"O compositor planeja, a música ri" (Felipe de Almeida Ribeiro)

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O compositor planeja, a música ri... Considerações acerca de intuição e razão na criação musical 1 por Felipe de Almeida Ribeiro ³O compoViWoU planeja, a m~Vica Ui´ p Xma cplebUe fUaVe do compoViWoU norte- americano Morton Feldman (FELDMAN, 2000, p. 111), famoso por seu bom humor. Apesar de cômica, essa crítica ataca, essencialmente, aquele excesso de confiança que nós, compositores, muitas vezes depositamos nos planejamentos pré-composicionais. Ela aponta, a meu ver, uma necessidade crítica do compositor de buscar um equilíbrio na relação intuição-razão dentro do processo criativo musical. Hoje, no ensino da composição ± seja ele formal, seja informal ±, fala-se muito em harmonia, orquestração, contraponto etc., mas pouco se fala daquilo que escapa das explicações científicas e que justamente nos diferencia das ciências duras. São poucas, senão raras, as disciplinas na grade curricular dos cursos de graduação em música que abordam temáticas que encorajem o pensamento crítico, de caráter aberto. A criatividade não é, portanto, estimulada, especialmente em cursos de graduação. Temos uma forte ênfase no ensino das técnicas, na estratégia do ensino daquilo de que temos certeza. Há pouco espaço para o experimental. Nesse sentido, temos um problema. Para Stockhausen, por exemplo, a criatividade entende o novo e justamente o desconhecido como elementos caWaliVadoUeV eVVenciaiV paUa VXa conVWUXomo: ³Uma peVVoa cUiaWiYa fica VempUe estimulada quando acontece algo TXe nmo conVegXe e[plicaU [«]´ (STOCKHAUSEN, 2000, p. 36). Podemos complementar dizendo que a criatividade depende também do mutualismo entre intuição e razão, e é nesse sentido que proponho relacionar criatividade, intuição e razão na música. * * * 1 Parte deste texto foi originalmente apresentado no Fórum de Pesquisa Científica em Arte Escola de Música e BelaV AUWeV do PaUani (2012). Foi ampliado e UeYiVado paUa o pUojeWo ³OXWUaV PalaYUaV VobUe M~Vica´.

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O compositor planeja, a música ri...

Considerações acerca de intuição e razão na criação musical1

por Felipe de Almeida Ribeiro

“O compositor planeja, a música ri” é uma célebre frase do compositor norte-

americano Morton Feldman (FELDMAN, 2000, p. 111), famoso por seu bom humor.

Apesar de cômica, essa crítica ataca, essencialmente, aquele excesso de confiança que

nós, compositores, muitas vezes depositamos nos planejamentos pré-composicionais. Ela

aponta, a meu ver, uma necessidade crítica do compositor de buscar um equilíbrio na relação intuição-razão dentro do processo criativo musical.

Hoje, no ensino da composição – seja ele formal, seja informal –, fala-se muito em

harmonia, orquestração, contraponto etc., mas pouco se fala daquilo que escapa das

explicações científicas e que justamente nos diferencia das ciências duras. São poucas,

senão raras, as disciplinas na grade curricular dos cursos de graduação em música que

abordam temáticas que encorajem o pensamento crítico, de caráter aberto. A criatividade

não é, portanto, estimulada, especialmente em cursos de graduação. Temos uma forte

ênfase no ensino das técnicas, na estratégia do ensino daquilo de que temos certeza. Há

pouco espaço para o experimental. Nesse sentido, temos um problema. Para Stockhausen,

por exemplo, a criatividade entende o novo e justamente o desconhecido como elementos

catalisadores essenciais para sua construção: “Uma pessoa criativa fica sempre

estimulada quando acontece algo que não consegue explicar […]” (STOCKHAUSEN,

2000, p. 36). Podemos complementar dizendo que a criatividade depende também do

mutualismo entre intuição e razão, e é nesse sentido que proponho relacionar criatividade, intuição e razão na música.

* * *

1 Parte deste texto foi originalmente apresentado no Fórum de Pesquisa Científica em Arte Escola de Música e Belas Artes do Paraná (2012). Foi ampliado e revisado para o projeto “Outras Palavras sobre Música”.

Como compositor, estou constantemente buscando um diálogo inteligente entre

intuição e razão, um entendimento maleável, que reconsidere persistentemente suas

interconexões. Primeiramente, acredito que o processo de criação artístico centrado

apenas em intuição ou razão tende ao fracasso. Na verdade, obras baseadas puramente

em um desses dois polos são praticamente inexistentes: as composições sempre

apresentam essas duas características em diferentes níveis e proporções. Entretanto, o que

à primeira vista parecem ser dois conceitos opostos, são na verdade forças

complementares. Portanto, nossa simples divisão entre arte como aquilo que é flexível e

inexplicável e ciências exatas como uma disciplina rigorosa e precisa, vai por água

abaixo. É necessário enfatizar, em vista disso, a importância da mediação dessas duas

forças – intuição e razão –, pois é difícil imaginar algum processo criativo baseado

exclusivamente em uma ou outra apenas.

Geralmente, o que as pessoas popularmente referem como ‘mestres’ ou ‘clássicos’

da música faz alusão, mesmo que inconscientemente, à dicotomia intuição-razão. Por

exemplo: para muitos, Karlheinz Stockhausen, Ludwig van Beethoven ou Heitor Villa-

Lobos são marcos na história da música. Podemos pensar neles como indivíduos que

buscaram desenvolver a tensão entre intuição e razão dentro de suas próprias linguagens

musicais. Entendo que seja um engano identificá-los como ícones na história da música

apenas porque utilizaram certos artifícios em determinadas obras, como a aplicação da

série Fibonacci na estruturação formal, o uso de um jet-whistle como articulação exótica

ou mesmo uma fuga dupla como sinônimo de destreza intelectual. Antes disso, considero

esses personagens como compositores únicos porque alcançaram um grau de

autenticidade no entendimento dessas técnicas por meio de suas próprias impressões.

Parece-me que muitos os reconhecem mais pelas suas conquistas técnicas do que pelas

suas capacidades espirituais e intelectuais. Temos medo de reconhecê-los por aquilo que

não conseguimos explicar, como diria Stockhausen.

Na academia musical, estudantes são apresentados a algumas dessas técnicas como

modelos e estratégias composicionais: técnicas de execução e produção sonora, formas

musicais, escalas sintéticas, estilos contrapontísticos etc. Faz parte do processo de

aprendizagem, em determinado momento, sintetizar ou até quebrar esses paradigmas,

para então desenvolverem uma perspectiva nova e, quem sabe, própria. É nesse momento

que o indivíduo cria o seu próprio entendimento diante de determinadas técnicas, sua

própria impressão, seu estilo. Nasce uma linguagem própria, um esperanto.

Analisemos, por exemplo, um grupo de jazz. Mesmo que o repertório escolhido dê

abertura à improvisação, em vários momentos os instrumentistas fazem uso de

procedimentos metodológicos: forma, instrumentação, digitação, percepção, escalas,

cadências, progressões etc. Temos aqui um exemplo de um ambiente altamente

imaginativo, intuitivo, mas profundamente enraizado em teorias e técnicas. Imaginemos

agora uma situação oposta: solicitar a alguém, sem treinamento musical, que componha

um concerto grosso barroco. Esse indivíduo não terá, provavelmente, as habilidades

técnicas e intelectuais necessárias para completar essa tarefa. Entretanto, isso não

significa que essa pessoa não seja criativa, ou, mais especificamente, que não possua

pensamentos musicais intuitivos.

Nessa mesma linha de pensamento, reforço que música puramente baseada em

razão é inexistente. Em algum estágio, alguém deverá tomar decisões baseadas em algum

tipo de arbitrariedade ou procedimento aleatório – o que não define necessariamente

intuição. Lejaren Hiller (1924-1994), por exemplo, “compôs” ou “lançou” em 1956 a

Illiac Suite, a primeira peça musical composta por um computador por meio de

procedimentos de inteligência artificial. Por mais lógicas que sejam as decisões

composicionais tomadas pela máquina (sistema binário), há por trás disso uma série de

algoritmos criados pelo compositor (programador) que acaba denunciando uma

determinada estética – minimalista, serialista, roqueira ou outra qualquer.

Apesar do conflito conceitual entre intuição e razão, é dessa dialética que emerge o

processo de criação artística. Historicamente falando, Jean-Jacques Nattiez conclui que

mesmo dois compositores tidos como radicais opostos em determinados períodos de suas

carreiras, como Cage no acaso em música (intuição) e Boulez no serialismo integral (razão), devem parcialmente um ao outro o mérito de suas criações.

Quando Henry Cowell perguntou a Cage o que ele devia a Boulez, ele replicou com palavras aparentemente surpreendentes: “Boulez me influenciou com seu conceito de mobilidade”. Assim, de certa forma, Boulez deve o serialismo integral a Cage, e Cage o conceito de acaso a Boulez?! (NATTIEZ, 1993, p. 15)

É importante esclarecer, entretanto, que Cage emprestou o conceito de “mobile

form” das esculturas de Alexander Calder (1898-1976) para explicar seus conceitos de

mobilidade e, mais especificamente, do acaso na organização formal musical. Boulez, por

sua vez, mostra-se resistente à ideia de procedimentos aleatórios na música – apesar de

ter feito uso desse conceito em peças como Domaines (1968-69) e Piano Sonata III

(1955-57). Ele afirmava que procedimentos puramente movidos pelo acaso tendiam a um

afastamento da expressividade e do controle humano. Boulez, que aparentemente se

referia a John Cage, disse:

No momento, compositores contemporâneos parecem constantemente preocupados, para não dizer obcecados, pelo acaso... A mais elementar forma de transformação pelo acaso caminha junto com uma filosofia influenciada pelo orientalismo, que aborda uma fraqueza básica das técnicas de composição... Esse experimento com o acaso eu chamo de descuido. (Boulez in NATTIEZ, 1990, p. 18)

Cage, por sua vez, ataca Boulez por este não reconhecer que, mesmo sendo um

vanguardista do serialismo, fez uso de procedimentos aleatórios em suas próprias composições.

Após repetidamente ter dito que não se podia fazer aquilo que eu me propus a fazer, Boulez descobriu aquele livro do Mallarmé. Era um procedimento de acaso até o último detalhe. Comigo, o princípio tinha que ser rejeitado de imediato; com Mallarmé tornou-se de repente aceitável para ele. Agora Boulez estava promovendo o acaso, desde que fosse o seu tipo de acaso. (Cage in NATTIEZ 1990, p. 18)

Com base nesse rápido exemplo das correspondências entre Boulez e Cage,

podemos perceber a complexidade da arte e do processo criativo, especialmente se

levarmos em conta sua essência orgânica e flexibilidade, quando se trata da interação

entre intuição e razão. É um conceito impossível de ser reduzido a uma fórmula só, pois,

justamente por ser flexível, aceita múltiplas verdades: Verdi, Stockhausen, Beatles,

Hermeto Pascoal e Rage Against the Machine, apenas para citar alguns exemplos. E é

justamente esse ponto que cria um atrito entre uma prática estritamente acadêmica e o

processo das artes. Em arte, aceitamos tanto a coexistência temporal quanto a coexistência

estilística. Podemos apreciar, por exemplo, Palestrina (1525-1594) e Steve Reich (1936)

sem nenhum empecilho evolutivo – são quase 350 anos que separam esses dois artistas.

Adicionalmente, podemos também apreciar a música dos contemporâneos Boulez e Cage

sem restrições estilísticas. Ao contrário de algumas áreas de conhecimento, é sabido que

não buscamos por evolução em arte. Trabalhamos, portanto, sem a substituição, e

buscamos, como nas palavras de Fernando Pessoa, ser capazes de “[...] saber pensar com

as emoções e sentir com o pensamento; não desejar muito senão com a imaginação [...]”

(PESSOA, 2006, p. 151).

* * *

Por causa de sua natureza complexa, a criatividade não pode ser desconstruída em

um modelo único e imutável. Se analisarmos o repertório musical, perceberemos

diferentes compositores com diferentes tendências. Tenhamos um outro exemplo: Pierre

Boulez e Morton Feldman podem ser vistos também como opostos se consideradas suas

perspectivas de intuição e razão; o próprio Feldman concorda com esse posicionamento:

“Boulez, que é tudo o que eu não quero que a arte seja… Boulez, que uma vez disse em

um artigo que ele não está interessado em como uma peça soa, apenas como foi feita”

(FELDMAN, 2000, p. 33). A arte – diferentemente da ciência dura – não lida com uma

verdade apenas. Verdade em arte não é adequação. Ela aceita tanto Feldman e Boulez

quanto, por exemplo, Mozart e Lachenmann, Matisse e Mondrian. Hoje, temos concertos

que intercalam obras de Bach e Boulez, Villa-Lobos e Almeida Prado. A arte transcende

o tempo e aceita múltiplas verdades, as verdades dentro de cada artista. É importante

afirmar que não estamos aqui em busca de um modelo ideal para as artes, e sim de uma

libertação da ideia de modelo, daquilo que muitas vezes é defendido em algumas

academias. Cada obra possui seu próprio mundo, seu próprio idioma, suas próprias regras.

Ela respeita apenas as leis do artista, as leis do indivíduo, as leis embutidas dentro de sua

essência. Cada obra artística apresenta uma perspectiva, uma verdade, ou, nas palavras

de Jean-Luc Godard, uma exceção:

Cultura é a regra. E arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoievski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida, e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A regra quer a morte da exceção. (GODARD, Je vous salue, Sarajevo)

A verdade na arte deve ser vista como algo existente em cada obra de arte sozinha,

isto é, “[...] cada obra deve ensinar o ouvinte como ouvi-la: o que interessa, o que não

interessa, o que está em jogo” (CZERNOWIN, 2008, p. 3). Um som nunca está errado,

mas uma obra musical pode apresentar seus equívocos. Na ciência, se desejo saber a

massa de um objeto em gramas, existe uma resposta relativamente direta para isso. Porém

tal procedimento não faz sentido em se tratando de poéticas artísticas. Não há ideal

universal a ser alcançado em arte, então não deveríamos ter expectativas do que a arte

deveria ou não ser. Há apenas o ideal do artista e o ideal da obra de arte.

A seguir, a partir dos conceitos investigados, abordarei duas questões que sempre

surgem na minha prática composicional: “Qual é a duração de uma ideia musical?” e

“Compor e contestar... o papel da crítica no planejamento pré-composicional de uma

obra”.

* * *

Qual é a duração de uma ideia musical? Como lidar com esse objeto temporal e

como interagir com ele? Em minha prática composicional, essas questões sempre me

motivaram a conhecer minha própria linguagem musical. Como me comunico? Como

acontecem meus dispositivos de coerência? Como finalizo ou questiono uma afirmação?

É claro que estou fazendo uma analogia à fala, no sentido linguístico. Mas, como

defendido por Adorno, a música empresta muitos elementos da linguagem falada.

Exemplifico essas indagações com minha peça “No desalinho triste de minhas emoções

confusas” (2011),2 para piano e live-electronics. Fiz, naturalmente, vários ensaios e

2 Todas as obras de minha autoria aqui apresentadas podem ser acessadas em: http://www.almeida-ribeiro.com/

revisões até obter a versão definitiva. Consequentemente, a partitura final mostra diversas

mudanças em relação aos rascunhos iniciais, como novos compassos, a exclusão de outros

e, mais importante, a reorganização das ideias musicais. Como decidi isso tudo? Qual o

peso da intuição ou dos planejamentos pré-composicionais em minhas decisões? Difícil

mensurar, mas um fator que me permitiu um olhar diferente para a composição foi ter a

consciência da complexidade sônica e psicológica na música. Ou seja, compor tornou-se

mais um processo “arqueológico” que pode transcender a realidade e as expectativas: o

compositor pode escavar e ir revelando suas intenções aos poucos, mas pode – e deve –

criar o seu próprio idioma, a sua própria rota. Isso não significa se desprender de

referências, mas sim criar resistências à voz interna; aquilo que impulsiona o movimento, aquilo que comunica imobilidade, aquilo que desperta diálogo.

Durante o processo de criação dessa peça, dediquei parte do tempo de trabalho para

decidir a duração ideal entre duas articulações: um pizzicato (appoggiatura) seguido de

um trêmulo. Busquei executar esse gesto em diferentes dias, diferentes pianos e,

consequentemente, em diferentes salas; todas tentativas que renderam durações

diferentes, sensações diferentes. Nunca alcancei uma decisão ideal, porém foi exatamente

isso que me cativou. A grande diferença dessas tentativas, tecnicamente falando, foi o

tempo de ressonância entre os eventos, e esse parâmetro é praticamente impossível de

prever, pois depende de acústica, pianista, piano utilizado, para citar algumas das

variáveis. Apesar de haver uma ideia geral da obra, de um plano pré-composicional, a

escolha final foi intuitiva, mas tendo a consciência de que outras soluções eram possíveis.

Em outro trecho da obra, indaguei-me a respeito da quantidade de repetições de Ré# e de

um Fá#. Tentei sete repetições em uma primeira instância, e na segunda, seis. Qual a

gravidade, ou vantagem, de alterarem-se os valores para sete e oito, por exemplo? Dentro

do contexto dessa peça em específico, qual a diferença em se alterar o Fá#, na clave de

Fá, para um Sol natural? Claramente seria uma peça diferente, mas teria ela sua vitalidade

radicalmente alterada? Creio que não, até porque nesse caso a essência da peça está muito

mais relacionada com outros elementos, como timbre e gesto, do que com a escolha

específica das notas. É importante salientar que não considero o processo intuitivo

ilustrado nesses exemplos como algo aleatório, como um achismo, mas sim como um

processo cognitivo de assimilação de experiências previamente vivenciadas.

Em outra instância – meu trio para saxofones “Quintanares”, de 2007 –, trabalhei

diretamente com o corpo dos sons. Foi justamente no “tato”, na maleabilidade, nas

possíveis distorções e elasticidades que encontrei as regras para essa peça. Para isso,

iniciei uma pesquisa a respeito dos multifônicos produzidos pelos diferentes saxofones e

busquei nos recursos da música eletrônica os meios para a (re)construção. Foi um estudo

técnico em que gravei diversos multifônicos e transcrevi o espectro dessas sonoridades

para o papel pautado. A duração dos sons e das pausas, porém, não foi definido por

nenhuma fórmula ou regra, mas sim por processos de decisão intuitivos: experimentei por

meio de um software de análise espectral a possibilidade de ouvir cada harmônico, com

diferentes durações e entonações. Contudo, um pensamento diferenciado foi necessário

para desenvolver essa ideia no domínio artístico. Foi necessário o desenvolvimento de

uma verdade, e isso extrapolava técnicas e formulações. Envolvia a criação de uma

linguagem, com suas próprias regras de articulação, de fraseado e de cadência. Parti do

entendimento geral de consonância em música: se o som que gera tudo vem de um

instrumento só, assumi que os parciais desse som tinham o potencial para oferecer

relações e estruturas harmoniosas. Orquestrei o trecho em questão em forma de texturas

criadas por sons que surgem com seus ataques mascarados pelos outros instrumentos, um

procedimento oriundo da música eletrônica. O resultado aponta que mesmo sons

classificados como dissonantes pelas teorias de contraponto e mesmo da acústica soam

como harmoniosos no contexto dessa peça – volto a afirmar as palavras de Czernowin: “[...] cada obra deve ensinar o ouvinte como ouvi-la [...]” (CZERNOWIN, 2008, p. 3).

Se considerarmos que nossa intuição é altamente baseada em experiências

sensoriais prévias, então criatividade – no sentido mais profundo – é limitada. Entendo a

relação entre intuição e experiência como ponto crucial para o processo criativo artístico.

Porém o aspecto mais perigoso da intuição, em minha música pelo menos, é a tendência

a repetir ideias e gestos por meio de permutações, sem ter a intenção de buscar uma

repetição significativa, como na música de Salvatore Sciarrino ou Steve Reich. Ser

repetitivo difere de trabalhar com a repetição. Adicionalmente, intuição, como um 'curto

circuito' de experiências vivenciadas, é muitas vezes manifestada por meio da improvisação, ou seja, pelo ato de permutar as experiências previamente adquiridas.

* * *

Uma vez o plano pré-composicional pronto, ponho-me a compor. Essa é uma

realidade comum para nós, compositores: planejar e executar. Mas, como o próprio

Feldman nos adverte, é preciso contestar. Na maior parte da minha obra, eu raramente

trabalho com um plano pré-composicional 'hermético', pois o compor é um processo

transformante e gera planejamentos diferentes daquele do rascunho inicial. Um exemplo

disso é minha obra “Pirilampeios” (2008), para septeto (Figura 1).

Figura 1 – Pirilampeios

Essa obra reclama planejamentos pré-composicionais claros, justamente com o

intuito de fazer emergir sensações. O trecho acima ilustra bem meu entendimento entre

intuição e razão. A sonoridade criada entre o clarinete e a flauta, por exemplo, não foi

previamente vivenciada auditivamente por mim, sendo portanto uma experiência não

assimilada. A escolha das notas esteve confinada a um espectro obtido pelos parciais

superiores de uma certa série harmônica de um som analisado. O simples fato de se obter

essa série de notas não aponta, a priori, um pensamento musical. Aponta um

procedimento técnico. O pensamento reinante foi o de extrair uma textura: acreditar que

do planejamento desse trecho poderia emergir a possibilidade de criar uma textura em

que o soprano ora apresentasse o clarinete, ora a flauta, confundindo propositalmente o

ouvinte. O meu objetivo foi criar um universo caótico e ao mesmo tempo controlado, em

que não se percebesse com clareza duas linhas melódicas, mas sim uma textura, um

emaranhado. Esse procedimento envolveu questões de orquestração não tradicionais, pois

buscou justamente evitar a clareza de percepção de cada voz, ao contrário da tradição

dessa disciplina. Essa foi a verdade musical proposta: “manusear” a série de notas

escolhidas dentro do formato da textura imaginada. Trata-se não apenas de planejar a

textura, mas de criar gatilhos para fazer emergir a textura. É diferente; a segunda é mais

arriscada, pois ela cria regras para a construção da sonoridade, e não simplesmente

apresenta a sonoridade como um bloco imóvel, de fácil difusão, mas assim mesmo mais

opaco.

* * *

Acredito que compor é muitas vezes sinônimo de autoconhecimento e considero

minhas composições mais coerentes quando eu respeito a cadeia de acontecimentos acima

descrita. De maneira geral, eu passo mais tempo revisando o que compus do que com o

próprio ato de criação inicial. É um processo arqueológico, psicológico, de descoberta,

construção e desconstrução. Talvez, para mim, a essência genuína da criação artística

esteja mais associada com os rascunhos finais. Nesse caso, criar é na verdade construir-

descobrir. Como dizia Mário Quintana: “É preciso escrever um poema várias vezes para que dê a impressão de que foi escrito pela primeira vez” (QUINTANA, 2006).

Tendo isso em mente, minhas revisões acabam sendo praticamente processos de

identificação, classificação, modificação e muitas vezes de eliminação de elementos. Na

verdade, elas são similares a processos de reorganização, em que a dialética entre intuição

e razão é sempre ativa. Como previamente discutido, os objetivos da arte e da ciência não

são os mesmos. Não há uma verdade única em arte. Sendo assim, a arte aceita múltiplas

verdades. Fernando Pessoa fala sobre essa abertura, mas num sentido mais aberto, como

imperfeição: “Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita [...]. Mas imperfeito

é tudo, nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos dê sono

que não pudesse dar-nos um sono mais calmo ainda” (PESSOA, 2006, p. 41). Esse

pensamento encontra ressonância em muitas outras manifestações artísticas (e políticas), como na ideia de “erro como necessidade” de Luigi Nono.

Por estar ciente desse aspecto de abertura em arte, acredito que cada composição

permita múltiplos caminhos para diferentes finalizações. Stockhausen falou certa vez

sobre criatividade em uma de suas experiências com Theodor Adorno na escola de

Darmstadt. Essa citação é muito importante, por ilustrar bem a complexa simbiose entre

intuição e razão, pois mesmo um intelectual com muito treinamento musical, filosófico e estético como Adorno não conseguiu aceitar certas verdades:

Na edição de 1951 do Darmstadt Summer School para música nova, [Karel] Goeyvaerts e eu tocamos sua sonata para piano. [...] A peça foi violentamente atacada por Theodor Adorno. [...] Ele criticou essa peça de Goeyvaerts, dizendo que era absurda [...]. Adorno não a entendia de maneira alguma. Ele disse, não há trabalho motívico. Então eu levantei [...] e defendi esta peça [...]. Eu disse, mas Professor, você está procurando por uma galinha em uma pintura abstrata. [...] Mesmo Adorno tendo sido aluno de Alban Berg e tendo composto muito, e embora quisesse ter sido conhecido como um compositor mais do que como filósofo, basicamente ele não era uma pessoa criativa. Uma pessoa criativa está sempre empolgada quando algo acontece que não possa explicar, algo misterioso ou miraculoso. (STOCKHAUSEN, 2000, p. 36)

Feldman, porém, acreditava em uma visão um pouco diferenciada. O seu conceito

de composição estava mais fadado ao conceito de consciência que de abertura, recepção.

Ele acreditava que compor envolve saber “a nota certa no momento certo com o

instrumento certo” (FELDMAN, 2000, p. 160). Indo mais a fundo nesse pensamento,

Pauline Oliveros (1932-2016) completa: “Não basta apenas executar as notas certas no

tempo certo da maneira certa; devemos também ter a consciência certa” (OLIVEROS

apud LUCIER, 1995, p. 8). Trata-se da percepção certa; é daí que surge o conceito de

deep listening de Oliveros. Nesses casos, consciência é referente aos processos de

transferência de ideias ao papel, da transferência de fenômenos tridimensionais a planos

bidimensionais. Essa consciência representa, talvez, uma boa síntese das ideias até aqui

colocadas. No entanto, consciência no fazer artístico aceita e é alimentada pelas

experiências, intuições, planejamentos, assim como pelos tropeços, acasos, incertezas,

detritos, resíduos, imperfeições…

REFERÊNCIAS O compositor planeja, a música ri – Considerações acerca de intuição e razão na criação musical – Felipe de Almeida Ribeiro CZERNOWIN, Chaya. The other tiger. Search Journal for New Music and Culture. Summer 2008, Issue 2. Disponível em: www.searchnewmusic.org/index2.html

FELDMAN, Morton. Give my regards to Eight Street - Collected writings of Morton

Feldman. Cambridge: Exact Change, 2000.

GODARD, Jean-Luc. Je vous salue, Sarajevo. Périphéria: France 1993.

NATTIEZ, Jean-Jacques. The Boulez-Cage Correspondence. Cambridge: Cambridge

University Press, 1993.

OLIVEROS in LUCIER, Alvin. Reflections - interviews, scores, writings. Köln:

MusikTexte, 1995.

PESSOA, Fernando. O livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

QUINTANA, Mário. Caderno H. 1ª edição Editora Globo. 2006.

STOCKHAUSEN, Karlheinz. Stockhausen on Music. Robin Maconie (ed.).

Marion Boyars Publishers Ltd, 2000.