O SONHO ACABOU? O FESTIVAL PSICODÁLIA: UMA RETOMADA CONTRACULTURAL
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O SONHO ACABOU? O FESTIVAL PSICODÁLIA:
UMA RETOMADA CONTRACULTURAL
Leonardo Corrêa Bomfim
UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Resumo
O Festival Psicodália, atualmente sediado em Rio Negrinho – SC, surgiu em 2001 e
completa em 2015 sua 18ª edição. Este evento, apesar de ser um festival de música – e ter
abrigado artistas como Os Mutantes, Tom Zé, Moraes Moreira, Alceu Valença, Hermeto
Pascoal, entre outros grupos de rock’n’roll, blues, folk, música regional, rock-progressivo,
psicodélico etc. – possui um caráter multimidiático, havendo também peças de teatro,
mostras de cinema, oficinas, exposições e outras atividades. A partir de um levantamento
bibliográfico e do recolhimento de informações, através de entrevistas, pesquisas de campo
e da realização de uma etnografia do festival, esta pesquisa tem o objetivo geral de evidenciar
que as propostas do Festival Psicodália – possivelmente associadas a uma retomada
ponderada da contracultura brasileira de 1960 e 1970 – dialogam com um quadro social mais
amplo. De forma que, diante dos objetivos elencados pelos organizadores do festival,
acredita-se que esta visão está associada a um panorama de grupos sociais metropolitanos
que estão buscando estabelecer alternativas ao mainstream musical, um maior contato com
a natureza, relações mais ecológicas, mais humanitárias, relações de não violência, não
consumismo e uma proximidade com culturas e filosofias orientais. Sendo assim, busca-se
verificar se esses objetivos do evento se concretizam, identificando também as funções da
música no festival, e se este possibilita a “ascensão” de bandas independentes ao mainstream
ou se oferece um espaço marginal (underground) autossuficiente a esses grupos e gêneros.
Palavras-chave: Festival Psicodália; contracultura, indústria cultural
Abstract
The Psicodália Festival, currently based in Rio Negrinho - SC, emerged in 2001 and
completes in 2015 its 18th edition. This event, despite being a music festival – having housed
artists like Os Mutantes, Tom Zé, Moraes Moreira, Alceu Valenca, Hermeto Pascoal, among
other rock'n'roll, blues, folk, regional music, progressive-rock, psychedelic groups etc. – has
a multimedia character, including also plays, film shows, workshops, exhibitions and other
activities. Based on literature review, interviews, field research and an ethnography of the
festival, this research aims at showing that the proposals of Psicodália Festival – possibly
associated with a revival of Brazilian counterculture of the 1960s and 1970s – dialogues with
a broader social context. Given the objectives listed by the festival organizers, it seems that
this view is associated with a larger metropolitan social panorama, in which social groups
seek to establish alternatives to the musical mainstream, greater contact with nature, and
more ecological and humanitarian relationships. Therefore, it was tried to verify whether
these objectives are fulfilled, also identifying the festival music functions, and if the festival
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enables the "rise" of independent bands to the maisntream, or if it offers an underground and
marginal space, self-sufficient for these groups and genres.
Key-words: Psicodália Festival; counterculture; culture industry.
Os festivais e a contracultura
Em 15 de agosto de 1969, na cidade rural norte-americana de Bethel – NY, deu-se
início a um festival de música e arte que se tornou um marco histórico, norteou grande parte
de uma geração, sendo sua influência bastante presente até os dias atuais. O Woodstock
Music & Art Fair, anunciado como “Uma Exposição Aquariana: 3 dias de Paz & Música”,
originalmente, deveria ter sido realizado na cidade de Woodstock, mas, por problemas
locais, acabou sendo transferido para uma fazenda em Bethel.
O festival contou com a presença de mais de meio milhão de pessoas e com notórios
músicos da época, entre eles Ravi Shankar, Joan Baez, Santana, Grateful Dead, Creedence
Clearwater Revival, Janis Joplin, The Who, Joe Cocker, Ten Years After, Johnny Winter,
Jimi Hendrix, entre muitos outros. Para diversos teóricos como Sílvio Benevides (2006, p.
38), Helenice Rodrigues e Heliane Kohler (2008, p. 51), este evento foi o ápice do
movimento hippie1 e da contracultura2, envolvendo jovens de uma geração que buscava
transcender a liberdade através da expressão da sexualidade, da experiência com drogas
lisérgicas – como forma de “ampliar as percepções sensoriais” – além de, é claro, da audição
das performances e shows.
Entretanto, outros autores como Ken Goffman e Dan Joy (2007), caracterizam a
contracultura como um fenômeno localizado em diversos outros momentos históricos –
1 Os hippies, como parte do movimento contracultural das décadas de 1960 e 1970 (Almeida; Naves, 2007, p.
124), estavam associados à ideia de paz e amor, defesa de questões ambientais, emancipação sexual, prática de
nudismo, utilização de alguns tipos de drogas, entre outras temáticas, adotando um modo de vida nômade ou
em comunidades alternativas, buscando a quebra de algumas hierarquias e valores sociais. Estes incorporaram
em sua cultura diversos aspectos de religiões como o budismo, o hinduísmo e religiões indígenas, negando o
nacionalismo, militarismo, guerras, governos capitalistas etc. 2 Termo utilizado “nos anos 60, para designar um conjunto de manifestações novas que floresceram não só nos
Estados Unidos, como em vários outros países, especialmente na Europa e, embora em menor intensidade e
repercussão, na América Latina” (Pereira, 1983, p. 13).
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desde a Grécia Antiga ao Iluminismo –, se a considerarmos como uma manifestação de
ideias e movimentos que propõem alternativas aos paradigmas predominantes.
É convencionado que o termo contracultura foi cunhado pelo historiador
estadunidense Theodore Roszak (1933-2011), em seu livro A Contracultura (The Making of
a Conterculture), de 1968. Para o autor, o conceito de contracultura, como uma forma de
transgressão a uma cultura dominante, está estreitamente associado a uma fuga da noção de
tecnocracia, sendo esta “uma forma social na qual a sociedade industrial atinge o ápice de
sua integração organizacional” (1972, p. 19). Desta forma, Roszak não interpreta essas
posturas contraculturais de oposição à Guerra do Vietnam, ou de defesa do “amor livre”
como fatos isolados, mas sim como gestos de uma divergência radical, representativos como
inovação cultural. Outros autores também defendem esta definição de drop-out (“cair fora”),
de abandono das organizações predominantes e criação de novas possibilidades. Entretanto,
o escritor e filósofo Luiz Carlos Maciel ainda acrescenta que a proposta da contracultura era
a de
Ver todas as coisas com esse olhar inocente, esse primeiro olhar, ver
diretamente as coisas, ver sem mediações intelectuais estabelecidas
e consagradas, seja pela academia, seja pela mídia, seja por qualquer
um desses outros monstros por aí que dirigem nossas vidas. A
experiência imediata e a experiência concreta do real foram o grande
objetivo da contracultura; não foi a transgressão, que é mera
consequência. Como a experiência concreta do real estabelecia a
necessidade da liberdade individual [...] isso, naturalmente, para o
sistema, para a sociedade organizada, para as regras estabelecidas,
parece transgressão; é um desaforo (Maciel, 2007, p. 64-65).
Sendo assim, é admissível inferir que não há uma definição precisa ou única do
conceito de contracultura.
Assim como o Woodstock, outros festivais também se seguiram3 baseando-se nos
moldes deste evento, entre eles o Festival da Ilha de Wight4, na Inglaterra, ocorrido em 1970,
3 Lembrando que o Monterey International Pop Music Festival, de 1967, antecedeu o Woodstock, ocorrendo
na Califórnia, e contando com um público de cerca de 200 mil pessoas. 4 É importante destacar que a primeira edição do Festival da Ilha de Wight foi em 1968, antecedendo o
Woodstock, porém com um público bastante inferior de, aproximadamente, 15 mil pessoas. No ano de 1969,
este festival ocorreu no mesmo mês que o Woodstock e seu público se multiplicou para, aproximadamente, 150
mil pessoas.
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que reuniu um público estimado em 600 mil pessoas e grandes atrações como The Doors,
Jimi Hendrix, Jethro Tull, Ten Years After, The Who, Emerson, Lake & Palmer, Miles Davis,
entre outros renomados artistas. Também podemos citar as edições posteriores do próprio
Woodstock, ocorridas nos anos de 1979, 1989, 1994, 1999 e 2009.
No Brasil, seguindo esta tendência contracultural que se difundia pelo continente
americano e pelo mundo, foram criados alguns festivais com o intuito de dar continuidade a
esta “aura hippie”, entre eles o Festival de Verão de Guarapari5, que ocorreu em fevereiro
de 1971 e o Festival de Águas Claras, realizado em janeiro de 1975, em Iacanga, interior do
estado de São Paulo. Neste ano, o festival convidou célebres artistas como Os Mutantes, Som
nosso de cada dia, Terreno Baldio, Walter Franco, Jorge Mautner, O Terço, entre outros.
Ainda houve outras edições deste festival nos anos de 1981, 1983, 1984, em que participaram
músicos como Gilberto Gil, Luiz Gonzaga, Alceu Valença, Egberto Gismonti, Hermeto
Pascoal, Raul Seixas, Almir Sater, Moraes Moreira, Sivuca etc.. Ambos os festivais foram
anunciados, inicialmente, como o suposto “Woodstock brasileiro”.
Ainda podemos citar dois grandes festivais brasileiros de rock que reuniram um
público considerável como o Hollywood Rock, no Rio de Janeiro, em 1975 – com cerca de
10 mil pessoas – e o Rock in Rio, de 1985, que até a atualidade ainda combina um grande
público e afamados artistas, porém, aparentemente, não se enquadra em um evento
contracultural.
O festival Psicodália
Apesar de contemporâneo às últimas edições do Rock in Rio, o Festival Psicodália
mantém uma postura e uma filosofia (objetivos) bastante diversa deste consagrado evento.
O projeto-piloto do festival foi organizado pelos curitibanos Alexandre Osiecki, Klaus
Pereira, entre outros e ocorreu no ano de 2001, na cidade de Angra dos Reis – RJ, recebendo
o nome de Angrastock (Ridolfi; Canestrelli; Dias, 2007, p. 221-222). Esta primeira edição
foi ainda bastante modesta e contou com apenas 150 participantes (Whiplash, 2013). Nos
anos de 2002 e 2003 ocorreram edições do festival nas cidades de Morretes – PR e Antonina
5 Onde se apresentaram Luiz Gonzaga, Tony Tornado, Milton Nascimento, Som Imaginário, Ângela Maria,
Novos Baianos, A Bolha, entre outros (Taru, 2013).
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– PR. O festival receberia o nome de Psicodália apenas em 2004, na edição que ocorreu em
Lapa – PR, onde permaneceu até o ano seguinte. Entre os anos de 2006 e 2009 o evento foi
transferido para a Chácara Recanto da Natureza, na cidade de São Martinho, ao sul de Santa
Catarina, sendo que, em 2006 ocorreu a primeira edição do festival durante o carnaval – data
que perdurou até o ano de 2009, pois, posteriormente, a data do Psicodália oscilou entre o
carnaval e o réveillon. É interessante destacar que o público do evento inicial de 150 pessoas
(2001) foi aumentando a cada ano, atingindo 400 pessoas (em 2002), 500 (em 2003), 800
(em 2004), 1200 (em 2005), 1700 (em 2006), “até atingir o número expressivo de 2500
presentes em 2008” (Whiplash, 2013). Sendo que, nos anos de 2013 e 2014,
respectivamente, o público estimado superou o número de 5000 pessoas.
Durante esta fase, os organizadores convidaram grupos de relevância do cenário do
rock’n’roll, rock progressivo ou psicodélico nacional, tais como Patrulha do Espaço (2006),
Sérgio Dias (2007), Casa das Máquinas (2008) e Som nosso de cada dia (2009). Em 2010,
o Psicodália foi transferido para a Fazenda Evaristo na zona rural do município de Rio
Negrinho – SC, local que se estabelece até os dias atuais – dotado de uma notável
organização e infraestrutura com 3 palcos, 5 áreas de camping, praça de alimentação, mini
mercado, 5 bares e bazar, com preços bastante razoáveis, 250 banheiros, segurança, unidade
móvel de saúde e limpeza 24h por dia, distribuídos em uma área de 300.000 m². Neste local
já se apresentaram músicos como Os Mutantes e Terreno Baldio (2010); Tom Zé, O Terço,
Ave Sangria e Cartoon (2011); Sá & Guarabira, Casa das Máquinas, A Bolha e Paulinho
Boca de Cantor (Novos Baianos) (2012); Os Mutantes, Alceu Valença, Hermeto Pascoal e
Blues Etílicos (2013) e Gong, Tom Zé, Moraes Moreira, Yamandu Costa, Di Melo, Made in
Brazil (2014)6.
A duração do festival, ultimamente, tem se estabelecido em seis dias e o seu público
é bastante diverso, de forma que é possível notarmos jovens entre, aproximadamente, 18 e
30 anos, de diversas “tribos urbanas”, além de um público formado por pessoas com uma
idade mais avançada que levam seus filhos ainda bebês ou crianças. Em consonância ao
Woodstock, o público do Psicodália fica alojado em barracas de campings em uma das cinco
6 Destaco aqui que, apenas ressaltei as principais atrações musicais, já que a grande maioria dos músicos a se
apresentar no festival é composta por bandas independentes. O evento de 2014 ocorreu durante o carnaval,
entre os dias 28 fevereiro e 5 de março. Em 2015, o Festival ocorrerá entre os dias 13 e 18 de fevereiro, em
que darei continuidade às práticas etnográficas iniciadas em 2013.
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áreas determinadas pelos organizadores, porém a disposição destas ainda é bastante livre.
São inúmeros os elementos contraculturais compartilhados entre estes festivais, desde a
música, as vestimentas, o comportamento pacífico e cordial, a noção de comunidade, a
preocupação ecológica, a utilização de substâncias lisérgicas ou alucinógenas, a prática de
nudismo, o interesse em culturas orientais e indígenas etc..
É essencial elucidar que este evento não se resume a apenas apresentações musicais
– apesar da música constituir a essência do festival – mas é também caracterizado pela
presença de peças de teatro, mostras de cinema, exposições de arte, artesanato e roupas
confeccionadas, área de recreação adulta e infantil, manifestações artísticas de todo o tipo,
como números circenses, performances etc.. Além disso, o festival ainda oferece inúmeras
oficinas e workshops de diversas temáticas, entre elas, fotografia, ioga, meditação e mantras,
reciclagem, tie-dye (em camisetas), cerâmica, tai chi chuan, pilates, dança indiana,
alimentação natural, grafite, desenho, incensos, henna, práticas cênicas, construção e ensino
de instrumentos musicais, poesia, plantio de sementes e cultivo indoor etc..
De acordo com a organização do evento, os objetivos do festival são:
Criar espaço para que bandas independentes e de qualidade possam divulgar seu
trabalho.
Desenvolver o cenário musical, tornando-o mais profissional e incentivando as
bandas independentes a produzirem mais e melhor, obtendo assim, mais força
no mercado musical.
Formar público, preparando a audiência para ouvir músicas de bandas
independentes e tornando-a mais crítica, através da incitação destes participantes
a discutir música nas vivências culturais que acontecem nos eventos.
Organizar festas e festivais de bandas com músicas próprias e de qualidade,
sempre no estilo rock’n’roll e alternativo.
Integrar o público e as bandas através de oficinas de arte e vivências culturais.
Através da inserção na natureza, incentivar o público a agir com consciência
ecológica e sustentabilidade, levando estes hábitos para suas cidades e
difundindo-os entre a população geral.
Gravar, filmar e fotografar som e imagem dos artistas participantes nos eventos,
criando um registro para a posteridade (Semeador de Letras, 2013; Myspace,
2013).
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Questionamentos
A partir do recolhimento destes dados e da experiência que obtive como músico,
etnomusicólogo e integrante do público do Psicodália no réveillon de 2012/2013 e no
carnaval de 2014, surgiram inúmeras questões de cunho musical, antropológico e
sociológico que desencadearam neste trabalho e determinaram os objetivos desta pesquisa.
Entre estas questões, elenco: Quais as funções da música para os participantes do
Psicodália?7 Os objetivos do festival enumerados pela organização, realmente são atingidos
de forma efetiva? O Psicodália pode ser caracterizado como uma espécie de retomada
ponderada da contracultura brasileira das décadas de 1960 e 1970?8 Existe a possibilidade
de “ascensão” das bandas independentes ao mainstream por intermédio do festival? Ou a
criação do Psicodália, como um espaço marginal, garante oportunidades para esses grupos,
incentivando a formação de um cenário underground autossuficiente? Como ocorre esse
diálogo entre o festival e a indústria cultural das rádios, jornais e redes televisivas? A criação
do Psicodália pode ser considerada um reflexo da descrença ou da insatisfação de uma
comunidade a respeito das culturas, sociedades e de um pensamento mais ocidentalizado? É
possível considerar que essas propostas contraculturais deste evento de buscar relações mais
ecológicas e sustentáveis, de não violência, do não consumismo, de uma proximidade com
as culturas e filosofias orientais9, juntamente à busca por relações interpessoais mais
humanitárias dialogue com um quadro social mais amplo10?
Apesar do Festival Psicodália já estar em sua 18ª edição, e, atualmente, comportar
cerca de 5 mil pessoas, existindo desde o ano de 2001, não foi encontrada nenhuma pesquisa
sobre o tema em nenhuma área científica – denotando um ineditismo temático desta pesquisa
7 Referenciando-me nas categorias de Alan Merriam (1964), que, basicamente, as decompõe em dez: função
de expressão emocional, prazer estético, entretenimento, comunicação, representação simbólica, reação
física, impor conformidade às normas sociais, validação das instituições sociais e dos rituais religiosos,
continuidade e estabilidade da cultura e integração da sociedade (p. 219-227). 8 Esta questão é condizente ao pensamento do teórico norte-americano Christopher Dunn, em sua defesa de
que a Tropicália (1967-1968) possui grande responsabilidade no surgimento da contracultura no Brasil (Dunn,
2009, p. 20, 21, 26). 9 Destaco que esta busca pelas culturas e filosofias orientais está mais associada à cultura de países como Índia,
Japão e China, compreendendo também, visões de mundo de religiões como o Budismo, o Taoismo,
Hinduísmo, etc. 10 De grupos sociais metropolitanos, de capitais específicas do eixo sul-sudeste, como Rio de Janeiro – RJ, São
Paulo – SP, Curitiba – PR, Florianópolis – SC e Porto Alegre – RS, que compõem a maior parte do público do
Psicodália – de acordo com as excursões organizadas, anualmente, observadas no site oficial do evento
(Psicodália, 2013).
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na literatura. Além disso, acredita-se que as questões elencadas, embora se refiram a um
evento periódico, específico e local, possam ampliar a compreensão de um quadro social
mais extenso, caracterizado por uma relação de insatisfação de grupos sociais com sua
vivência cotidiana.
A presente pesquisa também tem o intuito de compreender alguns mecanismos da
indústria cultural, mais especificamente voltados para a música e gêneros musicais, tidos
como não adaptados às suas estruturas cristalizadas e aos interesses dos ouvintes das grandes
mídias. Ainda é possível cogitar que este trabalho identifique a possibilidade de um novo e
crescente movimento que está se estruturando, ou mesmo a de criação de um cenário
underground autossuficiente que se mantém às margens do mainstream.
Discussão
Se considerarmos as reflexões de Goffman e Joy (2007) sobre a contracultura – sendo
esta, uma manifestação de ideias e movimentos que propõem alternativas aos paradigmas
predominantes em diversos momentos históricos – acredito que o Festival Psicodália se
enquadra nesta perspectiva de divergência. De não aceitação de certos paradigmas sociais
ou de conduta individual, juntamente à criação de novas possibilidades, ainda que em um
espaço delimitado temporal e geograficamente reduzido.
O surgimento de novos festivais, semelhantes ao Psicodália, como por exemplo,
Morrostock, Aldeia Rock Festival e Suave, tem demonstrado um interesse destes grupos de
pessoas (organizadores e público) em estabelecer um cenário alternativo e marginal para
bandas independentes, mais do que uma proposta de impulsioná-las ao mainstream e às
mídias. Isto é, estão sendo traçados novos percursos que ampliam a autonomia dessas
bandas, através da proposta de do it yourself (faça você mesmo). Como podemos observar
em discursos presentes nos documentários Festival Psicodália – O Filme (2009), gravado
em Lapa – PR, em 2004, e no curta-metragem Psicodália (2015) – que aborda o evento no
réveillon de 2012-2013 –, fica clara a intenção dos organizadores na criação deste espaço
para a mostra de grupos independentes e composições autorais. De acordo com Osiecki, um
dos organizadores, no ano 2013, cinco festivais menores, no mesmo estilo de seu evento,
vieram procurá-los: “Aí demos apoio. Emprestamos os rádios comunicadores, por exemplo.
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E fizemos ponte com artistas e empresas. Esses eventos, com a cara do Psicodália, estão
surgindo, pipocando. É o futuro que está acontecendo” (Gazeta do Povo, 2014).
Também é evidente a preocupação do festival e o respeito em que são tratadas as
questões ecológicas, havendo inúmeras oficinas que abordam esta temática. Também não
são distribuídos copos descartáveis, mas sim, apenas um copo retornável durante todo o
festival, cedido ou vendido pelo evento. Há ainda banheiros secos e ecológicos, sendo que,
mais de 60% dos resíduos do festival foram encaminhados à reciclagem, como frisa a própria
organização:
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Figura 1: Sustentabilidade no Psicodália
Também é possível afirmar que as pessoas que frequentam o Psicodália buscam
promover relações mais cordiais, pacíficas e de respeito mútuo, visto que, em nenhum dos
dois eventos que participei, foi registrada uma ocorrência policial ou observada circunstância
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de violência física. Essa informação é condizente aos dados da segurança. Sendo esta, uma
situação atípica, que se difere enormemente das caracterizações habituais e problemáticas
enfrentadas nos carnavais brasileiros. Este estranhamento se potencializa ao considerarmos
que este evento abriga mais de cinco mil pessoas, convivendo por seis dias, em um local
onde se consome álcool, entre outras substâncias lícitas e ilícitas.
A respeito das funções da música no Psicodália, pode-se dizer que esta permeia todas
as relações e ambientes do festival – até mesmo nos banheiros, onde são instaladas caixas
de som e se pode ouvir a Rádio Kombi, coordenada pela própria produção do evento.
Primeiramente, pelo fato da música ser uma citação quase unânime, quando foram
questionados os motivos que guiam o público a este evento. Segundo, por estar diretamente
ligada às propostas ideológicas do festival, e assumir inúmeras funções como: expressão
emocional, prazer estético, entretenimento, comunicação, representação simbólica,
integração da sociedade etc.. Considero, entre estas aplicações musicais elencadas por
Merriam (1964), talvez a mais relevante, impor conformidade às normas sociais, pois, ao
que me parece, ocorre no festival exatamente o processo oposto: uma quebra de
conformidade às normas sociais, sendo esta, também validada pela música e associada
diretamente ao conceito de contracultura.
Considerações Finais
A partir de minha experiência etnográfica no Psicodália – que ocorrerá pela terceira
vez consecutiva neste carnaval de 2015 –, acredito já ser possível realizar algumas
considerações, tendo como referências certas práticas e relações observadas neste evento.
Sendo assim, o formato deste artigo se enquadra em uma proposta mais descritiva e
etnográfica, logicamente, fundamentada em um referencial teórico.
Embora nem todas as questões etnográficas levantadas tenham sido respondidas,
acredito que estes dados e considerações são capazes de evidenciar uma semente
contracultural que está sendo plantada, ou replantada após quase cinquenta anos do divisor
de águas chamado Woodstock. Germe este que está se disseminando, aos poucos, em
diversos polos e espaços marginais em todo o Brasil, oferecendo locais e grupos de
resistência às culturas e paradigmas sociais dominantes.
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