O HABEAS CORPUS COMO AÇÃO PENAL POPULAR I – Breve Histórico do Habeas Corpus 1

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O HABEAS CORPUS COMO AÇÃO PENAL POPULAR Humberto Barrionuevo Fabretti. Mestre e Doutorando pela Faculdade de Direito de Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor de Criminologia, Direito Penal e Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro da Associação Internacional de Direito Penal – AIDP. Advogado Militante. I – Breve Histórico do Habeas Corpus 1 A origem do Habeas Corpus não é absolutamente certa, pois são vários os instrumentos jurídicos encontrados na história que buscavam preservar a liberdade de ir e vir das pessoas. Entretanto, a doutrina tem apontado como seu mais próximo antecedente histórico a Magna Carta inglesa de 1215, imposta pelos barões ingleses ao rei João Sem Terra, na qual em seu § 39 encontrava-se a seguinte redação: Nenhum homem livre será detido ou aprisionado, ou privado de seus direitos ou bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou despojado, de algum modo, de sua condição; nem procederemos com força contra ele, ou mandaremos outros fazê-lo, a não ser mediante o 1 Esse item sobre o histórico do habeas corpus foi retirado integralmente da obra Manual de Processo Penal , Editora Atlas, que se encontra no prelo, elaborada em coautoria com Marco Antônio Ferreira Lima e Alexis Augusto de Couto Brito.

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O HABEAS CORPUS COMO AÇÃO PENAL POPULAR

Humberto BarrionuevoFabretti. Mestre eDoutorando pela Faculdadede Direito de UniversidadePresbiteriana Mackenzie.Professor de Criminologia,Direito Penal e ProcessoPenal da Faculdade deDireito da UniversidadePresbiteriana Mackenzie.Membro da AssociaçãoInternacional de DireitoPenal – AIDP. AdvogadoMilitante.

I – Breve Histórico do Habeas Corpus1

A origem do Habeas Corpus não é absolutamente certa, poissão vários os instrumentos jurídicos encontrados nahistória que buscavam preservar a liberdade de ir e vir daspessoas. Entretanto, a doutrina tem apontado como seu maispróximo antecedente histórico a Magna Carta inglesa de1215, imposta pelos barões ingleses ao rei João Sem Terra,na qual em seu § 39 encontrava-se a seguinte redação:

Nenhum homem livre será detido ou aprisionado, ouprivado de seus direitos ou bens, ou declarado fora da lei,ou exilado, ou despojado, de algum modo, de suacondição; nem procederemos com força contra ele, oumandaremos outros fazê-lo, a não ser mediante o

1 Esse item sobre o histórico do habeas corpus foi retirado integralmenteda obra Manual de Processo Penal, Editora Atlas, que se encontra no prelo,elaborada em coautoria com Marco Antônio Ferreira Lima e AlexisAugusto de Couto Brito.

legítimo julgamento de seus iguais e de acordo com a leida terra.

Porém, de nada adiantaria a previsão supramencionada se nãohouvesse algum instrumento processual para suaconcretização, sendo que, dentre os vários instrumentosexistentes à época, o que mais foi utilizado e adquiriuextraordinária relevância foi o writ of habeas corpus adsubjiciendum.

Transcrevemos aqui trecho do livro Recursos no ProcessoPenal de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães GomesFilho e Antonio Scarance Fernandes que ilustra muito bem aquestão:

Originariamente, o habeas corpus (do latim, habeo,habere = ter, exibir, tomar, trazer; corpus , corporis =corpo) era simplesmente um meio de se obter ocomparecimento físico de alguém perante uma corte. Daía referência histórica a várias espécies de habeas corpus:ad respondendum, destinado a assegurar a transferênciado preso de um lugar a outro, para ali responder a umaação penal; ad testificandum, para que a pessoa fossetrazida sob custódia para prestar um testemunho; adsatisfaciendum, previsto para a hipótese de ser necessáriaa transferência de um preso já condenado a um tribunalsuperior, a fim de se executar a sentença etc.

Dentre essas diversas modalidades, ficou mais conhecidoo habeas corpus ad subjiciendum, pois, com anecessidade de se assegurar plenamente a legalidade dequalquer restrição do direito de liberdade consagradopela Magna Carta, incorporou-se à ideia de apresentaçãopessoal a ordem de trazerem também à corte os motivosdo encarceramento, para que sua regularidade fosseimediatamente submetida à apreciação judicial,determinando-se o que de direito.

O chamado writ, portanto, nada mais era que uma ordem pelaqual a corte determinava que o detentor de qualquer pessoaa apresentasse imediatamente, para verificação dalegitimidade da prisão.

Ao longo dos séculos esse instrumento foi cada vez maisutilizado e aperfeiçoado até que em 1679 o Parlamentoinglês aprovou o Habeas Corpus Act, documento que protegia aliberdade individual e regulamentava a utilização do habeascorpus. Conforme esse documento, o pedido de habeas corpuspoderia ser apresentado a qualquer juiz ou tribunal quedeveria expedir uma ordem para que o sheriff ou carcereiroapresentasse o preso no prazo de três dias juntamente comas informações sobre os motivos da prisão, sendo que nosdois dias seguintes, o juiz ou tribunal deveria decidirsobre a manutenção ou não da prisão, determinando asoltura, fixando uma fiança ou, se fosse o caso,confirmando a legalidade da prisão.

Em 1816 o Parlamento inglês promulgou um novo Habeas CorpusAct que estendeu a aplicação do habeas corpus às restrições deliberdade individual efetuadas por particulares.

Lembrando que o direito inglês é caracterizado pela commonlaw, é importante ressaltar que a jurisprudência aumentoumuito a possibilidade de utilização e também a finalidadedo habeas corpus que inicialmente somente se prestava acoibir prisões ilegais praticadas por funcionáriosadministrativos e chegou a ser utilizado pra correção deatos judiciais viciados e irregularidades processuais.

Do direito inglês o habeas corpus foi exportado para as 13colônias da América do Norte e em 1787 foi incorporado àconstituição americana que acabou por influenciar todas asrevoluções modernas e ser incorporado e mantido até hoje emquase todas as constituições contemporâneas, bem como emdocumentos internacionais sobre direitos humanos, como oPacto de San Jose da Costa Rica, por ser um instrumentohábil para garantir o direito à liberdade.

No Brasil, a primeira menção legal ao habeas corpus foi noCódigo de Processo Criminal de 1832, pois embora aConstituição de 1824 contivesse menção expressa do direitoà liberdade, não previu o habeas corpus.

Com a Constituição da República de 1891 o habeas corpusadquiriu status constitucional, pois foi expressamenteprevisto no artigo 72, §22, com a seguinte redação: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou seachar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação,por ilegalidade, ou abuso de poder”.

Percebe-se pela redação do artigo supra constante daprimeira Constituição da República o caráter amplo que eradado ao habeas corpus, que não prestava somente para garantira liberdade de locomoção, mas sim para garantir o exercíciode qualquer direito.

Assim, surgiu na doutrina e jurisprudência da época umagrande divergência sobre a amplitude do habeas corpus,conforme se verifica do seguinte trecho de Pedro HenriqueDemercian e Jorge Maluly na obra Habeas Corpus:

“E foi justamente dessa circunstância, ou seja, aabrangência do writ, que ressurtiu a célebre polêmicaentre RUY BARBOSA e PEDRO LESSA. Por influência doprimeiro, o entendimento pretoriano passou a se firmarno sentido de que o habeas corpus era remédioconstitucional idôneo à proteção de qualquer direito,ainda que de natureza extrapenal, que tivesse porpressuposto o resguardo de liberdades e direitos deíndole constitucional.”

E efetivamente, não poderia ser diferente, vez que odispositivo constitucional não fazia qualquer mençãorestritiva ao alcance do habeas corpus e, ainda, não haviaqualquer outro remédio constitucional para garantir osdemais direitos, como há hoje o Mandado de Segurança e oHabeas Data.

Entretanto, em 1926, houve uma reforma constitucional quealterou a redação do artigo 72, §22, da ConstituiçãoFederal, que acolheu a tese de Pedro Lessa e devolveu ohabeas corpus à sua função originária: proteger a liberdadede locomoção.

De certa forma é lícito afirmar que houve uma restrição emrelação à proteção dos demais direitos fundamentais, poisnão se tinha qualquer outro remédio constitucional que osgarantissem. Porém, tal retrocesso durou pouco tempo, jáque em 1934, com a nova Constituição Federal, introduziu-seem nosso sistema constitucional o Mandado de Segurança.

De 1934 em diante todas as Constituições Federais fizeramprevisão expressa do habeas corpus sendo que o único períodoem que essa garantia ficou restrita foi durante a ditaduramilitar, especificamente no ano de 1968, com o AtoInstitucional nº 5 que suspendeu o habeas corpus para oscrimes políticos, contra a segurança nacional, contra aordem econômica e social e contra a economia popular.

Na atual Carta Constitucional o habeas corpus encontra-seprevisto no artigo 5º, LXVIII:

“Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrerou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação emsua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso depoder”

II - Natureza Jurídica

Questão sempre lembrada e debatida pela doutrina é apertinente à natureza jurídica do habeas corpus, vez que oCódigo de Processo Penal o disciplinou no Titulo II – “DosRecursos em Geral”, especificamente no Capítulo X – “DoHabeas Corpus e seu Processo”.

Apenas a título de ilustração, transcrevemos trecho de JoséCarlos G. Xavier de Aquino e José Renato Nalini na obra

Manual de Processo Penal, 3ª edição, em que fica patente adiscussão sobre a natureza jurídica do habeas corpus2:

(...)Parte da doutrina o considera recurso – Câmara Leal,Magalhães Noronha e Galdino Siqueira, embora este ojulgue recurso de natureza especial(...)Recurso, ainda, oconsiderava Lafayette: “O habeas corpus é um recursoextraordinário, instituído para fazer cessar de pronto eimediatamente a prisão ou o constrangimento ilegal”.

Outra parte dos estudiosos o considera ação – Pontes deMiranda, por exemplo – pois impetrável diretamente aoTribunal. Paulo Lúcio Nogueira o considera verdadeiraação popular constitucional, pois qualquer pessoa podeimpetrá-lo, provida ou não de capacidade postulatória.

Recurso e ação ao mesmo tempo, é como o considera JoséFrederico Marques: “O remédio do habeas corpus seapresenta, em nosso Direito Processual, sob dois aspectos:ou é um recurso, conforme denominação que lhe dá oCódigo de Processo Penal, ou é ação autônoma.

Porém, não obstante sua a opinião dos referidos autores e a“localização geográfica” entre os recursos no Código deProcesso Penal, o entendimento que prevalece atualmente nadoutrina e jurisprudência é o de que o Habeas Corpus temnatureza jurídica de Ação e não de Recurso.

Tal entendimento, com o qual concordamos, decorre de váriosfatores que foram muito bem explicados por Pedro HenriqueDemercian e Jorge Assaf Maluly na obra Curso de ProcessoPenal, 7ª edição, motivo pelo qual a transcrevemosintegralmente3:

...o recurso pressupõe uma decisão judicial recorrível, já ohabeas corpus pode ser impetrado mesmo após o trânsito

2 XAVIER DE AQUINO, José Carlos G., NALINI, José Renato. Manual deProcesso Penal. 3ª ed. São Paulo, RT, 2009, p. 396.3 DEMERCIAN, Pedro H, MALULY, Jorge A. 7ª ed. Rio de Janeiro, Forense,2011, p. 630.

em julgado da sentença, se houver qualquerconstrangimento ilegal no processo-crime que aprecedeu; recurso exige a decisão judicial, enquanto parao habeas corpus, muitas vezes, bastará a simples ameaçade violência ou coação na liberdade de locomoção, nãoconsubstanciada necessariamente em qualquer ato dejurisdição. Por fim, como é cediço, o recurso não abreuma nova instância, mas busca um novo julgamento nafase de conhecimento, que ganha, por assim dizer, umaprorrogação.

Conforme já afirmamos4, trata-se de uma ação deconhecimento, pois busca a cognição completa de definitivasobre a legalidade ou não da restrição efetiva (habeas corpusliberatório) ou potencial (habeas corpus preventivo) dodireito à liberdade de locomoção.

Como ação de conhecimento, o habeas corpus pode objetivar umprovimento meramente declaratório - como ocorre, porexemplo, nas situações em que se requer a cessação doconstrangimento pelo reconhecimento (declaração) de umacausa extintiva da punibilidade como a prescrição;constitutivo – quando se pleiteia a anulação de uma decisãotransitada em julgado; condenatório – quando juntamente com adeclaração da existência do direito de ir e vir se impõe àautoridade coatora que agiu com má-fé ou abusou de poder acondenação nas custas, nos termos do artigo 653 do Códigode Processo Penal5.

O caráter mandamental da ação de habeas corpus também éimportantíssimo de ser anotado, pois por ser ação que busca

4 Manual de Processo Penal, Editora Atlas, coautoria com Marco AntônioFerreira Lima e Alexis Augusto de Couto Brito, prelo.5 Art. 653.  Ordenada a soltura do paciente em virtude de habeascorpus, será condenada nas custas a autoridade que, por má-fé ouevidente abuso de poder, tiver determinado a coação.        Parágrafo único.  Neste caso, será remetida ao MinistérioPúblico cópia das peças necessárias para ser promovida aresponsabilidade da autoridade.

tutelar direito fundamental, reconhecida a ilegalidade daconstrição, a ordem deve ser imediatamente cumprida, com aimediata expedição de alvará de soltura ou salvo-conduto.

Desse modo, não há como negar a natureza jurídica de açãodo habeas corpus, independentemente de sua localização noCódigo de Processo Penal, vez que o simples fato dolegislador, erroneamente, elencá-lo entre os recursos não éapto a transmutar sua natureza jurídica de ação.

III - Condições da Ação de Habeas Corpus

Sendo ação, portanto, o habeas corpus deve ser analisado eprocessado como tal, devendo preencher todas as condiçõesda ação, quais sejam: possibilidade jurídica do pedido,interesse de agir e legitimidade, sendo nesse últimoelemento que repousa o caráter de ação penal popular.

1- Possibilidade Jurídica do Pedido

O habeas corpus, conforme disciplina o próprio textoconstitucional, será cabível sempre que alguém sofrer ou se acharameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, porilegalidade ou abuso de poder.

O cabimento do habeas corpus é, portanto, amplo e irrestrito,pois em todas as hipóteses que houver lesão ou ameaça delesão ao direito de ir e vir, poderá ser impetrada a açãode habeas corpus, sendo juridicamente possível o pedido.

Há uma única exceção constitucionalmente prevista em que,apesar da restrição da liberdade de locomoção, não serácabível o habeas corpus, sendo o pedido juridicamenteimpossível, que é a das prisões disciplinares militares,nos termos o § 2º do artigo 142 da Constituição Federal,que tem a seguinte redação:

§ 2º - Não caberá "habeas-corpus" em relação a puniçõesdisciplinares militares.

Importante que se diga que não será cabível a ação dehabeas corpus para discussão do mérito da prisão disciplinarno âmbito militar, em virtude da necessidade de manutençãoda hierarquia, mas nas hipóteses de incompetência daautoridade, da inobservância das formalidades legais, doexcesso de prazo, do respeito à ampla defesa etc., serácabível o habeas corpus.

Nesse sentido escreve Eugenio Pacelli deOliveira:

O que efetivamente deve ser vedado ao controle judicial é o exame acerca da conveniência ou oportunidade da medida disciplinar adotada (se privativa da liberdade ou outra eventualmente cabível), mas jamais a apreciação dasua legalidade.

Ainda que não caiba o habeas corpus, em virtude da expressa vedaçãoconstitucional, poderá tal decisão ser atacável via mandado de segurança.

2- Interesse de agir

Sempre que alguém estiver com seu direito ambulatóriocerceado ou ameaçado haverá o interesse de agir.

Atualmente, a jurisprudência brasileira tem admitido ohabeas corpus ainda que não haja um perigo iminente àliberdade de locomoção, bastando a existência de umasituação que no futuro possa se concretizar em uma ameaça àliberdade de locomoção, como ocorre por exemplo nos casosde inquérito policial instaurado sem justa causa em quetem-se admitido o habeas corpus para o trancamento, posto queesse inquérito policial poderá fundamentar uma denúncia quepoderá ter por fim uma pena privativa de liberdade. O mesmoocorre quando há a imposição de pena restritiva de direito,posto que seu descumprimento poderá acarretar na constriçãoda liberdade, havendo, portanto, interesse de agir.

Entretanto, se a pena prevista for exclusivamente de multa,não há que se falar em habeas corpus, por falta de interessede agir, vez que não há qualquer perigo para a liberdade delocomoção. O mesmo entendimento tem sido aplicado para oscrimes cometidos por pessoas jurídicas, que por não seremportadoras do direito de locomoção, não poderiam impetrar aordem de habeas corpus, por pura falta de interesse de agir.

3- Legitimidade

No pólo passivo da ação de habeas corpus encontra-se aautoridade coatora, que não se confunde com o órgão a elapertencente.

Assim, em um habeas corpus contra ato de Delegado da PolíciaCivil de São Paulo, o sujeito passivo é o Delegado dePolícia e não a Polícia Civil do Estado de São Paulo.

O particular também poderá figurar no pólo passivo dohabeas corpus, como na hipótese de internação de pessoa idosapelos seus próprios filhos, contra sua vontade.

No pólo ativo, antes de mais nada, é preciso que sediferencie a figura do paciente da figura do impetrante. Opaciente é aquele que tem sua liberdade de locomoçãorestringida ou ameaçada pela autoridade coatora, sendo queo impetrante é aquele que impetra a ordem de habeas corpus, ouseja, o que apresenta o pedido funcionando como substitutoprocessual do paciente, já que pleiteia em nome próprio(impetrante) direito alheio (liberdade do paciente).

O impetrante, nos termos do artigo 654, primeira parte, doCódigo de Processo Penal, pode ser qualquer pessoa:

O habeas corpus poderá ser impetrado por qualquerpessoa, em seu favor ou de outrem, bem como peloMinistério Público6.

6 Importante informar que o Ministério Público somente pode impetrar o habeas corpus para favorecer o réu, mas jamais para buscar qualquer interesse da acusação em prejuízo do réu. A garantia é do indivíduo e não da acusação, não podendo ser utilizada maliciosamente por esta.

Julio Fabbrini Mirabete7 explica muito bem a abrangência dotermo “qualquer pessoa” ao dizer que:

Qualquer pessoa do povo, independentemente dehabilitação legal ou de representação por advogado, decapacidade política, civil ou processual, de idade, sexo,profissão, nacionalidade ou estado mental, pode fazeruso do remédio heróico, em benefício próprio ou alheio.Não há impedimento para que o faça o menor de idade, oinsano mental e o analfabeto, mesmo sem estaremrepresentados ou assistidos por outrem. Na últimahipótese basta que alguém assine a petição a rogo doanalfabeto.

É daí que decorre o status do habeas corpus de ação penalpopular, pois toda e qualquer pessoa tem legitimidade parainterpor o pedido de habeas corpus em nome próprio ou deterceiro.

IV – O Habeas Corpus como Ação Penal Popular

Em virtude da amplíssima legitimidade ativa concedida aohabeas corpus, a doutrina o reconhece como verdadeira açãopenal popular.

Nesse sentido manifesta-se Gustavo Henrique R. I. Badaró8:

Trata-se de ação popular em que o legitimado ativo équalquer pessoa, física ou jurídica, nacional ouestrangeira.

Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho eAntônio Scarance Fernandes afirmam que9:

7 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18ª ed. São Paulo, Atlas, 2006, p. 740.8 BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito Processual Penal – Tomo II, 2ª ed. SãoPaulo,Campus Elsevier, 2009, p. 368.9 PELLEGRINI GRINOVER, Ada; SCARANCE FERNANDES, Antonio e GOMES FILHO,Antonio Magalhaes. Recursos no Processo Penal. 7ª ed. São Paulo, RT, 2011,p. 279.

Trata-se, portanto, de uma ação popular para a qual estálegitimada qualquer pessoa, independentemente de outraqualificação especial.

Fernando da Costa Tourinho Filho10 argumenta que:

No caso do habeas corpus, como qualquer pessoa temlegitimidade para impetrá-lo, podemos dizer cuidar-se deverdadeira ação penal popular

Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha afirma que11:

Temos para nós que é uma ação de naturezaconstitucional, criminal, popular e cujo objetivo é aproteção ao direito de liberdade individual, traduzido pelodireito de ir, ficar ou vir.

Para finalizar, transcrevemos trecho de Antônio AlbertoMachado12 em que justifica o caráter popular do habeas corpuscomo uma necessidade do próprio Estado de Direitorespeitador das liberdades públicas:

Fala-se também que o habeas corpus é umaespécie de ação penal popular, pelo fato deque pode ser impetrado por qualquer pessoaem seu próprio favor ou em favor de outrem.Não se exige, para impetração desseremédio, a demonstração da legitimidade daparte, já que nos regimes democráticosqualquer pessoa é mesmo parte legítima parademandar em favor da liberdade de quem querque seja.

Deve-se lembrar de que, num Estado Liberalde Direito, sobretudo nos Estados

10 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Curso de Processo Penal. Tomo 4. 33ªed. São Paulo, Saraiva, 2011, p 649.11 CAMARGO ARANHA, Adalberto José Q. T. Dos Recursos no Processo Penal. 3ª ed.São Paulo, Saraiva, p 344.12 MACHADO, Antônio Alberto. Curso de Processo Penal. 2ª ed. São Paulo,Atlas, 2009, p 662.

Democráticos, esse instumento de garantiada liberdade de deambulação tem de ser uminstrumento plenamente acessível a todos osindivíduos. Portanto, a possibilidade deutilização desse remédio, especialmente nosEstados Liberais, deverá mesmo serirrestrita e ampla. E o processo de habeascorpus, no contexto desses

Estados, se constitui tanto num mecanismotécnico, por meio do qual se realiza opropósito de proteger a liberdadeindividual concretamente ameaçada, deste oudaquele paciente, quanto num instrumentoético, pelo qual se faz a afirmação dopróprio regime de liberdades públicas, emfavor de todos os indivíduos e cidadãos.

A legitimidade para impetração da ação penal popular dehabeas corpus é mais ampla que na própria ação popularconstitucional, regulamentada pela Lei nº 4.717 de 1965.

Segundo a referida lei, especificamente no § 3º do artigo1º, a legitimidade para ingresso de ação popular será docidadão, que deverá provar sua condição através do títulode eleitor, conforme se verifica:

Art. 1º Qualquer cidadão será parte legítima para pleiteara anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos aopatrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dosMunicípios, de entidades autárquicas, de sociedades deeconomia mista, de sociedades mútuas de seguro nasquais a União represente os segurados ausentes, deempresas públicas, de serviços sociais autônomos, deinstituições ou fundações para cuja criação ou custeio otesouro público haja concorrido ou concorra com mais decinqüenta por cento do patrimônio ou da receita ânua, deempresas incorporadas ao patrimônio da União, doDistrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de

quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadaspelos cofres públicos.

(...)

§ 3º A prova da cidadania, para ingresso em juízo, seráfeita com o título eleitoral, ou com documento que a elecorresponda.

Enquanto para a impetração do habeas corpus não se faznecessário o preenchimento de qualquer condição peloimpetrante, sendo dispensável inclusive a capacidadepostulatória, na ação popular constitucional somente oeleitor é que tem legitimidade ativa, devendo, no momentoda propositura, comprovar sua situação.

A legitimidade ativa na ação popular constitucional élimitada ao cidadão brasileiro e eleitor.

Pode-se afirmar, portanto, que o habeas corpus em termos daabrangência de legitimados é “mais popular” que a própriaação popular constitucional, vez que não há qualquerlimitação formal para figuração em seu pólo ativo, quecomporta qualquer pessoa, nacional ou estrangeiro, eleitorou não.

V - Conflito de interesses entre o impetrante e o paciente

Conforme já se viu, a legitimidade ativa para impetração dohabeas corpus é ampla e irrestrita, sendo possível quequalquer pessoa impetre o writ, independente de instrumentode mandato, em nome próprio ou alheio, sendo que na últimahipótese funciona como verdadeiro substituto processual.

Não obstante a amplitude concedida a qualquer pessoa paraimpetrar habeas corpus em favor de outrem, essa liberdade nãopode ser encarada de forma absoluta, mas sempre pressupondoa existência de interesse de agir em favor do paciente.

Há quem diga na doutrina que a impetração do habeas corpusjamais poderá ser prejudicial ao paciente, posto que seeste se encontra preso o habeas corpus, mesmo que indeferido,não poderá ser-lhe prejudicial, havendo sempre o interessedo paciente na interposição da medida.

Entretanto, não concordamos com esse entendimento, postoque mesmo que o paciente já se encontre preso, em algumassituações, um habeas corpus mal operado poderá prejudicar, emuito, sua defesa técnica, comprometendo sua futuraliberdade.

Imaginemos a seguinte hipótese: uma pessoa é presapreventivamente por ordem de um juiz de primeiro grau. Afamília do preso contrata um advogado de confiança paraacompanhamento do processo. Enquanto o advogado prepara ohabeas corpus,de forma afoita, um conhecido do preso que nãoé advogado, na ânsia de ajudá-lo, resolve impetrar umhabeas corpus com pedido liminar no Tribunal de Justiça. Portotal ausência de argumentação jurídica, bem como dadocumentação capaz de provar o alegado, a liminar écorretamente indeferida pelo relator. Nesse momento, oadvogado constituído que tem capacidade para manejarcorretamente o habeas corpus, bem como está em posse dosdocumentos que provarão o alegado, não mais poderá impetraro habeas corpus no Tribunal de Justiça e, nos termos dasúmula 69113 do STF14, também não poderá impetrar um novohabeas corpus com pedido de liminar no STJ ou STF, devendoaguardar o julgamento do mérito no Tribunal de JustiçaEstadual. Para que esse julgamento ocorra, demorará,dependendo do estado da federação, alguns meses.15

13Súmula 691 do STF: “Não compete ao supremo tribunal federal conhecerde "habeas corpus" impetrado contra decisão do relator que, em "habeascorpus" requerido a tribunal superior, indefere a liminar.”14 O autor não desconhece que em certas hipóteses a súmula 691 do STFtem sido flexibilizada pelos Tribunais Superiores, mas em caráterexcepcional, não se podendo contar com essa possibilidade para sanar oproblema apresentado.15 O autor não descarta o entendimento jurisprudencial majoritário deque a decisão em sede de habeas corpus não faz coisa julgada, sendo

Ora, tal fato não é prejudicial à liberdade do paciente?

Ainda, imagine que o afoito amigo, no intuito de ajudar opaciente, ao fazer o pedido de habeas corpus, apresentedocumentos ou fatos comprometedores e prejudiciais à linhade defesa futura já traçada pelo advogado constituído.

Tal fato não seria também prejudicial à defesa e aliberdade do paciente?

Havendo exame do mérito, na prolação da decisão queindefere o habeas corpus a problemática se acentua, vez queapós a preclusão das vias de impugnação não é mais possívela propositura de pedido idêntico, entendido assim aquelesentre as mesmas partes e com os mesmos fundamentos.

Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho eAntônio Scarance Fernandes16 ainda apontam a seguintesituação que também é problemática:

Não são raros os casos em que pessoas inescrupulosas ouafoitas, usando da faculdade concedida pela lei, pedem ohabeas corpus em favor de personalidades do mundopolítico ou social envolvidas em processos criminais, como único objetivo de conseguir notoriedade. Nessassituações, um eventual julgamento precipitado podecomprometer a linha de defesa que venha sendodesenvolvida pelo próprio acusado e seus advogadosconstituídos, resultando em prejuízo manifesto aopaciente. Assim, embora não se possa negar alegitimidade do eventual impetrante, estará ausente o

possível a impetração de um novo pedido com base em fatos e elementosprobatórios novos. Entretanto, o autor também não descarta afreqüência com que os Tribunais, sob a justificativa de excesso deprocessos, fazem uma verdadeira cognição sumária dos habeas corpus e osindeferem de pronto sob alegação de que se trata de reiteração domesmo pedido.16 PELLEGRINI GRINOVER, Ada; SCARANCE FERNANDES, Antonio e GOMES FILHO,Antonio Magalhaes. Recursos no Processo Penal. 7ª ed. São Paulo, RT, 2011,p. 281.

interesse de agir, como utilidade, não podendo serconhecido o pedido.

Desse modo, parece-nos que não há dúvidas de que em algumaspontuais e determinadas situações poderá haver um conflitoentre a vontade do impetrante não constituído e a vontadedo paciente.

Uma das possibilidades para superação desse conflito seriaa oitiva prévia do paciente quando a autoridade judiciáriacompetente tiver elementos que o levem a crer que não háinteresse do paciente no conhecimento do habeas corpus.

O próprio Código de Processo Penal, em seu artigo 656,“caput” faculta ao juiz determinar a imediata apresentaçãodo paciente, momento em que poderá perguntar-lhe sobre aconveniência do conhecimento da ação de habeas corpus,conforme se verifica:

Recebida a petição de habeas corpus, o juiz, se julgarnecessário, e estiver preso o paciente, mandará que esteIhe seja imediatamente apresentado em dia e hora quedesignar.

Os regimentos internos dos Tribunais Superiores tambémtrazem previsões neste sentido.

No Regimento Interno do STJ encontramos a previsão expressade possível oitiva prévia do paciente, nos termos o artigo201, II, que tem a seguinte redação:

Art. 201. O relator requisitará informações do apontadocoator, no prazoque fixar, podendo, ainda:(...)II - ordenar diligências necessárias à instrução do pedido;(...)

No Regimento Interno do STF há previsão expressa de que opedido não poderá ser conhecido se for desautorizado pelopaciente, conforme se verifica do § 3º do artigo 192:

§ 3º Não se conhecerá de pedido desautorizado pelopaciente.

Parte da doutrina também vai nesse sentido, como se inferedas palavras de Antônio Heráclito Mossin17:

É de se observar, todavia, que a liberalidade quanto aoajuizamento do writ a favor de terceiros tem seus limites:não pode ser levada a efeito quando houver oposiçãoexpressa daquele que deverá ser objeto da ordem.

O STF, no julgamento do HABEAS CORPUS nº 69889, do EspíritoSanto, de Relatoria do Ministro Marco Aurélio, emjulgamento realizado em 22 de fevereiro de 1994, decidiu:

Não se conhece do pedido de habeas corpus quando este,ajuizado originariamente perante o Supremo Tribunal Federal,é expressamente desautorizado pelo próprio paciente (RISTF,art. 192, parágrafo único).

Porém, apesar de todas as previsões legais acima esposadas, bem como as posições doutrinárias, parece-nos que a oitiva prévia dopaciente, em algumas situações, será incompatível com a necessária celeridade intrínseca ao habeas corpus.

Nessas hipóteses, reconhecida pela autoridade judiciária a possibilidade de ausência de interesse por parte do paciente no conhecimento do habeas corpus, com o fito de não atrasar a tutela jurisdicional com a diligência de oitiva do paciente, acreditamos ser possível que a autoridade judiciária conheça do habeas corpus duvidoso, mas declare,na própria decisão, que em virtude da dúvida em relação ao interesse do paciente não haja, excepcionalmente para aquela hipótese, óbice à impetração de novo writ entre as mesmas partes.

Nessas hipóteses entendemos que deve prevalecer o princípio processual da favor rei.

E não se diga que tal possibilidade traria insegurança jurídica ou permitiria a repetição ad eternum do mesmo habeas corpus, pois 17 MOSSIN, Antônio H. Compêndio de Processo Penal: curso completo. Barueri, Manole, 2010, p. 877.

essa situação somente ocorreria em situações extremas em que a autoridade judiciária reconhecesse a possibilidade de prejuízo ao paciente no conhecimento do habeas corpus.

Importante que se diga que não se está a defender alimitação do habeas corpus, que é uma garantia individual,mas sim o contrário, ou seja, a sua máxima efetividade.

Se o habeas corpus é uma garantia individual do direito deliberdade é preciso que sua aplicação objetive sempre essefim: a liberdade individual.

É preciso que se lembre que a garantia constitucional daampla defesa engloba tanto a defesa pessoal quanto a defesatécnica, sendo que o habeas corpus impetrado por terceiro sema autorização do paciente e de forma contrária ao que seudefensor constituído/escolhido planejou para sua defesatécnica, não se encaixa nem no aspecto da defesa pessoal enem no aspecto da defesa técnica.

Assim, reconhecida a possibilidade de prejuízo à defesa dopaciente, entende-se que o habeas corpus impetrado porterceiro não deve ser conhecido pelo juiz ou tribunal antesda oitiva do paciente ou, se essa diligência for atrasar atutela jurisdicional, o habeas corpus deverá ser conhecido,mas sem obstar a interposição de nova medida entre asmesmas partes.

Conclusão

A guisa de conclusão podemos afirmar que o habeas corpus,desde seu surgimento, sempre teve uma aspecto popular, vezque criado com a função de limitar o poder estatal.

Durante sua evolução, o habeas corpus não perdeu essecaráter, chegando à Constituição Federal brasileira de 1988como um instrumento garantidor do direito fundamental àliberdade de locomoção, previsto expressamente no artigo5º.

A doutrina e a jurisprudência pátrias, não obstante aprevisão do Código de Processo Penal, entendem que o habeascorpus tem natureza jurídica de ação mandamentalconstitucional e não de recurso, vez que entre outrosargumentos, inicia uma nova relação processual.

Sendo ação, o habeas corpus, para seu regular processamento,precisa preencher todas as condições: possibilidadejurídica do pedido, interesse de agir e legitimidade departes.

Visando concretizar a garantia da liberdade individual, alegitimidade ativa para impetração do habeas corpus em favorde terceiro é muito ampla, pois pertencente à qualquerpessoa, nacional ou estrangeiro, sem necessidade de provade qualquer condição pessoal.

Em virtude dessa amplitude para figurar como impetrante épossível, que no caso concreto, haja um conflito deinteresses entre o paciente e o impetrante, que por não sertécnico e prescindir de qualquer formalidade legal paraimpetrar o habeas corpus, poderá prejudicar a defesa técnicado paciente.

Nessas hipóteses acreditamos que se deva realizar a oitivado paciente para que se manifeste sobre o conhecimento ounão do pedido, nos termos do Regimento Interno do STF, ou,entendendo que essa diligência atrasará a tutelajurisdicional, que o habeas corpus seja conhecido semprejuízo de nova interposição idêntica.

Não se trata, nessa hipótese, de uma limitação à garantiado habeas corpus, mas sim um mero cuidado para que se efetivea liberdade do paciente, pela garantia da ampla defesa.

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