Opinião Pública e Política externa

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A influência da Organização das Nações Unidas nas políticas públicas brasileiras dirigidas às famílias: o Programa Bolsa Família. Geisa Cunha Franco 1 Palavras-chave: Organizações Internacionais- ONU- Bolsa Família Desenvolvimento Humano Introdução Neste artigo se pretende investigar a relação entre as políticas públicas do governo brasileiro voltadas às famílias em situação de vulnerabilidade na última década (2003-2012) e as concepções presentes na Organização das Nações Unidas a respeito do desenvolvimento. Parte-se do pressuposto de que, inserido no sistema internacional de forma atuante, e sendo membro fundador da ONU, o Estado brasileiro sofre influências desse organismo na concepção, elaboração e execução de suas políticas públicas, dentre as quais, aquelas voltadas às famílias. Busca-se, então, identificar a evolução de tais concepções nas Nações Unidas e verificar como elas se manifestam no âmbito doméstico do Brasil. Na primeira parte, procura-se esclarecer a importância das organizações internacionais governamentais e se apresentam os conceitos de desenvolvimento que nortearam suas ações nesse sentido, com especial ênfase ao conceito de desenvolvimento humano. A partir de então, busca-se analisar, dentre as políticas públicas brasileiras direcionadas às famílias vulneráveis, aquela que vem tendo maior destaque em âmbito nacional e internacional: o programa Bolsa Família. A partir de então, buscam-se identificar as relações e as influências da ONU nesse programa, bem como alguns de seus resultados já perceptíveis. A importância das Organizações internacionais no cenário atual As organizações internacionais governamentais (OIGs) vêm adquirindo, desde o final da Segunda Guerra Mundial, um peso crescente no sistema internacional. É quase impossível referir-se a algum tema da agenda mundial sem que tais instituições estejam profundamente envolvidas, seja o tema da segurança, do meio ambiente, dos direitos humanos ou, o que nos interessa especialmente, o tema do desenvolvimento humano e sua relação com as famílias. Ricardo Seitenfus (2003, p.116) define organização internacional governamental como uma Associação voluntária entre Estados, [...] constituída através de um tratado que prevê um 1 Doutora em Relações Internacionais pela UnB, professora da UFG.

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A influência da Organização das Nações Unidas nas políticas públicas brasileiras

dirigidas às famílias: o Programa Bolsa Família.

Geisa Cunha Franco1

Palavras-chave: Organizações Internacionais- ONU- Bolsa Família –

Desenvolvimento Humano

Introdução

Neste artigo se pretende investigar a relação entre as políticas públicas do governo

brasileiro voltadas às famílias em situação de vulnerabilidade na última década (2003-2012) e

as concepções presentes na Organização das Nações Unidas a respeito do desenvolvimento.

Parte-se do pressuposto de que, inserido no sistema internacional de forma atuante, e sendo

membro fundador da ONU, o Estado brasileiro sofre influências desse organismo na

concepção, elaboração e execução de suas políticas públicas, dentre as quais, aquelas

voltadas às famílias. Busca-se, então, identificar a evolução de tais concepções nas Nações

Unidas e verificar como elas se manifestam no âmbito doméstico do Brasil.

Na primeira parte, procura-se esclarecer a importância das organizações internacionais

governamentais e se apresentam os conceitos de desenvolvimento que nortearam suas ações

nesse sentido, com especial ênfase ao conceito de desenvolvimento humano. A partir de

então, busca-se analisar, dentre as políticas públicas brasileiras direcionadas às famílias

vulneráveis, aquela que vem tendo maior destaque em âmbito nacional e internacional: o

programa Bolsa Família. A partir de então, buscam-se identificar as relações e as influências

da ONU nesse programa, bem como alguns de seus resultados já perceptíveis.

A importância das Organizações internacionais no cenário atual

As organizações internacionais governamentais (OIGs) vêm adquirindo, desde o final da

Segunda Guerra Mundial, um peso crescente no sistema internacional. É quase impossível

referir-se a algum tema da agenda mundial sem que tais instituições estejam profundamente

envolvidas, seja o tema da segurança, do meio ambiente, dos direitos humanos ou, o que nos

interessa especialmente, o tema do desenvolvimento humano e sua relação com as famílias.

Ricardo Seitenfus (2003, p.116) define organização internacional governamental como

uma “Associação voluntária entre Estados, [...] constituída através de um tratado que prevê um

1 Doutora em Relações Internacionais pela UnB, professora da UFG.

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aparelhamento institucional permanente com o objetivo de buscar interesses comuns, através

da cooperação entre seus membros”.

Surgidas na segunda metade do século XIX, na Europa, tais instituições não eram

vistas, de início, como atores relevantes na arena internacional (HOFFMANN e HERZ, 2004).

Tampouco, sob o enfoque jurídico, eram consideradas sujeitos do Direito Internacional.

O surgimento das organizações internacionais representa, até o momento, conforme

Hoffmann e Herz (2004), o ápice do processo de institucionalização do sistema internacional.

Evidentemente, a arraigada concepção de soberania, cunhada em Westfália, seria muito difícil

de ser transposta em nome de um organismo intergovernamental. O horror das duas guerras

do século XX e, dentre outros fatores, as garantias de respeito à soberania contidas nos

tratados da ONU convenceram os estadistas (ou a maioria deles) de sua necessidade.

Abriram-se, então, os caminhos para a sistematização de trabalhos conjuntos entre os

governos dos Estados,e desenhou-se, cada vez com mais força, o caminho da cooperação.

A partir de sua criação, a ONU e demais instituições a ela ligadas adquiriram uma

relevância incontestável. Evidentemente que sua ação é limitada, em última instância, pela

concordância e apoio dos Estados membros, já que não têm autonomia para agir fora das

finalidades para as quais foram criadas. É legítimo argumentar, também, que as nações

hegemônicas têm uma influência consideravelmente maior sobre a atuação das mesmas e

que, muitas vezes, a falta de apoio se traduz em ineficiência, lentidão ou omissão.

No entanto, em que pesem inúmeras críticas, muitas delas legítimas, as OIGs tornaram-

se um espaço institucional e físico de encontro, diálogo, discussão e solução de conflitos pelas

nações, o que contribuiu para promover maior estabilidade e previsibilidade ao sistema

internacional Além disso, a ajuda humanitária, a criação de mecanismos de cooperação e a

socialização de informações entre os estados são tarefas, hoje, de inestimável valor para a

sociedade internacional. Conforme as autoras mencionadas anteriormente:

As OIGs são ao mesmo tempo atores centrais do sistema internacional, fóruns onde idéias circularm, se legitimam, adquirem raízes e também desaparecem, e mecanismos de cooperação entre Estados e outros atores. (...) No âmbito das organizações internacionais, está em curso um processo social complexo em que normas são criadas. Conhecimento é formado, tarefas que cabem à comunidade internacional são definidas, tais como gerar desenvolvimento. (HOFFMANN e HERZ, op. cit. p 23).

Como se viu, as preocupações da ONU concentraram-se, por muito tempo, na questão

da segurança,característica agravada, logo após sua criação, pelo surgimento da Guerra Fria

(1945-1985), conflito político, ideológico, militar e econômico entre os países do bloco

capitalista e do bloco socialista. Isto porque a corrida armamentista nuclear fez com que o tema

da segurança ofuscasse as demais áreas de cooperação. Portanto, o fim desse conflito

favoreceu a valorização do tema do desenvolvimento.

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Surgimento e evolução do tema do desenvolvimento nas Nações Unidas

Ainda que prevalecesse o tema da segurança, alguns fatores fizeram com que a ONU,

algumas décadas depois de sua criação, abrisse espaço em sua agenda para tratar de outros

temas. O fato de que a discussão sobre segurança ficou praticamente restrita às potências

nuclearmente armadas levou os demais membros da ONU (a grande maioria) a pressionar, na

Assembléia Geral, para que a organização se ocupasse de outras questões que mais lhes

interessavam, tais como a fome, a miséria, a cooperação e a ajuda ao desenvolvimento.

A entrada de novos estados nos quadros da instituição, sobretudo aqueles oriundos do

processo de descolonização na África e na Ásia, aliada a um processo de articulação entre os

países que se negavam a perfilar em um dos dois lados da Guerra Fria _ o movimento dos

“Não Alinhados”, mobilizados a partir da Conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955 _ fez

emergir um discurso com o seguinte conteúdo: não há paz na miséria; no há segurança em

meio à fome e ao subdesenvolvimento; a discussão sobre armas nucleares só diz respeito às

grandes potências; a paz não deve ser pensada como um conceito negativo (ausência de

guerra), mas, sim, como um conceito positivo (presença de bem-estar e desenvolvimento). O

Brasil apoiou esse movimento, ainda que tenha participado das reuniões dos Não Alinhados

apenas como observador. Como conseqüência, surgiu, poucos anos depois, a proposta de

criação, pela ONU, de uma Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI), o Brasil foi um

membro muito presente nesse debate. De acordo com Amado Cervo: “Concentraram-se os

povos atrasados num objetivo-síntese, que se identificou com a luta travada na arena mundial

pela implantação e uma Ordem Econômica Internacional, destinada à superação da injustiça e

da desigualdade”. E mais à frente conclui que os resultados, “após três décadas de

negociações, revelam que o diálogo foi efetivamente instituído, não a nova ordem“ (2011, p.

420). Os textos então produzidos pela ONU significaram um avanço conceitual, “em grande

parte neutralizado pelo caráter não obrigatório em termos de direito” (op. cit. p. 420). Percebe-

se que o discurso contra-hegemônico, nesse momento, não produziu, na prática, conquistas

relevantes para os países em desenvolvimento.

Ainda assim, a partir da pressão dos países do então denominado “Terceiro Mundo”,

algumas ações começaram a tomar corpo, dentre elas o fortalecimento do Conselho

Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC), que, criado em 1947 para assistir a

Assembléia Geral nos temas de cooperação internacional, tinha débil atuação até então.

Desde a década de 1960, no entanto, esse órgão se constitui em importante fórum

de debates sobre assuntos econômicos e sociais, e atua como formulador de políticas dirigidas

aos Estados Membros buscando promover padrões de vida mais elevados para suas

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populações. Tem, ainda, o poder de iniciar estudos e produzir relatórios, ajudar na preparação

e organização de conferências com o propósito discutir e deliberar, sob a forma de tratados

internacionais, temas ligados ao desenvolvimento.

Outra iniciativa importante da ONU na promoção do desenvolvimento foi a

convocação da UNCTAD, Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento,

em 1964, em Nova Delhi, na Índia, que contou com a participação de 121 Estados membros. A

UNCTAD acabou por se tornar um órgão da Assembléia Geral da ONU (Florêncio, 2008).

Como prova do fortalecimento da atuação das Nações Unidas na questão do

desenvolvimento, por via da resolução 2029 da XX Assembléia Geral da ONU, criou-se, em

1965, um novo marco para a organização, o Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD). As ações que culminaram na criação do PNUD originaram-se da

dificuldade de países subdesenvolvidos em financiar seu próprio desenvolvimento. Assim, o

PNUD atua como um programa de assistência técnica cujo objetivo é oferecer melhores

condições para que investimentos para o desenvolvimento sejam realizados. Presente em 177

países e territórios no mundo, conta com a participação da sociedade civil e da iniciativa

privada.

A atuação da ONU, bem como de seus órgãos (como o ECOSOC) e programas (como o

PNUD), não se restringe, evidentemente, ao financiamento de ações com vistas ao

desenvolvimento de seus estados-membros, mas constituem-se, também, em espaço

fundamental de discussão e formulação de concepções sobre quais os caminhos mais viáveis

para se atingir tal fim. Conforme Sérgio de Abreu Florêncio afirma que a ONU ”ao longo da

maior parte de sua história, teve a virtude de formular ou divulgar conceitos e iniciativas que

exerceram visível influência na evolução das concepções de desenvolvimento e na defesa dos

interesses dos países em desenvolvimento” (2008, p.111).

Porém, depois de estabelecido um consenso de que a Organização deveria atuar

na promoção do desenvolvimento, ficou claro que não havia um consenso preciso em torno do

próprio conceito e, menos ainda, dos caminhos para se atingi-lo. Com efeito, conceituar

desenvolvimento é uma árdua tarefa, tendo em vista os inúmeros sentido atribuídos à palavra.

As concepções a esse respeito variaram ao longo das décadas posteriores à criação da ONU.

Inicialmente, influenciada pela visão de economistas de renome no campo dos neoclássicos, o

desenvolvimento era associado, ou melhor, quase identificado, ao crescimento econômico,

vislumbrado como “elevação do padrão de vida através do aumento sustentado na eficiência

dos fatores de produção. Esse fenômeno se daria por meio da transferência de recursos de

atividades menos produtivas para atividades mais produtivas” (FLORÊNCIO, 2008, p.114). De

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tal forma, recursos das atividades agrícolas, consideradas menos produtivas, deveriam ser

transferidos às atividades industriais, mais produtivas.

Em tal concepção, o desenvolvimento seria medido pelo Produto Interno Bruto (PIB),

que é uma representação do somatório feito em valores monetários, dos bens e serviços

produzidos durante um período temporal. O PIB é um indicador com larga utilização

macroeconômica e objetiva medir a atividade econômica de uma região. Martin Wolf (2009)

define PIB como:

O produto interno bruto é a medida do valor agregado bruto, das despesas com valor agregado bruto ou renda gerada peos fatores de produção dentro de deterinada jurisdição. Produto, despesas com o produto e renda gerada pela produção são sempre iguais, por definição. Em termos simples, o PIB é também igual a consumo do setor privado, mais consumo do setor público mais investimentos bruto do setor privado, mais investimento bruto do setor público mais a balança comercial de bens e serviços não-fatores. As vendas a não-residentes (ou seja, exportações) são contribuição para o produto interno enquanto as compras a não residentes (ou seja importações) são subtraidas do produto interno. (WOLF, p.204, 2009)

A identificação de desenvolvimento com crescimento econômico, e sua conseqüente

medição por meio do PIB, no entanto, mostrou-se insatisfatória, pois ficou claro que o aumento

do PIB de determinado país não resultava, necessariamente, em aumento na qualidade de vida

das famílias, ou seja, no acesso da população aos bens e serviços produzidos nesse país.

Dessa forma, a concepção de desenvolvimento dos primórdios das ONU sofreu mudanças na

década subseqüente, principalmente em virtude dos estudos realizados pelo ECOSOC e,

posteriormente, mais focados na realidade latino-americana, aqueles surgidos no seio da

Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL)2.

Nali J. Souza (apud Gilberto Batista de Oliveira 2002) sintetiza o cerne da discussão

em torno do tema:

Souza (1993) aponta a existência de duas correntes de pensamento econômico sobre o tema. A primeira corrente encara o crescimento como sinônimo de desenvolvimento, enquanto na segunda crescimento é condição indispensável para o desenvolvimento, mas não é condição suficiente. Na primeira corrente estão os modelos de crescimento da tradição clássica e neoclássica, como os de Harrod e Domar. Já na segunda corrente estão os economistas de orientação crítica, formados na tradição marxista ou cepalina, que conceitua o crescimento como uma simples variação quantitativa do produto, enquanto desenvolvimento é caracterizado por mudanças qualitativas no modo de vida das pessoas, nas instituições e nas estruturas produtivas.

2 A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) foi criada em 25 de fevereiro de 1948, pelo Conselho

Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC), e tem sua sede em Santiago, Chile. A CEPAL é uma das cinco comissões econômicas regionais das Nações Unidas (ONU). Foi criada para monitorar as políticas direcionadas à promoção do desenvolvimento econômico da região latino-americana, assessorar as ações encaminhadas para sua promoção e contribuir para reforçar as relações econômicas dos países da área, tanto entre si como com as demais nações do mundo. Posteriormente, seu trabalho ampliou-se para os países do Caribe e se incorporou o objetivo de promover o desenvolvimento social e sustentável. (www,cepal,org)

6 São exemplos dessa última corrente os economistas Raul Prebisch e Celso Furtado. O desenvolvimento deve ser encarado como um processo complexo de mudanças e transformações de ordem econômica, política e, principalmente, humana e social. Desenvolvimento nada mais é que o crescimento – incrementos positivos no produto e na renda – transformado para satisfazer as mais diversificadas necessidades do ser humano, tais como: saúde, educação habitação, transporte, alimentação, lazer, dentre outras.

A mudança progressiva em tais concepções resultou, também, na evolução dos

principais índices adotados pelas organizações internacionais e pelos Estados para aferir e

avaliar o desenvolvimento. A utilização do PIB, unicamente, embora útil para determinados fins,

pode camuflar a realidade social, por apresentar os números absolutos da riqueza de um país

sem levar em conta outros dados relevantes, tais como a população, a distribuição dessa

riqueza, dentre outros. Assim, países com o PIB semelhante podem apresentar diferenças

exorbitantes quanto ao tamanho da população e sua distribuição por atividades econômicas,

dentre outras, o que camuflaria a forma como a produção e distribuição dessas riquezas

afetam a vida das pessoas. Então, passou-se a utilizar, nas avaliações, o PIB per capita, que é

obtido pela divisão do PIB pela população de um país, de onde se obtém um valor médio por

habitante.

Embora esse índice permita um avanço na percepção da proporção de riquezas de

um país em relação à população, como toda média, camufla e oblitera as desigualdades na

distribuição de renda.

Assim, aliado aos índices acima (PIB e PIB per capita), utilizou-se, nas avaliações

das agências da ONU e dos Estados, para aferir o grau de desigualdade social, o índice ou

Coeficiente de Gini. Esse índice mede a concentração ou desigualdade de renda, e foi criado

pelo matemático italiano Conrado Gini, que o publicou no ano de 1912 dentro do documento

"Veriabilità e Mutabilità" (Em português: “variabilidade e mutabilidade”).

O coeficiente utilizado para realizar o cálculo da desigualdade na distribuição de

renda possibilita apontar a diferença entre rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos. A

variância numérica vai de zero a um (0 a 1), entendendo-se que o zero corresponde à

igualdade plena de renda, e um corresponde à desigualdade completa. Este índice representou

considerável avanço não apenas na medição da desigualdade, mas no próprio fato de chamar

a atenção para a questão. Ainda assim, resultou insuficiente para informar e orientar

apropriadamente os governos e instituições a respeito da questão do desenvolvimento.

Um avanço na compreensão de desenvolvimento: a contribuição de Amartya Sen

O economista indiano Amartya Sen, nascido em 1933, vem prestando uma enorme

contribuição ao estudo do desenvolvimento. Em trabalhos que adquiriram grande notoriedade,

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tais como "Poverty and Famines" (1983), "On Ethics and Economics” (1991), "On Economic

Inequality",(1997); e Desenvolvimento como Liberdade (1999), Sen buscou compreender áreas

como crescimento econômico, economia do bem-estar, pobreza e desigualdade,

desenvolvimento econômico dentre outras. O reconhecimento de sua contribuição resultou na

obtenção, em 1998, do Prêmio Nobel de Economia. Tendo passado boa parte da sua vida no

país natal, Sen não ficou restrito ao conhecimento teórico e acadêmico da pobreza e da

desigualdade, mas a vivenciou amplamente, fato que, evidentemente, o influenciou na

percepção da realidade e na elaboração de sua obra.

Os trabalhos de Sen possuem forte influência do precursor do liberalismo econômico,

Adam Smith, e de John Maynard Keynes, economista que questionou algumas premissas

fundamentais daquela teoria. Talvez por isso consigam conciliar elementos importantes de

teorias e práticas tradicionalmente opostas, tais como, por um lado, a ênfase na liberdade

individual, na liberdade de escolha e na eficiência do mercado e, por outro, a responsabilidade

do Estado em promover as condições concretas ou substantivas para que todos os indivíduos

possam buscar, autonomamente, a realização e o bem estar pessoal, competindo em

condições mais equilibradas. Quando tais condições não são proporcionadas pelo

funcionamento “natural” da economia, cabe ao Estado interferir para que estas se materializem.

Mercado e Estado têm, portanto, um papel essencial, sendo complementares – e não

antagônicos – na promoção do desenvolvimento, e este demanda a remoção das principais

causas da privação de liberdade: “pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e

destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência

excessiva de Estados repressivos (1999, p. 18).. Mais adiante Sen acrescenta que é

improvável pensar em um desenvolvimento substancial que se faça sem “o uso muito amplo de

mercados, mas isso não exclui o papel do custeio social, da regulamentação pública ou da boa

condução dos negócios do Estado quando eles podem enriquecer – ao invés de empobrecer –

a vida humana” (idem p.22).

O desenvolvimento consiste, segundo esse autor, na eliminação das privações de

liberdades que venham a limitar as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer sua

condição de agente. Como formas de privação de liberdade, podem-se citar: as fomes

coletivas, a subnutrição, o pouco acesso aos serviços de saúde, a falta de saneamento básico

ou água tratada, a morbidez prematura, a negação de liberdades políticas e dos direitos civis

básicos, ausência de direitos e liberdades democráticas (idem).

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Segundo Sen, as liberdades essenciais, resumidas em cinco aspectos, a saber:

liberdades políticas, facilidades econômicas, oportunidades sociais, garantias de transparência

e segurança protetora, teriam um papel instrumental e substantivo, ou seja, elas seriam tanto

um fim quanto um meio do desenvolvimento e seriam também complementares, na medida em

que cada uma delas promove o acesso às outras, e estas se reforçam.

Das cinco liberdades acima mencionadas, duas interessam mais de perto a este

trabalho, pois envolvem mais diretamente as famílias fragilizadas e a ação do Estado em

relação às mesmas: a) as oportunidades sociais: a promoção da educação e da saúde evitam

o analfabetismo e a morbidez; e b) segurança protetora: disposições institucionais fixas, como

benefícios aos desempregados e suplementos de renda regulamentares para os indigentes,

distribuições de alimentos em crises de fome coletiva, evitam que a população afetada seja

reduzida à miséria ou levada à fome e à morte.

Quando o próprio funcionamento do mercado e das relações sociais não permite o

acesso a tais liberdades, cabe ao Estado proporcioná-lo. Assim, o programa brasileiro de

transferência de renda com condicionalidades, que será referido mais adiante, o Bolsa Família,

atua nesse sentido, pois suplementa a renda das famílias em situação de pobreza ou extrema

pobreza e o faz com a condição de que tais famílias promovam o acesso de seus filhos à

educação e à saúde públicas. Esse tema será tratado mais adiante.

Foi fundamental o avanço proporcionado por Amartya Sen à compreensão do

desenvolvimento ao inserir nas discussões acadêmicas e políticas e na agenda internacional,

sobretudo por meio da ONU (via PNUD), o conceito de desenvolvimento humano. Demonstra

isto a realização da Conferência das Nações Unidas Sobre Desenvolvimento Sustentável, a

Rio + 20, ocorrida no Rio de Janeiro em junho de 2012, que incluiu a questão do

desenvolvimento e da inclusão social na agenda da sustentabilidade, concebendo-as como

indissociáveis.

No entanto, além do conceito, foi de extrema importância prática avançar do âmbito

teórico para o âmbito da aferição, ainda que aproximada, dos níveis de desenvolvimento das

sociedades de cada país, o que foi feito, juntamente com o paquistanês Mahbub ul Haq, por

meio da criação do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano)3, Isto permitiu aos governos

3 Cabe esclarecer que o IDH, como disse seu próprio criador, Amartya Sen, não tem a pretensão de abarcar de

forma absoluta e definitiva a avaliação do desenvolvimento. Ele pode e deve ser aprimorado no sentido de incorporar novos elementos, como, por exemplo, indicadores de sustentabilidade ambiental e igualdade de gênero. Com efeito, esse aprimoramento vem acontecendo de fato, visto que, recentemente, em 2010, para evitar as distorções típicas das médias gerais, foi criado o IDHAD (IDH ajustado à desigualdade), e o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM) e o Índice de Desigualdade de Gênero (IDG). Esses índices, entretanto, não serão utilizados neste trabalho, tendo em vista ainda não existirem aferições dos mesmos e dados em quantidade significativa.

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conhecer melhor as realidades nacionais, regionais e locais para elaborar e direcionar com

mais eficiência as políticas públicas.

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), criado em 1990 e usado desde 1993 nos

relatórios da ONU, é uma medida comparativa que engloba três dimensões: riqueza, educação

e expectativa de vida ao nascer. Na explicação do próprio PNUD:

O objetivo da criação do Índice de Desenvolvimento Humano foi o de oferecer um contraponto a outro indicador muito utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento. [...} o IDH pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvimento humano. Apesar de ampliar a perspectiva sobre o desenvolvimento humano, o IDH não abrange todos os aspectos de desenvolvimento e não é uma representação da "felicidade" das pessoas, nem indica "o melhor lugar no mundo para se viver". Democracia, participação, equidade, sustentabilidade são outros dos muitos aspectos do desenvolvimento humano que não são contemplados no IDH. O IDH tem o grande mérito de sintetizar a compreensão do tema e ampliar e fomentar o debate. (PNUD, online).

Os aspectos levados em consideração são:

Atualmente, os três pilares que constituem o IDH (saúde, educação e renda) são mensurados da seguinte forma:

Uma vida longa e saudável (saúde) é medida pela expectativa de vida;

O acesso ao conhecimento (educação) é medido por: i) média de anos de educação de adultos, que é o número médio de anos de educação recebidos durante a vida por pessoas a partir de 25 anos; e ii) a expectativa de anos de escolaridade para crianças na idade de iniciar a vida escolar, que é o número total de anos de escolaridade que uma criança na idade de iniciar a vida escolar pode esperar receber se os padrões prevalecentes de taxas de matrículas específicas por idade permanecerem os mesmos durante a vida da criança;

E o padrão de vida (renda) é medido pela Renda Nacional Bruta (RNB) per capita expressa em poder de paridade de compra (PPP) constante, em dólar, tendo 2005 como ano de referência. (PNUD).

A variância numérica vai de zero (nenhum desenvolvimento humano) até 1 (desenvolvimento

humano total), sendo que, evidentemente, não é possível que nenhum país se situe nos

extremos absolutos (zero ou um).

O Brasil, no ano de 2011, apresentou o IDH de 0, 718, o que permite considerá-lo um

país de desenvolvimento entre médio e alto, mas não totalmente desenvolvido. No entanto, as

médias sempre obscurecem dados importantes, tais como as diferenças regionais.Se forem

observados os dados do IDH para diferentes regiões brasileiras, percebe-se nitidamente a

diversidade no acesso aos bens e serviços pelas famílias, com uma nítida clivagem Norte-Sul.

Felizmente, a observação de tais diferenças permitiu ao governo focalizar suas ações em

regiões com padrões mais críticos, como o Norte e o Nordeste.

O Brasil vem demonstrando um avanço constante no IDH, tendo passado, segundo

dados da própria ONU, de 0,549 em 1990, para 0,692 em 2005 e para 0,718 em 2011, o que o

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aloca na 84ª posição no mundo (undp.org/em/data/map). Conforme avaliação divulgada pela

ONU, tal evolução se decompõe da seguinte forma:

A série histórica do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) para o Brasil revela uma retrospectiva positiva também a médio e a longo prazos. Entre 1980 e 2011, o valor do IDH subiu 31%, saltando de 0,549 para 0,718. Este desempenho foi puxado pelo aumento na expectativa de vida no país (11 anos no período), pela melhora na média de anos de escolaridade (4,6 anos a mais) e pelo crescimento também da renda nacional bruta (RNB) per capita (quase 40% entre 1980 e 2011). (onu.org.br/rdh)

O IDH, desde sua criação, no seio do PNUD, vem sendo utilizado pela ONU e pelos países que

a compõem como um referencial essencial ao direcionamento das ações governamentais.

Esse índice é a base de elaboração do RDH (relatório de desenvolvimento humano), publicado

anualmente por essa organização.

No Brasil, não apenas o IDH e os RDHs anuais são largamente utilizados pelo governo,

como serviram de referência para se criar um índice mais específico para as famílias: o IDF

(Índice de Desenvolvimento Familiar), como será visto adiante, e estabelecer metas para as

políticas públicas, como se detecta pela associação de várias dessas políticas aos Objetivos do

Milênio, estabelecidos pela ONU.

As políticas públicas brasileiras voltadas às famílias em situação de

vulnerabilidade na última década (2003-2012).

Tendo em vista o longo histórico de desigualdades sociais no Brasil, as várias esferas de

governo (municipal, estadual e federal) têm desempenhado, de alguma forma, um papel

constante na assistência às famílias desprovidas de recursos. Com maior ou menor

regularidade, com maior ou menor eficiência, utilizando-se de abordagens ora mais

assistencialistas ora mais participativas, o poder público no Brasil sempre assumiu uma parcela

de responsabilidade pela mitigação da miséria de famílias de baixa renda.

A exclusão e a desigualdade social no Brasil têm raízes na forma de colonização e na

adoção da escravidão como força de trabalho predominante. No entanto, desde o fim da

colonização e, posteriormente, da escravidão, o Estado pouco fez para reduzir esse traço

marcante da sociedade nacional.

Desde a década de 1930, diferentes governos adotaram políticas econômicas que

perseguem a modernização e a industrialização pela via da substituição de importações. Tal

opção, em que pesem os vários benefícios trazidos à economia brasileira, acabou por gerar o

efeito quase permanente da inflação, já que, na ausência de recursos próprios, vários governos

lançaram mão da emissão de moeda para financiar tais políticas. A inflação teve como

conseqüência social, ao longo de várias décadas, o empobrecimento de várias famílias,

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promovendo a exclusão. Além disso, a legislação social e as políticas públicas voltadas às

classes mais baixas sempre se dirigiram aos trabalhadores inseridos no mercado formal de

trabalho urbano, o que reforçou a exclusão social, ao longo do século XX, tanto da população

rural quanto da população urbana não inserida no mercado formal de trabalho.

À época do regime militar (1964-1985), as políticas voltadas à modernização e

industrialização da economia elevaram o Brasil à condição de oitava potência econômica

mundial, mas o custo social foi altíssimo, tendo em vista que a concentração de renda se

acentuou de forma drástica4.

A situação de extrema vulnerabilidade econômica do Brasil e dos países latino-

americanos na década de 1980, em razão da crise da dívida, resultou na dificuldade dos

governos em definir soberanamente suas políticas públicas, dentre elas, as políticas

assistenciais. Visto que o fundo público não era suficiente para financiá-las, verificou-se a

necessidade de recorrer a empréstimos de instituições internacionais como o FMI (Fundo

Monetário Internacional) e o Banco Mundial que impunham, em contrapartida, a adoção de

medidas de ajuste macroeconômico, como o receituário que ficou conhecido como Consenso

de Washington5, o que se refletiu enormemente na década seguinte.

Portanto, a década de 1990, no continente, caracterizou-se, em termos de políticas

públicas, pela adoção quase generalizada das teses liberais do referido “consenso”, tais como

a disciplina fiscal e a redução dos gastos públicos, o que afetou significativamente a destinação

de verbas públicas para políticas sociais.

No entanto, antes do fim dessa década, percebeu-se que tais medidas, embora

eficientes em alguns países e em alguns aspectos no sentido de promover crescimento

econômico, pouco efeito, ou mesmo efeitos negativos, apresentavam no que se referia à

redução da pobreza e à mitigação das desigualdades sociais. Conforme bem resume Tatiana

Oliveira:

4 Em 1960, antes do regime militar, portanto, o Coeficiente de Gini, no Brasil, era de 0,537. Ao longo do regime militar, terminado em 1985, esse índice subiu para 0,5828 em 1970, para 0,590 em 1979, e atingiu seu pico em 1989 (0,637) e 1990 (0,609), quando começou a cair, atingindo 0,53 em 2010, e 0,527, em 2011,retornando, portanto, aos patamares anteriores ao regime instaurado em 1964.Fonte: IPEA.ipeadata. www.ipea.gov.br. Acesso em 20/02/2011.

5 Consenso de Washington: termo cunhado por John Williamson para designar o conjunto de medidas de ajustes

macroeconômicos traçadas após reuniões dos membros do BIRD, FMI e do Departamento de Tesouro dos Estados Unidos, em novembro de 1989. As medidas buscavam orientar os governos a realizarem reformas de caráter neoliberal. Dez recomendações resultaram do consenso e posteriormente foram incorporadas às exigências para empréstimos do Fundo Monetário Internacional, a saber: Disciplina fiscal, Redução dos gastos públicos, Reforma tributária, Juros de mercado, Câmbio de mercado, Abertura comercial, Investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições, Privatização das estatais, Desregulamentação de legislação econômica e trabalhista, Direito à propriedade intelectual.

12 A tese do Estado mínimo, segundo a qual o mercado constitui um mecanismo para a eficiência alocativa de recursos, rejeitando, portanto, a intervenção governamental na economia, se eficaz nos países do norte desenvolvido, encontra fortes desafios no sul em desenvolvimento. Isto porque, ao contrário do pensamento liberal, de forma geral, nesta região do planeta, a assimetria de oportunidades é regra, não exceção. Nestes casos, onde há ausência de uma estrutura social igualitária, a não interferência do governo na tentativa de reparar tais desigualdades, acaba no mais das vezes, por reforçá-las. O mesmo acontece com os programas de auxílio à pobreza que se negam a reconhecer as necessidades de grupos específicos, sob o argumento de que uma política focalizada provocaria discriminação e distorções de mercado. (OLIVEIRA, s.d.)

As seguidas crises econômicas da década de 1980 e o recuo do Estado da assistência

social na década seguinte acentuaram enormemente a vulnerabilidade das famílias de baixa

renda, contribuindo para a desestruturação familiar e “repercutindo diretamente e de forma vil

nos mais vulneráveis desse grupo: os filhos, (...), se vêem ameaçados e violados em seus

direitos fundamentais” como sintetizam Gomes e Pereira (2005, p. 4):

É interessante observar que organizações e agências internacionais do sistema das

Nações Unidas apresentavam, nesse momento, visões muito distintas sobre o

desenvolvimento. Enquanto o FMI e o Banco Mundial se apegavam à ortodoxia liberal, o

ECOSOC, por meio do PNUD, embasava suas proposições na teoria do desenvolvimento

humano. O poder econômico das primeiras fez com que prevalecessem, nos primeiros anos da

década de 1990, suas posições. Percebe-se, nesse caso, que no seio do mesmo sistema,

convivem e disputam a hegemonia concepções divergentes, havendo, portanto, espaço para a

pluralidade e para o dissenso.

Ainda durante a década de 1990, no Brasil, desviando-se um pouco da ortodoxia liberal,

o governo de Itamar Franco promulgou a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS, Lei n.

8742/1993), que, já em seu artigo 1º, atribui ao Estado o dever de prestar assistência social:

“Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade

Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto

integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às

necessidades básicas” (BRASIL, 1993). E, No artigo 5º, III, reforça essa idéia ao afirmar a

“primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social em

cada esfera de governo” (idem).

O governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) implantou algumas políticas de

assistência social bem sucedidas, como o “vale-gás” e o “bolsa escola”, que foram aprimoradas

pelos governos posteriores. Além disso, o fim da espiral inflacionária, provocado pelo Plano

Real, teve efeitos redistributivos de grande importância na redução da pobreza e da

desigualdade social no Brasil. Além disso, a opção por uma política externa denominada

13

“Autonomia pela Integração”, que se caracterizava pela participação mais ativa nos

organismos e regimes internacionais, abriu espaço a um maior diálogo e mesmo à

aquiescência de várias recomendações deles oriundas.

Outro aspecto significativo nesse período foi que as próprias instituições internacionais,

na década de 1990, passam a recomendar que a família (e não os indivíduos) fosse eleita

como principal destinatária dos programas e políticas públicas de assistência social.

Não é objeto deste estudo o histórico das políticas sociais governamentais no Brasil,

mas apenas investigar, na última década (2003-2012), em que medida as recomendações e

concepções presentes nas organizações internacionais, sobretudo na ONU, estiveram

presentes ou influenciaram tais políticas, sobretudo aquelas voltadas às famílias.

O programa Bolsa-Família

Dentre as políticas públicas voltadas às famílias de baixa renda na última década, amplo

destaque se dá ao Programa Bolsa Família, visto que sua influência transcendeu a esfera

nacional, passou a servir de exemplo para governos de outros países que apresentam

problemas semelhantes e vem sendo elogiado por vários organismos internacionais6.

Este programa foi instituído em 2004, no início do segundo ano do governo de Luís

Inácio Lula da Silva, pela lei 10.836/2004, e se caracteriza como um programa de transferência

de renda com condicionalidades.

Criado pelo governo federal, o programa articula, em todas as fases de sua execução e

avaliação, as esferas federal, estadual e municipal. Conforme definição do Ministério do

Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), órgão do Executivo Federal brasileiro

encarregado do programa:

O Programa Bolsa Família (PBF) é um programa de transferência direta de renda que beneficia famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo o País. O Bolsa Família integra o Plano Brasil Sem Miséria (BSM), que tem como foco de atuação os 16 milhões de brasileiros com renda familiar per capita inferior a R$ 70 mensais, e está baseado na garantia de renda, inclusão produtiva e no acesso aos serviços públicos. (www.mds.gov.br)7

A definição de família presente na lei que institui o programa não se apresenta de forma

rígida ou tradicional, e parece incorporar a evolução da sociedade nas últimas décadas no que

se refere ao desenho familiar: “§ 1o Para fins do disposto nesta Lei, considera-se: I - família,

6 Várias notícias atestando o apoio e o reconhecimento do programa foram veiculadas nos meios de comunicação. Destaca-se a declaração do diretor do Banco Mundial no Brasil, publicada no site G1, pertencente à Rede Globo: “ ‘Desde 2003, o país fez progressos significativos na redução da pobreza, da desigualdade e para melhorar as oportunidades de desenvolvimento de sua população vulnerável’, disse o diretor do Banco Mundial para o Brasil, Makhtar Diop” (publicado em 17/09/2010). O Banco Mundial aportou ao BF, nessa ocasião, U$ 200 milhões, além dos U$ 572 milhões aportados em 2004, no início do programa. 7 Os valores da renda das famílias elegíveis são atualizados periodicamente e passaram de R$ 50,00 em 2004 para R$ 60,00 em 2006 e chegaram a R$ 70,00 em 2009, valor atual (2012).

14

a unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam

laços de parentesco ou de afinidade, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo

teto e que se mantém pela contribuição de seus membros” (BRASIL, 2004).

O foco desse programa são as famílias que se situam, conforme definições prévias8,

nas faixas da pobreza e extrema pobreza, e sua operacionalização exigiu a elaboração de um

instrumento para cadastrar tais famílias. Trata-se do Cadastro Único para Programas Sociais

do Governo Federal, ”um instrumento que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda,

entendidas como aquelas que têm renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa ou

renda mensal total de até três salários mínimos. (www.mds.gov.br)

Esse programa procura não se limitar ao alívio imediato da pobreza, mas tem como

objetivo romper a perpetuação da falta de oportunidades aos membros das famílias pobres por

meio da imposição de condicionalidades, quais sejam, a promoção do acesso das crianças à

educação básica e à saúde e o acompanhamento das gestantes no período pré e pós-natal.

O Bolsa Família possui três eixos principais focados na transferência de renda, condicionalidades e ações e programas complementares. A transferência de renda promove o alívio imediato da pobreza. As condicionalidades reforçam o acesso a direitos sociais básicos nas áreas de educação, saúde e assistência social. Já as ações e programas complementares objetivam o desenvolvimento das famílias, de modo que os beneficiários consigam superar a situação de vulnerabilidade (www.mds.gov.br)

Decorridos cerca de oito anos de sua implantação (2004 a 2012), não se podem ainda

avaliar todas as conseqüências de longo e médio prazo, mas já é possível avaliar alguns de

seus resultados, bem como tecer algumas críticas e apontar correções de rumo, o que,

efetivamente, vem sendo feito pela comunidade acadêmica e pelo próprio poder público.

Um fator de grande relevo é a amplitude do programa. Em fevereiro de 2011, foi

divulgado que Bolsa Família atingiu 12,9 milhões de famílias (cerca de 50,6 milhões de

pessoas) (www.mds.gov.br) Isto representa por volta de 26% da população brasileira.

Em trabalho que analisa vários estudos sobre os resultados desse programa de

transferência de renda, André Portela de Souza (in BACHA e SCHWARTZMAN, 2011) aponta

como aspecto positivo primeiramente o alto grau de focalização do programa, ou seja, ele

consegue, de fato, atingir as famílias pobres e extremamente pobres em um percentual

elevado, de forma a não dispersar recursos com um público alvo inadequado (famílias fora

dessas faixas) e a não deixar de fora do programa famílias necessitadas. Em segundo lugar,

houve um considerável impacto de curto prazo sobre a pobreza e a desigualdade, o que se

8 Segundo o Decreto nº 6.917/2009, que regulamenta aspectos da Lei nº 10.836, o foco em particular se dá em dois tipos de famílias: famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, caracterizadas pela renda familiar mensal per capita de até R$ 140,00 e R$ 70,00, respectivamente.

15

refletiu tanto na redução proporcional do número de pobres quanto na intensidade da

pobreza (p. 175). Conforme o autor:

(...) a presença do BF reduz a proporção de pobres de 21,7% para 20%, uma redução de 8% dos pobres. Já a intensidade da pobreza passa de 9,4% para 7,8%. Ou seja, a renda média dos pobres passa a ser 92,2% da linha da pobreza, o que corresponde a uma redução de 18% do hiato (...).(p. 177-8).

Portela aponta também outros estudos que avaliam o período entre 2001 e 2008 e que

apresentam conclusões semelhantes no que se refere à redução da pobreza Segundo ele, tais

estudos levaram a concluir que:

(...) há uma redução consistente ano a ano da desigualdade e da pobreza no Brasil. Em relação à desigualdade, o coeficiente de Gini passa de 0,594 em 2001 para 0,544 em 2008, um declínio de 8,4%. Embora o nível de desigualdade permaneça muito alto, essa redução observada é significativa, haja vista o fato de o Gini ser pouco sensível à variação das rendas dos mais pobres. Por sua vez, a extrema pobreza também declinou ao longo do período. (...). Para se ter uma idéia da magnitude dessa queda, ela corresponde a ter alcançado em cinco anos a meta para redução da extrema pobreza no Brasil estabelecida pelos objetivos do milênio da ONU que deveria ser alcançada em 25 anos (idem, p. 176).

Não se quer aqui afirmar que toda essa redução da desigualdade decorreu do programa

de transferência de renda, mas este teve, como demonstram vários estudos, um grande

impacto em tais resultados. No que diz respeito à educação infantil, Portela afirma que foi

verificado um impacto positivo tanto no que se refere à freqüência das crianças à escola quanto

na diminuição do atraso escolar. Entretanto, alerta para o fato de que tais ganhos foram ainda

bem pequenos (p. 177). No que se refere ao impacto do BF sobre a saúde das crianças, esse

autor afirma que os estudos por ele analisados não permitiram aferir diferenças significativas

entre as famílias beneficiárias e não beneficiárias.

É possível argumentar que o tempo decorrido de implantação do BF ainda é reduzido

para possibilitar estudos conclusivos. Ainda assim, apenas resultados positivos ou neutros (e

não negativos) foram apontados até o momento.

As influências das instituições do sistema das Nações Unidas nas concepções

que norteiam o programa Bolsa-Família

Como membro originário, o Brasil sempre se mostrou presente na discussão e

elaboração de propostas a respeito do desenvolvimento no seio da ONU. O País não figura

apenas como membro passivo, ou seja, “recebedor” da cooperação, mas ao mesmo tempo

influencia e é influenciado por suas concepções, assim como vem migrando, cada vez mais, do

papel de recebedor para o papel de promotor da cooperação (sobretudo com países da África

e da América do Sul)9. Assim, ao se identificar e se apontar as influências dos elementos

9 O próprio Banco Mundial afirma que “O Brasil passou de país receptor de cooperação para o desenvolvimento a promotor e exportador desses conhecimentos (...)” (worldbank, online); Também Lopes (2008) demonstra esse

processo de mudança do papel do Brasil na cooperação internacional..

16

oriundos das agências e programas das Nações Unidas no programa de transferência de

renda brasileiro, não se pretende, neste trabalho, afirmar que tal relação ocorreu de forma

unidirecional, no sentido ONU – Brasil, mas que é um reflexo da dinâmica de interação teórica

e prática entre esses dois atores internacionais.

Primeiramente, e de forma geral, a própria concepção de desenvolvimento humano que

busca não apenas o aumento do PIB, mas a melhoria de vida das pessoas já é visível em

programas de transferência de renda, visto que esses não impactam direta e imediatamente no

aumento do PIB, mas sim na melhoria de vida das famílias atendidas. A adoção do índice

proposto pelo PNUD (o IDH) e a criação, com base neste, do IDF pelo governo brasileiro, já

demonstra a afinidade de concepções. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à

Fome (MDS) define o IDF “um indicador sintético que mede o grau de desenvolvimento das

famílias, possibilitando apurar o grau de vulnerabilidade de cada família do CADÚNICO [...], e

varia entre 0 e 1 “(www.mdf.gov.br).

Tendo a família como alvo do programa, o MDS explicita a construção desse índice: “A

unidade de análise do IDF é a família e não o indivíduo. No entanto, o indicador de cada família

se constrói a partir dos dados pessoais de seus integrantes” (ibidem). Assim, de forma a

contemplar várias dimensões da pobreza e como elas afetam o desenvolvimento dos

indivíduos de um núcleo familiar, elaborou-se o IDF a partir de seis aspectos quais sejam:

”vulnerabilidade; acesso ao conhecimento; acesso ao trabalho; disponibilidade de recursos;

desenvolvimento infantil e condições habitacionais (ibidem)

Mas, além da concepção geral de desenvolvimento humano e do índice que lhe é próprio

(IDH), outros aspectos mais específicos podem ser encontrados.A idéia de que os indivíduos

devem ser livres e autônomos nas suas escolhas e na busca do bem estar de sua família se

materializa na distribuição dos cartões magnéticos com os quais é permitido o acesso ao

mercado, à escolha dos bens que se deseja comprar (a liberdade substantiva para comprar

alimentos e evitar a privação, ou seja, a fome). Na própria lei que regulamenta o Bolsa-Família

está estabelecida essa forma: “§ 11. Os benefícios a que se referem os incisos I e II do caput

serão pagos, mensalmente, por meio de cartão magnético bancário, fornecido pela Caixa

Econômica Federal, com a respectiva identificação do responsável mediante o Número de

Identificação Social - NIS, de uso do Governo Federal”.(BRASIL. Lei 10.836/2004)

Diferentemente de políticas assistenciais anteriores, não se distribuem produtos, como

cestas básicas, remédios, alimentos ou cobertores, produtos esses necessários, mas

fortemente sujeitos a manipulação e mau uso, como o uso clientelístico (distribuir cestas

básicas em troca de votos) ou a deterioração em armazéns públicos, por falta de cuidado. Além

17

disso, a distribuição de produtos e serviços parte de uma concepção tuteladora, na qual o

sujeito não tem autonomia para definir suas necessidades, pois elas já vêm definidas pelo

Estado.

Um terceiro aspecto, a escolha da mulher como principal destinatária dos benefícios do

Bolsa- Família10, demonstra algo que Amartya Sen já apontava em seus estudos: o papel da

mulher como agente emancipadora da família e da sociedade, tendo em vista, de forma geral,

seu maior envolvimento e compromisso com o bem estar familiar. Conforme vários estudos

analisados por esse autor, o aumento do poder das mulheres nas famílias e na sociedade, o

que pode ocorrer pela educação, pela alfabetização e, como é o caso aqui estudado, pelo

acesso à renda familiar, contribui decisivamente para reduzir a taxa de mortalidade e aumentar

o bem-estar das crianças (1999, p. 227). Quando a mulher tem um poder maior de influir nas

decisões intrafamiliares, dentre elas a destinação dos recursos disponíveis, ocorre, segundo o

autor, mais cuidado com a saúde e a educação das crianças. Além do papel intrafamiliar, o

empoderamento das mulheres contribui para “influenciar a natureza da discussão pública sobre

diversos temas sociais (...)” (p. 225), o que certamente ajuda a promover o desenvolvimento

humano.

Há que se ressaltar ainda o fato de que a transferência de renda pelo Bolsa Família se

faz mediante condicionalidades, quais sejam, a freqüência escolar e a manutenção da

vacinação das crianças e adolescentes, o que contribui, significativamente, para permitir o

acesso das novas gerações a, pelo menos, uma das liberdades instrumentais essenciais ao

pensamento do economista indiano, que a denomina “oportunidades sociais”. Obviamente, o

acesso à educação e aos serviços de saúde evita o analfabetismo e a morbidez, facilita o

acesso às demais liberdades instrumentais e permite a redução da transmissão intergeracional

das privações (desnutrição, morbidez evitável, falta de acesso à educação). Ainda que seja

legítimo levantar a crítica de que a existência de tais condicionalidades não significa que sejam

oferecidos pelo Estado serviços de saúde e educação de qualidade, a oferta é um primeiro

passo no caminho da inclusão social. Com efeito, estudos apontam que o Brasil conseguiu o

êxito de praticamente universalizar o acesso à educação básica, mas o aumento da quantidade

não foi acompanhado, de forma alguma, do aumento da qualidade do ensino oferecido

(VELOSO, in BACHA e SCHWARTZMAN, 2011).

Denota ainda estreita relação entre o governo brasileiro e as organizações internacionais

do sistema ONU, o comprometimento daquele com as metas estabelecidas por estas na

definição dos denominados “Objetivos do Milênio” (ODM).Em setembro de 2000,

representantes de 191 estados membros assinaram a Declaração do Milênio das Nações

10 Conforme a Lei 10.836, “ § 14. O pagamento dos benefícios previstos nesta Lei será feito preferencialmente à

mulher,na forma do regulamento” (BRASIL, Lei 10.836/2004).

18

Unidas, que contem os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. A partir da análise dos

principais problemas mundiais, e tendo como referencial os vários tratados e convenções

internacionais já existentes, tratados esses resultantes das conferências mundiais promovidas

pela ONU ao longo da década de 1990*, esse documento fixa um conjunto de compromissos

concretos dos Estados, com prazos definidos, indicadores estabelecidos, para alcançar o

desenvolvimento humano das populações mais necessitadas.

Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio alcançam vários aspectos da vida social, a

saber: a) acabar com a fome e a miséria; b) educação básica de qualidade para todos;

c)igualdade entre sexos e valorização da mulher; d) reduzir a mortalidade infantil; e) melhorar a

saúde das gestantes; f) combater a malária, a aids e outras doenças; g) qualidade de vida e

respeito ao meio ambiente; h) todo mundo trabalhando pelo desenvolvimento(www.onu.org.br).

Esses objetivos se dividem em metas mais específicas (dezoito) e quantificáveis (devem

ser monitoradas de acordo com quarenta e oito indicadores). O programa Bolsa Família se

insere no conjunto de iniciativas do governo brasileiro no sentido de atingir tais metas, visto que

se relaciona diretamente a, pelo menos, cinco desses objetivos (do primeiro ao quinto) e a

várias de suas metas. Nos próprios sítios eletrônicos dos órgãos do governo federal há

explícita menção a esses objetivos.

Por fim, há que se registrar que é possível identificar a relação íntima entre as políticas

públicas assistenciais do governo brasileiro e os organismos internacionais do sistema das

Nações Unidas pelo fato de que vários desses, como o Banco Mundial e o PNUD, não apenas

vêm elogiando e apontando o Bolsa Família como um exemplo para outros países, como

também financiando parte dos investimentos a ele destinados, conforme se viu.

Considerações finais

As políticas públicas do governo federal brasileiro com vistas ao desenvolvimento

nacional e, especificamente, à redução da pobreza e da desigualdade social, por meio da

transferência direta de renda, não surgiram de repente. Ao contrário, vêm de um vasto histórico

de evolução e mudanças nas relações entre o Estado e a sociedade civil (que oscilam entre

políticas mais ou menos intervencionistas, mais ou menos democráticas, conforme o período

que se analisa), bem como de mudanças no cenário das relações internacionais, que passou

por um redimensionamento da concepção de soberania, resultando em menor autonomia dos

Estados na elaboração de suas políticas públicas e maior influência das instituições e regimes

internacionais sobre os mesmos.

19

As relações internacionais contribuem com seu arcabouço teórico para que sejam

compreendidas as estruturas internacionais do poder, dentre elas, as organizações

internacionais. Essas buscam, dentro das competências estabelecidas pelos Estados

membros, cumprir suas funções não apenas de zelar pela paz e segurança internacional, mas

também de influenciar e cooperar com os Estados para que adotem políticas com vistas ao

desenvolvimento, seja de uma cidade, de uma região ou de um país.

A atuação dos Estados e das organizações internacionais, dentre elas a ONU, não

se faz no vazio de valores e idéias. Ao contrário, é permeada por conceitos, ideologias e

concepções a respeito da economia, do sistema internacional e do desenvolvimento. Ideologias

hegemônicas (como o liberalismo) estruturaram tais organismos e são por eles difundidas. No

entanto, ao contrário do que afirmam teóricos realistas, que vêem as OIGs apenas como mais

um espaço de poder para os países hegemônicos, no seio das mesmas há espaço para a

pluralidade e o conflito, de modo que se gestem e se difundam concepções divergentes,

quando não contra-hegemômicas, em um movimento dialético de oposição entre idéias que

leva ao surgimento de sínteses criativas. Dessa forma, do embate entre concepções liberais

(como a que identifica desenvolvimento com crescimento econômico e aquelas presentes no

“Consenso de Washington”) e concepções que pregam a maior intervenção estatal na

economia (desenvolvimentismo) ou a criação de uma Nova Ordem Econômica Internacional

(típica dos anos 1970), surgiram pensamentos criativos, com viés mais pragmático que

ideológico, que contribuíram para a compreensão do desenvolvimento. É o caso do

pensamento de Amartya Sen.

Assim, estudos econômicos e sociais de diversos pensadores ao longo do tempo,

inclusive aqueles promovidos por essas instituições (vide PNUD e CEPAL, na ONU),

contribuíram na luta para a diminuição da pobreza e da fome e para a promoção do bem estar

das populações. Como se viu, a idéia de desenvolvimento passou, no seio das Nações Unidas,

por várias mudanças. De uma noção que associava desenvolvimento simplesmente ao

crescimento econômico (aferida pelo aumento do PIB), sendo este obtido, sobretudo, pela

alocação de recursos do setor agrícola para o setor industrial, a uma percepção de que o

tamanho da população era também um dado relevante para se analisar o grau de

desenvolvimento (medido pelo PIB per capita) já se verifica uma evolução. No entanto, foi

necessário ainda percorrer um longo caminho para se perceber que as desigualdades na

distribuição de renda (demonstradas pelo índice Gini) eram um obstáculo ao verdadeiro

desenvolvimento. As receitas liberais, que pregavam o Estado mínimo e a conseqüente não

intervenção na economia e nas forças sociais, expressas no denominado “Consenso de

Washington” , na década de 1990, tampouco se mostraram eficientes na redução da pobreza e

20

na melhoria da qualidade de vida das populações dos países mais pobres. O livre jogo das

forças de mercado, tanto no âmbito interno quanto no internacional, expresso pela

globalização, embora tenha promovido crescimento econômico em alguns países, acabou por

aumentar, em muitos outros, as desigualdades entre as classes e as regiões. As próprias

instituições internacionais que promoveram (ou até mesmo impuseram) o referido “consenso”,

depois reconheceram suas limitações.

A percepção de que o desenvolvimento só faria sentido se realmente significasse a

melhoria de vida e do bem estar de cada ser humano no planeta foi um avanço significativo. E

este desenvolvimento deveria conjugar tanto elementos liberais (presentes na valorização da

liberdade como uma necessidade essencial ao ser humano) quanto intervencionistas

(perceptíveis na ação do Estado como agente promotor das liberdades substantivas). Tal

percepção, fortemente influenciada pelo economista e filósofo indiano Amartya Sen, criador do

conceito de desenvolvimento humano (sintetizado pelo IDH, elaborado por Sen e Mahbuq) foi

prontamente adotada pelas Nações Unidas (e, obviamente, pelo PNUD) e influenciou seus

estados membros, sobretudo os países em desenvolvimento.

No Brasil, ficou clara a influência da concepção acima na implantação, pelo governo

federal, do programa Bolsa Família, sobretudo no que se refere aos seguintes aspectos: a) a

adoção, pelo governo, de outro índice sintético inspirado no IDH, o IDF (Índice de

Desenvolvimento Familiar), que permitiu aprofundar a aferição do desenvolvimento humano no

seio das famílias; b) o recebimento de dinheiro e não mais de benefícios diretos (como cestas

básicas), proporcionando maior liberdade de escolha e adequação às necessidades

específicas de cada família c) a mulher como receptora primária do benefício, tendo em vista

os estudos que apontavam o empoderamento das mães como fator de redução da mortalidade

infantil e de aumento do bem estar familiar; d) a atuação do estado para promover a liberdade

substantiva – acabar com a fome, doenças evitáveis, pobreza, promover educação das

crianças; e) o compromisso do governo brasileiro com os ODM (Objetivos de Desenvolvimento

do Milênio), propostos pela ONU. No entanto, não se pretende afirmar que há uma imposição

unidirecional de tais políticas pelos organismos internacionais, mas que esses se constituem

em um espaço plural de permanente disputa entre concepções e ideologias hegemônicas e

contra-hegemônicas, espaço onde o Brasil se insere não como membro passivo, receptor de

recomendações, mas também como ente que propõe, questiona e reflete sobre tais

concepções.

A redução das desigualdades sociais entre os países, as populações, os gêneros e

as regiões, a melhoria na qualidade de vida das famílias, a redução das doenças e da

mortalidade infantil e a melhoria da educação são atualmente objetivos tão importantes, dentro

21

da ONU, quanto a manutenção da segurança internacional. Esta, por meio de seus estudos

e orientações, consegue, em geral, avançar rumo a resultados satisfatórios quando as

recomendações são seguidas por entes estatais, os influenciando, mas também os

estimulando a desenvolverem estudos próprios de como atingir esses objetivos. Este estudo

aponta a necessidade de se continuar e aprofundar as pesquisas a respeito da eficiência de

tais programas, de forma a aperfeiçoá-los permanentemente.

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