O real é espesso: o materialismo pós-metafísico de João Cabral de Melo Neto

7
Ë (IM) L) q) Ë t- H È +'|t E L q, ìtrìl .Hl t-ì a\ ct .. ht *,ì o V) o lLi. .hl \ q'l $- o V) v) o .H ìt v) a- ^t Lrì POSSryEIS (TMNS) P0srç0ES Coordenaçõo de: Morio Celesle Notório Cícero Cunho Bezerro Renqto Epifônio

Transcript of O real é espesso: o materialismo pós-metafísico de João Cabral de Melo Neto

Ë (IM)L)

q)

Ët-HÈ

+'|tELq,

ìtrìl.Hl

t-ìa\

ct.. ht*,ìo

V)olLi..hl

\q'l$-

oV)v)o

.H

ìtv)a-^t

Lrì

POSSryEIS

(TMNS)

P0srç0ES

Coordenaçõo de:

Morio Celesle NotórioCícero Cunho Bezerro

Renqto Epifônio

lrsta obra náo pode ser reproduzida ou transmitida porqualquer processo à excepçáo de excertos para divulgaçáo.

Ììeservados todos os direitos, de acordo com a legislaçáo em vigor.

Exa publicação é fnanciada por Fundos FEDER ataués do Programa Operacional Factores de

Competitìuidade - COMPETE e por Fundos Nacìonais atraués da FCT - Fundação para /lCiência e a Tecnologia no âmbito do projeto <PEsI-C/FIL/U10502/2013, (FCOMP-)1-0124-FEDER-q37301).

TÍruro(Im)possíveis (Tlans)posiçóes - Ensaios sobre Filosofia, Literatura e Cinema

CoonornaçÁo

Maria Celeste Natário, Cícero Cunha Bezerra e Renato Epifânio

Eorrones

Alexandre Gabriel & Sofia Vaz Ribeiro

r" EorçÁo: Setembro de zot4

ISBN: 978-989-677-rt6-4

Depósrro Lecer: 38o 46zlt4h"rpnBssÁo: DPS

@ zot4, Zéfiro

ÍNorcn

Prefácio ..........9

Arthur GrupilloO Real é Espesso: O Materialismo Pós-Metafïsico

de Joáo Cabral de Melo Neto

Carlos Eduardo Japiassú de QueirozOs "Sáo Bernado (s)" de Graciliano Ramos e Leon Hirszman:Uma Análise Inter-Semiótica entre o Romance e o FilmeHomônimo a Partir da ProbÌemática do Tempo .........2r

Carlos Magno Gomes

A Circularidade da Escrita Literária.. ...........28

Celeste NatárìoAgostinho da Silva: Escrita e Vida, Literatura e Existência............ ............4r

Cícero Cunha Bezerra

Mark Rothko e Clarice Lispector:h,lementos para uma Estética Apofática........... ...........4t

Constança Marcondes Cesar

l.inguagem Simbólica e Razáo Hermenêutica.......... ..................r7

Daniel Serraualle de Sá

lìilosofia Política nos Romances Góticos Ingleses do Século XVIII ...........65

l:rlrisi Fernandes

LJrrra Lcitur:r Histórico-Filosófr,ca a "Poética" de Edgar Allan Poe ......... ....78

l',1.w (.ltrqu.cirrt

( ) An:rrrlrrisrno rlc Joiro Vuvn ou de João César Monteiro............. ............99

l',t,'rlrht lìu'l'rrI{orrssclru c rrs l,itct':rtrrt'rrs rlt' Vi:rgclrr

Ilrl,r 'Ii't','ç,r rlt' ( )tçtt'o

f ',..,,t1,)( unr('trl;itio c l',.r,r. ritir isrn(), ('nt l()ltì() tlt' l',rtrtltlitt,q.r,

.'ltt ltrt'tttrt,t'nit'ttl li'rrtl,, llt,' I ltlt l l,,rrt, Alt',tt tltt' l)'rttlt,Ilt,ttt,.c l,'tt,t!ntl(.t.\,tl llrt. l:11,1 l,f llt,.\\'r,tl,l .,..... t., l

O REAL É ESPNSSO:O MATERIALISMO PÓS-NAETAFÍSICODEJOÁO CABRAL DE MELO NETO

AnTHUR Gnuprr,r,o

INrnoouçÃo

O pensamento de Joáo Cabral articula-se, cuidad,osamenre, na conexão d,etrês elementos: 1) o real esPesso, a concepçáo rústica e suja (náo materialista) damatéria, personificada exemplarmente no Rio; 2) o trabalho poético incessanre,dedicado, que elabora a matéria formal e semanticamente ; e 3) o mar, o trabalha-dor ideal, que representa antes uma mística laboral, náo contemplativa. O presenteartigo incide especialmente sobre o primeiro elemento, como propedêuti." d.,r,,'"pesquisa mais ampla. Ela constitui, entretanro, a parte talvezmais importante, poisidentifica os traços fundamentais de uma apro priaçãofilosófica da obra de Cabral,particularmente uma "ontologia cabralina", a p"rtir d.o conceito do "espesso,,.

Primeiramente' iâpe\o título, deve-se suspeitar de que a abordag.- d.rr. r."-to náo é a de um especialista ou crítico literário. Na mehàr das hipóreses, é a leiturade alguém que bebe, náo meramente na "fonte cor de rosa", e simda "águado copode água" de sua poesia - pois, para quem tem sede, sua poesia náo é uma fonte corde rosa, uma chuva azul, mas aPenas um copo de água,1á o b"rr"nte, saiba-se, paraàquele que se encontra numa espécie d. dererto vivo, de matéria úmid,a, de vidamorta-viva' Para alguém que' como eu, aceitou o desafio de falar de Joáo Cabraltendo como objeto de pesquisa, em filosofia, o problema d.o "materialismo comopensamento pós-metafïsico", em que proponho cemos meios de compreender omaterial humano e natural náo como fornecendo as premissas de constituiçáo doser, qualquer que seja seu sentido, mas como uma via de máo dupla, na qual otrabalho da razão (ou a razão do trabalho, se pensarmos em determinada versáoespecífica do materialismo) se junta a um ourro trabalho, de precisão compreensivae hermenêutica, para fins de pesquisa. Nesse sentido, a arre .

" ,.ligiao seriam, não

. só complementares, mas indispensáveis ao próprio trabalho racional.' Tâmbém para algué* q,r., como eu, certa vez, às voltas com uma tese de dou-

toramento em filosofia sobre os limites da racionalidade, buscava na estética umachave heurística Para o problema da razão, no caso a razão "comunicativa", dianteda qual a obra de arte, em particular a literatura, cumpre um papel semântico t pãÍã

í>$N

l'tlt,\rtlt.t, I tÍ. ttrlttt,t í |

.rl,irrr.lo t'sttiÍito, tlrrt'i'.,,rr,liç:rt, tl,t..,tttrtttirltç;to.' N;trlttcllt <lpor-tunicleclc, acltei

1r,,r 1,.'rrr Í,r2,,-'r, lirrtl;r (ìuc urÌì [)()r.rco pcrclicie lìo texto, uma referência ao poeta

1,,'r.rrlrnlru(lr'ì() rluc: clcixassc claro que a poesia nunca é um discurso transparente,prt'lcv:r rlirt'turrrcntc às coisns, tampoLrco uma posse ou, um acesso privilegiado à

v..'r'rluclc (luc e íìlosoÍìa áÌpenas ama e se esforça por tocar, mas que, assim como esta,

í'rurr trrrbalho que tem por sina tematizar a si mesmo, a seus próprios métodos,iÌ() tcrììrltizar cada coisa. Nem por isso, entretanto, o fazer poético, assim como oíilo.s<iíìco, é inútil, ensimesmado ou cético. De fato, o fazer poético aparece comoirrritil, se bem que na obra que considero a mais pessimista e negativista de Cabral,Alrr.çt'u de Tudo (1974), em que "O Artista Inconfessável" declara:

Fazer o que seja é inútil.Náo fazer nada é inútil.Mas entre fazer e náo fazer

mais vale o inútil do faze*

Como se vê, tais inutilidades náo se anulam, de maneira cética, talvez estoi-( rì, rÌras o fazer, apesar de tud.o, se impóe sobre o náo faze# Nisto está o que pode-r'írrrnos chamar, superficialmente, de paradoxo da arte moderna, cuja "utilidade"

t'stri em sua inutilidade, em sua propalada autonomia. Mas se observarmos a obra.. <,rnpleta de Cabral, veremos um trabalho intenso, sem falsas garantias, e somen-((' rìeste sentido, sim, inútil. Mas que mistério de esperança ou promessa pode darsierrificado à preferência da inutilidade do fazer sobre a do náo fazer? Por que o,.'sÍorço de aguçar o olhar, seja inicialmente através do sono, como veremos, seja

tlc outra maneira, inclusive "sobrenatural", para o oculto das coisas inertes, parao úrrnido que há no deserto? Em náo ser uma fonte ou um cântaro, e em tambémrriro ser um mero retrato do deserto, mas um copo de água, é neste sentido quetligo que a poesia de Cabral é pós-metaffsica, e espero poder esclarecer o que istosignifica também em termos náo metafóricos.

OpBsnRToEoRroMas esclarecê-lo em termos náo metaforicos éfazer filosofia. Com isso que-

ro dizer que náo é meu objetivo aqui interpretar ou julgar a poesia de Cabral

' ( ì[ Grupillo, A. Limites e dissonâncias da razáo comunicatiua: umt crítica a partir do 'problema da

,'çtótica". Belo Horizonte,lJniversidade Federal de Minas Gerais, Brasil, 2012. (Têse de doutorado)' Melo Neto, Joáo Cabral de. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, p. 358([ )oravante "PC" para Poesia Completa)

' Até onde sei, Museu de Tudo, publicado em 1975, reúne poemas de diversas épocas, mas elr

nrc refiro sobretudo a poemas como, por exemplo, "lJm Decantey''.

.t:l\<41<l-s-Àt

lì().s tcl'lÌìos tl:t tt'ílit:r litt't';it-ilt orr,rlgt, tlt'st;r tì;ltlil'('zit, rrrlrs r-t.:rliz;rr-rrnt:r t.sPí.tit.de traduçar, Parrl a liltgrragcrìr corìccittr:rl, clo tlrrc (ll[rr':rl rliz corrr,, 1i,.,g,,,ìg.,r,concreta. Sim, porque, colÌìo se sabe, cle repetidas vezes enÉìrriz<ltr, enÌ cptrevistas,que palavras como "faci', "pedra" ou "maçá" sáo rnais poéticas do que palavrascomo "tristezi', "angústia" e assim por diante. Inclusiv.,

"liár, adjetivos ou verbos

admitem ser concretos no mesmo sentido. "Por exemplo, o adletivo "sublime" éabstrato, como "tristeza". "Maçã é táo concreto quant; o adjeJvo "toÍto"."4 Fala--se em cabral de uma "luz intestina", e verbos ao-o "sopesar" e

,,vertebr aÍ,,, da

mesma forma, sáo mais concretos que "estar" ou "seguir;'. Mas este fato, a quevoltarei sempre ao longo do texto, depóe justamente conrra a tenrativa de ver emJoáo Cabral um poeta moderno no sentido esrrito, em quem o trabalhamenroda linguagem se torna fim em si mesmo, um cultivo da poesia como universopróprio, que náo dialoga com as coisas. Pelo contrário, para Cabral, o mesmo mo-vimento de pensamento, que impede a poesia de fr.r.ìorr", como mero discursoque comunica ideias ou sentimentos que lhe sáo exteriores, também a nega comomero jogo formal interno, que só se comunica consigo mesmo.

Portanto, é antes como leitor e admirador, repito, e náo como crítico ou es-pecialista, e, mais ainda, incriminado por intençóes filosóficas declaradas, que meabstenho de problemas de interpretaçáo e evoluçáo do estilo, por exemplo, i,r".rtoa sua suPosta guinada realista desde a Pedra d.o Sono (1942) para a Psicotogia dacomposiçao (1947), tendo como intermezzo O engenheiro (L945i.Embora o piópriopoeta tenha mencionado certa "inspiraçáo ,,rrràista"5 de seus prim.iro, po.À"r,ele também afirma que "esses primeiros versos excluí depois de irdra do Sìno, meuprimeiro livro' Porque achava que náo tinham meu ritrno. Verso longo... Como vê,náo comecei com soneto de namorado".6 "Além de tudo", na tese robi. o poeta dor-mind'o, aPresentada ao Congresso de Poesia do Recife, em 194I, umano antes d.apublicaçáo da Pedra do Sono, ele reafirma, com ênfase, que "uma observaçá o se faznecessária: a poesia não está no sono, no senddo em que ãle constirua um reservató-rio, do qual' em sucessivas descidas, o poeta nos aporte os materiais do seu lirismo.("')

" açáo do sono sobre o poeta se dá em outro nível que o de simples material para

o Poema. Num terreno em que ele deixa de ser r.trn obl.to e se ir".rfor-a comoque num exercício, num aPronto Para o poeta (no sentido esportivo do termo),aguçando nele certas aptidóes, certa vocação para o sobrenatur"Ì . o invisível, cerrapercepçáo do "sentido oculto das coisas inertes", da formula de Pedro Navâ."7

a Melo Nero, Joáo cabral de. "Joáo cabral por ere mesmo". In: pc, p. )ooo5 Mesel, Kátia. Rtttft de Dentro pra Fora. Recife: Arrecife Produçóes, 1997.1 filme (15min):son', color; disponível em: https://wwta.youtube.com/taatch?u=asUL'kiyJzre; acesso em mar.20l46

João Cabral por ele mesmo, op.cit., p. )OOilI.7 Melo Neto, Joáo Cabral de. "Consideraçóes sobre o poeta dormindo" .In: prosa. Rio deJaneiro: Nova Fronreira, 1997, p. 14.

/ì'\l>\)+>'1-:L;/' .,r.'\<<3

( ..tn t'Ít'ito, (.rtlrt'll ntrttcu íìri ruìr .\lrrrt',rli.strr r:rìì scrìtirlo prtiprio. Mcsmcrr',rlt.t,l,r l)ru'rr () s()n(),.scrr itnpulso era rcalista, mas náo tinha ainda noçáo in-It'it:rtrtt'tt(t'rlrtr:t dc onclc se encontrava o "real" em que tomar a matéria de sua

p,t'si;t. l)o trrcstno modo, também náo foi propriamente um modernista - nemrì() s('lrticlo clo tnovitnento brasileiro de 1922 nem no sentido da narrativa abran*

!'('rìl(' clcste conceito ligado à estética filosófica -, pois sua poesia náo se esgota noIt,t'ttrrlisrtt<), rnas tem matéria. Náo cumpre apenas enfatizar que a matéria náo se

('n(()lÌt11ì l.ìo sono, que também que este oferece, na verdade, um exercício para o,IItut', aguçado pelo sobrenatural, direcionado ao sentido oculto das coisas inertes.Atltri .sc insinua o real como "o sentido oculto do inerte", que persiste ao longotlt' tocl:r sua obra e permanece, até onde consigo ver, inalterado. Trata-se, com,'Íi'ito, d:r ontologia cabralina. O real como o oculto das coisas inertes, ou, comot,rntlrórn se poderia dizer, o lado vivo do morto, aface úmida do deserto. Por isso,

t.rrnbórn, o real náo é puro deserto. Pergunto, pois, o que significa o realismo e or r r;r t t'rialismo de Cabral?

Ern primeiro lugar, deve-se descartar qualquer tipo de animismo. O rio,()u () rnar, sáo símbolos, é verdade que eloquenres, mas náo mágicos. Tâmbém

l)()r'(ìue as coisas eloquentes da natureza pelas quais o animismo tem predileçáo,t.ris como, de fato, o rio e o mar, e até mesmo o ovo, aqui se juntam a coisas a

ist, Pouco dadas, como a lama, o canavial, o osso, o poço (que é âgua, só que,'rrtlroçada). O discurso que se vê no rio de O C,io sem Plumas (1949-1950) ounìcsrÌro n'O Rio (1953) é naverdade o dar avoz do poeta; sáo discursos de Rias\t'trÌ discursr, que permaneceriam mudos se o poema náo os fizesse falar:

Quando um rio corta, corta-se de vez

o discurso-rio de água que eIe fazia;

cortado, aâguase quebra em pedaços,

em poços de água, em água paralítica.Em situação de poÇo, a âgua equivale

a uma palavra em situaçáo dicionária:isolada, estanque no poço dela mesma,

e porque assim estanque, estancada;

mais: porque assim estancada, muda,e muda porque com nenhuma comunica,porque cortou-se a sintaxe desse rio,o fio de água por que ele discorria.s

O realismo e o materialismo de Cabral buscam aface oculta do inerte no que. itrerte tem d,e poético e discursivo. Em vez de significar a presença de uma vida

c'stri(lÌlììeÍìtc lìlltl('l'i:rl, r'lt's rÌì()str':llìì urrr:r vitl:r (llr(.s(',1,i .1,'íol.rrr:r t.l.t;trcrrtc.rr<rnraterial, colÌlo sc lt viclll, ali orrclc:ÌprÌrcl-Ìtcrììcrìtc rr:ro llorleri:r vingar, ftlsse eirrcl:rmais eloquenre. É. assim, por exemplo, que o cáo ..- pì,rrrr", é -rì, que o cáo as-sassinado, que a lama é mais prenhe de sentido, -"r-o do que a águaou a terra. Amucosa é mais úmida que o sangue, o mangue é mais florido, .o- ,rr" flora negra,que a primavera, e o cante "apalo seco" émais contundente e místico que o silêncio.

O deserto de Cabral é rigorosamente vivo. Sem dúvida, é im psicologiada Composiçrio que ele é mais trabalhado. Ali se fala de "pedras como frutosesquecidos"e e do deserto "como um pomar às avessas".t0 Mas a categoria d.o mor-to-vivo persiste ao longo de toda a obra de Cabral, como no poema Mríscara Mor-tuária Viua, dedicado ao seu tio e eminente psiquiatra Ulysses Pernambucano:

O rosto do único defuntoque ousei escrutar na vida:náo só vivia mas guardavaalucidez que me ataíra.Na morte estava até mais vivoo fio sorriso que dizia:da sala da vida à da morteé ir entre salas sem saída.1r

Neste poema, assim como em Crime na Calle Relator poema do livro homô-nimo de 1987, é o que o corpo morro tem de vivo, e aind.a mais vivo porquemorto, que Cabral explora, mas é sobretu do a paisagem moÍta-viva que vemosrecorrente em sua obra, onde o fato do persistir vivo torna cada coisa mais vivaque a vida, ali onde costumamos encontrá-ia mais facilmente. Assim, remos umaespécie de gradaçáo. Tanto mais real é a coisa quanro mais ela se dá onde náo sedeveria ou se poderia dar. o real é, numa p"l"rri", o espesso.

Esta palavra adjetiva possui, no discurso de Cabrai, uma funçáo singularmen-te substantiva, ontológica, embora, em situaçáo "dicion árii', ela signifilue coisasquase antagônicas como o "denso" e "cremoso", tanto quanto o

,.coÃpaclo,'e ,.cer_

rado". Tâl polissemia cai como uma luva à mão que se exercita em escrever o ladooculto do inerte, a fruta na pedra (e o contrário). Espessos sáo, exemplarmente,um cáo, um homem, aquele rio. Náo todos os rios, mas aquele, da paisagem doCapibaribe. Contudo - eis um dado importante desta ontolàgia - todì cáo e todohomem, ao contrário do rio, náo precisam de condiç óes adíersas para constituí-

e Psicologia da Composiçáo, PC, p. G3.t0 Psicologia da Composiçao, pC, pp. 72-3.tI Museu de Tudo,PC, p. 359.

ç>\l\'Lí t'

r( tlt \('(' l)('s\os. l'.u,t ('slt's, vivt'l i.i ,l srríir it'n(('rìì('tìlt',rrlvcrso, j;i t'('.\l)('sso. lÌrr i:,so,

\('tìl('tt( i.t tl lrot'ttì;1, () tlttt'vivt'ri t's1lt'sso" r' "vivt'l'i' il t'rrll('() (ltrr-'vivr"'.1' I Jrrì (:t(),

.r:,sirrr (()tìt() rtrrr Ir,)tìì('nì, l)t('(is;Ì (()tÌì('l', lt'tn rlcttL(.s, lìl'cst:ìs, i'cs1lr.ss,,. l;,1r,,ssívt.l

,r{) 1;11r r', solrt-r'ttt,l.l, ,t,, ltolttcttt, s('r'('lìì lrirrcl:r trrltis c:s1-lcssos clìì c<>ttrl iç'ilt's rrtlvt.rs;rs,

rrr,rs i:i Íì;r.\(r'ttì, ctn gcrltl, cs[)css()s. fli o ri<1, rriro. lilc peÍtcrìcc áÌ oLru-lì csíi'r',r,1,, r,..rl.

f '. t's1rt'sso (lurìtÌt() ttrais sc lÌì2ÌlìtélÌ-r rÌo (tpesdr. A maçá é rnais rcal 1:r:rr';r:r íìrnr('(lu('n,r() ir lrotlc corìrcr do clue para a que pode, e assim por diante:

lV - (t)iscurso do Capibaribe)

(ìrnro todo o real

ó cspesso.

Acluele rioé espesso e real.(lomo uma maçá

é espessa.

Como um cachorroé mais espesso do que uma maçá.

Como é mais espesso

o sangue do cachorro

do que o próprio cachorro.

Como é mais espesso

um homemdo que o sangue de um cachorro.

Como é muito mais espesso

o sangue de um homemdo que o sonho de um homem.

Espesso

como uma maçá é espessa.

Como uma maçá

é muito mais espessa

se um homem a come

do que se um homem a vê.

Como é ainda mais espessa

seafomeacome.Como é ainda muito mais espessa

se não a pode comera fome que a vê.

(...) lE assim termina o poema]:

-,-r 1,.'

') O Cáo sem Plumas, PC, p. 90.

l,,s1lcsso,

porque é rnais espcssa

a vida que se lutacada dia,o dia que se adquirecada dia(como uma ave

que vai cada segundoconquistando seu vôo).t3

O homem é espesso, mas sua fome é mais. Isto significa que ela é mais realdo que, por exemplo, o seu sonho. Mas esse aparente materialismo náo se esgotanuma única categoria. O espesso, logo se vê, é uma gradaç,ío de realidade, quaseque em estágios, como na República de Platáo. Mas náo se rrara de uma inversáomaterialista ou empirista de mais Ser. Tiata-se do que mais resiste. Mais espessa éa fruta para o faminto do que para o homem em geral. Tâmbém a fruta é mais es-

Pessa Para o faminto que náo a pode comer, e ainda mais espessa se este faminto,que não a pode comer, a vê.

Porém, mais espessa é tamb ém afruta que os dentes do homem náo cortam. E,

é por isso que ele forja espadas. O homem forja espadas porque há coisas que os seusdentes náo cortam, coisas mais espessas. Vale lembrar que essas coisas, g.r"lm.nt.,sáo frutas, sáo espessidóes da paisagem. Com isso quero dizer que ainda náo estáoem questâo, na poesia deJoáo Cabral de Melo Neto, as espadas que se debatementre si. Sua poesia, podemos drzer que é uma poesia da guerra, mas náo da guerraentre Povos, entre homens, por poder, mas da guerra representada nos atos de co-mer e fazer. Comer o mundo, a vida, como se come uma fruta . Fazer o percurso.Apesar de seu cunho acentuadamente social, a luta náo ocorre entre horn.nr, -",com a resistência da própria vida. Este é o núcleo de sua poética: a vida é espessa.

Embora eu defenda, sem tempo e espaço de comprová-lo aqui, que esre con-ceito é central e Permanente, pode-se perceber, nesre trabalho, a recorrên cia, atémesmo a dependência, do C,ão ,r* Plu*as. Por que aqui o conceito é quase ex-plicado. Dá-se perfeitamente a ver. Embora se rrare como propedêutica da obracabralina a Educaçao pela pedra, acredito ser o Cáo sem Ptumas o núcleo de suapoética. Seu poema-irmáo O Rio, dízia ser "ralvez" seu "livro predileto".la Mas épossível que a predileçáo diga respeito ao fato de O Rio ser um rexro essencialmen-te narrativo e quase nunca conceitual. Mas nele temos uma caracterizaçáo bastanteclara do que o "conceito" de espessidáo quer dizer, quando o próprio rio "discursa":

t3 O Cao sem Plumas, PC,pp. 90-92.'' PC, p. )CC(III.

N--:4^7

I trr,il," ','l,tr. I rt,',,,1i,i I t!, ',iit,t.t i ( t!ir Ir.'

Iìrt tt.is .I,,.1rt.' I, rrrI,t,,,,,ttvi ,lc unÌ.t (( rr.r tlt:,r'rl.rtl.r,v.r,r.i.rrl:r, rr:ro v.rzi,r,

ttt:tis tlrtc scr.;r, r'lrl.. i rrrrtl.r.

I)c onrlt' trrclo íirgil,onclc só prcclra é quc Íìcava,

pc<lras e poLlcos homenscom raízes de pedra, ou de cabra.

Lá o céu perdia as nuvens,derradeiras de suas aves;

as árvores, a sombra,que nelas já. náo pousava.Tüdo o que náo fugia,gavióes, urubus, plantas bravas,

a terra devastada

ainda mais fundo devastava.15

Para nossos propósitos, interessa o conceito, e náo o fato de um poema ser

rtr:ris fiel do que outro à concretude da linguagem visual no uso deste conceito. O('spesso não é a nattJÍeza morta, mas mórbida e, portanto, viva. A terra náo é só

rlcvastada, ela mesma devasta. Ela náo é apenas seca, ela seca. Neste sentido, O Rio

lrotencializa no seu extremo o conceito. Mas, no panorama geral desta ontologia,linda espessos sáo, como já ditos, a lama em relaçáo à água, o coágulo em relaçáorÌo sangue, etc. E, talvez, mais que tudo, a mucosa, origem da vida.

O real é, portanto, espesso porque isto designa o vivo no morto e o morto novivo. Todavia, estas duas coisas náo se anulam, ceticamente, mas) parafraseandoCabral, entre o vivo do morto e o morto do vivo, mais vale o vivo do morto-vivo.O rio Capibaribe é representado, assim, como coisa amorfa, cuja fluidez é decstagnaçáo e náo de liberdade. O Rio segue seu destino para encontrar-se com o

rÌar, mas o Cão sem Plumasyem se arrastando.16 O uir se Arrastãndo recusauma vi-sáo metaffsica rude da matéria, o que seria um materialismo ou realismo grosseiroe fácil. Isto porque o poeta percebeu seu sentido oculto, que é, paradoxalmente,o mais eloquente. Concluo, aqui, na tentativa de comprovar tal leitura, com os

preciosos versos de Sophia de Mello Breyner, que diz de Cabral, seu amigo:

Mas sua arte náo é só

Olhar certo e oficinaE nele como em Cesário

Algo às vezes se alucina.

tt O Rio, PC, p. 96.t6 O Cáo sem Plumal PC, p. 83.

<4J!<.)\NÀJ

lÌris lrli Iì('ssit lrì() ('xllct:l

I ìitlcl irlr.lc à i ttut ttC'rtcirt

Secretas luas ferozes

Quebrando sóis de evidência.17

17 Breyner Andresen, Sophia de Mello. Ilhas. Mindelo: Caminho, 2004, p.64'5' Aproveito

para agradecer a Profa. C"l.rte Natário a indicaçáo da existência deste poema-dedicatória de

Sophia de Mello Breyner sobre Cabral.

4rìì..lÈÀÈ-