O norte de Angola a ferro e fogo: 15 de Março de 1961

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O Norte de Angola a ferro e forro 15 de Março de 1961 Numa carta apreendida pela PIDE, provavelmente dirigida à direcção da UPA em Léopoldville, o Cónego Manuel das Neves, ao criticar os tumultos de 4 de Fevereiro, considerava que “um levantamento no interior de Angola só deve ter lugar quando eclodirem as esperadas «operações de fronteira» [. E] falando de operações militares para a libertação de Angola, nunca se esqueçam de elas serem devidamente preparadas. Devem pedir instrutores de guerrilha ao Sr. Ernesto Che Guevara (…). No entanto uma tal operação não deverá descurar a colaboração dos voluntários chineses, ganeanos, cubanos, congoleses, guinéus, etc.” 1 A 17 de Maio de 1960, num relatório da PIDE para a Presidência do Conselho, afirmava-se que, no Baixo Congo, “a propaganda contra Portugal e as autoridades portuguesas continua e, entre os indígenas das proximidades da fronteira com Angola é voz corrente que depois de 30 de Junho 2 invadirão em massa aquela nossa província para a libertarem [e] a verdade é que os indígenas andam bastante impressionados (…) pelo que manifestam já uma certa resistência em cumprirem as ordens que lhe são dadas”. 3 Menos de um mês depois, a PIDE voltava a informar que em Ponta Negra estavam “a aumentar as actividades políticas contra Portugal, aparecendo ali vários agitadores a incitarem os indígenas portugueses ali residentes a fomentar uma revolta no 1 Carta do Padre Manuel das Neves «Amigo de Makarius» ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL -30 D, Fevereiro de 1961, fls.400/409 2 Após a independência do Congo Belga, ocorrida a 30 de Junho de 1960 3 Acontecimentos no Congo, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 E, relatório da PIDE para a Presidência do Conselho, confidencial, 17 de Maio de 1960, fls.43/44.

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O Norte de Angola a ferro e forro

15 de Março de 1961

Numa carta apreendida pela PIDE, provavelmente dirigida à

direcção da UPA em Léopoldville, o Cónego Manuel das Neves, ao

criticar os tumultos de 4 de Fevereiro, considerava que “um

levantamento no interior de Angola só deve ter lugar quando

eclodirem as esperadas «operações de fronteira» [. E] falando de

operações militares para a libertação de Angola, nunca se

esqueçam de elas serem devidamente preparadas. Devem pedir

instrutores de guerrilha ao Sr. Ernesto Che Guevara (…). No

entanto uma tal operação não deverá descurar a colaboração dos

voluntários chineses, ganeanos, cubanos, congoleses, guinéus,

etc.”1

A 17 de Maio de 1960, num relatório da PIDE para a

Presidência do Conselho, afirmava-se que, no Baixo Congo, “a

propaganda contra Portugal e as autoridades portuguesas continua

e, entre os indígenas das proximidades da fronteira com Angola é

voz corrente que depois de 30 de Junho2 invadirão em massa

aquela nossa província para a libertarem [e] a verdade é que os

indígenas andam bastante impressionados (…) pelo que manifestam

já uma certa resistência em cumprirem as ordens que lhe são

dadas”.3 Menos de um mês depois, a PIDE voltava a informar que

em Ponta Negra estavam “a aumentar as actividades políticas

contra Portugal, aparecendo ali vários agitadores a incitarem os

indígenas portugueses ali residentes a fomentar uma revolta no

1 Carta do Padre Manuel das Neves «Amigo de Makarius» ANTT, Arquivo de OliveiraSalazar, AOS/CO/UL -30 D, Fevereiro de 1961, fls.400/4092 Após a independência do Congo Belga, ocorrida a 30 de Junho de 19603 Acontecimentos no Congo, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 E,relatório da PIDE para a Presidência do Conselho, confidencial, 17 de Maio de1960, fls.43/44.

interior de Cabinda.”4 Por alturas das festas da independência

do Congo Belga, “a secção de Matadi da UPA distribuiu panfletos

incitando os indígenas portugueses a seguirem o exemplo dos seus

irmãos do Congo, convidando-os a empregarem todos os esforços

até conseguirem a independência de Angola [sendo aliciados] 10

nativos de S. Salvador para irem frequentar uma escola de

agitação no Gana.”5 A 9 de Julho, a PIDE continuava preocupada

com a movimentações da UPA em Matadi, pois, um mês antes,

tinha-se realizado naquela cidade da fronteira congolesa com

Angola, “uma reunião com os principais dirigentes da dita UPA

que teve por finalidade assentar no caminho a seguir para uma

acção que leve rapidamente Angola à independência. A esta

reunião assistiram alguns líderes congoleses que afirmaram haver

Kasavubu garantido todo o seu apoio (…) recomendando-lhes ser

necessário arranjarem fundos, [constando ainda] que os

dirigentes da UPA têm encarregado os sobas de procederem à

colheita de numerário nas suas tribos”.6

No início de Agosto, a Presidência do Conselho tomava

conhecimento da agitação que grassava já no norte de Angola,

nomeadamente entre o povo de Banza Pindo, muito influenciado por

dois elementos da UPA, sendo que um deles se apresentava como

«feiticeiro». “No povo Banza Pindo [da Serra da Canda], com um aglomeradopopulacional bastante elevado, onde não há fiscalização dasautoridades, [é que] se têm dado ultimamente reuniões dos povosdaquela região. Da serra da Canda e junto aos povos partem diversoscaminhos gentílicos que ligam com o território congolês [.Doiselementos da UPA dizem aos ] indígenas para deixarem pouco a pouco decomprar artigos nos estabelecimentos comerciais, de venderem criação e4 Acontecimentos no Congo, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 E,Informação nº 234/60-GU da PIDE, 7 de Junho de 1960, fl.655 Independência do Congo, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 E,Informação nº 268/60-GU da PIDE, 23 de Julho de 1960, fls.87/88

6 Agitação na Serra da Canda, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32E, Informação nº 296/60-GU da PIDE, 2 de Agosto de 1960, fls.108/111

ameaçam de morte os criados de certa confiança dos brancos secontinuarem a prestar-lhes informação acerca do que se passa nospovos. [UPA pretende] desenvolver as suas actividades através doselementos mais importantes nos povos ou de maior reputação,aproveitando-se para as suas comunicações e instruções emanadas doterritório congolês através dos caminhos gentílicos.”7

[Na primeira quinzena de Agosto, na circunscrição de Macocola, tambémno norte de Angola], registou-se uma venda anormal de fósforos decera. [Ora], os indígenas quando não possuem, chegam a carregar assuas armas com cabeças de fósforos [receando-se] que tenha sido esse omotivo que originou essa procura anormal de fósforos, receio esseaumentado pela resistência que, embora passiva, se vem verificando noschefes indígenas que não querem fornecer o número normal detrabalhadores (…). Sabe-se que grande parte dos compradores defósforos pertence à tribo dos «baiacas», com afinidades tribais efamiliares com a tribo congolesa que vive perto da fronteira.”8

O Estado Maior do Exército estava também informado sobre a

actividade da UPA, pelo que na sua Informação 3 de 9 de Julho de

1960, anota que: “membros da UPA, residentes em Matadi, enviaram um telegrama aEisenhower, com cópia ao nosso Presidente do Conselho, pedindo aindependência imediata de Angola e a libertação sem julgamento dosseus presos políticos. Circulam por toda a província emissários da UPAque, junto dos sobas das várias aldeias, angariam fundos e incitam àrevolta. Estima-se que esse partido tem já disponibilidades da ordemde dois milhões de francos (…). O chefe da UPA [em Léopoldville]organizou em sistema de «relais» para o encaminhamento do correio, quese estenderia a Luanda”. 9

Em Setembro, o Estado Maior do Exército alertava para asreuniões clandestinas nocturnas que se continuavam a realizar nodistrito do Congo.

7 Agitação na Serra da Canda, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32E, Informação nº 296/60-GU da PIDE, 2 de Agosto de 1960, fls.108/1118 UPA, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 E, Informação nº 241/60-GU da PIDE, 12 de Julho de 1960, fls.66/679 Resumo da evolução dos acontecimentos em África, (de 15/6/1960 a 7/7/1960)ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 B , Informação 3/NI do EstadoMaior do Exército, reservado, 9 de Julho de 1960, fls.2/19

“Em Nóqui continua a propaganda incitando à deserção [da qual]resultaram cinco deserções de soldados indígenas. Tem-se conhecimentoda circulação de panfleto e contactos entre os nossos soldados e oscongoleses desta zona, [sendo que] apenas em Nóqui a população semostra apreensiva. Aqui também é mais acentuada a influência deelementos subversivos da República do Congo ou de portugueses aíresidentes.”10

As autoridades militares portuguesas estavam, portanto, ao

corrente das movimentações da UPA no Congo, conhecendo o teor

dos panfletos e das publicações que aquela organização fazia

distribuir no norte da colónia.

No período compreendido entre Outubro de 1960 e fins de

Janeiro de 1961, o Estado Maior do Exército tomou conhecimento

da

“ fuga de elementos nativos do Norte do nosso território para asRepúblicas do Congo [sobretudo daqueles] que estão trabalhando para osmovimentos subversivos ou emancipalistas, nomeadamente de Nóqui e daregião de Sazaire. Algo de que se pode depreender o êxito apreciávelda propaganda subversiva panfletária radiofónica, são as manifestaçõesde natureza racista em que os indígenas insubordinados se mostram porpalavras ou acções contra a presença do branco em Angola, [tendo] asfazendas agrícolas das regiões de Carmona, Luanda e Quibala [as] maisafectadas”11.

Na informação 1, datada de 23 de Janeiro, o Estado Maior,

depois de relacionar os movimentos pro-independência com a

influência das missões protestantes, faz alusão ao contrabando

de armamento e depósito de armas junto de elementos negros

simpatizantes da independência, havendo ainda notícia “da

existência dum acampamento em frente a M’Pela (ao norte de

10 Resumo da evolução dos acontecimentos em África, (4/8/1960 a 12/9/1969),ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 B, Informação 5/NI do EstadoMaior do Exército, reservado, 12 de Setembro de 1960, fls.20/4411 Resumo da evolução dos acontecimentos em África, (10/10/1960 a 23/1/1969),ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 B, Informação 1/NI do EstadoMaior do Exército, confidencial, 23 de Janeiro de 1961, fls.176/205

Cabinda), com armas e viatura, que serviria de concentração de

meios para a incursão no nosso território nos dias 3 de Janeiro

e seguintes”. Sobre a UPA, afirmava-se, entre outras coisas, que

“alguns mancebos angolanos estavam recebendo formação

universitária no Gana (…) e indicado Janeiro de 1961 como início

das acções armadas contra a Província”. E, no noroeste de Angola

“os nossos indígenas Mussurongos têm contactado com indígenas da

mesma raça da Republica do Congo a fim de se estabelecer em

Angola, depois da independência um vice-reinado Mussurongo”.

Face ao que fora elencado, a informação do Estado Maior do

Exército conclui: “O aliciamento das populações pelos grupos políticos

emancipalistas acentua-se a um ritmo crescente, havendo já sobejasprovas de que a repressão, por si só, não chega para solucionar oproblema. Considera-se absolutamente necessário contrapor à propagandasubversiva uma série de medidas que captem as populações nativas eanulem a sua reacção crescente [, pelo qie se torna urgente a]“revisão dos processos de fixação de populações europeias, a fim deevitar o desemprego cada vez maior (…), a necessidade de uma campanhade moralização que evite os atropelos e abusos junto dos indígenas porparte dos europeus sem escrúpulos [pois] tais aspectos parecemintimamente ligados às causas do agravamento da situação”.12

Nas vésperas dos massacres de 15 de Março, a Informação 2

do Estado Maior do Exército anotava: “Continua em ritmo crescente a actividade dos partidos

políticos subversivos. A UPA está a enviar para Angola emissários comdinheiro e a fim de subornarem militares de raça negra, convencendo-osa fugirem para o Congo. Os seus membros procuram colher informação dospontos de fronteira que não são patrulhados pelo Exército. Foideterminado por esse movimento que o dia 30 de Março próximo seja ocomeço da luta aberta pela independência de Angola”.13

12 Resumo da evolução dos acontecimentos em África, (10/10/1960 a 23/1/1969),ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 B, Informação 1/NI do EstadoMaior do Exército, confidencial, 23 de Janeiro de 1961, fls.176/20513 Resumo da evolução dos acontecimentos em África, (23/1/1969 a 8/3/1961),ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 B, Informação 2/NI do EstadoMaior do Exército, confidencial, 23 de Janeiro de 1961, fls. 266/268.

É interessante verificar que, nesta informação, o Estado

Maior do Exército reconhece o estado de pré-guerra que se vivia

em Angola, começando por comentar a sublevação da Baixa de

Cassange que relaciona com o descontentamento do camponês

plantador de algodão face às “muito precárias condições de

subsistência” e que, por isso “constitui um óptimo recipiente a

qualquer género de propaganda que o incite à rebeldia. A

proximidade do Congo é, ainda, um factor a ter em elevada

conta”. Ao debruçar-se sobre os acontecimentos de 4 de Fevereiro

em Luanda, refere que os assaltos “perpetrados por numerosos

autóctones na sua maioria armados de catanas lembram a guerra da

Argélia” pelo que “o objectivo principal (…) é o da obtenção de

material de guerra [e] simultaneamente (…) o da libertação dos

presos políticos e o estabelecimento do pânico e do terror pelos

métodos sangrentos utilizados”. Remata afirmando que “ os

acontecimentos de Luanda, muito mais do que a insurreição de

Malange, que praticamente passou até agora sem ser mencionada

publicamente (…) obrigaram à renovação de protestos contra o

colonialismo português”, pelo que “ aproveitando a reunião da

Assembleia Geral das Nações Unidas, espera-se para o presente

mês novos incidentes, provavelmente em Luanda, gizados e

executados por elementos e fora.”14

Nos inícios de Março de 1961, a PIDE vigiava

incessantemente os movimentos de todos aqueles que eram

suspeitos de pertencerem às organizações independentistas,

fundamentalmente da UPA. A 9 daquele mês, pela Informação

secreta nº 283, a PIDE advertia: “A primeira revolta em Nóqui (prevê-se que) se dê em 15 do

corrente, para o que [os membros da UPA] estão contando com as armas

14 Resumo da evolução dos acontecimentos em África, (23/1/1969 a 8/3/1961),ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 B, Informação 2/NI do EstadoMaior do Exército, confidencial, 23 de Janeiro de 1961, fls. 266/268.

distribuídas aos sobas e com as armas gentílicas. Nesse mesmo dia ou

dois dias antes, pensam cortar a energia eléctrica e inutilizar as

antenas da rádio, contando para o efeito com a colaboração dos

respectivos serviços. Em face das suspeitas levantadas, intensificou-

se a vigilância por parte das autoridades militares e policiais,

aguardando-se o dia 15.”15

Oito dias antes da insurreição e dos massacres do 15 de

Março, a PIDE, como se pode verificar, estava plenamente

consciente do que estava a ser preparado, não só pela descrição

de alguma preparação para os futuros acontecimentos, mas também

pela intensificação da vigilância de todas as autoridades

coloniais no terreno. Mas a intensificação de vigilância sobre a

UPA e seus dirigentes torna-se mais acutilante a partir dos

inícios de 1961. Assim, numa anterior informação, esta de 25 de

Janeiro, a PIDE observava:“ [Os dirigentes da UPA estavam a] enviar para Angola emissários

portadores de dinheiro a fim de convencerem os soldados angolanos arefugiarem-se no Congo Ex-Belga a fim de os mesmos virem a constituirgrupos militares para a luta de guerrilhas, [que] entre os soldadoscongoleses existem muitos são originários de Angola ou cujos parentesresidem naquela Província e são elementos da UPA16 [que] vemcontrolando por intermédio dos seus adeptos que residem ao longo dafronteira, o movimento das patrulhas militares portuguesas, assim comoo percurso que fazem dias e horas. Diz-se ainda que nos escritórios da

15 Concentração de guerrilheiros da UPA, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar,AOS/CO/UL-32 A, Informação nº 283/61-GU da PIDE, secreto, 09 de Março de 1961,fls. 37316 Sobre a questão dos soldados que integraram a guerrilha da UPA e que asautoridades portuguesas apodavam de estrangeiros, o Major Hélio Felgas, numrelatório confidencial sobre os acontecimentos do Norte de Angola enviado àPresidência do Conselho, confidenciava: “houve duas vagas desses indivíduos. Aprimeira foi logo a seguir aos tumultos de Léo, de Janeiro de 1959. Os belgasexpulsaram mais de 2000 portugueses que foram espalhados pelos Norte de Angolae começaram a minar os nossos indígenas.” A segunda após a independência doCongo, sendo que “os indivíduos entrados em Angola foram consideradosportugueses porque eles ou os seus pais tinham nascido em Angola. Não falavamportuguês, nem tinham nomes portugueses. Todas estavam à dezenas de anos noCongo belga onde tinham sorvido as ideias da independência e da subversão”(Relatório confidencial do Major Hélio Esteves Felga, ANTT, Arquivo deOliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 C, 4 de Abril de 1961, fls. 297/2

UPA, em Matadi, existe um mapa de Angola onde estão assinaladas asforças militares estacionadas ao longo da fronteira e respectivosefectivos, para o que designou a cada secção uma determinada área dafronteira, para fins de observação.”17

Ora, estes comentários e observações prestados pela PIDE,

ainda que usando bastas vezes o verbo «consta-se», remete para

um cuidadoso estudo das condições objectivas para o sucesso da

insurreição programada para o dia 15 de Março. Porém, em

Janeiro, “os nativos portugueses residentes no Congo falam muito

no dia 15 de Fevereiro próximo como a data inicial para as

actividades terroristas ou de guerrilhas contra Angola.”18 A 26

de Janeiro, a PIDE referia a intenção de Holden Roberto procurar

“ com o patrocínio e assistência de brigadas internacionais de

soldados, de instalar um governo provisório de Angola”.

Divergências internas na UPA levaram a que Holden Roberto fosse

obrigado a “declarar que se ia dar início à acção contra Angola

[e] que certos dirigentes daquela organização iam penetrar em

Angola”. A informação remetia ainda para os apoios que Holden

Roberto e consequentemente a UPA teriam conseguido junto das

autoridades da República do Congo, bem como do ACA, “parecendo

assim provável que esteja procurando obter auxílio financeiro

simultaneamente nos países comunistas e nos Estados Unidos da

América19. Continuando a PIDE o seu trabalho diligente na busca

de informações mais circunstanciadas sobre uma possível

insurreição em massa no norte de Angola, na informação do último

dia do mês de Janeiro, continuava a referir o dia 15 de

17Actividades da UPA e de Holden Roberto, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar,AOS/CO/UL-32 A, Informação nº 88/61-GU da PIDE, secreto, 25 de Janeiro de1961, fls. 33518 Actividades da UPA e de Holden Roberto, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar,AOS/CO/UL-32 A, Informação nº 88/61-GU da PIDE, secreto, 25 de Janeiro de1961, fls. 33519 Actividades da UPA e de Holden Roberto, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar,AOS/CO/UL-32 A, Informação nº 97/61-GU da PIDE, secreto, 26 de Janeiro de1961, fl. 335

Fevereiro como a data de levantamento na região de Nóqui a favor

da independência da colónia portuguesa, acrescentava:

“ A UPA, em colaboração com os seus membros residentes emAngola, está a preparar um plano de terror que principiará porenvenenamentos e assassinatos em locais isolados, tomando parte nesseplano os pretos da área de Nóqui que tenham armas de caça [e]recomenda agora aos soldados negros que não devem desertar, vistoserem mais úteis em Angola (…). Diz-se que os líderes da UPA preparam-se para entrar imediatamente em Angola, seja de que maneira for, vistoestarem convencidos que nunca será possível a entrada no nossoterritório pacificamente [pelo] que todas as armas que apanham sãoimediatamente compradas e levadas para locais desconhecidos e dedifícil acesso, sempre em território português e junto à fronteira.”20

Volta-se novamente à hipótese do envenenamento dos

funcionários brancos “tanto mais que os cozinheiros de todos os

funcionários ao longo da fronteira são indígenas e é por aí que

pensam começar o terrorismo.”21

Ultrapassada a data do dia 15 de Fevereiro várias vezes

glosada, como o início da insurreição armada no Norte de Angola,

no dia seguinte, a PIDE fazia constar que João Eduardo Pinock,

dirigente da UPA muito influente em Matadi, estava “a enviar

mensagens para localidades [de] Angola próximas da fronteira com

a República do Congo, onde existem brancos, com a finalidade de

originar tumultos que se espera possam vir a desencadear-se

nestes próximos dia, sobretudo na área de Nóqui.”22Através do

posto de Nóqui, a polícia política pode saber do interesse que

entre os militantes da UPA ocasionou o assalto ao Santa Maria,

tanto mais que constava que Henrique Galvão queria “levar o

20 A PIDE informava também como e que as armas eram conseguidas. No Congo juntodos militares e em Angola através dos assimilados que as adquiriam legalmentepara o exercício da caça.21 Actividades da UPA, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 A,Informação nº 125/61-GU da PIDE, secreto, 31 de Janeiro de 1961, fl. 33922 Actividades da UPA, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 A,Informação nº 190/61-GU da PIDE, secreto, 16 de Fevereiro de 1961, fl. 343

navio a Conakry a fim de o carregar com armas para as levam

juntamente com elementos da UPA para Angola.” Porém, a meados de

Fevereiro, a euforia dos militantes da UPA estaria a esmorecer,

deixando até de pagar as quotas necessárias ao funcionamento da

futura guerrilha, “pois estão vendo que a independência

prometida em 1 de Janeiro não vem, [levando a que] muitos pretos

portugueses estão de regresso às suas terras de origem.”23

A 3 de Março, a PIDE tinha conhecimento da concentração de

“grande número de elementos da UPA” na área de Kimpangu, na

República do Congo, com o objectivo de “atacarem Maquela do

Zombo, o que esperam fazer até ao dia 7 do corrente mês” e que

outros elementos daquele movimento de libertação “partindo de

Catete e do Dondo, actuarão em Luanda e nas estradas que se

dirigem para sul da Província.”24 Uma semana depois, em nova

informação da PIDE, pode ler-se que “os da UPA concentrados em

Kimpangu (…) aguardam a ordem para o assalto que pretendem

efectuar a Maquela do Zombo, o qual será secundado, na mesma

data, por elementos insurrectos que actuarão no interior da

Província”25, constando também que pensam destruir a ponte

Filomeno da Câmara.

De acordo com uma biografia de Holden Roberto, “ a

infiltração em território angolano começou entre Novembro de

1960 e Janeiro de 1961”, no que coincide com as informações

recolhidas quer no Arquivo de Oliveira Salazar, quer no Arquivo

da PIDE.

23 Assalto ao Santa Maria , ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 A,Informação nº 207/61-GU da PIDE, secreto, 22 de Fevereiro de 1961, fl. 37224 Concentração de guerrilheiros da UPA , ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar,AOS/CO/UL-32 A, Informação nº 247/61-GU da PIDE, secreto, 3 de Março de 1961,fl. 36725 Concentração de guerrilheiros da UPA , ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar,AOS/CO/UL-32 A, Informação nº 276/61-GU da PIDE, secreto, 9 de Março de 1961,fl. 372

“Quatrocentos homens, repartidos em grupos de vinte, com catanas,armas automáticas e granadas, treinados por oficiais do contingentetunisino sediado em Léopoldville irromperam pelas florestas angolanas,para que a insurreição eclodisse, no mesmo dia e à mesma hora. A senhanão podia ser mais enigmática «a filha do senhor Nogueira vai-se casara 15 de Março.” (N’GANGA,2008:110).

Pélissier descreve muito bem a forma como a insurreição foi

preparada, ligando-a aos conflitos dentro da direcção da UPA,

que desde finais de 1960 vinham opondo Holden Roberto ao grupo

de Jean Pierre Bala. A cisão consumada a 24 de Fevereiro de

1961, com a saída da UPA de Jean Pierre Bala a posterior

fundação do MDIA, levou Holden Roberto a endurecer posições e

partir para a luta armada.26Afirma Pélissier que nos inícios de

1961 a UPA encontrava-se perante um grave dilema: agir com

eficácia ou com brutalidade. Os conflitos dentro da organização

fizeram triunfar a segunda preposição, marcando-se o início dos

ataques armados para o 15 de Março, uma data que não era

inocente, bem pelo contrário, pois coincidia com o debate sobre

a situação de Angola no Conselho de Segurança das Nações Unidas,

decorrente do Levantamento de Luanda, a 4 de Fevereiro, mas

também dos ecos internacionais sobre os acontecimentos da Baixa

de Cassange. Pélissier considera ainda ter havido coordenação

entre delegações de países na ONU e a própria UPA, pois a

sublevação “était connue à l’avance de plusiers pays dès la fin

février au plus tarde dès le début de mars. C’est ainsi que les

États Unis auraient averti le Portugal (…) avaint le 8 mars

26 Na biografia de Holden Roberto pode ler-se “a cisão protagonizada por M’Balafragilizou a minha posição junto dos países de língua francesa, que não viamcom bons olhos a eventualidade de uma guerra (…). Portanto ao enveredar peloinício da guerra de libertação sabia que o meu isolamento seria real (…).Começar uma guerra foi um grande risco (…) descobri que não havia escolha. Aguerra era um imperativo, o único caminho” (N’GANGA, 2008:109). Holden estavatambém a ser pressionado por militantes da sua organização, a quem tinha sidoprometida a “libertação” e independência de Angola logo em inícios do ano de1961.

1961, qu’une «explosion allait se produire» s’il n’accordait pas

progressivement l’independence de l’Angola»” (PÉLISSIER,

1978:473). Ciente de que o governo de Salazar nunca aceitaria

sentar-se à mesa das negociações para, à semelhança da França ou

da Bélgica, negociar o processo de autonomia para os seus

territórios ultramarinos, particularmente Angola, os activistas

da UPA que clandestinamente tinham entrado na colónia em 1960,

foram chamados a Léopoldville para receberem instruções e

reenviados para o interior da colónia portuguesa durante o mês

de Fevereiro de 1961, o que é confirmado por notas secretas da

polícia política portuguesa.

O governo português estava por demais alertado para a

iminência da guerra. Olhou para a sublevação da Baixa de

Cassange e entendeu-a como uma revolta de famintos por melhores

condições de trabalho, acicatados por agentes subversivos

provenientes do exterior. Exerceu sobre aqueles camponeses uma

repressão sem limites, mandando testar a capacidade da Força

Aérea recém instalada em Angola, com raids mortíferos sobre

sanzalas, campos de cultivo e populações em fuga, utilizando

bombas de napalm, armas e equipamento da NATO. Fez descer sobre

a revolta de Cassange o mais profundo silêncio, pensando que

assim podia «evitar» outros danos e ignorou as informações de

quem estava efectivamente no terreno, como tão bem notam Aniceto

Afonso e Carlos Matos Gomes, que fazem uma lista dos sinais que

Salazar não quis ver. Assim, não quis perceber o sentido das

deliberações saídas do Congresso que, a 6 de Dezembro, na

capital da União Soviética, reuniu oitenta e uma delegações de

países comunistas, bem como de partidos comunistas e de vários

movimentos de libertação. O Congresso anunciava que um certo

número de países, entre os quais Portugal e as suas colónias

seriam alvos de «actividades subversivas» e “os países nascidos

das antigas colónias francesas, belgas e inglesas deviam cercar

e isolar as colónias portuguesas. O plano previa o desencadear

de uma guerra debilitante mas colónias que facilitasse o derrube

da ditadura e a independência das colónias portuguesas (…)”. Não

deu importância às informações que a PIDE amiúde enviava e que

remetiam para movimentações no norte de Angola, sempre junto à

fronteira, fundamentalmente nas áreas de Nóqui, Maquela do

Zombo, Santo António do Zaire. “A 7 de Março, os Estados Unidos

avisaram Portugal através do seu embaixador em Lisboa [de que se

previam] convulsões graves em Angola, do tipo do Congo, e que

vão votar contra Portugal em 15 de Março. Em 13 de Março de

1961, um informador da PIDE, na povoação de Cuimba, no Norte de

Angola, junto à fronteira, informou que os homens da UPA se

preparavam para fazer uma «grande confusão» ”. Ora, continuam

Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, “o governo português e as

autoridades de Angola sabiam desde 1960 que a UPA ia desencadear

uma ofensiva no norte de Angola. Mantiveram-se ambos, contudo,

apáticos perante estes sinais de alerta sem alterarem as suas

rotinas” (AFONSO e GOMES, 2010:65). A partir do dia 15 de Abril chegam à Presidência do

Conselho descrições detalhadas sobre o que ocorrera no norte de

Angola na madrugada de 14 para 15 de Março. Assim, no posto de

Maquela do Zombo, na noite de 13 para 14 de Março, foi captada

uma chamada do posto de Cuimba.“O chefe da Guarda Fiscal de Buela que [informou que ele e um agenteda PIDE depararam] com uma ponte destruída e cerca de 3km de Cuimba naestrada entre esta localidade e Buela tendo sido simultaneamenteatacados por um grupo de indígenas armados de catanas [e] ao terconhecimento da comunicação tentei entrar em contacto com a Delegação[pois] já tinha informação de que a organização UPA planeava assaltosa vários pontos de Angola (…). Por informações colhidas, sabe-se que oataque à Fazenda da Companhia da União Fabril, situada no valeM’Bridge se desencadeou por volta das 6h, tendo nessa alturaconseguido fugir o encarregado da oficina. Também já consegui saber

que o assalto à fazenda do comerciante Silva de Maquela, situadapróximo do limite de Maquela com S. Salvador fora às 6h, [e] foi de láque os assaltantes [do povo Luango] roubaram gasolina com a qualqueimaram a ponto do rio Luangos, ponte que limita Maquela com S.Salvador. Soube também que posto de Buela fora atacado às 6h do dia 14[e] que o chefe do Posto Administrativo fora atacado na estrada quandose dirigia para Maquela [com a esposa]. Foram barbaramenteassassinados depois de duas horas de maus tratos e autênticasselvajarias. O guarda fiscal também fora barbaramente assassinado peloseu cozinheiro [bem como] o único comerciante que ali residia e opadre da Missão Católica de S. Salvador. Na povoação de Luvaca (…) oataque deu-se também por volta das 6h [e tudo começou] com umaarmadilha ao chefe do Posto da Guarda Fiscal, assassinado a golpes decatana (…). A pista de aterragem de Buela foi inutilizada com troncosde árvores espalhadas pela pista por determinação de um elemento daUPA fardado, vindo da República do Congo, que ali veio conferenciarcom os terroristas daquela localidade.”27

O relato relaciona os assaltantes da fazenda M’Bridge com

originários da Serra da Canda, o que não causa espanto algum,

pois esta região, de difícil acesso, tinha já sido identificada

como ligada à UPA. “Depois dos ataques da aviação” os terroristas refugiaram-se nas matasexistentes a encosta da Serra (…) em grandeS grutas, cabendo em cadauma delas cerca de mil pessoas. As mulheres transportam para essasgrutas muita comida e petróleo [pois] antes do ataque à fazenda houvemuitos indivíduos da Serra que em S. Salvador e Cuimba compraramimenso petróleo para a iluminação das referidas grutas, as quais hámuito vêm servindo para as reuniões de elementos da UPA e ondecombinaram todos os ataques que executaram.”28 Na mesma data de 5 de Abril, a Informação nº 435/61-GU, da

PIDE transcrevia o relatório do Posto de Cuimba. “ No dia 13 de Março, cerca das 9h (…) apareceram no posto [umsenhor] da Sociedade de Plantações Agrícolas do Rio M’Brigde e umempregado daquelas plantações [para] darem conhecimento [que] umservente o tinha avisado de que correria perigosos riscos se durante asemana saísse à noite pois os homens da UPA, que nas últimas semanastinham, entrado no nosso território e outros que haviam de chegar

27 Relatório do Posto de Maquela do Zombo sobre os acontecimentos de 13 para 14de Março, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 C, Informação nº430/61-GU, da PIDE, secreto, 5 de Abril de 1961, fls.299/30128 Idem

vindos do Congo ex-belga, se preparavam para durante a semana fazer«confusão» matando todos os brancos que cá vivessem. Que os primeirosa morrer seriam os administradores, depois os comerciantes eagricultores. O signatário comunicou oficialmente à Administração doConcelho de S. Salvador do Congo. [Nesse dia] constatou um movimentodesusado no comércio. Quase todas as pessoas que entravam nosestabelecimentos, nos dias 13 e 14, compravam fósforos, sal e petróleoem abundância, como não era costume fazê-lo. E um comerciante veiodizer que uma rapariga preta conhecida dele lhe comunicara que todoaquele movimento estava relacionado com a confusão que os da UPAqueriam fazer dia 15. No dia 14, o signatário deslocou-se a Luvaca[onde tudo] andava absolutamente calmo, [passou] pelo povo Tamba-Luvaca [que é] grande e habitado por alguns suspeitos e também nãonotámos nada que fosse suspeito. Quando soube do ataque ao chefe daguarda fiscal de Buela e ao agente da PIDE] reuniu-se com todos oseuropeus da povoação a quem distribuiu armas e munições (…). Depois dauma hora da manhã do dia 15, ouviu-se um tiro a cerca de 200 m doPosto Administrativo [e] cerca das 6h apareceu no Posto [um empregadodas Plantações M’Bridge que] tinha sido assaltado por um grupo enormede indígenas armados de catanas e paus. [Eram] quase todos empregadosnas Plantações”.

A narrativa continua com as dificuldades no

estabelecimento de comunicações com outros Postos para pedido de

auxílio, até no dia 16 “levados pelo esgotamento [e sem apoios] pensou-se fazer uma

retirada na direcção de Maquela do Zombo, pois estávamos crentes deque com os nossos recursos talvez pudéssemos salvar as senhoras e ascrianças. [Porém], cerca das 10h45m vimos entrar na povoação (…) umgrupo de indígenas empunhando catanas, armas gentílicas e paus [e, derepente], todos se atiraram em grande correria cantando qualquer coisa(…). Um dos comerciantes (…) disparou e logo o tiroteio começou,[podendo] afirmar que vi perfeitamente um homem cair com uma bala nocorpo e logo levanta-se e de catana no ar continuar a correr (…). Sóquando chegaram a pouca distância e verificaram que os tiros dapistola-metralhadora estava e ferir e possivelmente a matar muitosdele sé que debandaram e meteram-se no capim”.29

Depois deste ataque, os europeus que residiam em Cuimba

partiram para Maquela do Zombo, atravessando uma estrada cheia “29Relatório do Posto de Cuimba sobre os acontecimentos de 13 para 14 de Março,ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 C, Informação nº 435/61-GU, daPIDE, secreto, 5 de Abril de 1961, fls.302/304

de precipícios com pontes camufladas e ramos de árvores, outras

completamente destruídas e outras bloqueadas com enormes troncos

de árvores”30. O grupo chegou a Maquela do Zombo pelas 21 h do

dia 16 de Março.

Da PSP de S. Salvador do Congo chegaram informações datadas

do dia 16 de Março, onde se fala de estradas cortadas, pontes

destruídas, fazendas incendiadas. “A situação [é] terrivelmente

perigosa, [sendo um dos maiores perigos] a exuberância do capim

que nos obriga a ciladas constantes”31. Aquela cidade estava

completamente isolada por falta de comunicações terrestres.

À Delegação de Luanda da polícia política chegaram

descrições dos ataques da UPA no nordeste de Angola,

precisamente na zona de fronteira, atingindo os postos

administrativos, as zonas comerciais das pequenas localidades e

as fazendas de café que proliferavam na região, tal como tinha

sido previsto um mês antes. Fazendo falar Holden Roberto, João

Paulo N’Ganga, na biografia daquele líder nacionalista angolano,

escreve:

“ A estruturação do 15 de Março era tão ousada que fá-lo irrompersimultaneamente em oito distritos [cumprindo-se todos os objectivos doplano que eram] a) tomada de consciência patriótica generalizada emtodo o território nacional; b) denúncia internacional da necessidadeda abolição do colonialismo em Angola e o terror social, político,económico e cultural que este vinha praticando; c) compreensão dacruel constatação que, contra o colonialismo português. A guerra é aúnica via de libertação da pátria; d) O desenvolvimento da pátriaangolana” (N’GANGA, 2008: 110/111).

Porém, quando as primeiras informações sobre o massacre no

norte de Angola chegam ao circuito dos noticiários

internacionais, Holden Roberto vacilou, procurando suavizar a30 Idem31 Informação da PSP de S. Salvador do Congo, datada de 16 de Março, ANTT,Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32 C, Informação nº 441/61-GU, da PIDE,secreto, 5 de Abril de 1961, fl.305

intervenção da UPA nos acontecimentos. Não é por acaso que numa

notícia do New York Times, publicada a 29 de Março de 1961, se

escreve: “ Holden afirmou que alguns membros da sua organização se

encontram envolvidos nos ataques, mas negou que estivessem actuandosegundo ordens fornecidas pelo partido”. [Para além de recear] maioresviolências a menos que os portugueses «tornem bem clara a sua intençãode abolir o trabalho forçado e iniciar preparativos para garantir umtratamento igualitário aos africanos», [declarava-se] umrevolucionário, «apenas porque um cristão que fica calado perante umcrime, torna-se cúmplice desse crime» [.] Preveniu de que se osportugueses não reformarem rapidamente as suas políticas, Angola podetornar-se precisamente noutro Congo.”32

Holden Roberto justificou ainda os “acontecimentos

trágicos, as atrocidades de guerra” essa “situação

constrangedora” que gostava de ter evitado, com ”um estado de

coisas provocado pela obstinação colonialista de tantos anos de

maus tratos, opressões, humilhações, torturas e morte de

angolanos” (N’GANGA, 2008:118)

Franco Nogueira refere-se a 15 de Março nos seguintes

termos: “Encerram-se em Nova Iorque os debates e de Angola chegam a Lisboanotícias trágicas. Justamente de 14 para 15 de Março de 1961, vagas deterroristas invadem o Norte de Angola. Aboletados e municiados naRepública do Congo, atravessaram em toda a extensão a linha defronteira e, providos de catanas e armas de fogo rudimentares,assaltaram povoações e fazendas. São atacadas, Santo António do Zaire,S. Salvador do Congo, Maquela do Zombo, que se podem considerar quaseraianas; mas são igualmente acometidas Ambrizete, Negage, Mucaba,Sanza-Pombo; toda a Baixa de Cassange está em alvoroço; e osterroristas estão à porta de Carmona. São claros para as autoridades32 Massacres de 15 de Março de 1961, ANTT, Arquivo da PIDE, Processo 1139/59SR, New York Times, 20 de Março de 1961, tradução na fonte, fl. 212. No resumode notícias nº 32, da responsabilidade do Estado Maior do Exército, pode ler-se que Holden Roberto afirmara em Nova Iorque que o seu primeiro objectivo comas acções de 15 de Março “era o de conseguir que [o Conselho de Segurança daAssembleia Geral das Nações Unidas] enviasse a Angola uma Comissão deInquérito”. (Notícias sobre os territórios portugueses, ANTT, Arquivo deOliveira Salazar, AOS/CO/UL-32B, resumo de notícias nº 32, do estado Maior doExército, reservado, 21 de Março de 1961, fls.300/326)

os propósitos de implantar o terror. São óbvios os desígnios de sedirigirem a Luanda. Nos círculos do governo central, na altaadministração, toma-se então consciência de que em Angola há umasituação de guerra, e de que no território, se move guerra contra Portugal 33

”(NOGUEIRA, 2000:216).

Esta, por assim dizer, tomada de consciência tardia da

situação de guerra no território angolano levou a um massacre

indiscriminado, pois além dos brancos visados – funcionários da

administração colonial, fazendeiros e comerciantes, homens,

mulheres e crianças, pereceram milhares de trabalhadores

provenientes de outras regiões de Angola que, na sequência do

trabalho por contrato, tinham sido compelidos a trabalhar nas

plantações de café do norte da Província. Mas desta vez, ao

contrário da baixa de Cassange, como diz Filipe Ribeiro de

Meneses, “esta onda de violência recebeu ampla cobertura na

imprensa portuguesa com o intuito de despertar um sentimento

patriótico de apoio face à agressão estrangeira” (MENESES, 2010:

493).

Dados recolhidos na Informação 3/61/NI, do Estado Maior das

Forças Armadas, permitem perceber até que ponto a

«inconsciência» do governo português tornou difícil uma resposta

célere ao banho de sangue que tingia o Norte de Angola.

“Com a sublevação da Baixa de Cassange ainda não totalmentesanada (…) a situação interna agravou-se extraordinariamente nosdistritos do Congo, Quanza Norte e Luanda [onde] nativos sublevados,sempre em grupos por vezes numerosos, atacaram europeus, fazendas epostos administrativos. Tendo por finalidade dificultar ao máximo asnossas forças estacionadas na área, muitas pontes foram cortadas, bemassim como jangadas foram destruídas [e] a carência ou deficiência demeios de transmissão, por um lado, e a impossibilidade de as forçasarmadas acudirem a todos os pontos que solicitavam apoio, fizeramavolumar a catástrofe (…). Os nativos encontravam-se inicialmentedeficientemente armados, quanto a armas de fogo [mas] em postos de

33 Em itálico no texto original.

fronteiras atacados [devem] ter-se apoderado de várias espingardas,pistolas-metralhadoras, granadas e ainda munições de quantidadeconsiderável. Os locais atacados foram, de Norte para Sul, os deBuela, Cuimba, fazenda M’Bridge” Madimba, Nova Caipenda, Negage,Zalala, Quitexe, Vista Alegre, Aldeia Viçosa, Nuambuangongo e Quibaxe.Muitas plantações ficaram completamente destruídas, apressando-semuitos colonos sobreviventes e recolherem a Luanda. As acçõesterroristas de maior violência localizaram-se na região deNambuangongo, para onde foram deslocadas forças militares. Com odecorrer dos dias, embora a acção dos indígenas fosse bastantereprimida pela actuação do Exército e da Força Aérea,34 não deixavam dese registar ataques às povoações isoladas, cortes e obstruções deestradas e destruição de pontes."35

O pânico que se instalou e a demora na resposta por parte

das forças armadas estacionadas na região, levaram os colonos a

“pedirem com insistência para serem armados36. Dando seguimento a

essa pretensão, mas atendendo no entanto à possibilidade de se

registarem actos de violência indiscriminada”, como de facto

aconteceu.

34 Sobre a repressão exercida sobre os revoltosos, basta ler alguns extractosdo diário de Mário Moutinho de Pádua que, antes de desertar do ExércitoPortuguês, cumpriu serviço militar na zona atingida pelo «furacão» do 15 deMarço. “ Negage, 18 de Maio de 1961. Foram hoje executados às 6 da manhã, 19homens, (…) ontem à tarde estava a ser julgada uma grande quantidade de pretose que lhes tinham batido de uma maneira espantosa. Um tinha um «olho deitadoabaixo» (…). O julgamento estava marcado para as 7 da tarde de ontem (…)tratava-se de uma farsa e os presos iam ser executados no dia seguinte demadrugada (…). No Dondo, dos 3000 nativos existentes antes das revoltas, 2000ou 1000 foram lançados ai rio cortados aos bocados, amarrados uns aos outros;alguns meio vivos amarrados a bocados de mortos (…) Um conhecido meu (…)contou que viu alguns brancos a levar um preto para a prisão. Um deles dizia:“Este já comeu sete orelhas!”. Obrigam-nos às vezes a comer as orelhas dosoutros!” (PÁDUA, 1963:13/15) 35Evolução dos acontecimentos em África (8/3/1961 a 27/6/1961), ANTT, Arquivode Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32B, Informação nº3/61/NI do Estado Maior doExército, secreto, 27 de Junho de 1961, fls.457/508 36 Na transcrição de conversas telefónicas entre o director da PIDE e oMinistro do Ultramar, pode ler-se que a 26 de Março, pelas 22h45m, se afirmavaque “ a situação continua agitada e as populações brancas são dificilmentecontroladas pelas autoridades [pelo] que convinha levar ao conhecimento [deSalazar] que a população diz que neste momento se devia fazer um esforçomáximo, com todos os meios disponíveis em Angola, para dominar a situação,porque ou se domina completamente de seguida ou nunca mais se domina”(transcrição de conversa telefónica entre o Director da PIDE com o Ministro doUltramar, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-30D, PIDE, 26 de Marçode 1961, 22h45m, fls. 42/43)

“Foram organizadas milícias submetidas à autoridade militar[que] começaram a actuar dia 19. Passada a fase de natural confusão,era possível no dia 19 confinar a sublevação entre o limite definido aLeste pela linha Maquela do Zombo-Carmona-Quitexe-Quiculungo e umlimite a oeste definido pela linha S. Salvador- Bembe- Nambuangongo eQuibaxe (…). Na madrugada do dia 21, tendo como ponto de partida VilaSalazar, iniciou-se pelas nossas forças uma operação punitiva.[Contudo] verificou-se que a eficiênci das nossas tropas era muitolimitada, devido ao facto de os nativos se furtarem à sua acçãoajudados pelas óptimas condições do terreno. Assim, a operaçãodecorria demoradamente e, com essa demora, tornava-se cada vez maisproblemática e difícil o alastramento dos actos terroristas de muitosrebeldes que ainda se mantinham em liberdade, nomeadamente nas regiõesde Nambuangongo, na Serra da Canda e nas serranias em torno de NovaCaipemba. Os rebeldes designaram a segunda destas zonas como aRepública Independente da Serra da Canda [que] constitui um óptimolocal de refúgio para muitos rebeldes. Por outro lado, a estaçãochuvosa e a enorme extensão territorial faziam prolongarnecessariamente a acção punitiva pelas nossas forças, o que acarretavaos inconvenientes já referidos (…). Ultimamente tem-se verificado umamaior actividade operacional das forças militares, já porque osefectivos foram aumentando, já porque as condições meteorológicas como seu reflexo sobre o terreno se torna mais favoráveis à deslocaçãodaquelas forças. Foram desobstruídas e reparadas muitas estradas ealgumas pontes danificadas já se encontram reconstruídas, conferindo-se assim melhores possibilidades de movimento às forças terrestre.”37

No resumo de notícia do Estado Maior do Exército, datado de

28 de Março de 1961, lê-se que Portugal enviara “ urgentemente

reforços para Angola onde a situação entrou em fase de repressão

com o exército e a aviação actuando contra os rebeldes [tendo]

aviões militares portugueses [sido] alvejados por armas

automáticas rebeldes.”38Porém, a 1 de Abril, o Ministro do

Ultramar fazia chegar à Presidência do Conselho as inquietações

do Comandante-Chefe das tropas em Angola.

37 Evolução dos acontecimentos em África (8/3/1961 a 27/6/1961), ANTT, Arquivode Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-32B, Informação nº3/61/NI do Estado Maior doExército, secreto, 27 de Junho de 1961, fls.457/50838 Notícias sobre os territórios portugueses, ANTT, Arquivo de OliveiraSalazar, AOS/CO/UL-32B, resumo de notícias nº 33, do Estado Maior do Exército,reservado, 28 de Março de 1961, fls.329/352

“Continuava a acção repressiva contra os núcleos de insurrectosainda não dominados nas áreas sublevadas do Congo e do Quanza Norte,sendo todavia o trabalho dificultado pela natureza do terreno. Porfalta de meios a acção contra Nambuangongo terá de ser exercida pelasmesmas tropas que não pode deslocar para lá na melhor das hipótesesantes de 10 dias. A falta de meios impossibilita também a ocupaçãomilitar das regiões sublevadas que as tropas atravessam em acçõespunitivas [pelo que] necessitamos de mais ocupação militar emilitarizada (…). Quanto às forças militares [e] na falta de caçadoresespeciais (…) seriam muti úteis companhias de atiradores eparaquedistas.”39

Apesar de “no povo, nas classes dirigentes, nos meios

militares” haver “o sentimento de perigos indefinidos, a

ansiedade perante o dia de amanhã, uma psicose de alucinação

colectiva perante o que se pensa ser um cerco e o que se julga

ser uma derrocada iminente”, em Lisboa, “Salazar continua

silencioso” (NOGUEIRA, 2000:224). Enviou, porém, o Ministro do

Ultramar a Angola que, no regresso, traçou um cenário negro da

situação na colónia, devendo o governo preparar-se para “uma

guerrilha clássica, com todo o desgaste material e político que

essa luta comporta, [pois] com as bases logísticas na vizinha

república do Congo, os terroristas atravessam a fronteira nos

cantos mais escusos, infiltram-se, confundem-se com as

populações locais, dedicam-se a tarefas pacíficas durante o dia

e à noite atacam. Quando em fuga, [os terroristas], acolhem-se

na vasta área, densa e difícil, que corresponde à zona dos

Dembos; é esse o seu reduto. [Trata-se, pois] de uma situação

prolongada e corrosiva”( NOGUEIRA, 2000:231).

Em meados de Abril, cerca de um mês depois dos massacres de

15 de Março, a corrente reformista militar que, desde meados da

década de 50, pugnava por uma abertura política, economia e

colonial do regime, através de Ebrick, tentou um golpe de39 Insurreição em Angola, ANTT, Arquivo de Oliveira Salazar, AOS/CO/UL-40,ofício nº 119/B/6/4 do Gabinete do Ministro do Ultramar para a Presidênciado Conselho, secreto e urgente, 1 de Abril de 1961, fls.15/16

estado, a «Abrilada», que redunda no fechamento do regime sobre

si, na demissão do Ministro da Defesa, com Salazar a assumir

esta pasta, e posterior remodelação do governo. E pela primeira

vez, desde que Angola tinha sido varrida por acontecimentos que

encaminham para uma guerra de guerrilha e desgaste, o Presidente

do Conselho apresentava-se à nação. Assim, a 13 de Abril, aos

microfones da Emissora Nacional e através da Televisão, Salazar

falava aos portugueses ”Se é precisa uma explicação para o facto de assumir a pasta daDefesa nacional, mesmo antes da remodelação do Governo que severificará a seguir, a explicação pode concretizar-se numa só palavra,e essa é Angola. Pereceu que toda a concentração dos poderes daPresidência do Conselho e da Defesa Nacional, bem como a alteração dealguns altos postos noutros sectores das forças armadas, facilitaria eabreviaria as providências necessárias para a defesa eficaz daProvíncia e a garantia da vida, de trabalho e de sossego daspopulações. Andar rapidamente e em força é o objectivo que vai pôr àprova a nossa capacidade de decisão. Como um só dia pode pouparsacrifícios e vidas, é necessário não desperdiçar desse dia uma sóhora, para que Portugal faça todo o esforço que lhe é exigido a fim dedefender Angola e com ela a integridade da Nação”40

John P. Cann considera que durante um mês Portugal e Angola

pareciam paralisadas e incapazes de reagir, pois “a resposta

imediata só pode ser dada com os cerca de 1000 militares

europeus e 1500 africanos estacionados nas localidades da área

afectada e com o Esquadrão de Reconhecimento de Luanda. Estas

unidades juntamente com uma Companhia de Caçadores Pára-

quedistas e duas Companhias de Caçadores Especiais iniciaram a

reocupação dos Dembos. Só em 1 de Maio chegaram os Batalhões de

Caçadores 88e 92. No período de Julho-Agosto chegaram a Angola

aproximadamente 20 000 reforços. Estas tropas comportavam-se com

emotividade bombardeando e metralhando áreas que não tinha sido

afectadas pelos distúrbios. Este terror indiscriminado afectou

40 Apud. NOGUEIRA; 2000:244/245.

grandemente a a credibilidade portuguesa e as relações raciais,

e nos nove meses seguintes levou mais de 150 000 africanos a

refugiarem-se no Congo” (CANN, 2005:53). Estes,

fundamentalmente, mulheres, crianças e velhos, chegavam à

fronteira em mau estado físico, desprovidos de recursos e muitos

deles feridos por balas. Nos campos de refugiados eram

fotografados e ouvidos em declarações por elementos da UPA, e

mais tarde pelo MPLA através do CVAAR que, no Congo

Léopoldville, prestava apoio às populações angolanas no exílio.

Desta forma, os movimentos de libertação conseguiram material

para divulgar junto da imprensa estrangeira e da comunidade

internacional a situação vivida em Angola, agora contada pelo

lado de quem sofreu as represálias dos colonos europeus e as

acções repressivas do exército colonial.