista». Veja-se, como exemplo, o facto de

Castelo Melhor estabelecer como assistente do «despacho», Rui de Moura Teles, um «ministro»

que havia estado muito próximo de Miguel de Vasconcelos727.

Esta nova “castelhanização” do governo, seguia o sentido da “modernização” política do

despacho verificada na década de 1630, apostando na especialização em torno da «Fazenda» e da

«Guerra». Em todo o caso, o «escrivão da puridade» pretendeu agilizar a comunicação com o

reino, criando três domínios diferentes na produção de decisões: os assuntos de guerra, a cargo

do marquês de Marialva; o marquês de Niza com a marinha, e o marquês de Sande com a

diplomacia728. Contudo, «esta antecipação das Secretarias de Estado», de acordo com as palavras

de Gastão de Melo Matos, não chegou a efectivar-se porque os nomeados, rodeados pela crítica

da “castelhanização”, se recusaram a tomar posse destas repartições, contribuindo para aguçar as

críticas contra Castelo Melhor. Com efeito, uma análise da produção normativa do «governo»

liderado pelo «escrivão da puridade» mostra uma clara ascensão das matérias de guerra e

fiscalidade. Também no que diz respeito à regulação dos oficiais se verifica uma preocupação –

numa dimensão burocratizante – que tem paralelo com as últimas décadas do «governo» Áustria:

elaboração de providências sobre as acumulações de cargos729; regulação da movimentação das

725 EFO, VI, 1ª parte, p. 418. 726 Gastão de Melo de MATOS, «O sentido da crise política de 1667», Anais da Academia Portuguesa de História, 1ª série, vol. VIII, Lisboa, 1944, p. 351 727 Gastão de Melo de MATOS, «O sentido da crise…», pp. 352-354. 728 Gastão de Melo de MATOS, «O sentido da crise…», pp. 355. 729 «Decreto de 3 de Agosto de 1663».

170

«Consultas» e «papéis» vindos do Conselho de Estado para o rei730 ou circulando nos

conselhos731; indicações sobre o funcionamento dos oficiais no momento da nomeação do

«escrivão da puridade»732 e no respectivo «Regimento»733.

Na verdade, o governo de Castelo Melhor foi alvo de ataques muito semelhantes aos que

se verificaram contra os «secretários» Miguel de Vasconcelos e Francisco de Lucena, o que

permite interpretar o período decorrente entre 1662 e 1668 como um novo momento de

“modernização” do «governo». Deve salientar-se que as críticas da Corte seguiam sobretudo

duas linhas de argumentação, muito semelhantes às verificadas no passado quanto à acção dos

ministros “castelhanizados”: o «escrivão da puridade» era acusado de utilizar mecanismos

“políticos” alternativos à ordem polissidonal – implementando uma coordenação do «despacho»

tendencialmente executiva – assim como criticado por ter sido o protagonista de um ataque

«desonroso» aos privilégios dos «Grandes do Reino» – quer através do ostracismo cortesão quer

pela nomeação de pessoas «indignas» para ofícios de relevo734. Daí que a sua margem de acção se

tenha progressivamente estreitado, obrigando os «secretários de estado» a desdobrarem-se em

escritos “políticos” de legitimação do “regime”.

Vejamos, em todo este processo, qual o papel do «secretário de estado», António de

Sousa de Macedo, e do «secretário de estado das mercês», Gaspar de Faria Severim.

Na medida em que o «escrivão da puridade» chamava a si as funções que vinham sendo

desenvolvidas pela «secretaria de estado», o protagonismo de Castelo Melhor relegava, em

princípio, a acção dos «secretários» para tarefas “burocráticas”. No entanto, este trabalho

“mecânico” dos «secretários», apesar de constituir um certo retrocesso de estatuto, deixava

sempre em aberto uma possível notoriedade por motivos “técnicos”. Foi o que sucedeu com

António de Sousa Macedo. Este despachava com o rei às segundas, quartas e sextas,

potenciando a sua influência, não tanto pelas atribuições cometidas ao seu ofício, mas pela

invulgar capacidade de trabalho. John Colbatch, o capelão da feitoria inglesa em Lisboa em fins

do século XVII, chamava a atenção para o facto de o ónus de muitas das decisões recair cada

vez mais sobre o «secretário de estado», o que, dada a sua escassa «valia» social, resultava em

730 «Decreto de 11 de Setembro de 1662». 731 AHU, Reino, cx. 12, pasta 5, recomendações ao secretário do Conselho Ultramarino, Marcos Rodrigues Tinoco, que não possibilitasse alterações à assinatura real, e que os papéis seguissem a via normal. 732 «Carta Régia de 21 de Julho de 1662». 733 «Decreto de 12 de Março de 1663». 734 Ângela Barreto XAVIER, «El Rei aonde póde, & não aonde quér», Razões da Política no Portugal Seiscentista, FCSH, UNL, Colibri, Lisboa, 1998, p. 55.

171

múltiplos e inevitáveis conflitos com um grande número de peticionários735. Se este facto

representava uma dificuldade acrescida para a progressão cortesã do «secretário de estado» era

também a prova constituída de que o peso do seu trabalho voltava a definir grande parte das

decisões do rei. Claro que as disputas comuns com os Conselhos, em torno dos processos

“burocráticos” dos peticionários, foram rapidamente aproveitadas na luta interna que atravessava

a Corte736.

A rápida ascendência do «secretário de estado», assim como o facto de o «escrivão da

puridade» chamar a si coordenação do «despacho», provocou a forte oposição dos Severins –

como vimos, a família que detinha o controlo das «mercês» durante o período da regência de D.

Luísa. Assim, deve notar-se que a secretaria de estado das mercês, onde servia tanto Gaspar

Severim de Faria como Pedro Severim de Faria737, continuou a disputar o protagonismo da

secretaria de estado. Às terças quintas e sábados o rei despachava com o «secretário das mercês»,

Gaspar de Faria Severim. Com efeito, a influência que este secretário vinha adquirindo não foi

totalmente interrompida pela nomeação de António de Sousa Macedo. Como exemplo veja-se o

caso do secretário do Conselho Ultramarino, Manuel Barreto de Sampaio, que, em 1663,

querendo obter resposta sobre dúvidas de «jurisdição» do Conselho Ultramarino e do

Desembargo do Paço, a respeito do despacho de uns «papéis», escreveu ao secretário das mercês

e não à Secretaria de Estado738. Outro sinal desta permanência prende-se com a vitalidade com

que, cerca de 1665, Gaspar Severim de Faria defendia a sua «propina» disputando-a num longo

braço de ferro com o senado da Câmara de Lisboa739. Porém, com o agudizar da situação na

Corte e radicalização do conflito, o «secretário de estado das mercês» seria afastado. Tal deveu-se

à tendência, igualmente crescente, para subjugar as «mercês» e o processo prebendial ao

«governo» comum do reino. A eliminação do filho de Gaspar de Faria Severim, Pedro Severim

de Noronha, assistente do pai desde 1653 – assassinado por «patrulhas» do rei D. Afonso VI em

1664 –, deve ter significado um rude golpe nas aspirações do «secretário de estado das

mercês»740. Os contornos da sua morte são pouco claros, mas revelam que os «secretários»

735 John COLBATCH, An Account of the Court of Portugal, Under the Reign of the present King Dom Pedro II, with Some Discourses on the Interests of Portugal, with Regard to other Sovereigns, London, 1700, pp. 87 e ss. 736 AHU, Reino, cx. 12, pasta 7. 737 AHU, Reino, cx. 11-A, pasta 29. 738 AHU, Reino, cx. 12, pasta 7. 739 Em 1647 já se decidira aumentar a propina do «secretário de estado das mercês e do expediente», Gaspar de Faria Severim, EFO, V, 1ª parte, p. 73. Severim, «depois que entrou no expediente dos papéis», fez acrescentar ao seu rendimento «8 moios de cevada, de 64 alqueires cada moio», EFO VI, 1ª parte, p. 547 ss. 740 Pedro Severim de Noronha encontraria a morte num episódio singular: cruzando-se uma noite com o rei D. Afonso VI, não o tendo reconhecido, gerou-se uma pequena escaramuça, tendo sido assassinado pelo soberano, Ângela Barreto XAVIER, «El rey aonde pode...», p. 55.

172

continuavam a representar fortíssimos “activos políticos” – ainda mais quando conspiravam

contra o «governo» régio, o que parece ter sido o caso. O «secretário de estado» António de

Sousa Macedo, e o «secretário» António Cavide, terão coincidido na opinião de que Gaspar de

Faria Severim propunha o retorno da regência de D. Luísa – a sua maior influência na Corte –

assim como a prisão do Conde de Castelo Melhor, utilizando para tal uma acusação sobre gastos

não autorizados741.

Segundo Gastão de Melo de Matos, os alinhamentos cortesãos do período são

complexos e voláteis, tanto mais que, neste período, começa a fazer-se sentir, de forma cada vez

mais decisiva, a poderosa influência diplomática dos enviados de França742 e Inglaterra743. Em

todo o caso, não é possível confirmar a ligação dos «secretários de estado das mercês» a uma

conspiração contra o conde de Castelo Melhor744. Além do mais, sabemos hoje que a vitimização

perante supostas conspirações – instrumento que o Infante D. Pedro irá utilizar contra o próprio

Luís de Vasconcelos e Sousa – constituíram um recurso muito eficaz na política seiscentista.

Em todo o caso, a preocupação de Castelo Melhor em controlar o processo de

nobilitação e a atribuição de mercês, originou o retorno das críticas aos oficiais do «despacho»,

acusados de um suposto discurso anti-nobiliárquico, o que acabou por atingir os «secretários» e

precipitar a queda do oficiais que detinham a posse do «governo» régio. Com efeito, nas vésperas

do golpe palaciano que depôs D. Afonso VI, um conflito entre António de Sousa Macedo e a

rainha D. Maria Francisca Isabel de Saboya, ditou seu afastamento do «secretário de estado»745.

Na verdade, apenas depois de António de Sousa de Macedo ser desterrado, em consequência

deste conflito decorrido em Agosto de 1667, a parcialidade constituída para eliminar a influência

de Castelo Melhor adquiriu capacidade de intervenção na Corte, o que atesta bem a importância

do «secretário de estado». Segundo Pedro Cardim e Ângela Barreto Xavier, as Cortes de 1668

foram o culminar de um processo onde o omnipotente “primeiro-ministro”, o conde Castelo

741 Gastão de Melo de MATOS, «Um Processo Político do Século XVII», Congressp do Mundo Potuguês, vol. VII, Lisboa, 1940, pp. 645-647. 742 BA, 51 – VI – 11, «Decreto de sua Magestade acerca do libelo que se deu contra Gaspar de Faria Severim, Secretário das Mercês acerca do título de Marquês em França, Lisboa, 1662, 11 de Outubro e 1663, 17 de Janeiro», nº 122 e nº 124, respectivamente. 743 BPE, «Pareceres do Conde de Castelo Melhor a D. Pedro II, sobre a confederação contra a Hespanha e França», cod. CIII / 2 – 26, fl. 119v; cod. CV / 1 – 1, fl. 145; cod. CXXX / 2 – 6, fls. 26v-32v. 744 Por meados de 1664, António de Cavide, suposto partidário do conde de Castelo Melhor, recebeu do arcebispo Sebastião César de Meneses a informação de que «se tramava um movimento contra o Escrivão da Puridade», na qual estariam envolvidos os secretários das Mercês, os Severins, Gastão de Melo MATOS, «Um Processo Político…», pp. 639 e ss. 745 BA, 51-X-6, «Parecer de Pedro Vieira da Silva sobre a petição do “secretário de estado» António de Sousa Macedo pedindo para seu filho a mercê do título de Barão», fl. 271.

173

Melhor, foi atacado pelo seu «governo» supostamente “tirânico”746. Seria este processo também

uma reacção contra a “burocracia” que ocupava as secretarias de estado? Aparentemente a “luta”

entre parcialidades decorria menos da fragilidade do próprio rei do que do “estilo” castelhano do

«governo».

Resta saber se, sob a superfície da “luta” de Corte, as mutações promovidas pelo

«escrivão da puridade» estariam ou não a entrar numa contradição profunda com a cultura

“política” dominante. Na verdade, sabemos que Pedro Fernandes Monteiro, procurador dos

Povos por Lisboa – já envolvido no passado na eliminação de Francisco de Lucena – confessou

mais tarde que parte das acusações contra os secretários decorriam apenas de uma “luta” entre

cortesãos747. Terá o alinhamento das parcialidades respondido apenas a relações clientelares

(laços familiares, interesse político-económico, relações de afecto) ou estariam estas relacionadas

com modelos distintos de «governo»? Sendo assim, qual o verdadeiro peso das ideias sobre o

exercício do poder régio – onde os «secretários» e a sua participação no «despacho» emergiam

como tema dominante – no âmbito da “luta” de Corte? A pergunta remete para os difíceis

problemas da emergência da “burocracia” no contexto das “lutas políticas” – assim como o

papel do conflito entre corpos e secretarias de estado na produção ideológica do poder –

aspectos que abordaremos na última parte deste estudo. De qualquer modo, não é difícil ver

aqui, para lá das conjunturais lutas cortesãs, as dores de parto de um novo sistema social em

direcção a um novo paradigma de funcionamento.

746 Ângela Barreto XAVIER, «El Rei aonde póde...», pp. 19-20. Estudos recentes têm destacado os conflitos cortesãos e a afirmação dos validos na perspectiva dos modelos políticos das sociedades de corte, Paul GRIFFITHS, «Secrecy and authority in late sixteenth anda seventeenth century London», The Historical Journal, 40, Cambridge, 1997, pp. 925-951; David M. LOADE, Tudor Government: Structures of Authority in the Sixteenth Century, Oxford University Press, Oxford, 1997; Antonio FEROS CARRASCO, Kingship and Favoritism in the Spain of Philip III, 1598-1621, Cambridge Univesity Press, Cambridge, 2000. 747 Fernandes Monteiro, um dos principais incitadores dos «Povos» em 1668 confessaria no seu Testamento, redigido em 1673, ter caluniado o «escrivão da puridade», conde de Castelo Melhor, além de ter participado na destruição intencional de Francisco de Lucena, «tudo por inveja e ambição». Roque Monteiro de Paim, filho de Pedro Fernandes Monteiro, na sequência da publicação do primeiro tomo da História de Portugal Restaurado de D. Luís de Meneses, escreveu uma carta ao autor onde se queixava do tom violento com que seu pai fora tratado na obra, afirmando que Monteiro não tinha sido o único a instruir processos contra inocentes. Este facto vem, paradoxalmente, confirmar a veracidade da acusação, Ângela Barreto XAVIER, «El Rei aonde póde...», pp. 73-74. Sobre estes conflitos veja-se Monstruosidades do Tempo e da Fortuna, (1669-1671), vol. II, Porto, 1939, pp. 51-52, Ângela Barreto XAVIER e Pedro CARDIM, D. Afonso VI..., pp. 237-238.

174

3. Os «secretários de estado» e a funcionalização da Secretaria de

Estado.

Temos vindo a descrever a emergência da secretaria de estado, no quadro das “lutas” de

Corte. Nesta secção, deve dizer-se, a começar, que o reinado de D. Pedro II, correspondeu a um

aumento do número de «secretários» ao serviço do rei, dando origem a uma nova fase da

evolução das secretarias em que se vê diminuída a influência dessa luta na configuração

institucional do cargo. Diminuição, antes de mais, dos aspectos exteriores dessa “luta”, não uma

ausência dos aspectos relacionados com as estratégias pessoais para a obtenção de poder.

Acompanharemos ao longo desta secção o momento em que o «secretário de estado» atinge,

finalmente, um estatuto dominante no espaço da Corte.

Um primeiro aspecto deste “domínio político” prende-se com a definitiva

subalternização da secretaria de estado das mercês, e da secretaria da assinatura, relativamente à

secretaria de estado.

A multiplicação de «secretários», verificada entre 1668 e 1706, deve considerar-se do

ponto de vista da despatrimonialização do ofício, verificando-se uma crescente separação entre o

serviço da secretaria e a posse do título. Uma descrição dos três espaços de poder onde actuaram

«secretários» (Assinatura, Mercês e «Estado») permite identificar tanto o triunfo das «matérias de

estado» no exercício cortesão do «governo» régio como a decorrente tipificação da actuação do

«secretário de estado» como “primeiro” «ministro» do reino.

No que toca à evolução da secretaria da assinatura.

Embora não existam dados muito claros, pode dizer-se que tinha vindo a consolidar-se,

desde o reinado de D. João IV, o hábito de um «secretário», geralmente actuando na Câmara

régia, controlar o processo de assinatura do rei, facto que levaria Fr. Francisco do Sacramento a

afirmar a existência de três secretários (estado, mercês, assinatura) com competências distintas,

cerca de 1666748. As razões para a quase inexistência de informações sobre a secretaria da

assinatura prendem-se com o próprio sentido do conceito de secretaria tal como era utilizado no

século XVII. Por outras palavras, sabemos que a acepção “contemporânea” de «Secretaria» –

como conjunto de oficiais com «Carta patente», «Regimento» e consequente definição da

estrutura oficinal – surge apenas no final do século XVIII. O facto de o processo da assinatura

pertencer a uma lógica especificamente seiscentista – mais conjunturalmente situada –, nascida

748 Fr. Francisco do Santíssimo SACRAMENTO, Epitome..., p. 9.

175

sobretudo no espaço da intimidade do rei e extinta ao longo da primeira metade do século

XVIII, resulta numa maior escassez de fontes para o seu estudo – ao contrário das «matérias de

estado» e «mercês», conservadas pela própria evolução do sistema de poder que veio a privilegiar

estas expressões do «despacho». Assim, não é fácil reconstituir o trabalho de assistência à

assinatura régia. Porém, não há dúvidas de que a cultura política seiscentista distinguia, de forma

clara, a especificidade da secretaria da assinatura, sendo que, no final do reinado de D. Pedro II e

início do reinado de D. João V, o secretário da assinatura continuava a ter as incumbências tal

como foram definidas a partir de 1643, despachando com o rei todas as manhãs749.

Vejamos as características dos mais destacados oficiais no serviço da assinatura.

António Cavide serviu nestas funções durante o reinado de D. João IV750. Após um

interregno durante a regência da rainha D. Luísa – em que depois de 1656 serviu António de

Sousa Tavares, Desembargador do Paço – D. Afonso VI voltou a chamar António Cavide para a

Secretaria da Assinatura751. Depois de 1668, já na época de governo de D. Pedro II, Cavide

permaneceu como secretário do rei e membro Conselho da Fazenda, porém apenas como

detentor de títulos honoríficos que já não correspondiam a uma actuação efectiva junto do rei752.

Após a morte de António Cavide, surgem na secretaria da Assinatura, João de Roxas de

Azevedo753, ministro com experiência diplomática754 e secretário pessoal do infante, e também

749 Gazeta em forma de carta…, pp. 89-90. 750 BA, 51-VI-15, «Carta para o Secretário António Cavide pela qual agradece a hora parasada para beijar a mão e despedir-se de S.ª », fl. 195; BA, 51-X-16, Colecção de Avisos, Ofícios e Cartas para o Secretário António Cavide e outros do mesmo para outras pessoas, «Carta por que S.A. pelos respeitos nela declarados faz mercê a António Cavide e Estado na maneira assim declarada », fl. 61; BA, 51-X 17, Colecção de papéis oficiais e particulares de António Cavide, Secretário de D. João IV. 751 IAN/TT, Chancelaria de D. Afonso VI, «Secretário dos Negócios da Casa de Bragança, Carta a António Cavide», Liv. 25, fl. 94. Cavide chegou a ser equacionado para a secretaria de estado em 1668, isto após o afastamento de António de Sousa Macedo e do Conde de Castelo Melhor, numa conjuntura em que se falou também de Pedro Fernandes Monteiro e Pedro Vieira da Silva para a Secretaria de Estado. Em 1673, chegou mesmo a ser preso depois de o seu nome ser referido em comprometedores «papéis» apreendidos pela Junta da Inconfidência. As indefinições acerca da actuação dos «secretários de estado» foram, em muitos casos, manifestas e impedem um levantamento taxativo dos seus titulares, Ângela Barreto XAVIER & Pedro CARDIM, D. Afonso VI…, pp. 203 e ss. 752 Sobre a «conjura de 1673» e o envolvimento de António Cavide na política de corte ver Maria Paula Marçal LOURENÇO, D. Pedro II, Círculo de Leitores, 2007, pp. 147-148. Sobre as prisões de 1673, com uma análise do processo de António Cavide, já falecido na data da produção do documento, ver AGS, Estado, Leg. 2631. 753 Natural de Madrid ou Buenos Aires, filho de Pedro de Roxas. João Roxas de Azevedo, estudou na Universidade de Coimbra (segundo França Reis é o primeiro oficial letrado com nomeação, nascido fora da monarquia) e foi um dos mais destacados aliados de D. Pedro II na conjura de 1667. Fez com António Cavide parte da Junta da Casa do Infantado com poderes idênticos aos outros tribunais da Coroa. Foi secretário de Francisco de Sousa Coutinho nas suas missões diplomáticas (embaixador extraordinário em Roma e Plenipotenciário à Paz de Nimega). Foi secretário da Casa do Infante D. Pedro, passando, depois deste chegar à regência, a desembargador do Paço, sendo depois «secretário da assinatura» e chanceler-mor do reino, IAN/TT, Chancelaria de D. Pedro II, Liv. 48, fl. 3, António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol VII, p. 404. Em 1684 foi investido familiar do santo ofício, Maria Paula Marçal LOURENÇO, D. Pedro II..., p. 78 e p. 105. Pedro França REIS, Conselheiros e Secretarios de Estado de Portugal..., p. 218.

176

José de Faria755, um ministro especializado em Fazenda e arquivos, que chegaria a «secretário de

estado» interino na década de 1690756. As estreitas ligações entre estes ministros vão contribuir

para a fusão entre secretarias, conotando o exercício dos «secretários» com um plano mais vasto

de blindagem da produção documental757. Neste sentido, verifica-se um crescimento sem

precedentes do trânsito entre secretarias que culminará na nomeação dos dois «secretários» com

um maior tempo de serviço régio – Bartolomeu de Sousa Mexia758 e Diogo de Mendonça Corte

Real759. Os dois passarão pelas três secretarias do reino e assegurarão uma tranquila continuidade

“burocrática” entre os reinados de Pedro II e D. João V760.

Qual a relação entre o trabalho destes «secretários» e a sedimentação de uma prática da

assinatura régia?

É importante notar que um dos mais destacados secretários da assinatura, João Roxas de

Azevedo, representou um papel fundamental na eliminação do valimento de Castelo Melhor em

1667, conotando a confirmação régia, durante a regência de D. Pedro, com uma sustentação

jurídica do poder do rei. Isto queria dizer que as limitações documentais ao poder régio – antes e

depois da produção desses actos de poder – começavam a ser esvaziadas de alguns princípios

754 BA, 51 – VI – 11, «Decreto de S.M. para o Regedor (da Casa da Suplicação) comunicando-lhe a mercê que fez a João de Roxas de Azevedo do lugar de Desembargador extravagante da Casa da Suplicação, como prémio do bom serviço de Secretário das embaixadas de França e Roma, lisboa, 1668, 9 de Jan.». 755 Conselheiro da Fazenda e guarda-mor da Torre do Tombo. Segundo a Leitura de Bacharéis, a sua família seria das «melhores do reino», especialmente pelo pai, Manuel de Faria de Barcelos, escrivão do Juízo Eclesiástico. Membro do Conselho de Estado e do Conselho da Fazenda, foi enviado extraordinário na Corte de Madrid, guarda-mor da Torre do Tombo, por «Carta» de 25 de Janeiro de 1695, IAN/TT, Chancelaria de D. Pedro II, Liv. 39, fl. 221. 756 António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol VII, p. 403. 757 Luís Caetano de LIMA, Geografia histórica de todos os estados soberanos de Europa..., vol. I, pp. 250 e ss. 758 BNL, Fundo Geral, «Memorial de ministros», «Bartolomeu de Sousa Mexia», F 1240, fl. 87v. Nasceu em Lisboa. Foi desembargador das Ilhas, desembargador da relação do Porto. Passou para a Casa da Suplicação onde foi ministro dos Agravos, obtendo lugar no Conselho da Fazenda. Foi ouvidor da Casa de Bragança e do Infantado. No auto do Juramento de D. João V, a 1 de Janeiro de 1707, assistiu como membro do Conselho de S.M. e do Conselho da Fazenda sendo seu «secretário da assinatura, Mercês e Expediente», tendo como alunos, D. Miguel e D. José, filhos legítimados de D. Pedro II. 759 BNL, Fundo Geral, «Memorial de ministros», «Diogo de Mendonça Corte Real», F 1240, fl. 134. Nasceu em Tavira em 1658 e estudou, em Coimbra, Direito Canónico. Terminados os estudos em 1686, foi corregedor e provedor da Comarca do Porto, começando a servir em 1691. Foi durante o reinado de D. Pedro II, enviado extraordinário aos «Estados da Olanda» e depois à corte de Madrid, onde residiu alguns anos. Voltando para o reino foi nomeado conselheiro da Fazenda, sendo depois nomeado por D. Pedro II, «secretário das mercês» e, mais tarde, «secretário da assinatura e expediente». Seria «secretário de estado» de D. João V até o ano da morte, 1736. Casou com D. Teresa de Bourbon, filha dos condes de Avintes. Descendia dos Sequeiras de Monforte do Alentejo, IAN/TT, Chancelaria D. Pedro II, «Secretário das Mercês, Carta a Diogo de Mendonça Corte Real», Liv. 56, fl. 101v; António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol VIII, p. 174. 760 A 15 de Abril de 1707 seriam confirmados dois novos «secretários de estado e das mercês», «sendo já velhos». Diogo de Mendonça Corte Real transitou da «secretaria das mercês para a secretaria de estado», «conseruando o expediente da guerra». Bartolomeu de Sousa Mexia passou da «assinatura para a secretaria das Mercês», com carta de propriedade, Gazeta em forma de carta, José Soares da Silva, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1933, pp. 102-103. O autor sublinha o facto de com estas nomeações «se privaram de esperanças tantos, e tam fortes opozitores». As razões prendiam-se com a estabilidade das secretarias onde «não quizerão uer caras de nouo» mudando «para a mesma cabeceira».

177

dominantes na política de Corte ao longo dos últimos séculos (autonomia da Chancelaria,

revisão de sentenças, apelo para Cortes). Este esvaziamento fazia-se por meio de uma

monopolização dos diferentes níveis da recolha de informação e elaboração documental. A

secretaria da assinatura era, enfim – apesar do seu trabalho de sombra e das suas muitas

insipiências no controlo dos poderes documentais dos tribunais de Corte – uma primeira

erupção de um exercício do poder como “dispositivo de comunicação” vocacionado para a

correspondência entre a decisão do rei, a rapidez do processo e a hierarquização dos «papéis»

dos Tribunais.

Se observarmos, ainda que brevemente, a evolução do serviço de João Roxas de

Azevedo, identificamos com mais visibilidade alguns destes aspectos. Com efeito, a sua

participação na relevante discussão de 1668, aponta para um oficial com capacidades discursivas

singulares. Essa discussão, como sabemos, correspondeu a um dos mais determinantes

momentos na configuração “constitucional” do reino de Portugal761. Roxas de Azevedo

participou em várias juntas decisivas para a fundamentação do poder régio, aliando o seu saber

de «secretário do Infante» a uma sólida cultura jurisdicional. Como é bom de ver, a fusão destas

características forjava um novo oficial actuando no sistema de poder. No entanto, convém

prevenir que não decorreu daqui uma implosão imediata dos mecanismos de oposição aos actos

de poder do rei. Como largamente demonstrou António M. Hespanha, estes mecanismos

estavam muito enraizados na dogmática jurídica da época762. O que deve ser notado prende-se

com a intenção da Coroa em destacar a assinatura régia, designando para o seu controlo um

secretário adestrado na prática política – que na época correspondia sobretudo à diplomacia –

significando isto quer um reforço do poder dos secretários, quer uma assumpção mais clara de

um círculo restrito de oficiais actuando junto do rei.

Segundo Ângela Barreto Xavier, os «Pareceres assinados pelo «secretário» – qual carta de

aptidão retórico-política – serviam, antes do mais, os seus próprios interesses, o que permite

surpreender os «secretários» no plano da “política real”763. No entanto, estes «Pareceres»

redigidos pelo «secretário do infante» discutiam também aspectos determinantes da ordem

jurídica do reino – como a possibilidade de as Cortes elegerem o rei. O que pretendo destacar

761 Devia o infante D. Pedro assumir o título de rei e a coroa, retirando a Afonso VI todas as qualidades régias (fundamentando-se a acção no direito do reino e da renúncia do rei) ou devia apenas substituir o rei no governo. 762 António M. HESPANHA, «Marginalia sobre dois seminários de história do poder», Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, n°4.6, 2003, pp. 165-193. 763 João Roxas de Azevedo sustentava que as cortes não possuíam uma «expressa capacidade de decisão política», sendo remetidas para um papel simbólico, ideia que podemos conotar com as posições “regalistas”. Embora isto funcionasse mais como princípo retórico pois este valor simbólico era, pelo mesmo Azevedo, conformado com a possibilidade de as Cortes serem «Tribunal de reis», Ângela Barreto XAVIER, «El Rei aonde póde…», pp. 36-48.

178

prende-se com esta nova categoria de juristas, adestrados num saber menos afecto à dogmática

dos livros de referência e mais susceptíveis de suportar as pretensões do poder régio. Se é

verdade que vinham surgindo casos similares, como Pedro Vieira da Silva ou António de Sousa

de Macedo, a novidade decorria de uma maior atenção aos factores de comunicação entre

secretarias e poder régio. Com efeito, esta aliança forjava um novo “discurso” em que o poder

do rei emergia de forma mais “musculada”, sustentado por novas técnicas de “comunicação

política”. Por outro lado, como temos vindo a sugerir, as matérias diplomáticas reforçavam o

território político dos secretários, onde a experiência de cortes europeias ampliava o seu leque de

saberes. Depois de 1668, o trabalho de João Roxas de Azevedo como secretário da assinatura

juntou ao controlo dos assuntos externos – estabelecimento de ministros enviados a diversas

Cortes – a comunicação com o «secretário de estado» e a confirmação das decisões de «governo»

do reino764. Este movimento centrípeto, fechado sobre a Câmara régia, reforçou a já referida

“política de gabinete”. Deve ainda notar-se que esta proximidade dos «secretários da assinatura»

em relação ao rei, não limitada por «Regimento» próprio, potenciava, uma outra vez, a

emergência do «secretário» fora do Conselho de Estado. Como bem refere Paula Marçal

Lourenço, deve ver-se aqui um primeiro esforço – como coordenação geral das «matérias de

governo» – no sentido de gerar «Consultas» unívocas, fazendo proliferar «o direito escrito e

erudito de proveniência régia»765.

Assim, a acção de Joaquim Roxas de Azevedo revela que a comunicação entre as três

secretarias determinava o aumento do protagonismo da secretaria da assinatura, de onde partiria

sobretudo o esforço de agilizar a produção documental dos tribunais da Corte, pressionando os

«ministros» a finalizarem os processos e levando directamente ao rei as «Consultas» já

elaboradas, homogeneizando os conteúdos normativos e criando canais de comunicação com as

«matérias de estado» (sobretudo guerra, diplomacia e fazenda), tentando, enfim, cumprir o

desígnio já tentando por Pedro Vieira da Silva durante a regência de D. Luísa766.

Perante este reforço da assinatura régia, que consequências para a secretaria das mercês?

Como temos vindo a sublinhar, uma boa parte do controlo sobre o «expediente» –

relembre-se que esta era a expressão para designar o acto específico de controlar o circuito

documental – estava cometido a esta secretaria. Assim, ao destacar a assinatura, a Coroa

procurava também concentrar os esforços de controlo na decisão prebendial. Com efeito, as

764 AGS, Estado, «Carta de 2 de Novembro de 1668», Leg. 2634. 765 Maria Paula Marçal LOURENÇO, D. Pedro II..., p. 79 766 IAN/TT, Casa Real, «Parecer sobre o modo de resolver e despachar nas Secretarias», Cx 3740

179

«matérias de mercês» vinham sofrendo alterações normativas desde a década de 1630. Além

disto, como ficou dito, os ministros do rei começavam a posicionar-se perante as matérias de

«graça», tendo em conta objectivos mais estratégicos – animados pela conservação do «Estado

Real», conforme era referido no Regimento do Conselho de Estado de 1645 – pelo que, os

«secretários das mercês» tinham vindo a transitar, de forma comum, para o serviço da secretaria

de estado, afinando a sua leitura da liberalidade régia de uma forma mais transversal. Verifica-se,

portanto, a dupla tendência já enunciada: maior circunscrição das decisões régias em matéria de

«mercês» – com uma subalternização em relação ao tópico do «governo comum» – e uma maior

circulação do pessoal político da secretaria, o que levava a uma lenta ruptura entre o exercício

pessoal do cargo e o ethos secretarial do ofício, significando isto a intensificação de um ethos do

serviço «público» do rei.

Comecemos por referir as tendências normativas e tipificadoras no âmbito da secretaria

das mercês.

Desde 1662 que as «matérias de mercês» vinham sendo enquadradas pela necessidade de

comunicação entre secretarias. O «Regimento da secretaria das mercês», dado em 1671,

especificou os serviços dignos de serem agraciados, regulamentando e exigindo provas da

efectiva prestação do serviço, e definindo a tramitação processual767. O «secretário» não poderia

aceitar senão papéis autênticos – elaborados e assinados pelos titulares de cargos régios –

registando o tipo e a data das certidões. Isto significava que o «secretário» deveria verificar se a

documentação era produzida por instituições da Coroa, a fim de evitar falsificações, impondo-se

a apresentação das provas dos serviços: no caso dos serviços militares, certidões e folha da

Auditoria Geral de Guerra; no caso de os serviços pertencerem à Índia, Brasil e parte

ultramarinas, deviam ser passados pelos escrivães e secretários dos capitães das fortalezas,

escrivães das naus, secretários dos generais e capitães-mores. O «secretário» devia também

controlar o volume de mercês em apreciação evitando que, sendo despachada uma petição – de

resposta contrária à satisfação dos vassalos –, voltassem a ser apresentados os mesmos «papéis»

sem referência do «despacho» anterior e consequente decisão. Pretendia-se uma atenção mais

estreita ao historial de cada peticionário, de forma a neutralizar mecanismos de contorno – ou

esvaziamento – das decisões régias. Neste sentido, outro exemplo destacado do esforço

normativo e arquivístico foi o «Decreto» produzido em 1681, no sentido de reformar o Registo

das Mercês – dando maior efectividade à organização do “histórico das mercês atribuídas” –

767 «Reg. da secretaria das mercês de 19 de Janeiro de 1671».

180

baseando-se o trabalho de recuperação nas Chancelarias do Real Arquivo, e das Ordens

Militares, no Livro das contas da Chancelaria depositado no Conselho Ultramarino.

Já referimos que outro dos aspectos determinantes na evolução da secretaria das mercês

diz respeito ao facto do seus «secretários» passarem a actuar no âmbito de um “gabinete régio”.

Assim, durante o reinado de D. Pedro II, qualquer dos três «secretários» que desempenharam

funções no «despacho» das mercês serviram também, ocasionalmente, interinamente, ou mesmo

formalmente, como «secretários de estado» ou como «secretários da assinatura». Vejamos

brevemente esta fluidez de serviços.

Pedro Sanches de Farinha foi designado formalmente secretário de estado das mercês e

expediente e foi nessa condição que coordenou a elaboração do importante «Regimento da

secretaria das mercês»768. Em algumas ocasiões despachou interinamente «matéria de estado», no

impedimento do «secretário de estado», pelo menos desde a morte de Gaspar de Faria Severim

até ao período em que servia o fragilizado D. Frei Manuel Pereira, entre 1680 e 1686769. João

Roxas de Azevedo, depois de passar pela secretaria da assinatura, despachou também como

«secretário das mercês» após a morte de Sanches de Farinha. Também Roque Monteiro de Paim,

destacando-se como secretário na década de 1680, serviu por diversas vezes nas três

secretarias770. Por morte de João de Roxas de Azevedo foi Bartolomeu de Sousa Mexia, também

com experiência na assinatura, quem passou a servir no «despacho das mercês»771. O serviço

deste último «secretário»772 seria ainda dividido com Diogo de Mendonça Corte Real que, depois

de uma «enviatura» em Madrid, passou a trabalhar no «despacho» secretaria das mercês e na

768 Sucessor de Pedro Severim de Noronha na Secretaria das Mercês e Expediente, filho de António Sanches de Farinha. Letrado mas não de formação universitária, Pedro França REIS, Conselheiros e Secretarios de Estado de Portugal…, p. 213. Severim de Noronha serviu como escrivão da Câmara Real, tendo desempenhado a função de «notário público» nomeado no acto de entrega dos selos régios a D. Afonso VI, BGUC, «Cerimonial da entrega dos selos reais, pela rainha D. Luísa a D. Afonso VI», nº 518, fls. 111; IAN/TT, Chancelaria de D. Afonso VI, «Secretário das Mercês e Expediente, Carta a Pedro Sanches Farinha», Liv. 28, fl. 372. 769 Pedro Sanches Farinha despachou em 1663 e 1685 como «secretário de estado», AHU, Reino, cx. 12, pasta 36. 770 Sobre Roque Monteiro de Paim uma boa síntese em Paulo Drumond BRAGA, D. Pedro II, (1648-1706), uma biografia, Tribuna, Lisboa, 2006, pp. 144-145. 771 BA, 51 – IX – 30, «Avisos de Bartolomeu de Sousa Mexia para o Arcebispo de Lisboa, D. João de Sousa, 1708», «Cartas para El rey, Roma, e Pessoas Grandes. Do Arcebispo D. João de Sousa», fls. 311 e ss.; BA, 51 – IX – 35, «Parecer [sobre o pleito que corre entre os Procuradores da Coroa e Casa do Infantado com D. Miguel Luís de Meneses por causa de uns bens da Casa de Vila Real] de Roque Monteiro Paim e Bartolomeu de Sousa Mexia, Original, Lisboa, 13 de Novembro de 1698», fls. 161-161v; BA, 51 – II – 78, «Ofícios de Diogo de Mendonça Corte-Real, Bartolomeu de Sousa Mexia e António Rebelo da Fonseca para o Conde do Redondo, 1708-1717», fls. 6, 26, 42, 100, 220, 230, 288, 406. Algumas das cartas mais relevantes encontram-se inventariadas e resumidas, Os manuscritos do arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil, vol. II, Virgínia Rau e Maria Fernanda Gomes da Silva, Universidade de Coimbra, Coimbra, 1954, «Cartas de Bartolomeu de Sousa Mexia para o duque do Cadaval» sobre «Pareceres» do marquês de Fronteira e do conde-general da armada, sobre os poderes da Mesa do Desembargo do Paço e sobre a Junta do Comércio, 1713-1719», «Escritos das Secretarias». 772 António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol VII, p. 404.

181

assistência da secretaria de estado. Na verdade, confirma-se a exponencial fluidez e comunicação

entre as secretarias, onde se verificou uma certa absorção da secretaria da assinatura no âmbito

da secretaria das mercês e expediente773.

A terminar, resta-nos observar com algum detalhe a evolução da secretaria de estado

durante o reinado de D. Pedro II, de modo a testar a hipótese do reforço do poder régio através

da consolidação do poder cortesão do «secretário de estado».

Antes do mais, deve dizer-se que, perante o reforço da comunicação entre secretarias,

sobra como consequência para a secretaria de estado uma preeminência do seu titular na

coordenação da “decisão política”. O sinal evidente desta preeminência é a ausência de controlo

normativo sobre a secretaria de estado, assistindo-se, pelo contrário, à produção casual de

normas reprimindo os limites colocados ao «secretário de estado», o que corresponde ao

arranque para uma nova intensificação dos seus poderes, fruto da maior discricionariedade na

actuação dos secretários. Poderia opor-se o facto de também na secretaria da assinatura se não

verificar intensificação normativa, não fosse a já notada tendência para a assinatura ser integrada

no despacho das mercês e expediente, bem como o seu carácter mais localizado no espaço da

Câmara régia. Também no que toca à despatrimonizalização do ofício do «secretário de estado»,

se verificam indícios de uma maior separação entre as idiossincrasias pessoais dos secretários e

os estilos da secretaria.

Neste sentido, apesar de não possuirmos dados sistemáticos sobre a produção

documental, a recolha parcial aqui apresentada (correspondências e normas), contradiz de certa

forma a imagem de enfraquecimento das secretarias de estado no reinado de D. Pedro II.

Enfraquecimento – diga-se de passagem – mais atrelado pela historiografia a um suposto

recrudescimento da polissidonia, do que sustentado num análise específica da vida das

secretarias.

Antes de passarmos à descrição factual dos poderes dos «secretários», sublinhe-se,

contudo, que estas tendências não corresponderam à neutralização da “luta” de Corte. Se é certo

que a conflitualidade condiciona menos a estrutura institucional do «secretário de estado», a

beligerância entre parcialidades continua a determinar a selecção dos oficiais. Por outras palavras,

a secretaria de estado desenvolve um ethos “político” capaz de blindar o ofício relativamente aos

ataques de outros «estados» e poderes mas, devido a esse fortalecimento funcional, passa a

773 Luís Caetano de LIMA, Geografia histórica de todos os estados soberanos de Europa...., vol. I, pp. 250 e ss.

182

representar um instrumento primordial, cujo controlo se torna fortemente apetecido, no que

toca ao domínio do poder na Corte.

Postas as condições gerais do enfoque, dividiremos a análise por três áreas. A forma do

«despacho» e possíveis alterações, o elenco das competências e, finalmente, o perfil da actuação

dos ministros.

Quanto à descrição da forma do «despacho».

Após a discussão de 1668, o «despacho» estabilizou e o «secretário de estado» continuou

a beneficiar de um acesso privilegiado à pessoa real, reduzindo-se o número de oficiais que

tinham lugar nos processos de decisão. No âmbito da comunicação entre secretarias, o

«secretário de estado» partilhava o espaço da Câmara régia com o «secretário das mercês»,

alternando um e outro conforme o dia da semana, continuando o secretário da assinatura a

despachar todas as manhãs. O rei sentava-se numa cadeira, «os ministros em tamboretes razos e

os «Secretario em hum banquinho com hum bofete» em que escrevia774. Por conseguinte, no

final do reinado de D. Pedro II, além do tutela geral sobre as secretarias e o crescimento do

âmbito das «matérias de estado» confirmou-se a influência do «secretário de estado» no despacho

em «matéria de graça», passando a estar presente na análise de «petições de mercês», juntamente

com o confessor e o «secretário das mercês».

No que toca às matérias de «governo», convém sublinhar que o conselho de estado se

encontrava controlado por aristocratas com grande peso na Corte (duque do Cadaval e o

marquês de Alegrete)775. Como notou Nuno Gonçalo Monteiro, não se conhece com exactidão

qual o peso efectivo do «secretário de estado» na dinâmica do conselho de estado776. Paulo

Drumond Braga, na sua biografia de D. Pedro II, afirma inequivocamente que vários dos

secretários de estado atingiram uma clara dimensão de valimento, o que representaria um certo

controlo sobre o Conselho de Estado777.

Vejamos algumas informações parcelares.

Quando o rei não estava presente faziam-se declarações pelos conselheiros sendo o

«secretário de estado» quem registava a informação, levando-a ao rei, cujas decisões eram

774 Gazeta em forma de carta…, p. 90. 775 Sobre a composição do Conselho de Estado nesta época, ver Jonh COLBATCH, An Account…, p. 165-179. 776 Sobre a dinâmica política da corte neste período, Nuno G. MONTEIRO, «Identificação da política setecentista. Notas sobre Portugal no início do periodo joanino», Análise Social, Vol. XXXV (157), 2001, pp. 961-987. 777 Paulo Drumond BRAGA, D. Pedro II…, p. 142 e ss.

183

transformadas em «Decretos». Mas isto não significa que o «secretário de estado» fosse apenas

um secretário assistente do Conselho de Estado, conforme escreviam os enviados franceses.

Importa lembrar que no contexto da luta cortesã, interessava à diplomacia francesa potenciar o

papel do Conselho de Estado onde dominavam dois aristocratas ligados à “política francesa”778.

Numa outra perspectiva, e de acordo com Edgar Prestage, era o «secretário de estado»

quem convocava o Conselho de Estado – responsável por todas as matérias políticas e

diplomáticas779. Embora não se pronunciando no Conselho, propunha os assuntos para

«despacho régio», recebendo toda documentação do serviço do rei, apresentando-a e recolhendo

ordens para a redacção das repostas, assinadas somente por si. Isto demonstra bem como a

subalternização honorífica do «secretário de estado» podia não significar muito em termos

práticos. Se juntarmos a isto a desagregação da arquitectura social em curso, talvez esta

preeminência honorífica do Conselho de Estado, no pronunciamento de «Pareceres» orais, não

significasse, depois, grande capacidade de intervenção nos processos de decisão. As «Consultas»,

elemento que fixava a deliberação afectando o sentido da «Resolução» régia, pertenciam, em

todo o caso, à pena do «secretário». O relato atribuído a Jonh Colbatch nota a este respeito que

o «secretário de estado» despachava bem mais rapidamente que o Conselho de Estado780. Na

verdade, o auxílio consultivo começava a separar-se do processo de emissão das decisões, o que

obriga a analisar a secretaria de estado cada vez mais no plano da produção documental e da

selecção da informação. A ausência das «Consultas» do Conselho de Estado impede o cabal

confronto entre a produção normativa do rei e os «Pareceres» dos conselheiros e as eventuais

indicações dos «secretários». Contudo, parece certo que as queixas sobre a lentidão do Conselho

se multiplicavam na Corte, o que só podia potenciar o papel dos «secretários»781. Acresce a isto a

opinião coeva, não muito rara, diga-se, de que o «secretário de estado» representava no reino de

Portugal o mesmo que o privado da Monarquia Católica782. De qualquer modo, uma sondagem

778 Sobre estes alinhamentos ver Edgar PRESTAGE, «The mode of government in Portugal during the Restauration period», Mélanges d’études portugaises, 1949, pp. 263-270; Gastão de Melo MATOS, Espiões e Agentes Secretos nos Princípios do século XVIII, Oeiras, 1931; Ana Maria Pessoa O. ANTUNES, D. Nuno Álvares Pereira de Melo, 1º Duque do Cadaval (1638-1727), Tese de Mestrado, FLL, Lisboa, 1998. 779 Edgar Prestage, «Memórias sobre Portugal no reinado de D. Pedro II», Separata do Arquivo Histórico de Portugal, 1935, p.20. 780 A este nível as informações são por vezes contraditórias. A título de exemplo, Colbatch refere que todos os assuntos de consideração eram discutidos no Conselho sendo rara a decisão sem esta participação colegial. Segundo Colbatch, essa importância do Conselho de Estado devia-se ao facto de vários dos membros serem ainda os mesmos que tinham alçado D. Pedro II ao trono, derrubando D. Afonso VI. Por causa disso, o rei sentia que, de alguma maneira, teria que partilhar com eles o seu poder, John COLBATCH, An Account…, pp. 165-179. 781 Os negócios eram discutidos diversas vezes, durando cada sessão cinco ou seis horas restando, no fim, ainda menos clareza sobre a matéria John COLBATCH, An Account…, p. 165 782 John COLBATCH, An Account…, p. 179.

184

sobre o exercício do «governo» no âmbito da secretaria de estado permitirá concretizar algumas

destas intuições.

Quanto ao elenco de competências «governativas».

A análise da produção documental confirma o alargamento das áreas de acção da

secretaria de estado. Às funções tradicionais dos «secretários», como por exemplo o controlo

cerimonial sobre a cidade de Lisboa, quanto ao luto por morte das pessoas reais783, ou a

resolução das «Consultas», junta-se, no final do reinado de D. Pedro II, um conjunto de

competências na esfera da «policia»: ordens para construção de obras784; ordens relativamente à

limpeza da cidade de Lisboa, controlo do lixo nas praias, recolha do estrume para o cultivo das

terras no termo785; competências em matéria de «ronda e vigia» da cidade bem como a nomeação

de ministros criminais786; abastecimento da cidade (lenha, carvão, provisionamento das

ucharias)787; autorização sobre a utilização das rendas reais pelo senado da câmara788;

estabelecimento e controlo de preços nos abastecimentos alimentares, sobretudo no

provisionamento militar789.

Na verdade, o exercício dos «secretários de estado» abre para um alargamento da

capacidade de intervenção no «governo» do reino. Todavia, não é demais repetir que o aumento

das áreas de influência comporta zonas de sombra.

Por último importa verificar o perfil de actuação dos «ministros» que serviram na

secretaria de estado neste período. Novamente, a ausência de colecções sistemáticas de

correspondência e dos arquivos do Conselho de Estado, levanta problemas de análise e obriga a

fazer deduções sem uma base documental segura. Acresce a esta ausência, o desconhecimento

sobre o estatuto formal de inúmeros secretários. Contudo, como ficou dito, a abordagem aqui

seguida opta por uma leitura alargada do serviço na secretaria de estado, optando por referir

todos os servidores, mesmo quando não empossados formalmente com «Carta Patente» ou

783 EFO, X, 1ª parte, «Carta do secretario de Estado Mendo de Foyos Pereira ao Presidente do senado da camara, Julho de 1700», p. 29. 784 EFO, X, 1ª parte, p. 60. 785 EFO, X, 1ª parte, «Carta do secretario de estado Roque Monteiro de Paim ao Presidente do senado da camara, 13 de Setembro de 1701», p. 88. 786 EFO, X, 1ª parte, «Carta do secretario de estado José de Faria ao Presidente do senado da camara, Agosto de 1702», p. 131. 787 EFO, X, 1ª parte, «Aviso do secretário de estado Roque Monteiro de Paim ao Presidente do senado da camara, 29 de Outubro de 1702», p. 208. 788 EFO, X, 1ª parte, «Aviso do secretário de estado Bispo de Elvas, Frei manuel Pereira ao Presidente do senado da camara, 14 de Novembro de 1703», p. 228. 789 EFO, X, 1ª parte, «Aviso do secretário de estado Bispo de Elvas ao Presidente do senado da camara, 14 de Março de 1704», p. 239.

185

«Alvará», uma vez que, perante a cultura jurisdicionalista, e ainda mais se tivermos em conta o

tempo longo na mudança do paradigma administrativo, a posse formal de um título honorífico

nem sempre teve correspondência com a importância efectiva dos actos de poder. Neste sentido,

como veremos, o critério da nomeação formal revelar-se-ia muito ineficaz, dado o conjunto de

«secretários» que concorreram para a consolidação da funcionalização da secretaria sem posse

formal como «secretário de estado» (João Roxas de Azevedo, José de Faria) assim como, pelo

contrário, a existência de secretários com posse formal do ofício – até pela sua qualidade social –

nada indica sobre o contributo para o perfil dos «secretários» (veja-se o caso de D. Tomás de

Almeida) revelando-se irrelevantes do ponto de vista de uma história institucional das secretarias

de estado.

Em primeiro lugar, algumas indicações sobre os «secretário de estado» que asseguraram a

“transição” entre reinados, emergentes na sequência das Cortes de 1668.

Durante o processo de legitimação do poder régio, decorrente da neutralização de D.

Afonso VI, Pedro Vieira da Silva foi readmitido como «secretário de estado», desempenhando

um papel de estabilização do «governo»790. A sua experiência dos «papéis» e de vários tribunais

do reino (Casa Da Suplicação, Relação do Porto) garantiam a circulação das decisões num

período de necessária travagem dos oficiais ligados ao conde de Castelo Melhor. Nesse mesmo

ano, já a condução da “política diplomática” estava totalmente controlada pelo novo «secretário

de estado»791. Todavia, ainda em 1668 o importante processo de nomeação dos bispos gerou

inúmeras críticas e representou um duro golpe na acção do «secretário de estado». O retorno de

Vieira da Silva revelou-se contraditório: por um lado a acção do experiente «secretário»

acentuava a influência do ofício, tornando-o cada vez mais prestigiado; por outro lado, ao

consolidar-se o “poder” da secretaria de estado emergiam recorrentes tentativas de apear os

titulares do ofício do seu poder792. Na verdade, o incidente com as listas dos bispados levou à

destituição de Pedro Vieira da Silva, não provocando, contudo, nenhuma consequência de

monta no que respeita ao protagonismo da secretaria de estado, verificando-se apenas uma

substituição do titular. Pedro Sanches de Farinha assumiu interinamente a coordenação da

secretaria, enquanto não foi escolhido um sucessor. Perfilaram-se três oficiais: João de Roxas de

790 IAN/TT, Miscelâneas Manuscritas, «Secretaria de Estado D. Afonso VI », nº 491, fls. 197, 211-212 e 214. 791 Pedro Sanches de Farinha, que servia como «secretário das mercês», ocupou interinamente a Secretaria de Estado em 1668, Ângela Barreto XAVIER & Pedro CARDIM, D. Afonso VI…, p. 213. 792 Para o enquadramento deste processo, Ângela Barreto XAVIER & Pedro CARDIM, D. Afonso VI…, pp. 220-221.

186

Azevedo e António Cavide (a que já nos referimos) e Francisco Correia de Lacerda793, antigo

preceptor do infante D. Pedro, que acabou por receber o favor régio794.

Ao nomear para «secretário de estado» um oficial com uma longa ligação ao rei, D. Pedro

II quis assegurar a homogeneidade do centro de decisão. Logo em 1669, já Correia de Lacerda

controlava as operações em torno da viagem de D. Afonso VI para a Ilha Terceira, zelando pelo

apaziguamento da Corte795. Auxiliado por Pedro Sanches de Farinha, contribuiu para estabilizar a

regência de D. Pedro, durante o período mais atribulado da luta pelo poder796. Até 1673, Pedro

Sanches Farinha e Francisco Correia de Lacerda coexistiram como «secretários», trocando papéis

e informações várias sobre o «governo». Por volta de 1674, Correia de Lacerda, cuja ascensão se

devera em grande parte ao marquês de Marialva – falecido entretanto – e ao conde de Vilar

Maior – acossado agora pelo duque do Cadaval e pelo marquês de Fronteira – começou a perder

a sua influência na Corte797.

A intensificação dos poderes de Francisco Correia de Lacerda não se fez sem a oposição

específica de inúmeros “grupos políticos”. As Cortes de 1674, onde se discutia um perdão geral

aos cristãos-novos – questão fulcral para o financiamento da monarquia que se arrastava desde a

ruptura de 1640 – colocaram novamente o problema dos limites do poder do rei no

estabelecimento e revogação das «leis do reino». Entre 1662 e 1674, perante estas convulsões nos

fundamentos do “sistema político”, os «secretários de estado» – como detentores da prática do

poder e da memória da sua transmissão – acabaram por surgir como os mais qualificados oficiais

em matéria de “alta política”. Em todo o caso, a agitação cortesã colocava constantes desafios

aos titulares desse poder formal. Durante as mesmas Cortes de 1674, um «papel» redigido pelos

procuradores dos povos atacava de forma veemente o «secretário de estado». Para Maserati, o

793 Figura próxima do conde de Vilar Maior, aristocrata em ascensão política. Sobre a nomeação de Lacerda murmurou-se que esta se devia à influência do conde Manuel Teles da Silva no sentido de fazer vingar as suas decisões, Ãngela Barreto XAVIER & Pedro CARDIM, D. Afonso VI…, pp. 221. Veja-se ainda BA, 51 – II – 15, Miscelâneas differentes, «Fala que ao Sr. Infante D. Pedro fez o mestre que El-Rei lhe nomeou (Francisco Correia de Lacerda)»; BA, 51 – VI – 12, Papéis Jurídicos e Políticos, «Carta de Francisco Correia de Lacerda para Dinis de Melo (de Castro) sobe a resolução de S.A. de proibir a saída para Castela de toda a sorte de mantimentos, Lisboa, 1 de Abril de 1680»; BA, 51 – VI – 1, Notícias Biográfias de Francisco Correia de Lacerda; IAN/TT, MNE, Madrid, Despachos (1668-1750), «Cartas do secretário de estado Francisco Correia de Lacerda ao enviado em espanha Duarte Ribeiro de Macedo, 1678» e «Cartas do secretário de estado Francisco Correia de Lacerda ao enviado em Espanha Duarte Ribeiro de Macedo, 1679», Cx. 612. 794 Monstruosidades do Tempo e da Fortuna, (1662-1669), vol. I Porto, 1938, pp. 97-99. 795 Monstruosidades do Tempo e da Fortuna, (1669-1671), vol. II, Porto, 1939, p.9. 796 Ver IAN/TT, MNE, Madrid, Despachos, «Cartas do secretário de estado, Francisco Correia de Lacerda ao enviado em Castela, Duarte Ribeiro de Macedo, 1679», Cx. 612; IAN/TT, Miscelâneas Manuscritas, «Pedro Sanches de Farinha, Secretaria de Estado, 1670, nº 491», fl. 186 ; BPE, «Carta do Secretário de Estado Francisco Correia de Lacerda ao Marquês de Fronteira, comunicando-lhe a nomeação de Conselheiro de Estado, 30 de Agosto de 1679», cod. CV / 2 – 14. 797 AGS, Estado, «Carta de Maserati de 29 de Agosto de 1678», Leg. 2634.38.

187

enviado da Corte de Madrid e autor de um relato sobre os acontecimentos, o «secretário de

estado» terá chorado perante a leitura do documento, receoso das ameaças e das consequências

de um motim798. Nessa altura, um dos mais destacados representante do estado dos Povos,

Mendo de Fóios Pereira, defendeu uma posição conservadora no que tocava às mudanças das

«leis da República», protagonizadas pela «secretaria de estado»799. Como veremos, este

procurador do estado do povo seria mais tarde também nomeado como «secretário de estado».

O episódio ilustra as duas importantes características, já sublinhadas, nesta fase do “processo

político”. Em primeiro lugar, as «secretarias de estado» assumiam de forma mais visível decisões

“activas” entrando em conflito com as prerrogativas «corporativas». Em segundo lugar, a técnica

jurídica confundia-se com um saber político, tornando a categoria dos «letrados» cada vez mais

difusa tanto nas suas estratégias sociais como na produção da identidade jurisdicional.

A perda de influência de Francisco de Correia de Lacerda não ditou o seu completo

afastamento. Em 1675 ainda detinha o controlo da correspondência entre Portugal e Castela,

inteirando-se do sistema de correios – uma peça chave nos alinhamentos “político” de Corte –

numa época em que o tempo contava cada vez mais, fosse pela importância da rapidez de

informação sobre preços – que podia ditar o sucesso ou insucesso de relevantes negócios – fosse

pela neutralização de informadores de Corte800. Exemplo desta importância da informação na

acção das secretarias de estado foi o episódio decorrido em 1676. Um criado do «secretário de

estado» foi preso, sendo acusado de revelar informação secreta a Maserati e ao «legado» de

França801. O processo culminaria na substituição de Francisco Correia de Lacerda pelo bispo D.

Frei Manuel Pereira, nomeado formalmente «secretário de estado»802. Perante o frágil estado de

saúde do bispo, seria o experiente «secretário de estado das mercês e expediente», como vimos,

Pedro Sanches de Farinha, a ocupar o lugar, apenas interinamente.

Entre o final da década de 1670 e 1706, um conjunto de «secretários de estado» vai

consolidar o poder régio, reforçando a já estreita comunicação entre a secretaria de estado, a

798 AGS, Estado, «Carta de Maserati de 23 Abril de 1674», Leg. 2626. 799 Ver Ângela Barreto XAVIER & Pedro CARDIM, D. Afonso VI..., pp. 257-259. 800 AGS, Estado, «Carta de Mazeratti de 18 de Março de 1675», Leg. 2629. 801 AGS, Estado, Leg. 2630. 802 IAN/TT, Chancelaria de D. Afonso VI, «Carta do Secretario de Estado», Liv. 39, fl. 316. Natural de Lisboa, morreu em 6 de Janeiro de 1688, Dominicano, professo no Convento de S. Domingos de Benfica a 22 de Janeiro de 1641. Ascendeu a Provincial dos Domincanos em 1667. Foi Provincial titular da Terra Santa e Vigário Geral da Ordem. No tempo da regência foi indigitado bispo do Rio de Janeiro, confirmado a 10 de Novembro de 1676 e feito “secretário de estado» em 1680, deixando o bispado. Deputado da Junta dos Três Estados e Comissário Geral do Santo Ofício. Filho de Rafael Palladio e de Margarida Meira, tidos por nobres e opulentos, Barbosa de MACHADO, Bibliotheca Lusitana, vol. III, Imprensa Régia, Lisboa, 1835, p. 333; Fortunato de ALMEIDA, História da Igreja em Portugal…, vol. II, p. 714; Pedro França REIS, Conselheiros e Secretarios de Estado de Portugal…, p. 212.

188

secretaria das mercês e expediente e a secretaria da assinatura. O facto de serem por vezes vários

os «secretários» a despachar, sem estarem formalmente cometidos a uma das secretarias, resulta

da nova dinâmica de decisão – o «gabinete do rei» – onde oficiais emergiam sobretudo numa

perspectiva “funcional”. Não sendo os secretários apenas funcionários de um poder estruturado

em «Regimento» e transversal à Corte, a sua nomeação ia perdendo muito do carácter

patrimonial.

Além de Francisco Correia de Lacerda, e de Roque Monteiro de Paim803, destacou-se D.

Frei Manuel Pereira. Porém, como ficou dito, o seu estado de saúde abriu caminho, entre 1681 e

1685, à funcionalização de outros «secretários» como Pedro Sanches de Farinha. Em todo o

caso, D. Frei Manuel Pereira seguiu sobretudo as negociações em Madrid, conduzindo as

complexas negociações com a Monarquia Católica, resultantes do estabelecimento de uma

«Colónia territorial portuguesa» no Rio da Prata, desde 1680804.

Deve notar-se que, nesta conjuntura, a tensão cortesã potenciou ainda mais o reforço

dos «secretários». Entre aqueles que cresciam “politicamente” na estrutura da secretaria,

destacava-se sobretudo Roque Monteiro de Paim, notabilizando-se no combate contra as

tentativas de derrubar D. Pedro II805. Importa lembrar que o rei tinha chegado ao poder num

complexo “processo político”, o que levou à necessidade de se rodear de oficiais fiéis, de “baixo

nascimento” e muito agressivos na “luta” de Corte. Uma das primeiras preocupações do

«gabinete do rei» prendeu-se com a anulação da rede de ‘confidentes’ da diplomacia espanhola.

Maserati, o enviado de Madrid, comunicava à sua Corte a pressão cada vez maior da secretaria

de estado806.

Pedro Cardim e Ângela Barreto Xavier destacam o clima de terror vivido no Paço, quer

perante a iminência de um golpe levado a cabo pelas parcialidades afectas a D. Afonso VI, quer

pela intimidação que os dois secretários, Monteiro de Paim e Sanches de Farinha, semeavam na

Corte807. Com efeito, a «secretário de estado», reforçada pelo temor régio, insinuava-se junto dos

803 AGS, Estado, Leg. 2632, servia como «secretário de estado», sendo-lhe despachado título formal para o efeito, «Carta de Maserati de Novembro de 1677». 804 BA, 54-IX-9, «Carta a Mendo de Foyos Pereira, enviado de Portugal em Madrid, sobre uns papéis que Mendes de Foyos enviou a S.A. sobre o protesto que fez o enviado de Englaterra dizendo que S.A. louvou o acerto e prudência que se houve quanto ao sucesso de Buenos Aires», fls. 99 e ss. 805 Foi membro do Conselho de Estado, do Conselho da Fazenda e secretário de D. Pedro II, António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol VII, p.404. 806 AGS, Estado, «Carta de Maserati de 22 de Agosto de 1678», Leg. 2634. 807 Ãngela Barreto XAVIER & Pedro CARDIM, D. Afonso VI…, p. 262.

189

conselhos e reduzia a estrutura da decisão808. Roque Monteiro de Paim, auxiliado por dois dos

mais influentes aristocratas, o duque de Cadaval e o marquês de Gouveia, controlava as

negociações diplomáticas, monopolizando um muito vasto conjunto de informações809, tratando

de assuntos mais “operacionais” quer no que tocava ao cerimonial, quer na agilização das

decisões internas810. Com a morte de D. Afonso VI em 1683 e a consequente Coroação de D.

Pedro II, a situação estabilizou, sendo que os poderes da secretaria de estado continuaram a

anexar funções de «governo» com crescente relevo nos aspectos diplomáticos. Com esta

influência nos «negócios estrangeiros» acentuou-se a tendência de D. Pedro II para escolher

«secretários de estado» com experiência diplomática811.

Desta forma, em 1686, um destacado enviado à Corte de Madrid, Mendo de Fóios

Pereira812 iniciou a coordenação dos trabalhos na secretaria de estado813. A sua ascensão parece

ter sido rápida, sendo que, logo desde os primeiros anos de serviço, a obtenção do favor régio

passava necessariamente por obter o seu favor814. «Ministro» muito hábil na produção

documental e muito eficaz a impor a autoridade do rei815, redigiu diversos «Avisos» ao Conselho

Ultramarino, chamando a si o controlo das decisões que diziam respeito aos Governos das

808 AHU, Ultramar, cx. 1, doc. 94; BA, 51 – VI – 26, Miscelânea de História Eclesiástica de Portugal, «Carta de Pedro Sanches de Farinha para Mendo de Foios Pereira sobre El-Rei D. Pedro II Mandar propor a letrados e ministros se é conveniente criar um Bispado em Beja, Salvaterra, 1689, 24 de Dezembro», fls. 2-3, «Pareceres dos letrados Sebastião de Magalhães, Bartolomeu de Quental, Roque Monteiro de Paim e Mendo de Foios Pereira sobre não ser conveniente a criação do novo bispado de Beja, 1690, 5-11 de Janeiro», fls. 4-7; BA, 51 – VI – 34, Papéis Vários, Pareceres de Roque Monteiro de Paim, «Parecer de José de Faira», «Parecer de Mendo de Foios Pereira», «Carta de Roque Monteiro de Paim a Mendo de Foios Pereira, 1701», fls. 103-123. 809 AGS, Estado, «Carta de Maserati de 1 de Julho de 1680», Leg. 7052. 810 BA, 51-XI-3, «Correspondência de Fr. Manuel Pereira, secretário de estado, para Mendo de Fóios Pereira, enviado de Portugal em Madrid (1681-1685)», nº 55-57 e BA, 52-XI-10, «Correspondência de Fr. Manuel Pereira, secretário de estado…», nº 56-156. 811 Luis Teixeira de SAMPAIO, O Arquivo Histórico do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Coimbra, 1925, p. 95. 812 Nasceu em Tomar em 1643, pertencendo a uma família com representantes na magistratura durante várias gerações. O pai teve assento na Casa da Suplicação. Inscreveu-se em ‘Instituta’ a 5 de Fevereiro de 1658, com quinze anos. Matriculou-se na Faculdade de Cânones a 14 de Outubro de 1659, recebendo o grau de bacharel a 1 de Março de 1666. Em 1673 Mendo de Foios Pereira foi escrivão do Senado da Câmara de Lisboa. Foi ainda corregedor do Cível de Lisboa. Entre 1679 e 1686 foi enviado na Corte de Madrid. Casou com Juliana Maria Jordão filha de Frutuoso Barboza Jordão. Morreu em Lisboa a 7 de Setembro de 1707. A mais completa informação biográfica em António CRUZ, «Introdução», Cartas de Mendo de Fóios Pereira ao enviado de Portugal em Castela (1670-1686), Centro de Estudos Humanísticos, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 1963, pp. 8-9. Veja-se ainda EFO, VII, 1ª parte, p. 462. 813 IAN/TT, Chancelaria de D. Pedro II, «Secretário de estado, Carta de 20 de Agosto de 1686 a Mendo de Fóios Pereira», Liv. 32, fl. 373. 814 BPE, «Consulta da junta dos povos, em 2 de Maio de 1674, a S.A., sobre o perdão geral (feita por Mendo de Foyos Pereira)», cod. CV / 2 – 9, fl. 139; cod. CVII / 1 – 1, fl. 97; cod. CVII / 1 – 6, fl. 51; cod. CXIII / 1 – 1, fl. 177; cod. CXXX / 2 – 1, fl. 77; BPE, «Carta de Mendo de Foyos Pereira ao marques de Fronteira, cod. CV / 2 – 14, fl. 63; BPE, Cartas ao conde de Unhão, cod. CXX / 2- 4 ; IAN/TT, Secretaria de Estado, Entradas e Hospedagens, 1698-1709, «Cartas de Mendo de Foios Pereira e Roque Paim, de 1696 até 1703», Liv 634. 815 Edgar PRESTAGE, «Memórias sobre Portugal…», pp. 7-32.

190

Capitanias do Brasil816 e aos contratos da Fazenda Real817. A correspondência do «secretário de

estado» mostra a sua capacidade de negociação e a importância decisiva dos seus «Pareceres»818.

Cerca de 1702, Mendo de Fóios Pereira e Roque Monteiro de Paim, perderam por

motivos de saúde a sua influência na Corte. O rei nomeou José de Faria, oficial com experiência

do «despacho» no Conselho da Fazenda, na secretaria da assinatura, enviado extraordinário à

corte de Madrid, guarda-mor da Torre do Tombo819e Cronista mor do reino820. Apesar de ter

servido pouco tempo, uma vez que morreria em 1703, José de Faria é bem a síntese do processo

que temos vindo a descrever. Aliava à experiência no acompanhamento da assinatura régia, o

conhecimento das matérias de Fazenda, prática da diplomacia e dissimulação em cortes

estrangeiras, domínio dos arquivos e, ainda, trabalho na constituição da memória política,

destacando-se como cronista, o saber tipo na fundamentação do poder régio821.

Um outro aspecto confirma uma maior funcionalidade da actuação dos secretários: o

maior protagonismo dos oficiais maiores da secretaria, sinal da crescente burocratização do seu

trabalho. Luís Teixeira de Carvalho822, oficial maior da secretaria de estado, chegou a ter «Carta

de secretário» para servir no impedimento do bispo D. Frei Manuel Pereira823. O acesso à

informação revelava-se determinante o que exigia a agilização de uma estrutura subalterna nas

secretarias. O oficial maior destacava-se agora na coordenação documental, pedindo aos

Conselho as remessas de «Consultas» a propósito de matérias tão importantes como as contas

das conquistas, já que o «secretário de estado» actuava de forma cada vez mais vincada na

deliberação régia824. Com efeito, a emergência de relevantes questões político-económicas –

como a definição dos limites entre a Coroa de Portugal e a Monarquia Católica na América no

816 AHU, Nova Colónia do Sacramento, cx. 1, doc. 9. 817 AHU, Reino, cx. 3. 818 BA, 51-VI-46, «Cartas de Mendo de Foios Pereira ao duque de Alba», nº8; BA, 51-XI-5, «Cartas de Mendo de Foios Pereira…», nº 171; BA, 47-XII-4, «Carta de Mendo de Foios Pereira à duquesa de Saboia», fls. 272-276. 819 IAN/TT, Chancelaria de D. Pedro II,«Carta de 25 de Janeiro de 1695», Liv. 39, fl. 221. 820 António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol VII, p. 403. 821 BPE, «Notas de José de Faria aos enviados de França, Inglaterra, Hespanha e Hollanda, sobre as disposições relativas aos navios belligerantes, Resposta dp residente Hollandez, José Daniel Tanais», cod. CIV / 2 – 8, fls. 55 v e ss.; BPE, «Carta do Secretário de Estado de Portugal dando conta do que disse ao Embaixador de França, sobre as salvas, e a desnecessidade de virem os officiaes de guerra, que a França se haviam pedido, Lisboa, 19 de Setembro de 1702», cod. CIII / 2 -16, fl. 66. 822 Filho de Martim Teixeira de Carvalho, de Amarante. Pelos Teixeiras descendia de Pedro Luís Teixeira, escrivão da Fazenda de D. João II. Cavaleiro da Ordem de Cristo, escrivão da Fazenda. Veja-se o importante documento, BA, 50-V-36, «Regimento da Letra de Luís Teixeira de Carvalho, Oficial da Secretaria sobre o que havião de fazer el-rey D. Affonso e o infante D. Pedro quando morreo seu pai el-rei D. João 4º, do Conselho do Rei», fl. 586. 823 IAN/TT, Chancelaria de D. Pedro II, Liv. 17, fl. 290v. 824 AHU, Ultramar, cx. 1, doc. 92.

191

rio da Prata ou a definição dos tratados de comércio825 – potenciavam a acção dos secretários de

estado, oficiais especializados na diplomacia com acesso a uma incomensurável rede de

informações de Fazenda.

Um última palavra para a excepção que confirma a regra, nesta tendência para uma

crescente preponderância dos secretários no capítulo da decisão régia. No final do reinado de D.

Pedro II serviram ainda dois «secretários de estado»: D. António Pereira da Silva826, a partir de

1703, e D. Tomás de Almeida, entre 1705 e 1706, ano da morte do rei827. Estes dois eclesiásticos,

de qualidade social superior à de quase todos os titulares que serviram nas secretarias desde

1640, desempenharam funções sem que isso significasse grande relevância político-

administrativa, o que lhes retira importância quanto ao perfil da secretaria de estado. É claro que

o pouco tempo de serviço terá concorrido para essa apatia contrastante com os restantes

servidores, muito mais activos na prossecução das estratégias do rei e do seu «gabinete». Em

todo o caso, pode concluir-se que, nos últimos anos do reinado de D. Pedro II, as secretarias

adquiriram um estilo autónomo, servindo nelas mais do que um «secretário», o que não

significou um enfraquecimento do papel do «secretário», mas antes um exercício do poder mais

diluído na eficácia da estrutura, menos patrimonializado.

No final do século XVII, o «secretário de estado» emergiu como o oficial mais poderoso

do reino, mesmo que disputando com alguns órgãos colegiais as matérias de «governo». Vimos

como a “luta” de Corte se relacionou com esta genealogia do ofício. Falta verificar, numa

perspectiva mais abrangente como a eficácia do secretário de estado aproveitou e potenciou as

mutações estruturais nas secretarias dos restantes órgãos da Coroa.

825 Roque Monteiro de Paim revelou-se um dos pilares do acordo assinado em 1702. Correu na Corte que a sua adesão aos «Tratados» teria sido alimentada por acções venais, com participação na compra e venda de jóias, Maria Paula Marçal LOURENÇO, D. Pedro II…, p. 220. 826 IAN/TT, Chancelaria de D. Pedro II, «Carta de 2 de Setembro de 1703», Liv. 45, fl. 239. Filho de Francisco Pereira da Silva, Senhor da Casa de Betiandos, foi cónego Doutoral de Évora, bispo de Elvas e depois do Algarve, doutor em Teologia pela Universidade de Coimbra, membro do Conselho de Estado, deputado do Santo Ofício e da Junta dos Três Estados. Faleceu em 17 de Abril de 1715, António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol VII, p. 403; Pedro França REIS, Conselheiros e Secretarios de Estado de Portugal…, p. 240. 827 D. Tomás de Almeida nasceu a 11 de Setembro de 1670. Filho dos 2ºs condes de Avintes, D. António de Almeida, neto do 3º conde dos Arcos. Bispo de Lamego (6 de Dezembro de 1706), bispo do Porto (30 de Setembro de 1709), 1º Cardeal Patriarca de Lisboa. Recebeu «Carta de secretário de estado» a 3 de Março de 1705. Foi desembargador da Casa da Suplicação no Porto, membro do Conselho de Estado, sumilher da Cortina de D. Pedro II, deputado a Mesa da Consciência e Ordens, deputado do Santo Ofício, chanceler-mor do reino. Morreu a 27 de Fevereiro de 1754. Pedro França REIS, Conselheiros e Secretarios de Estado de Portugal…, p. 241. De acordo com António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol VII, p. 404, D. Tomás de Almeida serviu como «secretário das Mercês e Expediente». Veja-se ainda IAN/TT, Chancelaria de D. Pedro II, «secretário de estado, Carta a D. Tomás de Almeida», Liv. 30, fl. 79; BA, 51 – VI – 46, Miscelânea, vol. VII, «Aviso do Secretário de Estado, D. Tomás de Almeida para o Conde Mordomo-mor com instruções tocantes à função da Coroação de El-Rei, Paço, 1706, 29 de Dezembro», fl. 5.

192

V

A ESTRUTURA INSTITUCIONAL DO REINO E A

PREEMINÊNCIA DOS SECRETÁRIOS

Depois de termos acompanhado a formação das secretarias de estado na dinâmica da

Corte, numa perspectiva marcada pela conflitualidade e pela constituição de parcialidades,

pretendemos agora confirmar as repercussões desse processo num âmbito mais alargado. Assim,

o presente capítulo pretende descrever a emergência dos «secretários» no processo de decisão

política no conjunto das instituições da Coroa, procurando distinguir, para lá dos aspectos

circunstanciais das trajectórias individuais, algumas tendências estruturais na afirmação de um

“poder” com caracteres específicos. Na secção 1 serão identificados os mais significativos ofícios

de escrita (escrivães e secretários). Na secção 2 analisaremos as consequências para a cultura

política desta emergência dos «secretários», mostrando os sinais discursivos que evidenciam o

início da mudança no paradigma de «governo».

1. A Coroa e o poder régio: novos poderes, novos secretários.

As linhas que se seguem pretendem descrever, em traços gerais, as características dos

«secretários» emergentes nos órgãos “administrativos” da Coroa, além de um conjunto de secretarias

que, não pertencendo do ponto de vista institucional à esfera do poder régio (as Cortes ou o

Conselho Geral do Santo ofício), vão sofrer a influência da secretaria de estado e do estilo

“burocrático”.

Antes do mais, importa clarificar os limites da descrição.

O período cronológico aqui apresentado corresponde à formação institucional descrita nos

capítulos II, III e IV (desde os finais do século XVI até meados do século XVII) assumindo-se este

recorte pela sua importância na formação da “prática política” do «secretário de estado».

Como é evidente, a extensão do tema impõe opções críticas. Os ofícios de escrita aqui

caracterizados correspondem aos mais directamente relacionados com a afirmação do modelo

secretarial (secretário do Conselho de Guerra, escrivães da fazenda, secretário do Conselho

Ultramarino, secretários dos «estados» ultramarinos - Índia e Brasil). Por outras palavras, optámos

por conferir maior destaque aos organismos com maior trânsito institucional com as secretarias de

estado. Neste sentido, a ausência de informação mais detalhada sobre as secretarias e escrivaninhas

193

de diversos tribunais do reino (Chancelaria, Casa do Cível, Casa da Suplicação, Mesa da Consciência

e Ordens ou mesmo as reuniões de Cortes) deve-se à sua menor influência na configuração de um

“poder secretarial” do «estado do rei».

Assim, nesta secção segue-se a caracterização dos ofícios de escrita nos referidos organismos

da Coroa, descrevendo em seguida alguns dos restantes secretários de instituições determinantes na

“burocratização da comunicação política”. Começamos pela evolução da escrita no «despacho» da

Fazenda.

a) Escrivães e secretários em «matérias de Fazenda»

Os estudos de Virgínia Rau e Maria Leonor Cruz permitem recolher preciosa informação

sobre a origem do «despacho» da Fazenda Real828. O governo da Fazenda começou por estar

dividido por vedores da Fazenda, juízes dos Feitos do rei e Casa dos Contos (esta última com uma

organização de contadores, escrivães e porteiro, pelo menos desde cerca de 1375)829. Mais do que

qualquer outra instituição régia, os Contos conheceram no século XV uma multiplicação da sua

“burocracia”. Em 1465 D. Afonso V fixou oito Contadores e dez escrivães. Com D. Manuel, por

meio das Ordenações da Fazenda de 1516, prosseguiu o aumento dos oficiais na contadoria, passando a

coordenar-se de forma mais exaustiva a escrita financeira da Coroa pelo trabalho dos vedores. Estes

vedores ou despachavam isoladamente ou formavam, em ocasiões específicas, a Mesa da Fazenda

que reunia com os escrivães numa sala do Paço denominada, no Regimento, Casa da Fazenda830.

O trabalho dos escrivães, através dos complexos cadernos de assentamentos, elaborados a

partir da Contadoria, permitia obter estimativas da vida financeira da Coroa, sendo assinados pelo rei

e subscritos pelos Vedores, num apertado controlo de todo o trabalho de contagem831. Os escrivães

da Fazenda auxiliavam os Vedores no momento de tomar contas aos Contadores de Comarca, bem

como em todos os exercícios de lançamentos de despesas e receitas832. Tratavam ainda da

“administração particular” dos bens do rei e preparavam o «despacho em matéria de graça»833. Será

desta última competência que terá surgido, ocasionalmente, em meados do século XVI, um

secretário tratando matéria de Fazenda.

828 Virgínia RAU, A Casa dos Contos, FLUC, Coimbra, 1951 e Maria Leonor G. da CRUZ, A Governação de D. João III, a Fazenda Real e os seus vedores, Centro de História da UL, Lisboa, 2001. 829 De importância seminal as páginas de António M. HESPANHA, «A Fazenda», O Antigo Regime…, pp. 211. 830 Marcello CAETANO, «O Governo e Administração Central após a Restauração», História da expansão portuguesa no mundo, Vol. III, Ática, Lisboa, 1937, p. 192. 831 A. Braamcamp FREIRE, « Outro capítulo das finanças manuelinas – Os cadernos dos assentamentos », Archivo Historico Portuguez, VI, p. 233. 832 De dois em dois anos os Contadores de Comarca deviam prestar contas em matéria de Fazenda comparecendo na corte com os seus contadores e escrivães. Uma excelente descrição do processo em Virgínia RAU, A Casa dos Contos…, pp. 65-69. 833 José SUBTIL, «Administração central da Coroa», No Alvorecer da Modernidade…, pp. 80-81.

194

A 5 de Outubro de 1584, no sentido de aperfeiçoar o tratamento da Fazenda real, Felipe II

promulgou um «Regimento da Fazenda», onde se optava por uma separação do «despacho» por áreas

geográficas: «reino, açores e madeira»; «India, Mina e Guiné»; «Contos, terças e Conquistas de África»

– cada tribunal (mesa) foi constituído com Juiz e dois escrivães da Fazenda. Perante as inúmeras

queixas de morosidade no «despacho», o Vice-rei Cardeal Alberto promulgou um novo «Regimento

do Conselho da Fazenda», a 20 de Novembro de 1591, centralizando todas as matérias e negócios da

Fazenda que corriam pelos tribunais do «Reino», «África», «Índia» e «Contos». O «despacho» passava

a ser assegurado por quatro repartições: «Negócios do reino» (Índia, Mina, Guiné, Brasil, S. Tomé e

Cabo Verde); «Mestrados das Ordens Militares e das ilhas dos Açores e da Madeira»; «Casa dos

Contos, contribuição das Terças e restantes lugares de África». Cada repartição era liderada por um

escrivão, comparecendo este às reuniões do Conselho para nelas ler os papéis e petições, registar e

escrever os despachos deliberados pelos Conselheiros da Fazenda834.

O Conselho foi constituído por um vedor da Fazenda, quatro conselheiros – dois deles

obrigatoriamente «letrados» – e quatro escrivães835. Cada escrivão tratava dos «papéis» de cada

jurisdição, e devia estar presente no Conselho apenas quando fossem tratadas matérias da sua

atribuição, com excepção de matérias que impusessem cruzamento de assuntos836.

Segundo o «Regimento» de 1591, o «despacho» seguia o modelo típico do Conselho. Eram

elaboradas «Consultas», a cargo do escrivão competente, com assinatura do Vedor e Conselheiros,

que subiam depois à informação régia. Eram inscritas cópias das «Consultas» num «Livro do

Conselho» e quando retornava a «Resolução» régia, eram lidas novamente e, finalmente, copiadas as

deliberações para o «Livro», à margem da «Consulta». Devido à recorrente perda de «petições» e ao

facto de por vezes não se saber a quem endereçar as «Respostas», as matérias que envolvessem

«partes» seriam centralizadas num só escrivão (dentro da área respectiva) que trataria de controlar

todo o processo. Apenas esse escrivão podia apresentar essas petições no Conselho, onde lia e

anotava as respostas dadas pelos conselheiros. Devia então guardar as petições, levando-as para sua

casa de onde devia endereçar as respostas às partes837.

834 BNL, cod. 411 e 543; BGUC, ms. 554 e 11 269. 835 Joseph Newcombe JOYCE, Spanish influence on Portuguese administration…, p. 158. 836 Em caso de impedimento, o vedor podia convocar ao Conselho um dos restantes escrivães. Em caso de ausência superior a um mês, o rei devia nomear outro escrivão. De acordo com o Regimento de 1584, os escrivães podiam votar. Contudo, a partir do Regimento de 1591 deixaram de poder fazê-lo, Joseph Newcombe JOYCE, Spanish influence on Portuguese administration…pp. 159-161 837 Devia ser mantido profundo segredo pelo vedor, conselheiros e escrivães da Fazenda «em tudo o que se tratar, praticar, e resolver (...) sem conhecimento das partes ou pessoa alguma, ainda que seja oficial régio - o conhecimento das matérias era estritamente reservado aos membros do Conselho e ao rei », Systema ou collecção dos regimentos reaes, vol. I, na Off. de Miguel Manescal, Lisboa Occidental, 1718, pp. 241-246.

195

Vimos ao longo do capítulo III como, a partir de 1604, o trabalho de escrita da Fazenda

estreitou relações com a secretaria de estado. Com efeito, foi a partir desta comunicação que se

instituiu a assistência de um secretário no Conselho da Fazenda ao longo do século XVII. Na

verdade, a preocupação com a quantificação, a determinação de regras sobre a circulação das

«Consultas» entre os secretários dos Conselhos838, a exportação de escrivães da Fazenda para os

quadros da secretaria de estado, confirmam esta matéria como o primeiro veículo em torno do qual a

eficácia dos «secretários» inoculou o «despacho» régio, multiplicando-o pelos tribunais. Vimos

também que, em estreita relação com as práticas de «despacho» da Fazenda, emergiram as «matérias

da Índia».

b) Escrivães e secretários em «matérias ultramarina».

A expansão ultramarina teve repercussões decisivas no perfil “administrativo” do reino. Um

dos mais claros efeitos prende-se com a multiplicação de inventários e contabilizações das operações

marítimas dos portos. Deste modo, surgiram um conjunto de «Casas» associadas aos fluxos

comerciais. Como é sabido, um dos primeiros documentos conhecidos mencionando a Casa da

Índia839, datado de 1503, descreve a extrema importância dos escrivães na regulação dos negócios

que passavam pela instituição. O «Regimento da Casa da Índia»840 definia a actividade dos oficiais da

escrita, estabelecendo como tarefas essenciais dos seis escrivães o «despacho ordinário» da

mercadoria, devendo um deles (aquele que estivesse livre das tarefas comuns) dar resposta ao

«despacho» de certidões, elaborar informações sobre a actividade da Casa, responder a «Despachos»

do Conselho, registar «Provisões», redigir outros «papéis» significativos841. O «despacho» dos

838 AHU, Reino, cx. 7. Cerca de 1635, uma «Carta Régia» de D. Filipe III procurou mais uma vez regular a forma de despachar os negócios do Conselho da Fazenda nos impedimentos do presidente. Em 1637, o licenciado Gaspar Gomes da Costa dava notícia, através de um Requerimento a Felipe IV, de que um «despacho», relativo à sua «Provisão» como médico de Soldados do Presídio do Rio de Janeiro, se tinha perdido na Secretaria do Conselho da Fazenda, AHU, Rio de Janeiro, cx. 1, doc. 84. 839 Francisco Mendes da LUZ, «Introdução», Regimento da Casa da Índia, ICALP, Lisboa, 1992, pp. 29-33. Ver ainda Registo da Casa da Índia, vol. I, Introdução e Notas do prof. Luciano Ribeiro, Agência Geral do Ultramar, 1954. 840 Importa recordar que o «Regimento da Casa da Índia», aqui citado, através de um manuscrito do século XVIII, depositado no AGS, corresponde a um período mais tardio do que aquele que compreende o corte cronológico deste estudo, embora se possa afirmar que a estrutura do despacho seria aproximadamente a mesma. 841 Regimento da Casa da Índia…, pp. 190-191. A importância estrutural do trabalho de escrita na Casa da Índia para uma formalização do ofício de secretário deveu-se, naturalmente, às responsabilidades de controlo orçamental. O escrivão Luís de Figueiredo Falcão, secretário de D. Felipe I, deixou manuscrito o «Livro em que se contém toda a Fazenda e Real Património dos Reinos de Portugal, Índia e Ilhas Adjacentes», datado de 20 de Outubro de 1607. Aí afirma que nos seis anos que serviu de secretário viu «todas as cartas de Viso Reys, Rellações, assentos de compposissões, vilhetes do Duque de Lerma, Consultas [do rei] pella junta & pello Conselho porque se fez obra, todas as folhas de assentamento....» reconhecendo também todos os livros das armadas, Livro em que se contém toda a fazenda e real património dos reinos de Portugal, India e Ilhas Adjacentes e outras particularidades, Luiz de Figueiredo Falcão, Imprensa Nacional, Lisboa, 1859, p. XVI.

196

assuntos da «Índia, Mina e Guiné» originou, em 1509, uma separação das matérias, altura em que o

número de escrivães cresceu (três para «Índia», dois para a «Mina e Guiné»)842.

Ao longo do século XVI deu-se um acentuado crescimento das instituições relacionadas com

a navegação das «Índias». No mesmo sentido, multiplicou-se uma “burocracia” que permanece em

larga medida por estudar. À excepção do excelente trabalho de Susana Münch Miranda, fornecendo

preciosas informações acerca do «despacho» da Índia na Corte, não têm sido produzidas análises

sobre o tema843. Importa referir que este é um ponto precioso para medir o alcance “político” dos

«secretários», uma vez que a ponderação do peso de uma “burocracia” (central e periférica) associada

ao «governo» das conquistas (tanto do ponto de vista alfandegário, como militar, como ainda de

suporte institucional da “colonização”) e as suas ligações às Repartições da Corte, permitiria avaliar

com mais propriedade o poder efectivo dos «secretários».

Neste sentido, e apenas com um carácter experimental, observemos o «Sumário» sobre a

cidade de Lisboa, redigido por Cristóvão Rodrigues de Oliveira em 1551. O autor apresenta um

panorama genérico das «instituições seculares», onde o número de ofícios de escrita na esfera das

«matérias da Índia» ronda metade do total de oficiais dessas instituições844. Este conjunto variado de

órgãos ligados à «Índia» fez crescer em associação um “exército” de escrivães845. Não será arriscar

demasiado dizer que esta multiplicação da escrita esteve na origem do já referido «secretário da

Repartição da Índia» (c. II), primeiro com D. João III e depois com D. Sebastião, oficial que

constituiu o interface político de um crescimento “burocrático” a que não tem sido dado o devido

relevo. Em todo o caso, a criação do Conselho da Fazenda (1591) e o Conselho da Índia (a funcionar

842 Regimento das Casas das Indias e Mina, Damião Peres, Universidade de Coimbra, Coimbra, 1947, p. 3. 843 Susana Münch MIRANDA, A Administração da Fazenda Real no Estado da Índia (1517-1640), Dissertação de Doutoramento em História da Expansão e dos Descobrimentos Portugueses (séculos XV-XVIII), UNL, FCSH, Lisboa, 2007, pp. 289-345. Embora o seu estudo verse sobre a administração do Estado da Índia, são preciosas algumas das informações sobre a corte que podem aí ser recolhidas. 844 Cristovão Rodrigues de OLIVEIRA, Lisboa em 1551, Sumário, Apresentação e notas de José Felicidade Alves, Livros Horizonte, Lisboa, 1987. 845 Excluindo os trabalhadores, carregadores e guardas, sem estatuto de ofício, a contagem é a seguinte «Juízo da Índia, Guiné e da Mina» (quatro escrivães do Juízo da Mina em oito oficiais); «Juízo da Alfândega» (cinco escrivães em dez oficiais); «Juízo da Moeda» (dois escrivãs em cinco oficiais); «Corretores das Mercadorias» (um escrivão em vinte e quatro oficiais), «Casa da Índia» (oito escrivães em quinze oficiais), «Casa da Mina» (um escrivão em três oficiais), «Casa do Armazém, do Reino e Armaria» (dois escrivães em trinta e dois oficiais), «Casa do Armazém, da Índia e Guiné» (quatro escrivães em oito oficiais), «Casa do Armazém dos Mantimentos» (um escrivão em três oficiais), «Almoxarifado da Ribeira» (um escrivão em nove oficiais), «Casa da Alfândega» (cinco escrivães em dezassete oficiais), Cristovão Rodrigues de OLIVEIRA, Lisboa em 1551…, pp. 84-91.

197

entre 1604 e 1614) não homogeneizaram a resposta a esta profusão de «papéis», decorrente do

crescimento urbano das «conquistas» e do aumento do tráfego marítimo846.

Neste sentido, o Conselho Ultramarino, e respectiva secretaria, emergiu dessa “mole” de

informação “política” que vinha atolando a Corte desde meados do século XVI847. Com efeito, o

«Regimento do Conselho Ultramarino» consagrou para o secretário do Conselho, criado entre 1642 e

1643, o mesmo modelo de actuação do secretário do Conselho de Estado fixado em 1569848.

Todavia, ao contrário do inicialmente previsto no «Regimento do Conselho de Estado», o estatuto

do secretário do Conselho Ultramarino já não corresponderia a uma posição de inteira

subalternização em relação aos conselheiros ultramarinos. Note-se que a partir de 1648 o secretário

do conselho ultramarino receberia as propinas antes pagas aos escrivães e secretários do

Desembargo do Paço849. A sua relevância confirmava-se também numa maior dignidade da sua

presença em Conselho. Apesar de não possuir «voto», o secretário devia sentar-se no topo da mesa

em «cadeira raza» e não de joelhos850. As suas funções incluíam a elaboração de listas de matérias

assentes no «Livro do Conselho», a redacção das «Consultas» (rubricadas pelo presidente e por todos

conselheiros). Devendo guardar todos os «papéis», para segurança da informação, numa casa em

«caixoes, e escriptorios» fechados com chaves guardadas por si851.

Competia ainda ao secretário do Conselho Ultramarino: elaborar os despachos para que a

torre de Belém deixasse sair os navios para o Oceano852; tratar, em articulação com a secretaria de

estado, assuntos que se prendessem com as armadas do Rio de Janeiro853; executar os pagamentos de

contratos por meio dos seus oficiais854; receber e tratar todos os «papéis» comprovativos de serviços

em caso de disputa de ofícios855. Ao longo do século XVII, a comunicação com a secretaria de

846 Pelo «estado em que se achaõ as couzas da India; Brazil, e Angola e mais Conquistas, (...) e se chame [o novo tribunal] Conselho Ultramarino, em que sirva o Prezidente o Vedor da Fazenda da repartição da India, e de Secretario o Escrivão da Fazenda da mesma repartição com o ordenado (...) que cada um deles tinha no Conselho da Fazenda», documento do «Livro que deve estar no Conselho Ultramarino para nelle se escreverem os Autos das posses (...)», cit. por Ana Ria Amaro MONTEIRO, Legislação e Actos de Posse do Conselho Ultramarino, 1642-1830, Universidade Portucalense, Porto, 1997, pp. 35-36. 847 Sobre o Conselho Ultramarino, António M. HESPANHA, As Vésperas…, pp. 255-256 e biblio. cit. Mais recentemente Erik Lars MYRUP, The Rule from Afar, The Overseas Council and the making of Brazilian West, 1642, 1807, Phd dissertation, Yale University, 2006. 848 O Presidente, os conselheiros e o secretário do Conselho Ultramarino gozariam dos privilégios consignados nas Ordenações Filipinas ao regedor e desembargadores da Casa da Suplicação. 849 AHU, Ultramar, cx. 1, doc. 50. 850 Ana Ria Amaro MONTEIRO, Legislação e Actos de Posse do Conselho Ultramarino…, p. 37. 851 Ana Ria Amaro MONTEIRO, Legislação e Actos de Posse do Conselho Ultramarino... , p. 39. 852 AHU, Reino, cx. 11-A, pasta 24. 853 AHU, Rio de Janeiro, cx. 2, doc. 54. 854 AHU, Conselho Ultramarino, cx. 1, doc. 14 e doc. 26. 855 A título de exemplo, Salvador Correia de Sá e Benevides escreveu ao oficial-maior da secretaria do Conselho Ultramarino, Pascoal de Azevedo, sobre os seus serviços como capitão-mor e governador do Rio de Janeiro, Angola e capitanias da repartição do Sul do Brasil, no momento do pedido de mercês de acrescentamento da tença do hábito de Cristo, AHU, Rio de Janeiro, cx. 298, doc. 4 e cx. 5, doc. 491.

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estado potenciou a capacidade de decisão do secretário do Conselho. Voltaremos a este assunto no

último capítulo. Quanto ao tema que nos ocupa importa dizer que o crescimento do número de

oficiais da secretaria do Conselho Ultramarino cresceu ao longo do século XVII, aumentando a

capacidade de resolução das matérias e estreitando-se a relação directa entre as câmaras ultramarinas

e o secretário do Conselho.

c) O secretário do Conselho de Guerra.

A guerra entre a Coroa de Portugal e a Monarquia Católica, decorrente da ruptura de 1640,

gerou uma nova torrente de «papéis» tratados em secretaria e Conselho próprios. Criado entre 1640 e

1642, com «Regimento» dado em 1643856, o Conselho de Guerra emergiu a princípio como o

segundo tribunal em dignidade, logo a seguir ao Conselho de Estado. O secretário do Conselho de

Guerra beneficiava de amplos poderes devendo, em caso de «descuido» de algum conselheiro,

representar o rei, lembrando a «obrigação» dos conselheiros de guerra857. Não bastando esta

intervenção, conforme referia o «Regimento», o secretário poderia dar conta do incidente ao rei858. O

secretário do Conselho – dotado, por inerência, do título de conselheiro de guerra – redigia os

«papéis» e «Consultas», recebendo as «Ordens régias» tocantes à guerra, organizando os assuntos a

tratar e remetendo-os ao «secretário de estado»859; devia ainda tomar as petições e controlar o

«despacho», sem que nenhum outro «ministro» interferisse – a não ser por recomendação expressa,

mas sempre avisando o secretário. Todas as «Cartas», «Patentes» e «Comissões» respeitantes aos

assuntos de guerra eram por si expedidas860. No caso de Ordens que afectassem «Tribunaes ou

Ministros» que não fossem «subditos» do Conselho de Guerra, devia ser o secretário a escrever-lhes

uma «Resolução» declarando o conteúdo e dia861.

Os «secretários» de guerra viram crescer a sua importância com o prolongamento das

«guerras da restauração», assumindo a comunicação entre o rei, as deliberações do Conselho de

856 «Reg. de 22 de Dezembro de 1643». António M. HESPANHA, As Vésperas…, pp. 256-257 e bibliografia citada. 857 Segundo António Caetano de Sousa, o secretário do Conselho de Guerra beneficiava do estatuto de secretário do rei e não do Tribunal, António Caetano de SOUSA, HGCR, vol. VII, p. 108. Em todo o caso, em 1655, o secretário do Conselho de Guerra recebeu todos os privilégios que tinham o regedor e desembargador da Casa da Suplicação, conferidos pelas Ordenações, tal como tinha sido efectuado em relação ao secretário de estado, «Decreto de 13 de Agosto de 1655». Além disso tanto o «Alvará de 7 de Agosto de 1647», respeitando a ordenados dos Oficiais do secretário do Conselho de Guerra, bem como uma «Carta» de D. João IV para André de Albuquerque, sobre os emolumentos das «Patentes» e «Alvarás» a serem pagos ao secretário do conselho de guerra em 1654, confirmam a sua acção, BA, 51 – VI – 12, Miscelânea, 10, Papéis Jurídicos e Políticos, «Carta d’El-Rei D. João IV para André de Albuquerque», nº 5. 858 «Reg. do Conselho de Guerra de 22 de Dezembro 1643», Cap. III. 859 «Reg. do Conselho de Guerra de 22 de Dezembro 1643», Cap. VI. 860 Edgar PRESTAGE, «Memórias sobre Portugal…», p. 21-22 861 «Reg. do Conselho de Guerra de 22 de Dezembro 1643», Cap. XVI.

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Guerra e os «Governadores de Armas» das Províncias862. Como se previa no «Regimento», a

definição das matérias de guerra a despachar era em muitas ocasiões coordenada pelo secretário de

estado que assim potenciava o carácter “político” da secretaria do Conselho de Guerra, permitindo

que esta participasse da decisão régia.

d) O secretário da Junta dos Três Estados.

A Junta dos Três Estados surgiu na sequência do «Alvará» de 18 de Janeiro de 1643, segundo

o que se havia assentado em Cortes em 1642863. O seu secretário devia coordenar o «despacho»

relacionado com a administração dos tributos e consignações em matéria de guerra, bem como um

conjunto de informações relativas à administração militar (armazéns, fortificações)864. Consultava

directamente o rei, em articulação com o «secretário de estado», sobre «matérias» do financiamento

militar865. No final da guerra, depois de 1668, o secretário continuou a trabalhar no controlo das

«dívidas particulares» da «Repartição dos três estados», procurando também disciplinar os

pagamentos das contribuições acertadas ao longo da guerra com instituições influentes como o

Senado da Câmara866.

Através de um processo movido pela Inquisição ao «secretário da Junta dos Três Estados»,

Manuel Rodrigues da Costa, é possível destacar, a título de exemplo, o protagonismo desenvolvido

por este oficial. Qualificado como muito «áspero», as testemunhas afirmam-no «Rico e poderoso»867.

O controlo sobre a vasta rede dos feitores do assento – i.e., os homens que, em cada uma das

cidades e vilas do Alentejo, estavam ao serviço de Manuel Rodrigues da Costa para recolha dos

impostos – possibilitava aceder a enormes somas monetárias, podendo além disso “gerir” as

nomeações de uma considerável rede de oficiais de recebimento. Terá sido este o padrão de actuação

deste secretários, movimentando matéria preciosa a respeito das dívidas das contribuições,

beneficiando de vastas somas passíveis de serem utilizadas em investimentos próprios.

862 Cartas dos governadores da província do Alentejo a El-Rei, vol. II, ed. e pref. P. M. Laranjo Coelho, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1940, p. 145. Abundante documentação sobre a intervenção dos «secretários de estado» em matéria de guerra, IAN/TT, Conselho de Guerra, «Secretaria de Guerra», «Livros de Refisto», Liv. 1. 863 António M. HESPANHA, As Vésperas..., pp. 241-242 e biblio. cit. 864 António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol. VII, p. 108. 865 IAN/TT, MNE, «Correspondência de Sebastião de Carvalho e Melo para o Conde de Unhão », 1753-1755, «Papel intitulado Breve noticia da Junta dos tres Estados, bens que administra, e forma da sua administração, assim em as suas cobranças; como em a sua arrecadação, e despesas; Tribunaes. Casas de despacho, Ministros, e officiais que lhe são sujeitos, leis e ordens que observa», cx. 954; EFO, V, 1ª parte, p. 517. 866 EFO, VII, 1ª parte, p. 368. 867 IAN/TT, Inquisição de Lisboa, «Processo contra Manuel Rodrigues da Costa, cristão-novo, secretário da Junta dos Três Estados», Processo nº 9948.

200

e) Os secretários dos «estados ultramarinos»

Depois de um panorama muito genérico sobre os secretários criados na esfera da nova

configuração das matérias de governo (Fazenda, Ultramar e Guerra), devem destacar-se os

«secretários» dos «estados» ultramarinos, onde o aumento de constrangimentos ao poder régio

(distância, volume comercial, autonomias locais) conduziram a organização do poder a uma precoce

autonomização da “burocracia régia”, o que levou a historiografia a caracterizar a administração da

Coroa como uma miríade de contradições normativas ou uma profusão de papéis a cada novo acto

de poder.

Quer os «secretários dos Governadores do Estado da Índia», desde o século XVI, quer os

«secretários do Estado do Brasil» ao longo de todo o século XVII (mais tarde «secretários do

Governo Geral do Brasil»), bem como os «secretários dos governadores» das diversas Capitanias,

sobretudo a partir do século XVIII, alcançaram uma relevância que prefigurou a função desses

ministros como ‘primeiros ofícios do governo’. Com efeito, o estudo dos «secretários» da

“administração ultramarina”, revela uma experiência “política” que conferiu aos «secretários» dos

diversos governadores do império português um lugar fundamental nesta genealogia da eficácia do

secretário que procuramos aqui desenhar. Relembre-se, no entanto, que nem sempre esta eficácia foi

coincidente com os planos da Coroa868.

A criação dos «secretários de Governo» deveu-se a uma necessidade de controlar o registo

das informações produzidas ou recebidas dos espaços longínquos através do disseminado império da

Coroa de Portugal869, ficando o secretário responsável pelos «Livros e papéis do governo»870. Da

mesma forma, este «ministro» seria responsável pela transmissão das informações – sobre os actos

dos governadores anteriores – a cada novo governador chegado ao território, verificando ainda se o

«governo» se executava em consonância jurídica com as «Ordens régias». Daí que, mesmo sob a

tutela do secretário, os documentos estivessem sujeitos a uma restrição do acesso, podendo ser

868 Sobre a caracterização da pulverização “política” das conquistas, António M. HESPANHA, «Os modelos institucionais da colonização portuguesa e as suas tradições na cultura jurídica europeia», A União Ibérica e o Mundo Atlântico, Lisboa, Edições Colibri, 1997, pp. 65-71; António M. HESPANHA, «A Constituição do Império Português, Revisão de alguns enviesamentos correntes», O Antigo Regime nos Trópicos, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2001, pp. 163-188. 869 Veja-se o artigo seminal de Luís Filipe THOMAZ, «Estrutura política e administrativa do Estado da Índia no século XVI», De Ceuta a Timor, Difel, Lisboa, 1994, pp. 207-243. 870 AHU, Ultramar, cx. 2, doc. 146.

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utilizados como poderosa “arma”871. Desta forma, pode ser dito que, do ponto de vista da descrição

“política”, o «secretário do Governo» controlava os dados fundamentais dos «governos»

ultramarinos, descrevendo a actuação do Governador e funcionado como um importante limite

desse poder. O perfil de actuação dos «secretários do estado da Índia», os «secretários do estado do

Brasil» e os «secretários do governo de Angola» confirmam a relevância institucional destes secretário

bem como a sua considerável autonomia jurisdicional.

Quanto ao secretário do «estado» da Índia.

O ofício de «secretário do estado da Índia» é mencionado pela primeira vez em 1505, como

«secretário da Índia», o que por vezes gera alguns equívocos quanto às referências em Chancelaria,

uma vez que a designação confirmava, em primeiro lugar, um vínculo ao rei em matérias da Índia872.

Competia-lhe descrever as ocorrências mais relevantes do «governo do estado da Índia», em especial

a actuação do vice-rei. Devia auxiliar o «despacho», desempenhando a mediação entre o vice-rei e os

restantes oficiais. Por isso, a nomeação dos «secretários» decorria do processo de escolha desses

mesmos governadores ou vice-reis873. O «secretário do estado da Índia» presenciava a abertura das

«vias» de sucessão e procedia ele mesmo à abertura em caso de morte do governador, tratando da

correspondência, da redacção das «Ordens» e fazendo a comunicação entre oficiais e o vice-rei874.

Cabia-lhe ler em voz alta o conteúdo dessas «vias» e fazer um «auto de aceitação» do novo

governador nomeado. Outras tarefas relevantes eram a participação nas embaixadas a reinos

orientais, nas entradas dos vice-reis em Goa ou nas procissões mais importantes, assistindo os

governadores e vice-reis875.

Com efeito, o secretário tornou-se rapidamente no cargo mais determinante do «governo»,

logo após o governador, servindo também como «secretário do Conselho do Estado da Índia». Este

caminho, como não podia deixar de ser, fez-se por uma especialização no tratamento da informação.

Durante o governo de D. João de Castro, a doença do governador possibilitou ao secretário e a um

871 Por exemplo, a «Carta Régia de 17 de Dezembro de 1701», dirigida ao governador D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre (1699-1703), na qual se discute a entrega dos livros da secretaria do Governo ao desembargador Cristóvão Tavares de Moraes. A resposta é clara quanto à restrição da informação: «(…) fizestes bem em não mandares entregar os livros da secretaria a este ministro para os ver em sua casa, pois este não era justo que saíssem da secretaria», AHU, Registo de Cartas Régias, cód. 257, fl. 85. No Reg. passado ao secretário de Angola reforça-se o Reg. do próprio governador, como mostra o artigo 17º. Também se percebe a importância que é dada às diferenciações entre tipologias documentais, possuindo cada um dos seus livros específicos. Agradeço a Josemar H. de MELO as preciosas informação sobre as secretarias ultramarinas. 872 Gaspar Correia utiliza apenas a expressão «secretário do governador» ou «secretário da Índia» e Diogo do Couto utiliza a expressão «secretário de estado» (contudo, esta utilização de Diogo do Couto prende-se com a designação coeva à redacção dos textos e não tem eco na documentação quinhentista). Sobre o assunto, Catarina Madeira SANTOS, “Goa é a chave de toda a Índia”, Perfil político do Estado da Índia, CNCDP, Lisboa, 1999, pp. 173-174. 873 Miguel Vicente de ABREU, Catálogo dos Secretários do Estado da Índia Portuguesa, Nova Goa, 1866. 874 Bailey W. DIFFIE & George D. WINIUS, A Fundação do Império Português (1415-1580), vol. II, Vega, Lisboa, 1993, p. 109. 875 Catarina Madeira SANTOS, “Goa é a chave de toda a Índia…, pp. 175-176.

202

grupo de oficiais assumir a plenitude do despacho e o controlo do governo através da constituição

de uma «Mesa»876. Nesse contexto, as «Provisões» eram redigidas pelo secretário de acordo com a

experiência adquirida na secretaria do governo da Índia877. A importância do secretário no exercício

do governo cresceu de forma considerável. Esta especialização teve um momento revelador quando

em 1698 o arquivo da secretaria do estado da Índia foi agilizado pelo secretário, através da criação de

diversos «Livros» como o do registo das cartas escritas ao Vice-Rei, bem como de sofisticados

instrumentos de consulta de forma a localizar rapidamente conteúdos normativos e matérias

relevantes processadas em «Consultas»878. A actuação do «secretário de estado da Índia», dada a sua

relevância institucional, e mesmo o peso da dimensão simbólica da «Índia» no imaginário

jurisdicional do reino, marcaria a configuração dos restantes «secretários» do Império879.

Em meados do século XVII, surgiu o secretário do «estado» do Brasil.

A necessidade de controlar a informação de um território em expansão potenciou o

enraizamento dos «secretário do estado do Brasil, sendo cada oficial nomeados por três anos,

embora este tempo fosse normalmente distendido pela “distância administrativa”. De acordo com

Pedro Puntoni, após alguns secretários servindo de forma incipiente em governos muito pouco

“burocratizados”, a nomeação em 1646 do «secretário de estado do Brasil», Bernardo Vieira Ravasco,

iniciou um processo de maior determinação do ofício. As suas competências, como ficou dito, foram

decalcadas da actuação do secretário da Índia, pelo que não voltaremos a repeti-las.

876 Constituída pelo capitão da cidade, D. Diogo de Almeida, o bispo, também vedor da Fazenda e o chanceler, doutor Francisco Toscano, além do «secretário da Índia». 877 João de BARROS, Ásia, Dos Feitos que os Portugueses fizeram no Descobrimento e Conquista dos Mares e Terras do Oriente, (4ª ed), Conforme a edição princeps, iniciada por António Baião e continuada por Luís Filipe Lindley Cintra, Lisboa, INCM, 1974, [Dec. II, Liv III, Cap. IX], p. 142; Gaspar CORREIA, Lendas da Índia, Porto , 1975, vol. I , p. 567, vol. III, pp. 727-728, vol. IV, p. 639, vol. III, pp. 12-13, vol. IV, pp. 658-659, vol. III, p. 535; Diogo do COUTO, O Primeiro Soldado Prático, introd. e ed. António Coimbra Martins, CNCDP, Lisboa, 2001, pp. 378-383; Livro das Cidades e Fortalezas que a Coroa de Portugal tem nas partes da India, e das Capitanias, e mais cargos que nelas há, e da Importancia delles, ed. preparada por Francisco Paulo Mendes da Luz, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, Lisboa, 1960, fl. 9v. 878 Inventariação das «Consultas com repartição das margens que se lançam às respostas e do registo dos regimentos assim do governo como de todos os ministros e oficiais, o das homenagens e interrogatórios por onde se tiram as residências a que deu forma». Além disso criou mais dois livros «com perfeita arrumação e clareza dos alfabetos». Os alfabetos eram índices de expressões que permitiam localizar informação relevante. O secretário deu também uma definição formal à convocação dos conselheiros, prelados, ministros e outras pessoas práticas; efectuou registo das propostas e acentos; e fez uma relação dos cargos e ofícios daquele reino com distinção dos ordenados e emolumentos, AHU, Conselho Utramarino, Registo de Oficios, Cod. 123, f. 122. Para um desenvolvimento do tema, consulte-se o importante estudo, Josemar H. MELO, A Secretaria de Governo da Capitania de Pernambuco como parte do aparelho burocrático colonial, 2006, (inédito). 879 «(...) para se poder bem governar será conveniente haver nele um secretário, assim como há na Índia que tenha a seu cargo os papéis daquele governo com que se dará melhor expediente dos negócios e serem mais bem encaminhados, cessando os inconvenientes que se tem experimentado por não haver pessoa permanente neste ofício, nem arquivo em que se guarde os ditos papéis, ficando por esta causa os governadores que entram naquele Estado faltos de notícias dos negócios começados», AHU, Conselho Ultramarino, «Registo de Ofícios», cód. 113, fl. 186 e Josemar H. MELO, A Secretaria de Governo da Capitania de Pernambuco…, pp. 163 e ss. Sobre o contexto da criação da Secretaria do Estado do Brasil, Pedro PUNTONI, «Bernardo Vieira Ravasco, secretário do Estado do Brasil, poder e elites na Bahia do século XVII», Modos de Governar, Ideias e Práticas Políticas no Império Português - Séculos XVI-XIX, Alameda, São Paulo, 2005, pp. 157-178.

203

Deve dizer-se, contudo, que nesta época trabalhavam na secretaria do governo geral um

oficial maior e um oficial menor, por vezes um oficial “papelista”, sendo possível a existência de

ajudantes que possuíssem boa escrita – escreventes – contratados em picos de trabalho, de acordo

com o que se praticava no reino. O controlo sobre a memória da prática “político-administrativa”

dava-lhe capacidade para impor a sua opinião ao Conselho do «estado» do Brasil e ao próprio

Governador880. A construção do território, o crescimento urbano, a densificação do comércio, gerou

uma profusão de ofícios e respectiva necessidade de registar os serviços prestados naqueles

territórios.

Com a expansão territorial do Brasil foram também surgindo outros «secretários». No

reinado de D. Pedro II, entre 1689 e 1700, foram nomeados o «secretário do estado do Maranhão», o

«secretário da capitania de Pernambuco» e o «secretário da capitania do Rio de Janeiro»881. O

Conselho Ultramarino tentava não perder o pé, em matéria de provimento, procurando intensificar a

correspondência com os novos «secretários» das Capitanias882. No início do século XVIII, a

multiplicação de secretarias nas Capitanias do Brasil (Goiás, Mato Grosso, Minas Gerias) vai

potenciar ainda mais o poder dos secretários “locais”, aumentando os seus rendimentos883, gerando

redes de correspondência e fortalecendo burocracias internas com ligações à «nobreza da terra»884.

Uma última palavra para descrever, em traços muitos gerais, a emergência, na segunda

metade do século XVII, do «Secretário do governo de Angola».

Tal como noutros territórios ultramarinos, também nas «conquistas» da costa africana foram

as «elites locais» a pressionar o crescimento da malha administrativa885. Em 1656, os oficiais da

Câmara da «Cidade de São Paulo da Asumpção do reino de Angola» escreveram ao Conselho

Ultramarino sugerindo o provimento de um secretário. Contudo, apenas em 1688 surgiu a nomeação

de um secretário para o «governo» de Angola. O «Regimento» que circunscrevia as funções do

secretário seguiu de uma forma geral as competências cometidas as outros «secretários» da

“administração” ultramarina, destacando-se apenas, além da normal vigiar e registo dos principais

actos de governo, a indicação para elaborar «listas de todos os oficiais e soldados». Estas listas

deviam ser enviadas ao Conselho Ultramarino para controlar a ‘gente de guerra’ do reino de

880 Sobre esta capacidade de invocar o arquivo da secretaria, Pedro PUNTONI, «Bernardo Vieira Ravasco...», pp. 174-175. 881 AHU, Rio de Janeiro, cx. 5, doc. 522. 882 AHU, Rio de Janeiro, cx. 9, doc. 49. 883 AHU, Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 14. 884 AHU, Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 13. 885 Eunice Jorge da SILVA, A administração de Angola, século XVII., 2. vols, dissertação de Mestrado, Faculade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1996.

204

Angola886. Ao longo do século XVIII, tal como nas capitanias do Brasil, ou no estado da Índia, o

«secretário do governo de Angola» continuou a crescer em influência, constituindo-se como

elemento estruturante da “administração” e importante elo no equilíbrio local – limitando a

jurisdição do governador�.

f) Outros secretários e escrivães

Além dos secretários e escrivães já caracterizados – emergentes nas áreas “modernas” de

crescimento institucional – um outro conjunto de oficiais vinha ganhando protagonismo na órbita

do poder régio, sacralizando a escrita, tornando-a uma “tecnologia” do poder eficiente e

concorrendo, ainda que indirectamente, para o triunfo “ideológico” da eficácia do «secretário de

estado». Ofícios como o escrivão da Chancelaria do reino887, o escrivão da Chancelaria da Casa da

Suplicação888, o escrivão da Chancelaria da Casa da Relação do Porto889, os escrivães dos

Desembargadores da Casa da Relação do Porto890, escrivão da Chancelaria da Comarca891, escrivão

886 AHU, Conselho Ultramarino, «Livro de regimentos», cód. 169, fl. 83. 887 «Alvará de 24 de Agosto de 1613» registava toda a documentação exarada, «Cartas de Pergaminho», «Perdões», «Alvarás» e «Provisões», «Cartas de Mercês», «Cartas» passadas pelo Desembargo do Paço, registando tudo isto em «Livros». Devia zelar pelo registo correcto, evitando falsificações sob pena de perca do ofício. Havendo cartas passadas por oficiais régios sem selo real, devia o escrivão fazer uma ‘ementa’ que levaria ao rei, «ao menos duas vezes por semana» registando todas essas cartas. O rei conferia e só depois era levado material ao chanceler-mor. Este devia conferir, no momento da selagem das cartas, se tinham sido registadas na ementa régia, OF, Liv I, Tit. XIX, nº1-11. 888 Controlava a saída das «Cartas» com o recebedor mediante pagamento – sendo-lhe prescrito o modelo de arrecadar as dízimas das sentenças, guardando as cartas que não fossem requisitadas pelas partes; ficando subordinado ao chanceler que tinha decisão em matéria de dúvida do processo dos «papéis», OF, Liv. I, Tit. XX, nº 1-6. 889 Dava as «Cartas» perante o recebedor, registando a receita de acordo com tabela fixada. Em caso de dúvida sobre pagamentos seria o chanceler a decidir a matéria juntamente com os desembargadores. Tinha a seu cargo a distribuição de todos os instrumentos de agravo, «Cartas» para testemunhas, datas de convocatória, convocação dos feitos cíveis e crime, OF, Liv. I, Tit. XLIV nº 1-2. 890 Deviam ser lestos nas audiências, de modo a que as partes não perdessem tempo. Ficavam sujeitos ao Reg. dos escrivães da corte e ao disposto para os escrivães do Desembargo do Paço, OF, Liv. 1 Tit. 24 e OF, Liv. I, Tit. XLVI, nº1. 891 Devia, antes de o chanceler poder selar as cartas, colocar o registo de pagamento no documento, registando antes no «Livro de Recebimento» como o chanceler tinha recebido a «Carta», OF, Liv. I, Tit. LXI nº 1. Por «Assento de 7 de Janeiro de 1712», o «secretário da Mesa do Desembargo do Paço», na repartição das Justiças, seria agraciado com o pagamento das mesmas propinas dos desembargadores. A decisão era, aliás, confirmada por «Carta» do «secretário de estado», facto que sublinha o trajecto de eficácia que estes secretários tinham feito na Corte.

205

dos Feitos do Rei892 ou, ao nível local, o escrivão da Câmara893 e o escrivão da Almotaçaria894; são

apenas alguns exemplos dos muitos servidores que inundavam o reino, contribuindo para fazer da

circulação dos textos escritos o maior instrumento de comunicação “política”895. Na verdade, ao

longo do século XVII esta progressiva “racionalização” da ordem escrita, esta “mecanização” do

registo das identidades dos vassalos, alcançada pela escrita dos actos quotidianos da vida dos

indivíduos, vai potenciar em vários outros domínios o peso dos especialistas nas decisões

institucionais.

Destacaremos apenas as restantes funções de escrita na constelação das mais determinantes

instituições do reino.

Em primeiro lugar, o Desembargo do Paço. Apesar da sua centralidade no «despacho», o

Desembargo vinha perdendo importância, actuando sobretudo numa cada vez mais circunscrita área

da «graça». Por outro lado, o trabalho burocrático fazia-se por intermédio dos escrivães da Câmara, o

que aumentava a sua dependência em face das lógicas centrípetas do centro. Apesar de termos

referido noutro lugar deste trabalho (c. II e III) os principais traços da evolução dos escrivães da

Câmara Régia, sobretudo no que tocava à sua participação no «despacho» junto do rei, devem aqui

deixar-se algumas indicações quanto às suas responsabilidades no âmbito do Desembargo do

Paço896.

892 Um exemplo do poder “burocrático”, que temos vindo a destacar, pode ser observado: devendo os escrivães dos Feitos do rei fazer «rol» de todos os feitos e apresentá-lo ao procurador da Coroa, vendo que o juiz dos Feitos da Coroa, ou o procurador, não eram diligentes no desembargo e nos requerimentos, podiam estes escrivães fazer um outro «rol», colocando a data do início e o dia da chegada à corte e apresentando, depois, esta lista de avaliação ao regedor, ou ao próprio rei, para desembargo lesto e repreensão do não cumprimento por parte do juiz e procurador. O escrivão dos Feitos do Rei devia elaborar as «Cartas» de quaisquer diligências, levando-as ao juiz para assinatura e devolvendo-as depois ao solicitador para as fazer selar. Feitas as sentenças definitivas, devia o escrivão encarregar-se do processo de assinatura e selo na Chancelaria, levando-os, depois de finalizados, ao procurador da Coroa ou da Fazenda, conforme a matéria, elaborando depois arquivo com as sentenças dadas para seguir o registo da Torre do Tombo, OF. Liv. I, Tit. XXIII, nº 1-4. 893 Estava encarregado de reduzir a escrito o expediente da vereação. Guardava a chave da arca onde se encontravam os padrões dos concelhos (de pesos e medidas) – o procurador teria a outra chave. No reino devia fornecer ao almotacé-mor os nomes das vintenas, ou dos lugares e casas a fim de levantar «Alvarás» com a quantificação dos lugares para se fazerem tributos à corte (como as quantidades de palha devidas à Coroa), OF, Liv. I, Tit. XVIIII, nº 4 e nº 39. Competia ainda aos escrivães da Câmara «redigir as cartas, autos, diligencias, petições, papéis e todas as coisas que tocarem às Cameras das Cidades, Vilas e lugares de suas comarcas ou dos Corregedores e Juizes e mais justiças das comarcas no que tocar a seus oficios e “bem commum”», Manuel Álvares PEGAS, Commentaria..., «Dos Escrivães dante os Desembargadores do Paço & dos Agravos, & Corregedores da Corte, & outros Desembagadores», Tomo III, Ulyssione, 1671, pp. 513-516. Sobre os escrivães da Câmara, ver também João Pedro FERRO, Para a História da Administração Pública na Lisboa Seiscentista, Lisboa, 1996. 894 Encarregue de escrever perante os almotacés em matéria de coimas e achadas, de almotaçaria, de pesos e medidas. 895 António M. HESPANHA, As Vésperas…, pp. 175-176. 896 Sobre o Desembargo do Paço, apesar de o alvo cronológico do estudo não coincidir com o arco temporal aqui abordado, uma excelente análise em José SUBTIL, O Desembargo do Paço, (1750-1833), UAL, Lisboa, 1996, onde pode confrontar-se a análise aqui esboçada com uma visão mais centrífuga do Desembargo Régio.

206

Na verdade, os escrivães da Câmara Régia participavam no «despacho» do Desembargo do

Paço. As «Provisões» efectuadas no espaço da Câmara Régia, ou mesmo em coordenação com as

secretarias de estado, eram levadas pelos escrivães e confirmadas pelos desembargadores, através de

«vistas». Além disso, os escrivães, afectos ao «despacho» do Desembargo do Paço, deviam

comparecer nos dias cometidos às suas Comarcas sendo presente regularmente um outro escrivão

estritamente afecto ao tribunal, o escrivão da mesa897. Os escrivães da Câmara Régia auxiliavam os

desembargadores no expediente ordinário deste Tribunal que compreendia uma vasta gama de

matérias com preponderância para «graça» e mecanismos de autenticação de «cartas de mercês» e

«benefícios régios». Assim, além do vínculo directo ao rei que vimos já com algum detalhe, os

escrivães da Câmara capitalizaram o seu relevo também neste trabalho de escrita do Desembargo do

Paço, interferindo em diversas ocasiões em benefício das «partes», recusando actos de escrita e

defendendo os interesses dos câmaras no seio da Corte898. Claro que este enraizamento territorial,

através de ligações às cidades, podia colidir com os interesses político-burocráticos do rei. Em todo o

caso, importa aqui destacar-se a afirmação de uma linguagem própria dos oficiais da escrita e da

omnipresença de uma tecnologia manipulada por secretários e escrivães nas instituições do reino.

Um outro exemplo desta afirmação prende-se com o trabalho de redacção documental nas

reuniões de Cortes.

A fim de elaborar toda produção documental, eram eleitos secretários em cada um dos

estados: eclesiásticos no segundo dia, a nobreza sem dia fixo, e os Povos no primeiro dia. Estes

secretários deviam escrever todos os dias os «Assentos» respeitantes ao deliberado no respectivo

«braço» das Cortes, elaborar registos do acordado com assinatura de todos os participantes, ler ou

propor os «Decretos» através dos quais o rei comunicava com os estados899. Quando surgiam

matérias muito relevantes onde as decisões requeriam o acordo dos três estados, os secretários

deviam formar «Consulta» que transitaria pelos braços reunidos, a fim de se conferir a decisão final

assinada por todos900. Eram estes secretários os responsáveis pela correspondência oficial em nome

das Cortes com o «secretário de estado»901, respondendo aos ofícios da secretaria de estado, levando

as «Consultas» à presença do rei e desempenhando funções determinantes no cerimonial, no

momento de receber enviados dos restantes «braços das Cortes» sempre que as circunstâncias o

exigissem, como por exemplo na circulação de «Consultas» gerais902. Não é demais sublinhar a

importância adquirida por estes «secretários» no âmbito da sua identidade corporativa – destacando-

897 OF, Liv. Tit. III; «Lei de 27 de Julho de 1582», «Novo Reg. do Desembargo do Paço». Sobre o assunto uma boa síntese em José SUBTIL, «Governo e Administração», O Antigo Regime…, pp. 145-149. 898 AHU, Reino, cx. 11-A, pasta 19. 899 Visconde de SANTARÉM, Memórias..., pp. 36. 900 Visconde de SANTARÉM, Memórias..., p. 37. 901 Pedro CARDIM, Cortes e cultura política..., pp. 121-122. 902 Visconde de SANTARÉM, Memórias..., pp. 30-31.

207

se ao nível da representação dos «estados», erigidos em mediadores da comunicação entre a cabeça e

o corpo do reino. No que respeita ao secretário da nobreza, note-se que o eleito desempenhava as

funções de «Presidente do estado» em Cortes903.

Outra das dimensões fundamentais da escrita do poder prende-se com o «secretário do

Conselho Geral do Santo Ofício» e a assunção de um poder “secretarial”.

Na sua génese, a “escrita” da Inquisição beneficiava de autonomia. A sua configuração

jurídica foi dada pelo «Regimento do Conselho Geral do Santo Ofício» redigido em 1569, quando era

Inquisidor o cardeal D. Henrique904. Além de um secretário, nomeado pelo Inquisidor, tinham algum

relevo os notários dos diferentes Tribunais da Inquisição (Lisboa, Coimbra, Évora, Goa, Lamego)

também por vezes denominados na documentação «secretários da Inquisição»905. Porém, durante a

integração do reino de Portugal na Monarquia Católica surgiu o secretário das Causas da Inquisição

em Madrid, fruto do esforço de acção de D. Felipe I para modelar o funcionamento “burocrático”

da inquisição ao estilo espanhol906. Com o duque de Lerma e o conde-duque de Olivares foram

acentuadas as ligações entre os assuntos da secretaria do Santo Ofício e o «secretário de estado»,

procurando que fosse este a desempenhar funções como «secretário da Inquisição»907. Depois de

1640, «os secretários de estado» continuaram a desempenhar funções como «secretários da

Inquisição», aprofundando o estilo secretarial do «despacho», por comunicação directa com o

Inquisidor e a Câmara Régia, evitando assim os Conselhos e Tribunais908.

Uma outra dimensão fundamental na afirmação dos «secretários» prende-se com o serviço

nas «secretarias dos estados» dos membros da família real.

Em primeiro lugar, a secretaria da Casa do Infantado e da Casa da Rainha.

O «secretário da Casa do Infantado» – instituição criada na segunda metade do século XVII,

destinada a providenciar os «bens» dos infantes – permutou influências com a secretaria de estado,

no âmbito da assistência às pessoas reais. A secretaria da Casa do Infantado era formada por

ministros com experiência no «despacho» dos tribunais da Coroa, normalmente constituída por cinco

oficiais, numa estrutura muito semelhante à secretaria de estado909. Com efeito, vários dos seus

«secretários» transitaram para o serviço do rei (António Cavide ou João de Roxas de Azevedo)

903 Visconde de SANTARÉM, Memórias …, p. 29. 904 Parte destas informações foi amavelmente cedida por Bruno Feister. 905 IAN/TT, Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, «Confirmações Gerais, Secretário do Santo Ofício de Lisboa, Alvará para passar Provisões e Cartas», Liv. 7, fl. 162. 906 BA, 51-VIII-20, n. 58, fl. 69, a reserva devida às «coisas da Inquisição» impunha que os negócios não passassem «por muitas mãos», uma vez que tinham sido sempre tratadas pelos inquisidores gerais imediatamente com os reis, ou por pessoa das que tivessem «maior lugar diante o rei». Em 1608 recomendava-se que fosse o secretário Fernão de Matos a tratar dessas matérias. 907 IAN/TT, Conselho Geral do Santo Ofício, mç. 42, doc. 5. 908 IAN/TT, Conselho Geral do Santo Ofício, Liv. 136 e 137. 909 Maria Paula Marçal LOURENÇO, A Casa e o Estado do Infantado 1654-1706, Centro de História da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1995, pp. 117-118.

208

contribuindo para esbater as particularidades dos “estilos” entre estas secretarias, homogeneizando o

“espírito corporativo” de uma prática política do «estado do rei».

No que diz respeito à secretaria da Casa da Rainha, com uma estrutura semelhante à Casa do

Infantado, deve notar-se o protagonismo de alguns dos seus «secretários» como, em 1663, o Doutor

Belchior do Rego de Andrade. Uma vez que a rainha governava a sua Casa em clausura, o secretário

alcançou relevante protagonismo no «governo» dos bens910. Sobre esta liberdade de actuação na

Câmara (fosse em torno do rei ou da rainha) muito foi já avançado e não voltaremos a demorar-nos

nessa questão. Cumpre apenas lembrar que estes «secretários» das pessoas reais, acedendo ao

património régio, contribuíam para “sacralizar” o serviço “burocrático” em torno dos bens da

Coroa, despachando só com a rainha ou os Infantes e beneficiando de amplos poderes911.

Num último nível de importância, relativamente ao potenciar da secretaria de estado, mas

não do “estilo burocrático”, importa considerar as secretarias das Universidades.

Tanto o secretário da Universidade de Coimbra como o secretário da Universidade de Évora

integraram alguns aspectos da prática do secretário de estado, como o destaque na condução dos

cerimoniais. Por outro lado, desenvolveram saberes relacionados com inventários de indivíduos,

arquivos fundamentais no controlo da reprodução social912 – compilações baseadas nos Livros de

Matrícula, onde eram coligidas informações sobre a proveniência geográfica e social (nome do pai)

dos alunos e professores. A documentação “administrativa” das Universidades permite identificar o

aumento do expediente e o crescente protagonismo destes «secretários» ao longo do século XVII913.

Que conclusões retirar destas descrições?

O elenco destes secretários e escrivães, aqui ponderados de forma diversificada, pretendeu

clarificar o carácter instrumental do poder secretarial. Por outras palavras, podemos considerar a

afirmação do secretário como a modelação de um poder emergente numa série de instituições,

mesmo naquelas não directamente controladas pelo poder régio, no decorrer da “burocratização”

das relações sociais. Assim, o seu triunfo corresponde à formação de um estilo, de uma forma de

significar o poder, mesmo que do lugar onde emerge (o Desembargo do Paço, a Universidade, ou o

910 António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol. VII, p. 136. 911 Gazeta em forma de carta…, p. 214 912 Sobre a formação jurídica e o controlo social ver Joana Estorninho de ALMEIDA, A forja dos homens, estudos jurídicos e lugares de poder no séc. XVII, ICS, Lisboa, 2004. 913 «Carta Régia de 10 de Outubro de 1629», conferindo «Ração de Quatro jeiras ao Secretário da Universidade, em quanto servisse de Mestre de Cerimónias». Por «Consulta» da Mesa da Consciência e Ordens, o secretário da Universidade de Coimbra solicitou que a mercê passasse a ser vitalícia. A licença foi-lhe concedida apenas enquanto servisse como Mestre de Cerimónias, o que não significava uma acumulação com o cargo de secretário, IAN/TT, Chancelaria de D. Afonso VI, «Carta de Secretário e mestre de Cerimónias da Universidade de Coimbra a João Correia da Silva», Liv. 27, fl. 103. Sobre o secretário e escrivães da Universidade de Évora, Queirós VELOSO, A Universidade de Évora, Elementos para a sua História, Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1976, pp. 53-54 e BPE, «Estatutos da Universidade de Évora», cod. CXIV / 2-31; BPE, «Rol dos priuilegios da U. De Coimbra e dos privilegiados da U de Euora» e «informação que se deu...por ordem de S.M. em 628, sobre a Fundação do Collegio e Uniuersidade d’Euora. Pessoas, rendas e obrigações», cod. CV/ 2-15.

209

Conselho Geral do Santo Ofícios) ele possa ser um trunfo a opor ao poder do rei. Por outro lado,

deve clarificar-se que a emergência desses secretários, no caso da Coroa de Portugal, tende a

potenciar a influência do «secretário de estado». Fosse pelas relações estreitas tecidas entre outras

instituições régias e a própria secretaria de estado – na transmissão da informação, na tramitação dos

processos, na migração de oficiais maiores e menores –, fosse pela difusão de um ethos do poder

sobre os «papéis», sentido corporativo que o secretário directamente provido na defesa do «estado

do rei» potenciou como nenhum outro. Na verdade, acercámo-nos aqui, com mais propriedade, de

uma tendência já enunciada (c. I) em que a dissolução das formas tradicionais de representação do

poder dependeram, em primeiro lugar, das modificações na técnica de governo, onde a mutação da

comunicação oral para a comunicação escrita, quer no sentido material, quer no sentido simbólico,

gerou contradições na distribuição social do poder. Vejamos, na perspectiva dos paradigmas de

governo, qual o resultado destas tendências.

2. Os sinais de um poder emergente

Nesta segunda secção, interessa verificar de que forma a exportação da prática dos

«secretários» já descrita – e mesmo a imposição do próprio «secretário de estado» na assistência

escrita de variadas instituições –, ao generalizar-se aos órgãos de «governo» e “representação” dos

«corpos» do reino, vem minar os fundamentos do “jurisdicionalismo”. Neste sentido, a

caracterização do discurso a propósito dos «secretários» procura sinalizar as principais mutações na

representação cultural do poder.

a) Os secretários e o discurso político

Os estudos sobre a produção do discurso multiplicaram-se após a recepção de duas obras

seminais de Michel Foucault: Les mots et les choses, publicada em 1966 – uma magistral análise da

relação entre a construção de verdades científicas e o funcionamento da linguagem – e L’archéologie du

savoir, publicada em 1969 – aprofundamento do método esboçado anteriormente – culminando o

autor esta prodigiosa reflexão numa bela síntese – a lição inaugural pronunciada aquando da sua

entrada no Collège de France em 1970, Le ordre du discours914. A historiografia procurou aplicar estas

ideias (nem sempre fáceis de compatibilizar) à produção do discurso na época moderna – visando

uma desmontagem dos “discursos políticos” no Antigo Regime, procurando mostrar a inexistência

914 Tradução portuguesa, Michel FOUCAULT, A ordem do discurso, Relógio de Água, Lisboa, 1997.

210

da sua autonomia e tentando surpreendê-los no âmbito dos conflito sociais, bem como integrá-los

numa intertextualidade mais vasta, recusando a galeria dos autores eminentes915. Todavia, a crítica de

Foucault destinava-se menos à “gestação” seiscentista ou setecentista do “discurso político” e muito

mais à suposta objectividade da metodologia científica em geral e das ciências sociais em particular916.

Ângela Barreto Xavier, ao estudar os tópicos do “discurso político” na Cortes de 1668, deu conta de

várias dificuldades em aplicar o método de Foucault aos discursos de Antigo Regime: a difícil

delimitação do «saber político»; as profundas relações daquela linguagem “política” com a moral; a

fluidez do «arquivo» dos textos seiscentistas, textos atravessados por um oceano de referências; ou a

contraditória «historicidade das noções de “texto”, “autor” e “livro”» aí presentes917. Para já não falar

de toda a “economia cultural” da produção historiográfica que Foucault desenvolveria, até com

alguma violência contra os historiadores, no artigo «Nietzsche, a Genealogia e a História»918.

Postas estas dificuldades, o caminho aqui seguido contorna, talvez um pouco grosseiramente,

estes complexos problemas da produção do discurso, pretendendo apenas sondar, de forma breve,

os conteúdos textuais a propósito da generalização dos «secretários» sobretudo nas instituições

régias, sem a preocupação de qualificar esses discursos no conjunto das relações sociais ou de tecer

grandes considerações ao nível da sua arquitectura interna. Digamos que se pretende apenas recolher

o “estado da questão” no século XVII, de forma a identificar os pontos “sensíveis” da caracterização

dos «secretários» enquanto agentes de um “poder”.

Não seria lógico iniciar esta secção sobre o discurso em torno do «secretários» sem uma

alusão a Maquiavel, autor que, directa ou indirectamente, afectou a produção de inúmeros textos

sobre «secretários»919. O facto de ter sido Maquiavel, ele próprio um secretário, a formular em

915 Sobre o discurso e respectivas repercussões na representação do poder, Pietro COSTA, Iurisdictio, Semantica del potere politico medioevale (1100-1433), Milano, 1969; Quentin SKINNER, «Significação e compreensão na história das ideias» (1969), Visões da Política, Difel, Lisboa, 2005; The Languages of political theory in early-modern Europe, Anthony Pagden (org.), Cambridge University Press, Cambridge, 1987; Pierre LEGENDRE, Le désir politique de Dieu, Études sur les montages de l’état et du droit, Fayard, Paris, 1988; António M. HESPANHA, «Una historia de textos», Sexo barroco y otras transgressiones premodernas, Alianza, Madrid, 1990. Sobre o discurso político seiscentista em Portugal, o clássico estudo, Diogo Ramada CURTO, O discurso político em Portugal (1600-1650), Lisboa, 1988. No contexto ibérico, Xavier GIL PUJOL, «Del Estado a Los Lenguajes Políticos, del Centro a la Periferia, Dos Décadas de Historia Política sobre la España de los siglos XVI y XVII», El Hispanismo Anglonorteamericano: Aportaciones, problemas y perspectivas sobre Historia, Arte y Literatura españolas (siglos XVI-XVIII), Jose Manuel de Bernardo Ares (org.), Córdova, POSCC, 2001, pp. 883-918. 916 M. DEAN, Critical and effective histories: Foucault's methods and historical sociology, Routledge , 1994. 917 Ângela Barreto Xavier, El Rei aonde póde..., pp. 21-28. 918 Michel FOUCAULT, «Nietzsche, la généalogie, l’histoire», Dits et écrits I, 1954-1975, Gallimard, Paris, 2001, pp. 1004-1024. 919 Quentin Skinner, The Foundations of Modern Political Thought, vol. I, The Renaissance, Cambridge, Cambridge University Press, 1978 e Harvey C. MANSFIELD, Machiavelli’s Virtue, Chicago, University of Chicago Press,1996. Para a recepção em Portugal, Martim de ALBUQUERQUE, A Sombra de Maquiaval e a Ética tradicional Portuguesa, Faculdade de Letras, Lisboa, 1974. Para o mais completo enquadramento de Maquiavel no tecido cultural tardo-medieval, recusando uma galeria dos “grandes autores”, Pietro COSTA, Civitas, Storia della Cittadinanza in Europa, vol. I, Dalla Civiltà Comunale al Settecento, Laterza, Bari, 1999.

211

termos «polémicos», uma concepção de poder algo “exótica” – ainda que destinada a momentos

extraordinários das «Repúblicas» quatrocentistas – reveste-se de pleno significado. Vimos que as

raízes da transformação do «governo» se prenderam com os processos de curialização. Sabemos que

«Repúblicas» da Península Itálica, como Florença ou Veneza, influenciaram os reinos da Península

Ibérica. Neste sentido, se colocarmos Maquiavel no contexto dos «secretários» quatrocentistas e

quinhentistas, vemos matizado o referido exotismo dos seus textos. O secretário florentino terá

formulado em termos claros e sintéticos, no contexto de uma cultura propensa ao “debate cívico”, o

que Álvaro Lopes ou António Carneiro praticavam em Lisboa, no século XV, junto do rei de

Portugal920. O que nos interessa destacar são os sinais teóricos de uma transformação silenciosa, em

que a especialização na redacção de documentos foi gerando os seus frutos numa literatura sobre a

organização do poder.

É conhecida a grande importância da teorização impulsionada pela segunda escolástica – e

sua influência sobre o pensamento acerca do poder régio – emergente no seio dos reinos ibéricos921.

A Monarquia Católica destacou-se particularmente no volume de produção, em parte decorrente do

seu activo mundo universitário, agitado pelas exigências que impunha o «governo» de vastos e

contrastantes territórios. Esta teorização, expressa pela multiplicação de «arbítrios» e «tratados» nos

Arquivos espanhóis e portugueses, tem vindo a ser reconhecida como fundamental na formação de

“administrações”, tendencialmente “burocratizadas”, bem como na construção da “política” tal

como surgirá no século XVIII. Mesmo o caso da precoce “modernização” do oficialato francês,

reconhecido até há pouco tempo como preponderante na formação de modelos administrativos

comissariais, é hoje entendido como processo em profundo diálogo com a teorização castelhana922.

Desta forma, percebe-se que os problemas da mutação nos discursos sobre o poder são múltiplos e

complexos.

920 Ver o Cap. I deste trabalho. 921 A reflexão escolástica não deve ser dicotomicamente oposta ao “protestantismo político”, associado durante muito tempo, de uma forma simplista, à emergência da “política” enquanto fenómeno secularizado. A título de exemplo veja-se Pietro COSTA, Civitas…, pp. 158 e ss. As reflexões jurídicas da segunda escolástica não se encontram situadas, em relação ao calvinismo político, numa perspectiva meramente contra-argumentativa. Os “políticos” – assim eram chamados os autores com posições aparentemente secularizantes – foram sem dúvida leitores exaustivos da reflexão jurídica publicada em Coimbra ou Salamanca, na primeira metade do século XVI, sendo que a arquitectura argumentativa das limitações do poder régio, ou mesmo da possibilidade da sua eliminação pela comunidade política, assentam sobre uma dinâmica de proposições irredutíveis, onde não é difícil vislumbrar a seiva agregadora do racionalismo escolástico. Sobre o assunto, Robert M. KINGDOM, «Calvinism and Resistence Theory (1550-1580)», The Cambridge History of Political Thought (1450-1700), J. H. BURNS, Mark GOLDIE (Ed.), Cambridge University Press, Cambridge, 1991, pp. 193-218; Robert M. KINGDOM, Geneva and the Consolidation of French Protestant Movement (1564-1572), University of Wisconsin Press, Droz & Madison, Wisconsin-Genève, 1967; J. Russull MAJOR, The Representative Institutions in Renaissance France (1421-1559), University of Wisconsin, Madison, Wisconsin, 1960. Um excelente levantamento de textos ingleses influenciados por uma lógica confessional, pelo “absolutismo” e pelo “constitucionalismo medieval”, com esboços “proto-democráticos”, influenciados pelo direito escolástico, Divine Right and Democracy, An Anthology of Political Writing in Stuart England, David WOOTTON (ed), Penguin Books, London 1986. 922 Jean-Frédéric SCHAUB, La France Spagnole..., pp. 1-25.

212

Em primeiro lugar, a dimensão da escrita como poder. Diversos textos colocam o problema

do «despacho», da redacção de cartas e da sua importância na sedimentação do poder régio923. A

proliferação de menções textuais aos «secretários» começou com a preocupação da linguagem dentro

do espaço da Corte924.

No início do século XVII, Francisco Rodrigues Lobo, por meio de um texto muito denso,

Corte na Aldeia e Noites de Inverno, destacava a centralidade da redacção de cartas na política cortesã925.

Em Portugal, no entanto, não abundavam textos similares. Em todo o caso, José Adriano Freitas de

Carvalho afirma que, apesar de serem raros os tratados portugueses sobre a epistolografia, do século

XVI e XVII, abundavam tratados publicados em Madrid, Veneza, Roma ou Florença926.

Com esta profusão de textos sobre a excelência da escrita nos usos do poder, seguiu-se a

emergência de textos sobre a selecção dos oficiais régios. Isto porque a ponderação acerca da

selecção dos ministros tendeu a casar-se com os elogios do secretário como especialista da escrita e

do tratamento da informação927. Surgiram então diversos problemas a solucionar: de que forma o rei

resolveria os negócios que não compreendia? Perante a profusão da escrita, como seleccionaria os

seus ministros e que qualidades deviam existir nesses servidores? Que relação devia o rei manter com

esses ministros e de que forma esses ministros se deveriam relacionar com os conselhos e

conselheiros? Devia o rei remeter a outros servidores os seus negócios? Que matérias deviam ser

despachadas pelos ministros e quais deviam ser atribuídas aos oficiais especializados em papéis? As

respostas foram apontando com monotonia para uma preponderância do secretário como voz

fundamental em todas estas escolhas.

Assim, ao longo do século XVII, foram surgindo diversos textos onde se descreve o

secretário como «o coração do rei». Este tópico – cada vez mais disseminado – era o sinal da

preeminência que o secretário ia alcançando na cultura política da época. Em 1619, um «Memorial»

redigido por um secretário da Monarquia Católica pretendia defender a preeminência destes oficiais

923 António de GUEVARA, Aviso de Privados, 1539 e Epistolas Familiares, Valladolid, 1542; António de TORQUEMADA, Manual de Escribientes, (anterior a 1562), 1970; Giovanni Battista GUARINI, Il segretario, 1594. 924 Bartolomeo Zucchi, L’idea del segretario, (1600), Veneza, 1614; Juan FERNÁNDEZ ABARCA, De las partes y calidades con que se forma un buen secretario, Lisboa, 1618; F. GONZÁLEZ TORNEO, Prática de escribanos, Alcalá de Henares, 1640; González GÓMEZ DE LA MORA, El secretario em diez y seis discursos, que comprehendem a todo o genero de ministros, Madrid, 1659; Diego GONZÁLEZ VILLARROEL, Examen y prática de escribanos, Madrid, 1661; Gabriel PÉREZ DE BARRIO, Secretario y Consejero de Señores y Ministros, Madrid, (1613), 1667; Del segretario del Signor Panfilo Persico libri quattro ne’quali si tratta dell’arte, e facoltá del segretario, 1674. 925 Publicada em 1619, em Lisboa, por Pedro Craeesbeck. 926 José Adriano Freitas de CARVALHO, «Introdução», Corte na Aldeia e noites de Inverno, Francisco Rodrigues Lobo, Presença, Lisboa, 1992, p. 73. 927 Frei Juan de SANTA MARIA, Tratado de República y Polícia Christiana. Para reyes y Príncipes y para los que en el gobierno tienen sus veces, Valencia, 1619; Fr. Jacinto de DEUS, Braquilogia de Príncipes, (1671), nova ed. Hipólito Raposo, Porto, 1946.

213

sobre o conjunto dos restantes oficiais régios928. Desta forma entrevemos uma descrição muito

exaustiva dos problemas jurisdicionais que se colocavam à ascensão dos secretários como ministros

indicados para os «negocios publicos». A consciência de que este exercício considerava graves

conflitos impunha, segundo o secretário Diego Valderrama, a construção de imunidades sobre a

«justiça ordinária». As características do exercício deste ofício – a comunicação familiar que, por

escrito e por palavra, mantinham com o rei, a autoridade das afirmações régias que certificavam –

impunham que, pertencendo ao Conselho do rei, desempenhasse funções na elaboração de relações

de «Ordens», «Memoriais de partes», «Resoluções», «Consultas».

Como temos vindo a observar ao longo deste trabalho de forma exaustiva, mesmo sem voto,

a autoridade do secretário residia na configuração do consultado, hierarquizando os argumentos e as

notícias das «Resoluções», adestrando-se manejo dos «papeis». Por isso, Valderrama afirmava que a

mão que tinham os secretários na direcção dos «negócios públicos» era superior aos que votavam.

Exemplificando, sublinhava a influência dos «secretarios de Estado», dos «secretários de Guerra», ou

especialmente do «Secretario del Patronazgo» e da «secretaria de la Camara», oficiais que mantinham

a comunicação directa das «Resoluções» com o monarca, sem que os presidentes dos diferentes

Conselhos ou os conselheiros tivessem acesso a essa informação, antes de ser comunicada às

«partes»929.

Esta perspectiva foi fazendo o seu caminho. Bermudez de Pedraza, um outro influente

secretário da Monarquia Católica, publicou em 1620 um texto muito disseminado e com várias

edições, El secretario del Rey930 e, em 1635, um importante panfleto, Panegírico legal, preeminencias de los

Secretarios del Rey, deducidos de ambos derechos931. Pedraza introduzia um outro elemento metafórico

muito sugestivo. Ao comparar os secretários a «pilotos», «que com industria y vigilância atienden al

govierno destas ancoras politicas [Consejo de Estado e Consejo de Guerra]», sublinhava a sua

capacidade de condução dos reinos. Note-se que a metáfora apontava para duas importantes

928 A polémica vinha no seguimento de um processo dos «Alcaldes» sobre Juan de Paz del Rio, «Secretario de Hazienda», BA, 51 – IX – 10, Governo de España, tomo II, Da Casa Real e Grandes de Castella e Iurisdições, «Sobre las preheminençias de los Secretarios de Su Magestad” [pelo Lic. D. Diego de Tovar Valderrama, s.l., 20 Outubro de 1619», fls. 2-4. Juan Valderrama, filho do «secretário Iorge de Tovar Valderrama, secretário da Monarquia Católica (Felipe II e III) durante 52 anos. Sobre a relação entre os conflitos dos secretários com outros oficiais régios e a emergência das temáticas do «bom governo», Paola VOLPINI, «I confliti di precedenza nella dinamica politica, fiscale e segretario nella monarquia spagnola del seicento», Annali di Storia moderna e contemporanea, 9, 2003, pp. 509-532. 929 BA, 51 – IX – 10, Governo de España, t. II, Da Casa Real e Grandes de Castella e Iurisdições, «Sobre las preheminençias…», fls. 5-7. 930 Madrid, Luis Sánchez, 1620. 931 Granada, António René de Lazcano, 1635. Houve uma 2ª ed. de El Secretario del rey, Granada em 1637 por Andrés de Santiago, onde se reuniu o Panegírico. A 3ª edição de Madrid, em 1720, impressa por Padilla, também incluíu o Panegírico. A edição de 1696, em Nápoles, por Domingo Antonio Panino, apenas incluiu o texto de 1620 e uma apresentação em italiano. Na Biblioteca da Ajuda existe uma «Cópia dos privilégios dos secretários de estado e guerra na Coroa de Castela», recompilados por «Francisco Bermudes de Pedrasa no livro Secretario d'El Rey», BA, 50-V-36, fls. 299v-306.

214

mutações: não só os secretários pretendiam ser encarados como decisores, escolhendo «los negócios

que han de resoluerse, y el quando, siendo los árbitros de la matéria y del tiempo, y los instrumentos

imediatos a V.M. en la correspondência se sus Reynos» como a insistência no tópico da navegação –

notando os conhecimentos “técnicos” do piloto – apontava para uma outra scientia – que não a justicia

– na delimitação da política, reforçando a “acção” do «governo» e não apenas a sua dimensão

conservativa932.

Porém, o fortalecimento do poder dos secretários traria, inevitavelmente, as suas

resistências933. Em meados do século XVII surgem diversos textos contrariando esta nova

perspectiva. Um bom exemplo é o Discurso Político da Excellencia, aborrecimento, perseguição e zelo da

verdade934, onde se apontava para a emergência da «política» protagonizada pelos secretários,

criticando a entrega do «governo» dos reinos a estes «ministros». Aqui se constata, de forma

invulgarmente clara, a emergência de uma “política” considerada como violência do poder régio, o

que leva o autor a opor a estas inovações a tradicional “política” da passividade e conservação (das

«liberdades»). Já se vê que o texto, ao reagir contra a inovação, reagia contra um problema efectivo

na década 1640: a efervescência “constitucional” da Coroa de Portugal que, como relatámos no

capítulo IV, levaria às discussões de 1668, eixo de discussão onde se afrontavam “polissidonia” e

“gabinete”. Segundo o Discurso político, os reis tinham nascido de aumentarem «fantasticamente» os

títulos dos reinos: ou por herança, ou nomeando-se os reis senhores dos que outros possuíam, ou

fingindo senhorios novos e nunca ouvidos, «fabricados no ar de sua vaidade». Os reis tinham ditado,

e alargado, estas jurisdições, conquistando-as e tomando-as por força das armas e de «ardis ilícitos» –

alusão implícita aos secretários – aos seus próprios donos «à custa de sangue e fazenda». Os reis

entregavam depois tudo «á vontade de um privado e de outros ministros semelhantes»935.

Com efeito, adensavam-se duas temáticas: o conflito entre uma política régia “ofensiva” dos

direitos dos vassalos e a eficácia dos secretários, qualificada como “ardilosa”. Na verdade, apesar dos

inúmeros textos em que o secretário parece triunfar como um consensual ministro no serviço do

reino, outros textos há que apresentam uma imagem bem diferente.

Um outro exemplo prende-se com as críticas de Francisco Manuel de Melo condenando o

hábito de os «secretários de estado» observarem todos os «papéis» dirigidos ao rei936. Esta prática era

severamente criticada, pois implicava um jogo de omissões que os secretários podiam utilizar para

932 Francisco BERMUDEZ de PEDRAZA, Panegírico legal, preeminencias de los Secretarios del Rey..., pp. 4-4v. 933 Sobre as críticas aos escrivães – onde pode ser englobada uma tendência de repugnância pela escrita – com as suas «falsidades e extorsões» e a tendência das revoltas (vejam-se os tumultos de 1637) para visar os cartórios e arquivos, António M. HESPANHA, As Vésperas…, pp. 451-453. 934 Lisboa, na Oficina de Lourenço de Anvers, 1647. 935 Discurso Politico…, pp. 327-328. 936 Francisco Manuel de MELO, Aula Política…, pp. 87.

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obterem privilégios indevidos e desequilibrar os poderes na Corte. Esta crítica sublinhava ainda o

facto de o rei despachar sem falar pessoalmente com os conselheiros, para além do inconveniente da

perigosa quebra de segredo daí resultante, sendo que «no aposento donde El Rey despachava, & na

alcova do Conde Duque topavão pela manhã os varredores muytos papéis destes serrados, donde se

comprehendião as consultas dos mayores pontos da Monarchia»937. Da mesma forma, a famosa

crítica de Diogo do Couto, no Soldado Prático, depreciava a diminuição da audiência e da relação oral,

facto que levava a que os reis não tivessem conhecimento de coisas relevantes para o bom governo

de seu Reino, «assi polas não verem, porque não pode ser verem tudo, como polas não praticarem

com quem as tratou, viu, apalpou, porque o que mais falta aos reis é quem lhe fale verdade nestas

cousas»938. Fernando Bouza Álvarez nota que a par do crescimento do peso dos secretários e da

escrita, surgiram uma série de tópicos utilizados no discurso que passavam por uma demonização da

utilização de «papéis». A função dos reis não seria passarem o tempo a «ler e a escrever» mas sim

reinar directamente, sendo «públicos» e acolhendo os súbditos que vinham em busca de «remédios

para as suas necessidades»939.

De uma forma geral, os textos colocavam o problema da sede de «governo», criticando a

emergência de um ministro em substituição do rei (sendo que a própria «majestade régia» se dotava,

deste modo, de novas características)940. A historiografia tem encontrado dificuldades no

enquadramento desta questão, uma vez que a emergência do secretário se confunde em parte com a

emergência do valido. Neste sentido, a fechar este panorama geral sobre os sinais da mutação no

paradigma de governo, importa tecer algumas considerações sobre as relações entre secretários e

validos941.

Tomás y Valiente, num estudo clássico, colocou bem o problema do valido, ou do privado,

como era também hábito designar-se, identificando o caminho para aclarar a questão: a

perspectivação destes «ministros devia apostar numa redução dos aspectos psicológicos, observando

937 Francisco Manuel de MELO, Aula Política..., pp. 88-89. 938 Cit. por Joaquim Romero MAGALHÃES, «As estruturas políticas de unificação», No Alvorecer da Modernidade…, p. 67. 939 Fernando BOUZA ÁLVAREZ, D. Filipe I…, p. 236. 940 A título de exemplo, «Do segredo que hão-de guardar os reis e seus ministros; Se é bom que os reis tenham privados; de outro género de privados; Se é bom que os reis tenham mais do que um privado; Das qualidades dos privados; Como se hão-de haver os reis com os privados; Se os parentes e amigos dos privados hão-de ser excluídos dos ofícios; Conclusão com algumas advertências para os reis e privados; advertências para privados e conselheiros», Frei Juan de SANTA MARIA, Tratado de República y Polícia Christiana..., Valencia, 1619. 941 Existe uma vasta bibliografia sobre o tema pelo que não dedicaremos muito tempo à questão. Ver por todos, El mundo de los Validos, J. H. Elliott & L. Brockliss (org.), Taurus, Madrid, 1999.

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o valimento como uma produção do sistema político942 e na redução dos aspectos individualistas,

relacionado os validos e privados com a actuação dos grupos de Corte943. Podemos ainda acrescentar

a valorização dos aspectos semiológicos, identificando as diferenças entre as designações entre

«valido» e «secretário». Neste sentido, a qualificação de valido não corresponde ao mesmo nível de

qualificação de secretário. A designação de secretário adquiriu muito rapidamente, no discurso

político – e mesmo na produção normativa da Coroa – uma dimensão técnica e prática. Já o valido

evoluiu num plano de qualificação mais simbólica, não tendo qualquer correspondência formal em

«cartas de nomeação». Em todo o caso, existem alguns pontos institucionais que é necessário

comentar.

Em primeiro lugar, fez curso a ideia de que o valido actuava como um coordenador de

secretários. Tanto na Monarquia Católica como na Coroa de Portugal, os secretários foram

normalmente subalternizados pelo valido, subalternização decorrente de duas tendências nem

sempre estruturais mas, apesar de tudo, dominantes: a) a menor qualidade social dos secretários,

provenientes de segmentos universitários e urbanos, sendo o valido normalmente recrutado na alta

nobreza de Corte; b) a maior especialização “mecânica” do secretário, obrigando-o a submeter-se ao

nobre cortesão, numa sociedade estratificada em torno da sacralização do “ócio”. Na verdade, na

Coroa de Portugal, o valimento correspondia a uma qualificação do exercício “político” podendo um

secretário de estado ser acusado de «valido», como sucedeu como Miguel de Vasconcelos, na década

de 1630 ou mesmo a emergência de Francisco de Lucena, após 1640, confirmando-se a dimensão

afectiva e actuante do valimento, protagonizada por um secretário944. Neste caso, a Coroa de

Portugal apresenta uma certa especificidade, já que tanto Tomás y Valiente como José Antonio

Escudero afirmam que o valido adquiriu na Monarquia Católica uma força de actuação institucional

que o secretário nunca logrou alcançar945. Em Portugal, o valido foi em diversas ocasiões um

«secretário de estado», costume tendencial até quase final do século XVIII. Em grande medida, a

especificidade da Coroa de Portugal prendeu-se com a necessidade de criar uma “forma” oposta ao

do valimento castelhano. Porém, do ponto de vista da actuação cortesã, os secretários utilizaram

942 Um bom enquadramento estrutural das repercussões políticas do afecto, Antonio FEROS CARRASCO, «Twin Souls: monarchs and favorites in early seventeenth-century Spain», Spain, Europe and Atlantic World, Essays in honour of John H. Elliott, Cambridge University Press, Cambridge, 1995, pp. 27-47e Pedro CARDIM, O poder dos afectos, Ordem amorosa e dinâmica política do Antigo Regime, Dissertação de Doutoramento, UNL, FCSH, 2000. 943 Francisco TOMÁS Y VALIENTE, Los validos en la monarquía española del siglo XVII, Instituto de Estudios Politicos, Madrid, 1963, sobretudo pp. 34-40. A questão foi tratada de forma exaustiva em Francisco BENIGNO, L’Ombra del Re, Ministri e Lota Politica nella Spagna del Seicento, Marsilio, Veneza, 1992. 944 A título de exemplo, a proximidade de Francisco de Lucena com o rei expressa numa pulseira oferecida pelo Secretário ao rei, e que D. João IV usava diariamente – sublinhando a estima pelo seu Secretário, Leonor Freire COSTA & Mafalda Soares da CUNHA, D. João IV…, p. 134. 945 Neste sentido, TOMÁS Y VALIENTE, Los validos..., pp. 54-55; José António ESCUDERO, Los secretarios…, vol. I, pp. 223-233; José António ESCUDERO, «Introducción. Privados, Validos y Primeros Ministros», Los Validos, José Antonio Escudero (coord.), Dykinson, Madrid, 2004, pp. 15-34.

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recursos similares ao governo “castelhanizado”. Neste mesmo sentido, Pedro Vieira da Silva

desenvolveu um estilo de actuação muito próximo do valimento. O próprio secretário de estado

redigiu, em 1667, um papel onde tratava a «iurisdição authoridade e por que modo» governavam os

«primeiros ministros ou ajudadores dos Reys» a que então chamavam «validos ». Elogiava como

melhor «valido» o duque de Lerma e como melhor «secretario da Corte de Portugal em Madrid,

Fernão de Matos»946.

Por conseguinte, nas últimas décadas do século XVII, o «secretário de estado» da Coroa de

Portugal, recebeu no plano informal do poder, a confirmação desta antiga influência, atingindo uma

preponderância na Corte que só teria paralelo no caso da Monarquia Católica com os secretários das

reformas bourbónicas, ainda que estas rupturas venham a ser matizadas pela historiografia

especializada na “administração”947. Na verdade, considerado como «Primum Mobile» de todo o

reino, a dimensão do «secretário de estado de Portugal era a do «privado castelhano»948. A expressão

era elucidativa. Segundo a cosmologia aristotélica, para além do Primum Mobile não haveria

movimento, nem tempo, nem lugar. Deus, o motor primordial, (o rei) impulsionaria uma rotação no

Primum Mobile (que John Colbatch comparava ao secretário de estado). Este, por sua vez, transmitiria

o seu movimento às restantes esferas (os corpos do reino).

Quais as razões destas diferenças de modelo? Tem sido consensual a ideia de que a

“descerebração” política da Monarquia Católica atingiu níveis que em Portugal se não verificaram949.

Neste sentido, os «validos» terão correspondido a uma mais complexa estrutura de mando – daí a

necessidade de nobilitação social que pudesse defender-se de forma mais eficaz perante um mar de

conflitos. Talvez por isso, em Portugal, na segunda metade do século XVII – perante o crescimento

“burocrático”, o desenvolvimento das secretarias de estado, mas também uma certa revitalização da

polissidonia – tenha sido tentada uma solução de coordenação através da recuperação do «escrivão

da puridade» com as características do valimento castelhano – alta qualificação social,

complexificação da estrutura de decisão ao nível do gabinete e coordenação de um conjunto de

secretários subalternos950. No entanto, a questão mais importante prende-se com a fractura na

prática do poder e não tanto com uma particularidade institucional do «secretário de estado» na

Coroa de Portugal. A questão a sublinhar prende-se com a emergência de uma nova tipologia de

946 IAN/TT, Manuscritos de S. Vicente, «Papel de Pedro Vieira da Silva sobre a jurisdição do primeiro ministro», nº 12, fls. 813-814. 947 Ver por todos M. V. LOPEZ-CÓRDON, «Secretarios y secretarías en la edad moderna, de las manos del Príncipe a relojeros de la Monarquía», Studia Historica. Historia Moderna, 15, 1996, pp. 107-131. 948 John Colbatch, An Account…, p. 179. 949 António M. HESPANHA, História das Instituições…, pp. 345-350. 950 Fr. Francisco do S. SACRAMENTO, Epitome…, p. 5.

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acções levada a cabo por um oficial do rei951. Nesse sentido, tanto «secretários de estado» como

valido apontaram para o mesmo sentido, apesar das eventuais diferenças de legitimação social que

apenas um estudo comparativo e detalhado – entre o modelo social e a produção do oficialato da

Coroa de Portugal e da Monarquia Católica – poderia relevar952.

Concluindo. Como ficou claro, uma sondagem do discurso em torno dos secretários revela a

emergência de uma nova concepção dos usos do poder régio e da sua própria fundamentação.

Qualquer que fosse a caracterização do secretário – como herói ou vilão, como factor de equilíbrio e

violência, como encarnação da decisão virtuosa ou como exemplo da ambição desregrada – os textos

apontavam para uma mutação na prática do «governo». Os discursos, críticos ou apologéticos, são a

poeira de uma luta que iria produzir um novo equilíbrio institucional. A ascensão do secretário seguia

o seu curso, com enorme tensão e conflito, gerando a habitual galeria de ficções e verdades, erguidas

pelos diferentes grupos em confronto.

Para completar a nossa história, resta identificar, no capítulo que se segue, como a “luta” de

Corte se estruturou em torno de quatro grandes vectores: normativização; decisão; representação;

distribuição. Estas quatro áreas fundamentais, que aqui pretendemos identificar, constituíram novos

«operadores de dominação» – para utilizar a expressão de Foucault – transversais a todos os

conflitos. Foi sobretudo através destes novos mecanismos de saber/poder que se produziram os

fundamentos de uma suposta nova racionalidade do «governo», dando origem a uma nova scientia do

poder e transformando o modelo das relações de força. Os secretários conduziram a ficção da

origem do poder do «jurista» para o «político».

951 IAN/TT, Colecção de S. Vicente, «Papel de Pedro Vieira da Silva sobre a jurisdição do primeiro ministro», nº. 12, fls. 813-814. 952 Para uma síntese desta tendência, Ricardo OLIVEIRA, «Valimento, privança e favoritismo: aspectos da teoria e cultura política do Antigo Regime», Revista Brasileira de História, vol. 25, nº 50, São Paulo, 2005, pp. 217-238.

219

VI A “POLÍTICA” NAS VÉSPERAS DO «ESTADO»

Depois de termos avaliado os secretários na conflitualidade entre grupos de Corte, a

evolução normativa da secretaria de estado, a eficácia dos secretários nas instituições da Coroa e os

sinais dessas transformações no discurso político, neste último capítulo ponderam-se os aspectos

funcionais do ofício e a configuração do seu poder específico, agora numa perspectiva mais

estrutural.

Sabemos que em meados do século XVIII, falar dos «secretários» do rei de Portugal era

sobretudo falar de um elemento crucial na dinâmica de poder953. De forma a estabelecer um

inquérito sobre a eficácia dos secretários no domínio do reino, iremos analisar os quatros níveis de

expansão do poder régio, quer ao nível da sua produção numa sociedade de Corte, quer ao nível da

sua construção performativa pela secretaria de estado.

1. Os «secretários de estado» e os novos operadores de dominação.

No que toca à preeminência do «secretário de estado», temos vindo a analisar o processo

sobretudo no espaço da Corte, deixando de lado o complexo problema dos «equipamentos político-

administrativos» e sua extensão no território. Isto porque como explicámos na introdução, a

sociedade de Corte evolui num sistema social em que a eficácia dos “mecanismos de poder” não

deve ser avaliada apenas através do número de oficiais colocados no terreno ou de acordo com a

disponibilidade financeira da sede do poder.

Na verdade, a cultura política seiscentista apontava para um processo de «governo»

partilhado por todos os corpos da «República», aspecto que também a dogmática jurídica e os

tratados de teologia fundavam em três valores essenciais: a Auctoritas expressa na recorrência a

«Juntas» e a «Pareceres» buscando o fundamento da autoridade pelo exercício do saber; a Commmunis

opinio que não deve ser confundida com uma inexistente “opinião pública” mas que atendia ao

953 Depois de uma longa evolução dentro da orgânica política das monarquias modernas, a «Secretaria» era naturalmente associada ao ofício do secretário. Era também o espaço físico, a casa em que costumava o secretário assistir e despachar, «como em Lisboa a Secretaria de Estado». Em algumas «Repúblicas, bem governadas, onde os ofícios são anuais, o de Secretario é perpetuo», para que apenas ele fosse o único registo das deliberações e o depositário inviolável do segredo, «o qual he a alma dos negocios e o espirito que hua vez sahido, nunca mais volta». Deste modo, o «secretário de estado» surge na edição do Vocabulario Portuguez e Latino, num texto claro e denso, como o homem político por antonomásia, Raphael BLUTEAU, Vocabulario Portuguez e Latino, vol. VII, Lisboa, Off. de Pascoal da Sylva, 1720.

220

sentimento dominante dos «Povos», ouvidos por mecanismos tradicionais como a «audiência régia»,

a resposta a «petições» ou as Cortes; e o Auxilium at que consilium que dizia respeito à relação recíproca

dos conselheiros com o soberano, conforme o ancestral pacto entre os maiores numa «cúria régia»954.

Estes elementos fundamentavam um processo de «governo», partilhado, pulverizado, passivo e

conservativo, mas desmultiplicado em miríades de relações de poder por todo o reino, desde a Corte

aos recônditos lugarejos rurais do reino. Convém lembrar que as elucubrações jurídicas da soberania

não expressavam a sede do poder, gerando dominações. Pelo contrário, eram a cobertura ideológica,

produzida pela vida social, que espelhava as relações de poder existentes de facto.

O que vai ocorrer ao longo do século XVII é a lenta desagregação destes fundamentos,

substituídos por novas legitimidades de poder, decorrentes da alteração material da relações sociais

onde a “escrita” desempenha uma das dimensões que irão estruturar a transformação. Pretendemos

identificar as raízes destes novos “operadores de dominação”, a partir dos quais a secretaria de

estado vai emergir no conjunto institucional da Coroa. Como tem sugerido António Hespanha, a

preeminência dos secretários tem uma relação complexa com a desagregação da ordem jurídico-

política corporativa955, não devendo ser reduzida a metáforas mecanicistas. A perspectiva aqui

seguida pretende relacionar a genealogia das secretarias de estado com a transformação dos

fundamentos do «governo». De acordo com Foucault, esta mutação não deve ser procurada apenas

na ordem jurídica e na “prática” simbólica dos Tribunais e Conselhos mas também nas formas

sociais de produção dos sujeitos, ou seja, em nova formulações das relações de poder entre os

indivíduos.

Qual o papel da secretaria de estado nestas relações de sujeição? Na verdade, a secretaria de

estado é o lugar de onde se pode observar com mais nitidez a formação de um novo «governo». Na

medida em que constitui o primeiro resultado da transformação – lembre-se que a escrita foi

considerada o elemento chave –, o secretário é o novo “sacerdote do poder”, depois do jurista,

954 Os Conselhos eram entendidos como expressão do corpo do rei, detentores de dignidade, autoridade e aconselhamento, mas não do poder próprio em sentido estrito, Luca MANORI & Bernardo SORDI, Storia..., pp. 47 e ss. Embora existisse uma divisão entre conselho régio, na tradição da cúria do rei, e conselho representativo, que originará a prática dos Parlamentos e Cortes, dicotomia existente mas exageradamente vincada pela historiografia liberal, ver por todos, José Liberato Freire de CARVALHO, Ensaio Historico-Politico sobre a Constituição do Reino de Portugal, Paris, 1830. Uma excelente síntese da evolução do governo régio e discussão em cortes em António M. HESPANHA, «As Cortes e o reino», Cuadernos de Historia Moderna, nº 11, 21-56, Universidade Complutense de Madrid, 1991, pp. 21-56. A abordagem mais completa pertence a Pedro CARDIM, Cortes e Cultura Política…, sobretudo pp. 97-119. 955 Onde o exercício do poder – dominium iurisdictionis – se traduzia numa multiplicidade de «estados» (no sentido de estatutos jurídicos, privilégios) não necessariamente coincidentes com os indivíduos. Por outras palavras, eram as qualidades funcionais dos indivíduos (pai, senhor, eclesiástico, magistrado ou rei) em relação ao todo – «República» – aquilo que constituía o objecto do poder, sendo este poder, em princípio, expresso pelos direitos e só extraordinariamente pela “força da necessidade”. É em torno desta necessidade que vai construir-se uma nova ordem de legitimidades, procurando unificar as sedes do direito, António M. HESPANHA, «Le droit du quotidien», Conférences Marc Bloch, 1997, [on-line], 24 Junho 2006, http://cmb.ehess.fr/document123.html.

221

protagonizando a criação de novos dispositivos de linguagem para as sujeições: a) normativização –

pela subordinação das opiniões ao conhecimento dados (papéis) constituindo uma liturgia

burocrática (sacralização das ordens escritas); b) decisão – pela subordinação dos Tribunais do reino

ao gabinete, através da apologia da decisão rápida e inequívoca; c) simbolização – por uma ascensão

simbólica (cerimonial de Corte e diplomacia), em que o secretário reforça a sua constelação de

recursos “políticos”; d) distribuição – por uma transformação dos problemas “económicos”, onde a

função doméstica da “oiconomia” e a atribuição de «mercês» vão perder o seu carácter «particular»,

processo em que os «secretários de estado» procuram que o «estado do rei» ocupe todo o espaço da

«República», isolando as decisões do “cérebro” como garante do bem comum do “corpo”,

associando a “economia da graça” ao «governo» do reino.

Façamos uma breve análise de cada um destes pólos de transformação.

a) Normativização: a produção “política” dos papéis.

Tal como Rodrigues Lobo anotou na sua obra Corte na Aldeia, escrever não era outra

coisa que suprir com um instrumento, por meio da arte e das mãos, o que com a voz se não

podia exprimir, alcançando dimensões (no tempo e no espaço) que a voz não podia alcançar956.

Desta forma, entre os factores que caracterizaram a formação do «poder» nos reinos e

monarquias da época moderna, para além dos processos estruturalmente enraizados na formação

do que viria a ser o “estado”, hoje bem descritos por uma extensa bibliografia – tanto no que

toca ao monopólio da violência coerciva, como na formação de equipamentos político-

administrativos –, talvez não tenha ainda sido chamada a devida atenção para a monopolização

da “escrita”. Por outras palavras, é necessário sublinhar o valor da “escrita” e da normativização

do discurso através do registo, no estabelecimento da ordem proto-estadual – o controlo das

identidades e a distribuição dos recursos. Na linha do que afirmou António Hespanha,

chamando a atenção para a ‘civilização da carta bolata’, a multiplicação de «papéis» manuscritos

correspondeu ao triunfo de um função político-social – os «secretários do rei» – cujo raio de

acção, até bem entrado o século XVIII, foi atingindo segmentos cada vez mais alargados.

Seria essencial empreender uma verdadeira avaliação do circuito dos «papéis» na sua

relação com a construção do poder das secretarias de estado. No entanto, essa análise apenas

956 Francisco Rodrigues LOBO, Corte na Aldeia, Ulisseia, s/d, pp. 87-117.

222

seria possível se os Arquivos das secretarias tivessem chegado intactos até nós957. Como tal não

se verificou – tendo desaparecido, decerto, grande parte da documentação no terramoto de 1755

– resta elencar os tipos de documentos em circulação procurando decifrar esta materialização

escrita do poder, verificando com que grau de dominação o secretário de estado interferiu na

construção dessa linguagem. Note-se que a apresentação das normas utilizadas pela Coroa e

Tribunais do reino, entre o final do século XVI e o início do século XVIII, corresponde a uma

malha, cumulativa, onde se entrecruzavam diferentes sedes de poder. Assim, o elenco que se

segue pretende mapear o controlo normativo detido pela secretaria de estado.

Consideremos em primeiro lugar os principais recursos normativos do rei e do seu

círculo mais restrito – «Cartas de Lei», «Leis», «Cartas Régias», «Alvarás», e «Provisões» –

relacionando estas tipologias com os níveis de controlo exercidos pela secretaria de estado958.

Ao longo do século XVII, as «Cartas de Lei» foram sendo aplicadas aos «negócios

públicos» com registo solene do nome próprio do rei, vigorando perpetuamente até revogação

explícita. O rei podia também expressar uma norma através de «Cartas» – tendo a mesma

“força” das «Cartas de Lei» – que funcionavam como providências temporárias cujo efeito devia

durar mais de um ano, devendo a assinatura estar confinada ao artigo «o Rei», «a Rainha», ou «o

Príncipe, El Rei». Qualquer destes documentos, pelo menos depois de 1643, podia formalmente

ser expedido pela Secretario de Estado, não sendo obrigatória a passagem pela Chancelaria959.

Quanto à publicação das «Leis», tendo o mesmo objecto da «Carta de Lei» ficou

estabelecido em 1521, com as Ordenações Manuelinas, alguma formalidade na sua produção

957 Não existem informações seguras quanto às colecções que constituíam o Arquivo da Secretaria de Estado. Uma parte considerável dos «papéis» da Secretaria de Estado devem actualmente constar do fundo Reino do Arquivo Histórico Ultramarino, sendo que os códices manuscritos da Biblioteca da Ajuda terão também, decerto, uma considerável parte da Secretaria de Estado seiscentista. No IAN/TT, o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Ministério do Reino guardam importantes volumes de correspondência dos «secretários de estado». Ver para o caso da Secretaria dos Negócios Estrangeiros, com considerações de ordem mais genérica, Luiz Teixeira de SAMPAYO, O Arquivo Histórico do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Subsídios para o Estudo da Diplomacia Portuguesa, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1925. 958 Sobre as tipologias documentais, José Sintra MARTINHEIRA, «Principais tipologias diplomáticas da Administração central de Antigo Regime», Catálogo dos Códices do Conselho Ultramarino relativos ao Brasil existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, FCG, Rio de Janeiro, 2001, pp. 32 e ss.; Nuno Espinosa da SILVA, História do Direito Português, Fontes de Direito, FCG, Lisboa, 2000, pp. 315-319; sendo a melhor a de Josemar de MELO, A Secretaria de Governo da Capitania de Pernambuco…, pp. 144-147. Em todo o caso, estes textos reproduzem, quase integralmente, duas outras listagens publicadas no século XIX, Francisco Coelho de Sousa SAMPAIO, «Prelecções de direito pátrio, público e particular...», (1794), Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime, António M. Hespanha (ed.), FCG, Lisboa, 1984, pp. 408-413 e Domingos Alvares Branco Muniz BARRETO, Indice Militar de Todas as Leis, Alvarás, Cartas Régias, Decretos, Resoluções, Estatutos, e Editais, Promulgados desde o ano de 1752, até o anno de 1810, com as curiosas declarações da maior parte das Ordens, Cartas Regias, e Provisões, expedidas, particularmente para o Brasil, desde o ano de 1616 em diante, Impressão Régia, Rio de Janeiro, 1812, p. 300 e ss., sendo ainda de grande utilidade os comentários de M.A. Coelho da ROCHA, Instituições de Direito Civil Portuguez, t. I, (8ª edição), Lisboa, 1917, pp. 16-19. 959 M.A. Coelho da ROCHA, Instituições de Direito Civil Portuguez..., p. 17.

223

(circunscrevendo-se o tempo de entrada em vigor da norma – oito dias para a Corte e três meses

para o resto do reino)960. A autenticação da «Lei» fazia-se através da Chancelaria, condição

obrigatória de validação estabelecida desde D. João III em 1534 e ampliada nas Ordenações

Filipinas961. As leis podiam também ser assinadas pelos secretário de estado quando expedida pela

secretaria de estado962.

Numa dimensão mais circunstancial, com menor dignidade, embora a fluidez fosse

muito acentuada, surgiam os «Alvarás», aplicando-se sobretudo a duas situações: indicação para

o registo de mercê, vigorando durante um ano a aplicação do benefício963; ou funcionando como

«Lei» – tendo a mesma autoridade desse formato – mas aplicando-se apenas durante um ano. A

prática das secretarias não seguia este escrúpulo temporal, podendo encontrar-se «Alvarás» que

vigoravam mais de um ano, de acordo com a fórmula extraordinária « e este Me praz, que valha

como Carta de Lei, posto que seu efeito haja de durar mais de um ano, sem embargo das

Ordenações ». Os «Alvarás» deviam ser validados pela Chancelaria embora, também aí, a prática

corrente contornasse esta imposição964. Tal como as «Cartas de Lei» e as «Leis também», também

os «Alvarás» foram ao longo do século XVII produzidos através da secretaria de estado.

No que diz respeito à «Carta Régia» pode dizer-se que, desde 1640-1642, o nível de

interferência da secretaria de estado era considerável. Dada a antiguidade da sua produção no

reino, não se aplicava a necessidade de «Consulta». Eram expedidas pelo rei, autorizadas com

assinatura, declarando a sua vontade e, por isso, aplicando-se mais livremente a actos

voluntaristas de «governo». Expedidas com um «Aviso», e assinadas pelo artigo «Rei», «Rainha»

ou «Príncipe», as «Cartas Régias» serviam os interesses dos secretários de estado pois, ao

inscreverem-se numa decisão do rei – ou do seu grupo de decisão –, eram frequentemente

utilizadas para contornar as «Consultas» dos tribunais quando eventualmente apontavam num

sentido contrário à vontade da secretaria. Além disso, o facto de se inscrever no protocolo inicial

o destinatário da norma garantia uma maior objectividade do poder.

960 João José Alves DIAS, «A comunicação entre o poder central e o poder local, a difusão de uma lei em 1532», Ensaios de História Moderna, Presença, Lisboa, 1988, pp. 129-143. 961 OF, Liv. I, Tit. II e Tit. X. Devendo o chanceler-mor remeter os traslados às Comarcas para difusão das normas. 962 Quando expedidas por um Tribunal ou Conselho podiam ser assinadas pelo seu Presidente. No caso de não existir Presidente do Tribunal deviam assinar dois ministros desse orgão. Os ministros e presidentes dos Tribunais punham o visto, ou assinavam o seu nome, logo acima da subscrição da Carta, abaixo do local onde devia assinar o soberano. 963 OF, Liv. II, Tit. XL. Utilização muito antiga, pelo menos desde as Cortes de 1371, daí as inúmeras cartas de ofício designadas por Alvará, Henrique G. BARROS, História da Administração Pública em Portugal..., t. I, p. 137. 964 Declarando-se no documento que valesse como se tivesse passado pela Chancelaria.

224

A «Provisão» era utilizada para materializar ordens do rei provendo algo em sentido

restrito. Podia resultar da expressa autoridade do rei, na sequência de «Consulta» que subia à

Câmara régia965, ou ser concedida em jurisdição própria a um Tribunal do reino. De uma forma

geral destinava-se a ordens expedidas pelos Tribunais ou Conselhos conferindo mercês, cargos,

dignidades ou ofícios, ou mesmo expedição de instruções ou autorizações para o exercício de

uma “profissão”966. Principiando pelo nome do rei, como as «Cartas», tinham assinatura régia,

beneficiando de toda a autoridade nas matérias próprias da competência dos Tribunais, servindo

de decisão aos requerimentos que fizessem as «partes». As «Provisões» não eram propriamente

normativas, aspecto que competia ao «Príncipe», mas participavam as normas produzidas pelo

rei (assinadas pelos Conselheiros do Tribunal onde eram expedidas). Não podiam derrogar

«Leis», mas apenas dispensar das mesmas, contudo, de forma casuística ou conjuntural. Na

sequência de recursos normativos mais circunstanciais – como «Decretos» e «Resoluções»,

instrumentos que veremos em seguida – podiam também ser expedidas «Provisões» no sentido

de alagar o conhecimento a todo o reino. Porém, também neste caso a «Provisão» não substituía

esses produtos, remetendo-se sempre para o «Decreto» ou «Resolução» a que se referia. Na

verdade, as «Provisões» actuavam no sentido de generalizar ou acentuar um acto de poder, sem

necessidade de repetição do processo de elaboração967. No âmbito da actuação da secretaria de

estado, a utilização de «Provisões» aumentará significativamente podendo aplicar-se à

recuperação de «Ordens régias» já produzidas, mas necessárias à estratégia do «gabinete do rei».

Era este o conjunto de normas mais utilizado na expressão do poder régio, até meados

do século XVII968. Como vimos, os «secretários de estado» beneficiavam de alguma capacidade

de interferência na sua elaboração. Se é certo que no caso das «Provisões» os Tribunais e

Conselhos beneficiavam de larga autonomia nos actos do poder, também a secretaria de estado –

confirmando-se a partir de 1643 como um órgão da Coroa – podia chamar a si essa prerrogativa.

Em todo o caso, é sabido que a utilização destes recursos impunha uma prática jurisdicional que

965 OF, Liv. 1, Tit. III, nº 8 e «Regimento do Desembargo do Paço de 1582», nº XXII. 966 OF, Liv. II, Tit. XLIII e Liv. V. Tit. XI. 967 Segundo Bluteau, «Provisão» era uma «Patente, Alvará ou Título, com que alguém era provido em algum benefício, ou ofício (...)». O desembargador do Paço dispensava em nome do rei, através de «Provisão», algumas leis. Os Tribunais (seculares ou eclesiásticos) podiam também passar «Provisões» em comum entende-se por nomeação, eleição, presentação, confirmação, instituição e colação de um benefício», Rafael BLUTEAU, Dicionário..., vol. VI, p. 808. Josemar H. de MELO, A Secretaria de Governo da Capitania de Pernambuco…, p. 192, recorda que as «Provisões» também podiam ser passadas pelos governadores das capitanias. 968 A um nível um pouco mais «neutro» do ponto de vista da ordem, mas não do seu processo de decisão, a «Carta Patente» divulgava a concessão de títulos, postos militares, podendo também ser assinadas pelo secretário de estado. Tanto as «Pragmática», reformando abusos, sobretudo em torno de vestidos, luto, funerais, cerimonias, carruagens, como os «Estatutos», regulando corporações podiam também ser recursos utilizados pela secretaria de estado, desde que assinados pelo rei.

225

pressupunha inúmeras dificuldades, a começar pelo respeito dos «estilos» institucionais da

própria Coroa. Sobre isto António Hespanha dedicou elucidativas páginas, não restando grande

dúvida sobre os condicionamentos sofridos pelo rei e o seu círculo em muitos destes actos de

poder969.

Não obstante a limitação da secretaria de estado na elaboração dos mais consensuais

recursos de poder, foi surgindo um segundo conjunto de normas, forjado sobretudo ao longo do

século XVII, onde o nível de participação corporativo ia sendo reduzido. Neste sentido, a

“dominação cerebral” da secretaria de estado vai desenhar-se em torno das «Portarias», dos

«Avisos» ou «Cartas dos secretários de estado» e dos «Ofícios».

As «Portarias», eram ordens expedidas pelos «secretários de estado» – com a respectiva

assinatura – em nome do rei, para os Tribunais ou Conselhos (dirigidas aos presidentes ou

conselheiros) no sentido de fazerem cumprir as «Ordens régias». Podiam ser expressas no registo

escrito ou comportar apenas a ordem verbal dada pelo rei a oficiais e ministros. Esta agilidade da

«Portaria» despertou desde cedo inúmeros embargos. Relembre-se que também os Tribunais ou

Oficiais podiam originar «Portarias», sendo consagrado nas Ordenações Manuelinas que nenhuma

fosse dada por quaisquer oficiais, de justiça ou fazenda, sem ordem verbal do rei ou Alvará970.

No entanto, verificou-se a tendência de as «Portarias» relativas aos mais importantes actos de

poder, serem normalmente confirmadas pela secretaria de estado com assinatura régia971. Daí que

os Tribunais não podiam não podiam fazer circular «Portarias» sem «selo régio» ou sem a estrita

ordem régia. Porém, os «secretários de estado», estando na posse dos «selos régios»,

beneficiavam da possibilidade de produzir estas normas, não sendo raras as acusações de que

expediam «Portarias» por iniciativa própria, tal como se verificou com Francisco de Lucena (ver

cap. IV). Na verdade, apesar de ao longo do século XVII terem sido produzidas normas

contrariando a autonomia dos secretários e dos escrivães da Câmara quanto à expedição de

«Portarias», a própria existência dessas recorrentes proibições confirma o uso e abuso deste

mecanismo.

Num nível ainda mais autónomo, os «Avisos» ou «Cartas dos Secretários», generalizados

na segunda metade do século XVII, constituíam ordens expedidas pelos «secretários de estado»,

969 António M. HESPANHA, «Para uma teoria...», pp. 59-82. 970 OM, Liv. II, Tit. XIX ; OF, Liv II, Tit. 40; «Alvará de 25 de Setembro de 1601» repetido e recomendado no «Alvará de 13 de Dezembro de 1604». 971 AHU, Conselho Ultramarino, cod. 13, fl. 1v. A título de exemplo, depois de 1643, as «Resoluções» do Conselho Ultramarino em matéria de mercês de Bispados das conquistas, depois de consultadas as matérias, davam origem a «Portarias» que o presidente assinava. Do presidente seguiam para o «secretário de estado» para aí se passarem as cartas de apresentação.

226

em nome do soberano, directamente ao presidente de Tribunais ou aos Conselheiros de um

Tribunal, ou mesmo a qualquer magistrado, corporação ou particular, pelo qual se ordenava a

execução das reais ordens. A dificuldade em lidar com esta “novidade” era tal que os «Avisos»

das secretarias de estado sofreram ao longo do século XVII, e até bem entrado o século XVIII, a

forte oposição de juristas como Manuel Álvares Pegas ou Ribeiro Sanches. Estes esforçavam-se

por qualificar o «Avisos» como simples «Mandados» sem força de «Lei». O facto de a assinatura

do rei não constar dos «Avisos» abria lugar a esta severa oposição972. Porém, a situação era

contraditória uma vez que os «Avisos» das secretarias de estado eram em muitos casos

considerados ordens do rei, mesmo quando não continham assinatura régia (reconhecimento de

juramento de Cortes, ordem de serviço aos conselheiros de estado, convocatórias de pessoas

com voto em Cortes, confirmação de serviço ao presidente do Senado da Câmara de Lisboa).

Daí que em diversas ocasiões, os «Avisos» fossem utilizados para estabelecer novas disposições e

até derrogar leis973. Se é verdade que estas práticas eram consideradas pelos juristas um «abuso» –

invocando-se contra os «Avisos» as mesmas limitações aplicadas às «Portarias» – a abundante

documentação produzida pelas secretarias de estado e pelas secretarias dos conselhos confirmam

o poder crescente dos «Avisos» ao longo da segunda metade do século XVII974.

No que diz respeito à hierarquização dos oficiais régios, surge uma outra categoria

normativa, os «Ofícios», usados para correspondência dos assuntos correntes entre o oficialato.

Respondeu a uma necessidade de expedição ágil, sem um grande formalismo processual,

permitindo a rápida comunicação interna entre oficiais do rei. Em forma de coluna vertical tinha

uma margem para anotação e desdobrava-se em quatro, sendo ainda lacrado. Permitia que os

oficiais fossem organizando registos actualizados da vida interna das secretarias – instrumento

muito útil aos secretários na consulta dos actos de «governo». Era utilizado recorrentemente na

comunicação entre as secretarias dos conselhos, requerendo documentos e sendo entregue em

mão por um oficial ou através de correio975. Também os «Requerimentos» e «Representações»,

podiam ser usados pelos «secretários de estado» para exercer pressão sobre Tribunais e

Conselhos, ou na solicitação de documentação, ou dando seguimento a pedidos de mercês. Os

972 BNL, FG, Discursos Vários Jurídicos, António Ribeiro dos Santos, cod. 4677, «Se os Reaes Avisos das Secretarias Podem ter Força de Lei», fls. 240-244. O texto de Ribeiro dos Santos advoga a impossibilidade dos «Avisos» valerem como força de lei o que demonstra que esta era uma questão quente até finais do século XVIII. 973 M. A. Coelho da ROCHA, Instituições de Direito Civil Portuguez..., p. 18. 974 Depois de criado o Conselho de Guerra, os seus conselheiros não «tiravam Carta ou Patente do lugar», mas apenas exercitavam o ofício pelo «Aviso» expedido pelo «secretário de estado», António Caetano de SOUSA, HGCRP, vol. VII, p. 108. Sobre a validade jurisdicional dos «Avisos», «Carta Régia de 23 de Junho de 1649»; «Aviso de 25 de janeiro de 1706»; «Decreto de 12 de março de 1706»; «Decreto de 4 de Abril de 1735». 975 Sobre a evolução em Castela, Pedro Luis LORENZO CADARSO, «La correspondencia administrativa en el Estado absoluto castellano (ss. XVI-XVII)».

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«Ofícios», mais genericamente utilizados por todos os secretários das instituições da Coroa, mas

sem o carácter solene dos «Avisos», ou dos «Mandados», podiam também recuperar ordens,

constantes de «Portarias» e «Avisos» dos «secretários de estado» ou mesmo «Escritos» dos

secretários dos Tribunais ou Conselhos976.

Um outro instrumento muito eficaz na preponderância dos «secretários de estado» foi o

«Decreto». Direccionado para situações específicas permitia contornar embargos das normas

régias, estabelecendo alguma coisa singular a respeito de pessoas, «negócio particular»,

declarando, ampliando ou restringindo alguma lei, o que permitia adequar, de forma muito

plástica, os actos de «governo». Estabeleciam, por vezes, «direito novo», podendo o rei explicitar

por intermédio de «Decreto» uma sua intenção normativa anterior. Não tinha forma fixa,

dirigindo-se normalmente a algum ministro ou Tribunal. Lembre-se que durante as reuniões de

Cortes o rei comunicava com cada um dos estados reunidos através de «Decretos»977. Tal como

na Monarquia Católica978, este recurso surge na Coroa de Portugal ligado à prática dos secretários

que procuravam contornar as «ordens» dos ministros e dos Tribunais, por meio de um norma

suficientemente livre de controlo pela Chancelaria mas devidamente reforçada pela assinatura

régia.

Num nível semelhante de autonomia, a «Ordem Régia», era expedida sobretudo para

colmatar imperfeições ou resistências na aplicação de decisões do rei. Daí que surja muitas vezes

promovida pelos «secretários de estado», ministros com influência no despacho, ou mesmo por

um tribunal, no sentido de voltar a orientar uma decisão para um destino específico979.

Como resposta à crescente preponderância das «Consultas» – eficazes na fundação dos

estilos e procedimentos autónomos dos Tribunais, constituindo jurisprudência eventualmente

contrária aos interesses normativos dos secretários – as «Resoluções» determinavam o destino

das «Consultas». Dependendo da matéria consultada, os Tribunais expediam as respectivas

«Resoluções» originando «Cartas de Lei», «Alvarás» ou «Provisões». Na verdade, as fases do

processo de decisão do rei não são conhecidas nos seus procedimentos mais minuciosos, pelo

que não há informações acerca da margem de manobra na elaboração de uma «Resolução»

contrária ao sentido da «Consulta». Contudo, como tivemos oportunidade de verificar, o

976 José Sintra MARTINHEIRA, «Principais tipologias diplomáticas da Administração central…», pp. 32 e ss. 977 Visconde de SANTARÉM, Memórias..., p. 36. 978 Para simplificação documental das «cédulas» e dos «albalaes» surge o «Real Decreto», Pedro Luis LORENZO CADARSO, «La correspondencia administrativa en el Estado…», p. 11. 979 Pedro Luis LORENZO CADARSO, «La correspondencia administrativa en el Estado…», p. 20. Em Castela, dentro do âmbito da expedição de documentos que contornavam os processos administrativos com fácil expedição, pretendia transmitir directamente uma ordem do monarca a quem a deveria executar.

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«Regimento» do Conde Basto de 1663 já recomendava que os secretários pressionassem os

conselheiros a elaborar «Pareceres», no processo de «Consulta», que produzissem resultados

unívocos, o que aponta para uma circunscrição da autonomia das próprias «Consultas» como

expressão do ponto de vista de todas as «partes»980. Neste sentido, quando o Tribunal não

produzia «Parecer», ou este se arrastava, poderiam ser produzidas «Resoluções» dadas como

«Despachos» ou «Portarias» assinados pelos secretários de estado981.

Resta sublinhar o efeito paradoxal dos «Regimentos» no que toca à relação com a

secretaria de estado. O «Regimento» circunscrevia, de modo geral, o «governo» de uma sede

institucional, uma «direcção» do poder982, sendo, assim, a norma que enquadrava as obrigações

dos Tribunais, da Casa Real, dos magistrados ou dos oficiais régios983. Conforme a sua

elaboração, podiam conferir mais ou menos poderes de actuação às instituições da Coroa.

Sabemos que em diversas ocasiões (v. III, IV) os «secretários de estado» coordenaram a

elaboração destes «Regimentos», o que lhe conferia o poder de moldar a actuação dos Tribunais

ou dos ofícios negociando, eventualmente, a forma do articulado jurídico e afectando o controlo

da “burocracia” da instituição criada à secretaria de estado984.

Vistos os instrumentos normativos mais directamente “manipuláveis” pela «secretaria de

estado», deve ter-se em conta um segundo nível de recursos, muito próximos dos modelos

corporativos e jurisdicionalistas, passíveis de colocar problemas às intenções “projectuais” da

«Câmara régia».

Em primeiro lugar, a «Consulta».

A interpretação dos usos da «Consulta» depende muito do seu enquadramento no

sistema de produção documental. Vejamos a sua evolução. Segundo Carvalho Homem, em

meados do século XIV, tomando como exacta a «Hordenaçam como se ham de desembargar as

pitições», documento redigido por volta de 1361985, o «despacho» dos servidores mais destacados

da «Câmara régia» era feito com o rei, em regra, de forma presencial e oral. A generalização da

escrita e a formalização da «Consulta» expôs os assuntos de «governo» discutidos nos Tribunais e

Conselhos, cristalizando-se com isso uma dada fundamentação “técnica” da decisão.

980 «Reg. do Conde de Basto de 1633». 981 Ver, a título de exemplo, o «Regimento do Conselho de Guerra de 22 de Dezembro 1643», Cap. XVI. 982 Rafael BLUTEAU, Dicionário..., vol. VII, p. 199. 983 Armando L. C. HOMEM, O Desembargo Régio..., pp. 60-61. 984 A título de exemplo, o «Regimento da Secretaria das Mercês de 1671» pretende ordenar a prática “política”, revendo o estilo das «Resoluções» sobre os pedidos dos vassalos, as diversas ordens, a ponderação do material normativo – «Leis», «Decretos» – de modo a gerar decisões mais “blindadas”. 985 Armando L. C. HOMEM, «Subsídios para o estudo da administração....», pp. 50 e ss.

229

Na verdade, esta memória – os «estilos» dos Tribunais – colocou uma cunha entre a

vontade do rei e dos seus ministros da escrita e o produto final do «despacho», gerando uma

memória “burocrática” das decisões, organizada em torno das «Consultas» do tribunais, memória

que passaria a constituir uma dogmática prática dos direitos reais, rapidamente invocada como

instrumento de oposição à vontade do rei986. Daí que, segundo D. Francisco Manuel de Melo, na

Corte dos Áustrias, o rei teria tentado dominar os Tribunais precisamente através da substituição

das «Consultas» pelos votos em «papéis secretos e avulsos» manipulados pelos secretários e

validos, não se registando a processo de decisão987. Por outro lado, António Hespanha salientou

que a produção deste saber, expresso nas «Consultas» deve alertar-nos para não confundir a

“política” da Coroa – da Corte – com a “política do rei”988. No entanto, assim como no conjunto

das instituições da Coroa, os interesses dos «secretários de estado» nem sempre eram

coincidentes com o Conselho de Estado, ou outros Conselhos e Tribunais, assim também nestes

mesmos Conselhos, nem sempre os interesses dos presidentes e conselheiros eram coincidentes

com os interesses dos secretários e escrivães989. Podia mesmo tecer-se em volta do «secretário de

estado» uma rede abrangendo secretários e escrivães de outros Tribunais, o que dotava os

redactores das «Consultas» de uma capacidade para neutralizar a oposição dentro dos conselhos.

Precisamente por isso, o significado “político” das «Consultas» é ambíguo, sendo mais

um instrumento dependente de outras relações de força – a própria legitimidade da decisão

assente nas relações conflituais da Corte – do que um entrave permanente ao poder do rei. Esta

memória das «Consultas», sintetizadas em «ementa» ou «rol», serviam em primeiro lugar os

interesses dos escrivães e secretários dos Tribunais e Conselhos, que as seleccionavam conforme

o interesse. Vejam-se os «Avisos» expedidos pela secretaria de estado sobre a forma e regras das

«Consultas dos Tribunais»990.

Além disso, deve ter-se em conta o facto da «Consulta» poder ser solicitada por «Aviso»

do «secretário de estado», oferecendo-se a possibilidade de condicionar a perspectiva sobre a

986 Ver António manuel HESPANHA, História das Instituições…, pp. 351-356 com dois organigramas do despacho régio, baseados na OA (1446-1447) e nas OM (1521). 987 Francisco Manuel de MELO, Aula Política..., p 292 988 António Manuel HESPANHA, As Vésperas..., p 294. 989 Considerando a parcialidade do «secretário de estado», Miguel de Vasconcelos, vemos que era constituída por oficiais régios do mundo da escrita: António Correia, oficial da Secretaria de Estado, Pantaleão Figueira, escrivão do Cível do Porto e depois escrivão da Chancelaria da Corte, Luís Pereira de Barros, contador da Fazenda, Gastão de Melo de MATOS, Panfletos do século XVII, Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1946, pp. 21 e ss. Acerca da relação entre o «secretário de estado» e o controlo de oficiais, secretários e escrivães das instituições da coroa, detentores da memória da ordem, «titularidade da terra, genealogia das famílias, dos direitos do rei e das liberdades das terras», António M. HESPANHA, As Vésperas…, p 522. 990 «Aviso de 17 de Janeiro de 1635».

230

matéria a consultar. Pelo menos a partir de D. Manuel I, deviam constar também os nomes dos

conselheiros que emitissem parecer diferente ao sentido geral do Conselho ou Tribunal – o que é

bastante revelador quando às limitações da «Consulta» como instrumento de oposição ao rei.

Podiam constar ainda os «Pareceres» dos procuradores da Coroa e/ou da Fazenda – consoante a

matéria – podendo, a partir de meados do século XVII, serem solicitados os «Pareceres» de

outros ministros – aspecto que iria constituir outro expediente para contrariar o sentido de voto

dos Conselhos.

Na verdade, como processo de decisão, a «Consulta» integrava elementos que podiam

diluir os aspectos mais activos do poder régio. Porém, como produto acabado das instituições da

Coroa, a «Consulta», fluindo dos Conselhos da Coroa para a assinatura régia e vice-versa, foi-se

tornando ao longo do século XVII sobretudo um instrumento de acesso à informação,

assinalando a evolução “burocrática” da matéria discutida, referindo o nome dos autores ou

requerentes, acumulando perspectivas que podiam ser condicionadas pela «Resolução». Lembre-

se, a terminar, que a «Consulta» decorria na maior parte dos casos de «Ordem régia», já de si,

como vimos, passível de ser potenciada pelo «secretário de estado».

Num outra dimensão – esta sim, muito mais “autocrática” – e constituindo

verdadeiramente um movimento centrífugo, relativamente à dominação documental da

«secretaria de estado», o «Assento» era o documento exarado pelas Relações, considerado

formalmente como meio de interpretação autêntica da «Lei» régia, interpretação delegada pelo

rei, segundo «Alvará» de D. Manuel de 10 de Dezembro de 1518. Na sequência de dúvida na

interpretação das Ordenações, o caso seria levada ao Regedor que a dissiparia em mesa constituída

com desembargadores nomeados ad hoc991. De acordo com a extensa análise de António M.

Hespanha, era essencialmente através dos «Assentos» que as normas régias eram contrariadas992.

Apesar das «secretarias de estado» também possuírem capacidade de produzir «Assentos», estes

eram dificilmente oponíveis quando emitidos por Conselhos ou Tribunais.

Além dos «Assentos», o «secretário de estado», enquanto ministro dotado de poder

formal, podia ser contrariado por outras duas formas documentais que constituíam opinião

específica sobre «o governo». Em primeiro lugar, a «Petição», aproximada da forma epistolar e

dividindo-se em duas partes – uma identificação do assunto ou objecto da petição e uma

991 OM, Liv. V, Tit. LVIII, nº 1, Henrique G. BARROS, História da Administração Pública em Portugal..., t. I, p. 137. 992 HESPANHA, As Vésperas..., pp 498-522. Também aqui convém sublinhar que, no final do século XVII, também as Secretarias de Estado produziam «Assentos», BA, 51 – VII – 46, «Assento da Secretaria de Estado sobre não ser conveniente que o Visitador Apostólico (Patriarca de Antioquia), que vai à China, passe aqueles domínios de S.M. sem mostrar ao dito Senhor os poderes que leva, Lisboa, 24 de Março, 1702», pp. 460-463.

231

justificação do pedido993. Recordemos que Francisco de Lucena foi neutralizado com petições

apresentadas em Cortes. Também o «Memorial» podia ser utilizado para oposição à “política” do

rei, sugerindo alternativas às decisões. Baseava-se numa finalidade informativa apresentada pelas

«partes» – inspirando-se tanto em formas epistolares, em práticas literárias como em argumentos

político-jurídicos, escolásticos, retóricos ou mesmo teológicos. O carácter pouco técnico levou a

que os «Memoriais» fossem utilizados por Vice-reis, Governadores, Ministros, adaptando-os

com formas mais afectivas bebidas na epistolografia clássica994.

Se esboçamos este panorama geral sobre os recursos normativos é porque ele permite

perspectivar o problema do poder das secretarias de estado em duas direcções: em primeiro

lugar, a generalização do formalismo e hermetismo do «governo» ou a constituição da memória

burocrática dos Tribunais, ainda que reforçasse a identidade desses órgãos diante do rei, não

torna unívoco a oposição à política régia. Por outras palavras, importa dizer que o grupo dos

«letrados», composto por indivíduos de variada proveniência – conselheiros, escrivães,

secretários, desembargadores, procuradores – não constituía uma classe homogénea. Neste

sentido, o elenco dos recursos normativos constitui-se como uma paleta de recursos que podia

ou não ser utilizada de acordo com relações de força, concretizadas por outros instrumentos

(ligações pessoais, capacidade de distribuir recursos, capacidade de decisão). Neste caso, apenas

o confronto desta descrição, quer com os níveis de utilização dos recursos normativos pelos

«secretários de estado», quer com a avaliação do seu efeito na dominação dos poderes

concorrentes, pode descrever a eficácia ou ineficácia das oposições dos Conselhos e Tribunais a

um poder centrípeto no espaço da Corte.

Chegamos assim à segunda direcção da perspectiva do poder da secretaria de estado. Na

verdade, a capacidade de intervenção dos secretários no espaço da corte, relevava de métodos

que, não cumprindo a ortodoxia jurisdicional, fazia o seu caminho, facto que se comprova

através da necessidade, sentida pelos grupos lateralizados, em eliminar fisicamente esses

secretários. Perante o reforço dos especialistas em papéis, o jogo político contra o «secretário de

estado» tinha por vezes que abandonar o formalismo, muitas vezes inócuo, dos «Assentos» e

«Consultas». Assim, as entorses ao jurisdicionalismo foram emergindo ao longo do século XVII.

993 Em Castela chegou a distinguir-se entre «Petición» (quando o peticionário ou solicitante pede, invocando uma lei do reino); «Súplica» (quando é apenas um pedido genérico); «Memorial» (quando o pedido surge longamente justificado por uma argumentação), Pedro Luis LORENZO CADARSO, «La correspondencia administrativa en el Estado…», pp. 21 e ss. Veja-se ainda Juan M. CARRETERO ZAMORA, «Algunas consideraciones sobre las Actas de las Cortes en el reinado de los Reyes Católicos, Actas de las Cortes de Madrid de 1510», Cuadernos de História Moderna, nº 12, 1991, pp. 13-45.

994 Pedro Luis LORENZO CADARSO, « La correspondencia administrativa en el Estado…», pp.27-28.

232

A título de exemplo veja-se a sintomática leitura de Pedro Álvares Pereira, secretário do

Conselho de Portugal quando explicava, em 1600, que o avolumar do «despacho», se devia ao

facto de o duque de Lerma, por desconfiança, entregar todos os «papéis» ao «secretário de

estado», Pedro Franqueza995. O controlo dos «papéis» assumia contornos bem definidos quando

os próprios «papéis» dos Conselhos eram retidos pelos «secretários de estado», ou numa

demonstração de força, fazendo lembrar a sua importância no processo da decisão, ou para se

inteirarem acerca de assuntos que, com a devida utilização, poderiam guindá-los a posições de

extrema relevância, como eram por exemplo as propostas de variação da moeda, as mudanças de

tributos, as listas de nomes para mercês régias ou o estabelecimento de precedências996. Em todo

o caso, a prova da relatividade dos recursos normativos - dependentes de outros poderes,

equacionados em seguida - faz-se, por exemplo, através da voracidade dos enviados das Cortes

europeias em interceptar a correspondência informal dos «secretário de estado» em Lisboa997.

Pelo que a correspondência entre o poder dos secretários sobre a informação, e a sua

efectividade jurídico-política, terá que ser avaliada, tanto pela sua quota parte de participação no

processo normativo de decisão, como pela capacidade de submeter os outros poderes

concorrentes no espaço da Corte.

b) Decisão: a luta pela subordinação dos poderes múltiplos

Vimos como a manipulação normativa poderia gerar efeitos de dominação. Todavia, esse

processo não é legível historicamente se não for acompanhado pelo seu efeito colateral: a

avaliação da utilização desses recursos pela secretaria de estado. Ao controlar os significados da

escrita, o «secretário de estado» pretendeu excluir outros potenciais utilizadores, sobretudo os

mais directos concorrentes na expressão do poder régio (Conselhos e Tribunais da Corte). A

ascensão das secretarias passou por minar, na segunda metade do séc. XVII, as prerrogativas de

órgãos como o Conselho de Estado, o Conselho de Fazenda ou o Desembargo do Paço –

instituições que «dispensavam leis, fundavam estilos e assentos como norma jurídica equivalente

995 Cit. por Francisco Mendes da LUZ, O Conselho da Índia…, p. 78. 996 AHU, Reino, cx. 1, pasta 77. Ver «Carta» de Maio de 1610, do «secretário de estado», Cristóvão Soares, ao rei, sobre uma «Portaria» do conde da Vidigueira acerca do despacho de uns papéis no Conselho da Índia. Casos de secretários que retêm «Cartas» originais e «Livros de Registo» das Secretarias, como se terá verificado em 1614 com Martim Afonso de Mexia e Luís de Figueiredo, secretários do Conselho de Portugal, ver Santiago LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal…, p. 261. 997 AGS, Estado, Leg. 2631.

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ao direito régio»998. Como é sabido, os Tribunais eram soberanos em grande parte das suas

apreciações, sofrendo apenas recurso através da súplica ao rei (onde ocorria nova intervenção do

tribunal). Mas também sabemos, depois da magistral análise de António Hespanha, que a

«impunidade dos conselhos e tribunais palatinos sofria, pelo menos desde 1641, tentativas de

limitação»999, além de que os respectivos «Regimentos» dos Tribunais, vinham sendo, em muitas

ocasiões, redigidos e elaborados por «secretários de estado». Além de que está por provar que as

decisões dos Tribunais não pudessem ser contrariadas na secretaria de estado. Assim, não deve

esquecer-se que, nessa única apelação para o rei, também poderia emergir um secretário na

Câmara ou no Gabinete, influenciando as decisões sobre o recurso.

É este o lugar de ponderar, ainda que de forma esquemática, a comunicação entre a

secretaria de estado e os privilégios corporativos dos diferentes níveis “estaduais”, expressos aqui

numa multiplicidade de sedes de poder1000.

Em primeiro lugar, destaque-se, como ponto de partida, o crescimento da estrutura da

secretaria de estado, onde vários oficiais concorriam para providenciar “informações”, passíveis

de serem utilizadas de forma “neutra” pela vontade régia, opondo-as às eventuais oposições de

«Pareceres» e «Consultas». A secretaria de estado, em meados do século XVII, era composta por

um ou dois oficiais maiores, número variado de oficiais menores e Porteiro. Estes oficiais

maiores, adestrados nos meandros da alta política, eram colocados, mais tarde, em lugares de

algum importância (secretários ou mesmo conselheiros dos diferentes tribunais da

Monarquia)1001. Este tipo de relações abria espaço para uma mais ágil comunicação entre os

tribunais e o centro político do reino, processo que se revelou muito eficaz na construção de

clientelas que reduziriam a autonomia dos Tribunais.

Para lá deste crescimento da estrutura secretarial, e gerando efeitos de poder através da

exclusão dos restantes Tribunais no acesso à informação, esteve uma maior preocupação com a

segurança dos «papeis». Era extremamente difícil aceder aos «papéis» do «secretário de estado»,

depositados num «caixão», na sala onde o ministro normalmente despachava. Os ministros que

assistiam o «secretário de estado» estavam normalmente numa outra sala e apenas o «oficial

998 António M. HESPANHA, As Vésperas…, pp 287-288 999 António M. HESPANHA, As Vésperas…, pp 519 ess. 1000 Para uma crítica dos diferentes estados e relação com a mundividência corporativa, António M. HESPANHA, As Vésperas…, pp 324 e ss. 1001 AHU, Reino, cx. 11-A, pasta 5, a título de exemplo, por volta de 1642, antes da nomeação para a Secretaria de Estado, os escritos do juiz dos Feitos da Fazenda, Pedro Vieira da Silva, ao secretário do Conselho Ultramarino, Marcos Rodrigues Tinoco, um antigo oficial da Secretaria de Estado. O filho de Pedro Vieira da Silva, depois «secretário das mercês e expediente», manteria boa correspondência com o secretário do Conselho Ultramarino. Um aviso de 1656 confirma isso mesmo, AHU, Reino, cx. 11-A, pasta 29.

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maior» podia, pontualmente, aceder aos «papéis», por exemplo em «matéria de cifras». Tanto as

Ordenações Filipinas, como diferente legislação extravagante recomendou crescentemente um

controlo sobre os «papéis» entregues pelos escrivães nas secretarias1002. Quanto à relação entre a

secretaria de estado e as restantes instâncias de despacho do Coroa verificou-se uma tendência

de controlo sobre a circulação de «papéis» e delimitação de competências em «matérias públicas».

Por outro lado, foi sendo garantido pelos secretários que os oficiais da «secretaria de estado»

seriam de extrema confiança, sendo impossível interceptar informações, tal como era habitual

com outro tipo de instituições1003. Isto comprova o carácter diferenciado da secretaria de estado,

crescentemente mais funcionalizada e hierarquizada que os Conselhos.

Postas estas breves linhas sobre a maior homogeneidade institucional da secretaria de

estado, também decorrente do seu carácter mais reduzido e especializado, vejamos, então, a

evolução das relações entre a secretaria de estado e os vários dos órgãos da corte concorrentes

na expressão do poder régio, desde finais do século XVI até ao fim do século XVII.

Comecemos por arrumar algumas ideias quanto ao Conselho de Estado.

Muito foi já avançado quanto à “redução” do Conselho de Estado no capítulo em que

descrevemos a emergência da secretaria de estado (v. IV). Resta avançar uma nota de síntese: a

relação privilegiada dos secretários com o rei reforçou progressivamente a sua posição perante

os conselheiros de estado. Como sublinha Ana Isabel Buescu na sua biografia de D. João III, já

em meados do século XVI, Pedro de Alcáçova Carneiro emendava as cartas lidas e discutidas no

Conselho do rei. Vimos como o secretário, anotando e corrigindo os principais “homens

políticos” do reino, perdia, pouco a pouco, o respeito pela superioridade da opinião dos

conselheiros, aprendendo as formas da majestade, saboreando as palavras da ordem1004 ou

mesmo as negociações do casamento de D. Sebastião, em Setembro de 1569, em que Martim

Gonçalves da Câmara compareceu no Conselho de Estado em nome do rei contrariando uma

decisão quase consensual dos conselheiros de Estado. Foram vários os casos em que o rei

recusou, de certa forma, o auxilium et consilium da aristocracia do reino, emergindo o secretário

como portador da decisão régia e de uma proximidade quase enigmática perante o tradicional

fundamento conciliar do «governo»1005. A situação acentuou-se durante o governo dos Áustrias.

Foram vários os «Despachos» do «secretário de estado», Cristóvão Soares, transmitindo com

1002 BA, 51-VI-11, fl. 50. 1003 AGS, Estado, «Carta de 19 de Setembro de 1678», leg. 2634. 1004 Ana Isabel BUESCU, D. João III.., p. 221. 1005 Maria Augusta Lima CRUZ, D. Sebastião..., p. 162.

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severidade aos conselheiros de estado ordens do vice-rei1006. Segundo o «Regimento» do

Conselho de Estado de 1645, quando as matérias subiam para apreciação à «Câmara régia», era

executado assento num «Livro da Secretaria do Conselho de Estado». Assim, o secretário de

estado podia adequar a transmissão das informações do Conselho de Estado à sua estratégia1007.

No reinado de D. João IV, Francisco de Lucena desempenhava uma dimensão fulcral na

coordenação entre o Conselho de Estado e o Conselho Privado do rei, devido ao controlo da

“burocracia” central1008.

Durante a regência de D. Luísa de Gusmão, ocorreram diversas tensões institucionais no

seio da corte, começando a desenhar-se uma certa oscilação entre uma administração de pendor

mais polissidonal e um governo mais “cerebrado” e “executivo”, emergente na secretaria de

estado, onde reunia a principal sede de decisão, a «Junta Nocturna»1009. Com D. Afonso VI

continuou a verificar-se grande indeterminação na estrutura do «despacho» do Conselho de

Estado, o que potenciava ainda mais a acção dos secretários. A nomeação de Castelo Melhor

como «escrivão da puridade» implicou a coordenação de António de Sousa Macedo, secretário

de estado, fazendo a ponte entre o despacho do Conselho de Estado e as decisões do «escrivão

da puridade»1010. A multiplicação de instâncias de decisão pelo Conselho de Estado, «Conselho

do Despacho» e secretarias em muito terá contribuído para enfraquecer a representação sinodal

do poder régio e alimentar as aspirações dos secretários «letrados» associados a D. Pedro II. A

partir de 1670, o Conselho de Estado foi sendo sistematicamente afastado dos processos de

decisão, relegado para segundo plano por uma ‘junta privada’ criada em torno de D. Pedro que

incluía os principais fidalgos do reino1011 e o «secretário de estado». Além disso, o crescimento,

consolidação e especialização dos outros Conselhos concorreria para esta depreciação do

Conselho de Estado, acabando este por se tornar num órgão essencialmente honorífico1012. No

final do século XVII, são vários os assuntos que transitam do Conselho para as resoluções em

«juntas privadas» coordenadas pelo «secretário de estado»1013.

1006 AHU, Reino, cx. 6. pasta 5, «Carta» a D. Estevão de Faro, sobre a má qualidade dos biscoitos que tinham sido adquiridos para a alimentação nas naus 1007 «Reg. do Conselho de Estado de 1645». 1008 Leonor Freire COSTA & Mafalda Soares da CUNHA, D. João IV…, p. 134. 1009 Theodosio de SANTA MARTHA, Elogio Historico da Illustrissima, E Excellentissima Casa de Cantanhede Marialva, Chefe dos esclarecidos Menezes, e Telles..., Manoel Soares Vivas, Lisboa, 1751, p. 469. 1010 Ângela Barreto XAVIER & Pedro CARDIM, D. Afonso VI…, p. 118. 1011 O marquês de Fronteira, o conde de Vilar Maior e o duque do Cadaval, Ângela Barreto XAVIER & Pedro CARDIM, D. Afonso VI…, p. 262. 1012 José Manuel SUBTIL, «A administração central da coroa», O Antigo Regime…, p. 88. 1013 AGS, Estado, «Carta de final de Julho de 1676», leg. 2630.

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Num nível fundamental de oposição, pela tradição de embargos aos actos do poder

régio, deve ser equacionada a Chancelaria.

Já se viu que, ao longo do século XVI, a Chancelaria desempenhava um papel ainda

relevante na confirmação técnica da coerência do direito régio1014. Porém, desde 1624, nem as

«Cartas de Lei», nem as «Leis», podiam ser embargadas na Chancelaria. Como é evidente, esta

reacção do direito régio decorria da possibilidade de se recorrer à Chancelaria para contrariar as

decisões do rei e não apenas como exame das contradições internas do direito. Assim o rei e os

«secretários de estado» procuraram reduzir a Chancelar a uma dimensão de mera confirmação.

Durante o «governo dos Áustrias» foram comuns os ataques régios ao facto de a

Chancelaria em Lisboa, travar «Alvarás» de perdões e comutações», passados pelo Conselho de

Portugal. Os chanceler-mores insistiam contra «Resoluções régias, devidamente vistas e glosadas

pelo secretário de estado, embaraçando as ordens reais1015. Essas ordens, sobretudo as assinadas

por Miguel de Vasconcelos na década de 16301016, chegaram a impor que o salário do chanceler-

mor apenas fosse consignado, após verificação e ordem do «secretário de estado»1017. Neste

sentido, foram considerados os actos da Chancelaria «desobediencia grande da pessoa real» por

«Ordem régia»1018. O «secretário de estado» chegou a chamar ao Paço o chanceler-mor, dando-

lhe uma «reprehensão aspera» advertindo também os desembargadores do Paço, que as ordens

do rei se deviam «obedecer promptamente, e que contra os que assim o não fizerem» se

procederia «com toda a demonstração»1019. Note-se que o fim de Miguel de Vasconcelos não

travou esta tendência. Em 1642, a propósito da alteração da moeda, o «secretário de estado»

Francisco de Lucena, envolveu-se num aceso conflito com o chanceler-mor e impôs à

1014 As «Cartas» e «Alvarás» que não passassem pela Chancelaria não teriam efeitos “executivos”, sendo estabelecidas multas para os oficiais régios infractores (juízes, corregedores desembargadores, contadores, tesoureiros, almoxarifes), OM, Liv. II, Tit. XX. Tantos as «Cartas» como os «Alvarás» deviam levar na subscrição toda a substância do que neles se continha, declarando-se de nenhum efeito aqueles que não cumprissem este princípio, OF, Liv. V, Tit. XX. 1015 OF, Liv.I, Tit. II, nº 3. Estando preso Tomás Fernandes na cadeia da Cidade de Évora e tendo-lhe sido concedido perdão real do degredo de toda a vida para Angola, na sequência da morte de António Luís, foi travado o perdão pelo chanceler-mor e pelo Desembargo do Paço com o argumento de que, segundo as Ordenações, apenas o Desembargo do Paço podia decidir perdões 1016 «Carta Régia de 18 de Agosto de 1638». 1017 IAN/TT, Desembargo do Paço, Livro de Correspondência, (1636), Liv. 13, fl. 134. 1018 A «Carta Régia de 24 de Agosto de 1633» tinha esclarecido o assunto de forma defintiva. A «Provisão de 30 de Novembro de 1607», onde se reforçara os embargos em Chancelaria tinha sido revogada pela «Ordem de 17 de Novembro de 1618» e pelo «Novo Reg. do Conselho de Portugal de 1633». Claro que este emaranhado normativo confirma que, em muitos casos, a questão se resolvia pelas relações de força no interior da corte, uma vez que a profusão de normas servia para todos os sentidos da argumentação. Nesse aspecto, os secretários acumulavam influências. 1019 «Carta Régia de 14 de Fevereiro de 1636».

237

Chancelaria que desse andamento ao processo com a maior brevidade1020. Mais uma vez, apesar

do fim trágico de Lucena, em 1643 foi confirmada a proibição de embargar as «Cartas de Lei» na

Chancelaria1021.

É verdade que a Chancelaria beneficiou até meados do século XVIII de capacidade de

intervir na produção normativa. Contudo, ao longo do século XVII, a Chancelaria sofreria

diversos ataques de limitação, desferidos pela secretaria de estado, quando não eram mesmo

colocados, como chanceler-mor, oficiais da confiança dos secretários de estado, tal como

sucedeu no reinado de D. Pedro II.

Além da Chancelaria, também o Desembargo do Paço foi sofrendo a influência dos

«secretários de estado» na produção de decisões.

Seria pertinente estudar de perto o processo das reformas do Desembargo do Paço em

1568 e 1582 comparando-as com a ascensão dos secretários do rei e do «secretários de estado»,

de modo a confirmar a capacidade de interferência destes últimos servidores1022. Por motivos de

economia interna deste estudo não é possível apresentar esse confronto. Pode dizer-se, contudo,

que ao longo da primeira metade do século XVII, os desembargadores do Paço foram sendo

cada vez mais remetidos a funções «tutelares» e não «directivas», embora lhes estivessem

cometidas as decisões sobre leitura de bacharéis e confirmação dos oficiais dos concelhos1023.

Sabemos que os «secretários de estado» trabalharam para limitar o Desembargo do Paço a uma

competência sectorial, ficando os secretários com matérias gerais de «governo», com especial

destaque para a Fazenda, assim como com o tratamento de questões não pertencentes por

«Regimento» a qualquer outro dos tribunais do reino, antes pertença do Desembargo1024. Com

efeito, os conflitos entre o Desembargo do Paço e a secretaria de estado decorreram, em grande

1020 BA, 51 – VI – 1, Papéis Vários, «Ofícios de Francisco de Lucena para o Chanceler-mor, Fernão de Cabral sobre a moeda e suas respostas, 1642». Na sua «Carta» à Chancelaria constava a seguinte ordem: «Tenho entendido que o Juiz dos Povos inadvertidamente embargou na Chancelaria a lei que mandei passar sobre se cunhar a moeda velha, e da Chancelaria se remeteram os embargos ao Desembargo do Paço e porque a nenhuma pessoa nem Ministro e muito menos ao Juiz do Povo he licito embargar as leis gerais a Mesa sem admitir os embargos faça tornar a Chancelaria a ley para que se selle» fls. 105-110. O chanceler invocava precisamente a dogmática jurídica: a moeda podia ‘fazer-se’ sem a autoridade do rei mas conferir-lhe valor apenas as Cortes o deveriam permitir, «V.Mag não tem obrigação de defender o reino com o que não he justo», «Carta de 12 de Fevereiro de 1642». Assim era no plano jurídico. Acontece que a decisão final de casos como este podia pender para um ou outro lado de acordo com “expedientes” muito pouco, ou nada, jurídicos. 1021 «Regimento de 17 de Fevereiro de 1624» e «Decreto de 16 de Fevereiro de 1642». 1022 Sobre o Desembargo do Paço, «Reg. de 27 de Julho de 1582; «Carta Régia de 9 de Março de 1605»; «Carta Régia de 5 de Março de 1621»; «Alvará de 18 de Janeiro de 1613»; «Decreto de 18 de Março de 1643»; «Decreto de 23 de Março de 1643»; «Decreto de 10 de Setembro de 1646». 1023 António M. HESPANHA, As Vésperas…, pp. 250-251 e biblio. cit. 1024 António M. HESPANHA, História da Instituições..., pp. 358-359.

238

parte, da jurisdição sobre a concessão de ofícios1025. Com D. João IV era comum decorrerem

reuniões entre os desembargadores do Paço, o rei tomando o secretário de estado grande parte

das decisões1026. Num conflito a propósito de uma lei sobre a alteração da moeda, a apreciação

pelos desembargadores do Paço sofreu a contestação do «secretário de estado», escrevendo este

uma violenta «Ordem Régia» obrigando a Mesa do Desembargo do Paço a fazer tornar à

Chancelaria a referida lei para aprovação1027.

Outro aspecto significativo na limitação do Desembargo do Paço prende-se com a

progressiva ingerência da Secretaria de Estado em matéria de jurisdições dos Tribunais. Foi o

que ocorreu na década de 1660, quando o «secretário de estado das mercês e expediente»,

Gaspar de Faria Severim, foi consultado acerca das dúvidas de jurisdição entre o Conselho

Ultramarino e o próprio Desembargo do Paço, a respeito da circulação documental1028. A

tendência para especializar em sectores os aspectos do «governo» estreitava progressivamente –

pelo menos do ponto de vista prático – o âmbito das matérias de «graça tocantes à justiça» – até

meados do século XVII, o grosso dos assuntos civis do reino – potenciando outras vias de

decisão e seccionando o relevante «despacho» ultramarino. A título de exemplo, notem-se, entre

1662 e 1664, as «Consultas» do Conselho Ultramarino feitas ao rei D. Afonso VI sobre

precedências dos conselheiros, para que fossem examinadas no Conselho recusando-se a

interferência do Desembargo do Paço1029. Do mesmo modo eram solicitados todos os «papéis»

do Brasil depositados no Desembargo do Paço, reclamando-se toda a jurisdição de partes

ultramarinas à excepção das nomeações de «ministros de letras»1030.

Neste sentido, depois da limitação do Desembargo do Paço, o Conselho Ultramarino e a

sua nova massa de «governo» foram atingidos pela secretaria de estado.

O controlo sobre os «papéis» das conquistas, com especial destaque para a atribuição de

ofícios, constituiu o nervo da tensão entre as secretarias de estado e o Conselho Ultramarino1031.

Cumpre lembrar que a criação do Conselho, entre 1642 e 1643, respondeu a uma necessidade de

1025 IAN/TT, Desembargo do Paço, «Registo das consultas do Desembargo do Paço junto da Secretaria de Estado, 1654-1700», Livs. 50-63. 1026 IAN/TT, Desembargo do Paço, Liv. 50, fl. 4v. 1027 BA, 51 – VI – 1, Papéis Vários, «Ofícios de Francisco de Lucena para o Chanceler-mor, Fernão de Cabral sobre a moeda e suas respostas, 1642». 1028 AHU, Reino, cx. 12, pasta 7. 1029 AHU, Conselho Ultramarino, cx. 1, doc. 41. 1030 AHU, Conselho Ultramarino, cx. 1, doc. 48. 1031 Após a extinção do Conselho da Índia em 1614 recomendou que toda a documentação do Conselho fosse remetida aos secretários e aos escrivães da fazenda e câmara e que, daí em diante, os papéis destinados ao Conselho da Índia fossem remetidos ao Conselho da Fazenda, à Mesa da Consciência e Ordens, e ao Desembargo do Paço.

239

organizar os «papéis» que corriam pelas secretarias de estado. Neste sentido, o Conselho

começou por pedir ao rei que ordenasse o envio de todos os «papéis relativos à Índia e às

conquistas presentes na secretaria das mercês e nos demais conselhos e tribunais». O rei acedeu e

ordenou à «secretaria de estado e mercês» que remetesse esses papéis1032. No entanto, a ambição

dos secretários de estado e das mercês sobre o “poder” do Conselho Ultramarino pode medir-se

pelos inúmeros problemas que logo foram colocados ao «despacho» das conquistas. Enquanto

os conselheiros ultramarinos reivindicavam a aplicação do «Regimento do Conselho das Índias

de 1604» onde se concedia a «Consulta» e «eleição» dos «cargos dos bispados e os lugares

eclesiásticos das conquistas»1033, o «Regimento» de 1643 dispunha que as mercês, depois de

consultadas pelo Conselho Ultramarino, e despachadas pelo rei, fossem remetidas ao secretário

das mercês para passar os despachos que emanassem das resoluções. Os conselheiros opunham-

se a partilhar o processo de decisão com o secretário das mercês ou o secretário de estado – cuja

interferência podia ser decisiva no momento em que o rei produzia a «Resolução» das

«Consultas». Não podendo contrariar esta tendência, os conselheiros enviaram para o rei duas

cópias do seu «Regimento» para que, colocadas essas cópias nas secretarias de estado e na

secretaria das mercês e expediente», estas secretarias não interferissem excessivamente na

circulação documental e agissem de acordo com o estipulado1034. Por outro lado, a secretaria de

estado procurava neutralizar o conselho e em 1645, um «Aviso» do secretário de estado, Pedro

Vieira da Silva, ao presidente do Conselho Ultramarino, ordenou que se remetesse à secretaria de

estado uma lista de pessoas subordinadas ao Conselho, bem como listas de todos os criados dos

conselheiros e mais pessoas que neles servissem1035.

O aumento dos oficiais em serviço foi seguido de perto pelo secretário de estado, que,

em 1646, escrevia ao secretário do Conselho Ultramarino comunicando a necessidade de copiar

«Consultas» e reenviá-las para a secretaria de estado1036. Assim, a rápida multiplicação do

expediente levou a que em 1657 fossem requisitados a D. João IV mais oficias para servirem na

secretaria do Conselho, processo sempre vigiado de perto pela secretaria de estado1037. Esta

prática manteve-se e foram vários os pedidos feitos pelos secretários de estado aos secretários do

1032 AHU, Conselho Ultramarino, cod. 13, fl. 3v 1033 AHU, Conselho Ultramarino, cod. 13, fl. 1, no Reg. de 1604, o Conselho determinava através de «Consultas» das mercês passando-se depois «Portarias dos despachos com que as consultas se resoluião». 1034 AHU, Conselho Ultramarino, cod. 13, fls. 11-20. 1035 AHU, Conselho Ultramarino, cx. 1, doc. 17, «Aviso ao Marquês de Montalvão D. Jorge de Mascarenhas». 1036 AHU, Ultramar, cx. 1, doc. 44. 1037 AHU, Conselho Ultramarino, cx. 1, doc. 30, a Secretaria do Conselho Ultramarino funciava desde 1643 com três oficias. Em 1734 foi solicitado um Porteiro que servisse também como guarda-livros reproduzindo a orgânica da secretaria de estado, AHU, Conselho Ultramarino, cx. 2, doc. 220.

240

Conselho Ultramarino pedindo cópias de «Consultas»1038. Daí que se estreitassem as ligações

entre secretarias de forma a evitar a demora dos processos em consulta1039. A relação entre a

secretaria de estado e a secretaria do conselho ultramarino reforçou o peso de ambos os

secretários, secundarizando a posição dos conselheiros que viam muitas vezes as «Consultas»

serem seleccionadas segundo o interesse da secretaria de estado, impondo mesmo o circuito da

assinatura real, não permitindo a interferências dos conselheiros1040.

Na segunda metade do século XVII, o período de governo do conde de Castelo Melhor

como «escrivão da puridade» acentuou a tendência de comunicação entre secretarias com uma

clara subordinação do «despacho» do Conselho Ultramarino à secretaria de estado que, neste

caso, era coordenada pelo próprio conde de Castelo Melhor. O «escrivão da puridade» procurava

que os interessados em «papéis» destinados à assinatura real, não os obtivessem directamente

pelo secretário do Conselho mas seguissem antes pela via normal1041. Entre 1662 e 1668 surgiu

uma volumosa correspondência entre os secretários de estado e os secretários do conselho

ultramarino a propósito do curso dos «Regimentos» e «Instruções» elaborados na Câmara Régia.

Os secretários de estado emitiam ordens por «Avisos»1042 procurando obter informações sobre

«Consultas» de «Requerimentos» colocados ao Conselho por “criaturas” da Secretaria de Estado,

de forma a acompanhar a satisfação dos seus desígnios “políticos”1043. A extensão destas redes

pode medir-se pelos «bilhetes» dos secretários do conselho ultramarino prometendo ofícios de

justiça, fazenda e guerra, por intermédio da secretaria de estado1044, na mesma medida em que se

intensificava a comunicação entre o secretário das mercês, Pedro Sanches de Farinha, e o

Presidente do Conselho Ultramarino1045.

Na década de 1670, os «secretários de estado» continuaram a controlar a vida do

Conselho, solicitando informações1046 ou exercendo influências1047. Sobretudo a partir do

governo de D. Pedro II, a correspondência entre a Coroa e os corpos “políticos” das conquistas

– Governadores, Câmaras, Provedorias da Fazenda, – fazia-se geralmente pela secretaria de

1038 AHU, Ultramar, cx. 1, doc. 61. 1039 AHU, Conselho Ultramarino, cx. 1, doc. 56. 1040 AHU, Reino, cx. 12, pasta 5. 1041 AHU, Reino, cx. 12, pasta 5. 1042 AHU, Rio de Janeiro, cx. 4, doc. 19. 1043 AHU, Reino, cx. 12, pasta 7. 1044 AHU, Reino, cx. 12, pasta 8. 1045 AHU, Reino, cx. 12, pasta 5. 1046 AHU, Rio de Janeiro, cx. 4, doc. 74. 1047 AHU, Rio de Janeiro, cx. 4, doc. 77.

241

estado, sendo depois consultado o Conselho Ultramarino1048. A partir de 1683, data da coroação

de D. Pedro II, intensificou-se o controlo da secretaria de estado sobre todos os Conselhos e

Tribunais do reino1049, sendo que as «Consultas» mais relevantes das matérias ultramarinas como

avaliação de medidas de «governo» solicitadas pelos governadores eram remetidas para o

«secretário de estado»1050. Este correspondia-se intensamente com o presidente do Conselho

Ultramarino e coordenava a prioridade das «Consultas»1051. Daí que cerca de 1703 fossem

habituais os «Pareceres» do Conselho Ultramarino relembrando que inúmeras matérias já tinham

sido tratadas por «juntas na Secretaria de Estado» e fazendo notar que a informação

disponibilizada devia afectar a resolução1052. No âmbito das nomeações de ofícios de guerra, o

«secretário de estado» solicitava ao Conselho Ultramarino «Pareceres» sobre os processos de

avaliação dos candidatos, sendo que a confirmação formal se fazia pela secretaria de estado.

Com efeito, no início do século XVIII, a secretaria de estado foi absorvendo as

«Consultas» de «Requerimentos» sobre remuneração de serviços, interferindo também, como

vimos (v. IV), no «despacho» da secretaria das mercês, e condicionando a circulação de «papéis»

no Conselho Ultramarino1053. Este alargamento das matérias de estado ao «governo» das

conquistas, e em concreto aos requerimentos de «partes» teria óbvias consequências na

“redução” das matérias de Fazenda à secretaria de estado1054. A agilização de ordens de

pagamentos, bem como o controlo das remunerações passariam por uma subordinação do

Conselho da Fazenda que trataremos com mais detalhe na alínea c) deste capítulo, uma vez que a

dimensão distributiva da Fazenda constitui, por si só, um dos quatro pontos chave da

transformação do paradigma de poder1055.

1048 Códice Costa Matoso, Luciano Figueiredo & Maria Verônica Campos (coord.), vol. 1, Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, Belo Horizonte, 1999, p. 331. O «Reg.» do ouvidor-geral do Rio de Janeiro, lavrado no Conselho Ultramarino, em 1669, assumia já a estreita comunicação entre as Secretarias. O aumento dos rendimentos do secretário do Conselho foi assegurado pelas propinas que as câmaras das comarcas de todas as conquistas tinham que pagar, sendo compelidas ao efeito pelos ouvidores, AHU, Conselho Ultramarino, cx. 2, doc. 195. Mesmo as correições e visitas, em caso de infracção, eram remetidas ao rei, pelo secretário do Conselho Ultramarino. Sobre esta questão, ver a importante tese de licenciatura de Marília Nogueira dos SANTOS, Deste seu servidor leal e dedicado : a correspondência de Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho no governo-geral do Estado do Brasil (1690-1694), UFF, Niterói, 2004. 1049 AHU, Ultramar, cx. 1, doc. 86 e cx. 1, doc. 88. 1050 AHU, Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 26 1051 AHU, Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 27. 1052 AHU, Rio de Janeiro, cx. 7, doc. 75 e D. 780. Ver também AHU, Conselho Ultramarino, Consultas do Rio de Janeiro, cod. 232, fl. 192. 1053 A titulo de exemplo, os «Pareceres» sobre oficiais de Artilharia do Rio de Janeiro, AHU, Rio de Janeiro, cx. 9, doc. 54 e cx. 9, , doc 60, doc. 963 e doc. 966. 1054 AHU, Reino, cx. 1, pasta 180. 1055 AHU, Reino, cx. 1, pasta 181

242

Continuando a descrever a “redução” de um conjunto de instituições, deve ter-se em

conta a relação atribulada da secretaria de estado com a Mesa da Consciência e Ordens durante a

integração na Monarquia Católica.

Em primeiro lugar, um conjunto de «Cartas Régias» obrigou à explicitação dos «votos»

individuais, o que provocou a reacção dos deputados1056. O conhecimento das indicações de

voto, permitia ao círculo do rei actuar de uma forma mais incisiva no trabalho da Mesa. Nesta

sequência de controlo, o «secretário de estado» referia em 1637 que não pertencia à Mesa da

Consciência qualificar os «serviços e respeitos» através dos quais se faziam as mercês1057. Sugiram

então diversas «Ordens Régias» dadas pelo «secretário de estado» obrigando a Mesa da

Consciência a confirmar mercês sem prorrogação de tempo1058. A situação agudizou-se em 1639,

ordenando-se o envio para a secretaria de estado de uma «Relação» com todas as «Cartas régias»

enviadas à Mesa da Consciência desde 1635, onde à margem se anotariam que aspectos do seu

conteúdo estavam já resolvidos e que assuntos permaneciam por despachar – dando justificação

das razões que tinham impedido o seu «despacho»1059. Claro que a conjuntura favorecia esta

ingerência, não sendo possível apresentar informação detalhada sobre o nível de interferência

dos secretários no «despacho» da Mesa. Em todo o caso um «papel» do tempo de Francisco

Correia de Lacerda (1670-1674) refere que se decidiam lugares afectos à Mesa da Consciência

pela secretaria de estado, como as «cadeiras grandes da Universidade de Coimbra»1060. Assim, fica

a indicação que também no foro da consciência, os «secretários de estado» iam acumulando

ingerências.

Um aspecto central desta avaliação sobre o fortalecimento dos actos de poder com sede

na secretaria de estado diz respeito aos magistrados.

Um primeiro exemplo diz respeito ao influente juiz dos feitos da Coroa da Casa da

Suplicação – curiosamente futuro secretário de estado – Pedro Vieira da Silva1061. Na década de

1056 «Carta Régia de 31 de Dezembro de 1603» e «Carta Régia de 3 de Outubro de 1610»; António M. HESPANHA, As Vésperas..., pp. 251-252. 1057 «Carta Régia de 8 de Maio de 1637». 1058 «Carta Régia de 29 de Novembro de 1638». 1059 «Carta Régia de 14 de Outubro de 1639». Os escrivães da mesa tinham um mês para enviarem à Secretaria de Estado o conteúdo, sob pena de perderem os seus ofícios. 1060 IAN/TT, Manuscritos de São Vicente, vol. 12, fl. 521. 1061 BNL, «Carta que escreveu Pedro Vieira da Silva na morte do Bispo de Leiria, 16 de Abril de 1664», Memorias Historicas e Politicas, Eclesiasticas e Seculares do Reyno de Portugal, t. 1º compilado e escrito pela mão de D. Josefa Juliana de Mendonça Monterroy e Mascarenhas, cod. 11365, fls. 60. Tendo que julgar se os bens que as Igrejas possuíam com encargos de missa, denominados aniversários, se compreendiam debaixo das leis que proibiam as Igrejas de possuírem fazendas de pais sem licença dos reis, Vieira da Silva julgou não estarem as Igrejas debaixo destas leis, afirmando o mesmo quanto a processos específicos relativos a variadas igrejas, aprecidados em anexo.

243

1630, o Juiz produziu uma «Sentença» negando a incorporação de uma porção considerável de

rendimentos pela secretaria de estado. Os «secretários de estado», Diogo Soares e Miguel de

Vasconcelos, não permitiram a escrita e publicação da «Sentença» mandando que o Juiz e

adjuntos votassem novamente o caso. Repetindo-se a votação ordenaram que o Juiz escrevesse

um papel com os fundamentos das «Sentença» para se remeter a Madrid. Apesar dos magistrados

de Madrid terem corroborado a decisão do Juiz dos feitos da Coroa, na sequência do processo,

Vieira da Silva foi enviado para Castelo Branco por «despacho» do «secretário de estado�.

Na verdade, o peso dogmático dos magistrados e da justiça, como garante do equilíbrio

natural da ordem, ia sendo gradualmente questionado pelos actos de poder do rei e dos

secretários, ainda que a isso não correspondesse ainda uma nova “dogmática social do direito”.

Pode ler-se um sinal desta perigosa ingerência num «Assento» da Relação de 1663, onde se

confirmavam as suas prerrogativas perante os «Avisos» dos «secretários de estado»1062. Na

verdade, os «Decreto» dos «secretários de estado» podiam já conformar os actos dos

magistrados, mas não os «Avisos». O «Assento» dizia respeito ao facto de o rei ter chamado os

juízes para recomendar «matéria de justiça» – a propósito de uma condenação à morte –, estando

presente o Regedor e lendo o «secretario de estado» em nome do rei uma «breve practica» que

recomendava o sentido da decisão. Os juízes retornaram à Casa da Suplicação sentenciando

segundo o acordado pela leitura do «secretário de estado». De forma ainda mais clara, a

aposentação do chanceler da Casa da Suplicação, em 1666, veio confirmar a protecção régia da

secretaria de estado. Através de um «Escrito», o chanceler teria reagido às ordens do «secretário

de estado» com «estilo e palavras» que a Coroa considerou não ser adequada a um ministro

detentor do protagonismo do chanceler. Por conseguinte, foi aposentado imediatamente1063.

No final do século XVII, estas ingerências dos «secretários de estado» ganhavam

contornos mais definidos. Em 1695, alguns incidentes com os atravessadores de pão resultaram

em «Escritos» do «secretário de estado» repreendendo os Juízes de Fora por permitirem que as

câmaras impusessem licenças. Os documentos esclareciam que por meio da observação sobre a

matéria na secretaria de estado – por desembargadores do Paço e o Procurador da Coroa – se

1062 «Assento CXI de 11 de Agosto de 1663». «Resolução porque Sua Magestade sustenta a Relação na sua antiga, e devida auctoridade, em virtude de huma proposta, com que a mesma Relação lhe representou as suas antigas prerogativas, como Tribunal Supremo da Justiça I. de não receber avizos de Sua Magestade pelos Secretarios de Estado, senão por Decreto: 2. de estar na posse de não ser chamada, mas honrada com a presença dos Reis, quando elles hão por bem presidir na Relação ao Julgado de algum Feito, 11 de Agosto de 1663». Na sequência de OF. Liv. I, Tit. I, nº 37 e 38. 1063 «Aponsentação de 6 de Fevereiro de 1666».

244

devia permitir o livre comércio do pão1064. No início do século XVIII verifica-se o aumento do

número de «Ordens» destinadas à Casa da Suplicação, como por exemplo as medidas acerca das

desordens na cidade de Lisboa, em que se ordenava ao conde regedor da Casa da Suplicação que

nomeasse ministros criminais1065. Assim, não obstante o prestígio dos juristas na circunscrição do

campo “político”, avaliando das prerrogativas ordinárias e extraordinárias do poder régio,

começa a verificar-se, entre o último quartel do século XVII e o início do século XVIII, o

aumento das situações em que a necessidade da intervenção, ainda que não justificada

dogmaticamente, potencia «Decretos», «Escritos» e «Avisos» dos «secretários de estado»

enquadrando a acção dos magistrados.

Num âmbito algo diferenciado, deve indicar-se a situação de ingerência dos «secretários

de estado» ao nível de instituições mais dificilmente disciplináveis pelo direito régio. Assim

passaremos em revista o caso da Inquisição, das Cortes e das Câmaras do reino.

Comecemos pela Inquisição.

No final do século XVI, a secretaria da Inquisição, antes directamente dependente do

inquisidor-mor, passou a ser controlada pelo «secretário de estado». Na década de 1630,

acentuou-se esta dependência. Diogo Soares, por óbvias razões de controlo da informação foi

nomeado secretário da Inquisição. Pouco tempo mais tarde o Conselho de Estado e o Conselho

Geral do Santo Ofício determinaram que os «negócios do Santo Ofício do reino» subissem

imediatamente à presença do rei pela mão do «secretário de estado»1066. A situação manteve-se

até ao século XVIII, sendo Diogo de Mendonça Corte Real, «secretário de estado», pelo menos

até 1736, data da sua morte, o «secretario e notario da Inquizição», ofício de que tinha «Carta, e

Sellario»1067. Não existem estudos que permitam observar com detalhe o alcance do «secretário

de estado» sobre os processos inquisitoriais. Em todo o caso, deve notar-se que os amplos

poderes facultados à secretaria de estado com esta participação no processo “burocrático” da

inquisição, apontam mais uma vez para uma dimensão não jurídica e não dogmática de um

poder muito eficiente.

1064 Tendo ambos a opinião que «os almocreves poderiam comprar pão para carregarem suas bestas e o levarem a qualquer parte do reino» não devendo as câmaras impor necessidade de licenças. «Declarações que El-Rei Nosso Senhor manda fazer a todos os Julgadores das Comarcas» de 11 de Agosto de 1695. 1065 EFO, X, 1ª parte, «Carta de Agosto de 1702 do secretario de estado José de Faria ao Presidente do senado da camara», p. 131. 1066 Através de «Provisão» de ministro e secretário dos referidos negócios ao secretário de estado, IAN/TT, Conselho Geral Santo Ofício, mç. 42, doc. 5. 1067 BPE, «De como os secretários de Estado obtiveram o tratamento de Excelência, da reforma das secretarias no tempo de D. João V, e um breve juizo crítico sobre os secretário de estado, Pedro da Motta e Silva, António Guedes Pereira e Marco António de Azevedo Coutinho», Cv/ 1 – 7, fl. 114v-118.

245

Outro dos aspectos centrais no domínio das secretarias de estado prende-se com a

comunicação entre o rei e as câmaras do reino. Se pensarmos que nos núcleos urbanos o poder

da Coroa se efectivava de uma forma mais “macia” – sobretudo no plano ideológico – dada a

posse destas terras ser geralmente pertença da Coroa e não senhorial, veremos que as cidades,

por via de uma concepção «proto-racionalista, treinada nos métodos “burocráticos” e nos

processos quantitativos de avaliação» cederam mais rapidamente à capacidade de influência das

secretarias de estado, sobre a influência dos escrivães e das suas redes de influência1068. A imagem

“maquinal” do reino como “república das repúblicas” terá potenciado a intervenção dos

«secretários de estado» no controlo financeiro das câmaras, sensibilizando os concelhos para os

problemas gerais da Fazenda na sua articulação com a tributação1069.

Neste sentido, e sendo a análise aqui esboçada centrada na Corte, utilizaremos o Senado

da Câmara de Lisboa, até pelo seu carácter de cabeça da «República» – em crescendo desde 1630

– para perspectivar a influência da secretaria de estado no âmbito “cidade”. O Livro de reis – onde

se anotavam as mais significativas ordens – possui diversas normas onde se verificam acertos

sobre o modo de «governo» da cidade, ordenadas e assinadas pelos «secretários do rei», primeiro,

e, mais tarde, pelos «secretários de estado»1070.

Várias são as determinações em matéria de «despacho»: regulação dos dias da vereação,

proibindo aos vereadores despacharem os feitos fora da Câmara, obrigando o vereador a

despachar na Câmara e aumentando para quatro dias o despacho1071; determinação da maneira de

julgar os embargos postos às sentenças da Câmara1072; aumento do despacho de petições1073;

determinação para os oficiais que votassem contra assinarem as «Consultas»1074, ou mesmo

elaboração dos «Regimentos»1075. Um segundo aspecto da intervenção régia no Senado da

Câmara de Lisboa, levada a cabo pelos secretários, prende-se com indicações sobre Fazenda,

1068 António M. HESPANHA, As Vésperas…, pp 435-438. 1069 Sobre a dimensão ideológica desta representação, António M. HESPANHA, As Vésperas…, pp. 374-382. Sobre as resistências dos Concelhos à expansão do poder régio, António M. HESPANHA, As Vésperas…, pp 352-380. 1070 Documentos do arquivo histórico da Câmara Municipal de Lisboa, Livro de Reis, VI, Lisboa, 1962 (DAHCL). 1071 DAHCL, «Carta Régia», Almeirim, 7 de Maio de 1510 – escrita pelo escrivão da Câmara Nuno Fernandes, tresladada no Reg. da Câmara, ordenada pelo secretário de D. Manuel, p. 10. 1072 DAHCL, «Ordem de 17 de Novembro de 1528», pelo escrivão da Câmara Cristovão Magalhães, p. 26. 1073 DAHCL, «Regi. de 1567», ordenado pelo Escrivão da Câmara, Cristovão Magalhães, p. 51. 1074 DAHCL, «Carta Régia», Almeirim, assinado por Martim Gonçalves da Câmara, 3 de Março de 1574, p. 77. 1075 DAHCL, «Reg. novo da Câmara», 30 de Julho de 1591, feito por escrivão «por mandado de Lopo Soares», secretário, e subscrita por Miguel de Moura, escrivão da puridade, pp 85-86. «Reg. dos Procuradores da Cidade, 10 de Outubro de 1592» e «Provisão contendo o Reg. dos Procuradores da Cidade» passada pelo escrivão (João de Araújo) e subscrita pelo «escrivão da puridade», Miguel de Moura, onde evidentemente surgem as preocupações de registo em Tombo, vigia da prestação de contas do tesoureiro da cidade, registo das rendas da cidade alugadas, despacho das demandas e seu registo em livros, p. 89. «Reg. provisório da Câmara, Lisboa, 5 de Setembro de 1671», «Francisco Correia de Lacerda o fez escrever» onde se verifica (41 capítulos) um extenso controlo das acções da câmara, p. 179.

246

como a ordem para devolução de «privilégios» – permitindo que os oficiais de Lisboa voltassem

a entender em matéria de Almotaçaria1076 – ou mesmo a extinção das Alfândegas dos «portos-

secos»1077. Em terceiro lugar, deve ainda considerar-se a produção dos «Alvarás» de nomeação

dos presidentes e vereadores do Senado1078, o consequente estabelecimento de mercês1079 ou de

indicações sobre medidas a tomar em desavenças1080. É certo que esta produção normativa se

enquadra no conjunto normativo da Coroa, não apontando para os clássicos instrumentos dos

secretários de estado com os «Decretos» e «Portarias». Em todo o caso, indicam o crescente

protagonismo dos escrivães, como redactores, e dos secretários, como oficiais que põem em

prática a decisão do rei, confirmando a cristalização da autoridade em torno da secretaria.

Este protagonismo seria assinalado pelos confrontos com o Senado da Câmara a

propósito do pagamento de «propinas». Em 1662, Pedro Vieira da Silva foi substituído por um

novo secretário (v. IV) mas requereu contra o Senado, solicitando a continuação dos

pagamentos e citando o «síndico» da cidade diante do corregedor do cível da corte1081. O

incidente revela que o «secretário de estado», mesmo despojado do poder formal, beneficiava de

um poder efectivo, arrogando-se citar um procurador da câmara sem «Provisão» do rei. O

senado teve que pedir ao rei, D. Afonso VI, a determinação do caso alegando não poder pagar

aos dois «secretários de estado»1082.

Na verdade, estes foram usando a sua influência para alcançar sucessivas «Sentenças»

contra o Senado, obrigando os oficiais da Câmara a pagar o valor de propinas,

1076 DAHCL, no seguimento de uma «Carta Régia de 30 de Julho de 1518», e «Carta de confirmação de 17 de Dezembro de 1575» ordenado por Duarte Dias (secretário) e assinada por Martim Gonçalves da Câmara, p. 78. 1077 DAHCL, retira a «merce feita» em Tomar 1581, ao «levantar dos portos secos para que mercadorias e fazendas não pagassem direitos» uma vez que desta merce feita à câmaras «resultava somente o proveyto particular... e não ao geral dos povos..» resolvendo o rei «reduzir esta merçe a cousa de que todos recebessem benefficio...», «Carta Régia 6 de Outubro de 1590» e «Carta Régia de 12 de Outubro de 1590». É enviado o contador-mor dos contos do rei para restabelecer os portos secos nas câmaras do reino. Documento assinado em Lisboa por Miguel de Moura, secretário do Reino, p. 79. 1078 DAHCL, diversos «Alvarás» e «Provisões» de nomeação, assinadas por secretários, para provimento do presidente do Senado da Câmara. A título de exemplo, «Alvará de nomeação, Lisboa, 22 de Junho de 1591», estabelecimento de um «presidente fidalgo» e «seis vereadores letrados», «secretário Lopo Soares fez escrever», p. 82. 1079 DAHCL, «Carta Régia de 24 de Julho de 1618», sobre certa prerrogativa do presidente da Câmara de Lisboa. O presidente da Câmara, «consultado o Desembargo do Paço» recebe comunicação do rei podendo ter assento «nos actos públicos» em almofada de veludo, sendo o assento dos vereadores apenas de couro, passada por Cristovão Soares, p. 87. 1080 DAHCL, «Carta Régia» sobre as desavenças entre vereadores e oficiais da Câmara. Datada de Lisboa, 20 de Março de 1602. No sentido de o presidente evitar desordens e ofensas, mandado calar vereadores e oficiais (mandando-os «sair para casa») até resolução do vice-rei, «escrita por Luis Falcão e ordenada por Cristovão Soares», p. 124. 1081 O novo «secretário de estado», António de Sousa Macedo, recebia 96.000 rs de propina pelo trabalho dos papéis, EFO, VI, 1ª parte, p. 547. 1082 EFO, VI, 1ª parte, p. 549. Em 1665, o «secretário das mercês», Gaspar de Faria Severim, obrigou a câmara a estender a propina.

247

independentemente de os secretários estarem ou não em serviço1083. A sua capacidade de

intervenção na Corte possibilitava exercer pressões no sentido de obter benefícios1084. Em 1668,

as intenções do Presidente do Senado da Câmara para receber o «ordenado, propinas e

emolumentos» do seu lugar de presidente da Câmara, apenas foram alcançadas pelo «secretário

de estado», Pedro Vieira da Silva, que moveu a sua influência para desbloquear a situação1085.

Outro factor determinante do controlo sobre o Senado diz respeito à tributação. Na

segunda metade do século XVII, a contabilidade da cidade de Lisboa, em matéria de

contribuição para a guerra, foi motivo de violentos conflitos1086. O Senado recusava-se a entregar

os «Livros», mas António de Sousa de Macedo, através de «Portarias» e «Decretos»1087 obrigou o

senado a pagar1088. Parece claro que os secretários conseguiam contrariar as Câmaras em

jurisdição própria, tal como sucedeu em 1703, quando o «secretário de estado» impediu os

vereadores de Lisboa de arrendarem «todos os bens e rendas da camara» ordenando que se não

inovasse na matéria1089.

Na verdade, quanto a inovações, desde meados do século XVII que a secretaria de

estado vinha assumindo a comunicação entre o rei e o senado da Câmara1090. No contexto da

guerra da sucessão de Espanha, era a secretaria de estado quem comunicava ao Senado os

«Decretos» e «Resoluções» do Conselho de Guerra1091. Também no que respeita à circulação

documental se fez sentir a pressão. Por se entregarem nas secretarias dos Tribunais e Conselhos

negócios de «partes», sendo que o rei reservava para a secretaria de estado o conhecimento do

sentido de votação dos «ministros», ordenava-se ao Senado da Câmara que as «Consultas»

1083 Em 1670, o «secretário de estado», Francisco Correia de Lacerda, pressionava o senado para receber propinas da câmara, obrigando a câmara a recorrer novamente ao rei para evitar pagamento a mais do que um secretário. Na verdade, o bloqueio judicial podia também ser utilizado pelos secretários. Com efeito, conseguiram uma resposta régia, de 16 de Julho de 1670, onde constava que matéria estava posta em «juízo» e determinada pelos «meios ordinários». A 29 de Julho o senado envia uma réplica lembrando ao rei que Pedro Vieira da Silva já havia alcançado uma sentença contra o senado, e que Sousa de Macedo em breve iria conseguir o mesmo, o que significa que o senado teria de pagar quatro propinas em simultâneo, EFO, VII, 1ª parte, pp. 242-246. 1084 EFO VII, 1ª parte, p. 451. Em 1673 António de Sousa de Macedo enviou um papel à câmara de Lisboa procurando escusar-se a pagar a contribuição da limpeza. 1085 EFO VII, 1ª parte, p. 57. 1086 «Decreto de 10 de Outubro de 1662». O «secretário de estado» instava a câmara a enviar os livros do real d'água, tanto do vinho como da carne entre 1654-1655 e 1666. 1087 EFO VI, 1ª parte, p. 369. 1088 EFO VI, 1ª parte, p. 405. Um «Decreto de 4 de Novembro de 1662» sublinhava as dívidas do Senado. Por «Portaria de 19 de Janeiro de 1663». 1089 EFO, X, 1ª parte, «Carta do secretario de estado José de Faria ao escrivão do senado da camara, 5 de Julho de 1703», p. 195. 1090 Pelo «Decreto de 7 de Junho de 1681», sendo que o porteiro do senado devia ir todos os dias a essas Secretarias receber os maços que nelas lhe fossem entregues, EFO, VIII, 1ª parte, p. 421. 1091 EFO, X, 1ª parte, «Carta do secretário de estado Diogo de Mendonça Corte Real ao presidente do senado da Câmara, 17 de Fevereiro de 1707», pp. 343-344.

248

remetidas deviam ser entregues aos «secretarios de estado e mercês»1092. Pode opor-se a esta

argumentação a especificidade do Senado da Câmara de Lisboa. Porém, é esta mesma

superioridade – quer do ponto de vista da teoria prático-política, como cabeça da «República»,

quer no plano dos factos, pelo prestígio social do presidente e vereadores de Lisboa – que torna

surpreendente a enérgica intervenção da secretaria de estado.

Por último, algumas notas sobre as Cortes.

Importa recordar que o próprio «secretário de estado» desempenhava as tarefas

“burocráticas” de maior importância: elaborava e assinava o «mandado», afixado no Paço e

«lugares publicos», onde se ordenava às «Pessoas com voto em Cortes» a comparência no local

indicado; lia a «fórmula do Juramento» na sessão de abertura, jurando depois o próprio

«secretário de estado» como «escrivão da puridade»1093; recebia as procurações do juramento dos

estados com registo dos participantes e das matérias; assistia à «redução» dos eleitos pelo estado

da nobreza a fim de circunscrever o número de «definidores» que iriam votar efectivamente os

negócios – processo que teria de ser aprovado pelo rei mas cujos resultados eram comunicados

por «Aviso» do «secretário de estado»1094. Além disso, era ainda o «secretário de estado» quem

comunicava às cortes os principais «negócios» perspectivados pelo rei, dando respostas às

«partes» sobre «Consultas» várias, comparecendo na sala de reuniões fazendo discurso e

propondo resoluções em nome do rei1095. De resto, o «secretário de estado» determinava o curso

das reuniões, apresentando, em articulação com um ministro da Coroa, e o próprio rei, as

matérias extraordinárias a serem submetidas à discussão1096. Por intermédio de «Decretos», ou

«Pareceres» previamente elaborados, podia tentar influenciar os debates e tentar conduzir as

análises mais complexas, como eram as discussões em torno da fiscalidade.

Neste sentido, se pensarmos que a produção normativa em cortes foi sofrendo ao longo

do século XVII alguma erosão, perdendo para a intervenção do círculo restrito do rei, não é

difícil adivinhar aí a especialização do secretário de estado, assenhoreando-se da informação

1092 «Decreto de 21 de Maio de 1707». 1093 Visconde de SANTARÉM, Memórias…, pp. 21-22. O «secretário de estado» prestou juramento como «escrivão da puridade» pelo menos até 1674, Visconde de SANTARÉM, Memórias …., p. 26. 1094 Visconde de SANTARÉM, Memórias …., p. 35. 1095 Visconde de SANTARÉM, Memórias …., p. 42. 1096 Pedro CARDIM, Cortes e Cultura Política…, pp. 122 e ss.

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sobre os pontos quentes na negociação e encontrando alternativas de comunicação entre os

«estados» e o poder régio1097.

d) Representação: prestígio externo, cerimonial e dissimulação.

O terceiro aspecto determinante na ruptura da prática de poder dos «secretários de

estado» prende-se com a capacidade de potenciar, de polarizar, um tradicional dispositivo da

sociedade de Corte: a dimensão simbólica do poder. Três eixos devem ser tidos em conta no

processo de capitalização simbólica da secretaria de estado: a depuração do estatuto cortesão, a

participação no cerimonial e a experiência na representação diplomática.

Analisemos em primeiro lugar as questões da experiência diplomática.

Desde os reinados de D. João II e D. Manuel I, os secretários do rei eram

“naturalmente” escolhidos entre os secretários das embaixadas1098. Assim, associada à experiência

diplomática vinha necessariamente uma nova áurea do poder. Com efeito, logo com António

Carneiro e Pedro da Alcáçova Carneiro, ainda em meados do século XVI, os secretários

começaram a assumir grande responsabilidade «na eleição de parte dos dignatários enviados às

cortes europeias»1099. Começa a formalizar-se na secretaria de estado o modo de escrita, cartas de

pessoas reais1100 «relações de sucessos», missivas para embaixadores, instruções, modelos de

cartas, «copiadores», cartas do rei – a fim de constituírem modelos para a prática diplomática1101.

Neste sentido, a esmagadora maioria dos «secretários de estado tinham participado em

«enviaturas» diplomáticas. António de Sousa Macedo sublinhava que a experiência como

secretário de uma embaixada enviada a Londres em 1642 e a residência junto do rei de

Inglaterra, tinham desenvolvido a capacidade de negociar mercês1102. Na segunda metade do

século XVII a experiência em Cortes europeias vai determinar as nomeações. Mendo de Fóios

1097 Sobre este assunto, Pedro CARDIM, «Entre o centro e as periferias, A assembleia de Cortes e a dinâmica política da época moderna», Os Municípios no Portugal Moderno, Dos Forais Manuelinos às Reformas Liberais, Colibri, Universidade de Évora, 2005, pp. 167-242. 1098 Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre os Secretários dos reis...», p. 30. 1099 Pedro CARDIM, «A diplomacia portuguesa no tempo de D. João III...», p. 636. 1100 BA, 51 – II – 14, «Regimento da Secretaria de Estado em que se contem o modo porque os Senhores Reys de Portugal escrevem a seus vassallos, e aos Principes e outras pessoas de fora do Reyno, e o estilo porque se ão de firmar, e fazer as Cartas na Secretaria p.ª el Rey assinar, Cartas da Infanta Clara Eugénia de 1570- 1637», fls 1-44v. 1101 IAN/TT, MNE, Secretaria de Estado, «Inventario dos livros cartas dos Principes e Ministros asistentes nas Cortes Estrangeiras. Assentos do Concelho de Estado e de Juntas O qual se fes no anno de 1716», Liv 19. contendo uma «Memoria das Cartas que se achão nesta Secretaria de Estado dos Embaixadores, Inviados, e Ministros que forão mandados a Roma atrar dos negocios desta Coroa» do século XVII. 1102 BPE, cod. CVI / 2 – 8, fls. 206-208.

250

Pereira, José de Faria e Diogo de Mendonça Corte real foram enviados cuja experiência dos

assuntos externos potenciou muita da sua capacidade de intervenção nos «negócios públicos»1103.

Daí que a emergência da secretaria de estado como cabeça do poder passasse inevitavelmente

pela transformação da cultura política europeia e da própria sociedade de Corte, onde a

intervenção dos reinos europeus e o estabelecimento de alianças e parcialidades externas passou

a determinar o próprio jogo de poder em torno do rei e, consequentemente, a sorte e a fortuna

dos «ministros».

Um segundo eixo de polarização do poder toca a especialização cerimonial do «secretário

de estado».

Convém recordar que a dimensão cerimonial passou para o «secretário de estado» com a

lenta absorção das funções do «escrivão da puridade», onde estava já compreendido um

significativo conjunto de prerrogativas nas cerimónias de corte1104. Este controlo desenvolveu-se

sobre duas sensíveis ocasiões da organização da sociedade de Corte, onde se jogava muito do

acesso à pessoa real: os momentos de consolidação dinástica por meio dos casamentos, e a

transmissão do poder, pela contratualização dos ritos de juramento. Como sabemos, controlar o

figurino do cerimonial era deter a chave do acesso ao poder. Convém recordar que a importância

de um saber especializado no cerimonial não se prende com uma mera questão de simbologia.

Passemos em revista alguns exemplos significativos. Na cerimónia de aclamação de D. Sebastião,

em Lisboa, na sala grande do Paço da Ribeira, vemos que toda a cuidadosa organização do

cerimonial, enquadrada por «Regimento» próprio, ficou a dever-se ao trabalho do secretário

Pedro de Alcáçova Carneiro1105. Da mesma forma foi este secretário quem leu solenemente,

perante o Conselho de Estado, os «apontamentos» de D. João III e o «Auto de aceitação,

ratificação e aprovação da curadoria, tutoria e governação de D. Catarina» facto que, segundo

1103 AGS, Estado, «Portugal, 1694», Leg. 4040. Sobre a secretaria da Embaixa de Portugal em Madrid, AGS, Estado, «Portugal, 1686-1688», Leg. 4035. 1104 Ao longo do século XV, D. Diogo da Silva de Meneses, conde de Portalegre e «escrivão da puridade» entre 1495-1502, iria assumir a condução do cerimonial em diversos momentos relevantes: casamento de D. Manuel com D. Isabel (1497), partida dos reis para Castela a fim de serem jurados príncipes (1498), nascimento de D. Miguel e morte da Rainha (1498), morte do Príncipe D. Miguel (1500), nascimento do Príncipe D. João (1502), Conde de TOVAR, «O Escrivão da Puridade», Estudos…, pp. 141-142.Bem entrado o século XVII, a memória da importância do «escrivão da puridade» em matéria de festas cortesãs ainda se encontrava bem presente, IAN/TT, «Memória do secretário de estado Pedro Vieira da Silva do que pertence ao ofício de Escrivão da Puridade», Manuscritos de S. Vicente, vol. 43, fls. 43-51. Para uma boa síntese dos principais temas subjacentes à representação de corte, cerimonial e conflitualidade, Diogo Ramada CURTO, A Capela Real, um espaço de conflitos, séculos XVI a XVII, Separata da Revista da Faculdade de Letras, Linguas e Literaturas, anexo V, Espiritualidade e Corte em Portugal, Porto, 1993, pp.144-154. 1105 Maria Augusta de Lima CRUZ, D. Sebastião…, p. 42.

251

Maria Augusta Cruz, terá permitido ao secretário adquirir uma dimensão crucial no equilíbrio de

poderes, representando a «vontade e tenção do monarca falecido»1106.

A integração na Monarquia Católica não afectou a importância do «secretário de estado»

no controlo das festas reais1107. O secretário Miguel de Moura continuou a destacar-se nos

cerimoniais que juraram D. Filipe I como rei de Portugal1108. Esta ligação entre secretaria e

cerimonial também se verificava no sentido inverso, já que os notários mais notabilizados na

organização do cerimonial poderiam vir a servir como secretários1109. A preponderância no

cerimonial, além do já afirmado quanto à anexação das competências do «escrivão da puridade»,

devia-se também à competência organizativa dos secretários. Por exemplo, em momento

sensíveis, como a preparação das Cortes de 1619, no contexto da visita de D. Filipe II a

Portugal, o acesso às mais adequadas formas das cerimónias apenas podiam ser encontradas nos

bem apetrechados «papéis» dos secretários, como nessa altura sucedeu com Francisco de

Lucena1110.

Depois de 1640, os secretários foram fundamentais na recuperação das velhas tradições

cerimoniais do reino, numa busca incansável de definir o corpus das celebrações da realeza1111.

Esta preparação dos «actos públicos da monarquia» permitiu transformar a Secretaria de Estado

1106 Mais especificamente, o rei teria sugerido que o Cardeal D. Henrique coadjuvasse e servisse a rainha durante a «regência» na menoridade de D. Sebastião. Este «acrescento» não estava contemplado nos apontamentos e por isso o testemunho do secretário assumiu foros de legitimação “política”, dada a sua proximidade institucional junto do monarca falecido, Maria Augusta de Lima CRUZ, D. Sebastião…, p. 40. 1107 IAN/TT, Corpo Cronológico, «Carta de 21 de Setembro de 1598 de Francisco de Távora, pedindo ao secretário de estado Cristóvão Soares instruções nas ceremonias que devia fazer, assim pelo falecimento de El Rey, como pela Acclamação do Principe», parte 1, mç. 120, nº 103. 1108 É como «secretário» que surge no «Auto das Cortes de Lisboa, congregadas no ano de 1579», J.L. PRAÇA, Colleção de leis e Subsidios…, p. 148. Mandou o rei que o Secretário lesse o Juramento na forma declarada, «E lido o juramento de verbo ad verbum em voz alta, e intellegivel, logo os ditos Estaos fizerão o Juramento...,»p. 150. Elenca depois as testemunhas presentes, Chanceler-mor, Desembargadores do Paço, Chanceler da Casa da Suplicação, Chanceler da Casa do Cível. Veja-se também «Auto e Juramento que fez o duque de Bragança a 4 de Junho de 1579», p. 154 e o «Assento e Auto de Juramento que fez o Senhor D. António 13 de Junho de 1579», p. 156. Ver também António Caetano de SOUSA, Provas…, t. III, pp. 421-429. 1109 No «Auto do Levantamento e Juramento de D. Felipe I» são Lopo Soares e Valerio Lopes, que desempenham as funções geralmente acopladas de «Escrivães da Camara e Notarios públicos», J.J.L. PRAÇA, Colleção de leis e Subsidios…p. 177. São anexadas as «Provisões» em que são feitos notários públicos «Lopo Soares e Valério Lopes», «E mando que ao dito Acto e estormento que delle passar se dee tam interia fee e credito como por direito se deve dar as escrituras feitas por Notarios publicos». Valia sem passar pela Chancelaria, J.J.L. PRAÇA, Colleção de leis e Subsidios…, p. 191. 1110 Santiago LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal…, p. 283. 1111 Ângela Barreto XAVIER, «El Rei aonde póde…», p. 20.

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no espaço privilegiado para a intimidade régia1112. Por outras palavras, todo o “comportamento

público do rei” foi sendo encerrado pela escrita do poder, segundo a especialização do

«secretário de estado». Deve aqui sublinhar-se que na “construção do estado”, a emergência da

secretaria de estado como face visível do poder, correspondeu a uma obnubilação da pessoa

régia, cada vez mais manietada por funções formais de representação1113.

Deve destacar-se neste processo o trabalho de Pedro Vieira da Silva. Com efeito, o

«secretário de estado» circunscreveu todos os momentos determinantes da Corte, «Regimento

para as exéquias do príncipe D. Teodósio» em 1653, «Memorias que pertencem ao Funeral do

Senhor Rey D. João 4º» em 16561114. Pode verificar-se a importância do controlo sobre estes

actos públicos pelo facto de na véspera e no dia do enterro de D. João IV só terem tido acesso à

Igreja as pessoas que constavam do «papel» redigido por Vieira da Silva1115. Deve sublinha-se que

estes momentos eram determinantes na relação de forças entre parcialidades, deixando o

secretário numa posição privilegiada1116. O «secretário de estado», orientou também o cerimonial

de levantamento e juramento de D. Afonso VI – dando indicações ao rei e a todos os presentes,

lendo em voz alta os termos do juramento recebendo, pela sua mão, o juramento de todos

dignatários, mesmo os Títulos do Reino – bem como o plano do seu funeral – escolha do

cortesão que teria a dignidade de pegar no caixão e todo o meticuloso procedimento com o

corpo do monarca defunto – tendo sido o novo Secretário de estado, Roque Monteiro de Paim,

1112 Ver a título de exemplo, IAN/TT, Colecção de S. Vicente, «Formulario dos Tratamentos que D. Afonso VI dava os reis, Pirncipes, republicas e outras pessoas quando lhes escrevia na língua latina; e do modo como o conde de Castelo Melhor, Escrivão da Puridade, e António de Sousa Macedo, Secretario de Estado, escreviam a diferentes pessoas em Latim e Francês; o mesmo que faziam D. João IV e o Principe D. Pedro », vol. 22, fl. 278-299; BA, 51-VI-21, «Práticas que o Secretário de estado fez em nome da rainha D. Luísa de Gusmão » fl. 16; BNL, Reservados, « Instrução escrita em 1683 por Pedro Vieira da Silva para as cerimónias fúnebres de D. Afonso VI », cod. 675; IAN/TT, Colecção de S. Vicente, «Apontamentos do que se devia fazer nas audiencias publicas, e secretas, e outras declarações que S.M. pedia descrição », vol. 20, fls. 6-12. 1113 IAN/TT, Colecção de S. Vicente, «Forma que se observava no acompanhamento d'El Rei à Capela, assim nos dias de semana, como nos Domingos, Festas e mais funcçoens publicas. E a que se guardava, quando El Rei comia em publico (…). Apontamentos do que se devia fazer nas Audiencias Publicas e secretas...redigidas por Pedro Vieira da Silva», vol. 20, fls. 1-6. O domínio do cerimonial passava também pela especialização diplomática - com experiência de outras Cortes - donde a já comentada coincidência entre nomeação para a secretaria de estado e a experiência como enviado, ACL, Manuscritos Azuis, «Cérémonial des secretaires et ambassadeurs de France en Espagne, 1660-1671», nº 372. 1114 Onde anexou minutas de cartas para comunicar os eventos aos estados do reino títulos, bem como modelos de comportamento dos Príncipes e Infantes, Luís de MENESES, conde da Ericeira, História de Portugal Restaurado…, vol. I, p. 524. Na verdade, o âmbito das minutas era muito alargado: conselheiros, conselheiros de guerra, câmaras, Universidade de Coimbra, geral da Ordem de Cristo, priores-mores de Avis e Santiago, cidades e vilas com voto em cortes, indicando qual o modelo para o comportamento do Príncipe e do Infante. 1115 Ângela Barreto XAVIER & Pedro CARDIM, D. Afonso VI…, p. 65. 1116 BPE, «Memoria que na Secretaria d’Estado se avião de preceder os Condes aos filhos dos duques, ou estes aos condes e prelados, principalemente aos filhos dos duques de Aveiro», cod. CV/1-17, fls. 340-344.

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a coordenar as cerimónias1117. Especificava-se, neste tipo de documentos, o mais ínfimo

pormenor, tal como a cor das cadeiras dos duques e marqueses, ou a posição que o Conselho de

Guerra devia ter em relação aos títulos ou a outros órgãos relevantes da monarquia1118.

Quem frequentar a correspondência dos séculos XVII e XVIII encontrará dezenas de

«Avisos» ordenando a colocação de “luminárias, repiques de sinos, e salvas de canhão”

marcando o tempo festivo da Corte e da cidade a propósito dos nascimentos, baptizados,

casamentos1119, coroação1120 e exéquias fúnebres das pessoas reais1121, as vitórias militares1122, a

celebração de tratados1123 ou os avisos e preparação das Cortes1124. Os secretários de estado

zelavam pela construção dos elementos decorativos (caixão, tecidos, panejamentos, tapeçarias,

arcos1125), pela delimitação das posições dos cortesãos nos palanques1126, pela etiqueta do Paço,

tomando decisões sobre os dias solenes1127, tarefas escrupulosamente cumpridas com toda a

minúcia1128.

Como tem sido longamente estudado nos últimos anos, todo o dispositivo cénico

correspondia a um efectivo programa “político”, tanto pela descrição das soberanias (registo dos

reinos e das riquezas subjugadas) quer pela narrativa dos fundamentos do poder régio (escudos

dos tribunais, pinturas dos fidalgos e das figuras mais destacadas do clero numa posição de

reverência à Coroa)1129. Estas encenações do poder, rigorosamente desenhadas pelos «secretários

de estado», ficavam expostas durante muito tempo para que os vassalos apreendessem a

1117 IAN/TT, Miscelâneas Manuscritas, «Epitome Da Vida do Serenissimo Rey de Portugal o Snr. D. Afonso 6. Escripto Em Lisboa no anno de 1684», nº 817, cap. 17. 1118 IAN/TT, Colecção de S. Vicente, «Memorias que pertencem ao Funeral do Senhor Rey D. João 4º por Pedro Vieira da Silva», fl. 26. 1119 EFO, VI, 1ª parte, p. 336. 1120 EFO, VII, «Aviso do secretário de estado D. Thomaz d’Almdeida ao Presidente do Senado da Câmara, 26 de Dezembro de 1706, Sobre o cerimonial da coroação de D. João V em Janeiro de 1707», pp. 339-342. 1121 AHU, Ultramar, cx. 1, doc. 87; EFO, VI, 1ª parte, p. 286. 1122 EFO, VI, 1ª parte, p. 439. 1123 EFO, VII, 1ª parte, p. 29. 1124 BNL, Fundo Geral, «Cortes que principiarão no 1º de Dezembro de 1697 de que foi secretario o conde de Alvor», cod. 13146, fls. 1-2. 1125 EFO, VI, 1ª parte, p. 593. 1126 BA, 51 – VI – 11, «Carta de Gaspar de Faria Severim para o Regedor sobre a averiguação da forma em que no palanque da Relação assistiu o Conde de Aveiras, sendo Regedor, e se pôs no dossel na ocasião dos Touros pelo nascimento do Infante D. Pedro, Paço, 5 de Outubro de 1661», nº 40. 1127 EFO, VI, 1ª parte, pp. 598 e ss. 1128 Amgêla Barreto XAVIER & Pedro CARDIM, D. Afonso VI..., p. 280. 1129 IAN/TT, Colecção de S. Vicente, «Memorias que pertencem ao Funeral do Senhor Rey D. João 4º por Pedro Vieira da Silva», fls. 27-29. Uma boa síntese do impacto “político” do cerimonial de corte na segunda metade do século XVII, Pedro CARDIM, «O subtexto do cerimonial. A dimensão simbólica da solenidade cortesã no Portugal do século XVII», Struggle for Synthesis, vol. II, IPPAR, Lisboa, 1999, pp. 345-368.

254

fundamentação imagética da majestade1130. Que era, em todo o caso, uma fundamentação,

mesmo que implícita, do poder do secretário de estado. Isto significava uma presença

fundamental na “memória política” dos vassalos, tanto pela intimidade taumatúrgica com os

detentores do poder, como pelo protagonismo desempenhado na economia do cerimonial

régio1131.

No que toca ao estatuto cortesão do «secretário de estado», lateralizando um pouco toda

a complexidade da história social, que aqui não poderíamos nem saberíamos fazer. Além de que

o estudo de Pedro França Reis, sobre secretários e conselheiros da Coroa e Portugal, debate com

minúcia as questões genealógicas, identificando as proveniências sociais dos oficiais1132. Assim,

optámos por basear a eficiência do «secretário de estado» tanto na caracterização dos

tratamentos e símbolos de distinção como no potencial “político” da sua baixa extracção1133.

Embora estes dois elementos pareçam paradoxais eles completam-se numa nova economia do

serviço régio, muito eficaz no tenso jogo de equilíbrios entre parcialidades.

Em primeiro lugar, a distinção de Corte.

Desde cedo, o secretário beneficiou de uma certa preeminência, começando por merecer

o trato de «Snrª» desde pelo menos o final do século XV, no tempo em que a Casa de Bragança

estava separada da Coroa e merecia o mesmo tratamento do secretário do rei. Quando os

«Grandes» do reino passaram a ter o tratamento de «Excelência», o rei impôs a sua intenção de

que os secretários fossem com ela cortejados1134. Afinal, o serviço dos secretários ao conjunto

dos membros da família real reforçou ainda mais as suas possibilidades de dignificação1135.

Importar verificar este percurso. No tempo de D. Sebastião os secretários assistiam de

joelhos «com huã cadeira rasa e punhão os papeis E escreuião». A Monarquia Católica de D.

Filipe I trouxe uma evidente dignificação destes oficiais dos «papéis». Com o Arquiduque

Alberto passaram a possuir «huã almofada de raz em que punhão os giolhos E hum banquilho

1130 IAN/TT, Colecção de S. Vicente, «Memorias que pertencem ao Funeral do Senhor Rey D. João 4º por Pedro Vieira da Silva», vol. 22, fl. 30. 1131 BGUC, «Cerimonial da entrega dos selos reais, pela rainha D. Luísa a D. Afonso VI», nº 518, fls. 111-111v. 1132 Pedro França REIS, Conselheiros e Secretários de Estado de Portugal…, pp. 183 e ss. 1133 Sobre a evolução político-institucional ver cap. III e IV do presente trabalho. 1134 BPE, «De como os secretários de Estado obtiveram o tratamento de Excelência, da reforma das secretarias no tempo de D. João V, e um breve juizo crítico sobre os secretário de estado, Pedro da Motta e Silva, António Guedes Pereira e Marco António de Azevedo Coutinho », CV / 1 – 7, fl. 114v. No século XVIII, «os secretários de estado» iriam confrontar importantes aristocratas, como o duque de Cadaval, tratando-os por «Merce», o que significava um insulto grave na etiqueta de corte. 1135 IAN/TT, Casa Real, «Papéis vários, registo de nomeações, Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, Ministério do Reino, Registo das cartas, alvarás, patentes e mercês », «1664-1766», Liv. 1129.

255

diante em que punhão os papeis E escreuião»1136. Mais tarde surgiram muitas dúvidas quanto ao

significado da almofada. O facto de alguns secretários, como Miguel de Moura e Duarte Dias de

Meneses, terem servido antes de possuírem as cartas de ofícios terá levado à opinião de que os

secretários serviam sem almofada. Na verdade, pouco se sabia da prática concreta, o que dada a

importância da tradição na cultura de Antigo Regime levou a complexas questões de estatuto dos

secretários. Com efeito, a atribuição de almofada representava muito mais do que o conforto da

escrita. Alguns aristocratas não concordavam esta atribuição aos secretários justificando que o

uso da almofada no tempo de D. Sebastião se tinha prendido com «particular merce» feita às

«pessoas e não ao officio». Defendiam que a atribuição da almofada, a tornar-se prática régia,

devia ligar-se ao titular do cargo e não ao ofício1137. Adivinha-se aqui um receio dos conselheiros

perante a ascensão dos “mecânicos da escrita”.

Confirmaram-se alguns destes receios, mantidos por parte da aristocracia, e em 1634 foi

estabelecido que os secretários, à semelhança dos «Ministros ao serviço do rei»1138, gozassem dos

mesmos privilégios dos «Ministros do Conselho de Portugal que assistiam o rei em Madrid»1139.

Deve registar-se a importância neste processo dos panfletos e «papéis» publicados pelos oficiais

ao serviço de Castela, na defesa dos seus privilégios de secretários (v. V)1140. Sem grande

surpresa, por volta de 1662, os secretários eram reconhecidos na hierarquia cortesã apenas

abaixo dos «Titulares do reino», equiparados aos magistrados e conselheiros dos Tribunais1141.

Convém referir que ao longo do século XVII, os «secretário de estado» investiram

grande parte dos seus rendimentos em processos de “nobilitação”1142. Relembre-se, porém, que

esta “nobilitação”, por exercício do poder na «República», nunca se aproximou do estatuto de

«fidalguia». Até o século XVIII – com excepção do reinado de D. Pedro II – o ofício de

1136 BA, 51 – IX – 10, Governo de España, Da Casa Real e Grandes de Castella e Iurisdições, t. II, «Consulta do Conselho a El-Rei com o parecer de 4 votos de que se deve guardar o estilo do tempo d’El-Rei D. Sebastião», fl. 1. 1137 BA, 51 – IX – 10, Governo de España, Da Casa Real e Grandes de Castella e Iurisdições, tomo II, «Consulta do Conselho...», fls. 1-1v. 1138 Vice-rei, presidente, vedores, conselheiros da Fazenda, presidentes e conselheiros dos Tribunais do reino, regedor da Casa da Suplicação, desembargadores, escrivães da Fazenda e ministros que despachassem «Petições». 1139 «Carta Régia de 8 de Março de 1634». 1140 BA, 51-VI-35, «Forma de Juramento que fazem os Secretarios de Estado da Coroa de Castela», fl. 345v. 1141 Segundo o «Alvará de 18 de Agosto de 1662», estabelecendo uma capitação para acudir às necessidades da guerra, fazia-se uma descrição dos oficiais e respectivo pagamento. Num contexto de forte estratificação social os secretários surgiam no mesmo segmento tributário dos desembargadores do paço, conselheiros e vereadores do senado da câmara de Lisboa, pagando 6 000 rs, Dissertações Chronologicas e Criticas, Academia Real das Sciencias de Lisboa, Lisboa, 1867, pp. 235-238. 1142 Pedro da Alcáçova Carneiro, Diogo Soares, Miguel de Vasconcelos e Pedro Vieira da Silva obtiveram «senhorios». O genro de Roque Monteiro de Paim, o primeiro conde de Alva, foi elevado a titular em 1729, na sequência do matrimónio com a filha do «secretário de estado», Ana Paula M. LORENÇO, D. Pedro II…, p. 241. Segundo Nuno G. Monteiro, um exemplo incaracterístico de fulgurante progressão social dá-se com o caso dos Lopres do Lavre, secretários do Conselho Ultramarino. Sobre a consolidação áulico-burocrática de Diogo Soares e outros secretários, António M. HESPANHA, As Vésperas…, pp 381-384.

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secretário, apesar de catapultar os seus titulares para uma posição de grande influência,

continuou a ser desempenhado por indivíduos de escassa «nobreza». A discreta qualidade social

com que os secretários iniciavam o serviço era essencial no estabelecimento da sua eficácia, daí

que os referidos casos de nomeações “qualificadas” socialmente, ocorridos reinado de D. Pedro

II, como D. Tomás de Almeida, tenham tido uma curta experiência no exercício.

Vejamos, por último, as razões do potencial “político” da baixa extracção social.

É ponto assente que a crescente dignificação cortesã dos secretários assentou sobre

indivíduos sem grande qualidade social. Ao assumirem o lugar de «secretários de estado», onde

se jogavam algumas das mais determinantes tensões entre parcialidades, estariam menos

manietados por estas lutas, agindo com um menor condicionamento de “posição”. O facto de

estas parcialidades cortesãs – articuladas com os «Grandes Títulos do reino» – se enraizarem na

fidelidade ao rei, mas também no confronto mútuo, permitia aos secretários destacarem-se em

tarefas sensíveis, em representação do rei, ficando as suas ambições sob o controlo político da

“cabeça” do sistema1143. Por outro lado, iam criando as suas próprias redes de influência,

introduzindo petições de «partes», fornecendo informação privilegiada, o que possibilitava uma

actuação particularmente autónoma. Os “monarcas” ficavam cada vez mais dependentes

simbolicamente destes seus representantes.

A título de exemplo veja-se o atribulado processo de nomeação do vice-rei do Brasil,

depois da conjura de 1640. D. João IV, depois de fazer um ultimato a António Teles da Silva – o

aristocrata escolhido para o efeito, mas que impunha servir primeiro como Mestre de Campo

General –, refugiou-se na caça, deixando a Francisco de Lucena, seu «secretário de estado», a

coordenação da processo. Na expressão de Francisco Manuel de Melo, «não quiz El Rey

achar se prezente aos effeitos» da decisão1144. É verdade que, neste caso, Lucena veria a sua

posição de Corte crescentemente fragilizada. De qualquer modo, é importante destacar que

também neste pólo da representação, a intensificação do poder evoluiu sobre novos modos de

serviço, a partir de uma certa equidistância no feixe das intensas relações da sociedade de Corte,

1143 BNM, «Copia da Pratica que o Secretario Pedro Vieira da Silva fez ao duque de Bragança, por ordem de Sua Magestade estando elle presente em Conselho de Estado, e os maes Tribunaes de que se compoem o Governo daquele Reyno, em os primeiros de Junho do ano de 1664 », ms nº. 2389, fl. 136. 1144 O tópico das decisões difíceis, deixadas pelo rei a ministros, por acarretarem “custos” na corte, fazia curso na “discussão política” da época. Existem curiosas reflexões sobre a relação entre a manutenção do poder e a atribuição de mercês, bem como entre a comunicação do castigo com o mero serviço a evitar pelo rei, «Tiberio, mestre da arte de reynar, e alguns Monarchas, que teve por discipulos, rezervou para sy a comunicação das mercês, deixou aos Menistros a notificação do castigo porque os subditos o amassem como a unico Author de seus bens, e aos Menistros aborrecessem, como instromentos de seus Males...», Francisco Manuel de MELO, Tacito Portuguez…, p. 123. Vimos como os secretários disputaram violentamente o controlo das «matérias de mercês».

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onde a dignificação do estatuto cortesão, assentando sobre uma baixa extracção social, resultou

num paradoxo que fez deslizar o ethos do secretário para um dimensão cada vez mais funcional.

d) Distribuição: as «matérias de Fazenda» e a estrutura da «República»

Por último, deve descrever-se talvez a polarização mais significativa dos «secretários de

estado»: a capacidade de alocar o «governo» da Fazenda. Esta intensificação vincou dois traços

dominantes: a especialização na construção de instrumentos de fiscalidade e a coordenação da

redistribuição de recursos da «República». Em primeiro lugar descreveremos a importância da

Fazenda no código genético do «secretário de estado», passando depois a verificar os aspectos

particulares desta “vocação” em torno do «governo» da Fazenda na relação com a fiscalidade e

com a distribuição de mercês.

No que toca à «Fazenda» nas origens dos «secretários de estado».

Como temos vindo a demonstrar, a vocação “económica” dos escrivães do rei estava

inscrita no próprio código genético da organização régia. José Mattoso sublinha que, desde o

reinado de D. Afonso Henriques, estes oficiais controlavam pela escrita «as funções fiscais»1145.

Na verdade a importância do «despacho» da Fazenda, confundiu-se muitas vezes com o

«despacho» no Conselho que rodeava o rei. Também os «escrivães da puridade», durante os

séculos XIV-XVI, acumularam relações com a Vedoria da Fazenda1146. O primeiro «Regimento»

do Conselho de Estado, de 1569, apontava como uma das competências desse órgão o

tratamento das matérias de Fazenda mais determinantes: «as cousas de mor qualidade e

importância que tocarem à minha Fazenda»1147. Assim, se considerarmos o conjunto dos

«secretários de estado» em exercício, entre os séculos XVI e XVIII, vemos que um número

considerável iniciou o serviço régio no tratamento das matérias de Fazenda, ou como escrivão

ou como Procurador da Fazenda, tal como se verifica pelos casos de Pedro Vieira da Silva,

1145 José MATTOSO, Identificação de um país, Ensaio sobre as origens de Portugal, 1096-1325, II, Composição, Lisboa, Estampa, 1985, pp, 99-100. 1146 Fr. Francisco do Santíssimo SACRAMENTO, Epitome…, Lisboa, 1665, p. 58. 1147 «Regimento do Conselho de Estado de 1569», António Caetano de SOUSA, Provas, t. III, p. 472.

258

Miguel de Moura1148, Duarte Dias de Meneses, Miguel de Vasconcelos1149 ou Gaspar de Faria

Severim1150.

Qual a evolução específica destes caracteres de especialização fazendária?

A “modernização” do «governo», fruto da “castelhanização” de finais do século XVI,

veio acentuar ainda mais a relação entre as «matérias de estado» e os «negócios da Fazenda e

Índia». Foi precisamente neste período que se deu uma progressiva anexação dos assuntos de

Fazenda pela secretaria de estado. A partir de finais do século XVI, e sobretudo com o agudizar

da crise económica a partir de 1620, esta especialização em Fazenda foi determinante para a

sustentação do poder régio – quer na elaboração de soluções maximizadoras dos recursos

(sobretudo por meio dos processos tributários, primeiro assentes sobre novas formas de

legitimidade dos direitos reais, depois através de agilizações aritméticas dos sistemas fiscais1151)

quer pela actualização das lógicas de distribuição desses recursos (que a partir de seiscentos

darão origem ao já comentado jogo de forças em torno das «matérias de estado e mercês», onde

a redução dos custos de operacionalidade destes sistemas, decorrente da especialização dos

secretários, se tornará numa variável fundamental da ascensão da secretaria de estado)1152.

Como ficou dito, a especialização fazendária dos «secretários de estado» percorreu dois

caminhos: por um lado, o provisionamento da guerra, o controlo monetário e a fiscalidade. Por

outro, as matérias de mercês.

No que respeita à guerra, alterações da moeda e fiscalidade

1148 Segundo o Memorial de Pedro Roiz de Soares, havia excesso de moeda de cobre no reino, introduzida secretamente pelo comércio inglês, levando a moeda de ouro e prata. Desta forma, procurava desvalorizar-se a moeda através de legislação. Esta teria de ser coordenada de tal forma que evitasse especulações monetárias através de fugas de informação. Aqui se encontra também um caso paradigmático da importância do segredo no despacho régio. Conta o Memorial de Soares que vários ministros, tendo acesso ao conteúdo da lei, mandaram chamar oficiais a quem tinham dívidas, pagando nesse momento com patacões. Apesar desta fuga de informação foi Miguel de Moura quem despachou correios a 3 de Março de 1568, em simultâneo, para todo o reino, coordenando a dificil implementação da lei e fazendo-se notar pelo rei, Francisco Sales LOUREIRO, Miguel de Moura...,pp. 76-77; Pedro Roiz de SOARES, Memorial, Manoel Lopes de Almeida (ed.), Coimbra, 1953, pp. 15-18. 1149 Miguel de Moura escreveu papéis para o escrivão da Fazenda a partir dos onze anos, sendo ele próprio nomeado escrivão da Fazenda com dezasseis anos, Conde de TOVAR, «Escrivão da Puridade», Estudos…, p. 147. 1150 Luís de MENESES, conde da Ericeira, História de Portugal Restaurado…, vol. III, p. 17. 1151 Para um enquadramento do processo em termos europeus, Crises, Revolutions and Self-Sustained Growth, Essays in European Fiscal History, 1130-1830, W.M. Ormrod, R. Bonney, R. Bonney (ed.), Stanford, 1999. Para o caso português essencial o texto de Vitorino Magalhães GODINHO, «Finanças Públicas e Estutura do Estado», Ensaios, II, Lisboa, 1978, pp. 31-74. Mais recentemente, Leonor Freire COSTA, «Fiscal innovations and making of the modern state : wich war did really matter in the Portuguese case ?», artigo apresentado ao Third Iberian Economic History Workshop, Iberometrics III, Valencia, 2007. 1152 As despesas extraordinárias («despesas de estado») eram feitas com os sobejos das rendas ordinárias (comércio ultramarino). O agravamento fiscal devia-se à necessidade de «estabilização das rendas da coroa e ao aumento das despesas em guerra (soldados pagos navios)», António M. HESPANHA, As Vésperas…, pp. 61-65

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O período do governo Áustria desembocou na centralidade das questões financeiras. Em

1622, o processo de controlo da Fazenda pela secretaria de estado intensificou-se. Cristóvão

Soares acumulou a secretaria do Conselho da Fazenda com o desempenho como «secretário de

estado», entendendo em matérias tão relevantes como os empréstimos à Fazenda Real ou a

acção do provedor-mor das alfândegas do reino1153. Na verdade, a especialização em Fazenda

tornou-se, gradualmente, um factor determinante na carreira cortesã1154. Segundo o próprio

Miguel de Vasconcelos, em Carta de 22 de Junho de 1633, era notável o protagonismo dos

Escrivães da Fazenda1155 no «despacho» da Corte1156. De igual modo, foram inúmeros os

«despachos» de pagamentos produzidos pelo «secretário de estado». Não é novidade que esta

“intromissão” se fez pela via da guerra: pagamento da “gente do mar e guerra”, determinação

dos preços da pólvora, alojamentos de tropas em trânsito pelo reino, «Consultas» acerca da

apreensão do trigo dos navios genoveses1157.

Na década de 1630, esta tendência materializou-se numa «Junta da Fazenda», controlada

pelo «secretário de estado» do Conselho de Portugal, organismo que monopolizaria as matérias

em relação aos Tribunais, com o significativo poder de mandar prender e suspender quaisquer

ministros. Relembre-se que a promoção de Diogo Soares a «secretário de estado», pelo conde-

duque de Olivares, se tinha devido ao seu magistral conhecimento dos assuntos de Fazenda do

1153 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 117, nº 2. 1154 A importância da competência fazendária no desempenho dos secretários vinha já acentuando-se desde 1604. Cristóvão de Moura, no caso de decisão régia favorável ao aumento de secretários e consequente especialização de matérias, recomendava para a Fazenda, João Álvares Soares, «escrivão da Fazenda da repartição da Índia». Na mesma carta, Cristóvão de Moura propunha para «secretário da Índia», também um «escrivão da Fazenda da Repartição das Ordens», Rui Dias de Meneses, filho de Duarte Dias de Meneses. 1155 Cerca de 1633 existiam cinco escrivães no Conselho da Fazenda. Como é sabido tinham os privilégios de secretários. Segundo um «Memorial» de Diogo Soares contavam-se Gaspar de Abreu, «bom homem, embora limitado, porem limpo de mãos»; Fernão Gomes da Gama, «servindo há pouco tempo», parecia a Soares inteligente, não tendo mostrado factos que pudessem ser comentados; por sua vez, Gaspar de Faria Severim teria sido introduzido por parcialidade e constava que não era limpo de mãos, mostrando ser ‘acaballerado’ BPE, «Papel que Diogo Soares escreveu ao rei de Castela sobre sujeitos de Portugal», CV / 2 - 19, fl. 116. 1156 BPE, «Documentos vários, Cartas de Miguel de Casconcelos a Diogo Soares», CV / 2 - 19, fl. 101. 1157 AHU, Reino, cx. 7, pagamentos ao almoxarife dos Paços da Ribeira, gente de guerra, «Cartas Régias» ordenando letras, com dinheiro para pagar peças de artilharia, em nome do «secretário de estado», Diogo Soares. A título de exemplo, em 1635 foi produzido um «Decreto», em nome da princesa regente, D. Margarida de Sabóia, destinado ao Conselho da Fazenda, para que pudessem ser levantadas letras de dinheiro, procedente do donativo da cidade de Lisboa e do Reino, e o tesoureiro-mor fizesse os pagamentos, mas isto somente para quem constasse da declaração do «secretário de estado do Conselho de Portugal», Diogo Soares.

260

Reino. A ruptura de 1640 não quebrou esta centralidade da fiscalidade1158. O «secretário de

estado» Francisco de Lucena, teve que gerir uma enorme tensão emergente na reunião de Cortes

de 1642, devido às propostas para o aumento da décima1159.

Outro exemplo da estreita relação entre a Fazenda e o trabalho das secretarias foi a

importância do controlo sobre a moeda1160. Os «secretários de estado» iam adestrando a

capacidade de produção de extensos «Pareceres», como se verificou no caso das alterações

monetárias do período das «Guerras de Restauração»1161. Também no que respeitava ao «governo

das conquistas», iam aumentando as suas competências, controlando a entrada e saída das

armadas do Brasil, com tudo o que isso significava de controlo sobre as movimentações das

Alfândegas1162.

Num outro plano, no domínio da vida “económica” local, surgiram inúmeras tentativas

de uniformizar o alcance normativo da Coroa. Os secretários procuravam interferir nas

«Consultas» acerca da eleição dos almotacés1163, negociar sobre os «capítulos» apresentados em

cortes1164, controlar as obras, sobretudo na cidade de Lisboa1165. A maioria destas medidas eram

ainda insípidas no seu alcance efectivo, pelo que os «secretários de estado» procuravam aumentar

a capacidade da Fazenda Real a partir das necessidades da guerra, tentando novas soluções

1158 Segundo um ouro secretário, António Pais Viegas, a ruptura de 1640 teria como ponto central a fiscalidade. Viegas apontava os tributos como causa fundamental da sublevação. A clareza da reflexão merece a transcrição um pouco longa: tributos, «tão molestos pella grandeza, como pella ambição dos exactores, que neste ministério se empregavão (...) lançouse real de agoa em todo o Reyno: acrecentouse a quarta parte das sisas; no sal se puserão novos tributos, por ordens passadas em castelhano contra o pactuado; sobre as cayxas de açucar tmbém se impos gravame. De todas as merces, & officios de fazenda, & de justiça se mandarão pagar, cõ meyas annatas, dandose com isto ocasião a muytps roubos; porque os q levavão estes oficios, vendo, que com o novo tributo se defraudava seus limitados salarios, procuravão por modos ilicitos satisfazerse como podião», António Pais VIEGAS, Manifesto do Reyno de Portugal, 1641, ed. e pref. por Joaquim Carvalho, Coimbra, 1924, pp. 20-21. Sobre as questões jurídicas da tributação, Rodrigues CAVALHEIRO, «Os antecedentes da Restauração e a posição do Duque de Bragança», Congresso do Mundo Português, vol. VII, Lisboa, 1940, pp. 11-56. 1159 Leonor Freire COSTA & Mafalda Soares da CUNHA, D. João IV…, p. 138. 1160 BA, 51 – VI – 1, «Papel sobre não se poder mudar a moeda no Reino sem consentimento dos Estados juntos em Cortes, de Fernão Cabral, Lisboa, 1642», fls. 105-119. Fernão Cabral opunha-se às alterações porque segundo o «Reg.» podia recusar-se em leis que ofendessem os «seus direitos contra o povo ou cleresia» apresentando as razões dessa “injustiça”: «a confusão da moeda reduzirá os direitos das Alfândegas (…)» e resultaria numa «opressão contra o povo porque sempre que se deu diferente preço ao dinheiro logo se queixaram os vassalos». Além disso seria ainda «contra a cleresia porque neles está o mais direito que há no reino». 1161 Damião PERES, O Conselho da Fazenda e as alterações Monetárias no Reinado de D. João IV, Lisboa, 1959, p. 8. 1162 AHU, Rio de Janeiro, cx. 4, doc. 19, «Avisos do secretário de estado», Francisco de Lucena, ordenando a todos os capitães e oficiais de Lisboa que embarcassem na «Armada» com destino ao Brasil. 1163 EFO, V, 1ª parte, p 21. 1164 EFO, V, 1ª parte, p. 29. 1165 EFO, V, 1ª parte, pp. 200-201.

261

«constitucionais» para impor contribuições1166. A pretexto do financiamento dos terços de

infantaria e companhias de cavalos, «os secretários de estado» negociavam contribuições com

vereadores e representantes do «terceiro estado»1167.

Por meio de «Portarias», procuravam hierarquizar os oficiais régios responsáveis pelas

cobranças obrigando-os a devolver as quantias em dívida1168. Neste sentido, os «secretários de

estado» procuravam que as nomeações destes oficiais fossem da sua confiança, tentando impor

as suas decisões e chocando, inevitavelmente, com concepções organizativas jurisdicionalistas1169.

Com efeito, na década de 1660 intensificavam-se as medidas expedidas pela «secretaria de

estado» a propósito da tributação. «Decretos» e «Portarias» inspeccionavam o procedimento do

Senado da Câmara de Lisboa, fosse sobre as vendas de juros ou sobre o protelamento do

aumento das sisas1170. Os «secretários de estado» expediam correspondência a propósito das

dívidas, inspeccionando as significativas contas do «real d'água»1171. Durante os anos de 1663 e

1664, o «escrivão da puridade», conde de Castelo Melhor e o seu «secretário de estado»

expediram diversas «Cartas Régias», a propósito da regulação das «sisas». Invocando a

continuação da guerra, desenhavam estratégias para aumentar as contribuições. Argumentavam

sobre «aprovações» sem reunião de Cortes1172. Neste mesmo sentido, as notícias das vitórias

militares eram utilizadas para reforçar as «imposições» fiscais executadas1173. Por outro lado, este

domínio da fiscalidade trazia aos «secretários de estado» a interferência na movimentação das

tropas, acentuando-se o circuito guerra, fiscalidade, «cerebração» do reino1174.

Cerca de 1674, grande parte dos assuntos mais relevantes da Fazenda Real, como o

abastecimento de cereais ou as alterações do «comércio com Castela» eram tratados «pela

1166 O «secretário de estado», Pedro Vieira da Silva, tentou impor «direitos sobre o trigo gasto na cidade de Lisboa e seu termo», advertindo que esta «contribuição não era menos solenemente imposta por se comunicar somente aos concelhos, camara e povo», porque como lhe tocava só a ella (corte), só seus «moradores a haviam de conferir e resolver com S. Magde.; que quando fora geral para todo o reino, então seria necessário convocar os estados delle», EFO, V, 1ª parte, pp. 389-391. 1167 EFO, VI, 1ª parte, pp. 537-542. 1168 EFO, VI, 1ª parte, p. 13, oficiais como os «tesoureiros do real d'água» atrasavam a devolução das quantias empreendendo negócios com o dinheiro da Fazenda Real. 1169 EFO, VI, 1ª parte, pp. 136 ss. O caso relatado por Freire de Oliveira dizia respeito à «cobrança do quinto dos bens da coroa», nomeação de oficial que a Câmara de Lisboa defendia ser competência dos provedores e dos corregedores das comarcas. 1170 EFO, VI,1ª parte, p. 259, «Decreto de 27 de Maio de 1661». 1171 EFO, VI, 1ª parte, pp. 375 e ss. Na verdade, o senado continuava a dever 432.252 rs. 1172 EFO, VI, 1ª parte, pp. 464 ss. 1173 EFO, VI, 1ª parte, p. 502 ss. 1174 EFO, VI,1ª parte, p. 25

262

secretaria de estado»1175. Além disso, os «secretários de estado» continuaram a interferir no

exercício dos oficiais responsáveis pelas contribuições1176.

Neste sentido, o predomínio das matérias de Fazenda fez também crescer a pressão

sobre os magistrados. O caso, já referido de passagem quanto à redução dos poderes

concorrentes da secretaria de estado, levou a que, em 1695, uma «Carta régia» enviada ao Juiz de

Fora de Ourique, disciplinasse a «má intelligencia, que muitos ministros» tinham dado «às

ordens» do rei, mostrando a «ignorancia» em que se achavam da disposição da «Lei do Reino».

Neste caso, o «secretário de estado» obteve pelo Desembargo do Paço «Declarações», onde se

regulavam as transacções do trigo e do pão, enviando-as «para todo o reino»1177. No início do

século XVIII, o predomínio das matérias de Fazenda continuaria a crescer: tanto pela tentativa

de hierarquização dos magistrados e oficiais da Fazenda – veja-se a ordem dada ao juiz dos feitos

da Fazenda, para que tirasse devassas à «casa do seguros de Lisboa»1178 –, como pela condução

do financiamento dos exércitos na «guerra da sucessão», como ainda pelo crescente poder sobre

matérias ultramarinas, onde o «governo» da Fazenda se constituía, progressivamente, no

problema central da Coroa. Passavam pelos «secretários de estado» as «Ordens» para as

contribuições dos moradores do Rio de Janeiro1179, a decisão sobre mercês em capitanias do

Brasil1180; o controlo sobre a Casa da Moeda do Rio de Janeiro, a criação de novas Casas da

Moeda, criação de Bispados na região das Minas1181 ou a execução do quinto do ouro, matéria

que irá constituir um novo “continente” de problemas que extravasam o âmbito deste trabalho.

O outro eixo determinante da especialização fazendária dos «secretários de estado»

prendeu-se com as mercês e consequente «economia da graça»

Fernanda Olival dedicou um aturado estudo às relações entre a concessão de mercês e o

funcionamento do poder no reino de Portugal1182. Aqui interessa-nos sobretudo destacar os

1175 EFO, VIII, 1ª parte, p. 37. 1176 EFO VIII, 1ª parte, p. 430. 1177 Estas «Declarações que El-Rei Nosso Senhor manda fazer a todos os Julgadores das Comarcas» de 11 de Agosto de 1695, no sentido de mandar tirar devassas, foram assinadas pelo «secretario de estado». Referia-se a necessidade de especial atenção em relação aos oficiais das Câmaras que tentassem controlar a transacção de pão para a Corte. Mandava dar conhecimento nos lugares públicos que fosse permitido a qualquer pessoa «trazer trigo de Castela e introduzi-lo no reino, para lisboa ou qualquer outra parte». 1178 «Decreto de 17 de Janeiro de 1707» 1179 AHU, Rio de Janeiro, cx. 8, doc. 95. 1180 AHU, Rio de Janeiro, cx. 12, doc. 21, 32 e 33, «Portarias e Ofícios de 13 de Maio de 1720 do «secretário das Mercês e Expediente», Bartolomeu de Sousa Mexia». 1181 A título de exemplo, AHU, Rio de Janeiro, cx. 12, doc. 30, 75 e 50, «Ofícios de 23 de Março de 1720 do «secretário das Mercês e Expediente», Bartolomeu de Sousa Mexia, sobre o «Alvará» que extinguiu a Junta do Comércio, e de 24 de Julho de 1720 ao provedor da Casa da Moeda do Rio de Janeiro. 1182 Fernanda OLIVAL, As Ordens e o Estado Moderno…, pp. 108 e ss.

263

aspectos relacionados com a evolução das secretarias de estado. As Ordenações Manuelinas

continham o germe do problema que iria marcar parte da evolução da secretaria de estado mas

também do seu ramo construído em torno das mercês e expediente: a circunscrição

“burocrática” da «economia da graça». Este controlo incluía a promessa de mercês1183, devendo-

se a duas necessidades fundamentais: a obtenção dos emolumentos correspondentes à dádiva e a

regulação das concessões através de mercês.

Foi em torno desta dupla questão que se estruturou a relação entre secretarias e o

«governo» das mercês. Na verdade, a «liberalidade» régia passava por um cuidado da «República»

baseado em «direitos» que, ao longo do século XVI e XVII, iriam sofrer significativas

alterações1184. A «cura» da «res publica» assentava sobre a representação, uma “dignidade

aristocratizante” que entrava em profundas contradições com a emergente estrutura “político-

económica”, que Norbert Elias tão bem definiu no seu clássico livro sobre a sociedade de

Corte1185. A este “cuidado” veio juntar-se um “cuidado” dos «negócios públicos», cada vez mais

marcado por um ethos “burocratico-mercantil” – inoculado pela dimensão híbrida das matérias

ultramarinas, onde se misturavam «governo» e «comércio»1186. Os secretários, como vimos

emergentes neste mundo dos «negócios da Índia», vão contribuir para a mutação dos estilos do

«governo da Fazenda» também na estrutura das mercês. Vejamos como.

Segundo Francisco Manuel de Melo, o costume de registar a graça régia num «Livro das

Mercês» foi adoptado por Castela, devido à sua eficácia prática e simbólica1187. Contudo, o

«governo das mercês» cresceu de tal forma que se complexificou num «Registo das mercês»1188,

impondo de forma crescente, aos oficiais régios e ao próprio rei, a necessidade de controlo1189.

Exemplo desta tendência foi o trabalho das secretarias do Conselho de Portugal durante o

governo Áustria. De acordo com Luxán Meléndez, entre 1586 e 1640, o despacho daquele órgão

incidiu maioritariamente sobre mercês1190. Se analisarmos os conteúdos normativos em torno das

1183 OM, Liv. II, Tit. XVIII. Uma vez que era hábito usarem as «partes» esse expediente para não pagarem os «direitos» sobre a mercê, conseguindo depois, em «negócio» combinados com os corregedores, contadores e almoxarifes, normalizar o processo. Além da fuga aos direitos, as «partes» pretendiam furtar-se ao exame em Chancelaria onde as mercês eram «corrigidas». 1184 Direitos confirmados por um «selo das mercês» desde as Ordenações da Fazenda de 17 de Outubro de 1516 cap. 241, nº 4. Foram depois criados novos direitos com o «Reg. da Chancelaria de 1589», OF, Liv. II, Tit. XLII. 1185 Nobert ELIAS, A Sociedade de Corte..., «o sistema das despesas», pp. 41-52. 1186 Albano Alfredo de Almeida CALDEIRA, «Memória sobre o serviço do Registo de Mercês», Boletim das Bibliotecas e Archivos Nacionais, Coimbra, 2º ano, 1903; João Francisco MARQUES, «A crítica de Vieira ao poder político na escolha de pessoas e concessão de mercês», Revista de História, vol. VIII, Porto, 1988, pp. 228-237. 1187 Francisco Manuel de MELO, Aula Política…, pp. 100-101. 1188 «Alvará de 31 de Dezembro de 1547». 1189 «Leis Extravagantes, Part. V, Tit. IX, Lei II em 17 de Julho de 1567». 1190 Santiago LUXÁN MELÉNDEZ, La revolución de 1640 en Portugal..., pp. 118-121.

264

mercês, observamos uma verdadeira obsessão com o controlo secretarial. A maior parte do

material normativo apontava para a regulação das concessões. Essa regulação fazia-se por uma

incidência na circulação e certificação de «papéis».

Uma sondagem da evolução normativa entre 1590 e 1714 permite-nos analisar esta

torrente burocrática.

O «Regimento» do Vice-Rei de Portugal D. Frei Aleixo de Meneses pretendia reduzir o

tempo de ocupação em mercês para que os ministros se não ocupassem nisso

continuadamente1191. De acordo com Fernanda Olival, as tendências estruturais do «governo»

procuraram disciplinar a concessão de mercês, processo controlado pela Secretaria de Estado,

sobretudo pelo disciplinamento da burocracia: estabelecimento de normas sobre serviços, papéis

e procedimentos; integração das práticas de liberalidade no âmbito de alguns conselhos e

secretarias; sistema de registo das concessões feitas no sentido de controlar o dispêndio1192. No

início do século XVII, até cerca de 1610, verifica-se um impulso normativo para o controlo do

registo, vigilância marcada pela obsessão com a despesa. Mais uma vez o processo decorre

sobretudo no âmbito da burocracia e das secretarias: circunscrição da forma do registo das

«Cartas» das doações e mercês com regulação de mercês eclesiásticas1193; contenção da despesa

em «Mercês da Índia»1194; restrição aos «Embargos» na Chancelaria contra as «Cartas» ou

«Alvarás» de mercês de ofícios1195; restrição da concessão de mercês a categorias profissionais ou

a mulheres de oficiais1196 impedimento das Câmaras prometerem mercês1197

A partir de 1610 as normas desenham novas restrições sobre as «Consultas» de diversas

Mercês: não se admitiam «Cláusulas» para contorno da Chancelaria, com pena de nulidade1198,

controlavam-se as «certidões das residências» para obtenção de mercês1199; determinava-se uma

maior preocupação com o pagamento de mercês de dinheiro (feitas pelos vice-reis) sem

1191 IAN/TT, Manuscritos da Livraria, «Regimento de que hade usar Dom Frey Aleixo de Meneses Arcebispo de Braga Primas de Hespanha, no cargo de Viso Rey dos Reynos, e senhorios de Portugal», nº 1111, fls. 270-272v. 1192 Fernanda OLIVAL, As Ordens e o Estado Moderno…, pp. 109-110. 1193 «Carta Régia de 2 de Setembro de 1603» e OF, Título XXXVIII. 1194 «Alvará de 11 de Abril de 1606». 1195 «Alvará de 26 de Outubro de 1607». 1196 «Carta Régia de 9 de Novembro de 1608»; «Carta Régia de 28 de Novembro de 1608»; «Carta Régia de 10 de Março de 1609»; «Carta Régia de 15 de Julho de 1609»; «Carta Régia de 25 de Agosto de 1609». 1197 «Carta Régia de 8 de Setembro de 1609». 1198 «Decreto de 27 de Outubro de 1613»; «Carta Régia de 6 de Maio de 1614»; «Alvará de 16 de Abril de 1616»; «Carta Régia de 6 de Setembro de 1616»; «Carta Régia de 25 de Outubro de 1617», manda registar e cumprir o «Alvará de 23 de Maio de 1599», sobre o tempo dentro do qual se devem tirar as «Portarias» das mercês. 1199 «Carta Régia de 10 de Março de 1618».

265

confirmação régia1200; determinava-se que as confirmações de mercês pelos secretários dos

tribunais tivessem assinatura régia1201; obrigava-se a respectiva menção nas «Consultas de

mercês» sempre que a atribuição dos cargos necessitasse de confirmação régia1202; recusavam-se

as réplicas em requerimentos de mercês1203; proibia-se a aceitação de «Consultas» sem certidões,

cujos serviços apenas se declarassem por testemunhas1204.

Na década de 1630, os «secretários de estado» passam a controlar o processo de perto,

regulando-se de forma mais detalhada o «despacho das Mercês»1205: anulavam-se os provimentos

de ofícios de Fazenda, consultados pela secretaria das mercês1206; hierarquizava-se a decisão das

mercês segundo as deliberações dos secretários da Corte de Madrid1207; determinava-se maior

agilização na expedição dos «Despachos»1208; delimitavam-se as «Consultas de ofícios de Justiça e

Fazenda» determinando a sua avaliação pela secretaria de estado1209; exigia-se a elaboração de

declarações de mercês e serviços constantes do historial do vassalo nas «Consultas» sobre

nomeação de ofícios1210; delimitavam-se novos requisitos para expedição das «Portarias de

mercês»1211.

Além disso permanecia a preocupação com o nível da despesa, controlo que exigia uma

aturado trabalho de confronto de informação nas secretarias: suspendiam-se as atribuições de

mercês, sempre que se verificassem apuros da Fazenda Real1212; impunham-se penas contra

quem não tirasse os títulos e despachos das meias-anatas nos prazos marcados, proibindo-se as

mercês nestes casos1213; publicavam-se «Ordens» para que os «secretários de estado» escrevessem

às partes no sentido de obterem os «despachos» das mercês e respectivos tributos à Fazenda1214;

impunha-se maior controlo das mercês para a Armada do Brasil1215; impunha-se maior

delimitação sobre as «Mercês de Hábitos e bens das Ordens Militares» – com obrigações de

1200 «Alvará de 29 de Março de 1618». 1201 «Carta Régia de 15 de Novembro de 1618». 1202 «Carta Régia de 22 de Setembro de 1620»; «Carta Régia de 7 de Março de 1624». 1203 «Carta Régia de 30 de Setembro de 1624». 1204 «Carta Régia de 25 de Julho de 1625». 1205 «Carta Régia de 24 de Julho de 1630». 1206 «Carta Régia de 29 de Dezembro de 1636». Estranhando este facto, «Carta Régia de 2 de Maio de 1637». 1207 «Carta Régia de 19 de Fevereiro de 1638»; «Carta Régia de 18 de Agosto de 1638». 1208 «Carta Régia de 4 de Fevereiro de 1639». 1209 «Carta Régia de 6 de Abril de 1633». 1210 «Aviso de 17 de Janeiro de 1635». 1211 «Carta Régia de 17 de Outubro de 1635». 1212 «Carta Régia de 1 de Dezembro de 1631». 1213 «Carta Régia de 19 de Novembro de 1631». 1214 «Carta Régia de 1 de Dezembro de 1632». 1215 «Carta Régia de 6 de Março de 1638»; «Carta Régia de 21 de Julho de 1638»; «Portaria de 5 de Agosto de 1638».

266

serviço e objectivos dos Hábitos1216; impunham-se tributos (meias-anatas) sobre «cargos e ofícios

públicos e outras mercês»1217.

Sob este imenso esforço normativo, a cerebração do «governo» da Fazenda nas

secretarias de estado entrava numa fase de consolidação. Apesar de já termos aflorado a questão

na descrição da evolução da secretaria de estado da Coroa de Portugal (v. IV), importa tratar

aqui com mais detalhe a importância da Fazenda e «mercês» como valor determinante na

definição do peso do «secretário de estado». Um «papel» posterior a 1640, permite clarificar

melhor as formas de dominação em torno das secretarias de estado e mercês – em germinação

no período Áustria, mas decorrentes no reino de Portugal na segunda metade do século XVII1218.

Os «secretários das mercês» defendiam a manutenção de todas as «jurisdições, preeminências,

autoridades e prorrogativas de um cargo que decidia em matéria de ofícios, o que lhe garantia

um considerável número de “clientelas”1219. Por outro lado, os «secretários de estado» chamavam

a si as petições sobre provimento de «governos»1220.

O crescimento da secretaria de estado, ao absorver o processo de provimento ia

provocando uma consequente hierarquização do trabalho secretarial. A atribuição de cargos de

«governo», que impunha a avaliação de “competências técnicas”, iam ficando na tutela das

«matérias de estado», enquanto as «petições» em que se pedissem os cargos e títulos por

satisfação de serviços deviam ser consultadas pela via do «Despacho das Mercês», passando-se

depois «Lembretes» ou «Portarias», segundo se decidisse na secretaria das mercês, para se

fazerem os «Despachos» na secretaria de estado. Por outro lado, Francisco de Almeida, expunha,

com invulgar clareza, o poder que subjazia aos «secretários de estado» criticando a necessidade

de centralizar as decisões numa só secretaria. Na verdade, o que estava em discussão, à parte o

controlo de uma importante fonte de recursos, materiais e simbólicos, era o confronto entre a

esfera de decisões em «matéria de estado», baseada no cálculo global dos recursos e a “economia

da graça” mais fundamentada pela dogmática jurídica em matéria de ofícios, aspecto que,

normalmente, levava a que os «secretários das mercês» defendessem a dignidade dos ofícios de

guerra, dos «socorros» cuja tradicional respeito pelo esforço de guerra patrimonizalizado

1216 «Carta Régia de 26 de Dezembro de 1635»; «Carta Régia de 17 de Janeiro de 1636»; «Carta Régia de 12 de Novembro de 1636». No sentido do cumprimento das ordens anteriores, «Carta Régia de 24 de Dezembro de 1636»; «Carta Régia de 7 de Outubro de 1637»; «Carta Régia de 8 de Abril de 1639». 1217 «Reg. de 23 de Novembro de 1639». 1218 BA, 51 – IX – 11, Do Governo de Espanha, t. III, «Secretarias suas repartiçõis, Dos Tribunais e Ministros pertêcêntes a Portugal e desputas entre ele», fls. 36v. 1219 BA, 51 – IX – 11, Do Governo de Espanha, t. III, «Secretarias suas repartiçõis…», fls. 37-37v. 1220 «Prelasias, benefícios, cargos e ofícios, e que se incluíssem nas suas repartições de estado, guerra, governo, Justicia Eclesiástico, e Ordens».

267

impunha que se considerasse «desconsideração tratá-los em conjunto com o governo»1221. Daí

que a tendência fosse para uma maior especialização “burocrática” da secretaria das mercês,

tutelada, do ponto de vista da decisão, pela secretaria de estado. Em todo o caso, ambos os

secretários saíram fortalecidos deste processo o que correspondeu à cerebração do reino.

Regressando à evolução normativa, vemos que a ruptura de 1640 confirmou esta

tendência1222.

As secretarias receberam constantes indicações sobre a proibição de embargos a

mercês1223, sobre a obrigação das «Portarias» de mercês serem assinadas pelo rei bem como

indicações para maior rapidez no registo1224, sobre o cumprimento dos encargos e pagamento de

direitos inerentes ao despacho das mercês1225 e sobre a obrigação de certidões do Registo das

Mercês para consulta de ofícios. A pressão para a concessão de mercês estava inscrita no próprio

dever de retribuição – a obrigação antidoral tão profundamente enraizada no âmbito da justiça

comutativa1226.

Parece claro que o início da desagregação do sistema de poder “corporativo” – onde ao

longo do século XVII se acentuou a comunicação entre «matérias de Fazenda» e «matérias de

Estado» – provocou o aumento da pressão sobre o «despacho» das mercês, em particular a

ligação com as matérias ultramarinas, resultando tudo no crescimento “burocrático” das

secretarias1227 e num novo protagonismo dos secretários de estado e mercês. É sabido que tanto

a Secretaria de Estado como a Secretaria das Mercês movimentavam um largo espectro de

1221 BA, 51 – IX – 11, Do Governo de Espanha, t. III, «Secretarias suas repartiçõis…», 38v. 1222 «Carta Régia de 2 de Fevereiro de 1640»; «Carta Régia de 8 de Agosto de 1640», com a «Cofirmação das mercês feitas em Madrid»; «Decreto de 10 de Janeiro de 1641»; «Decreto de 31 de Dezembro de 1643». 1223 «Decreto de 15 de Fevereiro de 1643». 1224 «Decreto de 24 de Dezembro de 1643»; «Alvará de 20 de Novembro de 1654», sobre o controlo da posse de «Comendas, pelo registo das Carta nos Livros das Mercês»; «Decreto de 29 de Agosto de 1648». Sobre a obrigação de certidão do Registo das Mercês para consulta de ofícios, «Decreto de 20 de Maio de 1649». 1225 «Decreto de 10 de Maio de 1644»; «Alvará de 22 de Julho de 1644, prorrogando ao «Recolhimento das Mercês» a graça do «Alvará de 2 de Outubro de 1624»; «Decreto de 10 de Janeiro de 1648»; «Decreto de 17 de Outubro de 1651». 1226 Os juristas diferenciavam a mercê - não passível de revogação pelo facto de constituir uma «contra-prestação» do serviço, da graça - dimensão da liberalidade régia que pertencia a uma outra genealogia de acções de poder (livres e não constrangidas). 1227 AHU, Reino, cx. 11-A, pasta 21. Vejam-se os pedidos de fiscais para se examinarem os «papéis» dos que pedem mercês no Conselho Ultramarino e a preocupação dos «secretários de estado» em controlarem o processo. AHU, Conselho Ultramarino, cx. 1, doc. 31, «Consulta do Conselho Ultramarino de 26 de janeiro de 1658 ao rei D. Afonso VI sobre a necessidade de se nomear, pela Secretaria das Mercês e Expediente, desembargadores menos ocupados, que o desembargador fiscal das Mercês, agora provido no cargo de procurador da fazenda, António Pereira de Sousa, para se examinarem no Conselho os «papéis» das partes que requerem mercês e postos».

268

provimentos1228. Surgiam sistematicamente pedidos aos secretários de estado que podiam ler os

papéis directamente ao rei, facto que era depois utilizado pelos peticionários para pressionar os

restantes oficiais régios1229. Por conseguinte, na segunda metade do século XVII com este

crescimento das petições de mercês, crescia também a preocupação com o «Patrimonio Real»

considerado «muy deçipado»1230.

Desse modo, e como temos vindo a concluir, através desta breve análise normativa,

devem destacar-se duas tendências no trabalho dos secretários: por um lado, o crescimento

“burocrático” – controlo sobre a demora dos processos individualizados de consulta e sobre a

certificação dos serviços prestados ao rei – e por outro a inserção dos processos de atribuição de

mercês nas estratégias de «governo»1231. Em todo o caso, a multiplicação de «Consultas de

mercês» continuou a impor um crescente rigor nas atribuições, onde lentamente se iam

inscrevendo outros valores1232. As discussões “constitucionais” de 1668 tinham como pando de

fundo o entendimento jurídico sobre a concessão de mercês. No âmbito da restrição sobre a

concessão de mercês, o «Regimento da Secretaria das Mercês», de 19 de Janeiro de 1671,

especificou, ainda mais incisivamente, que serviços agraciar com mercê, que provas de efectiva

prestação do serviço a apresentar, delimitando toda a tramitação processual1233. O «Regimento»

pretendia uniformizar esta profusão legislativa que temos vindo a descrever. Além disso, era

necessário, como já sublinhamos os secretários de estado e das mercês, funcionavam de forma

cada vez mais coordenada, pelo que era necessário definir estratégias de «provimento» mais

alargadas. Um outro aspecto fundamental para a perspectiva aqui seguida consiste na limitação

das renúncias, consagrada no «Regimento». As renúncias eram em muitos casos vendas

dissimuladas, pelo que as secretarias passavam a contar com uma nova indicação de reforço dos

vínculos entre a «República» e a concessão dos ofícios.

1228 «Villas com suas jurisdições; Alcaidarias mores; Comendas efectivas; Comendas de promessa; filhamentos de fidalgos e dahi para baixo: hábitos de Cristo; Tenças de dinheiro em sua fazenda; Tenças nas obras pias; Tenças de Trigo; Hábitos das ordens de Avis e S Tiago; Lugares nos Mosteiros da Encarnação e Santos; Lugares de freiras nos conventos; Capelas efectivas; Capelas de Promessa; Alvarás de Lembrança; Alvarás de ofícios; Praças mortas nas fortalezas e praças no Reino», IAN/TT, Manuscritos do Convento da Graça, «Advertencias pera se aver de notar no despacho de mercês», t. 7D, nº 39, fls. 299-301. 1229 Em sentido contrário, as «Sentenças» do Desembargo do Paço de 1668, «o escrito do Secretario de Estado não produz acção contra o Procurador da Coroa, por não ser Alvará passado pela Chancelaria, sem o que, conforme as leis do reino, não obra coisa alguma», Manuel Álvares PEGAS, Commentaria..., t. X, Ulyssipone, 1689, pp. 65-66. 1230 Cit. por Fernanda OLIVAL, As Ordens e o Estado Moderno…, p. 115. 1231 AHU, Conselho Ultramarino, cx. 1, doc. 56, «Consulta» de 14 de Dezembro de 1669 sobre a nomeação de ministros para receberem as «Consultas» ou entregá-las aos «secretários de Estado e Mercês», evitando-se a demora e as queixas das «partes» com processos em curso. 1232 IAN/TT, «Advertencias pera se aver de notar no despacho de mercês» secs. XVII-XVIII, Manuscritos do Convento da Graça, T. 7D, nº 39, fls. 299-301 1233 Para uma exaustiva leitura do «Reg. de 1671», Fernanda OLIVAL, As Ordens e o Estado Moderno…, pp. 120-151.

269

Em todo o caso, as indicações sobre o registo de mercês e o trabalho das secretarias

continuaram na década de 16801234.

No início do século XVIII não se verificariam inflexões.

Justifica-se, de qualquer modo, uma breve incursão no início do reinado de D. João V

pois esse período confirma o processo aqui descrito. As mercês determinantes para a Fazenda

Real seriam definitivamente apropriadas pelas «secretarias de estado e mercês» subindo à

assinatura régia. Em 1713 foram distinguidas as questões que subiriam à assinatura régia através

dos «secretários de estado e das mercês», daquelas que deviam ser resolvidas pelos próprios

tribunais e repartições superiores sem necessidade de «despacho régio»1235. Esta necessidade de

controlar a assinatura régia resultava de uma necessidade de organizar e diminuir o volume de

«papéis e negócios» em espera de confirmação régia. As mercês preteridas eram relegadas para os

tribunais através de uma lista assinada pelo secretário de estado ou mercês, subindo para

assinatura régia os negócios de importância extraordinária ou que o rei julgasse necessário

consultar. No mesmo sentido crescia a autonomia dos secretários: passaportes para a saída dos

navios do porto de Lisboa passavam a ser despachados por «Portaria» de um dos secretários1236.

Contudo, eram salvaguardados os negócios que não podiam ser agilizados sem assinatura

1234 «Decreto de 10 de Outubro de 1681», reforma dos livros do «Registo das Merçês» - devido ao incêndio que tinha destruido os livros. «Decreto de 25 de Abril de 1684»; «Decreto de 27 de Outubro de 1688», ordenando aos oficiais da Torre do Tombo, encarregados da reforma do Registo das Mercês, o pagamento de 300 rs por caderno, para punir a negligência com que trabalhavam; «Consulta de 4 de Novembro de 1689», sobre a competência do chanceler-mor, e regulação do processo de embargos a mercês na Chancelaria; «Alvará de 10 de Fevereiro de 1693», proibindo que passasse pela Chancelaria das Ordens mercê alguma, sem que constasse do Registo Geral de Mercês. 1235 «Alvará de 24 de Julho de 1713», Sobre o «Alvará» ver J.A. Duarte NOGUEIRA; A. P. Barbas HOMEM, «Secretário de Estado», Dicionário Jurídico da Aministração Pública, vol. VII, Lisboa, 1996, pp. 353-357. 1236 Os assuntos menores, tratados nos conselhos régios (que subiam a «assinatura régia» e eram tratados por «Alvarás»), passavam agora a ser tratados por «Provisões» com assinatura de dois membros do respectivo tribunal régio, passando depois pela Chancelaria. O «Alvará» sublinhava ainda a aplicação destes mecanismos de simplificação ao Conselho Ultramarino, onde o expediente se multiplicava, com a construção administrativa do Brasil, estimulado pela penetração aurífera.

270

régia1237. Para os Tribunais eram relegados os “negócios ordinários, e de menos «entidade»1238

salvaguardando-se a possibilidade de invocar a assinatura régia1239.

Que pode concluir-se desta especialização dos secretários em mercês e da sua

subordinação a formas de «despacho» mais atentas ao «governo» da Fazenda?

Os secretários podiam exercer um poder muito eficaz através de mecanismos

“indirectos”; bloquear um ofício interdito, repor uma doação, impor um benefício1240. A justiça

como actualização da ‘graça’ requeria um entendimento do direito régio como um código

discursivo em permanente construção. Esta rede de vínculos, formada pelas relações em torno

da fidelidade da mercê, com consequências no reforço da autoridade, (na sequência da teoria

clássica sobre a realeza e a nobreza de carácter) impunha, para o seu domínio efectivo, um

depósito, exaustivo e manipulável, de registos individuais. Que era necessário emendar,

comentar, adaptar, revogar e actualizar. Precisamente pela dimensão redistributiva dos recursos

como fundamentação do poder do rei, importa separar o paradigma jurisdicionalista, que

sedimentava culturalmente o sistema de poder, através de todas as elucubrações dogmáticas em

torno da justiça distributiva, da função material que a riqueza também desempenhava na

hierarquização social.

Deste modo, os «secretário de estado», imiscuindo-se no «grupo dos grandes e

poderosos», aliavam às competências informacionais, decisórias e de representação, a capacidade

de produzir novas formas de sustentar o “sistema de poder”. Segundo Francisco Manuel de

Melo, as «pessoas grandes e poderozas» chamaram a si a condução dos mais importantes

negócios do rei: «guerra» e «fazenda»1241. Ora, os «secretários de estado iniciavam um processo de

expropriação desta organização do poder. Os «grandes e poderosos» do passado, passavam a ser

classificados segundo um outro binónimo de saber-poder que ia, entretanto, mudando de mãos.

1237 Todas as «mercês» que fossem pagas directamente pela Fazenda Real: comendas, alcaiderias-mores, senhorios de terras, ofícios de justiça ou fazenda, patentes de postos militares, mercês de capela, emprazamentos de bens, casas dos direitos reais. 1238 Eram listados os negócios abrangidos pela simplificação: provas de Direito comum paras as causas em que não fossem parte procuradores da Coroa, Fazenda ou Fisco; emancipações de órfãos; Provisões vindas da Relação do Porto em agravo para a Casa da Suplicação; segunda serventia de ofícios de mais de um ano; licenças para filhos de proprietários de ofícios em casos de sucessão óbvia, abrangidos em prática pelo «direito antidoral»; licenças para investiduras de freiras já autorizados; criação nos conselhos de cirurgiões ou boticários; casamentos de juízes de fora com mulheres órfãs ou viúvas, para que os bacharéis devidamente licenciados pudessem ser providos nos senados das câmaras; obras públicas requeridas em caso de pagamento pelos bens dos concelhos. 1239 Impondo-se apenas que o seu despacho nunca seria confirmado por menos do que três ministros, podendo qualquer um deles, em caso de não conformidade com o conteúdo despachado pelo Tribunal, solicitar a subida do negócio à apreciação régia na forma tradicional da «Consulta». 1240 Luca MANORI & Bernardo SORDI, Storia…, pp. 43 e ss. 1241 Francisco Manuel de MELO, Tacito Portuguez..., pp. 102-103. Veja-se ainda, BGUC, «Projecto de Regimento de 1679», ms. 472 e «Regimento de boa arrecadação da fazenda», ms. 714.

271

Como bem relembrou recentemente Joaquim Romero Magalhães, na sociedade de

Antigo Regime, não sendo a riqueza o único critério de prestígio social era, no entanto, essencial,

pois andava correlacionada com a possibilidade de sustentar simbolicamente o prestígio

“público” dos que a detinham1242. A Secretaria de Estado desenvolveu-se nesta relação entre

“economia da graça” e «governo», fundando o exercício do poder sobre a produção de uma

linguagem normativa, sobre a redução das instituições concorrentes no espaço da corte e sobre a

representação do poder. No que toca à Fazenda, pode dizer-se que foi pela “ficção” do seu

«governo», provocando consequências na distribuição social dos recursos (operacionalidade e

financiamento do sistema de poder), que os «secretários de estado» vincaram o caminho da sua

ascensão.

1242Joaquim Romero MAGALHÃES, «Os Espacos Administrativos na Construção do Estado Moderno em Portugal a pretexto de Leiria no século XVI», A Historiografia Portuguesa, Hoje, José Tengarrinha (coord.), HUCITEC, São Paulo, 1999, pp. 127-132.

272

CONCLUSÃO

Que conclusões podem ser retiradas de um longo processo de conflitualidade cortesã e

mudança institucional, no seio do qual se produziu a afirmação dos «secretários de estado»?

Em primeiro lugar, uma nota conclusiva sobre as razões que nos levaram a seleccionar,

da informação mais vasta que fomos recolhendo, o arco cronológico proposto (1530-1706), a

partir do qual apresentámos a nossa descrição do problema.

Pode dizer-se que este intervalo temporal corresponde à afirmação de um poder e ao

trânsito de uma função de domínio pertencente a uma sociedade patrimonial régio para uma

função de domínio decorrente de um sistema proto-estadualista. Assim, o período

compreendido entre as datas escolhidas corresponde, grosso modo, à conflitualidade entre o

“secretário cortesão” e o “secretário proto-burocrático”. Aquilo que começou por ser um ofício

criado ex novo no círculo dos oficiais “pessoais” do rei, liberto dos constrangimentos tradicionais

que iam sendo colocados pelos concorrentes do poder régio, e procurando potenciar a vontade

do soberano contra os direitos dos restantes estados do reino, acabou por ser, como vimos, um

recurso institucional com algumas características semelhantes ao longo de quase dois séculos de

existência. Na verdade, esse modelo, que respondeu a uma necessidade de protecção do “estado

do rei” – não obstante as diferentes formalizações e designações (secretário do rei, escrivão da

puridade, secretário de estado) –, foi acumulando tensões com a «república», acabando por

contribuir para a produção de um novo paradigma de distribuição do poder. Pode dizer-se, por

isso, que a afirmação institucional do «secretário de estado» respondeu a um estímulo de luta

entre facções (e portanto às estratégias individuais) mas também ao funcionamento orgânico dos

sistemas de poder (e portanto às tendências estruturais do sistema social). Como tem vindo a ser

sublinhado pela teoria institucional não existe contradição entre factores individuais e sociais na

transformação social. Daí ser necessária uma dupla consideração dos problemas. Foi o que

procurámos demonstrar.

Assim, apresentaram-se três grandes segmentos de evolução do ofício que serviram

sobretudo uma «economia narrativa» desses diferentes domínios da transformação histórica (as

lutas conjunturais e as pressões estruturais): a formação, entre 1530 e 1580, onde as «matérias da

Índia», o serviço do rei, e o «trabalho mecânico » da escrita determinaram uma primeira

afirmação cortesã dos secretários; a consolidação, entre 1580 e 1640, onde a modernização do

«governo Áustria» vai insuflar nas secretarias a agilização de processos, o controlo normativo da

273

“burocracia” e a especialização fazendária ; e, por último, o triunfo, entre 1640-1706, período

onde se cristaliza uma bipolarização das Secretarias de Estado – com os ramos do «governo» e

«matérias de estado», por um lado, e, por outro, o «despacho das mercês» – além de uma

funcionalização dos «secretários de estado» em relação ao sistema de poder, o que coincide com

o início da despatrimonialização do cargo. Nesta cronologia, não deve esquecer-se que a

aparente tranquilidade da evolução institucional corresponde por vezes a uma traumática

conflitualidade interna. Se algo deve sobressair como tendência recorrente nesta narrativa, é

sobretudo a determinação dos poderes do «secretário de estado» como resultado das lutas entre

grupos de corte, nas suas extensões ao reino e mesmo ao império.

Em todo o caso, do ponto de vista da explicação da afirmação do ofício do «secretário de

estado», devem ser clarificados dois aspectos relevantes sobre a marcação, ao longo do processo,

de dois momentos algo paradoxais, passíveis de alguma crítica: a ruptura dinástica de 1640 e o

final do reinado de D. Pedro II, em 1706.

Se a ruptura de 1640 representa uma transformação dinástica que agita os equilíbrios de

corte, no que toca à evolução estrutural da Secretaria de Estado, verifica-se uma continuação do

investimento no ofício, principalmente ao nível da definitiva incorporação das funções do

valimento. Com efeito, este segmento (1634-1643) – onde ocorre a traumática eliminação de

Miguel de Vasconcelos e Francisco Lucena e apesar da reconfiguração da secretaria (1643) –

confirma o poder alcançado pelos «secretários de estado».

Quanto à morte de D. Pedro II, em 1706, além do que já foi dito quanto à importância

das conjunturas de reinado na dinâmica interna da Corte – e da confiança depositada pelo rei

num conjunto selecto de oficiais como factor determinante da “luta política” –, importa

sublinhar que aquela data corresponde a um primeiro momento de completa imunidade da

Secretaria de Estado perante a morte do rei. Neste sentido, a morte de D. Pedro II coincide com

a emergência de Diogo Mendonça Corte Real, ministro que viria a servir durante trinta anos

(sendo apenas interrompido pela morte, em 1736), acumulando os três níveis do trabalho de

secretaria («assinatura», «estado» e «mercês»), vindo a constituir um marco indelével na memória

institucional do reino. A transição pacífica na Secretaria de Estado, no ano de 1706, é pois um

marco na sedimentação do «secretário de estado» como representação de um poder «político»

“supra-real” perante o reino e os «povos». Como D. Manuel tinha referido no século XVI,

existia de há muito a tendência dos oficiais criarem uma legitimidade própria dizendo que eram

«mais do reino do que do rei». O que explica bem a harmonia entre tendências estruturais e

conflitos de corte, no “tempo longo” da história institucional.

274

Em segundo lugar, não pode concluir-se este trabalho sem uma síntese da forma

específica de poder desenvolvida na Câmara régia e, mais tarde, na Secretaria de Estado.

O «secretário de estado», iniciando a sua acção como responsável pela dimensão

«mecânica da escrita» no «despacho régio», assistiu o soberano, polarizando as funções de

«governo». Deste modo, foi adquirindo eficácia no tratamento dos «papéis», o que justificou a

criação de assistentes : o oficial maior (recebia os «papéis» destinados à secretaria, com acesso

aos arquivos, geralmente acedendo à carreira de secretário) ; os oficiais menores – consoante as

conjunturas – e os escreventes, recrutados de acordo com os picos de trabalho no «despacho»

dos «papéis», além de um guarda-livros e de um porteiro. O crescimento da estrutura da

Secretaria de Estado (ainda que moderado), e a exportação do modelo secretarial para outras

instituições da Coroa (Conselho de Guerra, Conselho Ultramarino, Junta dos Três Estados),

permitiram erigir lentamente um outro paradigma de poder menos afecto aos «modelos

jurídicos». Vimos que o poder deve ser estudado no interior das práticas que o garantem – e não

numa perspectiva que buscasse a hipotética sede jurídico-soberana onde teriam sido decretados

os seus titulares. Trata-se, por isso, de constatar que os secretários, ao longo do século XVII,

principiaram uma nova prática social (informação, decisão, representação e distribuição) no

interior da qual se passaram a definir, capilarmente, novos efeitos de poder.

Daí que, em meados do século XVII, o exercício do «secretário de estado» significasse

uma nova funcionalidade no interior do sistema de poder. Mesmo a queda em desgraça do titular

do ofício não repercutia já no prestígio do cargo qualquer fractura significativa: estava produzida

a instituição como nova ficção do poder. Assim, mais do que uma substituição dos Conselhos

por Secretarias, está em causa a lenta produção de novas técnicas de dominação.

Na evolução do «secretário de estado», deve sublinhar-se esta intensificação da sua

tecnologia. Ou seja, o «secretário de estado» foi ocupando na Coroa de Portugal o espaço do

valimento, integrando no seu código genético a coordenação do «despacho», a “modernização”

do sistema (expressa na intervenção fiscal, no controlo do guerra e na regulação das mercês) e a

representação do rei perante o reino. Deste modo, a Secretaria de Estado emerge como

instituição, na Coroa de Portugal, associada à passagem de um aconselhamento régio fundado

numa base aristocrática e sedimentado no ethos militar – com toda a semiologia de uma disciplina

assente na guerra – a um aconselhamento régio assente numa ficção que se apresenta como

pacificadora das relações de conflito (alargamento da prática comercial, crescimento do

notariado dos negócios, justa análise das mercês, aturada ponderação das decisões). Isto

corresponde a uma prática de «governo» cada vez mais condicionada pela abstracção (eficiência

275

na resposta política aos intermediários do poder do rei, capacidade de manipulação da

informação, tendência para a quantificação na contabilização e distribuição dos recursos,

invenção de novas formas de legitimidade do poder e alargamento dos direitos do rei,

reconfiguração dos mecanismos de domínio).

Neste sentido, a cerebração do sistema “político” das monarquias corporativas – a par do

lento trânsito da polissidonia para o modelo “estadual” – tem plena confirmação na secretaria de

estado, mesmo que a cronologia da sua afirmação prefigure, aliás de forma sintomática, a

concretização territorial do «leviathan».

A evolução do ofício de «secretário de estado» vai de uma total disponibilidade pelo rei,

até uma funcionalização da secretaria com vínculo directo à «República» – i.e., o rei mantém a

prerrogativa de nomear secretários, mesmo na sua Câmara, mas esses secretários já não se

confundem com o «secretário» do seu «estado». No laço jurídico entre servidor e cargo vemos que

a relação se encontrou também cada vez mais circunscrita pela competência técnica («governo»

da Fazenda e «justa» repartição de mercês - no sentido de um mais abrangente e fidelizado

serviço prestado ao reino). Quanto à regulamentação da actividade do «secretário de estado»,

veremos surgir entre 1634 e 1671 um conjunto de normas que foram enquadrando as decisões

burocráticas deixando, contudo, larga autonomia nas matérias de «governo», crescentemente

denominadas como «políticas». Em simultâneo, os «secretários de estado» foram tentando retirar

capacidade de acção aos Tribunais e Conselhos, ficando estes cada vez mais resignados à

vigilância dos actos de poder – vigilância muito tonitruante do ponto de vista dogmático mas,

por vezes, pouco efectiva no plano da capacidade de afectar o território. Poderá opor-se que

também os «Decretos», «Portarias» e «Avisos» dos secretários esbarraram na falta de

« equipamentos político-administrativos». É um facto. Porém, como vimos, na sociedade de

corte o poder media-se em dois planos fundamentais : distribuição de recursos e manipulação do

capital simbólico. Nestes domínios, a partir de finais do século XVII, o «secretário de estado» era

já o maior especialista na aplicação de novas estratégias. É certo que existiam algumas limitações

ao seu exercício. Contudo, como tivemos oportunidade de referir, o combate na corte passava

agora pela ocupação da secretaria de estado, e já não pela sua destruição institucional através da

revogação do cargo, uma vez que se tinha verificado a sua eficácia como instrumento de

domínio. O que pretendemos sublinhar é que, no seio da Secretaria de Estado, uma nova ficção

do poder está em curso, sustentada e intensificada por novas técnicas de direcção social.

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BIBLIOGRAFIA

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i

ANEXO I

Secretários do rei, «escrivães da puridade» e «secretários de estado» do reino de Portugal (1569-1706)

Oficial ofício Tempo de serviço

António Carneiro secretário 1507 a 1539

Pedro da Alcáçoca Carneiro

secretário do reino

[escrivão da puridade]

1530 a 1562

1566 a 1567[1571]

1571[1578]1579 a 159?

Martim Gonçalves da Câmara escrivão da puridade 1569 [1571] a 1576

Miguel de Moura

secretário do reino

escrivão da puridade

[1569]1571-1574 a 1582

1582 a 1600

Duarte Dias de Meneses secretário da índia [1569]1571 a 1578

Nuno Álvares Pereira secretário do reino 1579 a 1583

Bartolomeu Fróis secretário [dos Governadores] [1578]1579 a 1580

Diogo Botelho secretário [de D. António] 1580 a 15??

Cortes de Tomar em 1581 - «governo» Áustria

Pedro Álvares Pereira secretário do Conselho de Portugal 1583 a 1602

Lopo Soares secretário do «Reino» e «Africa » [1578]1582 a 1597

Diogo Velho secretário das cousas do Estado e Repartição da Índia

1584 a 1604

Rui Dias de Meneses secretário de estado da Repartição da Índia, Brasil, Mina, Guine

1609 a 16??

António Campelo secretário do Conselho da Índia 1604 a 1612

António Velles de Cima secretário do Conselho da Índia 1604 a 1611

Pedro da Costa secretário do Conselho da Índia [1604] a [1614]

ii

João Brandão Soares secretário do Conselho da Índia

secretário do Conselho de Portugal

1604 a 1605

1605 a 1607

Cristovão Soares secretário de Estado 1593 a 1631

Martim Afonso de Mexia secretário de Estado e Justiça 1602 a 1605

Fernão de Matos secretário dos assuntos Eclesiásticos e ordens militares

secretário de estado, Fazenda, Ordens militares, Justiça, Governo e provisão de ofícios

1602 a 1607

1607 a 1614

Luís de Figueiredo secretário do Património e Fazenda Real

secretário do Reino, Contos, Africa e Ordens

1602 a 1605

1605 a 16??

Francisco de Almeida e Vasconcelos secretário das Petições e Mercês»

secretário da Índia e Conquistas

secretário de estado

1602 a 1605

1605 a 1607

1607 a 1631

iii

Luís Falcão secretário de estado da Índia e Conquistas do Conselho de Portugal

1631a 1632

Felipe Mesquita secretário de estado 1631 a 1636

Francisco de Lucena

secretário de estado do Conselho de Portugal

secretário das mercês

secretário de estado

1614 a 1628

1629 [1631] a 1640

1640 a 1643

Marçal da Costa Secretário de Estado do Conselho de Portugal

Abril 1631 a Agosto de 1631

Diogo de Soares

secretário de estado do Conselho de Portugal 1631 a 1649

Miguel de Vasconcelos

secretário de estado 1634 a 1640

Revolta de 1640 – dinastia de Bragança

António Cavide secretário da Casa de Bragança [Estado]

[secretário da Assiantura]

1640 a 1643

1643 a 1656 e 1662 a 1668?

António de Sousa Tavares secretário da Assinatura 1656 a 1662

Pedro Vieira da Silva secretario de Estado 1643 a 1662 e 1667 a 1669

Martim de Távora e Noronha secretário de estado 1653 a [1667]

Gaspar Severim de Faria secretário de estado das mercês 1643 a 1668

Pedro Severim de Faria [Noronha] secretário de estado das mercês 1653 a 1664

Luís Vasconcelos e Sousa

(conde de Castelo Melhor)

escrivão da puridade 1662 a 1667

António de Sousa Macedo secretário de estado 1662 a 1668

D. Fr. Manuel Pereira secretário de estado 1680 a 1686

iv

Luís Teixeira de Carvalho [secretário de estado] para servir no impedimento

1680 a 1686

João de Roxas de Azevedo

secretário do infante D. Pedro

secretário da assinatura

1668? a 1684

Pedro Sanches de Farinha

secretário de estado

secretário das mercês

[1663] a 1667

1668 a 1693

Francisco Correia de Lacerda secretário de estado 1669 a 1680

Roque Monteiro de Paim secretário de estado [1677] a 1704

Mendo de Fóios Pereira secretário de estado 1686 a [1701] 1702

José de Faria secretário de estado [1696] 1702 a 1703

D. António Pereira da Silva secretário de estado 1703 a 1705

D. Tomás de Almeida secretário de estado 1705 a 1707

Diogo de Mendonça Corte Real secretário de estado e mercês 1706 a 1736

Bartolomeu de Sousa Mexia secretário de estado

secretário das mercês

169? a 1721

1707 a 1721

FONTES

IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I; IAN/TT, Chancelarias D. João II, D. Manuel, D. João III, D. Sebastião e D.

Henrique, D. Filipe I, D. Filipe II, D. Filipe III, D. João IV, D. Afonso VI, D. Pedro II; Santiago de LUXÁN

MELÉNDEZ, La Revolución de 1640 en Portugal... pp. cit.; Pedro França REIS, Conselheiros e

Secretários de Estado de Portugal…pp. cit.

v

ANEXO II

“Esboço orgânico” das Secretarias (1530-1706).

data

Secretarias

1530 Reino/Índia/Fazenda/Mercês

Pedro Alcáçoa Carneiro 1571 Secretário Reino e África

Miguel de Moura Índia

Duarte Dias de Meneses 1578 Secretário Reino/ África e Índia

Miguel de Moura Lopo Soares

Secretário dos Governadores (1578-1580) Bartolomeu Fróis

1582 Secretaria do rei Lopo Soares

Nuno Álvares Pereira

Secretaria do Reino «Índia» e conquistas Miguel de Moura

Escrivão da puridade Miguel de Moura

1583

Secretário do «Reino» Lopo Soares

Secretário do Conselho de Portugal Nuno Álvares Pereira

Escrivão da puridade Miguel de Moura

1584

Secretário do «Reino» Lopo Soares

Secretário das «cousas do Estado e Repartição da Índia»

Diogo Velho

Secretário do Conselho de Portugal Pedro Álvares Pereira

Escrivão da puridade Miguel de Moura

1593

Secretário do «Reino» Cristovão Soares

Secretário da

«Repartição de África» Lopo Soares

Secretário das «cousas do Estado e Repartição da Índia»

Diogo Velho

Secretário do Conselho de Portugal Pedro Álvares Pereira

1602 Secretário de estado Cristovão Soares

Secretário «cousas do Estado

Repartição Índia»

Diogo Velho

Secretário de Estado e Justiça CP

Martim Afonso de Mexia

Secretário dos assuntos

Eclesiásticos e ordens

militares CP Fernão de Matos

Secretário do

Património e Fazenda Real CP Luís de

Figueiredo

Secretário das Petições e Mercês»

CP Francisco de Almeida e Vasconcelos

1604 Secretário de estado Cristovão Soares

Secretário do Conselho da

Índia João Brandão

Soares António Velles

de Cima Pedro Soares António Campelo

Secretário de Estado e Justiça CP

Martim Afonso de Mexia

Secretário dos assuntos

Eclesiásticos e ordens

militares CP Fernão de Matos

Secretário do

Património e Fazenda Real CP Luís de

Figueiredo

Secretário das Petições e Mercês»

CP Francisco de Almeida e Vasconcelos

1605 Secretário de estado Cristovão Soares

Secretário do Conselho da

Índia João Brandão

Soares António Velles

de Cima Pedro Soares António Campelo

Secretário de Estado e Justiça CP João Brandão

Soares

Secretário dos assuntos

Eclesiásticos e ordens

militares CP Fernão de Matos

Secretário do Reino, Contos, Africa e

Ordens CP Luís de

Figueiredo

«Secretário da Índia e

Conquistas» CP

Francisco de Almeida e Vasconcelos

vi

1607 Secretário de estado

Cristovão Soares

Secretário do Conselho da

Índia

João Brandão Soares

António Velles de Cima

Pedro Soares

António Campelo

Secretário de Estado e Justiça CP

João Brandão Soares

«Secretário de estado»

[Fazenda, Ordens militares, Justiça,

Governo e provisão de ofícios] CP

Fernão de Matos

Secretário do Reino, Contos, Africa e

Ordens CP

Luís de Figueiredo

«Secretário de estado»

[de petições, mercês, Fazenda]

Francisco de Almeida e Vasconcelos

1609 Secretário de estado

Cristovão Soares

Secretário de Estado da

Repartição da Índia, Brasil, Mina, Guine

Duarte Dias de Meneses

Secretário do Conselho da

Índia

João Brandão Soares

António Velles de Cima

Pedro Soares

António Campelo

Secretário do Conselho da

Índia

João Brandão Soares

António Velles de Cima

Pedro Soares

António Campelo

«Secretário de estado» do CP

Fernão de Matos

«Secretário de estado»

[de petições, mercês, Fazenda]

Francisco de Almeida e Vasconcelos

1614 Secretário de estado

Marçal da Costa

Secretário de Estado da Repartição da Índia, Brasil, Mina, Guine

Duarte Dias de Meneses

«Secretário de estado» do CP

Francisco de Lucena

«Secretário de estado»

[de petições, mercês, Fazenda]

Francisco de Almeida e Vasconcelos

1631 Secretaria de estado

Felipe Mesquita

Secretária das mercês da Índia»

Francisco de Lucena

«Secretário de Estado da Índia e

Conquistas»

Luís Falcão,

«Secretário de Estado das Mercês, Ordens e Padroados

Gabriel de Almeida Vasconcelos

«Secretário de Estado, Fazenda e Justiça»

Diogo Soares

1633 Secretaria de estado

Felipe de Mesquita

Secretaria das mercês

Francisco de Lucena

Secretaria de estado do CP

Diogo Soares

1634 Secretaria de estado

Miguel de Vasconcelos

Secretaria das mercês

Francisco de Lucena

Secretaria de estado do CP

Diogo Soares

1639 Secretaria de estado

Miguel de Vasconcelos

Secretaria de estado da Junta de Portugal

Diogo Soares

vii

1640

Secretaria de Estado

Francisco de Lucena

1643 Secretaria de Estado

Pedro Vieira da Silva

Secretaria da Assinatura

António Cavide?

António Pais Viegas?

António de Sousa Tavares

Secretaria das Mercês

Gaspar Severim de Faria

Escrivão da puridade

Luís de Vasconcelos e Sousa, conde de Castelo Melhor

1662

Secretaria de Estado

António de Sousa Macedo

Secretaria da Assinatura

António Cavide

Secretaria das Mercês

Gaspar Severim de Faria

Pedro Severim de Noronha

1668 Secretaria de Estado

Pedro Vieira da Silva

Secretaria da Assinatura

João de Roxas de Azevedo

Secretaria das Mercês

Pedro Sanches de Farinha

1669 Secretaria de Estado

Francisco Correia de Lacerda

Pedro Sanches de Farinha

Secretaria da Assinatura

João de Roxas de Azevedo

Secretaria das Mercês

Pedro Sanches de Farinha

1680 Secretaria de Estado

D. Fr. Manuel Pereira

Pedro Sanches de Farinha

Secretaria da Assinatura

João Roxas de Azevedo

Secretaria das Mercês

Pedro Sanches de Farinha

1686 Secretaria de Estado

Mendo de Fóios Pereira

Roque Monteiro de Paim

Secretaria da Assinatura

José de Faria

Secretaria das Mercês

João Roxas de Azevedo

1702 Secretaria de Estado

José de Faria

Secretaria da Assinatura

Bartolomeu de Sousa Mexia

Secretaria das Mercês

Diogo de Mendonça Corte Real

1703 Secretaria de Estado

D. António Pereira da Silva

Secretaria da Assinatura

Bartolomeu de Sousa Mexia

Secretaria das Mercês

Diogo de Mendonça Corte Real

1706 Secretaria de Estado

Tomás de Almeida

Secretaria da Assinatura

Bartolomeu de Sousa Mexia

Secretaria das Mercês

Diogo de Mendonça Corte Real