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75 Cadernos de Estudos Leirienses - 1 O Abrigo do Lagar Velho, no Vale do Lapedo: um Monumento Nacional de relevância mundial inquestionável Vânia Carvalho* VÂNIA CARVALHO Arqueóloga e Investigadora no Cias - Centro de Investigação em Antropologia e Saúde e no CEGOT - Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território. O texto encontra-se segundo as regras do novo acordo Ortográfico. Sinopse Em 1998, a descoberta do Abrigo do Lagar Velho, e particularmente do esqueleto Lagar Velho I (LV I), vulgarmente conhecido como Menino do Lapedo, no Vale do Lapedo, freguesia de Santa Eufémia, concelho de Leiria, constituiu um acontecimento marcante no domínio da paleoantropologia internacional. Esta foi e ainda é, inequivocamente, uma das mais relevantes descobertas do Paleolítico Superior Português, a par do complexo de gravuras rupestres do Vale do Côa. Em 2013, o Abrigo do Lagar Velho foi classificado como Monumento Nacional, contudo a sua inegável relevância não se encontra, na atualidade, materializada num projeto de investigação sistemático e de caráter programado. As primeiras ocupações humanas na região A região de Leiria apresenta, desde a Pré-história antiga, uma ocupação humana inquestionável que deixou marcas na paisagem. Os vestígios arqueológicos identificados permitem conhecer apenas uma ínfima parte daquelas que terão sido as vivências dos grupos humanos nesta área geográfica, contudo, as informações que possuímos reportam-se a um amplo período de ocupação humana, desde a Pré-história antiga até à época contemporânea. Atribui-se à região Leiriense, nomeadamente ao território integrado na bacia hidrográfica do Lis, um reconhecido e comprovado potencial arqueológico, sendo que nas últimas décadas, em virtude da intensificação das intervenções arqueológicas, se encontram reportadas centenas de

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O Abrigo do Lagar Velho, no Vale do Lapedo:um Monumento Nacional

de relevância mundial inquestionável

Vânia Carvalho*

VÂNIA CARVALHO

Arqueóloga e Investigadora no Cias - Centro de Investigação em Antropologia e Saúde e no CEGOT- Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território.O texto encontra-se segundo as regras do novo acordo Ortográfico.

Sinopse

Em 1998, a descoberta do Abrigo do Lagar Velho, e particularmente doesqueleto Lagar Velho I (LV I), vulgarmente conhecido como Menino doLapedo, no Vale do Lapedo, freguesia de Santa Eufémia, concelho de Leiria,constituiu um acontecimento marcante no domínio da paleoantropologiainternacional. Esta foi e ainda é, inequivocamente, uma das mais relevantesdescobertas do Paleolítico Superior Português, a par do complexo de gravurasrupestres do Vale do Côa. Em 2013, o Abrigo do Lagar Velho foi classificadocomo Monumento Nacional, contudo a sua inegável relevância não seencontra, na atualidade, materializada num projeto de investigação sistemáticoe de caráter programado.

As primeiras ocupações humanas na região

A região de Leiria apresenta, desde a Pré-história antiga, uma ocupaçãohumana inquestionável que deixou marcas na paisagem. Os vestígiosarqueológicos identificados permitem conhecer apenas uma ínfima partedaquelas que terão sido as vivências dos grupos humanos nesta áreageográfica, contudo, as informações que possuímos reportam-se a um amploperíodo de ocupação humana, desde a Pré-história antiga até à épocacontemporânea.

Atribui-se à região Leiriense, nomeadamente ao território integrado nabacia hidrográfica do Lis, um reconhecido e comprovado potencialarqueológico, sendo que nas últimas décadas, em virtude da intensificaçãodas intervenções arqueológicas, se encontram reportadas centenas de

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descobertas que vieram alterar drasticamente o conhecimento das ocupaçõeshumanas, neste espaço, ao longo dos tempos (Carvalho, 2005; Carvalho &Carvalho, 2007). Podem-se apontar, para esta região, uma série decaracterísticas que são consideradas, usualmente, como favoráveis àocupação de determinado território por parte dos grupos humanos pré-históricos, entre as quais: a existência de condições geomorfológicasfavoráveis à formação de estruturas cársicas, nomeadamente abrigos sobrocha; a abundância de cursos de água, potenciadores de maior riqueza emtermos de recursos alimentares, cuja diversidade seria ainda incrementadapela existência de distintos ecossistemas, associados à faixa atlântica e aoMaciço Calcário Estremenho; e a presença de fontes locais de matérias-primaspreferenciais, como o sílex e o quartzito.

As primeiras referências ao potencial arqueológico da região, transmitidaspor Leite de Vasconcelos e Joaquim Fontes, correspondem às descobertasde materiais arqueológicos enquadráveis no Paleolítico Inferior, efetuadaspor Carlos Ribeiro, em 1879, nas zonas de Milagres e Marrazes, em Leiria, edo achado de um biface pelo pré-historiador Émile de Cartailhac, na transiçãoentre os séculos XIX e XX, na zona de Leiria. Tavares Proença Júnior reportaigualmente a descoberta de um biface na Quinta da Cortiça, a Sul de Leiria,em 1910 (Cunha-Ribeiro, 2005). Manuel Heleno (1956), entre as décadas devinte e de sessenta do século XX, identificou um vasto conjunto material ereportou a existência de dezenas de sítios arqueológicos, na região de Leiria,a que atribuiu uma crono-tipologia do Paleolítico Inferior, apesar de não terreconhecido correlação estratigráfica para o material lítico recolhido (Cunha-Ribeiro, 2005). Durante o levantamento cartográfico e geológico da zona, aequipa de Teixeira e Zbyszewski (1968) identificou diversas estaçõesarqueológicas pré-históricas, e referiu o interesse estratigráfico, sobretudode alguns terraços fluviais do rio Lis, onde terão identificado materiais descritoscomo Acheulenses, tendo realizado trabalhos arqueológicos na jazida daQuinta do Cónego, nas Cortes (Zbyszewski et al., 1980).

O vale do rio Lis foi alvo de trabalhos arqueológicos conduzidos porCunha-Ribeiro (1999, 2005) ao longo de vinte anos, que conduziram àprodução de uma das primeiras dissertações de doutoramento, em Portugal,sobre as ocupações humanas no Plistocénico, nomeadamente as ocupaçõesAcheulenses. A realização de prospeções intensivas permitiu a identificaçãode um conjunto bastante representativo de novos sítios arqueológicos,enquadrados no Paleolítico Inferior, entre as quais as jazidas do Areeiro da

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Quinta da Carvalha, do Areeiro do Aeródromo-Este e da Quinta de SãoVenâncio, tendo sido realizadas campanhas de escavação nas estaçõesarqueológicas mais significativas, tais como Pousias/Quinta do Cónego e Casaldo Azemel (Batalha) (Cunha-Ribeiro, 1999, 2005). Este autor consideraexistirem momentos distintos de ocupação do vale do Lis durante o PaleolíticoInferior, integrados no Plistocénico médio, no qual insere as primeirasocupações da região. Estes momentos diferenciam-se sobretudo em termosde estratégias de ocupação e integração no meio, sendo, por exemplo,associadas a distintos tipos de terraços fluviais.

No que concerne ao Paleolítico Médio, relacionado cronologicamentecom o Plistocénico superior, entre 130/125 000 até cerca de 30 000 BeforePresente (BP), os dados são particularmente lacunares para a baciahidrográfica do Lis, sendo que apenas se podem discutir com mais segurançaos dados relativos ao sítio arqueológico da Praia do Pedrógão, quecorresponde a uma estação de ar livre, situada no areal desta povoação. Aescavação arqueológica aí realizada permitiu definir dois momentos distintosde ocupação humana no local, um primeiro nível com materiais que sugeremuma ocupação mais antiga, e um segundo nível com materiais sem alteraçõespós-deposicionais marcadas, atribuído ao Paleolítico Médio (Aubry et al.,2005). O sítio adquire uma particular relevância pelo tipo de estratégia derecursos e exploração do território costeiro de que é testemunha.

O Paleolítico Superior

O Paleolítico Superior refere-se a um período, definido para a Europa,cujo limite cronológico inferior corresponde ao início do povoamento desteterritório pelo Homem anatomicamente moderno, e cujo limite superiorcorresponde ao final do Plistocénico (Djindjian et al., 1999). O PaleolíticoSuperior enquadra-se geologicamente na fase final do Plistocénico Superior,num período que, do ponto de vista ambiental, se considera comoapresentando, de modo genérico, uma grande instabilidade climática, comtendência geral descrita como fria e seca, com uma fase especialmente fria, oÚltimo Máximo Glaciário, situada entre aproximadamente 20 000 BP e 15000 BP (Daveau, 1980; Dias, 2004; Aubry et al., 2011).

As variações climáticas, através da sua ação sobre o meio, influenciaramde forma significativa a vida dos homens do Paleolítico Superior, e, emconsequência, a evolução cultural ocorrida ao longo da mesma (Daveau, 1980;

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Djindjian et al., 1999), matizando-se este quadro geral em consequência dasespecificidades e variações paleoecológicas e geomorfológicas regionais.

Este é um período de mudanças tecnológicas, de dinamismo cultural ede alterações populacionais, propício a significativas modificaçõescomportamentais, não sincrónicas. Durante o Paleolítico Superior assiste-sea uma maior diversidade cultural do que no Paleolítico Inferior e Médio, sendovisível uma maior regionalização cultural. A análise dos dados arqueológicospermite reconhecer um desenvolvimento tecnológico ao nível das indústriasósseas e líticas; uma clara capacidade de adaptação às mudanças climáticas;evidências da definição de territórios; estratégias de caça especializadas;deslocações sazonais; novas formas de aprovisionamento; e exploração derecursos disponíveis no meio ecológico (Djindjian et al., 1999; Aubry, 2009).

A Estremadura portuguesa apresenta uma grande concentração de sítiosarqueológicos datáveis do Paleolítico Superior, contudo, até à descoberta doAbrigo do Lagar Velho, em 1998, não se encontravam referenciadas estaçõesarqueológicas atribuíveis a este período na bacia hidrográfica do Lis (Zilhão,1997; Zilhão & Trinkaus, 2002; Almeida, 2005; Carvalho & Carvalho, 2007).Esta situação foi drasticamente alterada em consequência das intervençõesrealizadas no Abrigo do Lagar Velho e da execução, nesta e noutras áreas daregião, de trabalhos posteriores de prospeção, acompanhamento e sondagensarqueológicas (Zilhão & Trinkaus, 2002; Almeida, 2005; Carvalho & Carvalho,2007; Pereira, 2010).

Na bacia hidrográfica do Lis encontram-se, atualmente, inventariadosdezenas de sítios com ocupações enquadráveis neste período. Refira-se aidentificação, desde 1998, de um número considerável de abrigos sob rocha,com vestígios ou potencial para ocupações antrópicas, no Vale do Lapedo enoutros vales cársicos, tais como os vales do Ribeiro das Chitas, do Leão edo Ribeiro dos Murtórios, bem como de sítios arqueológicos em contextos dear livre, no vale do Ribeiro do Fagundo e em outras zonas da região, emresultado de diferentes tipologias de intervenções arqueológicas, quer emcontexto de projetos programados, quer no âmbito de intervençõesarqueológicas de arqueologia preventiva e minimização de impactes (Carvalho& Carvalho, 2007).

Foram apresentadas, nas últimas décadas, diversas dissertaçõesacadémicas e projetos de investigação, interdisciplinares e multidisciplinares,que tem vindo a comprovar a importância desta região para o conhecimentodas comunidades de caçadores-recolectores do final do Plistocénico (Almeida,

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2005; Pereira, 2010; Carvalho, 2011). Apresentámos, em 2011, uma tese demestrado em Evolução e Biologia Humanas centrada no estudo de caso doAbrigo do Lagar Velho e no esqueleto Lagar Velho I, visando a discussãosobre os resultados arqueológicos e paleoantropológicos do sítio, bem comosobre o processo de investigação, decorrido entre 1998 e 2011 (Carvalho,2011). Nesse trabalho, propusemo-nos discutir a relevância atribuída quer aosítio arqueológico Abrigo do Lagar Velho, quer ao achado de LV I, do pontode vista da arqueologia pré-histórica e da biologia evolutiva humana.

O Abrigo do Lagar Velho

O Abrigo do Lagar Velho localiza-se no lugar do Lapedo, freguesia deSanta Eufémia, concelho de Leiria, situando-se na margem esquerda daRibeira da Carrasqueira, junto ao último meandro desta ribeira antes da saídada garganta do Vale do Lapedo, na base de uma parede calcária comorientação E-W. O abrigo de formato alongado apresenta uma sucessão depalas de grandes dimensões e respetivas linhas de pingo (Duarte et al., 1999;Zilhão & Trinkaus, 2002), tendo sido denominado Abrigo do Lagar Velho devidoà existência, no local, de ruínas de um lagar de azeite.

O Vale do Lapedo apresenta características distintivas em relação àsáreas circundantes, nomeadamente em termos geológicos, morfológicos,sistema hidrológico e microclima. Corresponde a um vale cársico encaixado,com uma garganta encaixada e estreita, do tipo Canyon, limitado lateralmentepor encostas muito íngremes e paredes rochosas verticais ou sub-verticais(Angelucci, 2002). Do ponto de vista geológico, situa-se na OrlaMesocenozóica Ocidental, no limite setentrional do Maciço CalcárioEstremenho, estando entre este maciço e o Sistema Condeixa-Sicó-Alvaiázere, no limite do sinclinal dos Pousos. No Vale do Lapedo é visíveluma paisagem marcada pela garganta fluvio-cársica, com um ribeiro emmeandro encaixado, com presença de abrigos sob rocha (maioritariamentepequenas cavidades alongadas ou reentrâncias exteriores, comdesenvolvimento horizontal e pouco profundas), buracas (formas circularespequenas e com desenvolvimento vertical), de algumas entradas de grutas eparedes verticalizadas, cuja origem se deve à influência do afloramento deuma formação de calcários mais resistentes que as rochas adjacentes, e quecondicionam os processos de dissolução cársica e fluviais (Teles, 1992;Angelucci, 2002).

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A identificação, em 1998, de arte rupestre pré-histórica no Vale do Lapedo,por Pedro Ferreira, no sítio denominado Abrigo do Vale de Lapedo 1, conduziuao reconhecimento do potencial do Abrigo do Lagar Velho, em finais deNovembro de 1998, por Pedro Souto e João Maurício, da equipa da SociedadeTorrejana de Espeleologia e Arqueologia (STEA), que se deslocaram ao valepara autenticar as pinturas. Esta equipa reconheceu o potencial dos depósitosexistentes no Abrigo do Lagar Velho, nos quais recolheram artefactos eecofactos, de cronologia potencialmente paleolítica, bem como vestígiososteológicos, manchados com ocre de cor avermelhada, que seriam depoisconfirmados como pertencentes a uma sepultura humana. A terraplanagemrealizada, em 1994, pelo proprietário do terreno, Adelino Roda, conduziu àremoção da parte superior dos depósitos, cerca de dois a três metros deespessura, destruindo uma parte substancial da sequência sedimentar (Duarteet al., 1999; Zilhão & Trinkaus, 2002). A superfície atual do solo, a cerca de 4metros acima do fundo rochoso da ribeira, e separado desta por um escarpadomodificado pelo homem, situa-se a uma altitude entre 83 e 85 metros acimado nível atual médio do mar.

A investigação no Abrigo do Lagar Velho iniciou-se após a descobertade fragmentos osteológicos humanos, correspondentes ao enterramento deum indivíduo não adulto, posteriormente escavado, e de artefactos, restosfaunísticos, carvões e termoclastos, integrados num testemunho sedimentar,que preenche uma fissura alongada dos calcários, cortados pela terraplanagem(Duarte et al., 1999; Zilhão & Trinkaus, 2002). Os trabalhos de escavaçãoarqueológica decorreram de modo sistemático de 1998 a 2004, anocorrespondente à última campanha arqueológica, aqui realizada, no âmbitode um projeto de investigação programada. Entre os anos de 1998 e 2004,foram identificados e escavados, em campanhas anuais com vários mesesde duração, diversos contextos preservados, situados a cotas inferiores àterraplanagem e no Testemunho Pendurado, sob a responsabilidade de JoãoZilhão, em 1998 e 1999, e, posteriormente de Francisco Almeida (Almeida,2005; Zilhão & Trinkaus, 2002; Almeida et al., 2009). Saliente-se que em 2004,os trabalhos de campo consistiram em operações de limpeza, visando preparara jazida para receber visitantes, estando esta intervenção associada ao projetoinicial para um centro de interpretação de sítio (Almeida, 2005). Apenas sevoltou a intervir no sítio, em 2009, num contexto de escavação de emergência,cujos trabalhos consistiram no levantamento da unidade EE15, que seapresentava, segundo F. Almeida, em estado de evidente degradação

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(Almeida et al., 2009). Em 2012, foi realizada uma intervenção de emergênciana área do Testemunho Pendurado e procedeu-se à proteção dos restantesníveis arqueológicos expostos (Araújo & Costa, 2012), estando desde entãosuspensas as intervenções arqueológicas no local.

O sítio arqueológico ficou conhecido mundialmente, logo em 1998, devidoà divulgação da descoberta da sepultura, com um esqueleto infantil doPaleolítico Superior, o chamado “menino do Lapedo”, tendo a atenção dosmeios de comunicação social sido potenciada pela controversa proposta deinterpretação, avançada em meados de 1999, a da existência, no esqueleto,de um mosaico de características anatómicas de Homo sapiens e Homoneanderthalensis (Duarte et al., 1999; Zilhão & Trinkaus, 2002). A identificaçãodo Abrigo do Lagar Velho, e a escavação da sepultura infantil LV I, enquadradano tecnocomplexo Gravettense, foram amplamente divulgadas, e deramorigem à publicação de uma extensa monografia, em língua inglesa, em 2002,assim como, de diversos artigos em revistas de impacto internacional (Duarteet al., 1999; Zilhão & Trinkaus, 2002; Almeida et al., 2009; Bayle et al., 2010).

Os estratos plistocénicos preservados, conhecidos até ao momento, comocupação humana reportam-se à sequência crono-cultural balizada entre ostecnocomplexos Gravettense e Solutrense Médio, estando documentadasquatro fases de utilização, descontínuas em termos temporais, e corres-

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Abrigo do Lagar Velho, Vale do Lapedo, 18-04-1999 (foto Carlos Fernandes)

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pondentes a diferentes modelos de ocupação do local, por parte de diferentesgrupos humanos (Zilhão & Trinkaus, 2002; Almeida et al., 2009). A sequênciasedimentar identificada, no Abrigo do Lagar Velho, integra vestígios materiaise ocupações com cronologias entre cerca de 30 a 20 000 BP, sendo que aolongo deste período se verifica uma notória diversidade das ocupaçõesantrópicas, em termos de utilizações e tipologias funcionais: a primeirautilização confirmada do abrigo, com uso funerário, limitado a uma sepulturainfantil identificada in situ, de cerca de 24 500 BP; os contextos de ocupaçãotemporária e/ou logística, enquadráveis entre cerca de 23 e 22 000 BP; e afase de utilização intensiva do abrigo como acampamento base, durante oGravettense Terminal, cerca de 21 400 BP, e o Solutrense Médio, cerca de20 200 BP (Zilhão & Trinkaus, 2002; Almeida et al., 2009).

De entre os vestígios de ocupações antrópicas, destacam-se doismomentos: o da sepultura e o da superfície de ocupação Gravettense EE15.A relevância da sepultura foi atestada, desde o primeiro momento, por setratar do primeiro enterramento Paleolítico escavado na Península Ibérica.Foi interpretada, inicialmente, como o enterramento de uma criançaanatomicamente moderna, com uma idade à morte estimada entre os 4 e os5 anos, enquadrável no Paleolítico Superior, tendo sido posteriormente datada(indiretamente), com base em elementos associados à sepultura, de cercade 24 500 BP (Duarte et al., 1999; Zilhão & Trinkaus, 2002).

A escavação de emergência realizada, entre 1998 e 1999, permitiudeterminar os momentos inerentes ao ritual de enterramento. Os restososteológicos humanos, quer os escavados in situ, integrados no esqueletoarticulado, quer os pertencentes aos fragmentos dispersos do crânio e dadentição, mobilizados aquando da terraplanagem, são considerados comopertencentes a um único indivíduo infantil. No que concerne à sepultura, ocorpo encontrava-se em decúbito dorsal, com a cabeça para Este e os péspara Oeste, numa posição paralela à ribeira e à parede do abrigo, à qualencostava parcialmente. O corpo foi depositado numa fossa sepulcral poucoprofunda, sendo que na base desta se identificaram carvões de pinheiro-silvestre (Pinus silvestris), cuja presença foi interpretada como ritual. Sãointerpretados, de igual modo, como elementos associados ao ritual deenterramento, quer como oferendas fúnebres, quer como adornos pessoais:duas conchas de burrié (Littorina obtusata), quatro caninos de veado (Cervuselaphus) perfurados e diversos fragmentos faunísticos de coelho (Oryctolaguscunniculus) e veado. Foi ainda reportado o uso de ocre no contexto funerário,

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proveniente, possivelmente, de uma mortalha semirrígida tingida com umatinta à base deste pigmento mineral (Duarte et al., 1999; Zilhão & Trinkaus,2002).

Após análise laboratorial foi apresentada a proposta, suscitada pelascaracterísticas morfológicas do fóssil LV I, da existência de um invulgarmosaico evolutivo, “uma combinação única de características anatómicasgeneticamente herdadas, umas modernas (…), e outras neandertalenses”(Zilhão & Trinkaus, 2002:566) que segundo os autores só poderiam ter umaexplicação filogenética. A equipa liderada por Zilhão e Trinkaus (2002) propõeuma teoria explicativa, a de Origem Recente com Miscigenação, entre Homosapiens e Homo neanderthalensis. Esta teoria relativa à origem do Homemanatomicamente moderno, controversa e muito contestada, sobretudo pelosdefensores do modelo da Origem Africana Recente, ganhou, nos últimos anos,novo fôlego, em consequência, nomeadamente, da publicação de dadosgenéticos relativos à descodificação do genoma do Homem de Neandertal,pela equipa de Svante Pääbo (Zilhão & Trinkaus, 2002; Zilhão, 2006; Greenet al., 2010).

Entre os anos 2000 e 2004, foram identificados e escavados, de modosistematizado, diversos contextos preservados, sob a responsabilidade doinvestigador Francisco Almeida, sendo que, entre estes, se salienta a já referida

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João Zilhão (em 1.º plano, à esq.), no Vale do Lapedo, em 18-04-1999 (foto Carlos Fernandes)

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superfície de ocupação Gravettense EE15. Este contexto, com dataçõesabsolutas de entre 22 500 e 22 000 BP, apresenta excelentes condições depreservação espacial e vertical dos artefactos líticos, materiais faunísticos eestruturas (Zilhão & Trinkaus, 2002; Almeida et al., 2009). Esta unidade foiconsiderada como correspondente a um acampamento temporário, organizadoem torno de duas lareiras com características diferenciadas, quanto ao seuconteúdo, arquitetura (técnica de construção) e funcionalidades (Zilhão &Trinkaus, 2002; Almeida et al., 2009).

Em 1993, o Município de Leiria, em colaboração com diversasassociações de defesa do ambiente e do Património, propôs a classificaçãodo Vale do Lapedo como património natural, a fim de garantir a suapreservação, por se considerar que o vale apresentava valor em termospaisagísticos, bem como componentes geológicas e biológicas, quejustificavam tal classificação. Com o desenvolvimento da proposta declassificação do sítio arqueológico Abrigo do Lagar Velho, como MonumentoNacional, e com a previsão de delimitação da sua Zona Especial de Proteção,o processo da classificação natural foi encerrado. A relevância cultural dosítio arqueológico Abrigo do Lagar Velho garantiu a abertura do seu processode classificação ainda em 1999. Contudo, este processo só foi concluído em2013, tendo a jazida sido classificada como Monumento Nacional e sidopublicada a sua Zona Especial de Proteção. Uma breve visita ao vale revela-se esclarecedora sobre a necessidade de garantir uma efetiva salvaguardado património natural e cultural.

Considerações finais

O sítio Abrigo do Lagar Velho, no que respeita ao conhecimento sobre oPaleolítico Superior em Leiria, apresenta uma relevância arqueológicairrefutável, uma vez que a investigação relativa a ocupações humanas comesta cronologia foi despoletada e potenciada pela sua descoberta. Saliente-se que na atualidade se conhecem dezassete sítios arqueológicos, comcronologia atribuída ao Paleolítico Superior na região, por oposição à situaçãode inexistência absoluta de conhecimentos sobre vestígios enquadráveis nestacronologia, em período anterior à identificação deste sítio.

Na nossa perspetiva, e tendo em conta a análise efetuada relativamenteao enquadramento dos projetos de investigação e processos de intervenção,esta situação absolutamente antagónica, deve-se a posturas científicas e

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institucionais diferentes, decorrentes do interesse e potencial revelado peladescoberta do Abrigo do Lagar Velho, e que provocou uma maior atenção,para esta área geográfica, por parte da comunidade científica e das instituiçõesque tutelam o património arqueológico, dado que a mesma revelou, com adescoberta do sítio e do fóssil, um claro potencial para ocupações humanasenquadráveis neste período. Este potencial foi amplificado peloreconhecimento, por parte da comunidade arqueológica, da existência dediversas zonas com características geológicas e geomorfológicas quehabitualmente se encontram associadas a ocupações humanas enquadráveisno Paleolítico Superior, designadamente a existência de vales cársicos, comabrigos sob rocha e grutas, bem como de zonas com presença de jazidas desílex.

Considerando que o Abrigo do Lagar Velho é inquestionavelmente umsítio arqueológico excecional, no quadro do Paleolítico Superior Português,especialmente pela identificação do esqueleto Lagar Velho I, parece-nos queeste sítio necessita, urgentemente, de ser objeto de um projeto de investigaçãoprogramada, com intuitos científicos devidamente fundamentados. Apesar deconsiderarmos terem sido anteriormente apresentados projetos com inegávelqualidade científica, parece-nos, contudo, que se torna necessário redefinirestratégias, designadamente quanto à obtenção de fontes de financiamento,que deverão ser mais diversificadas, e não apenas de âmbito estatal nacional,devendo ser alargadas a instituições internacionais, procurando-se obterfinanciamento, igualmente, através de outros mecanismos, e suscitando-se ointeresse, no quadro de mecenato cultural, por este domínio da investigação.Parece-nos ainda que se terá de repensar o modelo de gestão da investigaçãoarqueológica que tem vindo a ser implementado no sítio, bem como no restanteVale do Lapedo, garantindo-se a constituição de uma equipa multidisciplinar.

Parece-nos ainda necessário desenvolver um programa de sondagense escavações arqueológicas, quer no Vale do Lapedo, quer nos sítios maisimportantes, referenciados no restante território, que permitam confirmar aefetiva relevância dos sítios arqueológicos. Só assim será possível estabeleceruma sequência crono-estratigráfica para o Paleolítico Superior na região deLeiria, abrangente e completa, contribuindo efetivamente para um melhorconhecimento sobre as vivências das populações humanas que habitarameste espaço.

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O Abrigo do Lagar Velho, no Vale do Lapedo

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