O Sonho e a Aventura, capítulo da obra Não Aceitei a Ortodoxia, Obra Completa de J. Marmelo e...

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1 Prefácio a Sonho e a Aventura A obra de José Marmelo e Silva revela ser uma obra literária que nos prende, que nos seduz, que grita, que dialoga, que se esconde e se furta a um desnudamento para depois se dar com toda a entrega rebelde de quem guardou algo do tesouro que fica por desvendar... Permite um diálogo que é contínuo, nem sempre pacífico ou linear, mas de significados inesgotáveis. Em José Marmelo e Silva são marcantes as relações cúmplices entre um macrocosmos e um microcosmos, um real e um referente, um exterior e um interior projectadas na relação interdependente entre um “Eu” e um “Nós”, à qual está subjacente a presença latente do “Eu” criador mascarado pela panóplia caleidoscópica de “Eus” ficcionais que funcionam como um reflexo, ou antes, como uma imagem possível do “Nós” factual, quando em intersecção relacional e múltipla com um certo “Onde” e um certo “Quando”. No fundo, a obra literária ensaia aproximações sucessivas com um real e adquire um significado interventivo, no entanto devemos ter sempre a consciência que toda a obra literária enceta voos de libertação de referentes de espaço, de tempo e de ser, estando, contudo, esta dimensão preexistente ao acto criador, de forma latente e palpitante e nem sempre óbvia ou explícita. A obra literária não se confina ao espartilho de uma definição de um real, mas antes liberta-se ao adivinhar-se-lhe a intenção, a intervenção e a força de sedução na metamorfose de eus em nós de outros lugares e de outros momentos... ao abordar a problemática de ser individual, intrinsecamente “Eu”, e ainda assim de sabor, vago ou não, colectivo: de tão singular se torna plural, nunca abandonando o que lhe confere a determinação de eu. José Marmelo e Silva posiciona-se na confluência de várias tendências estéticas que determinaram o seu grito literário... os ecos neo-realistas e os ecos presencistas, numa união paradoxal e perplexa do indivíduo e do real, quase que tornando o autor num «sociólogo de almas», ou seja, um ser atento profundamente interessado no todo complexo do indivíduo enquanto dimensão autónoma e enquanto dimensão dialogante com um real, de tempo e de espaço, que o afecta e que determina, em parte, o seu sentir, pensar e agir. Trata-se de um interesse pelo Ser, pelo Onde e pelo Quando, no momento em que interceptam relações de interdependência e casualidade. A obra de José Marmelo e Silva, na voz de um “Eu” projectado num “Nós” que seria, em última análise, Portugal, “é mais que uma autobiografia, é uma heterohistória é a representação criativa de todos nós que, de forma parcial ou total, nos reflecte, nos pinta e nos atrai num impulso narcísico de nos contemplarmos, nos embriaga com o prazer renovado da primeira vez.” 1 O “Eu” corresponde a uma força latente existente em cada um do “Nós”, promovendo a libertação exorcística de desejos, de ímpetos, de pensares, de emoções, de agires, possibilitando uma evasão catártica do interior mais recôndito de cada “Eu” – do ID, do “Eu” macroestrutural que preside a cada “Eu” e a cada “Nós”. Um “Eu” espartilhado entre si próprio porque é o que não quer, porque se sente diverso, múltiplo, plural, porque deseja libertar-se de si e dos outros e a comunidade, o colectivo que, por um lado, o obriga a ser e a agir como não quer e que, por outro, o motiva, o impulsiona à rebeldia, à rejeição, à vontade de libertação de si, do outro, dos outros por ser “Eu” autónomo, livre e liberto, pleno e total. Relatos de “Eus” masculinos que se relacionam com “Eus” femininos, em vivência, pressupondo revelações, ou em analepse, pressupondo confissões, mas sempre de uma intensa força anímica de existência revoltada ou vingativa (Narrativa Bárbara), culposa pretendendo um perdão exorcístico de culpas passadas (Depoimento), indignada perante a febre da ambição individual e colectiva suscitada por partilhas de heranças (Ladrão!), épica do «portador do fogo» de voz vibrante e mártir da liberdade que se anseia (Adolescente Agrilhoado), anquilosada a uma vida presa por condicionantes espácio-temporais que retardam uma realização pessoal (Anquilose), perplexa e indignada perante a força cúmplice de um amor lesbiano de partilha de desejos sem a sombra pecaminosa do ser masculino ( Sedução), familiar destruída pelo desgaste violento da ambição e do desejo de partilhas (O Ser e o Ter) e uma existência que grita por uma libertação da suspensão de um tempo e de um espaço que retêm o “Eu” no seu percurso evolutivo de ser ( Desnudez Uivante)... De todos “Eus” discorre um profundo desejo de libertação: do preconceito, da pobreza, da supremacia das classes privilegiadas, do tabu, da hipocrisia, da culpa, da ambição, da opressão repressora de um sistema e de um regime, da injustiça, da imobilização, da passividade, da inacção, da censura... essencialmente, respira-se um desejo de libertação de uma censura que, sendo invisível, se torna latente e palpável ao impedir destinos, desejos e vontades... Pressente-se muito concretamente uma alienação do indivíduo através de um amor-sexo que se deseja livre do espartilho do tabu, e uma vontade perene de vencer o “Onde” e o “Quando” subjacente a cada existência... É pertinente lançar um olhar significativamente 1 MORAIS SILVA, Maria Manuela, A intersecção do “Eu”, “Onde” e “Quando” na obra de José Marmelo e Silva, tese de mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, dactilografada e inédita, 1999, p.32.

Transcript of O Sonho e a Aventura, capítulo da obra Não Aceitei a Ortodoxia, Obra Completa de J. Marmelo e...

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Prefácio a Sonho e a Aventura

A obra de José Marmelo e Silva revela ser uma obra literária que nos prende, que nos seduz, que

grita, que dialoga, que se esconde e se furta a um desnudamento para depois se dar com toda a entrega

rebelde de quem guardou algo do tesouro que fica por desvendar... Permite um diálogo que é contínuo, nem

sempre pacífico ou linear, mas de significados inesgotáveis.

Em José Marmelo e Silva são marcantes as relações cúmplices entre um macrocosmos e um

microcosmos, um real e um referente, um exterior e um interior projectadas na relação interdependente entre

um “Eu” e um “Nós”, à qual está subjacente a presença latente do “Eu” criador mascarado pela panóplia

caleidoscópica de “Eus” ficcionais que funcionam como um reflexo, ou antes, como uma imagem possível do

“Nós” factual, quando em intersecção relacional e múltipla com um certo “Onde” e um certo “Quando”. No

fundo, a obra literária ensaia aproximações sucessivas com um real e adquire um significado interventivo, no

entanto devemos ter sempre a consciência que toda a obra literária enceta voos de libertação de referentes de

espaço, de tempo e de ser, estando, contudo, esta dimensão preexistente ao acto criador, de forma latente e

palpitante e nem sempre óbvia ou explícita. A obra literária não se confina ao espartilho de uma definição de

um real, mas antes liberta-se ao adivinhar-se-lhe a intenção, a intervenção e a força de sedução na

metamorfose de eus em nós de outros lugares e de outros momentos... ao abordar a problemática de ser

individual, intrinsecamente “Eu”, e ainda assim de sabor, vago ou não, colectivo: de tão singular se torna

plural, nunca abandonando o que lhe confere a determinação de eu. José Marmelo e Silva posiciona-se na

confluência de várias tendências estéticas que determinaram o seu grito literário... os ecos neo-realistas e os

ecos presencistas, numa união paradoxal e perplexa do indivíduo e do real, quase que tornando o autor num

«sociólogo de almas», ou seja, um ser atento profundamente interessado no todo complexo do indivíduo

enquanto dimensão autónoma e enquanto dimensão dialogante com um real, de tempo e de espaço, que o

afecta e que determina, em parte, o seu sentir, pensar e agir. Trata-se de um interesse pelo Ser, pelo Onde e

pelo Quando, no momento em que interceptam relações de interdependência e casualidade. A obra de José

Marmelo e Silva, na voz de um “Eu” projectado num “Nós” que seria, em última análise, Portugal, “é mais

que uma autobiografia, é uma heterohistória – é a representação criativa de todos nós que, de forma parcial

ou total, nos reflecte, nos pinta e nos atrai num impulso narcísico de nos contemplarmos, nos embriaga com o

prazer renovado da primeira vez.”1

O “Eu” corresponde a uma força latente existente em cada um do “Nós”, promovendo a libertação

exorcística de desejos, de ímpetos, de pensares, de emoções, de agires, possibilitando uma evasão catártica do

interior mais recôndito de cada “Eu” – do ID, do “Eu” macroestrutural que preside a cada “Eu” e a cada

“Nós”. Um “Eu” espartilhado entre si próprio – porque é o que não quer, porque se sente diverso, múltiplo,

plural, porque deseja libertar-se de si e dos outros – e a comunidade, o colectivo que, por um lado, o obriga a

ser e a agir como não quer e que, por outro, o motiva, o impulsiona à rebeldia, à rejeição, à vontade de

libertação de si, do outro, dos outros por ser “Eu” autónomo, livre e liberto, pleno e total.

Relatos de “Eus” masculinos que se relacionam com “Eus” femininos, em vivência, pressupondo

revelações, ou em analepse, pressupondo confissões, mas sempre de uma intensa força anímica de existência

revoltada ou vingativa (Narrativa Bárbara), culposa pretendendo um perdão exorcístico de culpas passadas

(Depoimento), indignada perante a febre da ambição – individual e colectiva – suscitada por partilhas de

heranças (Ladrão!), épica do «portador do fogo» de voz vibrante e mártir da liberdade que se anseia

(Adolescente Agrilhoado), anquilosada a uma vida presa por condicionantes espácio-temporais que retardam

uma realização pessoal (Anquilose), perplexa e indignada perante a força cúmplice de um amor lesbiano de

partilha de desejos sem a sombra pecaminosa do ser masculino (Sedução), familiar destruída pelo desgaste

violento da ambição e do desejo de partilhas (O Ser e o Ter) e uma existência que grita por uma libertação da

suspensão de um tempo e de um espaço que retêm o “Eu” no seu percurso evolutivo de ser (Desnudez

Uivante)... De todos “Eus” discorre um profundo desejo de libertação: do preconceito, da pobreza, da

supremacia das classes privilegiadas, do tabu, da hipocrisia, da culpa, da ambição, da opressão repressora de

um sistema e de um regime, da injustiça, da imobilização, da passividade, da inacção, da censura...

essencialmente, respira-se um desejo de libertação de uma censura que, sendo invisível, se torna latente e

palpável ao impedir destinos, desejos e vontades... Pressente-se muito concretamente uma alienação do

indivíduo através de um amor-sexo que se deseja livre do espartilho do tabu, e uma vontade perene de vencer

o “Onde” e o “Quando” subjacente a cada existência... É pertinente lançar um olhar significativamente

1 MORAIS SILVA, Maria Manuela, A intersecção do “Eu”, “Onde” e “Quando” na obra de José Marmelo e Silva, tese de mestrado apresentada à

Faculdade de Letras da Universidade do Porto, dactilografada e inédita, 1999, p.32.

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reflexivo ao cenário espacial e temporal, ao palco de actuação de “Eus” diversos e multifacetados com a

intenção de delinear o quadro completo da intersecção dos três vectores considerados essenciais para o

conhecimento da obra e do autor: o “Eu”, o “Onde” e o “Quando”.

Em diálogo aberto e franco, com a obra e o autor, um prazer sempre renovado por uma leitura que

nunca deixou de surpreender, que nunca desnudou por completo a alma da criação e do criador, mas que

tentou traduzir o seu grito, a sua intenção, a sua razão de existência, o seu testemunho de passado, de presente

e de projecção proléptica de futuro. Dialoguemos, pois, com Sonho e a Aventura, descubramos Narrativa

Bárbara, Depoimento e Ladrão!.

O “EU” que emerge em Sonho e a Aventura, tal como nas outras obras de José Marmelo e Silva,

esconde-se sob o nome de “Eus ficcionais” que, como imagem reflexo do “Eu factual criador” e do “Nós

factual”, constitui uma sedução individual e colectiva da comunidade: constitui uma panóplia de rostos, de

máscaras que, sem vida corpórea, presentifica uma vivência ficcional, emblemática duma vivência factual – é

a ficcionalidade ao serviço da factualidade através do processo de verosimilhança.

Um “Eu” diverso e plural no que diz respeito ao temperamento, ao carácter, ao sentir, ao pensar, ao

querer, ao agir, ao desejar, ao rejeitar, ao amar, ao odiar… enfim ao Ser. Um “Eu” que se expressa em cada

palavra, em cada atitude, em cada gesto, pensamento ou sentimento, revelando um “Eu” intrinsecamente

individual e abrangentemente colectivo: um “Eu”( “Nós”) que se revela, que evolui, que desabrocha, que

se interroga, que reflecte, que se emociona, que chora, que grita, que cala, que sofre e que tem vislumbres de

alegrias, de felicidade, porque assim é a vida, assim é o Ser no Real: uma vivência experiencial sofrida e

alegrada por acontecimentos e factos nem sempre em idênticas proporções e quase nunca nas proporções

desejadas. Talvez porque se trate de um “Eu” irrequieto, inconstante, insatisfeito, ou simplesmente um “Eu”

polifacetado, múltiplo, diverso, intenso, cromático, de diferentes olhares e sorrisos, de diferenciadas

perspectivas do viver, do sentir, do pensar, do agir…estando subjacente a cada rosto ou máscara a mesma

vontade de ser livre, intimamente, colectivamente livre, usufruindo duma liberdade plena, total, nirvânica, em

termos de Ser e de Real, em termos pessoais e comunitários.

Um “Eu” que é uma imagem e, ao mesmo tempo, uma memória e onde sopra o espírito do “Eu

factual criador” e do “Nós factual”, um “Eu” que adormece no nosso seio e que acorda a nossa consciência,

um “Eu” que nos espanta, nos choca, nos seduz, nos arrebata num impulso incapaz de deixar de sorver cada

gesto ou palavra seus.

Um “Eu” que ou vive intensamente ou se arrasta no lento morrer dos dias, numa atitude de morna

calma e de tépida monotonia e amando-se narcisicamente por se rebelar, por agir, por gritar, por tentar mudar

e odiando-se por se acomodar, por se acobardar, por ser inactivo, ineficaz, quieto, e eco do sistema social,

político, religioso, cultural instituído.

Um “Eu” que nos surpreende, nos choca, nos seduz ou nos repugna, mas que tem sempre o dom de

nunca nos deixar indiferentes.

Quem gosta de ver o seu reflexo? Quem aprecia a exposição dos seus mais secretos desejos, anseios,

quereres ou vontades? Quem se compraz com uma imagem diversa de si próprio? A resposta depende

obviamente do aspecto valorativo que essa imagem trará de cada “Eu” do “Nós”, implicando, assim, uma

pura adopção ou adesão narcísica, ou uma pura rejeição indignada. Em qualquer circunstância, o “Eu” está lá,

e, quer queiramos ou não, é uma imagem reflectora de cada “Eu” do “Nós”, parcial ou totalmente, individual

ou colectivamente.

Um “Eu” que para onde olha nos faz correr, um “Eu” que, se faltar, nos faz morrer, ou seja, faz

morrer um pouco de cada “Eu” do “Nós”, um “Eu”(ficcional) que pretende ser o meio de alcance do

conhecimento profundo do “Eu factual criador”, do “Nós”, de cada “Eu” do “Nós”, do interior mais

recôndito de cada “Eu” – ID, do “Eu” macroestrutural que preside a cada “Eu” e a cada “Nós”.

Um “Eu” que nunca nos esquece, nunca nos deixa ou abandona, nunca nos perde e sempre nos

recorda, a cada instante, como fomos, somos ou seremos, descobrindo ideais de rebeldia ou passividade,

escarnecendo do nosso medo e elogiando a nossa coragem.

Um “Eu” que fala quando cala, que nos impressiona quando, em silêncio, revela a angústia ou alegria

dum certo existir num certo “Onde” e “Quando”.

Um “Eu” que ama o “quem”, sem o qual não teria existência e pelo o qual age, pensa e sente num

triângulo comportamental esclarecedor de um padrão de atitudes que se tiveram, têm e terão e da forma como

se há-de lidar com elas.

Um “Eu” que pretende ser uma lição para o “quem” num “Onde” e “Quando”, uma lição a seguir e

abraçar ou a rejeitar, mas uma lição de consciencialização individual e colectiva, velada, subtil, mas

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premente, palpitante em cada palavra, gesto ou atitude, reveladora, denunciadora, esgueirando-se do olhar

dominador daquele que tudo vê, ouve e faz calar qualquer voz inoportuna, é a proibição institucionalizada, é

a censura aceite e necessária ao sistema que foi incapaz de encarcerar este “Eu”: não o conseguiu cingir,

torturar, porque a cada tentativa ele se volatiliza, se evapora, se torna num estado gasoso letal para o sistema e

precioso para o “Nós”.

Um “Eu” que foi a forma encontrada para fazer frente a um “Onde” e “Quando” e “quem”

amordaçados, calados, censurados; um “Eu” que foi o meio de organização dum caos existencial individual e

colectivo, um meio de libertação, ou melhor dizendo, de redenção do “Nós”, que , assim, pode Ser, falar,

expor, sentir, pensar, agir… silenciosamente, falando sem verbalizar, sentindo sem expressar, agindo sem

intervir, pensando sem revelar, expondo sem despoletar perseguições… mas cujo pensamento, sentimento,

acção ou exposição se tornou mais acutilante, mais duradoira, mais latente, porque sempre esteve lá, lá onde

não existem cárceres que aprisionem o sentido velado, o subtil e a sugestão.

É este “Eu” que vamos analisar, em Sonho e a Aventura, procurando construir uma rede de factores

comuns que ligam os vários “Eus ficcionais” de Narrativa Bárbara, Depoimento e Ladrão!, nunca

esquecendo a individualidade de cada obra e de cada “Eu”.

Vamos procurar traçar o retrato robot de cada “Eu”, para, desta forma, termos o retrato

paradigmático do “Nós”, não esquecendo que, muitas vezes, em alguns pormenores este “Eu” é

absolutamente individual e diferenciado e apenas nos restantes colectivo e total.

A obra de José Marmelo e Silva apresenta uma multiplicidade de rostos, uma panóplia de “Eus”, uma

diversidade de Ser que palpita numa diversidade de sentires, de pensares, de agires, de olhares e formas de

encarar o real. É a diversidade de desejos, de vontades, de sonhos, de anseios, de esperanças, de crenças, de

medos, de ilusões, de frustrações, de desilusões, de amores…de ódios que implicam uma multiplicidade

diferenciada de experiências e de vivências.

São “Eus” diferentes entre si, que emergem de cada frase, de cada palavra, de cada letra, que

escapam às fronteiras rígidas de um livro e que ganham vida própria através do acto de leitura reflexiva do

“Eu” factual que projecta e se projecta nos diversos “Eus” ficcionais que, num esforço de imaginação

fantasista, completam, complementam e complexificam a personalidade, o carácter, a vivência experiencial e

a visão da realidade de cada um. “Eus” que se volatilizam, voam e vivem independentemente da palavra

escrita, da frase lida num murmúrio sussurrante e ressuscitante da vivência. “Eus” voláteis, brilhando como

pirilampos em noite escura, atraindo com a sua luz uma escolha de múltiplos sentidos e vontades.

Perpassam perante os nossos olhos “Eus” jovens, adolescentes, adultos, simples, sofisticados,

ingénuos, vividos, ignorantes, cultos, pobres, humildes, ricos; “Eus” que agem, “Eus” que evoluem num

esforço de vivência enriquecedora, “Eus” que se auto-analisam e se completam num esforço de confissão

analéptica… “Eus” de diferentes máscaras, de diferentes feições, masculinos e femininos que pensam, sentem

e vivem o real de forma tão múltipla, tão diversa que preenchem o quadro das vivências e experiências

possíveis: são “Eus”“Nós”, porque são “Eus” com partes reveladoras, significativas de cada “Nós”. São

“Eus” sedutores pela autenticidade, pela crueza da sua vivência, pela franqueza confessada da sua

experiência… “EUS”!

Os “Eus” masculinos com voz activa no relato são vozes na primeira ou na terceira pessoa, mas

sempre principais, em função das quais todos os acontecimentos, todos os indivíduos, todos os factos

gravitam… São o centro do relato, o princípio e o fim deste último, são a sua causa e a sua consequência…

São a representação de um viver, de um sentir, de um olhar masculino face à vida, à existência, ao passado,

ao presente, aos outros… uma representação múltipla, diferenciada, caleidoscópica de um Ser Homem.

Estes “Eus” masculinos poderão classificar-se em dois grandes grupos “Eus” em Vivência

Revelações e “Eus” em Analepse Confissões. Os “Eus” em Vivência Revelações são “Eus” que, num

processo gradual e contínuo, se vão revelando, se vão mostrando ou escondendo, aparecendo ou fugindo,

materializando-se ou evaporando-se num esforço de volatilização, mas sempre no sentido de uma revelação

explícita ou implícita de um viver, de um sentir, de um pensar, de um sonhar, de um agir numa atitude de

fantasia e de revelação do Real.

São “Eus” que vivem um tempo e um espaço, um “Quando” e um “Onde”, seus contemporâneos,

vivendo, experienciando situações e emoções à medida que crescem, se desenvolvem, se tornam maturos ou

se esforçam por prolongar uma infância extemporânea, ou uma adolescência tardia, num esforço ilusório de

reprimir ou retardar um crescer inevitável, inexorável.

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Havendo “Eus” que, por outro lado, antecipam um crescimento, uma maturidade, um pensamento,

uma acção, um sentimento numa atitude correspondente a uma vontade de antecipação de um querer e de um

viver mais adulto, mais velho, mais autónomo.

São “Eus” em progressão, vivendo um presente seu contemporâneo, reflectindo sobre esse presente

ou sobre um passado relativamente próximo cuja vivência foi testemunhada.

Estes “Eus” decidem, optam, sofrem, alegram-se, odeiam, amam, seduzem, apaixonam-se, temem…

enfim vivem o sofrimento, a alegria, o ódio, o amor, a paixão, o sexo, o medo num tempo que decorre em

paralelo com a sua vida, com a sua existência num espaço contemporâneo da sua experiência.

São “Eus” que exemplificam uma vivência, uma existência, um viver feito de opções, de emoções, de

pensamentos, de acções surgidas no momento exacto do acontecimento e da reacção do indivíduo.

Estes “Eus” não são verdadeiros “Eus”, sob o ponto de vista narratológico, são falsos “Eus”, porque

correspondem a Eles, narratologicamente falando, ou seja, a personagens que desempenham o papel de herói,

de protagonista ou de personagem principal, constituindo uma narrativa na terceira pessoa.

A opção pela nomenclatura “Eus” prende-se com o facto destas personagens inflamarem a narrativa

com o seu viver, pensar, sentir… enfim com a sua existência. É a sua permanência persistente e palpitante

que inunda a palavra, a frase, o relato, inebriando o sentido e seduzindo… Uma sedução de um Ser, de um

Ele que, pela sua existência plena, total, se transforma num “Eu”… “Eus”…

São “Eus” em Vivência que representam uma Revelação. Conheçamo-los!

O “Eu” da Narrativa Bárbara2 é um “Eu” masculino principal que domina a narrativa com os seus

medos, as suas vontades, os seus anseios, o seu génio, o seu pensamento, a sua emoção, o seu sentimento…

enfim com a sua presença constante, sendo o ponto de partida e de chegada da narrativa. Uma personalidade

e um carácter marcantes que lhe dão um lugar de primeiro plano nesta narrativa na terceira pessoa.

É um “Eu” masculino paradigmático dum certo Ser num certo Real, nomeadamente dum Ser

adolescente em transição para a idade adulta num Real campestre, provinciano, evidenciando um pensar, um

sentir e um agir específicos e característicos dessa fase de evolução pessoal e desse local geográfico.

É um “Eu” masculino paradigmático que, no entanto, na nossa opinião, não se reveste da

nomenclatura de personagem tipo, uma vez que evidencia uma vida própria, uma intensa vida interior,

conflitos interiores e com terceiros, e age de surpresa com espontaneidade, não obedecendo a um padrão de

comportamento ou sentimento, mas representando um paradigma de pensar, sentir e agir dum “Eu” que tem,

obviamente, eco no “Nós”.

Não se trata de uma personagem tipo, mas de uma personagem, de um “Eu ficcional” que, pelo

processo de reflexo e projecção “Eu”( “Nós”), presentifica um determinado Ser abrangente e vasto num

determinado e específico Real.

Trata-se de um “Eu” masculino dominante que responde ao nome de Libânio, cuja força e poder

emblemáticos advêm do simples facto de protagonizar muitos dos nossos desejos e muitos dos nossos medos,

desilusões e frustrações.

Um “Eu” masculino que dá voz e acção ao nosso desejo de valentia, cumpre com coragem um génio

defensor da honra e do que é seu; cumpre, com uma virilidade ingénua, mas brutal, um desejo de vingança

simples3, resposta interventiva de ameaças verbalizadas nem sempre levadas a sério por outrem

4 e talvez até

por nós-leitores, que não é mais do que a libertação do pobre e do oprimido do jugo avassalador, quase

feudal, do rico e do explorador sem escrúpulos.

É a libertação dum sistema, dissemos atrás, quase feudal, onde o direito de pernada se não era aceite

pelos pais e maridos, era vergonhosamente tolerado ou suportado, devido ao poder do dinheiro, da promessa

de ganhos ou de vinho ou de qualquer outro bem material5.

2 O Sonho e a Aventura, José Marmelo e Silva, 2ª edição, Lisboa, Editora Ulisseia, 1965, pp.11 a 25. 3 Idem, p. 25, “ Ao outro dia, o Noitebó amanheceu suspenso da trave do alpendre da sua própria casa – numa atitude de suícidio inexplicável – com

a língua de meio metro, negra e regelada.” 4 Idem, pp.19 e 20, “- Pois aqui está quem é capaz de lhe arrancar os olhos, ó bigorrilhas, de lhe rilhar a madre da fressura, se ele tiver só um aceno

porco para a Dosanjos.

Desataram os outros a rir, como se aquilo não passasse de basófia. «E esta? Pareciam mofá-lo agora, desde que ficara livre na inspecção!»

Exasperado, bufou:

- Sou capaz que vos o digo eu!

Arrojou a carapuça aos pés, raivoso contra a vida, e, calcando-a, gritou:

- Raios me partam! E quem não acreditar, rilho-o já.

(O seu desafio estremecia a terra):

- Covardes! Eu sou um homem! Já não vedes em mim o Zé Libânio?!” 5 Idem, p. 19, “- Sabem quem levou esta noite toda na boa-vai-ela? Foi cá o rapaz. Com o Noitebó! Aquilo é um patrão, carago!

- O avejão da noite!

- É o senhor do vale. Vem começar o varejo.

5

É um “Eu” masculino que não suporta pagamento de pedidos com favores sexuais6, que não

permite, porque lhe repugna, a posse animalesca, bestial de quem ama por quem não ama, mas cobiça num

desejo voraz de cópula clandestina, sub-reptícia e opressora7 que é mais do que um acto físico, é a

demonstração dum poder social e económico.

É um “Eu” masculino que faz justiça por suas próprias mãos, cometendo uma falta sem pena, um

crime sem castigo, porque mais do que um crime, foi uma reposição da justiça social e o terminar de uma

injustiça centenária.

Um “Eu” masculino que dá voz aos nossos medos, desilusões e frustrações. Um medo de não ser

respeitado ou considerado por outrem, sendo esse medo que conduz à acção e não propriamente a valentia,

ou talvez ambos num abraço empático de comunhão8.

Um medo de falhar, de não cumprir expectativas, de não ser aceite pela ordem instituída que quer ver

alterada, mas na qual pretende um lugar9, um medo de ser ninguém, de não realizar a transição da

adolescência para a idade adulta, um medo de não ser homem, representado, no relato, pelo ritual iniciático

da tropa, que corresponde a uma visão inocente de crescimento, de cumprimento do ritual de abandono da

adolescência e entrada na idade adulta. A tropa… vista como a altura de se tornar e demonstrar homem viril,

sendo mais do que uma demonstração de patriotismo ou de coragem, antes vista como um perder de

virgindade física e psicológica, onde se alcança uma virilidade sensual, mesmo sexual, e o estatuto de

homem.

Este “Eu” masculino, ao contrário de tantos outros, não integrou a tropa, não perdeu a virgindade…

guardou esta para quem amava e demonstrou toda a sua coragem viril numa vingança já manchada pelo

sangue virgem de Maria dos Anjos, derramado para ele não se ausentar, sofrer ou morrer na tropa, mas

derramado por outro, cuja influência social exigiu um ritual de posse de desamor, um ritual apenas de uma

convulsão de desejo ensanguentado. Um “Eu” masculino principal, órfão, de pai e de mãe, vivendo com tio

Taimão, que viu nele a protecção e o amparo da velhice, por uma piedade compassiva comprometida com

objectivos menos nobres e mais egoístas10

.

Uma orfandade que aprofunda o seu desejo de liberdade e intensifica o amor sentido, a noção de

posse, de “seu”, e arrebata em ciúme um “Eu” corajoso, ingénuo, simples, verdadeiro11

, cuja noção de si, dos

outros, do mundo lhe advém dum contacto absoluto com a terra, com o campo, que lhe permite Ser,

simplesmente ser ou existir sem medo de si, do outro ou do real12

.

Um contacto que imprime ao “Eu” um Ser agreste, crescido ao sabor do vento, saciado ao sabor da

água do rio, aquecido aos raios do sol, enrijecido pelo frio do gelo, da geada ou da neve.

Em torno deste “Eu” masculino principal e dominante vagueiam “Eus” satélites masculinos e um

feminino, que condicionam a estrutura de pensamento e comportamento de Libânio, o primeiro citado.

Digamos que este se opõe directamente a Noitebó, o senhor do vale, esse quase senhor feudal,

sexualmente ávido, vindo da cidade para cumprir uma tarefa sazonal de colheita e de posse clandestina,

havendo como que um confronto de dois pólos: o bem – Libânio – e o mal – Noitebó, este sim uma

personagem tipo, sem direito a voz, cuja actuação não se desvia dum padrão de comportamento, cumprindo

um carácter e um temperamento abusadores, exploradores de quem tem terras, dinheiro, enfim, bens e posses.

- Vem arrebanhar as cachopas.

- Vem apalpar as nossas mulheres e nós nem tugimos nem mugimos. Lorpas!

- Disse que este ano que vai ser um a-eito… - jactava-se o Borralheira, atiçador.” 6 Idem, p. 23, “« - Pedaço de asno! Pateta! Eu pedi ao «senhor do vale» e ele livrou-te e muito bem! Ouviste agora?» « - Mentira! Sou eu que não

presto para nada!» Ah, finalmente, descobria a verdade, dava alívio ao seu pesar! As lágrimas saltaram-lhe de desespero, lembrava-se bem.” 7 Idem, p. 22, “Viu a ruína das ruínas, os cavalos velozes do apocalipse. Viu os ossos levantarem-se das sepulturas, caminharem para o juízo

final.Viu no mistério da noite, a Maria dos Anjos sair do alpendre do Noitebó, cosida contra a parede, e escapulir-se direita ao chafariz, de cântaro à

cabeça.Viu o Noitebó e a Dosanjos num só vulto, num só corpo, num só respirar diabólico. Sim, ao fundo da trave do alpendre, onde há um montão de

palha fresca. Libânio: antes fosses enterrado em cal viva, Libânio, ou arrastado serra abaixo pelo rabo dum potro a galope!” 8 Idem, p. 24, “- Começas é a ter medo, Zé Libânio! – escarneceu-o o Samporritas. (E o Samporritas era o último dos fracos).

Sim, que dúvida! Para o Noitebó, que se passeava sobre o dorso dos caseiros do vale, não havia respeito, nem honra, nem temor de Deus. Sempre

levou a melhor, mesmo contra os pobres todos juntos. E que diriam agora do Libânio, nas tascas, nos varejos, nas feiras, no adro das igrejas, em toda a

parte? « - Olha o cobardola! Olha… Disse que fazia e que acontecia, vai-se a ver, saiu mais manso que os mansos! Ah-ah-ah!»” 9 Idem, p. 18, “«Afinal, não presto para nada, não servi para a tropa!»” 10 Idem, pp. 12 e 13, “Já a mãe tinha morrido, andava ele de eito, ficou agora no mundo sem ninguém. O tio Taimão, caseiro dum desses senhores da

planície que vivem sem precisão de trabalhar, pressentiu no garoto a ajuda futura necessária (a manha e o desgaste cresciam a par do tio Taimão),

acolheu-o no seu casaréu, para além do povo. Assim, um pouco como Deus quis, o pequeno Libânio medrou.” 11 Idem, p. 17, “Sabe Deus o negro pensamento que o consumia.«Levasse o Noitebó o suor de toda a gente, todo o milho, todo o feijão da terra, mas

que a deixasse a ela em paz, no fundo do cerro. Somos tanto um do outro!» - repetia pela noite fora a sua voz interior.” 12 Idem, p.13, “Era ainda no campo, no meio de suores e agruras, que ele encontrava a possibilidade dum viver sem medo e sem revolta.

No verão, sobretudo, o trabalho no vale, precisamente porque esforçado e em absoluta comunhão com a terra, tinha o gosto acre-doce da violência e

da saudade.”

6

O que Noitebó faz é veiculado por outrem que com Libânio se relaciona e as suas atitudes nunca espantam,

apenas repugnam, porque são paradigmáticas dentro de um certo tipo de ser e de agir da classe dominante.

Os “Eus” em Analepse Confissões são “Eus” que se confessam… confessam as suas experiências,

as suas vivências, as suas opções, as suas decisões, os seus amores, os seus ódios, os seus desejos mais

inconfessados, sugerem um arrependimento palpitante na sua consciência acerca do que fizeram, disseram,

decidiram ou optaram ou sobre o que deveriam ter feito, dito, decidido ou optado.

São “Eus” que lançam ao passado, ao seu passado, um olhar condoído, numa atitude reflexiva de

análise introspectiva possibilitada por uma viagem de memória que faz reviver experiências, relações,

amizades, amores, ódios… uma viagem de esforço de auto-análise correspondente a um querer exorcístico de

recalcamentos, de remorsos como se esta viagem ao passado significasse a sublimação catártica de qualquer

vivência já ocorrida, já experienciada, já existente na vida e na memória do “Eu”.

São “Eus” que se expõem, que se desnudam, que deixam transparecer o seu íntimo, que se deixam

julgar, como se pretendessem o veredicto do juízo final antes do encontro com o Eterno.

São “Eus” que, voluntariamente, realizam o processo de recordação possibilitado pela analepse,

demonstrando um vago, mas persistente desejo de partilha de uma vivência num determinado “Onde” e

“Quando”, num intuito de testemunhar um certo viver individual, social, enfim, comunitário.

São “Eus” que se revelam corajosos pelo esforço de confissão e que, através de uma exposição

arrependida, pretendem a desculpabilização pelo egoísmo passado, pela falta de coragem, por um viver sem

rasgo e acorrentado. Trata-se de “Eus” que regressam ao momento e ao local do «crime» cometido no

passado e que permaneceu sem castigo, além de uma consciência exigente de reparação. Esta surge com um

relato, com um reviver escrito analéptico que suscita um reexperienciar de factos, de ocorrências, apenas com

um olhar diferente: o da consciência crescida ao longo do tempo e do arrependimento.

São “Eus” em analepse que realizam confissões.

Depoimento13 apresenta-nos um “Eu” dominante, participativo e reflexivo. É um “Eu” masculino que

desempenha o papel principal da narrativa na primeira pessoa. Acumula o papel de personagem principal

com o papel de narrador, um narrador homo e autodiegético14

, um narrador-personagem que reflecte sobre si

próprio, sobre determinadas experiências vivências; um eu-narrador que, no presente, lança ao passado um

olhar analítico de si, dos outros e dos acontecimentos numa viagem de memória, de análise, de reflexão, onde

um “Eu” se auto-conhece e se dá a conhecer como elemento individual da comunidade e como ser social.

Este “Eu” principal masculino que monopoliza a nossa atenção surge, emerge, domina e revela um

ser paradigmático dum certo padrão de sentir, pensar e agir num certo “Onde” geográfico, social, económico

e cultural e num certo “Quando” adulto, mas jovem já enriquecido experiencialmente ou empobrecido

humanamente ou apenas vivido. É um ser paradigmático, no entanto não se assume como personagem tipo,

uma vez que evidencia profundidade psicológica, conflitos interiores, enfim uma vivência interior, pessoal,

espiritual sua que não deixa de ser emblemática dum certo “Nós”, ou seja, um “Eu” ficcional que, através do

processo de projecção e sedução “Eu”( “Nós”), presentifica o modo como um certo “Nós” age, pensa

sente e, em simultâneo, dá voz à faceta mais vil e menos humana que existe em cada “Eu” do “Nós”.

Através dele podemos ser brutais, violentos, indiferentes aos outros, podemos tratá-los com desprezo,

podemos sentir náusea da pobreza disfarçada, podemos ter vislumbres de compaixão, mas sobretudo

podemos usar os outros em proveito próprio sem nunca deixar de nos sentirmos alheios aos outros, às suas

vontades, desejos ou sofrimentos. Através deste ser paradigmático podemos ser frios, gelar os sentimentos

dos outros, podemos ter nas nossas mãos o destino dos outros e dar-lhes o caminho que pretendemos,

podemos cometer crimes sem pena, sem castigo e, momentaneamente, considerados sem culpa pelo nosso

juízo de valor.

Através deste ser emblemático podemos ser vividos, podemos contactar com um mundo nocturno de

orgia, podemos viver essa faceta do ser, mas, ao mesmo tempo, que este ser nos dá a possibilidade de

experienciar uma certa faceta do nosso ser individual e social, também nos proporciona o choque de nos

vermos a nós próprios, de observarmos as causas e as consequências de certas atitudes, de certos sentires e

pensares e possibilita-nos a reflexão introspectiva, ou seja, a reflexão dum Ser sobre o próprio ser, pessoa

individual e social.

É este “Eu” principal masculino, este ser emblemático e paradigma do “Eu” e do “Nós”, que se

debate numa relação controversa de fascínio e repulsa, porque é um ser que nos fascina pelas possibilidades

13 O Sonho e a Aventura, José Marmelo e Silva, 2ª Edição, Lisboa, Editora Ulisseia, 1965, pp. 29 a 98. 14 São evidentes as marcas da primeira pessoa, a nível verbal e pronominal.

Idem, p. 29, “Durante o meu curso de miliciano em Mafra, fui surpreendido por um acontecimento bem frisante.”

7

que nos proporciona, pelas hipóteses de fazermos e sermos o censurado, o proibido, o imoral; contudo suscita

repulsa pela imagem fria, indiferente e violenta que revela, que transmite como ser singular e plural.

Este “Eu” principal masculino responde ao nome de José, é o primo José, apesar do nome ser

irrelevante, muito pouco mencionado, isto porque o mais importante não é o nome, é o laço de parentesco

que liga as várias personagens e sobretudo a pluralidade emblemática dum ser cujo nome é irrelevante,

inconsequente, porque é “Eu” e “Nós”.

É um “Eu” principal masculino fugidio, é difícil cingi-lo, porque se volatiliza, porque o perdemos de

vista e sobretudo porque o vamos encontrar dentro de nós, e é sempre difícil cingir o nosso “Eu” ou algumas

das suas facetas.

O primo José sente-se social, económica e culturalmente superior, não querendo, contudo,

inicialmente, ostentar a sua superioridade15

, só que esta é um dado adquirido, sentida não só pelo “Eu”, mas

conferida por outrem, nomeadamente as suas primas afastadas, D.Conceição e Lia.

De facto, inicialmente, este “Eu” principal masculino não ostenta qualquer superioridade, mas esta é

evidenciada através do agir, do pensar e do sentir: o primo José tem um comportamento pouco à vontade

com a pobreza disfarçada das suas parentas, e age de forma pouco humilde como se pudesse dominar e

utilizar esses seres consoante a sua vontade, o seu desejo e prazer, como se elas constituíssem o seu pequeno

mundo de brincar, um mundo onde seria ele a mandar, a decidir destinos e a traçar caminhos de vida,

ignorando censuras de D.Conceição, reservas, receios ou a timidez virgem de Lia16

.

Trata-se, inicialmente de uma superioridade não consciencializada, não reflectida, não pensada, mas

exercida sob o impulso irreprimível da sedução, da conquista, do fascínio e posse de alguém totalmente

virgem, espiritual e fisicamente intocável e, assim, duma sensualidade por descobrir, por despertar, por

possuir.

Quando se apercebe do receio e total virgindade de Lia, toma consciência de que o seu jogo de

sedução e conquista é perigoso, porque significará para Lia a união, a libertação dum mundo pobre, humilde

e oprimido e a entrada num mundo luminoso de vida partilhada a dois.

Contudo, essa consciencialização não reprime o impulso sensual de posse de Lia, não consegue

concretizar um afastamento digno, mas é apagada pelo desejo, pela expectativa de prazer proibido que

desencadeia um alheamento indiferente perante a sorte e o sentimento dos outros: Lia e sua mãe, D.

Conceição.

Por outro lado, a personagem José pensa e sente de forma superior17

, de forma a utilizar os outros,

nomeadamente Lia, para seu proveito, conforto e prazer próprios sem reflectir nesse “Eu” feminino, nos seus

sentimentos, nas suas expectativas, criadas por comportamentos, palavras, olhares lançados pelo seu “Eu”

masculino, essa sua faceta de macho que não consegue evitar um sorriso de satisfação pela entrega submissa

de alguém que se quer perder, dar e encontrar num amor de homem.

Contudo, a superioridade do “Eu” principal masculino mais que palpável na sua acção, sentimento ou

pensamento, é conferida por outrem, nomeadamente D. Conceição e sobretudo Lia.

São elas que o convidam para sua casa, como hóspede de um dos seus quartos18

, que ele aceita19

,

porque, não tendo nenhuma razão especial, é movido por uma certa curiosidade de conhecer essas primas

15 Idem, p.34, “Nunca nos faltou o essencial. Que espécie de superioridade confere às pessoas educadas este simples pormenor de viver! Desejaria

agora não ostentar nada disto aqui; mas é simplesmente para fazer compreender como aquele parentesco da última hora (avivado da pobreza disfarçada,

é bem de ver) encontrou em mim uma reacção social suficientemente forte para não transigir com ele.” 16 Idem, pp. 41,42 e 43, “Entretanto Lia estava divertida. Cantarolava, rodopiou sozinha uma, duas vezes, no pequeno espaço livre, observava-me às

furtadelas. Parecia, porventura, desejar surpreender-me a olhá-la. Que admirava eu nela? – desejaria saber. Os seios? (tão compostos!) A cinta? O gesto

fino? A pureza de alma? Sem os lábios bulirem, eu ouvia o seu coração: «Pois bem, o senhor que me parece muito amável, peça à mamã e venha-me

abraçar!» E, como eu hesitasse: «Vamos, não perca tempo!»

Pude ainda prolongar o seu martírio, até ela repetir com amargura, num olhar já demorado: «Por favor! Há oito anos que não danço! (…) Fui. Beijei-a

nos olhos. Media-a a todo o longo de mim, ao longo da minha própria vida confortável, não sem doçura e enternecimento. (…) Mas estimulado assim,

despertado no sangue, eu pus um novo disco, desses mais devastadores, uma agulha nova (mais penetrante), venci com um gesto mole a hesitação de

Lia, reenlaçámo-nos. (…)

- Não faça mal à sua Liita, não?

Entregava-se-me! Como uma bola de sabão que tivesse vindo, na sua fragilidade e policromia, poisar intacta nos meus dedos, estendidos, horizontais.

Liita! Então, todo esse momento me pareceu irreal. Esta pobre frase, inverosímil Lia, digna de dó. Eu tinha cometido um sacrilégio bárbaro.” 17 Idem, pp. 36 e 37, “Assim eu dourei a sorte negra de Lia, imaginando tudo isto com um sorriso atroz, mal me vi só, no meu quarto, impando de

satisfação. Realmente: em Mafra, há centenas de homens válidos para cada mulher válida; e, desde a primeira hora, eu gozava da presença dos olhos de

Lia, assistindo bondosamente ao meu arranjo de homem – lavar, polir, pentear, cantarolar – na sua uniformidade de olhos passivos, prometedores, olhos

saudosos de outros olhos. Lia não era uma mulher ardente. Nem loira, de vanguarda. Era diferente de todo o real possível, era por assim dizer

inimaginável, uma carne só espiritualidade, e eu vinha encharcado de Lisboa. Das suas girls pegadiças. Queimado, sensualão. O luto trancou a janela

daquela casa e a porta. Lia crescera assim como um pequeno caule luxurioso na humidade dum aposento térreo e escuro.” 18 Idem, p. 31, “Saberia Lia tão pouco porque enviou ela mesma aquele soldado à camioneta, quando chegámos a Mafra, eu e meus camaradas, e

olhávamos o convento, quase com desdém, quase com indiferença (como se o tivéssemos julgado um monumento muito diferente!) (…) Para que

enviou ela mesma aquele soldado que se aproximou de mim, me tomou a mala sem hesitação, dizendo:

8

afastadas. São elas que abrem a sua casa e Lia que abre a sua vida, a sua alma e o seu corpo à entrada do

primo José, como se, numa mudez passiva, num sonho dourado, numa fantasia sensual, tivesse sempre

contado com ele como o agente transformador da sua vida, como o amante e como o amigo que a libertaria

duma vida monótona, pobre, opressora e solitária sem encanto20

.

D. Conceição viu em José a possibilidade de uma vida melhor, uma salvação económica, uma

ascensão social, um amparo através do casamento deste com sua filha, Lia.

São elas que o tratam e o acarinham de forma superior, com consideração, com submissão…

De facto, esta superioridade conferida por outrem estimula José, a própria simplicidade do viver, do

habitar dá-lhe uma sensação de poder, de domínio dos indivíduos e das situações,

A timidez, a submissão, a passividade, a virgindade total de Lia, a sua ingenuidade e credulidade em

sonhos e fantasias chocam o primo José, mas têm também o dom de exercer um determinado e estranho

fascínio no “Eu” principal masculino, nesse primo José que desencadeia um jogo de sedução, parecendo

corresponder aos desejos e sonhos de Lia, mas uma sedução livre de compromissos que essa mulher

inexperiente e ingénua, Lia, não conseguiu perceber.

Contudo é uma sedução envenenada para Lia, é uma sedução, a possível naquele “Onde” e “Quando”

para José, que conduziria a uma conquista, a uma aventura, a uma posse total… mas efémera.

O primo José é um homem da cidade, de Lisboa, um homem vivido, experienciado, um homem que

provou prazeres proibidos, que se extasiou com relações apaixonadas, mas passageiras. É este homem que

sente que não pode exercer com Lia uma sedução gratuita, porque o seu desvirginar seria, dessa forma, uma

violação física e espiritual, o violentar dum ser ingénuo, crente e confiante21

Contudo, exerce o seu poder sedutor, insinua-se em Lia, na sua vida, na sua alma, nos seus sonhos,

ela era para ele, inconscientemente, a «higiene sentimental», a limpeza amorosa, a catarse de tantas outras

paixões, era, na sua virgindade ingénua, a forma de José se purificar de hipocrisias, mentiras e enganos

amorosos vividos anteriormente, nomeadamente com Georgette, uma corista de Lisboa.

Lia, no seu nome bíblico e limpo, no seu sentir sincero , mas ingénuo, no seu pensar sonhador, mas

pouco perspicaz, significava uma sedução catártica, uma aventura, uma conquista terna duma mulher sincera,

sem máscaras, sem hipocrisia, invulgar pela sua ingenuidade virginal numa sociedade lasciva e corrupta.

José exerce a sedução, uma sedução entusiasmada e sonhadora22

, realiza a conquista, e não concretiza

um desejo carnal23

, menos por respeito a Lia, mas mais pelo perigo que significava o seu desvirginar: um

compromisso embaraçoso que nunca pretendeu assumir, numa realidade prosaica, sem cor, sem animação,

sem risos24

Por outro lado, a conquista fácil de Lia, motivada pela sua ânsia de carinho, de amor e de

sensualidade, a sua expectativa duma vida a dois, a sua dependência, o seu constante queixume submisso à

mãe, D. Conceição, suscitam em José uma indiferença, uma irritação pela ausência de força, de ânimo, de

- A viúva do nosso major Escoto espera pelo meu cadete…” 19 Idem, p. 33, “Aceitar, aceitava. Mas confesso: ouvi tudo aquilo como uma espécie de lenga-lenga, como um novo e último capítulo do romance do

major.” 20 Idem, p. 32, “Com efeito: mal subo as escadas, a porta abre-se espontaneamente e aparece Lia, uma delas, resplandecente com a minha chegada.

Aqui está ela perto de mim, entre os móveis velhos da pequena sala de visitas, fraqueando-me igualmente a porta da sua alma – como se for a aquele a

quem ela esperava há tanto tempo com uma ansiedade viva e infalível.

Ali estava. Serena, muito branca, pequenina, com a fronte alta do retrato do «papá» e acomodada por fim numa compostura tão séria e tão pura, que

me chocou.”

Idem, p. 36, “Lia tinha vinte e cinco anos: esperava em verdade por mim. Desde que o papá morreu, a porta da sua casa ficou aberta apenas para o

lado do quintal: e do lado do quintal havia pinheiros, uma vinha devassada, moinhos à vela, ondulações lilazes e o infinito mar – mais nada. Do alto da

frontaria podia ver-se o escoamento da estrada lisa, dum brilho negro: estrada do prazer, do amor, da exibição, porque era ela que levava à missa, aos

bailes, a passeios, a chás, ao Carnaval. Ia na direcção das torres e cúpulas do Convento, dava para o comboio, para Lisboa, para todo o mundo – aquela

estrada negra. Também Lia vinha por ela; simplesmente a sua vida empanou. E deteve-a. Passaram para diante, abandonando-a ali, os que a seguiam a

par ou à retaguarda. Foi então que ela, vestida de luto, trancou a sua morada e se isolou. Mas o seu coração não cessou nunca de velar, nem de noite,

nem de dia: com medo que batesse à porta um senhor de cabelo de oiro e de olhos azul-celeste e retrocedesse desolado por ela a não ter vindo abrir.” 21 Idem, p. 71, “Veio salvá-la!» E fez-se dentro de mim como uma satisfação, por me ter evitado a queda num abismo. Era realmente um crime.” 22 Idem, pp. 44, 45 e 46, “A verdade é que, em toda a noite, Lia não me lembrou. Eu tive ultimamente no Apolo uma corista singular. Nessa

temporada chamava-se Georgette (nome de guerra), fugiu do Porto ao pai, «um antigo governador de Angola». Que sanguessuga, não calculam! De

nada me valia mudar de quarto, de café ou de dancing. Perseguia-me tenazmente pela Baixa, (…). Georgette tinha o raro segredo de nos impregnar da

sua fascinação. (…) Não a pisei, nem lhe bati. Simplesmente abandonei uma noite o seu corpo nu, o lábio cheio de sangue ou de veneno –

cavalheirescamente, definitivamente, com o alívio de ter arrancado sem dor e não sem volúpia a tortura dum calo arraigado na minha própria alma. (…)

Mal acordei, pu-la de parte. Sacudi-me dela como dum pesadelo sem nexo. (…) Saltando da cama, chamei Lia ao pensamento. Talvez ainda dormisse.

Seria bom ir pé ante pé surprendê-la à alvura morna dos lençóis. Entrar no seu quarto e envolvê-la, doce imperceptivelmente, como entra e a envolve a

luz da madrugada. Agora difusa, medrosa, menos delicada a pouco e pouco, logo mais afoita, e persistente até ao domínio absoluto que chega com o

aparecimento apoteótico do sol.” 23 Idem, p. 72, “Foram os passos dela que impediram a necessária realização.” 24 Idem, p. 46, “Mas que é isto senão literatura? Lia, para mais, dormia com a mãe. Que outros devaneios me criava a imaginação? Estou é

retardando a aproximação dos factos mais dolorosos, como por vergonha ou por remorso.”

9

acção, de alma, e até um desprezo25

por um viver simples, ingénuo, pobre e humilde. Um desprezo sempre

conflituoso, debatendo-se entre a indiferença superior e a ternura compassiva.

José rejeita um viver prosaico26

, embora nutra uma compaixão enternecida por Lia27

, um desejo de

que ela fosse combativa sem perder a sua ingenuidade inocente, a sua sinceridade, um desejo de cor, de luz na

sua vida, onde ele não tem lugar, porque pertence a outro mundo, a outro sentir, pensar e agir…

José nutre um sentimento contraditório: sente-se seduzido por Lia, mas essa sedução é um misto de

desejo, de compaixão, de receio de um compromisso, de indiferença, desprezo, duma certa admiração, de

respeito, de violação, de sinceridade, de cinismo…enfim uma duplicidade ambivalente que oscila entre o

amor e o desejo da paixão28

.

É uma sedução receosa, um desejo comprometido com responsabilidades que José pretende saciar

em Juja, essa irmã de Lia, perdida em Lisboa como corista … o possuir de Juja, uma mulher já vivida, já

perdida e sem exigências de reparos ou compromissos, significaria um possuir parcial de Lia, não do seu

corpo, mas do mesmo sangue que em ambas corre29

… por isso a procura em Lisboa, fascinado30

pela sua

ousadia, pela sua força e, essencialmente, inebriado pelo mistério que o faz sonhar e dourar destinos e

vivências31

.

Este “Eu” principal masculino deseja Lia, mas o seu provincialismo, a sua simplicidade ingénua, a

sua virgindade física e espiritual, a sua exigência de compromisso e responsabilidade após o acto de amor

repelem-no, suscitam indiferença, repulsa, desprezo… mas anseia um contacto físico32

… tanto quanto Lia o

25 Idem, p. 51, “- O «impedido» trouxe esta caixa para o senhor doutor. Da parte da menina.

Abri-a. A explicação vinha num papelinho escolar: «Envio-lhe estas uvas para o seu lanche. Desculpe a insignificância. Lia.» Deu-me vontade de rir.

«Que simplória!» Mas logo recriminei a vaidade: «Que candura! Sabe Deus o que lhe custará adular-me!» (Vejam como o juízo humano é incoerente.)” 26 Idem, pp. 46, 47 e 48, “Nessa madrugada, conforme me comunicaram de véspera, elas tinham de sair para Cheleiros (…) havia escola. Aconteceu

fazermo-nos companhia até ao quartel. Lembro-me dos queixumes da D. Conceição contra a aragem húmida, contra o caminho longo, contra as

dificuldades da vida em geral, « - e a escola, um tormento, com tão mesquinha remuneração…» - e odiei a submissão de Lia que caminhava a meu lado,

muito baixa, encostada a mim quando podia, ora numa ora noutra mão um pequeno saco de roupa, e reerguendo uma, muitas vezes, os olhos suaves,

como a rogar: «Quem um dia me evitasse esta tortura!» Quereria ficar comigo por todo o sempre (…) (Despedimo-nos até breve, com simplicidade).

(…) Levou-me então a crer – pobre mãe! – que lhe agradaria sumamente um começo de verdadeira afeição por Lia. (…) Com fins matrimoniais, porque

não? Eu, duma família a que ela sempre desejou subir; veterano do Instituto Superior Técnico; (…). Lia com os seus, hoje tão raros!, dotes de educação

e de honestidade: um coração de oiro e intacto. (…) De repente, sorri: Vi-me encarregado duma passagem de nível, com a obrigação, além do mais, de

regar os lírios todas as manhãs. Pobres criaturas de Deus, os seus problemas económicos amesquinhavam-nas. Eu reconhecia que tudo começava a

conjurar-se (…) contra mim: «Se as pessoas são sinceras comigo, confrangem-me; se são fingidas (como a Georgette) irritam-me. Só me interessa um

convencionalismo básico, de limites definidos a respeitar.” 27 Idem , p. 50, “(…) – a desgraça de Lia começara a entrar por mim adentro.

A órfã do major A. N. Scoto desempenhava-se do cargo de regente como quem expia um castigo, (…). Nem sequer a pobreza da órfã e da viúva era

já de si doirada. Mobília, pulseiras, brincos, por certo recordações, mesmo roupa, tudo foi a pouco e pouco conscientemente trocado pelo pão de cada

dia. Igualmente o piano. Uma farda do major. Com parte desse dinheiro, Juja fugiu para Lisboa, (…).” 28 Idem, pp. 53, 54 e 55, “Da triste situação das orfãs do major Scoto advinha o meu temor. Nunca pensara em casar. Tenho sido, desde que me

conheço, um espírito livre, despreocupado, prático como vulgarmente se diz, e talvez um tanto egoísta. Quanto mais vivo e experimento a vida, mais a

entressonhada noite de núpcias recua no espaço e no tempo. (…) Até que ponto poderia eu tomar compromissos graves e por que prazo? (…)

Lia é uma rapariga honesta e indefesa. Há que ter piedade pela sua desolação depois do amor, há que ter piedade pelos seus anseios de legítima

realização. Muitas vezes se balançaram em mim as soluções mais tumultuosas e contraditórias. «Talvez fosse um benefício» - insinuava o desejo.

«Talvez um atentado» - acudia o sentimento. « Ora, não seria mesmo uma obra de caridade?» - intervinha discreta a razão. «Fiquem-nos então pelo

flirtzinho romântico, bem português!» - cortava a ironia sem escrúpulo.

Acabava por achar tudo isto disparatado, turbulento, cínico, infame. Distraidamente, porém, revia os olhos da órfã: e, analisando-os, voltava a sentir

no seu mistério alguma coisa de angustioso e de trágico, que ia muito além duma vulgar promessa – fácil, desconcertante. Escutava como que um apelo

doloroso vindo dos medos extremos da solidão; uma súplica humana torturada, erguida ao universo imenso… Então eu desejava encontrar o socorro

honesto para o seu mal. E não sabia que fazer. Era sobretudo ao morrer triste da tarde sobre o longínquo mar, donde emergiam clarões vermelhos, que

eu, a caminho da pobre casa isolada, farto de marchas e mochilas, farto do sadismo moral do capitão, e cansado até dos camaradas, suportava o alarido

das mil discordâncias interiores.” 29 Idem, p. 61, “Metendo a mão na consciência, enquanto, passeio fora, ia cuspindo o meu desaire, apalpei o lodo mesquinho de que Deus fez Adão.

A obsecante ideia não queria senão dizer que, encontrando Juja e cumprindo nela o meu desejo, possui ao mesmo tempo um pouco de Lia (sem

responsabilidades) e a alma jamais revelada duma mulher perdida. Era cobarde.” 30 Idem, p. 60, “(…) (porque a minha admiração por Juja era sincera).” 31 Idem, p. 35, “Lisboa, pronunciada assim, significava um mundo proibido (qualquer coisa como sensualidade, estupefacção, mistério). Nesse

momento estrangulado, vi a Juja de relance, tentadora (Rossio, automóvel, um olhar violáceo riscando o ar, luzes vibrantes, fausto, estonteamento, um

quarto!) e desejei que ela, a aventureira, não fosse como a irmã, uma fria beleza de santa, acrisolada, outonal.” 32 Idem, pp. 64, 65 e 66, “O mais extraordinário foi Lia ter-se posto também a escutar todas estas ninharias com um agrado transparente, de mãos

tombadas sobre os joelhos, olhos baixos, em atitude de modéstia e desinteresse, mas intervindo aqui, além, pausadamente, com voz de quem soletra, do

hábito de ensinar meninos. (…) Parou um momento para ver se eu me espantava. Sorri. «Basta! Basta!» - gritava o meu enfado. Não bastava nada.

«Que fiz eu, que fizeste tu?» - levaram-me mesmo a pensar. «Sabe o que lhe digo, Lia? Você é uma parva. Uma tola. Não é deste mundo. Boa-noite.»

Apetecia-me dizer-lhe isto abertamente a ela e mandar a mãe à fava. Redondamente. Eram de Morrinhanha! Mas o meu joelho colara-se ao da órfã, do

lado de lá da mesa. (…) Mas pronto, tinha recuperado a honra perdida, que era o essencial.

Toma! Reservaria a pobre virgem para mais tarde lembrar-me esta mesma obrigação? Fiquei a desejá-la sem escrúpulos, por uma espécie de raiva

contra o elevado preço da sua inocência monótona e vã.”

10

deseja, sofregamente, como se de libertação se tratasse, como se se cumprisse a sua maturidade, o seu

crescimento, a sua condição de mulher33

.

O primo José, este “Eu” principal masculino, tem uma relação dolorosa com as mulheres: trata-as

como objectos a utilizar, sem consideração, carinho ou respeito – como acontece com Georgette – uma

prostituta que, apesar de tudo, sempre o seduziu pela sua beleza, pelo seu mistério e, essencialmente, pela

transformação recente, que pretende ultrapassar a prostituição e sublimar essa fase da sua vida34

.

Trata-as de forma superior, ou melhor, com Lia, evidencia um comportamento estrangulado entre o

desejo e o receio de compromisso, entre a compaixão e o desprezo, entre o carinho e a indiferença.

José vê a posse de Lia como um sacrifício sem reparo… satisfaz-se racionalmente pela sua não

concretização.

E a par da incapacidade deste “Eu” masculino de contrair compromissos, podemos observar a opção

de afastamento de Lia, um afastamento e uma indiferença dolorosas por uma mulher dedicada, se não

obcecada, mas foi a resposta possível de José, a reacção digna possível… Contudo em relação a José,

podemos falar de compaixão em relação às mulheres35

, mas não de dignidade…ele afasta-se para evitar a si

próprio problemas, no entanto, o carinho por Lia não evita a sua suspeita do roubo do anel36

, não evita a sua

reflexão interior em que nega a sedução de Lia, em que a pretende arrancar da memória, e esquecer o

remorso, em que se pretende inocentar de responsabilidades no seu destino e se pretende esquivar a uma

autoria de submissão37

, e não evita o comentário final, onde é palpável um desprezo, uma indiferença, um

cinismo através da linguagem mordaz, sádica que evidencia, através das palavras, o já antes demonstrado

pelo comportamento: um embaraço de parentesco, uma vergonha por um amor dedicado, mas opressivo de

Lia, um pouco à vontade perante uma parenta apaixonada, humilde, submissa38

.

33 Idem, pp. 67, 68, 69, 70 e 71, “O silêncio, quando entrei, era absoluto. E que diferente do das outras noites! – penso. Refugio-me no quarto, pé ante

pé, o coração aos pulos. Hoje não havia o roer dos ratos, nem a chiada, nem o deambular de nenhum espírito pelo corredor escuro, nem o assalto dos

ladrões durante o sono. A virgem vai sacrificar: não se moverão à volta dela as misteriosas trevas. (…) Que o meu espírito regresse de auscultar o

coração de Lia, e em boa hora me traga o sinal de chamamento. (…) Lia está lutando desesperadamente contra o terror da mãe. Ouviu os meus passos

amortecidos. Diria: «Eis aí que chega o amado da minha alma!» (…) Lia mal ousa entreabrir os olhos para observar cautelosamente a mãe. Teme-a

como a um senhor tirano. Mas decidiu. Nem o medo, nem a virtude, nem a memória do pai conseguirão detê-la. Ela virá. Ei-la à beira da cama. A

ansiedade dela coincide com o meu desejo. (…) E a minha cegueira foi tal, que cheguei a desejar a vinda rápida da virgem, mesmo sem o maldito braço

esquerdo. Há dez anos que a viúva dormiria sobre ele, não por carinho, parecia-me, antes por despotismo. (…)

Depois … foi o até aí desejo: o irreal, o inesperado. (…) Eu abri a porta sem nenhum ruído, Lia estremeceu, reconheceu-me, ergueu-se como um

autómato, veio para mim extremamente pálida e não proferiu um som. Penetrávamos na frescura dos momentos virgens, para além de todo o humano

poluído. Tomei-a pela cintura, suavemente, demos pela sala dois, três passos cautelosos. A sua boca exigiu de pronto a minha. Beijou-me vorazmente,

de pé. Dei-lhe o apoio da parede, pensava em entontecê-la e levá-la num instante ao meu quarto. Com as mãos, percorri-lhe o dorso, desapertei-lhe o

robe, toquei-a. A sua sensibilidade elevara-se instantaneamente. Lia agarrava-me com aflição, com violência, olhos abertos, olhos fechados,

precipitando a consumação. Embora agitada pelas contorções, exigiu de mim uma promessa:

- Não me esqueces nunca, pois não?

Tanta candura chocou-me. E talvez da excessiva fragilidade de Lia viesse robustez à minha consciência. Eu estava mesmo receando que a sua

respiração ofegante, àvida, cortada, despertasse o monstro da D. Conceição – quando, de súbito, o corredor rangeu. Ficámos gelados. Hirtos. Ouviram-

se distintamente passos. Lia ia gritar de emocionada. Sacudi-a rapidamente, indiquei-lhe a porta do quarto dela, impus-lhe: «Vai!» (…) Foi o espírito do

pai. (…) Veio salvá-la!» E fez-se dentro de mim como uma satisfação, por me ter evitado a queda num abismo. Era realmente um crime.” 34 Idem, pp. 58, 59 e 60, “Era fatal: à porta do Maxim’s, esbarro com a Georgette. Meu sangue paralisou – terrível acabrunhamento o nosso em certas

horas! O náufrago sou eu, desta vez, mas ela é quem nobremente reacende a intimidade doutrora, quebrando o meu estado de inferiorização. (…)

Todavia, às manifestações de interesse de que a rodeio, ela deixa de corresponder com a sua carinhosa vibração de sempre. Visivelmente trespassada,

por certo à lembrança do meu injustificável abandono e ofensas, ergueu os ombros dum modo bem desprezível:

- Agora … estudo. Entrei nas Belas-Artes.

Rio estrondosamente:

- Que me dizes? Há que tempos que tu estudavas belas artes, Geoge! Ah-ah!

- Estás a ser cretino! Não seria então capaz como qualquer outra?!

Mas na Geoge há sempre um pormenor de beleza física que me domina. A gola de antílope no casaco dava-lhe um delicado ar de ingenuidade.” 35 Idem, p. 86, “Regressando ainda essa noite a Mafra, pude apavorar-me diante deste singelo quadro regionalista: Uma rapariga cega cantava coisas

tristes à guitarra. As mesas cheias de fardas agaloadas, poucos comerciantes, muitos colegas meus. E os olhos lúbricos desta gente toda cravados na

rapariga que as pupilas brancas de névoa e inspirava dó. Muitas palmas, frases abafadas: «- Boa perna! Bis! Bis!»

Olhos que deviam cegar – os desta gente toda; olhos que deviam ver – os da pobre cantadeira!”

Idem, p. 81, “E todavia – observava eu comigo mesmo, certa tarde – se algumas destas figurinhas para quem a vida ainda não foi cruel, que sabem

jogar o tennis, flartar, sorrir e talvez bordar, talvez fazer carícias, que aprendem a pintar os olhos e os cabelos, e exibem o nome de leite (…) e procuram

arranjar para tudo o mais um «bom rapaz trabalhador», se alguma delas reparasse no infortúnio de duas antigas companheiras, órfãs do major

A.N.Scoto, amigo de seus pais…” 36 Idem, p.95, “ – O quê, Lia, foste tu que roubaste o anel? (E ponho-me a arrancar-lho abruptamente – como foi possível fazer tudo o que fiz? – que

nem a um bandido ordinário!)” 37 Idem, p.87, “Não conseguiria dar a mim mesmo outra explicação para o que se passou entre mim e Lia na noite fatídica do baile. Jurei eu alguma

vez gostar de Lia, ou fiz-lhe promessas vãs? Não a seduzi. Não elogiei sequer as suas mãos fidalgas. Como pôde a pobre virgem ir a pontos de colocar a

aceitação ou rejeição do seu amor num plano de vida ou de morte?” 38 Idem, pp. 87, 88, 89 e 90, “Eu dançava com a Binita (…) quando Lia apareceu (…). A música sumiu-se, para mim, (…). Ficou aquele olhar de

angústia, incómodo, já meu familiar. (…) A paixão de Lia até se me impõe!» (…) O desespero de Lia vem do salão, amesquinha-me, arrebata-me. (…)

(Bem sei: o desinteresse torna-nos indelicados).”

11

José só dança com Lia no baile por desafio, por aposta com os colegas, não por carinho, respeito ou

consideração e quando as suas palavras infelizes precipitam a tentativa de suicídio de Lia e a desgraça da

morte de D. Conceição39

, apenas comenta, após tempo, de forma cínica, que o melhor destino de Lia40

era o

empregar do seu amor a favor dos outros, ilibando-se de culpas41

, mas não escapando à censura social42

.

É um homem vivido, mas sentimentalmente cobarde, que, tarde demais, se consciencializa da mulher

que ama, que, apesar de toda a vivência, não deixa de ser preconceituoso e apenas se apercebe do amor por

Georgette quando a sabe Juja e transformada, sem o ar vulgar de mulher prostituída43

.

O primo José, “Eu” principal masculino, reflecte o seu próprio “Eu”, a sua acção nesse passado

recordado analepticamente, reconhece erros, auto-acusações, culpas, o preconceito social, a censura social e,

sobretudo, reconhece a necessária reflexão sobre a vida, o sentir, o pensar e o agir!44

Um “Eu” brutalmente sincero que, sem pudor, revela actos menos nobres no seu passado numa

tentativa de exorcizar uma culpabilidade assumida, socialmente censurada, mas uma culpabilidade de certas

acções infelizes, de certas frases excessivamente levianas, enfim de ausência de reflexão, de vacilação ao

sentir que encobriu um pensar e manchou um agir. Esta viagem no tempo, esta analepse reflexiva é um

exorcismo de si próprio, é a sua forma de se sentir melhor consigo e com os outros, é um desabafo reflexivo

que não visa a desculpabilização, mas antes a exposição dum agir, sentir e pensar dum “Eu” num certo

“Onde” e “Quando”.

Um “Eu” que é parte de “Nós”, reflectindo certas facetas que não assumimos, de que não gostamos e

das quais não nos consciencializamos…até as ver expostas.

O “Eu” de Ladrão!45 é um “Eu” masculino que desempenha a função de personagem principal e de

narrador autodiegético tal como em Depoimento46.

É um “Eu” dilacerado por conflitos interiores que o fazem boiar como um fragmento de si próprio,

debatendo-se entre sentimentos antitéticos: entre o amor e o ódio, a compaixão e o desprezo, a ternura e a

rudeza, a sensibilidade e a frieza47

Este “Eu” principal masculino flutua vagamente em si próprio, descobrindo novas e diferentes

facetas dum Ser que evolui e se complexifica à medida que vive e interage com outrem.

39 Idem, pp. 95 e 96, “A música acabara um segundo antes e a frase estalou como uma bomba em plena sala. (…) reconheço então o meu desaire –

maldito egoísmo o da nossa idade! – a intenção afectiva de Lia – É o símbolo do amor persistente, não é, mamã? – mas já não havia remédio. Verde de

cólera, (…)D. Conceição tinha ocorrido e atirou-lhe um murro pesado à nuca. (…) Lia precipitou-se como louca no corredor (…). O varandim aberto

permitiu o salto imprevisto, trágico: e Lia veio estatelar-se em baixo, como uma ave de asas quebradas!” 40 O destino de Lia é diferente consoante as edições: Depoimento, Pequena Antologia de Obras Primas, Mosaico, Lisboa, referente à 1ª edição, p. 51,

“O melhor – não acham? – será eu talvez levar meus pais a oferecerem-lhe um qualquer leve serviço em nossa casa!”

O Sonho e a Aventura, José Marmelo e Silva, 2ª edição, Lisboa, Editora Ulisseia, 1965, p. 98, “O melhor – não acham? – será ela ficar de

enfermeira, se possível, naquele hospitalzinho em que foi tratada e a salvaram. (Achei-o muito acolhedor, naquela noite, quando lá corri a doar-lhe o

sangue para transfusão…)” 41 Idem, p. 98, “O ter recebido o seu comovente perdão há poucos dias (…). Que vai ser de Lia, ao sair do hospital com o coração de luto, sem a

protecção de nada nem de ninguém (…). O melhor (…) será ela ficar de enfermeira (…).” 42 Idem, pp. 96 e 97, “ «– Foi aquele, aquele cadete!» (…)«- Ele aí vem… Malandro!» (…)« - Por uma coisa de nada!» « - Coitadinho de quem

morre!»” 43 Idem, pp., 73, 74, 75 e 76, “Detive-me a olhá-la. Tudo nela me intrigava, até a moderação no uso do bâton, e como que uma beleza estranha, uma

outra seriedade. O lábio, com a febre doutro tempo, contraía-se-lhe numa amargura desusada. (…) «Era ela!» - acode-me nesse instante tardio. (…) -

não vás embora, peço-te. Agora sei que te amo. Ah, eu nunca te vi tão… (…) digna do meu carinho! (…) Só agora te vejo como um ser humano!” 44 Idem , p.97,”(Estas vozes que irão perseguir-me pela vida fora! Sou eu acaso o responsável por tão complexo fluir de acontecimentos! Eu, o

autor da santidade de Lia, da ociosidade enferma de D. Conceição, do sonho de liberdade de Juja? Criador das minhas próprias limitações? Que

me acobarda então de casar com Georgette? (Seria esse o meu desejo secreto.) Como somos incoerentes na avaliação das acções humanas! Como

impotentes perante forças que nos transcendem! Muitos, à simples ideia de abandonarem o mundo, oiço eu ganir como cães magoados. Todavia o

homem não sabe senão supliciar-se, com novos pesares e acusações.

Ora a conduta, acreditem-me, está à mercê de circunstâncias ignoradas e exige de pronto um exame minucioso, uma pronunciação mais justa. Só

então valerá a pena defender a vida.) 45 Idem, pp. 101 a 132. 46 Idem, pp. 29 a 98. 47 Idem, p. 110, “Aqui estou eu na casa de meu irmão e, falando-lhe, cada vez o sinto mais distante. Mas é meu irmão. Ensoberbecido, aventureiro,

tiranizado pela ânsia das riquezas seja como for, eu tenho que ampará-lo.”

Idem, pp. 102 e 103, “Muito cedo o Armando nos vimos a braços com a herança, não tanto de bens (por minha parte) como de lembranças tristes.

Dividimos o conjunto familiar sob uma pressão de voracidade (por parte de meu irmão) prestes a explodir, e explodiria raivosamente, se de pronto me

não subjugo aos seus planos, ainda os menos justos. (…) Eu tinha prometido a mim mesmo, durante todo o liceu, ser para o Armando perpetuamente

um verdadeiro irmão. Bem sabia quanto o seu trabalho ao lado de meu pai era indispensável, e sempre por palavras e obras o reconheceria. Mas num

instante toda a armadura (da minha gratidão perpétua) se comprimia rangente, inútil. (…) Com efeito, o que for a tantos anos sedimentada nobreza de

sentimentos quebrava-o agora a manobra, súbita e rapace do mesmo a quem eu amava.

A ambiciosa deslealdade de meu irmão deixou-me tão infeliz e amargurado como uma criança órfã maltratada.”

Idem, p. 111, “Misto de sentimentos contraditórios, a sua primeira reacção foi de desespero. (…) Abraçámo-nos, no entanto, por minha iniciativa. Ele

poderia contar comigo totalmente e decerto que eu com ele. Outra vez me entregava como irmão, limpo da minha alma. Éramos como na infância.”

Idem, p. 114, “Enfurecido. Raivoso. Deixei duas garatujas peremptórias ao Armando: «Proíbo-te terminantemente pores o pé na pedreira na minha

ausência. Decidido a tudo, percebes?, voltarei».”

12

Apresenta-se, inicialmente, como um ser sonhador que anseia, após o curso superior que já conseguiu

realizar “Eu, um doutor das ciências dos liceus (…). (…) A minha riqueza eram os estudos. (…) Acabado

de sair da Faculdade, (…).”48

–, regressar à terra natal, às origens, ao contacto com a terra, à sua propriedade,

tornando-se forte, completo e realizado, enfim, pleno nesse contacto quase viril com a terra aqui está

presente o reflexo do Mito de Anteu que também nos surgiu em Narrativa Bárbara e que presentifica a força

do “Eu” como emanente da terra, como evanescente dum contacto sensual com a terra, mãe fértil de todos os

seres (…) dessa metade de nós mesmos que fica sempre agarrada à terra em que nos criámos.”49

.

É como se esta ao produzir o fruto, produzisse seiva e sangue que fariam este “Eu” principal

masculino viver ou sobreviver num meio hostil “Ser proprietário de terras era ainda para mim um ideal

secreto de felicidade. A terra andava-me no sangue.”50

A terra prefigura-se como algo de concreto, palpável e visível, pela qual valeria a pena lutar, era o

garante de prestígio, de valor, de autonomia, de independência “A independência com que sonhava reduzia-

se por fim àquela encosta agreste ao abandono, coroada pelo cemitério, assaltada de cabras lazarentas.”51

Um refúgio onde se é alguém, direito conferido pela posse ou título de propriedade, sendo a evasão

da cidade52

, onde a multidão de rostos nos torna anónimos, desconhecidos, desvalorizados, indistintos

“Longe do campo, da aldeia, sentia-me no mais íntimo de mim mesmo um expatriado, espécie de filho

pródigo do Evangelho, mas sem nenhuma esperança de regresso.”53

Para este “Eu” principal masculino a terra não só lhe permitia ser alguém, superior, diferente e

sobretudo individualizado…possibilitava o contacto com a criação primordial, com o início do “Onde” e do

“Quando” e do “quem”, uma vez que proporcionava o diálogo mudo entre gerações “Apenas a

circunstância de aproximar-me da sepultura de meu pai me dava não sei que inefável consolação.”54

–, ou

seja, a interacção surda e consoladora entre entes queridos, pois a terra é túmulo e descanso de espíritos que,

com a sua vivência experiencial, fertilizam uma terra e uma vida das gerações futuras “Nas raras visitas que

podia fazer-lhe, meu pai, mesmo no mistério da sepultura, tinha sempre para mim uma mensagem de

conforto e de esperança, e assim me era menos doloroso o desacordo com os homens.”55

A terra é vista como testemunha dinâmica do passado que se enriquece com os percursos vivenciais e

experienciais daqueles que passam, sendo garante de futuro quando regada pelo interesse, amor e trabalho do

“Eu”, quando a terra se ambiciona por si própria e em si mesma, quando este Ter se perspectiva, com um

desejo ansiado, como prolongamento do Ser e o enriquece com a sua seiva, refinando o pensar e o sentir,

enfim o existir actante “A fecundidade dos homens depende da fecundidade da terra.”56

.

Trata-se de um “Eu” sem nome próprio, a sua individualidade é irrelevante, porque o seu rosto ou

nome tem um pouco de cada “Eu Factual”, sendo um “Eu ficcional” paradigmático de uma experiência

dolorosa familiar em que a ausência magoada impõe partilhas, divisão de bens, de sentimentos e de pessoas

“Porque não se regressa à juventude perdida, ou a um lar para sempre desmoronado.”57

.

É o desfazer do património em sintonia directa com o desfazer dos laços afectivos e familiares58

. E

aqui de alguma forma lembra a desagregação do “Eu” familiar de primeira e segunda instâncias do O Ser e o

Ter, embora a realidade condicionante das partilhas seja bem diferente, porque aqui motivada pela morte dos

pais.

Toda a inocência e ingenuidade e crença confiante nos outros abandona o espírito deste “Eu”

principal masculino, assumindo uma perspectiva triste, mas realista, de encarar outrem com quem partilha

uma sociedade e generalizados padrões de cultura. Gradualmente, este “Eu” perde ilusões e adquire

48 Idem, pp. 102, 104 e 109. 49 Idem, p. 109. 50 Idem, p. 105. 51 Idem, p. 105. 52 Idem, p. 117, “Povo, carros, pessoas como queiram chamar-lhes cruzam-se, misturam-se, embicham-se, tropeçam-se…(…) Tudo fechado,

empacotado, acotovelado, automovido, autoguiado, volumes e mais volumes, digo pessoas… Mas não pessoas, verdadeiramente, como as vejo lá longe,

na montanha. Aí as sinto e lhes pertenço, aí somos (…).” 53 Idem, p. 106. 54 Idem, p. 105. 55 Idem, pp.109 e 110. 56 Idem, p. 102. 57 Idem, p. 106. 58 Idem, pp. 103 e 104, “O quarto de estudante que prometia reservar-me na casa de nossos pais, agora sua casa, o meu querido quarto tocado das

oliveiras do quintal tornou-se uma bem pungente afronta. «Eu gastei nos estudos e ele, não!» era o seu tirânico argumento. (…) A minha riqueza eram

os estudos. A terra não me faria falta nenhuma» rematava com soberbia.”

Idem, p. 103, “Fiquei com as terras de sequeiro, de estevais e fraga, (…) e o Armando, com as de regadio e lameirão, adubadas, quero crê-lo,

com o suor de tantas gerações. Destinou ainda integralmente para si próprio a velha casa, onde ambos nascemos, e o olival. Foi um dos momentos mais

dolorosos da minha vida.”

13

desilusões “A independência com que sonhava reduzia-se por fim àquela encosta agreste ao abandono (…).

Nunca me julgara merecedor desta ironia.”59

, abandona sonhos, esperanças, projectos e toma,

progressivamente, consciência do que é viver em sociedade e em família num específico “Onde” e “Quando”.

Este “Eu” sofre, ao longo da narrativa, várias metamorfoses importantes “Ao alvorecer, parti para o

quartel, completamente transformado noutro homem.”60

que mudam a sua visão do mundo, uma alteração

magoada e sofrida, para a qual contribuiu a sucessão de desilusões, de desencantos, de frustrações, suscitadas

pela perspectiva de vida de outrem: de seu irmão, Armando; e da sociedade em geral61

, desde o campo à

cidade, onde tudo respirava decadência de valores, tudo estava impregnado com essa cor, esse cheiro e esse

sabor amargo de ambição, de materialismo maquiavélico que tudo faz, sem olhar a meios, para se poder ser

alguém economicamente, para se poder vencer num tempo cujo valor máximo é o vil metal!62

Este “Eu” torna-se progressivamente num Ser angustiado, desiludido, descrente… descrente em si,

nos outros, na própria capacidade de sonhar, de viver, de amar, uma vez que apenas sobrevive noutrem uma

vontade feroz, demente, alienada de enriquecer, de luta egoísta pela posse de bens materiais63

, encarados

como imprescindíveis, enquanto que os valores morais e espirituais são vistos como algo de supérfluo.

Um “Eu” que não lamenta o passado, mas o recorda com dor pelas necessidades e sacrifícios sofridos

“ Ajudado, atrevi-me a observar-lhe, sobretudo à custa do meu trabalho. Dei lições, passei muitas vezes

sem comer…”64

–; um “Eu” que com tristeza olha para o presente “E a aridez da minha vida como que se

espelhava ali flagrantemente.”65

, uma vez que a decadência de valores da sociedade o entristece e o

consciencializa dum sucesso profissional dependente de influências que não possuía ou conhecia66

, apenas

pretendendo vencer pelo próprio trabalho num tempo em que o valor pessoal é secundário67

, não conseguindo

acompanhar um combate de influências “Toda a vida fugi de dobrar a cerviz a quantos poderiam auxiliar-

me, recalcando em troca a minha verdadeira personalidade. Não obstante, teria de continuar a humilhar-me a

um trabalho vil e poluído, como era esse das explicações em Coimbra, onde toda a gente se devassa a dar

explicações. Teria de beber as minhas próprias lágrimas.”68

–; um “Eu” que teme o futuro “A verdade é que

o meu futuro apresentava-se tão sombrio como o de qualquer companheiro acabado de formar e sem

protectores poderosos na família. Eu ainda não estava colocado.”69

, perante a perspectiva de vida que o

presente lhe dá a observar, que o receia em termos profissionais, pessoais, familiares… enfim em termos

existenciais.

No entanto, este “Eu” principal masculino, apesar de ser sobretudo um observador profundamente

desiludido do real que o rodeia, não deixa de se sentir como que contagiado perante o poder avassalador do

dinheiro, do desejo de riqueza rápida, não deixando de participar na generalizada euforia de ambição… sente

59 Idem, p. 105. 60 Idem, p. 114. 61 Idem, pp. 121 e 122, “O roubo está na base dos grandes acontecimentos universais. Podia fazer-se a história dos progressos humanos, fazendo a

história do roubo, a começar pelo esbulho das cavernas feito pelo homem aos animais ferozes. Tu mesma, Lisboa, lembras-me um saque hediondo,

execrável (…). Roubavam-se em todo mundo as coisas mais inverosímeis. Nem só o pão, nem só dinheiro, jóias, malas de correio, obras de arte

consagradas, crianças para «resgate»… Rouba-se surdamente, impunemente, a tranquilidade, o prestígio (dos vivos e dos mortos), quantas vezes o ar

que se respira! Rouba-se o suor. Rouba-se a vida! Impunemente, sim! (…)Tia imensa, universal, o roubo não ponham dúvida. Quantas guerras

alimentadas de rapina! Quantos reinos! (Para não falar senão de monarquias). Retórica? Levantem um pouco o olhar e vejam a fita luminosa das

notícias: Ficarão confundidos, vexados.” 62 Idem, pp. 107 e 108, “(…) a serra esventrando-se por fim na euforia glutónica do volfrâmio. O oiro tilintava na fronteira e por ele tanto dávamos as

pedras negras como o negro pão da negra boca ou a negra vida. O rústico sacudia ruidosamente o entorpecimento da própria alma.

Eu revolvo até os mortos, o inferno! confessou-me o Armando, desesperado.

Não pude deixar de sobressaltar-me, com referência à sepultura de meu pai. Não havia respeito por ninguém. (…) Por toda a parte um formigueiro

vivo e arrepiante, revestido de asas que não tinha. Qual pobreza, qual raio! Dir-se-ia uma cruzada de rapinagem em organização.

Neste levantamento, fui encontrar a minha aldeia bíblica, no norte da Gardunha, onde nem a velha moral, nem a velha arrogância dos cumes

montanhosos impunham já a velha submissão. (…) Até meu irmão! Resistira até ali, mas andava louco, insubmisso.” 63 Idem, pp. 112 e 113, “De olhos esbugalhados para o inacreditável e excitado pelas gotas de sangue ainda vermelhas, ou cioso que fosse da imensa

riqueza da minha humilde herdade, meu irmão não se conteve sem arrojar-se ao mineral, raivoso, agarrando-o com os dentes diabólicos. (…) Depois

entregou-se a uma expansão delirante, saltando, arremetendo, galhofando pragas, esgrimindo enfurecidamente com a picareta como para atingir um

inimigo imaginário. E de repente dir-se-ia virar a simulação toda contra mim. Fiquei estupefacto. Por momentos, vislumbrei algo de descomandado na

sua loucura (…) Seria crível que a ideia de desfazer-se de mim lhe tivesse turvado de sangue o pensamento? Patife! (…) Trazia comigo a «Savage»

(…). Ei-lo, enfim, o ladrão confessado da minha herança! Sem respeito, sem escrúpulos, sem lei!” 64 Idem, p. 102. 65 Idem, p. 105. 66 Idem, p. 104, “Eu ainda não estava colocado. E como ou quando isso aconteceria, se a entrada no estágio era já prerrogativa de favoritos? Ah, como

tudo isso enegrecia então a minha alma! O estágio! Um recinto com o rótulo de «proibida a entrada a pessoas estranhas a…», à simpatia deles! E de que

só demasiado tarde me apercebera!” 67 Idem, p. 109, “Acabado de sair da faculdade, eu estimaria um progresso metódico até na escala de ascensão. «O problema inverte-se quando

alguém pretende impor que o dinheiro há-de preceder a educação ou sobrepor-se a esta. Eu quero dizer: possua o homem educação antes de possuir

dinheiro.” 68 Idem, pp. 104 e 105. 69 Idem, p. 104.

14

uma alegria legítima perante a possibilidade de enriquecimento, perante a hipótese de ascensão social “O

milagre existia, eu adivinhava-o desde que meu irmão me deserdara. Volfrâmio na minha pobre herdade! Era

ou não era maravilhoso? Céus!, havia uma justiça imanente!”70

Sente-se mesmo capaz de actos menos nobres e até menos legais para garantir a possibilidade de

riqueza, para assegurar uma hipótese de sucesso na sociedade “(…) pediria ao comandante, pediria ao

ministro, sei lá, compraria em último caso um camarada vivia agora possuído do desejo demoníaco de

reengrandecer-me à frente das minas da minha propriedade. Somos todos tentados. Escusado dizer-se que um

ânimo novo tomava deliciosamente o meu sangue e substituía os seus glóbulos singulares.”71

.

No entanto, não chega ao ponto de Armando, irmão deste “Eu” principal masculino, que cega perante

qualquer chance de enriquecimento, cometendo actos ilegais e outros desonestos para com o “Eu” em análise.

Armando não olha a meios para atingir os fins, praticamente deserda o irmão, dedica-se a actos de

contrabando e revolve as entranhas da terra, mesmo violando túmulos, na esperança ambiciosa de encontrar

qualquer filão de volfrâmio. Os comportamentos de Armando raiam a loucura, os comportamentos do “Eu”

principal masculino raiam a desilusão e desta surge um contentamento ambicioso de sucesso e riqueza,

sempre censurado por um regime moral de pensamento: é o querer, o sentir e o agir controlados por um

pensar cívico e moralizador.

Este “Eu” é um Ser em evolução ao longo de toda a narrativa: quando espera poder realizar o seu

sonho de proprietário, o irmão deixa-lhe apenas em partilhas o terreno que julga mais estéril e inútil, o “Eu”

vê-se desiludido nos seus sonhos e anseios; quando descobre volfrâmio na propriedade pequena e

improdutiva, seu irmão tenta tirar-lhe a vida e a hipótese de enriquecimento; quando pretende dedicar-se à

exploração do filão de volfrâmio, é mobilizado, ou seja é chamado a cumprir um dever para com a pátria,

deixando à fúria da população o seu filão de riqueza, ficando a sua chance de sucesso, assim, a céu aberto

“Roubam e assaltam a mina da minha herança, a mina da libertação, vivem a sua oportunidade em fúria, em

espasmo, em sangue.”72

Este “Eu” principal masculino vê-se defraudado nas suas expectativas, sente-se vencido pelas

circunstâncias adversas que o levam do sonho à desilusão, à angústia, ao conflito e ao desespero.

A sua angústia leva-o a pedir… pede para não ser mobilizado “Teria de voltar ao Ministério, voltar

á Insular, tornar a vestir-me, tornar a lavar-me, repetir passos, repetir mesuras, recriar esperanças?, sofrer

decepções… Voltas e reviravoltas, tudo repetido, tudo mecânico, tudo contrariedade, tudo saturação.”73

,

pede ou melhor exige que não lhe roubem a mina, pede a possibilidade de poder aproveitar a oportunidade de

riqueza que lhe surgiu na vida.

O seu conflito e o desespero transparecem nos sonhos, encarados como antevisões de futuro, ou pelo

menos, como avisos do subconsciente “Os sonhos funcionam muitas vezes como sinais de alarme.”74

enfim como “radares do futuro”75

, que farejam traições, problemas, e que valem pelas preocupações

avisadoras que suscitam, implicando uma procura antecipada de soluções.

Por outro lado, este “Eu” principal masculino tem atitudes contraditórias, ambivalentes, oscilando

entre o desespero da mobilização e o prazer que esta lhe suscita. E, de facto, é a mobilização que o impede de

explorar a mina, e é também ela que impede a sua morte no momento em que Armando tenta

alucinadamente agredir mortalmente este “Eu”, é a sua «savage» que impõe respeito. Contrariamente a outros

“Eus”, nomeadamente os de Narrativa Bárbara e Depoimento, este “Eu” de Ladrão! sente-se envaidecido

pela farda que veste, como se numa atitude ingénua e viril, ela lhe conferisse autoridade, prestígio e

patriotismo “A vida infelizmente nada reservara de mais digno, mas isto parecia acordar em mim certo brio

varonil e patriótico.”76

o “Eu” sente-se superior de farda, talvez porque esta lhe permita uma certa

individualização num “Onde” homogeneizado, ou porque a farda é a exteriorização de um estado de espírito

bélico e revoltado pronto a matar, fruto de um “Quando” em guerra e de um “Eu” desesperado “Acreditaria

ele que poderia sequer intimidar-me, a mim, de mais a mais neste estado psicológico de oficial miliciano

mobilizado?”77

Embora o “Eu” sinta de forma diferente a farda, a tropa, a guerra, comparativamente com as

narrativas já citadas, a recepção destas por outrem , pelo povo, não é diferente: a mesma má vontade, a

70 Idem, p. 110. 71 Idem, pp. 111 e 112. 72 Idem, p. 117. 73 Idem, p. 127. 74 Idem, p. 122. 75 Idem, p. 122. 76 Idem, p. 106. 77 Idem, p.112.

15

mesma rejeição, numa reacção antecipada de choro, de luto, de revolta em relação à morte por patriotismo

“Rompia das próprias pedras contra mim um vexame pessoal inesperado. É-me impossível esquecê-lo: O

facto de pôr algum orgulho na exibição da farda de alferes miliciano provocava desdéns mal contidos

mesmo entre os analfabetos.”78

Este “Eu” principal masculino que analisamos, tal como o de Depoimento, reflectiu sobre as suas

vivências em analepse, desenhando um “Eu”, num “Quando” e num “Onde”, dando uma visão abrangente de

individualidade e de portugalidade, de Ser “Eu” e de Ser “Nós”, contribuindo, de igual forma, para uma visão

da vida, ou seja, da existência: “A vida… que coisa contrastante e apesar de tudo irresistível!”79

Os “Eus” femininos não têm voz na primeira pessoa, apenas surgem como uma terceira pessoa, uma

voz introduzida pelo “Eu” principal masculino, vivendo, existindo, falando em função deste último. Trata-se

de Elas e não de “Eus”, sob o ponto de vista narratológico, uma vez que surgem sempre como uma terceira

voz, uma personagem secundária feminina, evocada ou participante, mas que age, pensa, ama, odeia…

sempre em segundo plano, não sendo nunca o agente, mas antes sobre quem agem. São vozes femininas, o

motivo da confissão arrependida e analéptica do “Eu” principal masculino, o desejo, a sedução, o amor, a

paixão, a amizade sincera, a dedicação…

São “Eus” femininos diferenciados, diversificados, um leque vasto de Ser Mulher, desde as que

cometem sacrifícios em nome de um sentimento, às que investem num percurso de crescimento individual,

solitário… mas sempre feminino.

O “Eu” feminino que Narrativa Bárbara80 nos apresenta – Maria dos Anjos – é um “Eu” simples,

que se dá a outrem – Noitebó – para não entregar quem ama – Libânio – à tropa, ao país e, quem sabe, a

outras da cidade que conheceriam Libânio e o tentariam com o seu ar sofisticado: o dar da sua virgindade foi

um dar altruísta e egoísta, foi o salvaguardar de um amor que não queria ver partir e sofrer, mas que,

sobretudo, não queria perder ou partilhar com outras com quem não poderia competir81

.

É um “Eu” simples, mas voluntarioso, um “Eu” profundamente sensual, onde palpita uma

provocação ingénua de desejo82

, um agreste, mas robusto querer e onde sopra o ar saudável do campo que

cumpriu a sua influência num corpo doce, roliço, sensual, mas forte e decidido.

Quem assim a fez foi o contacto com o campo, com a terra que, quase como num reflexo do Mito de

Anteu, transmite a este “Eu” feminino toda uma sensualidade, um poder de atracção e de desejo e toda uma

força de trabalho, de personalidade e de envolvência, onde um olhar revela alma, um olhar e um jeito

provocadores que desarmam quem está perto e impressionam os sentidos – os de Libânio83

.

Os “Eus” femininos de Depoimento84 são paradigmáticos de dois opostos de comportamento, de

pensamento, de sentimento…

Lia é a mulher pura, a virgem, aquela que se guardou para o único homem da sua vida, aquela que

parece ter sempre esperado pelo primo José, depositando nele todas as suas esperanças, ilusões, sonhos,

fantasias e a própria perspectiva de felicidade85

.

78 Idem, p. 107. 79 Idem, p. 132. 80 O Sonho e a Aventura, José Marmelo e Silva, 2ª Edição, Lisboa, Editora Ulisseia, 1965, pp.11 a 25. 81 Idem, pp. 15 e 16, “ – Sim, a ver vamos. Se vais para a tropa, arranjas por lá alguma das de rabo atado, nunca mais queres saber de mim para nada.

Assim eu tivera o céu tão certo…

- Certo era malhares nas profundas, tola! Juro-te pela alma das nossas mães, que mais queres?

Não queria mais nada: desatou a choramingar. E isto comovia-o. Pobre pequena!

- Bem, lá porque um homem vai conhecer novos mundos…

- Porque não pedes ao «senhor do vale» a ver se ficas livre? – teimou ela.

- Tem livrado muitos de irem lá malhar. Até eu sou capaz de lhe pedir, se quiseres – aventou, resulta.” 82 Idem, p. 17, “O Libânio e a Dosanjos nunca se tinham beijado boca contra boca. Em suas alegres brincadeiras, costumavam era morder-se – nos

ombros, no pescoço – dar-se mutuamente palmadas selvagens nos quadris. Flexível como mola, ela saltava-lhe ao dorso e, num grito, ferrava-o, tantas

vezes! – escapulia-se como lebre solta no espaço livre. Alvoroçado, ele corria atrás dela.”

Idem, p. 16, “Do alto da sua desconfiança desprezível, as pálpebras semicerradas, ele olhava, incoerente, fossilizado, os seios da Dosanjos, anelantes

no seu doce abaulamento, parecendo estender-se-lhe em busca de contacto, alongar-se de fome ou de sede como cabritinhos morenos.”

Idem, p. 18, “E a Dosanjos? Lá andava na vida de casa a lidairar. Mulher duma fona! Ela fazia o comer, ela remendava, ela acomodava, com licença

dos senhores, o porcos, ela assoava o monco ao pai Taimão, passava a roupa a ferro, ia ao chafariz, ela tudo. O pobre velho – a pinga normalmente

acriançava-o – tocava às vezes com o cotovelo no Libânio, a espicaçá-lo:

- É danadinha para mexer, hem!

E riam como uns velhacos.” 83 Idem, p. 14, “Aquelas manhãs tão límpidas, com o sol de pouca altura e as longas canções dolentes, faziam toda a sua alegria de viver. Libânio

gostava de cavalgar a roda do tio Taimão, a prima Dosanjos à frente saracoteando-se como uma mulherzinha, ele atrás peito ancho como um bravo. O

meio rego de água a correr (nós dizemos a lágrima ou a meia cale) o milho a ressurgir (como um ser vivo quase familiar) e os olhos dela, dum moreno

tão quente, reflectindo toda a alegria da terra… - a fadiga nem era coisa que contasse.” 84 Idem, pp. 29 a 98.

16

Lia é uma mulher de uma virgindade santa, quase intocável, que atrai pelo desafio proibido que

constitui a conquista, a sedução de alguém tão inteiramente puro que suscita atracção, pelo desejo secreto de

manchar essa santidade branca, e repulsa pelo seu ar sempre tão composto de santa no altar “(…) ao mesmo

tempo para sacudir-lhe o ar seráfico (…).”86

, “(…) e desejei que ela, a aventureira, não fosse como a irmã,

uma fria beleza de santa, acrisolada, outonal.”87

.

Lia representa o oposto de todas as mulheres da capital, aquelas que seduziam o primo José,

representa um exorcismo limpo de falsos sentimentos, de falsas seduções, de falsos desejos.

Lia é uma mulher ingénua que deixou de lutar pela vida, esperando que esta aconteça, deixou de

procurar os seus sonhos, desistiu de viver para sobreviver submissamente ao lado da mãe, arrastando um

viver sem cor, sem graça, sem carinho, um viver pobre88

, humilde, descolorido, onde a única cor era o sonho,

a ilusão, a esperança de uma alegria feliz partilhada.

Este “Eu” feminino revela uma chocante submissão ingénua relativamente ao destino, aceitando, após

a morte do pai, uma vivência difícil, sem luxo, sem entusiasmo, sem contactos sociais; relativamente à mãe

que a domina e manipula, que a subjuga à sua vontade, que a tornou, de forma egoísta, no amparo necessário,

imprescindível de sobrevivência; relativamente ao primo José, que espera ansiosamente, em quem acredita

com uma fé apaixonada de adolescente colegial, por quem esperou, a quem se quer entregar e com quem quer

partilhar a sua vida, até então, triste e monótona89

.

Lia é uma mulher que se alimentou de sonhos, de ilusões, uma sonhadora de vinte e cinco anos que,

de forma paciente, esperou que o destino lhe sorrisse…submissa, ingénua, sonhadora, paciente…crente. Lia

acreditava sinceramente no amor do primo José e num possível futuro compromisso matrimonial entre os

dois, acreditava veementemente na boa vontade de Deus, um Deus magnânimo que a compensaria dum

passado e presente injustos e difíceis.

Esta personagem não se revolta, não se rebela, mas aceita, aceita o destino de Deus, aceita a

submissão exigida pela mãe, aceita um emprego mal pago, aceita uma juventude sem brilho, sem glória, sem

amor e, de certa forma, compraz-se na sua infelicidade90

, na sua vida descolorida, na sua dor e sofrimento,

como se fossem factores exigidos no “antes” e “agora” para uma felicidade no “depois”, como se, dessa

forma, garantisse a comoção de Deus, a sua piedade, e o movesse a recompensá-la, como se, assim,

inspirasse uma piedade enternecida e amorosa de Deus e do primo José “Lia é uma rapariga honesta e

indefesa. Há que ter piedade pela desolação depois do amor, há que ter piedade pelos anseios de legítima

realização.”91

tornando-se este o agente da recompensa divina, dando-lhe amor e uma vida a dois.

No entanto, todo o ser humano é passível de nos surpreender e Lia surpreende-nos de facto. No seu

ser em que a seiva parecia ter secado encontra uma vibração diferente, habita dentro de si um desejo

explosivo de ser feliz que irrompe em determinadas circunstâncias92

.

85 Idem, p. 32, “Com efeito: mal subo as escadas, (…). Aqui está ela (…) – como se eu fora aquele a quem ela esperava há tanto tempo com uma

ansiedade viva e infalível. (…) numa compostura tão séria e tão pura, que me chocou.”

Idem, p. 36, “Lia tinha vinte e cinco anos: esperava em verdade por mim. Desde que o papá morreu, a porta da sua casa ficou aberta apenas para o

lado do quintal: e do lado do quintal havia pinheiros, uma vinha devassada, moinhos à vela, ondulações lilazes e o infinito mar – mais nada. Do alto da

frontaria podia ver-se o escoamento da estrada lisa, dum brilho negro: estrada do prazer, do amor, da exibição, porque era ela que levava à missa, aos

bailes, a passeios, a chás, ao Carnaval. Ia na direcção das torres e cúpulas do Convento, dava para o comboio, para Lisboa, para todo o mundo – aquela

estrada negra.

Também Lia vinha por ela; simplesmente a sua vida empanou.” 86 Idem, p. 34. 87 Idem, p. 35. 88 Idem, p. 62, “Digo comer e não jantar, para traduzir melhor a impressão que sofri à vista da sua mesa sem toalha, com pratos meio lambidos, e

uma garrafa de tasca com algum vinho anegrado. (…) Veio-me um nauseabundo cheiro a couves com rabos e barbatanas de bacalhau. A Lia, de lábios

besuntados, de robe, um robe amarelado, feito de colcha de cama (…).” 89 Idem , pp.46 e47, “Lembro-me dos queixumes da D. Conceição contra a aragem húmida, (…), contra as dificuldades da vida em geral, (…) e odiei

a submissão de Lia que caminhava a meu lado, muito baixa, encostada a mim quando podia, (…) os olhos suaves, como a rogar: «Quem um dia me

evitasse esta tortura!» Quereria ficar comigo para todo sempre, escrava que fosse, (…).” 90 Idem, pp. 64, “O mais extraordinário foi Lia ter-se posto também a escutar todas estas ninharias com um agrado transparente, de mãos tombadas

sobre os joelhos, olhos baixos, em atitude de modéstia e desinteresse (…).” 91 Idem, p. 54. 92 Idem, pp. 39, 40, 41, 42 e 43, “Lia atalhou pressurosa o meu gesto de oferecer-lho. E pôs-se a procurá-lo com tal impaciência, ruflando no papel,

como asas brancas de pomba, as suas mãos fidalgas, que eu não pude deixar de sorrir e ficar surpreendido a olhá-la.(…) foi pôr a tocar um triste

altofalante de campânula (…). A música rompeu (…). Entretanto Lia estava divertida. Cantarolava, rodopiou sozinha uma, duas vezes, no pequeno

espaço livre, observava-me às furtadelas. Parecia, porventura, desejar surpreender-me a olhá-la. …) eu ouvia o seu coração: (…) venha-me abraçar!»

(…) Lia não sabia dançar. Mas abandonara-se de corpo e alma – dócil, contente – cordeiro perdido que encontra o colo do seu pastor. (…) Beijei Lia na

boca devagarinho, anichei-lhe os seios no meu peito, embalei seu corpo cálido, gostoso, amadurecido, como um ninho de castidade e preservação…(…)

Comprimiu-se mais e mais, tornou-se leve, tão leve, o seu desejo era ficar colada a mim, dissolvida em mim, deixar de existir para este mundo negado e

impiedoso. Que sede!”

17

É uma mulher capaz de atitudes tão díspares como a submissão, a apatia e a acção voluntariosa, a

curiosidade, partindo tudo no entanto do mesmo ser em sofrimento que, instável, é capaz de comportamentos

contraditórios na busca por uma felicidade a qualquer preço93

.

Podemos mesmo constatar que a acção mais vibrante de Lia não é mais do que uma tentativa

desesperada e derradeira de viver e de substituir a submissão à mãe pela entrega submissa ao primo José.

No fundo, Lia parece querer exigir do destino uma protecção, um amparo, como recompensa pela

sua vida de sofrimento, dor e monotonia. Uma exigência que quer ver cumprida em José e onde se mistura o

desejo de amar e o de ser amada, o de viver e o de viverem por ela… Lia faz depender a sua vida, a sua

alegria, o seu ser, de outrem, só se completando quando cansadamente se submete, e entrega nas mãos desse

outrem o seu destino, a vida, toda a existência. É capaz de abandonar em sacrifício a sua virgindade, o seu

corpo e a sua alma, a José como se fosse o preço a pagar por um compromisso, por uma promessa, como se

assim obrigasse o destino a cumprir-se e o primo José a decidir-se. Como se assim garantisse o reparo

matrimonial necessário, como se dessa forma prendesse o destino e José, no seu pensar simples, ingénuo e

dorido.

Juja é irmã de Lia…uma mulher diferente, uma mulher voluntariosa, uma mulher que não espera que

a vida lhe aconteça, procura-a, uma mulher que não espera pela felicidade, persegue-a. Esta sua busca leva-a a

atitudes extremas, radicais e a formas de vida de dignidade duvidosa.

Juja …a primeira vez que ouvimos o seu nome e tomamos consciência da sua existência, sabemos

pela sua mãe, D. Conceição, que ela morreu. A tragicidade da situação dilui-se quando nos apercebemos que

não se trata de uma morte física, mas psicológica, correspondendo a um esquecimento castigador da fuga da

casa materna. Enfim, uma atitude dramática e comum, vivida como uma tragédia e sentida como uma

perdição no pensamento pudico e puritano familiar94

.

Cria-se à volta de Juja uma auréola de atracção, de aventura, de desejo, de tentação, pelo esforço de

imaginação do primo José que a imagina95

, que a deseja e que a procura96

.

Juja é o diminutivo carinhoso e familiar atribuído a uma jovem rebelde, aventureira e desejosa de

liberdade, independência, autonomia…riqueza e amor.

“Juja” significa tudo o que esse ser foi enquanto criança, adolescente e jovem na casa materna. “Juja”

encerra um período da vida finito e limitativo que, quando ultrapassado, se torna revestido de cambiantes

saudosos.

“Juja” de facto morreu. Morreu essa jovem ainda ingénua e inocente, essa jovem bela, digna de

respeito, carinho e que ansiava ser livre, amada e feliz.

Essa jovem morreu, é a sua mãe quem o afirma, “A Juja…morreu.”97

– e mesmo ela própria – “A

Juja…morreu.”98

, marcando, dessa forma, o fim de um período, de uma época da sua vida.

93 Idem, p. 63, “«É hoje!» Alvorocei-me. «É hoje». Lia clamava por mim: o altofalante tocou. Apressei-me. A alegria dela tinha ritmo. O apelo ao

meu corpo, musical. Não se conteve em Chéleiros, veio mais cedo… Seria preciso interrogar-me? Apressei-me…(…)

- Esta noite vens falar comigo ao corredor – ordenei-lhe em segredo. (…)

- Ah, não posso! (…) Ela não dorme.! (…)”

Idem, p. 69 e 70, “A ansiedade dela coincide com o meu desejo. (…) Pois não foi imprudência deixar aquele macio braço esquerdo debaixo do rosto

da D. Conceição! (…) Lia cerrara as pálpebras, numa resignação sem limites, foi-o puxando lenta, docemente. Com aquela aparência seráfica, quem

havia de dizer! (…)Tomei-a pela cintura (…). A sua boca exigiu de pronto a minha Beijou-me vorazmente, de pé. Dei-lhe o apoio da parede, (…). Com

as mãos, percorri-lhe o dorso, desapertei-lhe o robe, toquei-a. (…) Lia agarrava-me com aflição, com violência, olhos abertos, olhos fechados,

precipitando a consumação.” 94 Idem, pp. 34 e 35, “- A Juja…(…) A Juja …morreu.(…)

- Para nós… (…)

E D. Conceição, só para mim, numa confidência cruel que lhe fez tremer ambos os lábios:

- Foi-se-me para Lisboa…”

Idem, p. 50, “Com parte desse dinheiro, Juja fugiu para Lisboa, compraria em qualquer rua alguma fruta e um bilhete da lotaria. Talvez o tivesse

dado a algum amante…”

Idem, p. 51, “(…) que é feito de Juja? (…)

Um miliciano veio de noite e levou-a de automóvel…(…) Mas foram os maus tratos da mãe, que é uma fera. A menina não podia namorar com ele,

nem com ninguém, a senhora queimava-lhe o sangue só de ela chegar à janela, por uma mesnada zupava-a, (…). E agora anda pelos teatros, parece

que a dançar.” 95 Idem, p. 35, “Nesse momento estrangulado, vi Juja de relance, tentadora (Rossio, automóvel, um olhar violácio riscando o ar, luzes vibrantes,

fausto, estonteamento, um quarto!) e desejei que ela, a aventureira, não fosse como a irmã, uma fria beleza de santa, acrisolada, outonal.” 96 Idem, pp.55, 56 e 57, “Domingo iria a Lisboa. Podia até encontrar Juja, há acasos felizes. (…) Coisa singular: por mais que eu quisesse afastar, por

absurda, a ideia de ir de um teatro a outro à procura de Juja, esquecido dos amigos e de tudo o mais, não pude consegui-lo. (…) Lembrei-me de Lia,

opressivamente de Juja, (…).”

Idem, pp. 60 e 61, “(…) (porque a minha admiração por Juja era sincera). (…) Metendo a mão na consciência, enquanto, passeio fora, ia cuspindo o

meu desaire, apalpei o lodo mesquinho de que Deus fez Adão. A obsecante ideia não queria senão dizer que, encontrando Juja e cumprindo nela o meu

desejo, possuía ao mesmo tempo um pouco de Lia (sem responsabilidades) e a alma jamais revelada duma mulher perdida. Era cobarde.” 97 Idem, p. 35. 98 Idem, p. 74.

18

As mesmas palavras que revelam o mesmo sentir: um pesaroso sentir de toda a família, embora

motivado por diferentes pensares – saudade, egoísmo, amor… Juja sente saudades dessa época da sua vida à

posteriori, embora esteja consciente da impossibilidade de regresso; D. Conceição lamenta a fuga da filha e o

fim dum período em que contava com o apoio de duas filhas que a ajudavam a ultrapassar uma viuvez

complicada em termos monetários e sociais; Lia lamenta a fuga da irmã porque a ama, lamentando o fim de

um amor fraternal partilhado, lamentando, de igual modo, ter-se tornado o único suporte de sobrevivência de

uma mãe possessiva.

Essa jovem morreu porque se transformou. Deixou de ser a Juja quando fugiu de Mafra para a capital

acompanhada por um miliciano. Deixou de ser a jovem de família, deixou de ser jovem para se tornar numa

mulher vivida, sem passado, sem família, com um presente mascarado e com um futuro incerto.

“Juja” é um diminutivo, um nome máscara que esconde o verdadeiro “Eu” da personagem feminina,

cujo nome próprio desconhecemos. Juja é o nome emblemático dum passado, de uma vida familiar da

criança, da adolescente e da jovem. Um nome abandonado por respeito a esse passado vivencial quando o

presente se transfigura em fuga e em sobrevivência culposa e pecaminosa em Lisboa.

“Juja” representa uma fase da vida desta mulher, a vida em família que, quando abandonada, dá lugar

a um outro nome…Já não se trata dum diminutivo, mas de um “nome de guerra”99

, segundo as palavras do

primo José, ou seja um nome profissional, um nome falso que esconde a identidade, o passado, o ser, o

pensar e o sentir, nos meandros da prostituição. Digamos que Juja enterrou este seu nome, e com ele um

passado e uma fase da vida e passou a utilizar um nome de sobrevivência num presente explorado e

sobrevivido à custa da beleza física, da desenvoltura da acção no meio nocturno, da exploração de

sentimentos, da solicitação sexual.

O nome era Georgette. Um nome afrancesado, em tudo falso e coquete, temporariamente escolhido,

digamos um nome de ocasião ou sazonal que possivelmente se adaptava bem a um presente de corista “(…)

no Apolo uma corista singular.”100

.

O primo José conheceu primeiramente esta mulher como Georgette “Eu tive ultimamente no Apolo

uma corista singular. Nessa temporada chamava-se Georgette (nome de guerra) (…).”101

. Foram amantes em

Lisboa. A sua relação, praticamente destituída de amor, gerou-se e desenvolveu-se baseada no desejo sexual e

terminou quando surgiu o enfado e o cansaço por aquele corpo elegante e sensual numa alma calculista e

materialista.

José via Georgette como uma mulher «socialmente neutra»102

, atraente, sensual que conseguia

fascinar e encantar outrem pelo mistério, pela aparente fragilidade, desprotecção e solidão. Vi-a como a

imagem feminina do diabo, pela sua lubricidade e poder de tentação.

Contudo Georgette deixou de ter interesse para José que a abandona, a repudia, porque, como

prostituta, encara-a como uma actriz que representa uma faceta da sua vida, despojada de emoção verdadeira,

uma actriz que representa um ser, um sentir, um pensar e um agir.

José reencontra Georgette103

, em Lisboa, enquanto procura pela noite Juja que, apesar da fuga e da

certeza de uma entrega a uma vida duvidosa, afigura-se-lhe uma mulher atraente, sedutora, talvez pelo

conhecimento romântico do seu destino, da sua sorte, ou simplesmente devido ao mistério do seu paradeiro e

da sua existência.

A Georgette que José encontra é já uma mulher diferente da corista que conheceu e tivera como

amante. A mesma beleza e fascínio, mas uma mulher que afirma estudar Belas-Artes, que se esforça por

inverter uma vida de prostituição e por ultrapassar esse estigma social. O seu esforço é saudado cinicamente

por José que duvida do esforço e da transformação. Apenas pretendia dela o paradeiro de Juja e a reacção de

Georgette foi explosiva. O comportamento de Georgette justificava-se perante a reacção cinicamente

99 Idem, p. 44. 100 Idem, p. 44. 101 Idem, p. 44. 102 Idem, p. 45. 103 Idem, pp. 58, 59, 60 e 61, “Era fatal: à porta do Maxim’s, esbarro com a Georgette. Meu sangue paralisou – terrível acabrunhamento o nosso em

certas horas! O náufrago sou eu, desta vez, ela é quem nobremente reacende a intimidade de outrora, quebrando o meu estado de inferiorização.

(…)Todavia, às manifestações de interesse de que a rodeio, ela deixa de corresponder com a sua carinhosa vibração de sempre. Visivelmente

trespassada, por certo à lembrança do meu injustificável abandono e ofensas (…).

- Agora…estudo. Entrei nas Belas-Artes.

Rio estrondosamente:

- Que me dizes? Há que tempos que tu estudavas belas-artes, Geoge! Ah-ah! (…)

Mas na Geoge há sempre um pormenor de beleza física que me domina. A gola de antílope no casaco dava-lhe um delicado ar de ingenuidade. (…)

Tinha compromisso ou mudou?”

19

desastrada de José, mas não totalmente. No fundo este comportamento explosivo constitui um indício da

posterior agnórise104

.

E de facto esta surge em Mafra, em casa da viúva do major Scoto, D. Conceição, aquando da quase

consumação do acto sexual entre José e Lia no corredor, na escuridão. É a entrada de alguém que espanta o

desejo, ao qual sobrepõe o terror da descoberta do libido. Esse alguém vai José encontrá-lo no seu quarto

alugado: Georgette. Ou melhor Juja. É uma Juja desiludida que regressa, só, triste, desenraizada. Uma Juja

que regressou para morrer definitivamente na casa onde nascera. Uma Juja que se transformou numa mulher

livre, saudosa, nostálgica, em evolução, em transformação, sobrevivendo e dignificando-se.

É no momento da agnórise que José ama aquele ser feminino que une Juja e Georgette, ou seja, a

sedução, a tentação, a sensualidade com o mistério, com a devassidão, com a fraqueza moral… enfim, é Juja

que empresta a Georgette uma visão romântica da vida e do destino que encanta e fascina José, a ponto de a

amar.

Juja morre para sempre, partindo definitivamente, por ela ou por Lia. Georgette terá morrido também

e terá nascido uma outra mulher …de destino incógnito, misterioso com uma promessa de sensualidade séria

e de compromissos adiados …um ser feminino onde palpita o desejo de cada um do “Nós factual”, um “Eu

ficcional” composto por vários “Eus”, emblemático da beleza a que se aspira, da coragem que se inveja e da

sensualidade que se procura … contudo emblemático do erro dum certo Ser e agir e sentir!105

O curioso é realçarmos o reaparecimento de uma senhora - Maria de Jesus Scoto - não em

Depoimento, mas em Ladrão!. Um reaparecimento fugaz de uma jovem mulher que impressiona pela sua

beleza fresca, pelo seu corpo doce, pelo recato que a toilette preta favorece, pelo choro contínuo que

transmite uma expressão nobre. A esta mulher, o eu principal masculino vinca sobretudo o porte digno, a

compostura, a ausência de leviandade ou vulgaridade como se aquele corpo sensual escondesse uma alma

pura, virgem, sem mácula. Um reaparecimento como mulher casada com um oficial mobilizado na Ilha da

Madeira... Será Juja e o caminho de vida que terá escolhido? Nada de concreto ou irrefutável se pode afirmar,

contudo a sugestão é demasiado forte para que se possa negar ou esquecer: Juja seria o diminutivo de Maria

de Jesus? Usaria ela o apelido de solteira Scoto e porquê? Seria o primo José o seu marido? Pouco provável

talvez... mas nunca se sabe... talvez sim ou não... certo é que esta jovem fascina como Juja e como Juja ou

não embarcou para a Ilha da Madeira para um ansiado encontro com o marido.

Aparte esta referência sensual feminina, este toque tépido e fugaz, é interessante notar a ausência do

feminino em Ladrão!. Do feminino enquanto mulher, esposa, amante ou mãe, porque o feminino palpita,

sente-se e, acima de tudo, pressente-se nesse vasto e abrangente domínio que se chama Terra. É a Terra com a

104 Idem, p. 60, “- Ah, Geoge, a propósito: Tu conheces uma rapariga de Mafra chamada Juja, ou Maria de Jesus? Não sei se será corista…(É filha da

senhora da casa onde eu vivo).

Recuou em semicírculo – (…) – para lançar de mais longe o gume da risadinha sarcástica (…). Mediu-me de alto a baixo, descarregou:

- Sempre essa tua velha mania de irresistível! E a farda ajuda-te muito, não há dúvida!

Continuou a rir, continuou a falar, creio ter feito uso do calão (que sabia eu detestava) conseguiu humilhar-me. Insisti:

- Deixa-te de ciúmes. Pergunto-te: Conheces?

(O meu tom de voz era de súplica).

- Ciúmes? – troçou em voz alta. – Posso até ajudar-te a procurá-la. Burguesinha? Provinciana? Chamada Chucha?

Seu riso reexplodia a espaços, cada vez mais injustificado, sufocava-se para eclodir de novo, enervei-me (…).” 105 Idem, pp. 72, 73, 74, 75, 76 e 77, “A Georgette descalçava placidamente as luvas pretas e pousava-as no mármore da mesa de toilette, como uma

dona! Estão a ver o meu espanto e repentinamente a raiva. Só um ser diabólico e misterioso seria capaz de tal loucura. Foram os passos dela que

impediram a necessária realização. Emudeci. Vi no seu vulto algo de sobre-humano espectral – e isso tolheu-me de estrangulá-la. (…) Seria em

realidade eu, acordado, e a Georgette palpável e carnal? (…) Detive-me a olhá-la. Tudo nela me intrigava, até a moderação no uso do bâton, e como que

uma beleza estranha, uma outra seriedade. O lábio, com a febre doutro tempo, contraía-se numa amargura desusada. E parecia-me cada vez mais

profunda tal tristeza: no alongar dos olhos, na indolência dos gestos, na palidez crescente… - até que por fim confessou, anelante, enternecida:

- A Juja…morreu.

E tombou no travesseiro sufocada. «Era ela!» - acode-me nesse instante tardio. (…) Todavia a Juja estava ali: desiludida, soluçando sobre a sua ruína,

de alma nua, retalhada.

Pus-me a acariciá-la como a uma irmã infeliz. A beijar-lhe as mãos que foram de Juja, antes da prostituição. Em seguida, a testa, os olhos tristes e

húmidos. (…)Apetecia-me a mim chorar. Estávamos na mesma cama, ao lado um do outro, sem um desejo. (…)

- Tudo para mim tão confuso, querida! Como é possível estarmos hoje aqui, e tão diferentes, um do outro, do que fomos! O teu segredo, tão fundo, tão

grande… Como pudeste sempre ocultar-me? Tu sabias de mim!

(…) Lágrimas alegres borbulhavam-lhe. E num momento tão belo o maldito klakson chamou, do silêncio da noite, a distância insuspeita, e eu

apresso-me a prendê-la, como à própria vida que me quisesse fugir:

- Não vás embora, peço-te. Agora sei que te amo. Ah, eu nunca te vi tão…

(Bela, adorável…Todos os qualificativos me pareciam inapropriados).

- Tão …digna do meu carinho! (…) Não vás embora, Juja, suplico-te. Quem morreu, afinal, foi a Georgette. (…) Não me perdoas. Que horrorosas

faltas cometi contigo! Mas sem saber… Esquece tudo. Acredita-me: Só agora te vejo como um ser humano!

- Não, não. Seria a morte de Lia!

Desprendeu-se de mim – tão facilmente! – refugiou-se no corredor, como uma sombra leve.

Tombam-me os braços. Da janela vejo-a caminhar lentamente em direcção ao carro, tornar-se irreal, voltar-se uma, duas vezes para o quarto de D.

Conceição (para o seu, de adolescente!), perder-se de novo do que foi aqui, ainda agora, e a sinto eu já tão longe, no passado irreversível…

E ali fiquei – vazio, mesquinho, amarfanhado – a ouvir o rumor do mar…”

20

sua promessa de abundância de mulher fértil que permite esperanças, sonhos, desejos... é a caução de uma

realização possível... é a Terra que se pretende possuir num alucinado e ansioso estado de alma... é à Terra

que se esventra o útero, procurando, em minas de sangue e suor, a riqueza rápida e eficaz, sem princípios ou

ideais. É a Terra que atrai, que se deseja, que se cobiça, que se quer possuir num ritual narcísico de poder e

domínio. Pela Terra vive-se e morre-se, somente para cumprir uma posse, nem sempre honesta, humilde ou

respeitosa. E tal porque há que possuir a Terra com respeito, desvelo e carinho... ela encerra o que fomos,

permite-nos Ser no presente e é promessa de Ser no futuro. Há que tratá-la com cuidado extremoso de um

marido dedicado para que floresça e apareça em toda a sua pujança explosiva de verde, de flor e de fruto.

O “Eu” revela, como já referimos, sempre um enquadramento específico num determinado “Onde” e

“Quando”, sendo esta localização que lhe permite surgir tal como se nos afigura, ou seja, é a contextualização

espacial e temporal que lhe define os contornos, que lhe imprime um certo Ser, um certo Estar, um

determinado Olhar e viver o real.

Estas coordenadas marcam o Ser e definem as formas de pensar, agir e sentir, evidenciadas nas

palavras, acções, vivências, sentimentos, experiências… O “Onde” e o “Quando” condicionam o Ser, ou seja,

o “Eu”, permitindo-lhe evoluir numa ou noutra direcção, contribuindo para uma determinada formação,

educação, aceitação ou rejeição do real e da ordem instituída…

Dependendo do “Onde” e do “Quando”, desenha-se a adequação/inadequação do “Eu” ao real; a

aceitação/rejeição do sistema de valores instituído; a acomodação /rebeldia face ao real; a satisfação/desejo de

maior liberdade de pensar, agir e sentir; o encobrimento/revelação do Ser como indivíduo-vício, indivíduo-

tabu e indivíduo-desejo.

São coordenadas que permitem ao “Nós” conhecer uma realidade abrangente em termos de tempo e

espaço como se foi, como se é e como se será e em termos de Ser, estabelecendo-se uma rede de relações

entre “Onde”, “Quando” e Ser que contribui para o conhecimento e construção de uma comunidade.

Assim, surge-nos em Marmelo e Silva um conjunto polifacetado e interactivo de “Ondes” e

“Quandos” que concorre para a revelação e o conhecimento dos “Eus”. Os “Ondes” evidenciam a tendência

para se classificarem segundo a dicotomia campo/cidade, surgindo, assim, a oposição “Onde” rural-

provinciano / “Onde” citadino-urbano, muitas vezes palpitante na oposição Eu /os outros, determinando

diferentes formas de ver e estar no mundo. Os “Quandos” obedecem a uma gradação de crescimento

individual e comunitário, desenhado-se uma panóplia evolutiva de tempos: os vivenciados e os analépticos;

os infantis, os adolescentes, os jovens e os adultos.

Paradoxalmente, esta localização oferecida pela análise do “Onde” e do “Quando”, por tão presente,

torna-se ausente, ou seja, por tão concreta, contribui para o desnudamento duma intenção: o projectar o “Eu”

no não-espaço e no não-tempo, restando apenas o SER, a conclusão final do jogo de sedução interactiva

entre “Eu”, “Onde” e “Quando”.

Em Narrativa Bárbara106, José Marmelo e Silva apresenta-nos um “Onde” que não nos surpreende

dentro do conjunto da sua obra. Um “Onde” campestre, de forte ligação com a terra, apresentado por uma

linguagem expressiva, metafórica e sugestiva, onde o “Onde” ganha vida, assumindo-se como ser vivo

irrequieto , inconstante, apenas obedecendo a leis da natureza e cego aos infortúnios dos homens107

.

Um “Onde” diverso e múltiplo, tal como o “Eu”, com diversos rostos e facetas, a um tempo belo,

rude, agreste, embalador, assassino108

e manso duma força quente emanada do castanho da terra, do dourado

do sol e da transparência líquida e límpida da água do rio.

Um “Onde” habitante das margens do rio Zêzere, cuja fertilidade cria homens viris e mulheres de

uma sensualidade roliça e robusta, seres simples, ingénuos e inocentes como a terra, rudes e agrestes como

ela, no pensar, no sentir, no agir, no falar109

106 O Sonho e a Aventura, José Marmelo e Silva, 2ª edição, Lisboa, Editora Ulisseia, 1965, pp 11 a 25. 107 Idem, p. 11, “Lá vai o Zêzere limando a base dos montes, e é como lima de prata, lá vai ele, coleante, fartando os vales. Brilham regatos na Serra –

as torneiras do céu abriram-se durante sete dias e sete noites – vede-o subir de mar a monte sobre lodeiros e salgueirais. A mancha de sangue do poente

torna-lhe o barro mais rubro e, visto que o dia finda, quedamos, homens e coisas, a ouvir-lhe o rumor de reza. A ouvir o rumor do rio que salta fora da

mãe e tudo alaga, correndo, derrubando…” 108 Idem, “…Rio medonho! É sinistro agora, negro, viscoso, ameaçador, ergue-se de monte a monte, enremoinha-o o vento, - fujamos para nossa casa,

meu Deus! Uivam-lhe no meio das vagas lobos de crina erguida…Traidor! Traidor! Para que nos prendia ele o olhar e seduzia há pouco a nossa alma?” 109 Idem, pp. 13 e14, “Era ainda no campo, no meio de suores e agruras, que ele encontrava a possibilidade dum viver sem medo e sem revolta.

No verão, sobretudo, o trabalho do vale, precisamente porque esforçado e em absoluta comunhão com a terra, tinha o gosto acre-doce da violência e

da saudade. Vivia-se exclusivamente para os milheirais. Os arrendamentos pagam-se ali em alqueires de feijão de leira e milho – por isso todo o esforço

entre a terra e o homem se conjuga até ao limiar possível. Vida vegetal e humana desenvolvem-se a um mesmo ritmo.

21

Um “Onde” prenhe de sentidos erotizados, onde a visão se acalma e delicia, o olfacto se extasia, a

audição vibra, o gosto se renova e o tacto confirma, numa provocação sensual, sugestões pressentidas num

arrojo de Ser neste Real110

.

Um “Onde”, como já dissemos polifacetado, quase plural, porque acompanha a diversidade múltipla

do “Eu”, reagindo, por contraste ou semelhança, ao seu sentir e ao seu pensar, moldando, por vezes,

comportamentos, acções e atitudes111

. Um “Onde” que exibe todo o seu provincialismo, já abordado e

discutido no capítulo 1112

, uma vez que se extrai de cada palavra uma visão acarinhada do campo, da

província, da terra, como se esta determinasse uma ternura quente de vida e parisse seres francos, sem

maldade, mas com malícia própria de quem contacta com a natureza e a encara como natural, vendo todos os

seus actos como espontâneos113

.

Um “Onde” provinciano evanescente de pureza, de inocência, de sensualidade, de libertação e de

liberdade por oposição às cidades, ou aglomerados populacionais, corruptos de maldade, de vício, de

opressão!

Um “Onde” provinciano… lugar de crenças, superstições, local onde as forças e os elementos da

natureza se revestem de cores e de formas cuidadosa e seriamente interpretadas, como se de sinais prolépticos

se tratassem, auspiciando presságios, suscitando pressentimentos.

É o caso específico da noite – “Sobre o vale, e bem estranhamente, cerrara-se a noite

provocadora”114

; “ (…) esta noite toda na boa-vai-ela? (…) O avejão da noite!”115

; “Uma noite muito serena e

muito fria de Dezembro, noite sem lua, mas cravejada de estrelas (…)”116

;“ (…) formas nocturnas (…)

ameaçado de trevas que cirandavam.”117

; “ Viu no mistério da noite, a Maria dos Anjos sair do alpendre do

Noitebó (…)”118

– momento propício para a desgraça, para a morte, para o crime, para a desonra. Foi à noite

que o pai de Libânio morreu engolido pela água do rio em fúria, foi de noite que Samporritas observou e

contou a Libânio o encontro de Maria dos Anjos e Noitebó, foi à noite que Noitebó sucumbiu enforcado …

Foi de noite que se cumpriu uma vingança, se impôs um castigo, foi de noite que se sofreram os piores

momentos.

Em paralelo com a noite, a lua exerce um poder hipnotizador, suspensa no negro, embarga a razão,

evoca, antecipadamente, factos, como se o seu comportamento enigmático propusesse um desafio de

revelação do desvendar do infortúnio – “Uma lua impotente e ensanguentada, emaranhando-se por detrás de

nuvens (…), dir-se-ia de mau presságio e angústia. Ao garoto que ele era prendia-lhe os olhos esse enigma do

céu: «Porque anda tão aflita a lua? Não adivinha nada de bom: ora se esconde, ora espreita, também com

medo do rio...»119

.

É em plena luz do dia e do doce calor do verão que a vida mais acaricia Libânio, o “Eu” masculino

principal, como se a terra o acolhesse no seu seio e o resguardasse.

Mal a manhã começa a clarear e os milhos, dum lado e doutro dos salgueiros, mostram a sua ondulação saudável, já em cada quarteirão uma, duas

rodas giram, cantam, choram a água que rega e dá o pão e o prazer de cada dia.” 110 Idem, p. 14, “Giram tocadas pelos pés quase sempre de gente moça (mas são milhares de rodas em toda a região de Rio-Abaixo), de gente que

também canta e sua, perna vai, perna vem, os rapazes de branco, em ceroulas e camisa, as cachopas em saiotes escarlates e esbeltas. Seja à desgarrada

desta nora para aquela, seja em conjunto, todas essas baladas têm a cadência lânguida do lânguido chiar das rodas. Há no fim de cada quadra um ai

sentimental, longo, doloroso, que não se adivinha quando morre. Se, entretanto, no céu azul remoto o sol foi subindo, alagando a terra de luz, e passam

pelo vale os primeiros bafos de ar em brasa, tudo debanda para o caldo do meio-dia e para a sesta.

Aquelas manhãs tão límpidas, com o sol de pouca altura e as longas canções dolentes, faziam toda a sua alegria de viver. O Libânio gostava de

cavalgar a roda do tio Taimão, a prima Dosanjos à frente saracoteando-se como uma mulherzinha, ele atrás peito ancho como um bravo. O meio rego de

água a correr (nós dizemos a lágrima ou a meia cale) o milho a ressurgir (como um ser vivo quase familiar) e os olhos dela, dum moreno tão quente,

reflectindo toda a alegria da terra… - a fadiga nem era coisa que contasse.” 111 Idem, pp. 21e23, “sob o poder da vara, o barco ia rio acima, a dar folga para a corrente, que nesse como noutros pontos de passagem do Zêzere é

bastante rápida. E na grande massa de água que assim fluia, estonteadoramente, reflectiam-se as estrelas do céu. (…) Quando Libânio deu por si, ia ao

sabor da corrente, já longe do cais, o velho a sacudi-lo, tremendo como varas verdes e a zurrar aos seus ouvidos:

- Não vês o açude, barqueiro dos infernos? Pára! Por alma de quem lá tens… Ai Jesus!

O Libânio ouvia todo esse pranto sem nenhuma reacção, como desprendido de si mesmo, ou como se fosse exactamente assim que lhe aprouvesse

morrer.

Bruscamente o açude fez-se ouvir com seu clamor soturno inevitável. O pastor soltou um grito rouco e o barco baqueou sobre ambos como uma

tumba negra. O Libânio desejaria sepultar-se no redemoinho, para sua libertação.” 112 Cf. Capítulo 1, As grandes Linhas Temáticas, 2. A Confluência das várias tendências estéticas, Os ecos presencistas. 113 O Sonho e a Aventura, José Marmelo e Silva, 2ª edição, Lisboa, Editora Ulisseia, 1965, p.17, “O Libânio e a Dosanjos nunca se tinham beijado

boca contra boca. Em suas alegres bricadeiras, costumavam era morder-se - –os ombros, no pescoço – dar-se mutuamente palmadas selvegens nos

quadris. Flexível como mola, ela saltava-lhe ao dorso e, num grito, ferrava-o, tantas vezes! – escapulia-se como lebre solta no espaço livre. Alvoroçado,

ele corria atrás dela.” 114 Idem, p. 11. 115 Idem, p. 19. 116 Idem, p. 20. 117 Idem, p. 21. 118 Idem, p. 22. 119 Idem, pp. 11 e 12.

22

O “Onde” de Depoimento120, duplo e ambivalente, resulta em dois conceitos de vida, em duas formas

de perspectivar o sentir e o pensar, condicionando o agir.

O “Onde” debate-se desesperadamente entre o restrito e o abrangente, entre um meio pequeno que

sofre de complexo de inferioridade – Mafra – e um meio grande, local onde tudo é vivido em grande, desde o

vício às boas qualidades, sofrendo de um complexo de superioridade – Lisboa.

Mafra é uma localidade pequena e sufocada pelo domínio total do convento, ocupado pelos militares.

É uma localidade que vive, que pensa, que anseia, que sente, que age e que se diverte ou sofre em função

desse convento grandioso e austero de fachada triste, asfixiando todos aqueles que nele habitam, os militares

– “O convento fora-nos igualmente hostil. Os seus milhões de toneladas – quatro quilómetros de construção

maciça – deixam em toda a gente uma impressão de esmagamento.”121

e subjugando aqueles que pululam à

sua volta, norteando a sua vida.

Mafra é uma localidade sem encanto, assinalada no mapa devido à presença histórica do convento –

um monumento nacional de interesse patrimonial e histórico, cuja grandiosidade e austeridade propiciam um

encontro com a História, com passado nacional, mas, de igual modo, a reclusão e o treino disciplinares da

classe militar.

Trata-se de uma localidade que pensa e se sente inferior em relação ao percurso vivencial de cada

um, e às expectativas, aos sonhos e às experiências de cada um.

Uma localidade consciente da sua pequenez, da sua inferioridade, nunca assumida ou verbalizada,

mas palpitante e concretizada em cada acção de cada indivíduo – em cada agir de cada Ser.

A localidade não é inferior a nenhuma outra em termos absolutos, os indivíduos é que a tornam

pequena, inferior, deixando-se dominar pela força de um monumento que lhe confere importância, deixando-

se adormecer à sombra desta numa morna passividade de aceitação do destino.

Naquele “Onde”, o ser não aproveitou a paisagem humana e natural para evoluir, para ultrapassar a

identificação da localidade com a designação de monumento histórico ou, pelo menos, para o usar em

proveito próprio.

Mafra deixou-se adormecer e foi invadida por uma letargia lenta que contaminou o pensar, o agir e o

sentir, fazendo com que o Ser vivesse em função do convento e da sua vida militar122

: as casas hospedam os

militares, os cafés entretêm os militares123

, os pais casam as filhas com militares; namora-se, casa-se124

,

diverte-se com os militares125

, e os prestigiados contactam com as altas esferas militares. Os grandes

acontecimentos sociais são os bailes dados ou frequentados pelos militares “– Um baile em vossa honra,

oferecido por nós… Pois onde anda você? – diz a mais loira, a Binita, que já me tinha sido apresentada como

«a rainha da simpatia» da Ericeira. E era um amor.”126

; “A meio do corredor, há um varandim aberto. Ali

120 Idem, pp. 29 a 98. 121 Idem, pp. 38 e 39. 122 Idem, p. 31, “Saberia Lia tão pouco porque enviou ela mesma aquele soldado à camioneta, quando chegámos a Mafra, eu e meus camaradas, e

olhávamos o convento, quase com desdém, quase com indiferença (como se o tivéssemos julgado um monumento muito diferente!) enquanto uma

algaraviada de crianças zumbia à nossa volta:

- O meu cadete já tem quarto?

- O meu cadete precisa de quarto?

- Meu cadete, há um quarto…

(Que raio, tudo cheirava a quartel, até a canalha! Até a cor das casas!, amareladas como penitenciárias!) Para que enviou ela mesma aquele soldado

que se aproximou de mim, me tomou a mala sem uma hesitação (…).”

Idem, pp. 55 e 56, “Mafra era o convento e o convento é uma fortaleza. Quatro mil e quinhentas portas e janelas. Oitocentas e oitenta salas. Militares,

militares, militares. Uma praga cinzenta sem colorido humano. Mesmo os instrutores, onde iriam, além de escravos alegres dum destino?

Desvirilizados, sem namoro, sem nada. Belos tempos os de el-rei! Que saudosos beijos na meia luz dos corredores, no veludoso escuro dos

subterrâneos, na profanação excitante das celas!

Aquele alcazar tão pesado, tão poderoso, parecia-me agora ter sido levantado por uma verdadeira força sexual régia. Para esmagamento. Para domar

as resistências mais sólidas, quer elas se apoiassem no temor forte do escândalo, quer no juramento rígido da Fé. Ali desaguaram os rios de ouro e de

diamantes do Brasil. Que tempos magnificentes! Nos medonhos corredores, séculos depois (1938), uma lavadeira esbodegada dirigia palavrões

obscenos aos magalas necessitados mais atrevidos. E iria queixar-se à companhia. Auto de inquirição urgentíssimo «…e aos costumes disse nada».” 123 Idem, p. 79, “Embora com o quarto na pensão, eu continuei a comer na messe, por economia, convivendo um pouco mais com os camaradas: no

café, na estrada, nos próprios corredores do Convento.”

Idem, p. 39, “À noite, porém, o Esplanada Bar regurgitava de grandes gargalhadas.” 124 Idem, p. 80, “Àquela hora já duas ou três elegantes passavam para o tennis, em seu sapatinho branco e morena perna ao léu. Como elas sabiam

compor tão bem o seu interesse por alguns de nós!” 125 Idem, p.81, “ Um que outro grupo de três ou quatro meiguinhas andavam para lá, para cá, naquele ingénuo ar de quem saiu a espairecer as nossas

lides. Tinham ainda vivos os papás. (…) Não ignoravam que os cadetes deste ano haviam de partir tão saudosamente como os do outro e outro ano, que

prometeram voltar e não voltaram. Mas valeria a pena relacionar? (…) E todavia (…) se algumas destas figurinhas para quem a vida ainda não foi

cruel, que sabem jogar o tennis, flartar, sorrir e talvez bordar, talvez fazer carícias, que aprendem a pintar os olhos e os cabelos, e exibem o nome de

leite – Mimi, (…) – e procuram arranjar para tudo o mais um «bom rapaz trabalhador», se alguma delas reparasse no infortúnio de duas antigas

companheiras, orfãs do major A. N. Scoto, amigo de seus pais…” 126 Idem, p. 82.

23

fico, por instantes, a olhar a simpleza da vilória, que só este baile dos milicianos veio alertar. Estamos na sede

dos Bombeiros Voluntários.”127

.

Quase que o traje oficial de Mafra é a farda militar!

O Ser foi-se tornando pequeno perante a grandeza do convento “(…) deixou em toda a gente uma

impressão de esmagamento.”128

–, não conseguindo aproveitar toda a riqueza histórica, gradualmente

esquecida e substituída pela farda.

O Ser sente-se pequeno e pensa pequeno, refugiando-se, para se sentir grande, numa suposta

moralidade social, onde palpita o preconceito e a hipocrisia129

.

Em Mafra, respira-se pequenez e inferioridade, porque se respira subjugação, passividade e letargia

dum Ser que se abandonou ao fascínio prestigiante da farda e das medalhas militares, onde a voz cadenciada

dos treinos ou exercícios se entrepôs à voz do destino, porque fala mais rápido, se bem que não tão alto!… a

compensação do imediato subalternizou a recompensa do futuro que exige trabalho, dedicação, esforço, mas

que oferece um pensamento e uma vida livres e libertas…ou seja um Ser que vive, sente e pensa

superiormente, porque livre e conscientemente.

Lia é um produto deste “Onde”, transmitindo na sua vida a tristeza do Ser neste local, a passividade,

a letargia e a espera morna por um futuro diferente e melhor, concretizado por outros e não perseguido ou

lutado por si. Lia deixou-se sufocar até adormecer a vontade e a iniciativa.

O primo José sente-se sufocar neste “Onde”, no qual tudo está impregnado pela cor, cheiro e som

militares. Pensaria talvez encontrar uma autenticidade ingénua nesta pequena localidade “Lia não era uma

mulher ardente. Nem loira, de vanguarda. Era diferente de todo o real possível, era por assim dizer

inimaginável, uma carne só espiritualidade, e eu vinha encharcado de Lisboa. Das suas girls pegadiças.

Queimado, sensualão.”130

–, mas o que se lhe deparou foi um meio asfixiante de falsa ingenuidade, de falsa

inocência… enfim de hipocrisia moral e vivencial. Pensaria tomar o «banho de alma» que o lavaria da vida

de boémia de Lisboa… mas tal não sucedeu, porque se afundou na sombra da tragédia, na lama militar,

recorrendo a Lisboa para distracção, para sobrevivência física e espiritual.

Lisboa é o meio abrangente, grande, a capital que sofre de um complexo de superioridade

avassalador de outros locais ou meios, nomeadamente do de Mafra.

Lisboa é o local onde se projectam esperanças vivenciais diferentes, douradas, enriquecidas; é o meio

de projecção de sonhos, de expectativas, de possibilidades de vencer a letargia, a passividade e a morna

monotonia de Mafra.

Lisboa é um meio diferentemente perspectivado pelos diferentes “Eus” que vivem e sobrevivem na

narrativa, podendo realizar-se uma separação entre a perspectiva masculina e a feminina, correspondendo a

duas formas de sentir, pensar e viver o real.

Assim, a perspectiva masculina encara Lisboa como evasão, refúgio, o último reduto da

sobrevivência existencial física e afectiva de “Eus” que sufocam e se sentem esmagados perante o peso dum

convento, e de uma letargia espacial projectada numa letargia existencial. Lisboa é procurada pelos “Eus”

masculinos numa tentativa de sublimação da vida militar, da vida em Mafra, ou seja, constitui a procura por

uma vida civilizada, livre de preconceitos, assumidamente polifacetada na sua integridade e boémia –

“Abandonei-os por fim num tasco embriagados.”131

.

Ir a Lisboa significava contactar com a civilização, com um pensamento mais liberto de tabus, não

deixando de ser «poluído», mas mais autêntico ou mais assumido “Mas num dia para o outro, choveu,

senti-me vexado, só, prosaico. Domingo iria a Lisboa.”132

; “Eis senão quando o guerreiro, o Pinto Basto, o

Casquilho e o Maia, meus velhos camaradas, resolvem no café, na noite de quinta-feira, fazer um assalto a

127 Idem, p. 89. 128 Idem, pp. 38 e 39. 129 Idem, p. 83, “Para mais, eu tinha defronte do novo quarto um excitante singular. Uma rapariga de pijama. Nada mais. A toda a hora que me

pressentisse, ela abria a porta da varanda, dava-me um ar da sua graça, cirandava como uma andorinha feliz, compunha-se e descompunha-se ao

espelho, sacudia o paninho de limpar, espreguiçava-se com languidez no maple, assumia, ao baixar-se, as mais provocantes atitudes. Cantarolava

músicas de jazz. As últimas. Exibia o seu gosto pela dança turbulenta. Aparecia no torreão toda explosiva – como um foguete que rebentasse no ar –

chamava-me com uma tossezinha seca. (…) Esta rapariga de pijama era casada. Fazia aquele jogo todo de propósito, desafiando a minha mansidão e

castidade, fazia-o perversamente.”

Idem, p. 90, “« – Evita esse escândalo, Vieira. (…)»

« - Ainda não houve nada, garanto-te. Mas como resistir, caramba! Não posso. Ela agarra-se. Não lhe vês o olhar… mordente? É superior a mim.

Ontem mandou-me chamar. Falou-me num camping, longe daqui. Que hei-de fazer?»

Por toda a parte o conflito, a grande luta.” 130 Idem, p. 37. 131 Idem, p. 58. 132 Idem, p. 55.

24

Lisboa, Alta.”133

; “Lia não passava dum remorso que eu desejava extinguir. Atendendo a um nervosismo

natural, optei pela ida a Lisboa em busca da aventureira.”134

A perspectiva feminina encara de forma diferenciada a capital, consoante a sua experiência de vida, o

seu conhecimento do mundo, os seus anseios, medos, sonhos ou projectos de futuro.

Assim, D. Conceição perspectiva Lisboa negativamente, como se de um antro do submundo se

tratasse, não tendo uma visão suficientemente alargada para encarar Lisboa como um meio abrangente, misto

de bom e de mau, de integridade e de boémia. D. Conceição sofre de uma visão redutora, de um complexo de

inferioridade provinciano que suscita uma rejeição do desconhecido, conotando-o com vício, com algo de

nefasto e maléfico – “- Foi-se-me para Lisboa… Lisboa, pronunciada assim, significava um mundo proibido

(qualquer coisa como sensualidade, estupefacção, mistério).”135

Para Juja, Lisboa significou a fuga, a evasão a um mundo pequeno com pensamentos pequenos;

significou a possibilidade de evolução, de transformação, de realização de sonhos e expectativas.

A realidade foi, contudo, bem diferente para Juja: não viveu o lado bom da capital, mas sobreviveu

num ambiente de dignidade e moralidade duvidosas, em que a palavra de ordem era o dinheiro, recorrendo à

negociação da sua alma e do seu corpo para o conseguir. Sem efectuarmos juízos de valor, essa foi a sua

forma de sobrevivência, discutível, mas aparentemente eficaz. Juja não viveu o sonho dourado, encara o

passado como uma terna memória, esse passado que tentou sublimar, que tentou ultrapassar e esquecer com a

fuga da casa materna, enveredando por uma existência incerta cujo sonho se projecta num futuro, após um

presente de sobrevivência. Lisboa significou para Juja uma libertação… para o bem ou para o mal…

Lia não evidencia uma posição definida em relação a Lisboa. Para ela, o local é suficientemente

irrelevante para a concretização dos seus sonhos, uma vez que estes não dependem inteiramente de si, mas

sobretudo dos outros, nomeadamente, do primo José. O “Onde” afigura-se pouco importante, o que de facto

interessa é a consumação de um amor e a sua legalização em matrimónio. A sua libertação não depende do

“Onde”, mas do “Quem”.

No entanto, tanto Mafra como Lisboa são locais onde é possível encontrar o bom e o mau, o vício e

a integridade, tudo depende do carácter do “Eu”, embora o “Onde” tenha a sua influência nas atitudes e nas

vivências experienciais do “Eu” e, por conseguinte, nos seus comportamentos.

O “Onde” que transparece em Ladrão!136 é um “Onde” que partilha as mesmas directrizes genéricas

do “Onde” de Narrativa Bárbara. É um “Onde” delineado nas margens do rio Zêzere, e na cidade de

Coimbra. Um binómio de oposição espacial que tem a sua correspondente num binómio de oposição de Ser

rural e citadino um Ser diferente e um estar diferente, consoante o espaço ocupado.

É um “Onde” duplo ou ambivalente, pois divide-se dolorosamente entre dois espaços: o campo e a

cidade. O campo corresponde ao “Onde” sonhado, ansiado, enfim, ao local mítico do “Eu” narrador-

personagem principal, é o templo do seu sonho e da sua realização. O “Onde” campestre transmite ao “Eu”

uma sensação de bem-estar, de plenitude, de totalidade perante o imponderável de uma paisagem natural137

.

Este “Onde” rural não é um “Onde” de facilidades bucólicas, é um local de trabalho, de esforço, de

suor e de lágrimas… É um espaço exigente do “Eu” e do “Nós”, que faz sangrar, mas que faz viver, porque a

terra é sinónimo de elo entre tempos, entre gerações… é testemunha de um passado e garante de um futuro, é

a voz do Ser que ecoa no Ter… é força vibrante que nos forma, é o carácter concretizado em montes, serras,

vales, rios… é a força dinâmica primordial!

Coimbra é o espaço citadino e contraponto do “Onde” rural. É o espaço de um trabalho

intelectualizado, de um trabalho mais mental que manual… um espaço mais lato, mais abrangente, onde o

“Eu” se vê indistinto, homogeneizado, quase despersonalizado…

Contudo, os dois espaços, aparentemente tão díspares, tocam-se, uma vez que a mesma vontade

ambiciosa, corrupta, preside aos dois, tendo-se declarado, primeiramente, na cidade, depressa atingiu o

campo, onde nem mesmo a austeridade milenar do verde e do castanho da terra, o pôde evitar “Neste

133 Idem, p. 56. 134 Idem, p.85. 135 Idem, p. 35. 136 Idem, pp. 102 a 132. 137 Idem, pp. 101 e 102, “A Gardunha produz um pouco de tudo, como sabem, mas nós nascemos na cordilheira do lado norte, onde a vida não pode

expandir-se livremente, pela secura dos seios da terra. O rio Zêzere cinge-se no inverno a pouco menos do que à sua ravina própria, reduzindo-se no

Verão a fio aflitivo que se dissipa como gota de água num rescaldo. Então a fertilidade do vale só pode sustentar-se à custa de suor e amargura. Lodo é

carne, água é sangue. As noras mergulham na terra como sanguessugas, o homem canta ali eternamente a sua dolorosa história chorada à maneira

árabe, e o lodeiro cumpre enfim com as suas bem acerbas promessas. Em verdade, só ele assegura confiança à vida. No botoréus escalonados, a lágrima

da rega é disputada à ponta das enxadas. Vida ou morte, consoante. O resto é montanha, onde o terrível vento do deserto vem barbear e assobiar a sua

música cortante de mil gumes.”

25

levantamento, fui eu encontrar a minha aldeia bíblica, no norte da Gardunha, onde nem a velha moral, nem a

velha arrogância dos cumes montanhosos impunham já a velha submissão.”138

.

O Ser estava envenenado por uma vontade, estava enfermo de uma febre que o alienava, que o

contagiava a ponto de deixar de ser individual e passar a ser colectivo, sempre consciente do crime de

corrupção que praticava: uma ambição desmedida e maquiavélica.

O “Onde” é influência, mas não é garante; o “Onde” determina o Ser, mas não assegura a sua

evolução, não é responsável por aquilo em que se torna, não é responsável pelas suas opções; o “Onde”

assegura um princípio, mas não garante o fim… Cada “Eu” é aquilo que escolheu ser, é por opção, embora a

consciência da opção não seja igual para todos: é directamente proporcional ao esclarecimento de alma… E

as vivências experienciais são tortuosas e nem sempre levam o Ser a bom porto, a um bom destino, a uma

boa opção.

O “Eu” principal masculino faz, contudo, uma opção clara: preferencia o campo em relação à cidade,

porque a cidade é assumidamente viciosa, mas o campo apenas está poluído por uma vontade menos digna

que a nobreza rural acabará por atrofiar. É a sua convicção, a sua crença, o seu pensar que influencia um

sentir e um agir marcadamente rurais, embora sobrevivam, temporariamente, como citadinos: fase encarada

como transitória e cujo fim se anseia, se ambiciona com a vontade tenaz do Ser que ama a terra que lhe deu a

origem.

O “Quando” de Narrativa Bárbara139 representado nesta narrativa não se reveste de surpresa dentro

do âmbito da produção literária de José Marmelo e Silva.

É um “Quando” polifacetado em termos de localização temporal sazonal, perpassando a estação fria

e a quente que, imbuídas de um significado simbólico, marcam períodos da vida do “Eu” principal

masculino, passando pela infância e fixando-se na adolescência em passagem para a idade adulta.

O significado simbólico da periodicidade cíclica sazonal prende-se com a diversidade de estados de

espírito e experiências vivenciais do “Eu” principal masculino, assumindo a estação fria o momento propício

para a tristeza, para o sofrimento e até para a desgraça140

.

Em contrapartida, a estação quente é o momento de alegria, felicidade, de plenitude, de realização de

sonhos e de cumprimento de expectativas… é o momento de lazer, de ternura, de paixão ou de simples prazer

de se sentir vivo em contacto com o sol, com a terra e com a pessoa que ama141

.

É na estação fria que o “avejão da noite”, Noitebó, regressa ao vale e com ele a certeza de posse

clandestina das moças, é nesta estação que Maria dos Anjos se entrega a Noitebó como pagamento do favor

de ter livrado Libânio da tropa, é nesta estação que Libânio toma conhecimento da desonra de Maria dos

Anjos por Noitebó, é nesta estação que Libânio cumpre uma vingança, realiza um castigo e condena à morte

Noitebó por ciúme de lascívia, concupiscência e completo desprezo pela vida dos mais humildes.

Por outro lado, a estação fria é o momento propício para a crença em presságios e o momento em

que as superstições ganham vida, forma e se cumprem no destino das personagens, principalmente quando a

estação fria se une a uma ambiência nocturna, que dá relevo aos medos, amplia os mais secretos receios e

precipita a desgraça.

A estação quente é o momento de delícia e comprazimento existenciais, a própria carícia quente do

sol propicia um estado de espírito de alegria e felicidade, potenciado pelo contacto com a terra, com as

tarefas do campo, pelo contacto de corpos morenos, onde o suor do trabalho não extingue a chama de

sedução, da provocação atrevida e sensual que se sobrepõe a um cansaço lasso que adormece a razão e

desperta o desejo e a promessa do seu cumprimento.

No entanto, como dissemos anteriormente, o “Quando” desta narrativa em análise é mais profundo,

mais abrangente, mais completo, dizendo respeito a um “Quando” adolescente que ensaia os primeiros passos

de abandono da adolescência e entrada na idade adulta.

O “Eu” principal masculino é um “Eu” cuja infância passa rapidamente pelos nossos olhos, apenas se

referindo os aspectos mais marcantes dessa fase da sua vida, nomeadamente a orfandade.

138 Idem, p. 107. 139 O Sonho e a Aventura, José Marmelo e Silva, 2ª edição, Lisboa, Editora Ulisseia, 1965, pp. 11 a 25. 140 Idem, pp. 19 e 20, “Com as chuvas de Inverno, o rio transbordava, e o Libânio, «c’massim, filho de peixe sabe nadar», incumbiu-se, uma vez

mais, do serviço de barqueiro. (…) Uma noite muito serena e muito fria de Dezembro, noite sem lua mas cravejada de estrelas, mal o Samporritas

meteu pé no barco (…).” 141 Idem, pp. 13 e 14, “No Verão, sobretudo, o trabalho no vale, precisamente porque esforçado e em absoluta comunhão com a terra, tinha o gosto

acre-doce da violência e da saudade. (…) Aquelas manhãs tão límpidas, com o sol de pouca altura e as longas canções dolentes, faziam toda a sua

alegria de viver. O Libânio gostava de cavalgar a roda do tio Taimão, a prima Dosanjos à frente saracoteando-se como uma mulherzinha, ele atrás peito

ancho como um bravo.”

26

A narrativa fixa-se no viver adolescente, esse viver pleno de ilusões, de sonhos, de promessas, mas,

em simultâneo, de receios, de ansiedade, de conflito consigo próprio e com os outros.

Neste “Quando” adolescente, o “Eu” principal masculino, Libânio, vive intensamente a vida, o dia

que passa, as horas, os minutos, os segundos, como se fossem momentos preciosos da sua vivência e

experiência existenciais. Vive intensamente o sonho, a promessa de amor e de sedução sensual de Maria dos

Anjos, projectando uma vida a dois dourada de cumprimento de olhares, de palavras, de gestos e atitudes

num viver conjunto de alcova e de existência. É um viver intensamente de todas as possibilidades, de todos

os projectos, de todos os sonhos, porque este “Quando” adolescente corresponde ao momento antecedente a

tudo, a partir do qual tudo é possível, é a página em branco, onde uma vida se vai escrever.

É o momento em que tudo tem importância, porque quase tudo é descoberta, e porque quase tudo se

pode tentar, degustar, apreciar, ou pelo menos, provar, numa antecipação ansiosa dum futuro relativamente

próximo.

É o “Quando” profundamente dominado pela emoção, pelo sentimento, ou melhor dizendo, por

sentimentos fortes, arrebatados, impulsivos, onde têm lugar o amor, a paixão, o ódio, a vingança…

Libânio é um “Eu” adolescente, cujos sentimentos cresceram, progrediram e evoluíram, tal como o

seu corpo cresceu e se tornou homem, viril, ansioso de descobrir o cumprimento físico da paixão; é um “Eu”

dominado pelo amor e pela paixão, que não consegue esconder o desejo carnal que o seu corpo evoca e que a

sedução atrevida de Maria dos Anjos desperta continuamente com o olhar, o andar cadenciado, enfim com o

corpo, promessa viva e ágil duma sedução satisfeita.

É um “Eu” adolescente sexualmente maturo e emocionalmente arrebatado: tudo nele é ampliado,

intenso, despertando conflitos interiores e com os outros.

Se o amor e a paixão e o próprio desejo são dominadores, fazem então surgir em Libânio o ciúme, o

sentido de posse, de seu, o valor da entrega virginal a quem se ama que reclama também um corpo, um ser

virgem142

.

Um ciúme cego, total, que suscita conflitos interiores, nomeadamente o medo da perda da pessoa que

se ama e deseja, Maria dos Anjos, o receio desta não ser só sua, ou já ter sido doutro, a certeza incómoda

desta ser desejada por outros, ser olhada, observada, apreciada e sobretudo tocada.

Este ciúme ansioso conduz a conflitos com outros, nomeadamente os que rodeiam este “Eu”

masculino principal, que acaba por intimidar com o seu génio impulsivo e violento, onde paira uma promessa

certa de vingança que, de facto, se vem a concretizar na pessoa de Noitebó, o senhor do vale, que pagou com

a vida por ter exigido como pagamento dum favor a virgindade e o corpo de Maria dos Anjos.

Este “Quando” adolescente desencadeia todas as pressões físicas e psicológicas, próprias deste

momento, e sofridas por Libânio, intensamente, e é um viver mais premente porque é um “Quando” que se

prolongou e que não deu cedência à entrada na idade adulta, pois não se cumpriu o ritual iniciático da tropa

que, numa visão ingénua da vida e do mundo, corresponderia a um desvirginar psicológico e o alcançar do

estatuto de homem.

O “Quando” de Depoimento143 vive de uma memória recordada, onde perpassa a interligação

reflexiva entre passado e presente, devido à analepse que sustenta a obra, e onde se desenha uma prolepse,

uma antevisão do futuro realizada no passado analéptico relativamente ao futuro que corresponderá ao

presente da analepse144

.

Assim, o “Eu” principal masculino, desempenhando a função de narrador autodiegético, um narrador

que narra e é personagem principal, movimenta-se em três tempos, em três “Quandos”, reflectindo uma visão

omnisciente relativamente aos diferentes “Quandos”, pois a sua experiência vivencial já viveu o passado,

recorda-o no presente e discorre sobre um futuro que é meramente narrativo, é um futuro falso, pois

corresponde já ao presente. Este “Eu” principal masculino narrador reflecte com segurança sobre as três

coordenadas temporais, pois estas pertencem já à experiência vivencial, fazem parte da memória, da vida,

tendo contribuído para a transformação do pensar, para o enriquecimento do sentir e para a alteração do agir,

estando evidenciado um passado que se revela ou desvenda em jeito de confissão assumida com certa dose de

vergonha, um presente de culpa sublimada e um futuro referido, projectado, mas não confirmado – nunca

chegamos a saber qual o futuro de Lia, o que aconteceu a esse ser frágil e sozinho, porque apenas temos as

sugestões prolépticas de José: “O melhor – não acham? – será ela ficar de enfermeira, se possível, naquele

142 Idem, p. 17, “Foi à inspecção, afinal ficou livre, era o dia de se desmoçar, mas, por ela voltou virgem. As surras, os apupos da rapaziada, se não

temessem do seu génio!” 143 Idem, pp. 29 a 98. 144 Idem, p. 98, “Foi tudo isto no Outono, e as andorinhas chilreiam já pelos beirais. (…) O ter recebido o seu comovente perdão há poucos dias, com

a notícia dum restabelecimento para muito breve, animou-me a contar-vos estas tristes e ponderáveis coisas. (…) Agora (…).”

27

mesmo hospitalzinho em que foi tratada e a salvaram.”145

ou “O melhor – não acham – será eu talvez levar

meus pais a oferecerem-lhe um qualquer leve serviço em nossa casa!146

Também nunca chegamos a conhecer o futuro ou a opção de José, em relação à vida amorosa,

desconhecemos a coragem ou cobardia futuras, desconhecemos a sua acção, sentimento ou pensamento

posteriores, enfim, a partir do relato analéptico perdemos o rasto a este ser, talvez mesmo por sua vontade,

deixando-nos, voluntariamente, no campo da conjectura, do futuro apenas temos como certo o

arrependimento dum tempo e acção passados147

.

A analepse presente na narrativa é uma analepse catártica, ou seja, um processo de regresso ao

passado para expurgar o presente de sentimentos de culpabilidade ou remorso. É uma viagem no tempo, mas

sobretudo uma viagem em si próprio, em que o “Eu” se auto-analisa, ou melhor, analisa o seu percurso

vivencial, analisando o trajecto de crescimento, a passagem de uma juventude já vivida para uma idade mais

matura, onde se tornam mais prementes os sentimentos de culpa e arrependimento148

.

Uma viagem que possibilita ao “Eu” descobrir-se e dar-se a descobrir, conhecer-se e dar-se a

conhecer, ou seja, reviver um passado e um tempo à luz de um presente e do que se é nesse momento, para

melhor se entender o como e o porquê da acção, sentimento e pensamento desse passado149

que o “Eu” não

consegue esquecer, que o atormenta, sendo esta viagem uma forma de expiação, um auto-castigo que

voluntariamente o “Eu” presente se inflige como sublimação, como descoberta, como catarse – “Ora a

conduta humana, acreditem-me, está à mercê de circunstâncias ignoradas e exige de pronto um exame

minucioso, uma pronunciação mais justa. Só então valerá a pena defender a vida.”150

Este “Quando” revivido pela analepse, num esforço analítico e reflexivo de recuperação da auto-

estima perdida, conhece de cor a dor do remorso, da culpa, da responsabilização, do arrependimento e

debate-se desesperada e angustiadamente entre presente e passado para que o futuro possa ter uma chance de

sobrevivência feliz.

Trata-se de um “Quando” dinâmico, interagindo entre passado e presente para desfazer a dúvida do

futuro; um “Quando” que se movimenta fluidamente de uma coordenada temporal para outra ao sabor de

uma reflexão introspectiva onde o “Eu” principal masculino recorda o passado e o analisa no presente para

poder fazer nascer um futuro.

Este “Quando” é um “Quando” jovem que quer esgotar as possibilidades que esta fase da vida lhe

proporciona, quer degustar a vida, quer senti-la, cheirá-la, vê-la e ouvi-la, quer, em suma, num esforço

sensorial, arrebatar a vida com sensualidade, experienciando as diferentes sensações, prazeres e vivências da

juventude.

Contudo, este “Quando” jovem cumpre um rito iniciático de abandono de uma juventude

irresponsável e sem compromissos e entrada na idade adulta, na idade do trabalho, após os estudos

académicos151

, e após o cumprimento da tropa. É com um gosto amargo, ou pelo menos com um gosto

agridoce do desafio da independência e autonomia, que o “Eu” principal masculino encara a tropa e o

desafio que se lhe põe após o término desta. Vê a tropa como uma obrigação desnecessária, um

acontecimento infeliz e supérfluo na vida, um momento que deveria ser passado à frente ou reduzido a uma

importância zero, porque não reage e é inteiramente surdo aos discursos dos militares de apelo a um

nacionalismo balofo e a um cumprimento patriótico do serviço militar e, sobretudo, porque não reconhece

aos chefes militares a capacidade, a instrução e a formação necessárias para impor argumentativamente uma

145 Idem, p. 98. 146 Depoimento, Pequena Antologia de obras Primas, 1ª edição, Editora Mosaico, p. 51. 147 O Sonho e a Aventura, José Marmelo e Silva, 2ª edição, Lisboa, Editora Ulisseia, 1965, p.97,”(Estas vozes que irão perseguir-me pela vida fora!

Sou eu acaso o responsável por tão complexo fluir de acontecimentos! Eu, o autor da santidade de Lia, da ociosidade enferma de D. Conceição, do

sonho de liberdade de Juja? Criador das minhas próprias limitações? Que me acobarda então de casar com Georgette? (Seria esse o meu desejo

secreto.) Como somos incoerentes na avaliação das acções humanas! Como impotentes perante forças que nos transcendem! Muitos, à simples ideia

de abandonarem o mundo, oiço eu ganir como cães magoados. Todavia o homem não sabe senão supliciar-se, com novos pesares e acusações.

Ora a conduta, acreditem-me, está à mercê de circunstâncias ignoradas e exige de pronto um exame minucioso, uma pronunciação mais justa. Só

então valerá a pena defender a vida.) 148 Idem, p. 39, “O meu intuito, reconheço agora, era acabar de devassar, numa frívola aparência de compunção, a vida das duas inocentes criaturas.”

Idem, p. 95, “- O quê, Lia, foste tu que roubaste o anel? (E ponho-me a arrancar-lho abruptamente – como foi possível fazer tudo o que fiz? – que nem

a um bandido ordinário!)” 149 Idem, p. 29, “Pois não será a conduta humana merecedora de mais demorada e fiel observação?! O médico não se detém a estudar o efeito da

doença, senão para melhor indagar da origem dela. Com a nossa desgraça, porque não procedemos semelhantemente? Eu a comparo à foz dum rio cuja

fonte é muitas vezes o seio de nossa mãe.”. 150 Idem, p. 97. 151 Idem, p. 33, “Já contavam comigo no ano anterior. Sabiam por colegas meus da Faculdade.”

Idem, p. 47, “(…) veterano do Instituto Superior Técnico; (…).”

28

vontade e um querer, porque nem discursos lhes saem, apenas expressões balbuciadas em tom autoritário, que

de todo o não satisfazem152

.

Esta reacção mais que verbalizada, é sobretudo, se não inteiramente, pressentida153

ou adivinhada

pelo sentir e agir do “Eu” principal masculino154

, detectando-se, de igual modo, palpitante na atitude de

outrem face à farda, ou seja, face aos militares ou a um regime que deles precisa – “(…) fazer um assalto a

Lisboa, Alta. Com a nossa farda de passeio, como bons «apologistas do pacifismo armado». (…) (E diga-se

bem mal recebidos, em toda a parte. Grande desilusão acerca do valor das fardas… Nem havia ali uma

verdadeira consciência patriótica).”155

José tem uma atitude em relação à tropa completamente diferente da de Libânio – o “Eu” principal

masculino de Narrativa Bárbara – para quem a tropa era bilhete de entrada na idade adulta e abandono da

adolescência, a prova de fogo da sua virilidade, do ser homem jovem, independente e autónomo. Era a

sanção pública do crescimento e da capacidade de formar uma vida. Era uma experiência-sacrifício, contudo

ansiada, porque necessária socialmente. Mas Libânio vive um “Quando” adolescente, ingénuo, simples,

humilde e praticamente analfabeto num “Onde” rural; por oposição, José vive um “Quando” jovem,

experienciado, vivido, culto, ou pelo menos com estudos académicos do Instituto Superior Técnico,

esclarecido, consciente da realidade social num “Onde” citadino, ciente da sua ruralidade e urbanidade.

O mesmo acontecimento é encarado diferentemente, consoante as experiências dos “Eus” e a sua

visão do mundo e da sociedade.

Este “Quando” analéptico e jovem transmite vibrações diferenciadas ao “Eu” principal masculino,

consoante o cariz de manifestação sazonal. Assim, José reage sob o impulso da chuva, do vento, do calor, da

noite ou do dia. O “Quando” nocturno, ventoso e chuvoso fá-lo sentir um deleite particular pelo silêncio

humilde da casa das suas parentas156

, fá-lo desejar Lia e dourar a sua vida, o seu aspecto e a sua sorte – “

Meti-me ao vento e à chuva, rumo aos braços de Lia, fosse para Bem ou para Mal”157

, “Uma rajada de vento

sopra com violência, bate uma porta, assobia (…). «É a hora! O vento assobia: calará o ruído dos nossos

passos e das nossas bocas».”158

; fá-lo rever Georgette e acalentar o fascínio e o mistério desta, fá-lo procurar

a aventureira e ter coragem de uma relação a dois. No entanto, o tempo nocturno tem também a função dupla

de anunciar o fim – da possibilidade amorosa de Lia e Georgette – “A minha desolação era semelhante à

daquele campo de tennis que encimava o jardim, na orla da floresta, e que a noite enchera de folhas mortas e

de poças de água e lama.”159

Contudo, o “Quando” diurno é um “Quando” sacudido do tépido calor do leito, das ilusões que

habitaram o espírito, dos sonhos que o silêncio, o escuro e a cama propiciaram povoando a mente de José. À

luz vibrante do dia, Lia afigura-se-lhe impossível na sua pequenez tímida, na pobreza, na falta de iniciativa e

de sonhos; Georgette apresenta-se perante si como uma imagem crua de prostituta e, gradualmente, as ilusões

despovoam o ser pensante e sonhador de José, aguardando o momento próprio da noite: momento que

acarinha os impossíveis, os sonhos, o amor, a paixão e o sexo.

152 Idem, pp. 37 e 38, “O capitão recebeu-nos com um discurso tétrico. No jogo da máscara tisnada, transparecia o ricto da própria coacção. Isto

imprimia-lhe maior dureza às palavras: « - Os senhores são soldados!» E daí a pouco tornava: « - São soldados como os outros!» Para sabermos esta

singela coisa, fez-nos estar formados, a tarde inteira (a tarde dum domingo cheio de sol!) à porta da secretaria. Nem tugíamos. O bom do homem queria

expressar-se concretamente, mas nem ideias, nem sons lhe advinham aos lábios, sem frustração. (…) Quanto me apetecia sugerir-lhe as palavras

oportunas, capitão! Eu ruminava-as: « - Vós vindes cheios de personalidade e preconceitos, quer porque sois ricos, quer porque sois sábios. Pois bem:

varrei tudo isso do vosso cérebro urgentemente. A guerra está aí, mais feroz que nunca, mais universal que nunca, mais pavorosa!, e nós, nós todos!, só

podemos mostrar-lhe a face metálica e disciplinada. Atrás dela, numa esteira de sangue e de ruínas, desaparecerão todas essas velharias e privilégios do

mundo injusto em que vivemos. Uma nova ordem de coisas nos espera… - se conseguirmos ser fortes até ao heroísmo, ranger os dentes até à loucura!»

Se V. nos falava deste modo, capitão! (…) Mas não. Militarão orgulhoso e agressivo, continuava a metralhar: « - São soldados como os outros!»” 153 Idem, p. 49, “Toda a manhã na parada. «Esquê-derêto!, esquê-derêto!» Víamos o capitão, de longe, erguer a fronte mussolínica, bulir os lábios

anegrados: «Figurões!, eu dou-vos as basófias, esperai lá!» Toda a tarde nas aulas. (…) Uns mestrezinhos fresquinhos, a escorrer vernizes da Escola de

Guerra, incansáveis como tudo, já a sonharem com as estrelas de brigadeiros!” 154 Idem, p. 80, “O capitão chegava, mansa, solenemente, de bicicleta, às seis horas e meia em todas as manhãs úteis. Chovesse ou fizesse sol, era

indiferente, formávamos na parada para bater-lhe a continência, assim que ele montasse à nossa frente. E lá íamos atrás da montada a toque de tambor,

em coluna de esquadras, equipados, suados, impensados, rumo ao «teatro de operações», para os quintos da Mata Grande.” 155 Idem, pp. 56 e 57. 156 Idem, p. 55, “Era sobretudo ao morrer triste da tarde sobre o longínquo mar, donde emergiam clarões vermelhos, que eu, a caminho da pobre casa

isolada, farto de marchas e mochilas, farto do sadismo moral do capitão, e cansado até dos camaradas, suportava o alarido das mil discordâncias

interiores.”

Idem, p. 49, “(…) Soube-me bem o repouso sossegado daquela casa fechada, viveiro de sombras, rangente, onde decerto andava errante o espírito

dum velho parente de meu pai.”

Idem, p. 61, “Toda essa madrugada choveu e trovejou. (…) Foi uma tarde de lama e de aborrecimento. Depois da refeição, dirigi-me a casa.”

157 Idem, p. 67. 158 Idem, p. 68. 159 Idem, p. 77.

29

Em suma, um “Quando” outonal – “O infalível outono!”160

– emblemático do outono da sua

juventude inconsequente e símbolo pressagiador da página em branco onde o infortúnio gravou a sua

passagem – polifacetado, habitado por “Eus” múltiplos e diferenciados, também eles ambivalentes e

enfermos duma duplicidade de sentir, pensar e agir.

A narrativa Ladrão!161 evidencia um “Quando” especificado “Tudo se passava exactamente em 39

(…).”162

não só em termos de data, mas sobretudo de acontecimentos “(…) quando o pavor da guerra

alastrava já sobre a Europa como um imenso jacto de fumo espesso. (Expelido das fábricas germânicas).”163

um “Quando” marcado pelo drama da segunda guerra mundial que vitima uns, enriquece outros, mas a

todos atinge de uma maneira ou de outra. O “Eu” principal masculino narrador desenha, assim, um

momento doloroso na história da humanidade e de Portugal e na sua própria história: na da sua família e na

da sua individualidade. É como se o cerne da narrativa se fosse estreitando, especificando, atingindo,

finalmente, o ponto fulcral: a história do “Eu”, tendo como pano de fundo um “Quando” que a possibilitou,

que a influenciou, que a determinou, que a fez evoluir numa determinada direcção. Foi, de facto, o “Quando”

da morte do pai do “Eu” principal masculino que suscitou o momento de partilhas, a herança e as desavenças

familiares com o irmão, empurrando o “Eu” narrador para um destino menos risonho e menos esperado,

menos sonhado; foi o “Quando” da guerra que ao conferir importância a uma substância como o volfrâmio,

acendeu o rastilho da ambição de um país e de uma sociedade fortemente estratificada, lançando o “Onde”

citadino e rural numa luta pela posse de riqueza, iludido com a esperança de uma melhoria de vida rápida e

milagrosa, permitindo que o “Eu” narrador partilhasse da euforia colectiva, permitindo-lhe sonhar, criando-

lhe a ilusão de um futuro próspero e de uma vida que finalmente fazia justiça a um existir de sacrifícios. Foi

esse “Quando” que o iludiu e foi o mesmo que o desiludiu no momento em que, depois de lhe permitir

sonhar, lhe retirou o sonho que tão timidamente tinha começado, foi este “Quando” da guerra que possibilitou

o seu deslumbramento e o impediu de concretizar o deslumbre e o sonho no momento em que mobiliza este

“Eu” principal masculino para uma contribuição militar patriótica: a mobilização não só congelou o sonho,

mas, de igual modo, a vontade, o querer e o sentir deste “Eu” que, duma hostilização sentida, passa a uma

consciencialização magoada do “Quando” individual, familiar e do “Quando” português e universal.

Vivia-se na Europa e no mundo o momento da guerra, a segunda guerra mundial, com todas as

implicações de vida, de morte, de sobrevivência… e Portugal vive este momento através de um drama de

mistificação, através de um jogo de duplicidades… é um Portugal que se retalha perante os meandros

esforçados da máscara da neutralidade que impõe uma ausência de comprometimento e uma obrigatoriedade

de comunhão colectiva, de anuência, ou pelo menos de passiva observação. É a atitude de uma nação que

favorece o surgimento de atitudes veladas, de subtilezas, em última instância, da hipocrisia e do fingimento.

É o “Quando” da guerra que faz morrer o corpo e a alma na coragem de uma atitude, na ousadia de

um sentir, pensar e agir, e acorda o mais recôndito instinto de sobrevivência na nação e no indivíduo.

Trata-se de uma nação que pretende sobreviver sob uma aparente dignidade, sob uma aparente

benevolência e decência164

Contudo o seu íntimo, o íntimo do seu povo apodrece lentamente, esquecendo valores e princípios, é

uma decomposição lenta, mas irreversível operada pelo poder do dinheiro, pela ambição, enfim, pelo

materialismo que passa por cima de mortos e de vivos165

.

É um facto que a tudo esteve subjacente uma necessidade de sobrevivência… no entanto, esta foi

substituída pela «necessidade de enriquecimento»: os que tinham pouco queriam muito, os que tinham muito

queriam muito mais!

É nesta nação, é nesta sociedade que o indivíduo tenta desesperadamente sobreviver… e enriquecer.

É um indivíduo que recorre a «cunhas», a «padrinhos» influentes166

, a pagamentos para alcançar os

seus objectivos167

… a corrupção torna-se uma constante na actuação do indivíduo que se esquece de apelar

160 Idem, p. 77. 161 Idem, pp. 102 a 132. 162 Idem, p. 106. 163 Idem, p. 106. 164 Idem, pp. 106 e 107, “Ai de mim! Depois foi o que todo o mundo conheceu. Portugal a viver o seu dramático nervosismo de aparências e

escondidas, o seu conflito silencioso entre o coração e o cérebro os vagões de soldadesca ao lusco-fusco até aos cais do Tejo, a cidade dando-se

amorosamente e aparentemente calma aos refugiados, a serra esventrando-se por fim na euforia glutónica do volfrâmio.”

165 Idem, p. 107, “ Eu revolvo até os mortos, o inferno! confessou-me o Armando, desesperado.

Não pude deixar de sobressaltar-me, com referência à sepultura de meu pai. Não havia respeito por ninguém. Aldeias dormentes há dois mil anos

surgiram alvoroçadas à superfície da terra, mais vorazes que nunca, revolvendo-lhe o seio misterioso e inesgotável. Por toda a parte um formigueiro

vivo e arrepiante, revestido de asas que não tinha. Qual pobreza, qual raio! Dir-se-ia uma cruzada de rapinagem em organização.” 166 Idem, p. 104, “A verdade é que o meu futuro apresentava-se tão sombrio como o de qualquer companheiro acabado de formar e sem protectores

poderosos na família. Eu ainda não estava colocado. E como ou quando isso aconteceria, se a entrada no estágio era já prerrogativa de favoritos? Ah,

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para o valor pessoal, que se esquece de se auto-valorizar, que pretende enveredar pelo caminho mais tortuoso,

porque mais frutífero a curto prazo168

.

Tudo estava contaminado… tudo e todos… sendo difícil, senão impossível, sobreviver pelo valor

pessoal, pela verdade!

O “Eu” principal masculino narrador sentiu muito bem o peso alienado da corrupção, da ambição, do

materialismo, sentindo-se impotente para operar mudanças, restando-lhe apenas unir-se à maré e não lutar

contra ela.

É um “Quando” sofrido, chorado e sobrevivido, retalhado por uma circunstância de guerra à escala

mundial, ao qual o drama da neutralidade suga o mais íntimo: a dignidade, a decência, apesar de garantir a

vida, a ausência de bombardeamentos e de combates, através dum jogo de máscaras e de rostos, de “sim” e

de “não” que asseguram uma sobrevivência difícil, embora não ameaçada, mas sem dúvida desgastada pela

força de mistificação. Uma neutralidade que teve méritos e um preço: uma factura que Portugal pagou com

sacrifício, com lágrimas e com dor.

Trata-se de um “Quando” jovem, que se viu desiludido de esperanças e de sonhos, que se viu

despojado de ilusões e que se viu obrigado a sobreviver.

É este “Quando” analéptico que reflecte sobre o passado, lançando um olhar demorado e pensativo a

um tempo, a um “Onde” e a um “Quem”.

E o “Quem”, de Narrativa Bárbara, Depoimento e Ladrão! só o é em plenitude no momento em que

se intercepta com o seu “Onde” e o seu “Quando”... sempre que se encontra com a sua contemporaneidade...

sempre que se descobre a si próprio e ao outro, no seu presente, na sua viagem de memória ao passado e na

sua visão proléptica do futuro.

como tudo isso enegrecia então a minha alma! O estágio! Um recinto com o rótulo de «proibida a entrada a pessoas estranhas a …», à simpatia deles! E

de que só demasiadamente tarde me apercebera!” 167 Idem, pp. 111 e 112, “Por mim, partiria na manhã seguinte (como aliás estava previsto), pediria ao comandante, pediria ao ministro, sei lá,

compraria em último caso um camarada vivia agora possuído do desejo demoníaco de reengrandecer-me à frente das minas da minha propriedade.

Somos todos tentados. Escusado dizer-se que um ânimo novo tomava deliciosamente o meu sangue e substituía os seus glóbulos singulares.” 168 Idem, p. 108, “No quartel, em Castelo Branco, não faltava quem me aborrecesse com a insistência de serviços intermediários de candonga da

aldeia para a cidade e vice-versa. A aventura tinha o seu quê de tentador. Rapazes do meu tempo do liceu, falhados nos estudos, vadios, corrompidos

ressurgiam agora cheios de nova personalidade e nova vida.”

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Bibliografia

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edição, Lisboa, Estúdios Cor, 1960; 4ª edição, Lisboa, Editora Ulisseia, 1972, (com o prefácio de Arnaldo

Saraiva); 5ª edição, Lisboa, Editorial Caminho, 1989(com o prefácio de Arnaldo saraiva publicado a primeira

vez na 4ª edição).

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Depoimento, O Conto de João Baião - (2ª edição, Lisboa, Editora Ulisseia, 1965 - contos Narrativa

Bárbara, Depoimento, Ladrão!).

Adolescente, 1ª edição, Coimbra, Portugália, 1948.

Adolescente Agrilhoado, 1ª edição acrescentada, Lisboa, Arcádia, 1958 (3ª edição, Lisboa, Editora

Ulisseia, 1967; 4ª edição, Lisboa, Editorial Caminho, 1986 - com prefácio de Maria Alzira Seixo - retirada

do mercado; 4ª/5ª edição, Lisboa, Editorial Caminho, 1986).

O Ser e o Ter seguido de Anquilose, Lisboa, Editorial Ulisseia, 1968 - a primeira versão de O Ser e o

Ter é O Conto de João Baião - edição única.

Anquilose, Lisboa, Editora Ulisseia, 1971.

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