O MATERIAL E O IMATERIAL

34
Comunicação apresentada em 30 de Outubro de 2010 no “Seminário de Filosofia e Direito” da Sociedade Portuguesa de Filosofia, sob o título BERNARD STIEGLER OU O REGRESSO DO PENSAMENTO O IMATERIAL E O HIPERMATERIAL A questão do imaterial e do hipermaterial é um dos principais temas da obra de Bernard Stiegler, que atravessa, directa ou indirectamente, toda a sua já extensa bibliografia, e é particularmente destacada no livro publicado em Fevereiro de 2008 “L’économie de l’hipermatériel et psycopouvoir” - uma recolha das entrevistas concedidas em 2005 a Philippe Petit e Vincent Bontemps, Como Stiegler acentua, na obra acima citada, o imaterial não existe. O recurso a esta expressão é uma solução de facilidade a que, por vezes, têm recorrido alguns espíritos de primeiro plano, como, por exemplo, André Gorz (no seu livro L’Imatériel, Connaissance, Valeur et Capital , Galilée, 2003), e

Transcript of O MATERIAL E O IMATERIAL

Comunicação apresentada em 30 de Outubro de 2010 no “Seminário de Filosofia e Direito” da Sociedade Portuguesa de Filosofia, sobo título

BERNARD STIEGLER OU O REGRESSO DO PENSAMENTO

O IMATERIAL E O HIPERMATERIAL

A questão do imaterial e do hipermaterial é um dos

principais temas da obra de Bernard Stiegler, que

atravessa, directa ou indirectamente, toda a sua já extensa

bibliografia, e é particularmente destacada no livro

publicado em Fevereiro de 2008 “L’économie de l’hipermatériel et

psycopouvoir” - uma recolha das entrevistas concedidas em

2005 a Philippe Petit e Vincent Bontemps,

Como Stiegler acentua, na obra acima citada, o imaterial

não existe. O recurso a esta expressão é uma solução de

facilidade a que, por vezes, têm recorrido alguns espíritos

de primeiro plano, como, por exemplo, André Gorz (no seu

livro L’Imatériel, Connaissance, Valeur et Capital, Galilée, 2003), e

se caracteriza por confundir o imaterial com estados

evanescentes da matéria, os quais, como Stiegler insiste,

continuam a ser estados da matéria, como não poderia deixar de

ser.

Como é sabido, toda metafísica ocidental sempre pensou

por oposições - a matéria e a ideia, o corpo e o espírito,

o sensível e o inteligível, o bem e o mal -; a este

pensamento por oposições, Stiegler procura contrapor, um

pensamento da composição, (composição de tendências e

contra tendências), como adiante explanarei com um pouco

mais de pormenor.

Dizer redondamente que o imaterial não existe, não

implica que tudo o que é, seja material. Como pode esta

afirmação compatibilizar-se com a importância que Stiegler

atribui ao espírito e ao valor-espírito que, como já dizia

Paul Valérie, em 1939, estava já em significativa baixa, e

que, deste essa data, só muito raramente deixou de decair?

Não se trata de nenhum enigma ou de um jogo de palavras: há

que notar que o título que escolhi para esta exposição foi

o de “Bernard Stiegler ou o regresso do pensamento”, o que quis

significar é que Stiegler realmente pensa, e pensar é

fundamentalmente fazer distinções, distinções conceptuais.

Pensar é distinguir, discriminar, ou seja precisamente

o contrário do slogan niilista, pretensamente de esquerda,

que diz ser preciso “acabar com todas as discriminações”, ou seja,

2

aplanar, arrasar, nivelar, não fazer diferenças, deixar de

pensar; ainda está por fazer o inventário de todas as

devastações que resultaram do simples facto de a esquerda

ter deixado de pensar, o que terá acontecido na viragem dos

anos setenta para os anos 80 do século XX. Ora pensar é

distinguir, desde logo, distinguir o plano das existências

e o plano das consistências. Aquilo que consiste é

infinitamente mais importante do que aquilo que existe. O

espírito é o que há de mais importante, e mais elevado,

precisamente porque não existe, mas consiste. E quando

utilizei o advérbio “infinitamente” fi-lo com toda a

intenção. O espírito consiste como o plano onde a infinidade

se projecta. E, na base do espírito está o desejo cujo

objecto é, por natureza, infinito, porque não se confunde

com um objecto de necessidade. Tudo poder ser um objecto do

desejo, mas o objecto de desejo só se torna incalculável,

na medida em que, como objecto existente, se projecta no

plano das consistências, onde se singulariza e se torna

incomparável. O mesmo se passa no domínio do saber, os

objectos do saber são calculáveis, mas o saber tem uma

natureza infinita. Se os objectos do saber são calculáveis,

o saber, em si mesmo, é infinito e não é totalizável. O

saber é o que liga o cálculo e o infinito: e é a isso que

se chama a sublimação. É por isso que os objectos do saber

só ganham sentido quando se projectam no plano das

consistências. O ponto geométrico não existe: não está no

espaço nem no tempo. É uma idealidade. Os objectos do saber

são calculáveis, mas sobre a base de incalculáveis e

3

indemonstráveis e é por isso que se tornam objectos ideais

cuja calculabilidade não se reduz à que rege o reino das

subsistências. É este mecanismo de projecção que constitui

o horizonte da sublimação sob todas as suas formas. A

sublimação construi planos de consistência que vão das

regras de delicadeza, até à teoria da relatividade

einsteiniana, passando pelo amor, pela filosofia, o

desporto, a arte, a religião e mil outras coisas que são os

objectos das paixões sublimantes e sublimadas. Essa é a

vida, e a via, do desejo capaz de produzir objectos de

saber, sublimando a sexualidade que é a base da

subsistência, e transformando-os em objectos de

conhecimento ou de adoração que transportam sempre consigo

um mistério1, o da essência infinita de todo o saber. Se os objectos

do saber não transportassem consigo esta dimensão que é da

ordem do mistério, que não é redutível ao cálculo e à

administração da prova, eles não seriam idealidades,

objectos do saber e da sublimação, objectos do que chamamos

espírito, onde se concentra tudo o que é elevado.

Na base de tudo isto está algo de extraordinariamente

importante - não a recusa em bloco de todo o pensamento das

Luzes - mas o reconhecimento de que uma parte, pelo menos,

do pensamento das Luzes, designadamente aquela de onde

brotou o espírito do capitalismo, saído da ética

1 Este mistério corresponde ao que Chesterton chamava o “mínimomístico” – a consciência, que os outros animais não podem ter,de que as coisas são. Ou, como dizia Pessoa, “o mistério dascoisas debaixo das pedras e dos pés”.

4

protestante, caiu na tentação de reduzir o mundo da crença

ao mundo do saber, reduzindo a questão da razão à questão

da ratio e da calculabilidade.

Ora conhecer não é acreditar. Não tem sentido dizer que

se acredita no teorema de Pitágoras. Só se pode acreditar

ou deixar de acreditar naquilo de que também pode duvidar-

se, precisamente porque é incalculável. Procurar dissolver,

ou reabsorver, o mundo da crença no mundo do saber é um

absurdo; mas é um absurdo do qual não é nada fácil

libertar-nos, porque é ele que está na base do pensamento

por oposições que dominou toda a metafísica ocidental até

aos nossos dias.

Nenhuma sociedade pode funcionar se não for capaz de

projectar num horizonte de crença algo que não pode ser

objecto de um saber e que, no entanto, é constitutivo de

todas as formas do saber. Todas as formas do saber (desde o

saber-viver, até ao saber teórico, passando pelo saber-fazer)

irradiam a partir de um aparelho de projecção de crenças

que se distinguem dos objectos do saber (porque saber não é

acreditar) mas sem as quais os objectos do saber não

poderiam existir.

Quando se aceita reduzir a razão à calculabilidade, ou

seja, quando se projecta eliminar o incalculável, o que

seria reduzir a crença à confiança, a que também se chama

crédito, o resultado só pode ser paradoxalmente, a

5

destruição dessa confiança que se queria entronizar. Uma

das obras fundamentais de Stiegler intitula-se precisamente

Descrença e Descrédito2 e contém uma análise muito pormenorizada

das questões a que aqui aludimos de um modo que

reconhecemos ser tão sintético que está em completa

desproporção com a importância que lhes atribuímos.

A conceptualização da confiança como objecto possível

de um cálculo provoca a liquidação da crença como experiência

da indeterminação do futuro, como porvir, para além do devir (que é

cego) e como abertura esperada de um horizonte irredutível

ao cálculo e que só pode ser objecto de uma vontade, essa

vontade a que hoje renunciaram os políticos descrentes ou

cínicos, e os seus milhões de seguidores ou servidores.

Porque a confiança não é possível sem crença, a confiança

calculada arruína-se a si mesma e constitui o próprio

princípio da decadência das democracias industriais.

O capitalismo é um processo histórico de transformação

que teve o seu início e seguramente terá o seu termo sem

que hoje possamos saber quando e onde. É uma época de

individuação psicossocial que não acabou ainda, e onde se

exprimem, de modo original, tendências (a questão da

2 Mécréance et Discrédit, Paris, éditions Galilée, 2004-2006 em 3volumes intitulados 1. La décadence des démocraties industrielles, 2. Lessociétés incontrôlables des individus désaffectés e 3. L’esprit perdu du capitalisme.Há uma tradução portuguesa do volume I das Edições Vendaval.2004. Há um texto de Paul Claudel que Stiegler gosta de citarque diz “É necessário que haja, no poema, um número que impeça acontagem”.

6

composição é essencial) mas que poderá vir a acabar, muito

mal - como decomposição das tendências - de um modo brutal e

prematuro. Se há que procurar impedir que acabe muito mal,

é preciso encontrar uma via que permita que esta individuação

prossiga e acabe bem, ou seja, que conduza a outra coisa,

que, hoje, somos incapazes de imaginar porque será algo de

novo e incalculável. A questão supremamente actual não é a

de acabar com o capitalismo, mas a de evitar que se destrua

e, de caminho, nos destrua a todos nós. Isto não significa

que o capitalismo seja eterno e, muito menos, que

represente o estado final da História, como imaginaram e

continuam a imaginar os novos leninistas da revolução neo-

conservadora dos anos oitenta de cujas devastações

continuamos a sofrer.

A crítica do capitalismo contemporâneo, enquanto

hegemonia da subsistência e negação da existência, precisa de

colocar, em primeiro plano, a questão da consistência e da

crença que, nesse plano, se constitui e consiste.

A CRENÇA é uma forma de relação ao TEMPO, enquanto a

confiança calculadora é necessariamente auto-destrutiva e

representa uma negação do tempo. A crença capaz de inspirar

confiança, tem que ser e não pode deixar de ser, também um

receio. A palavra grega elpis significava simultaneamente

esperança (expectativa) e medo. São duas emoções que, como

sabia Spinoza, tanto podem compor-se como decompor-se. A

esperança pode dar lugar ao ressentimento e o medo ao

7

devir-pânico das multidões. Se quisermos ultrapassar a

economia de subsistência e da fome a que o capitalismo,

hoje, tende a reduzir-nos, há que postular uma crença que

seja também económica, mas em termos de uma economia libidinal,

simbólica e espiritual, como economia da singularidade.

O que é uma singularidade? Uma singularidade é uma

incarnação - social, histórica, psíquica - daquilo a que

Stiegler chama o consistente. O consistente é o que

institui um outro plano diferente do plano das existências:

é o que não pode ser objecto de uma prova e, muito menos,

de um cálculo. O existente é o que existe no espaço e no

tempo e que, nessa medida é calculável. O consistente, como

singular, é um objecto de sublimação. Uma existência

humana, ou, como Stiegler por vezes prefere dizer, não-

inumana, constitui-se projectando-se para objectos de

consistência ou de sublimação (objectos de amor sob todas

as suas formas: amor da minha mulher, amor da geometria,

amor da arte, amor da pátria, de Jesus, da sabedoria, etc.

etc. …) sem o que não é senão uma pura subsistência.

Começamos a ver o que tudo isto tem que ver com o

espírito e a elevação. Toda a existência é um combate, toda

a individuação é um combate, toda a política é um combate

e, em primeira linha, um combate contra o seu rebaixamento

ao nível das meras condições de subsistência. Toda a

existência tem que lutar contra o que nela mesma tende a

8

renunciar à existência. E a renúncia à existência é uma

renúncia à sua projecção como futuro, isto é, como elevação.

O homem, o indivíduo psico-social que habitualmente se

designa assim, é um ser cujo movimento fundamental consiste

em elevar-se – o que se inicia com a conquista da posição

vertical que é também, no mesmo fôlego, a conquista da

tecnicidade, isto é de uma mobilidade que passa pela sua

capacidade artefactual, as suas artes e ofícios, os seus

saberes e os seus poderes.

No entanto, este ser também sabe, antes mesmo de

qualquer experiência, que é habitado por um cansaço e uma

fragilidade que o puxam para baixo e sabe que tudo aquilo

que os seus antepassados conquistaram e que constitui a sua

superioridade, é tão frágil como ele. E é por isso que tem

que combater contra tudo o que, em si mesmo, poderia levá-

lo a deixar de existir. A pulsão de vida só se constitui

como uma tendência que tem que compor com a pulsão de

morte, como composição reiterada do sincrónico e do

diacrónico.

Deixar de pensar a razão como cálculo, ou como ratio,

corresponde a pensá-la como motivo, móbil, desígnio, como

projecção de um futuro aberto e indeterminado.

9

**

Após este longo rodeio que nos permitiu, senão

explanar, pelo menos sugerir, de forma por certo

demasiadamente sintética e alusiva, alguns temas essenciais

do pensamento de Bernard Stiegler, é tempo de regressar ao

tema deste papel que era, se bem se recordam, o imaterial e

o hipermaterial.

Para Stiegler, o imaterial não existe: não há nada que

não seja um estado da matéria e para produzir estes estados

evanescentes da matéria, onde muitos bons espíritos julgam

encontrar o imaterial, que melhor se diria hipermaterial, e

para construir o hipermaterial, é preciso imenso material,

uma imensa aparelhagem.

Pode chamar-se hipermatéria a um complexo de energia e de

informação onde não é possível, e nem sequer faz sentido,

distinguir a matéria da sua forma. É o que se descobre com

a mecânica quântica, e implica a superação do que Simondon

designava como o esquema hilemórfico, ou seja, o esquema

que impõe um modo de pensar segundo um par de conceitos, a

forma (morphe) e a matéria (hyle) como opostos, um ao outro.

Segundo Stiegler, é hipermaterial um processo em que a

informação (que se apresenta como forma) é na realidade um

complexo de estados de matéria produzido por aparelhos

10

diversos, dispositivos tecnológicos no seio dos quais a

oposição de matéria e forma não faz qualquer sentido.

Aquilo a que assistimos diariamente, mesmo no plano

anódino da vida quotidiana, não é uma desmaterialização

mas, pelo contrário, uma hipermaterialização: tudo é

transformado em informação, através de aparelhos que a

tornam controlável ao nível do nanómetro e no nanossegundo.

A questão não é a da imaterialidade, mas tão só da

invisibilidade da matéria. A hipermatéria torna-se

portadora dos seus próprios meta-dados, como se diz nas

tecnologias cognitivas.

Vivemos hoje num mundo onde os processos motores e

mentais do nosso sistema nervoso central podem ser

replicados, copiados, gravados, transformados,

exteriorizados e materializados sob outras formas: pode-se,

por exemplo, transportar algo que se materializou por um

determinado estado do meu cérebro, da actividade da minha

laringe, da minha caixa torácica, o que se chama a minha

voz, que atinge os vossos ouvidos sob a forma de ondas

sonoras (que poderiam ser visualizadas por meio de um

osciloscópio), para uma gravação digital (uma série de

zeros e uns) num aparelho de bolso que poderá ter uma porta

UBS, um suporte de silício: o imaterial não existe, nunca

existiu e jamais existirá.

11

Em contrapartida, a informação pretensamente

“desmaterializada” é descodificada por discretização e

depois transmitida, o que permite pensá-la analogicamente

como imaterial em relação ao seu suporte de origem. Mas,

realmente, ela é sempre já informada por algo de material.

Isso é tornado possível pela “matéria inorgânica organizada” que

é a organização técnica da matéria que não se sabia pensar

antes de Gilbert Simondon3. A matéria inorgânica organizada

faz surgir um novo regime de individuação entre os seres

inertes e minerais e o dos seres orgânicos e vivos: este

terceiro reino do inorgânico organizado vai desde o sílex

talhado da pré-história até ao gravador com porta USB ou

ainda ao novo protocolo da Internet o IPV 6.

A gramatização (como discretização do contínuo) aparece

no paleolítico superior como possibilidade de

exteriorização da memória e as primeiras listas de sistemas

de engramagem, com listas finitas de elementos discretos,

desenvolvem-se mais tarde no neolítico. Mas Platão, no

Fedro, vai “esquecer” estes processos, e lançar um anátema

sobre a questão da exteriorização da memória, que considera

sofística, desvalorizando a hipomnese em relação à anamnese

e fazendo da reminiscência purificada de toda contaminação

mnemotécnica o cerne da sua dialéctica. Como diz Stiegler,

será preciso esperar 2500 anos pelo pensamento Edmund

Husserl para que a questão volte a surgir, mesmo se é

3 Vide Gilbert Simondon, Du mode d’existence des objects techniques, Aubier, 1986.

12

verdade que Leibnitz, Condorcet e alguns outros, tenham

tentado reactivar a olvidada questão.

Esta famosa distinção entre a anamnese e hipomnese foi

a distinção fundadora da metafísica ocidental, com todo o

seu cortejo de oposições. É ela que está na base da famosa

teoria das Ideias que é provavelmente chave-mestra de todo

o pensamento ocidental até aos nossos dias. Para Platão,

que conceptualiza a transcendentalidade das ideias na

linguagem quase mitológica da Grécia dos aedos: conhecer é

recordar e sobretudo recordar de uma maneira viva, na

verdade do diálogo, e na vida do presente vivo, como dizia

Husserl, o que é o contrário do que faziam os sofistas. Com

efeito, estes desenvolvem técnicas de memorização,

mnemotécnicas que relevam daquilo a que Platão chama

hipomenese que, como a escrita e a retórica, mortificam a

memória: objectivam e exteriorizam a memória em objectos

hipomnésicos e, deste modo, enfraquecem-na, debilitam-na,

permitindo designadamente a manipulação da memória viva e

das almas de que são memórias, um pouco como Patrick Le

Lay4 pôde afirmar que aquilo que a televisão é capaz de

produzir é o“tempo de cérebro disponível”. O caso é que, para

Platão a anamnese é radicalmente distinta da hipomenese;

há, não só que distingui-las, como opô-las de modo radical.

Em consequência, Platão opõe-se ao livro, o que é

ligeiramente paradoxal, posto que escreveu bastantes, e não

4 Patrick Le Lay foi o PDF da TF 1 que afirmou que a missão da televisão era produzir “tempo de cérebro disponível” em prol dos seusanunciantes, designadamente a Coca-Cola.

13

dos piores. Hoje a questão das relações entre anamnese e

hipomenese é mais actual do que nunca, como poderá

adivinhar-se pela referência a M. Patrick Le Lay.

Há um texto de Bernard Stiegler que se chama

precisamente “Anamnese e Hipomenese” que tem por subtítulo

“Platão como primeiro pensador da proletarização”.

Vivemos hoje na época em que se verificou uma expansão

extraordinária das mnemotecnologias hipomenésicas em todos

os domínios e todos os escaninhos das nossas vidas, desde

os telefones móveis, as redes digitais, o GPS, os sistemas

de apoio à decisão, os meios de comunicação de massa em

geral, até aos “chips” RFID e à biónica. Estamos em plena

revolução hipomenésica e uma grande parte das tensões que

atravessam, neste momento, o mundo são induzidas por esta

revolução.

Para Stiegler, não se pode opor a anamnese à hipomnese,

mesmo que seja indispensável distingui-las: como é

evidente, há hipomenese sem anamnese, mas, contrariamente

ao que sustenta Platão, não há anamnese sem hipomenese. O que

faz com que o saber seja saber, é a sua transmissibilidade

de geração em geração. Esta transmissão torna-se possível

pelo facto de que toda a técnica, todo o instrumento,

desempenha espontaneamente um papel mnemotécnico – o sílex

talhado, por exemplo, conserva, de per si, uma parte da

memória dos gestos da obra de quem o talhou. A hipomenese

14

generalizada, deste modo, isto é, a técnica pode ser

descrita, como fez Leroy-Ghouran, como uma terceira memória

que acresce à memória germinal e somática do vivo sexuado,

e aparece como algo de constitutivo da humanidade, sendo

que esta representa a aparição, na história dos seres

vivos, de uma forma de vida a que se chama existência. Esta

ex-sistência é o que supõe um ex-teriorização numa técnica que

se torna espontaneamente hipomnésica, e torna igualmente

possíveis as manipulações que Platão denunciava na

sofística, e que hoje constituem uma questão que se coloca

à escala industrial e mundial, quando as mnemotécnicas se

tornam as mnemotecnologias que estão hoje no cerne da

dinâmica económica: o hipermaterial é também um psico-poder.

Apesar de tudo o que nos quer fazer acreditar o

neurocentrismo ambiente, a memória é conservada por outros

vectores que não são os da via neurológica (somática) ou

genética (germinal): todos os seres vivos sexuados são

constituídos por duas memórias, a memória da espécie,

genética, e a memória nervosa individual, mas os seres humanos,

enquanto seres vivos que ex-sistem, têm uma terceira memória

(epifilogenética) e é ela que abre a possibilidade daquilo a

que chamamos a cultura e o espírito.

Se, hoje, pode parecer fora de moda ou, inclusivamente,

reaccionário, falar de “elevação”, trata-se, como diz

Stiegler, de uma ideia feita (tão característica da

15

“bêtise”5 de que falava Flaubert); para Bernard Stiegler, o

que é profundamente “reaccionária” é essa ideia feita (ou,

neste caso, mal feita), e o que é absolutamente

revolucionária é a necessidade de elevação.

O facto de que a sexuação, o instinto sexual possa

transformar-se em pulsões ligadas por aquilo a que Freud

chama libido, que é uma energia capaz de produzir uma

economia libidinal, supõe que essa energia possa desligar-

se do objecto sexual e esta possibilidade de separação (que

é a possibilidade da elevação) está essencialmente ligada a

esta terceira memória, na medida em que esta é constituída,

nas palavras de Leroy-Ghouran, pela mobilidade dos objectos

técnicos. Ao contrário do que se passa com os outros

animais cujos órgãos lhes são dados pela Natureza, o ser

humano, enquanto ser técnico, dota-se de órgãos movíveis, e

é esta mobilidade dos objectos técnicos que induz a

mobilidade do objecto do desejo. E é esta característica

que permite o que Freud descreve como sublimação e como

capacidade de fixação da libido sobre qualquer objecto,

fetiche ou perversão. Como observa Stiegler, na economia

libidinal também há “meios de produção” e estes meios são

técnicos e também essencialmente farmacológicos,

estruturalmente ambivalentes, ao mesmo tempo, remédio e

5 Prefiro o termo francês “bêtise” porque a “esta não é aestupidez; a estupidez é a imbecilidade ou a idiotia ao passoque a “bêtise” é o que o nos aproxima dos animais, como mostra aetimologia, que não conhecem o desejo e são guiados peloinstinto (como se só tivessem ideias feitas por medida).

16

veneno (farmaka) como diz Platão da hipomenese6. É esta

memória (a que Stiegler chama epifilogenética) que abre a

possibilidade do inconsciente.

Como se terá já compreendido, Stiegler, procura

mostrar, com e contra Platão, que toda a memória é

hipomenésica; a memória, o que também quer dizer a

singularidade e a imaginação, supõe sempre técnicas de

memorização. A minha memória existe naquilo que faço. Em

toda a sociedade, em toda a relação humana, em todo o

gesto, desde o mais banal, como lavar os dentes, ao mais

elaborado, há sempre um objecto técnico ou um meio técnico

que suporta um elemento de memória. Nem a memória social

nem a memória individual existem simplesmente nos cérebros

das pessoas: a memória está nos artefactos e nas relações

que os corpos e os espíritos mantêm com este artefactos e

através deles, entre si. É isso que se chama a hipomenesis,

ou seja, a artificialização e exteriorização técnica da

memória.

É esta exteriorização da memória que está na base do

processo de gramatização que, como referimos, começa no

paleolítico superior, prossegue no neolítico, e se vai

6 É na sua obra de 2008, Prendre Soin 1. De la jeunesse e des générations,Flammarion que Stiegler desenvolve o projecto de umafarmacologia geral, a partir do famoso estudo de Derrida LaPharmacie de Platon, incluído na colectânea La Dissemination, dopróprio Fedro e dos estudos de Foucault, da última fase,dedicados às Techniques de soi.

17

amplificando ao longo da história que, para Stiegler é um

processo individuação ao mesmo tempo psíquica, colectiva e técnica.

No século XVIII, duzentos anos depois da invenção da

imprensa, o movimento de gramatização sofre um alargamento

de um novo tipo que irá assumir uma enorme importância: o

da gramatização do gesto humano. Adam Smith terá sido um

dos primeiros autores a observar, com toda a precisão, o

funcionamento de uma máquina e o modo como reproduz o saber

do operador. A sua análise será retomada por Marx. Há

depois uma série de etapas que seria fastidioso enumerar

que são essenciais para compreender a emergência de novos

tipos de engramagem da memória, sob formas perceptivas,

auditivas ou visuais. Com a era da reprodutibilidade

mecanizada, segundo a expressão de Walter Benjamin7,

atinge-se um novo estádio da gramatização: desenvolve-se a

fotografia, a fonógrafo, a telégrafo, logo a seguir o

cinematógrafo ou animatógrafo, e, depois, a rádio e a

televisão.

Esta etapa do processo de gramatização possui uma

característica inédita em relação a todas os que o

precederam: é capaz de reproduzir de uma maneira

absolutamente exacta o tempo dos objectos que duplica, pelo

que se torna capaz de captar a atenção daqueles que contemplam

estas reproduções. Stiegler aborda estas fantásticas

ilusões, na sua “teoria dos objectos temporais industriais”7 Walter Benjamin, A obra de arte na época da sua reprodutibilidademecanizada. Existe tradução portuguesa.

18

exposta pormenorizadamente nas suas obras La Technique et le

Temps 3. Le temps du cinéma, Galilée, 2001 e De la misère symbolique 1.

‘L’époque hiperindustrielle, Galilée, 2004. Hoje, tais objectos

vieram a ganhar um relevo que, ainda há pouco tempo, seria

difícil imaginar.

No século XVIII um camponês da província só ouvia

música quando ia à missa ou havia festa na aldeia. Hoje,

temos que fugir da música, quando é possível, porque não é

fácil escapar-lhe. Há uma constante emissão sonora que se

tornou “invasiva”; a música invade-nos, submerge-nos, nos

aeroportos, nos supermercados, no barbeiro… somos

literalmente inundados pela música. As nossas consciências

são constantemente solicitadas por iPods, telefones móveis

e muito em breve, a difusão da televisão nos telemóveis.

Estamos muito próximo de uma captação da atenção dos

indivíduos durante dez horas diárias. É a época que

Stiegler analisa como a era do psico-poder.

A tentação maior é a de conseguir submeter a atenção a

uma captação integral, conseguir a mobilização de todo o

“tempo de cérebro disponível” – o que equivale a uma

destruição da atenção. Porque a atenção é algo que se forma

lentamente, através de um sistema de cuidados complexo, que

vai desde os primeiros gestos que a mãe consagra ao seu

bebé, até às formas mais elaboradas da sublimação que

passam por tudo o que constitui o super-ego.

19

Não é muito difícil captar a atenção de uma animal

criando reflexos condicionados que se assemelham a

expectativas, como fez Pavlov com o seu cão; trata-se de

comportamento reflexos automáticos, que são o contrário de

uma verdadeira expectativa que precisamente pressupõe a

atenção. A atenção não é simplesmente um comportamento

psicológico: é igualmente um comportamento social, uma

relação ao outro, que nos surge como um outro precisamente

através dos seus objectos que, sendo os seus objectos,

estão investidos do seu espírito, são já o outro que pode

ser anónimo, mas os objectos (as coisas) carregam a

presença do que se chama um mundo e finalmente, o Mundo.

Para alguém religioso, este mundo deve ser objecto de

atenção porque é o mundo de Deus; mas eu posso não ser

religioso e ser atento ao mundo. Isso quer simplesmente

dizer que sou dotado de um espírito, de uma cultura, que me

liga a este mundo como responsabilidade quanto ao seu

porvir e como capacidade que detenho, de inscrever este

porvir do mundo, no devir cego a que mecanicamente está

sujeito, principalmente se não fizer nada.

Todavia, é extremamente simples criar reflexos

condicionados – ou seja, anular toda a responsabilidade. É

como uma criação de circuitos neuronais no cérebro de um

cão. É jogando com a plasticidade sináptica que posso

domesticar um animal: um cão, um boi, um cavalo ou uma

pulga. E nós partilhamos essa possibilidade com a pulga ou

20

com a lesma. Mas Stiegler não comunga no ponto de vista de

Peter Sloterdjk que vê no homem um ser domesticável8. Para

Stiegler, o ser humano não é duradouramente domesticável nem

treinável: não há nenhuma técnica de domesticação do ser

não inumano (aquele a que mais comumente se chama, ser

humano).

Em contrapartida, é possível domesticar um ser inumano.

E todos nós somos, também, seres inumanos; todos os seres

humanos, como seres também inumanos são, nessa medida,

domesticáveis. É por não fazer esta simples distinção que

Sloterdjk pode fazer figura de grande pensador.

Se Stiegler prefere falar, por vezes, em seres não

inumanos, é porque qualque ser humano pode, através do

processo da sua individuação não escapar à tentação de se

tornar inumano. O pensamento Simondoniano da individuação

psíquica e colectiva que Stiegler adopta por inteiro9, consiste

em sustentar que a individuação é um processo metaestável e

que esta metaestabilidade produz permanentemente oscilações

que são justamente analisáveis através da situação da

tentação. O que o pensamento da individuação psicossocial

põe em destaque é que se deve raciocinar, não em termos de

qualidades de ser (domesticável ou não domesticável) mas em

8 Peter Sloterdijk, La domestication de l’être, Mille et une nuits, 2002. 9 A obra principal de Gilbert Simondon tem por títuloprecisamente “Individuação psíquica e colectiva”.

21

termos de polaridades, no interior das quais as tendências

incessantemente se compõem.

Que haja uma tendência e uma tentação de submissão, só

é possível na medida em que há uma contra-tendência para a

responsabilidade e para a acção. Isolar uma tendência e

ontologizá-la é um sofisma que, na realidade não é mais do

que uma maneira de se colocar ao serviço de uma das

tendências. A parte inumana do ser não inumano é aquela

que, no processo de individuação, tende para a

desindividuação e que, no entanto, não deixa de ser um

elemento dinâmico da individuação.

Ao longo de todos os seus trabalhos, Stiegler tem

procurado mostrar que a pulsão, no que tem de egoísta, é o

que confere ao desejo a sua energia, na medida em que o

desejo é o que tem capacidade de inverter o sinal (ou a

direcção) desta energia egoísta para a transformar em

potência de socialização. Continua a ser certo que este

fundo pulsional, canalizável através de automatismos do

tipo dos reflexos plalovianos capazes de condicionar a

plasticidade sináptica do ser humano pode ser visto como

qualidade isolável que definiria a domesticabilidade

essencial do ser humano e tenderia a dominar o processo de

individuação, designadamente através da captação destrutiva

da atenção; tudo isto é pensável, mas, então, o homem fica

votado inevitavelmente a tornar-se louco: quando se

domestica um lobo e ele envelhece, normalmente regressa ao

22

instinto e o mais provável é que vos salte à garganta. É

aquilo que estamos em vias de fazer, neste mundo pós-

moderno, com a parte inumana que existe em nós – com este

lobo que há em nós, e do qual Hobbes nos fala com tanto

acerto. Capta-se a atenção do lobo, ele fica fascinado, e,

assim, conferimos-lhe uma enorme força - mas, à falta de

não ter podido, nem sabido, tornar-se um homem, voltará a

ser um lobo.

Quando uma pessoa sofre com o seu desejo pode tornar-se

neurótica, mas quando as pessoas sofrem de falta do desejo,

tornam-se psicóticas, o que é uma situação perigosíssima da

qual nos aproximamos cada vez mais.

Como seres não inumanos, não somos constituídos apenas

por reflexos condicionados: somos estruturados por retenções

e protensões10 isto é, recordações, desejos, imaginações,

sonhos, e a capacidade de transcender o mundo e de nos

elevarmos.

Entre as retenções e as protensões está a vida da

atenção que é uma expectativa. A atenção não é um reflexo;

a atenção é qualquer coisa que se forma: produzir atenção

num ser psíquico é forçosamente participar na individuação

psíquica e colectiva, isto é produzir, ao mesmo tempo,

atenção psicológica e atenção social, ou seja, o vínculo social.

As retenções e protensões no ser não inumano são aquilo que10 Vide Edmond Husserl, Leçons pour une phénoménologie de la conscienceintime du temps, PUF, 1983.

23

luta contra a parte inumana que nele também existe. Esta

luta releva do desejo e do que Freud chamou a sublimação. É

ela que funciona como base de apoio dos meus desejos, das

minhas projecções de futuro ou, como diz Simondon, da minha

individuação estruturalmente inacabada, que me constitui como

singularidade.

Este jogo de retenções e protensões produz atenção na

medida em que se socializa, na medida em que se inscreve em

circuitos que a herança da língua, do saber, da cultura, de

tudo aquilo que faz com que a humanidade se tenha elevado.

Não é uma questão de progresso, mas de genealogia. Blaise

Pascal e Auguste Comte metaforizaram-na brilhantemente: é

como estar plantado em cima dos ombros deste gigante que é

a humanidade, que acumulou saberes e formalizou uma

experiência, e nos permite enxergar mais longe do que ele

viu.

Esta formação da atenção leva muito tempo: para que uma

criança actual atinja o nível de formação, são necessários

vinte anos. Nem sempre foi assim. E esta formação não é

apenas dispensada pelos pais, nem pela Educação nacional

mas por todo um sistema social que se chama um sistema de

cuidados. Ora, as indústrias culturais e cognitivas tendem

hoje a destruir todo o cuidado; desenvolveu-se hoje uma

economia de captação da atenção por todos os meios que

conduz à destruição dos sistemas que a produzem,

designadamente a identificação primária da criança. Esta

24

destruição da atenção é particularmente exibida nos estudos

que têm sido conduzidos pela psiquiatria e pela pedagogia

americanas sobre o attention deficit disorder de que sofrem

muitíssimas crianças americanas, muitas vezes tratadas com

ritalina (derivado da cocaína) ou com Prozac (anti-

depressivo). Estas crianças são cada vez menos capazes de

se concentrar sobre o que quer que seja. Os seus cérebros

são destruídos pelas tecnologias da captação da atenção que

arruína as suas capacidades de retenção e protensão.

Ninguém escapa à saturação cognitiva e afectiva, isto

é, à desafectação e à perda discernimento que é uma espécie de

epilepsia social. Essa é a principal tentação do domínio das

tecnologias e da hipermatéria, postas ao serviço do psico-

poder. A economia do hipermaterial é fundamentalmente uma

economia das psico-tecnologias. Uma economia deste tipo é

na realidade anti-económica: ele destrui a economia

libidinal desta hipermaterialidade que é o espírito, de que

o ser não inumano é responsável mesmo quando é tentado

constantemente a deixar-se ir, a deixar andar, o que em

termos do liberalismo ainda vigente se diz “laissez faire,

laissez passer”11.

O que aqui deve ser acentuado é a natureza

sistematicamente farmacológica do pensamento de Stiegler: a

hipermatéria que é capaz de conduzir, e tem conduzido, ao

11 Sobre esse ponto, Stiegler recomenda a leitura do livro deDany-Robert Dufour, Le Divin Marché. La révolution culturelle libérale,Denoel, 2007, em particular o capítulo 10.

25

psico-poder e à destruição da atenção, é também o que

contém já a possibilidade do que chamamos espírito: a

hipermatéria é um estado da matéria, em movimento, um

processo que é sempre já informado e que não pode ser

analisado nem enquanto matéria num como forma; é

simultaneamente energia e informação. Ao nível nanométrico

não faz verdadeiramente o mínimo sentido distinguir as

indústrias da matéria e as indústrias da informação.

Por outro lado, aqueles ilustres pensadores que

persistem em falar do “imaterial” e de uma economia do

conhecimento, que permitiria finalmente ultrapassar o

constrangimento da “raridade” que, desde os primórdios da

aventura humana sempre pesou sobre as perspectivas do

futuro radioso, e permitiria a instauração de produção e de

consumo socialista, não conseguem convencer um pensador

como Stiegler.

Stiegler reconhece que André Gorz no seu livro sobre o

Imaterial12 levanta uma questão extremamente importante: as

implicações da “reprodutibilidade a custo quase nulo” (em

contraste com a reprodutibilidade material que teve sempre

um custo energético não desprezável). Esta circunstância

muda os dados do problema.

Mas não há nenhuma razão para falar de imaterial. Como

já foi dito, é preciso uma enorme quantidade de materiais

12 André Gorz, L’Immatériel. Connaissance, valeur et capital, Galilée, 2003.

26

para chegar a produzir estes estados da matéria, que não

deixam de ser matéria, mesmo que, com a ajuda da

miniaturarização, inclusive ao nível nanométrico, tenhamos

tendência a esquecê-lo. Os aparelhos que tendem a conseguir

a reprodutibilidade a custo nulo, são extremamente

sofisticados e a sua produção é muito cara. Há que

raciocinar sobre o conjunto de todos os factores ou pelo

menos procurar não os esquecer. Seja como for, a

reprodutibilidade a custo infinitesimal supõe sempre um

aparelho de reprodução; o que é duplicado, mesmo a custo

mínimo, é material, como também é material o aparelho que

duplica.

Não há dúvida de que a possibilidade de

reprodutibilidade a custo quase nulo, permite encarar algo

que seja diferente da organização capitalista actual. Mas

tratar-se-á uma renovação do socialismo, como parecem

acreditar Gorz e Negri?

Sobre este ponto Stiegler tem muitas dúvidas e eu

também. Parece que aquilo que há que inventar, não é um

novo modelo de socialismo, mas um novo espírito do

capitalismo que permita a prossecução da individuação psíquica e

colectiva, e a nossa sobrevivência. A divisão do trabalho, o

investimento na investigação e desenvolvimento, a formação

de mercados de massa, são invenções do capitalismo que não

parecem substituíveis assim do pé para a mão. Nada indica

que a colectivização dos meios produção seja o sonho

27

secreto dos povos deste mundo, por muito que odeiem o

Ocidente e a América, e a exploração atroz de que são

vítimas.

É certo que a cooperação não é a colectivização; há

muitas formas de associação que não são colectivistas. Mas,

esse não é o nosso problema actual – saber se a salvação é

socialista ou capitalista – muito embora possa ser o

problema do nosso porvir.

Uma coisa é certa: o capitalismo não durará eternamente

e isso por uma razão extremamente simples: nada dura

eternamente e aquilo que surgiu há tão pouco tempo, também

desaparecerá proximamente. Gorz diz precisamente isso mas,

“muito proximamente” pode querer dizer um século ou dois.

Ainda não estamos lá.

Gorz pode ter uma interpretação socialista do problema,

mas não tem uma teoria. Não é mesma coisa. No entanto é

possível estar de acordo com ele; com duas reservas: 1) Não

se trata do imaterial: 2) Ainda é cedo e perigoso anunciar

a morte do capitalismo.

Em contrapartida, não há a menor dúvida que há que

lutar pela invenção de novos direitos, contra as limitações

do acesso aos bens culturais, pela distinção entre bens

universais, bens gerais e bens colectivos, avançada do Santiago Alba

28

Rico13em complemento da distinção entre coisas de comer, coisas de

usar e coisas de mirar, ou maravilhas. É preciso estar do lado desta

luta e deplorar a total falta de lucidez e de

responsabilidade dos irresponsáveis políticos e económicos

que iremos todos pagar muito caro, tanto aqui no nosso

cantinho, como na Europa e no Mundo, se não lutarmos, isto

é, em primeiro lugar, se não pensarmos e se não agirmos,

com a plena consciência de que agir não é resistir: resistir é

ficar à espera do contra-golpe, da contra tendência que é

certa como uma soma, ou qualquer outro cálculo. Não basta

resistir, é preciso inventar, inventar novos modelos de

individuação e de singularização. O que é preciso é fazer

coisas e uma delas, e talvez a mais importante, é pensar.

Vivemos hoje no reino da calculabilidade generalizada,

do desencantamento, e do niilismo; o que é cada vez mais

urgente é reconstruir uma esfera do espírito ou das

consistências, capaz de produzir singularidades por meios

industriais.

Como deixei anteriormente assinalado, a principal

contribuição de Stiegler para a renovação do pensamento

filosófico reside na contraposição de uma filosofia do Ser

– o discurso onto-teológico-político, ou metafísico - que

pensa por oposições, a uma filosofia do Devir, que só pode ser13 Vide Santiago Alba Rico, Capitalismo y Nihilismo, Dialéctica del hambre yla mirada, Madrid, Ediciones Akal S.A., designadamente capítulo 3“A ideologia da globalização (reflexões sobre a fome). Há umatradução minha em www.ocomuneiro.com

29

pensada como composição, composição de tendências ou jogo de

forças, que não apenas se opõem como se compõem, ou se

decompõem. Falar de uma filosofia do Devir, equivale a

evocar do nome de Nietzsche; mas há que ter cuidado, já que

a posteridade de Nietzsche oculta ou esquece muitas vezes o

facto de que Nietzsche não deixou de preveniu os seus

leitores “aquilo que conto é a história dos dois próximos séculos”, ou

seja, o surgimento do niilismo como devir gregário, uma

ameaça fatal contida na injunção adaptativa e no apelo à

igualitarização de tudo contra as excepções, isto é, contra

as singularidades como formadoras dos horizontes do melhor.

O niilismo é o nome de uma decomposição, é um devir fraco,

um devir-vil, o devir hegemónico de uma tendência

massificadora que tende a anular a sua contra-tendência.

Fazer da filosofia de Nietzsche um filosofia da

aquiescência ao devir sob todas as suas formas, um sim a

tudo, que deveríamos repetir como tontos, é uma caricatura

ridícula. Afirmar não significa aquiescer. Se a fraqueza é o

que reage contra o devir como força e Nietzsche é, de

facto, o filósofo que proclama a necessidade de lutar pelo

devir, é porque a fraqueza é uma contra-força no devir, que é

sempre dúplice: no devir há sempre um devir espontâneo, que

é fraco, um automaton que reage contra o devir como força, o

devir como futuro ou porvir, não deixando de ser condição

da força. Aquilo que ainda hoje nos é difícil de

compreender é que o melhor esteja no pior e vice-versa, que o

veneno possa ser o remédio e vice-versa. O devir é

intrinsecamente dúplice, e a sua lei é a luta. Não há que

30

hipostasiar o devir, isso seria equivalente a fazê-lo

regressar ao Ser. A maior parte dos seguidores de

Nietzsche, endeusam o devir, idolatram-no, idealizam-no,

ignorando que em Nietzsche, mais do que em nenhum outro

pensador, uma força só existe na sua relação com outra e

que o devir sempre já se desdobrou, como luta de tendências que

há que compor, em lugar de decompor. A oposição (mesmo a

metafísica) como jogo de forças, joga sempre a partir de

uma composição mais elementar, habitada pelo que Simondon

chama o desfasamento no processo de individuação. É por isso

que não se trata de ver no adversário um inimigo a

eliminar, como se fosse a última causa do mal, mas o vector

de uma tendência em curso numa corrente multifásica que,

como a corrente de um rio, é feita de turbilhões. O que

está sempre e permanentemente em jogo é o prosseguimento do

combate, que só pode continuar se o jogo de forças se

mantiver. Eliminar o adversário é também eliminar-se si

próprio.

Este jogo de forças é o jogo do mundo, como processo de

individuação psíquica e colectiva, onde impera a composição

das tendências, como efeito da tensão da vida consigo

mesma, e do desfasamento que a tecnicidade nela engendra, a

inscrição, o grama, o traço, o “morto que capta o vivo”, a

herança genealogicamente acumulada na epifilogénese, enquanto

capitalização mnemotécnica da experiência dos ascendentes

na vida dos descendentes.

31

O grande, o enorme problema do nosso tempo é

precisamente o da possibilidade ou impossibilidade do

prosseguimento deste jogo que se nos impõe hoje como uma

evidência aterradora. Enquanto a tecnociência excede qualquer

medida, multiplicam-se as expressões da pulsão da morte e

de renúncia à vida, seja sob a forma do niilismo gregário,

de destrutivas passagens ao acto, da passividade imbecilizada, ou

seja, sob a forma de impotência resignada.

O jogo está em risco de ser interrompido pela

decomposição das forças, a gramatização concebida como

modelização computacional dos comportamentos, a

hipersincronização das individualidades psíquicas e

colectivas e de desindividuação psicossocial, de tal modo

que as individualidades – tanto os eus como os nós – se

desendividuam, se transformam nos nós indefinidos do rebanho que

consome; este consumo é como uma consumpção das

singularidades que se abate sobre as democracias

industriais: sem nenhuma possibilidade de se projetarem no

futuro e prosseguir a sua individuação, já não acreditam em

nada, não desejam nada, não podem nada.

Há que desmontar definitivamente o mito da sociedade

pós-industrial; vivemos num mundo industrial e

inclusivamente hiperindustrial, e nele continuaremos a

viver se não houver um cataclismo nuclear. A ideia de que o

capitalismo cognitivo e a economia de serviços nos teria

feito entrar numa sociedade pós-industrial é um mito, um

32

mito que começou a apoderar-se das nossas mentes numa época

em que o futebol de transformou numa das mais lucrativas

indústrias e as indústrias pornográficas já só têm à sua

frente as do armamento e a indústria farmacêutica.

Mas o principal problema é o de que esta ideologia da

sociedade pós-industrial inibe o pensamento.

Repare-se que foi precisamente no momento em que este

mito se apoderou das mentes de esquerda (com Daniel Bell

nos Estados Unidos, Anthony Gideons na Grã-Bretanha e Alain

Touraine em França) que a esquerda deixou de pensar. Ainda

há relativamente pouco tempo, em 2008, na Festa do jornal

Humanité, para a qual Stiegler continua a ser convidado

apesar de já há alguns anos ter deixado de ser militante do

PCF, ele proferiu uma excelente conferência14 onde

recordava os tempos em que a esquerda pensava e contava

como, entre o seus dezasseis e vinte anos de idade, foi nas

páginas da Nouvelle Révue Française que ouviu falar nos

nomes de Saussure, de Lacan, de Jean Pierre Vernant, de

Roland Barthes, de Mallarmé e tantos outros nomes ilustres

da cultura francesa dessa época, em que o PCF, e a esquerda

em geral, ainda pensava e a escola de Jaurés não havia sido

ainda tomada de assalto pelas falanges das “ciências da

educação”, que progressivamente foram expulsando da escola

14 Esta conferência, bem como muitas outras, pode se escutada e“baixada”, como dizem os brasileiros e bem, no “site” da ArsIndustrialis (http://arsindustrialis.org/).

33

o ensino das consistências substituindo-lhes o ensino da

ignorância.

Há que entender que as consistências, as idealidades de

que o espírito se alimenta, não são de outro mundo. Só há

um Mundo, mas com diferentes planos. Já há muitos anos,

talvez mais de meio século, escrevi que houve tempos e não

muito curtos, em que o Boi Ápis foi efectivamente real na

vida dos homens. O mundo é estratificado, tem diferentes

planos e dimensões. O cerne da imanência é a ausência do

Absoluto, mas o Absoluto não é o ideal nem o Universal. É

por isso que há o Infinito que é precisamente o estofo do

desejo e dos nossos sonhos.

Não se pode desejar um objecto se ele não for vivido

com objecto de um desejo infinito, mesmo sabendo (e é por

isso que o conhecimento não é a crença) que o desejo como

tudo neste mundo pode acabar, só se pode amar acreditando

que o objecto do nosso amor é infinito. É por isso que,

como dizia Vinicius de Morais, o amor só existe no”Infinito

de nós dois”.

João Esteves da Silva

34