Narrativas no estudo das práticas em saúde mental: contribuições das perspectivas de Paul...

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ARTIGO ARTICLE 2847 1 Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. R. Tessália Vieira de Camargo 126, Unicamp. 13.083-887 Campinas SP. [email protected] 2 Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Programa de Psiquiatria, Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Narrativas no estudo das práticas em saúde mental: contribuições das perspectivas de Paul Ricoeur, Walter Benjamim e da antropologia médica Narratives in the study of mental health care practices: contributions of the perspectives of Paul Ricoeur, Walter Benjamin and of medical anthropology Resumo Narrativas são cada vez mais frequen- tes em estudos qualitativos para compreender ex- periências e diferentes visões de sujeitos num dado contexto. Partindo desta concepção, faz-se o res- gate de tradições que abordam a narratividade – a filosofia de Paul Ricoeur, a perspectiva histórica em Walter Benjamin e o campo da antropologia médica constituída a partir da fenomenologia. Em Ricoeur, tendo a hermenêutica como pensamento derivado e variante da fenomenologia, a narrati- va é ligada à temporalidade. Em Benjamin, a nar- rativa, sempre inconclusa, feita de restos e frag- mentos, emerge à revelia das histórias oficiais. Se Ricoeur retoma de Gadamer a tradição como com- ponente fundamental para a construção de um mundo do texto com que se torna possível a imi- tação da vida, Benjamin, diante da derrocada da tradição, aponta para a invenção de formas nar- rativas fora dos cânones tradicionais, possibili- tando retomar o passado para transformar o pre- sente. Apresentam-se ainda pressupostos da an- tropologia médica, que considera a narrativa como dimensão do vivido e não sua abstração, ou seja, uma narrativa corporificada e situada. Por fim, apresentam-se três pesquisas distintas em saúde mental que se utilizam de narrativas, articuladas às correntes teóricas apresentadas, com suas dife- renças e aproximações. Palavras-chave Saúde mental, Métodos, Pesqui- sa qualitativa, Narração, Saúde coletiva Abstract Narratives are ever more frequent in qualitative studies seeking to interpret experiences and the different viewpoints of individuals in a given context. Starting from this concept, the tra- dition that addresses narrative is reexamined, including the philosophy of Paul Ricoeur, the his- torical perspective of Walter Benjamin and the field of medical anthropology grounded in phe- nomenology. In Ricoeur, with hermeneutics as a variation derived from phenomenology, narra- tive is linked to temporality. In Benjamin, narra- tive comprised of bits and pieces, always incon- clusive, emerges in spite of the official stories. If Ricoeur retrieves tradition from Gadamer as a fundamental component for the construction of the world of a text that makes imitation of life possible, Benjamin, faced with the collapse of tra- dition, suggests the invention of narrative forms outside the traditional canons, making it possible to hark to the past in order to change the present. Assumptions of medical anthropology are also presented, as they consider narrative a dimen- sion of life and not its abstraction, namely an embodied and situated narrative. Lastly, three distinct research projects in mental health that use narrative linked to the theoretical concepts cited with their differences and similarities are presented. Key words Mental health, Methods, Qualitative research, Narration, Public health Rosana Teresa Onocko-Campos 1 Analice de Lima Palombini 2 Erotildes Leal 3 Octavio Domont de Serpa Junior 3 Ivana Oliveira Preto Baccari 1 Ana Luiza Ferrer 1 Alberto Giovanello Diaz 1 Maria Angélica Zamora Xavier 2

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1 Departamento de SaúdeColetiva, Faculdade deCiências Médicas,Universidade Estadual deCampinas. R. TessáliaVieira de Camargo 126,Unicamp. 13.083-887Campinas [email protected] Instituto de Psicologia,Universidade Federal doRio Grande do Sul.3 Programa de Psiquiatria,Instituto de Psiquiatria,Universidade Federal doRio de Janeiro.

Narrativas no estudo das práticas em saúde mental:contribuições das perspectivas de Paul Ricoeur,Walter Benjamim e da antropologia médica

Narratives in the study of mental health care practices:contributions of the perspectives of Paul Ricoeur,Walter Benjamin and of medical anthropology

Resumo Narrativas são cada vez mais frequen-

tes em estudos qualitativos para compreender ex-

periências e diferentes visões de sujeitos num dado

contexto. Partindo desta concepção, faz-se o res-

gate de tradições que abordam a narratividade –

a filosofia de Paul Ricoeur, a perspectiva histórica

em Walter Benjamin e o campo da antropologia

médica constituída a partir da fenomenologia. Em

Ricoeur, tendo a hermenêutica como pensamento

derivado e variante da fenomenologia, a narrati-

va é ligada à temporalidade. Em Benjamin, a nar-

rativa, sempre inconclusa, feita de restos e frag-

mentos, emerge à revelia das histórias oficiais. Se

Ricoeur retoma de Gadamer a tradição como com-

ponente fundamental para a construção de um

mundo do texto com que se torna possível a imi-

tação da vida, Benjamin, diante da derrocada da

tradição, aponta para a invenção de formas nar-

rativas fora dos cânones tradicionais, possibili-

tando retomar o passado para transformar o pre-

sente. Apresentam-se ainda pressupostos da an-

tropologia médica, que considera a narrativa como

dimensão do vivido e não sua abstração, ou seja,

uma narrativa corporificada e situada. Por fim,

apresentam-se três pesquisas distintas em saúde

mental que se utilizam de narrativas, articuladas

às correntes teóricas apresentadas, com suas dife-

renças e aproximações.

Palavras-chave Saúde mental, Métodos, Pesqui-

sa qualitativa, Narração, Saúde coletiva

Abstract Narratives are ever more frequent in

qualitative studies seeking to interpret experiences

and the different viewpoints of individuals in a

given context. Starting from this concept, the tra-

dition that addresses narrative is reexamined,

including the philosophy of Paul Ricoeur, the his-

torical perspective of Walter Benjamin and the

field of medical anthropology grounded in phe-

nomenology. In Ricoeur, with hermeneutics as a

variation derived from phenomenology, narra-

tive is linked to temporality. In Benjamin, narra-

tive comprised of bits and pieces, always incon-

clusive, emerges in spite of the official stories. If

Ricoeur retrieves tradition from Gadamer as a

fundamental component for the construction of

the world of a text that makes imitation of life

possible, Benjamin, faced with the collapse of tra-

dition, suggests the invention of narrative forms

outside the traditional canons, making it possible

to hark to the past in order to change the present.

Assumptions of medical anthropology are also

presented, as they consider narrative a dimen-

sion of life and not its abstraction, namely an

embodied and situated narrative. Lastly, three

distinct research projects in mental health that

use narrative linked to the theoretical concepts

cited with their differences and similarities are

presented.

Key words Mental health, Methods, Qualitative

research, Narration, Public health

Rosana Teresa Onocko-Campos 1

Analice de Lima Palombini 2

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Octavio Domont de Serpa Junior 3

Ivana Oliveira Preto Baccari 1

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Introdução

O uso de abordagens narrativas em pesquisas decunho qualitativo no campo da saúde coletiva temse mostrado cada vez mais frequente em estudosvoltados para compreender experiências e dife-rentes pontos de vista de sujeitos em um dadocontexto. Alguns estudos1-6 defendem a narrativacomo uma ferramenta essencial na construção designificados para a existência humana e demons-tram a importância do seu uso como forma dedescrever experiências vividas, especialmente emrelação ao adoecimento. Também apontam anarrativa como possibilidade de ampliação daprática clínica, discutem diferentes abordagens eestruturas narrativas e enfatizam sua utilizaçãono âmbito de pesquisas qualitativas.

Retomando Burke7 e suas contribuições paraa narrativa histórica, trazemos também à tona aimportância da estrutura, e não apenas dos acon-tecimentos, como uma das funções mediadorasda narrativa que interessam ao campo da SaúdeColetiva3.

No campo da comunicação, Guimarães8 eLeal9 tratam a narrativa como espaço de media-ção entre indivíduo e sociedade. Somente pormeio de um “olhar narrativizante” é que se esta-beleceriam nexos entre as experiências no cotidi-ano e a comunicação, tal como enfatiza Ricoeur10,ao destacar que narrativas nada mais são do que“histórias (ainda) não narradas”3.

Lyotard11, por sua vez, ao tratar a questão dalegitimidade dada àqueles cujas histórias foramnarradas, contribui para a percepção de que avariabilidade das vozes e, fundamentalmente, aexplicitação de quem são aqueles que falam sãoparte inseparável do enredo. Ele aponta que é acondição de ouvinte que cria a de narrador. Po-demos contar histórias, pois já estamos inseri-dos na cultura por meio das histórias que nosconstituíram como humanos3.

Onocko Campos e Furtado3 também resga-tam Arendt, na leitura que dela faz Julia Kriste-va12, para apresentar uma concepção de narrati-va atrelada à práxis. A ação empreendida pelanarratividade seria característica essencialmentehumana, na qual importa, sobretudo, determi-nar um quem histórico, valorizando o papel dotestemunho na construção da história3.

No âmbito das pesquisas qualitativas, os obje-tos de estudo se caracterizam como complexos, namedida em que remetem a problematizações so-bre a atividade humana, considerando seus dife-rentes contextos e momentos históricos. Não há,desse ponto de vista, uma técnica narrativa apro-

priada, a qual, quando aplicada, conseguiria res-ponder às perguntas levantadas ou “extrair” a nar-rativa certa. Isso posto, remete-nos às questões demétodo em pesquisas qualitativas no campo dasaúde coletiva, algo que já vem sendo tematizado,apontando para a necessidade do uso de aborda-gens que permitam situar os problemas metodo-lógicos no contexto da contemporaneidade13,14.

A compreensão do método como um cami-nho para a certeza absoluta, herdada dos tem-pos de Descartes, ainda é uma visão hegemônicapara a ciência. Esta perspectiva, entretanto, re-duz a possibilidade de avanço do pensamento àmetodologia da ciência natural, na medida emque a razão – separada da perspectiva histórica ecultural – é considerada a única ferramenta pos-sível para se alcançar a verdade, ou seja, o conhe-cimento só é possível na esfera da consciência e apartir da neutralidade objetiva do pesquisador.

Contrapondo-se ao pensamento da raciona-lidade científica, Gadamer15 elabora sua obra de-monstrando a impossibilidade de um questio-namento racional e puro da tradição, uma vezque não é possível nos distanciarmos de nossasreferências culturais e históricas. Para este autor,a ideia cartesiana da suficiência do método – en-tendido como o uso disciplinado da razão – paraproteger-nos de qualquer erro torna-se infun-dada, pois nos encontramos sempre imersos emtradições, e essa imersão não é um comporta-mento “objetivador”, mas um reconhecer-se, jáque as tradições afetam-nos e, em grande parte,determinam nossas instituições e atitudes. As-sim, podemos dizer que a ideia de uma raciona-lidade, longe de ser algo fora da tradição, é algoque é transmitido pela tradição.

Por mais cuidadosa que seja a escolha dométodo usado para investigar o mundo, o pes-quisador sempre é parte daquilo que está inves-tigando, pois o mundo é visto a partir de deter-minada estrutura e dimensão humana. Este é umaspecto que a ciência tende a esquecer. O conceitode história efeitual, desenvolvido por Gadamer15,é importante para nos situarmos como investi-gadores nos nossos desenhos de pesquisa:

Quando procuramos compreender um fenôme-

no histórico a partir da distância histórica que

determina nossa situação hermenêutica como um

todo, encontramo-nos sempre sob os efeitos dessa

história efeitual. Ela determina de antemão o que

se mostra a nós de questionável e como objeto de

investigação, e nós esquecemos logo a metade do

que realmente é, mais ainda, esquecemos toda a

verdade deste fenômeno, a cada vez que tomamos o

fenômeno imediato como toda a verdade.

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Para Gadamer15, a compreensão tem seu pró-prio horizonte de significados ou, em outras pa-lavras, tem uma perspectiva sobre o mundo. Estehorizonte estará sempre conectado com o passa-do, não de maneira a nos mantermos presos aele, mas situados constantemente num presentepor meio do qual o passado nos fala. A tradiçãoem si caracteriza-se por ser feita do passado, pre-sente e futuro.

Como bem afirma Lawn16 sobre a teoria deGadamer:

Nossas tentativas de autoentendimento têm um

elemento futurista (estamos sempre projetando no

futuro desconhecido), mas nossos entendimentos

no presente estão sempre relacionando e se fundin-

do com o passado. A linguagem através da qual

articulamos o presente ressoa com os significados

do passado e continua sendo operativa no presen-

te; isso dá sentido ao que Gadamer se refere como

‘consciência histórica efetiva’.Filiando-nos a esta postura hermenêutica,

pretendemos situar e discutir a construção denarrativas em pesquisas na área da saúde men-tal, valendo-nos de tradições que abordaram anarratividade – a filosofia de Paul Ricoeur, a pers-pectiva trapeira da história em Walter Benjamine o campo da antropologia médica que se consti-tui tendo por referência a fenomenologia.

Objetivos

Apresentar três pesquisas distintas em saúdemental que se utilizam de narrativas – pesquisaavaliativa; pesquisa sobre a experiência de adoe-cimento; pesquisa sobre a experiência de traba-lho em saúde mental – e discutir os fundamen-tos teórico metodológicos das diferentes abor-dagens narrativas que nelas são utilizadas.

Abordagens narrativas:

tradições em diálogo

Paul Ricoeur: o tempo torna-se humano

pela abordagem narrativa

A narratividade, em Ricoeur, está atrelada ànoção de temporalidade. Ao longo de Tempo e

Narrativa, Ricoeur10 busca fundamentar a inse-parabilidade dos dois conceitos na narrativa his-tórica, na ficcional e na filosófica. Ele assenta taltemática em contraposição à perplexidade comque Santo Agostinho constrói suas aporias dian-te da percepção da paradoxal existência do tem-po, o qual, no mesmo instante em que é, já foi enão é ainda, uma vez que o presente nos escapa e

o passado e o futuro não existiriam senão na con-tinuidade daquele que observa o tempo passar10.

Para efetivar este diálogo, Ricoeur10 retoma aideia de muthus e de mimesis – respectivamente atessitura da intriga e a imitação da vida – da Poé-

tica de Aristóteles, superando a noção de aporiaem prol da de dialética do tempo, cuja temporali-dade não mais é questionada, mas aprofunda-seem níveis por meio da estrutura narrativa10.

Dentre as diversas maneiras de entender con-ceitualmente a narratividade, Ricoeur17 destaca seucaráter de reciprocidade: tudo o que se pode nar-rar desenvolve-se em relação ao tempo; e tudo oque transcorre no tempo é passível de ser narra-do. Tal qualidade temporal das experiências hu-manas é a característica que aproxima a ficção dahistória. Conforme o autor, a trama deve estararticulada para que seja possível reconfigurar comprofundidade a experiência temporal humana10.

Personagens, sequência temporal, intriga ouenredo, espaço ou circunstância: os componen-tes fundamentais do gênero narrativo tornam-se menos ou mais valorizados de acordo comcada um dos autores abordados. Na obra de Ri-coeur, o elemento fundador da estrutura narra-tiva, o que a define, é o tempo. Tempo e narrati-va. O tempo só se verifica pelos elementos narra-tivos que o recuperam, e a narrativa só pode exis-tir porque o tempo passa.

Para construir uma narrativa, é necessáriauma trama de fatos que se disponham de formainteligível, o que se aproxima da verossimilhan-ça. Ricoeur17 assinala que o que caracteriza umcomeço não é a ausência de acontecimentos an-teriores, mas a mera desnecessidade de descrevê-los para que o que venha depois se torne com-preensível e sem conteúdos pendentes17.

Tratando das tipologias narrativas, Ricoeur17

considera a metáfora uma figura de linguagem,para além de sua classificação literária como fi-gura de palavra. Toda criação narrativa é um “cri-ar com regras”, ou seja, a elaboração de um pro-cesso singular sobre algo já sedimentado, o quesignifica aceitar que nada é completamente origi-nal. Para o autor, além da modificação do senti-do atribuído a determinado termo, a novidadeda metáfora está em sua relação inovadora comrespeito aos demais elementos da frase – trata-se, portanto, de uma predicação inesperada. Pormeio da metáfora, torna-se factível uma novapertinência semântica17.

É tratando da metáfora que Ricoeur17 sus-pende a dicotomia entre compreender e explicarpara pôr em seu lugar uma junção compreen-der-explicar. Se compreender é encontrar um sen-

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tido no discurso, então a explicação será sempresecundária à compreensão, mas também deladependente17. O texto pode provocar a aberturaintencional de seu mundo, o mundo do texto.Afirma Ricoeur17 que o mundo do texto inter-vém no mundo da ação para configurá-lo oupara transfigurá-lo.

Se a função poética da linguagem volta suaênfase à mensagem em si, a função referencialenfatiza a questão descritiva, configurando paraa linguagem dois tipos de movimentos, respecti-vamente, centrípeto e centrífugo. Por meio de com-posições intermediárias a esses movimentos, tor-na-se possível a transfiguração do real. Trata-se,sobretudo, de uma função hermenêutica.

Ricoeur17 organiza a definição de hermenêu-tica em torno de três critérios: 1. Trata-se de umafilosofia reflexiva. 2. Está na esfera de influênciada fenomenologia. 3. Pretende-se uma variantehermenêutica da fenomenologia17.

Para Ricoeur17, a hermenêutica é reflexivaporque nasce do cogito cartesiano, sofre influên-cia de Kant e da filosofia francesa pós-kantiana –já que o pensamento pode acompanhar todas asoperações, e a consciência de si é indubitável ealmejada (tanto pela fenomenologia quanto paraa hermenêutica). Reflexiva, porque por ela bus-camos a compreensão de nós mesmos como su-jeitos de nossas operações cognitivas, volitivas,estimativas, com clareza intelectual e responsa-bilidade moral17.

Quando Husserl concebe a fenomenologia,atribui-lhe não somente características metodo-lógicas, mas fundamentalmente dá contornos auma maneira descritiva de articulações fundamen-

tais da experiência, que se firmam em um estadode completa clareza intelectual: por meio do pro-cesso de redução, a pergunta fica excluída ao sepôr entre parênteses17. Ricoeur17 lembra, entre-tanto, que, se para Descartes toda tentativa detranscendência é duvidosa ao mesmo tempo emque a imanência do eu é indubitável, então a feno-menologia será necessariamente reflexiva. Ora,nesse sentido, conhecer o noema – conteúdo rela-tivo ao ato de conhecimento – sem intermédio danoese – ato de conhecimento – torna-se tarefaimpraticável. O movimento infinito de síntesesativas de que nos fala a fenomenologia dependeráainda de um quantum infinito de sínteses passi-vas: a fenomenologia carece da hermenêutica, damesma forma que a hermenêutica depende dafenomenologia, por ser dela descendente. Há algoque sempre será pressuposto e que se constituiem paraíso perdido da fenomenologia e em possi-bilidade resgatada da hermenêutica. Por outro

lado, a hermenêutica estará fadada à influênciareflexiva de sua gênese fenomenológica17.

Ainda que o ressurgimento da hermenêuticano século XIX esteja relacionado ao entrelaçamen-to das técnicas de interpretação da exegese bíblica,da filosofia clássica e da jurisprudência, portanto,não diretamente relacionada às questões da feno-menologia, Ricoeur17 constrói o percurso com-preensível que nos permite considerar a herme-nêutica reflexiva e a da esfera fenomenológica.Desde Heidegger, torna-se condição da filosofia oestabelecimento de um vínculo ontológico maisprimitivo a que se subordina a relação sujeito-objeto. A redução deixa de ser um gesto primáriopara compor-se em significado epistemológicosecundário, já que estamos previamente no mun-do para poder julgá-lo e submetê-lo a determina-do domínio. Assim, a hermenêutica pós-heide-ggeriana se faz herdeira da fenomenologia e é, aum só tempo, sua inversão e sua realização: ahermenêutica se emancipa do idealismo que Hus-serl tentou atribuir à fenomenologia17.

Para Ricoeur17, o problema de submeter umtexto à compreensão não se distingue do proble-ma da compreensão de qualquer outro objeto,mas constitui-se em uma particularidade. Soma-se a essa particularidade aquilo que o autor de-nomina tríplice autonomia do texto: em relação àintenção do autor, à recepção do leitor e ao con-texto histórico, social, econômico e cultural desua produção17. Com isso, a tarefa da herme-nêutica será doravante perscrutar a obra e a ca-pacidade desta de dar lugar a um mundo. Esta-belece-se assim uma dinâmica a um só tempointerna e externa, que pressupõe a junção de com-preensão e explicação.

Defendendo uma necessária dialética entrecompreender e explicar, Ricoeur17 opõe-se às ilu-sões tanto da compreensão intersubjetiva imedi-ata quanto de que a análise estrutural dos signosisoladamente possa encerrar-lhes em algumaobjetividade. Assinala que o texto tem sempre apretensão de fazer emergir um mundo, quer sejauma experiência ou uma forma de viver e neleestar – algo já existente e que pede passagem àlinguagem, aproximando-se das concepções deHeidegger e de Gadamer17.

Narrar a história a contrapelo

com Walter Benjamin

Para Walter Benjamin, a narração tem comoalvo a transformação do presente. A relação en-tre história e tempo ganha aqui outro estatuto:nem a linearidade temporal do historicismo nema espiral do tempo no círculo hermenêutico; em

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Benjamin, o tempo se conta aos saltos. Aquiloque rompe a linha contínua com que se narra aHistória oficial diz de um “tempo de agora” (Jet-

zseit), não cronológico, mas intensivo, remeten-do tanto à noção de origem (Ursprung) comosurgimento do passado no presente quanto a umevento do instante, que advém a si sem partir delugar nenhum. A contrapelo, portanto, das his-tórias oficiais, nas suas brechas, nas suas ruínas,nas histórias não contadas dos vencidos (barbá-rie) que subjazem aos seus monumentos (cultu-ra) – é onde Benjamin situa, ética e politicamen-te, o ofício do historiador. Interessado nos res-tos, nos trapos do passado que foram esqueci-dos e que jazem inúteis, arrancando-os do con-texto em que foram encerrados para arranjá-losem novos ordenamentos, consoantes ao presen-te, o historiador benjaminiano age como um tra-peiro e colecionador. A narração da história, as-sim, não trata de enumerar sequencialmente osacontecimentos, mas, “fazendo emergir momen-tos privilegiados para fora do continuum crono-lógico”18, permite a apreensão desses momentosestelares numa constelação inédita e salvadora.Ou seja, o passado, se pode ser retomado, é nasua precariedade, como perda e esquecimento,numa não identidade consigo mesmo – abertura

sobre o futuro, inacabamento constitutivo18.Esta leitura, que se depreende ao longo da obra

de Benjamin e se reafirma em seu último texto,em 1940, Sobre o conceito de História18-20, distan-cia-se da que busca identificar em Benjamin oconservador nostálgico da tradição. Com efeito,a perda da tradição e a impossibilidade da narra-ção em seus cânones tradicionais, temas que lhesão recorrentes, comparecem quase simultanea-mente, e sob perspectivas divergentes, em doisensaios do autor escritos no ano de 1936. Experi-

ência e Pobreza, o primeiro deles, situa a experiên-cia (Erfahrung) no contexto de uma tradição com-partilhada, transmitida por um pai agonizante aseus filhos, visando uma prática comum, válidapara toda a coletividade21. Já O narrador identifi-ca o ato de narrar à capacidade de intercambiarexperiências, capacidade manifesta nas figurasarquetípicas do narrador – o camponês sedentá-rio, o marinheiro viajante e o artífice das cidadesmedievais que se estabelece após migrar de ofici-na em oficina como aprendiz22. Essa temporali-dade e essa espacialidade próprias às sociedadesartesanais, que tornam possível o fio continuum

de suas narrações, são substituídas pelo “tempodeslocado e entrecortado do trabalho no capita-lismo moderno”18, tempo submetido à imediatezda informação midiática que, no mesmo instante

em que dissolve as distâncias espaciais, torna-nosincólumes às catástrofes do mundo. É a ocasião,diz Benjamin, para o florescimento do Romancecomo gênero literário, consagrado à solidão – doautor, do herói, do leitor18 –, onde o que contanão é mais a experiência compartilhável (Er-

fahrung), mas o vivido (Erlebnis) nessa esfera deintimidade. No entanto, Benjamin aponta para apossibilidade de invenção de outras formas nar-rativas, distintas da informação e do romance, apartir da derrocada do mundo narrativo da tra-dição. Se esta possibilidade é positivamente afir-mada em Experiência e pobreza, na alusão a umamiríade de formas narrativas que acolhem com oímpeto da irreverência esses novos tempos, notexto O narrador, de tom mais contido, Benjaminnão oferece mais do que algumas pistas na dire-ção de uma atividade narrativa capaz de reme-morar o passado fora dos cânones da tradição18.

Acompanhemos Gagnebin no encalço dessaspistas, a partir de um parágrafo de Benjamin quese repete em ambos os ensaios, no qual ele cha-ma atenção para o silêncio com que haviam re-tornado do campo de batalha os combatentesda Primeira Guerra: o seu sofrimento não eracomunicável, voltavam pobres, e não ricos, deexperiências21,22. Nas palavras de Gagnebin18:

O que se opõe a essa tarefa de retomada salva-

dora do passado não é somente o fim de uma tradi-

ção e de uma experiência compartilhadas; mais

profundamente, é a realidade do sofrimento, de um

sofrimento tal que não pode depositar-se em expe-

riências comunicáveis [...] Como descrever esta

atividade narradora que salvaria o passado, mas

saberia resistir à tentação de preencher suas faltas

e de sufocar seus silêncios? [...] que saberia [deixaro passado] inacabado, assim como, igualmente,

saberia respeitar a imprevisibilidade do presente?

Narrar a impossibilidade de narrar, eis umadas pistas, de que a obra de Kafka se mostrapródiga aos olhos de Benjamin: Kafka, grandenarrador, capaz de compartilhar com outros,não conselhos, mas sua própria desorientação,não estando dados nem o retorno a um mundoancestral nem a invenção apressada e salvadorade um novo mundo. As qualidades que o narra-

dor tradicional tirava da rica tradição na qual se

enraizava, Kafka, por sua parte, as conquistou a

duras penas no terreno solapado de uma tradição

morta e de uma identidade em migalhas18. A que-da da tradição se revela, assim, o lugar de possi-bilidade – ainda que não garantida – de umaretomada inventiva e imperiosa da narração.Nela, o esquecimento se faz também condiçãoda memória, marca da sua finitude.

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Benjamin é, ele também, um narrador dessaespécie, um trapeiro colecionador de ruínas, deque sua obra – em sua descontinuidade e inaca-bamento – dá-nos testemunho. A esse respeito, econsiderando a estreita relação entre o pensa-mento que Benjamin professa e o método comque conduz a montagem de seus escritos e o an-dar de sua vida (na quase indistinção entre obrae vida), reportamo-nos ainda a Gagnebin18 paraum último apontamento acerca do uso muitoparticular da narrativa em primeira pessoa notexto Infância berlinense23. Este texto, em queBenjamin se serve do fio das lembranças de in-fância tecido na urdidura do esquecimento, podeser lido como uma homenagem a Proust em suabusca infinita por um tempo perdido, na justamedida em que esse infinito rompe a noção cor-riqueira de autobiografia – pois o autos não é

mais o mesmo, o bios explode em várias vidas que

se entrecruzam e a grafia segue o entrelaçamento

de diversos tempos que não são ordenados por uma

linearidade exclusiva18. Contudo, Infância Berli-

nense nos dá também a medida da distância queBenjamin, de forma deliberada, toma do textoproustiano pelas condições individualistas de suaprodução, condições que lançam seu autor norisco de uma espécie de devaneio complacente e

infinito do qual o sujeito não mais quer emergir18.No trabalho das Passagens, Benjamin24 impunha-se já a exigência política e ética de confrontar osonho com a vigília e, deste confronto, no mo-mento do despertar, extrair os elementos que lhepermitissem agir – um agir coletivo levando àtransformação do presente. Assim, além da in-tensidade das lembranças individuais, Infância

berlinense reconstrói a densidade de uma me-mória pessoal e coletiva, aberta à dimensão in-consciente do sujeito, mas também à sua dimen-são social, que recusa a particularidade individu-al e é atravessada “pelas ondas de desejos, de re-voltas, de desesperos coletivos”18. O “eu” que falada criança, na lembrança do adulto, diz de umasubjetividade que não se reduz às particularida-des do menino Benjamin. Sua voz nos atinge pro-

fundamente – mas teríamos a maior dificuldade

em descrever a identidade específica deste meni-

no18. Gagnebin reporta-se aqui à distinção esta-belecida por Paul Ricoeur entre uma identidade-

mesmidade, referida ao eu zeloso de si da autobi-ografia clássica, e as figuras da sua ipseidade, quedão lugar a um sujeito que, ao enunciar “eu”, dei-xa-se “atravessar pelos diversos tempos da suahistória – e da história [prescindindo] das defi-nições sempre ilusórias de si mesmo”18.

Narrativas sobre experiência

de adoecimento na perspectiva

da antropologia médica

de base fenomenológica

A narrativa é, sem dúvida, um dos pilares docampo de estudos da antropologia e saúde. Omodo de concebê-la, entretanto, não é único.Hydén, em Illness and Narrative25, artigo de revi-são sobre dez anos de estudos sobre narrativa deadoecimento (illness narrative), indicou o quan-to eram plurais as formas de abordar e conceberas narrativas nos estudos sobre a experiência deadoecimento (illness experience). Essa diversida-de pôde ser percebida também no número espe-cial da Social Science & Medicine – Narrative

Representations of Illness and Healing26 – publi-cado na mesma década.

De forma breve e esquemática, podem-se in-dicar pelo menos dois grandes modos de conce-ber as narrativas neste campo. Um deles enfatizaos aspectos simbólicos e culturais que as deter-minam. Nesta perspectiva interessam os siste-mas ordenados de ideias, símbolos e representa-ções que lhes atribuem sentido e significam oadoecimento (illness) e os processos de trata-mento e cura. As experiências e as práticas cotidi-anas dos sujeitos doentes e de seus terapeutasnão são aí consideradas. O outro modo de trataras narrativas considera-as como uma dimensãodo vivido e não exclusivamente como uma re-presentação ou abstração acerca deste. Ou seja,nesta segunda tradição, a narrativa é tambémum território existencial e experiencial, onde ossujeitos adoecidos conjugam individualmente asnormas, os valores e as expectativas sociais, cul-turais e coletivas e desenvolvem formas específi-cas de pensar, explicar e agir nas situações vividascotidianamente que dizem respeito ao seu adoe-cimento. Para fins deste artigo, apresentaremosos pressupostos que sustentam, no campo daantropologia médica, a segunda concepção denarrativa e um pouco de sua historicidade.

A tradição da antropologia médica que con-cebe a narrativa como “parte da vida, antes de seexilar na escrita”, como a descreveu Ricoeur27, podeser considerada fenomenologicamente sensível.Dentre os seus representantes internacionais, ci-tamos Arthur Kleinman28, Byron Good28, La-wrence Kirmayer29, Ellen Corin30 e Thomas Csor-das31. No Brasil, o destaque fica para MiriamCristina M. Rabelo e Paulo Cesar B. Alves32. Paraesta abordagem, conhecer como as pessoas vi-vem o seu mundo é central. O interesse que dirige

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esta tradição é saber como os indivíduos com-preendem e atuam nas situações de adoecimentoque experimentam ao longo da vida. Visto queeste conhecimento não pode ser integralmentededuzido das representações abstratas ou dasconcepções sociais que o adoecimento carrega emcada cultura, expressas através das narrativas,impõe-se que a experiência vivida, em especial ade adoecimento, ganhe centralidade. Este privilé-gio dado à experiência se constitui em um doselementos que demandará a revisão da concep-ção de narrativa como abstração, simples relatode experiência ou mesmo invenção da cultura.

A experiência vivida é o que desvela o modode estar no mundo dos indivíduos. Como o vivi-do é sempre encarnado corporalmente e em con-texto, quando esta tradição atribui visibilidade àexperiência vivida, corpo e intersubjetividade sãoiluminados. Constitui-se assim o tripé que supor-tará a ideia de narrativa corporificada e situada.

Como sugerem Good et al.33, o corpo é o quenos situa no espaço e “meio” através do qual coti-dianamente manipulamos e significamos osobjetos que constituem o mundo onde estamosimersos. Habitar o próprio corpo é conviver comseu duplo aspecto de corpo vivido e corpo objeti-vo, que oferece a condição primeira da intersub-jetividade como intercorporeidade31. Pensar o ser-em-situação implica “considerar a unidade cor-po-mente e também o enraizamento do indiví-duo no contexto social, enquanto ser que é desdesempre ser-com-outros”32.

Locus onde as várias dimensões da vida si-multaneamente emergem e se inscrevem, o cor-po é base de todo e qualquer conhecimento eação que possamos realizar no mundo, encar-nando, de forma particular e única, o conheci-mento e a experiência acumulados acerca destaação e das possibilidades de novas intervençõesna realidade. Deste modo, o corpo protagonizauma relação não reflexiva com o mundo, per-ceptível pela forma como se adequa a cada situa-ção vivida. A narrativa se apresenta, assim, comoa possibilidade de expressão dessa experiênciacorpo-mundo.

Produto do corpo em situação – corpo queatualiza uma relação com o mundo que não émediada, a priori, pela apreensão intelectual, masa precede –, a narrativa adquire, no campo daantropologia de inspiração fenomenológica, umadimensão corporificada. Esta dimensão lhe atri-bui uma qualidade antes não percebida34. O re-conhecimento de uma diferenciação possível en-tre o conhecimento através do qual se vive a vidae o conhecimento através do qual a explicamos

abre a possibilidade de considerar que as narra-tivas não sejam todas e sempre “explicações” so-bre a vida.

Em artigo intitulado Embodied Narratives,Menary34 identifica dois tipos de narrativas – asautobiográficas e as intersubjetivas –, amplian-do a compreensão acerca desta outra concepçãode narrativa. As narrativas que nomeia “autobi-ográficas” – aquelas em que contamos a nossavida para outros, para nós mesmos, ou anteci-pamos o futuro e a direção de desdobramentosde nossa vida – são, segundo ele, as de mais fortecaráter reflexivo. A função intersubjetiva destasnarrativas é dizer nossa história de vida a outros,mas a sua principal função é ampliar a nossacompreensão de nós mesmos, com e no mundo.Embora Menary34 não indique isso de modo ex-plícito, um alto potencial explicativo parece estarassociado ao caráter reflexivo de tais narrativas.

O segundo tipo de narrativa – intersubjetiva– é aquela com menos potência para “explicar” avida. Diz muito mais sobre o campo das açõesque sobre o campo da reflexão, como descritoacima. Neste segundo tipo de narrativa, o narra-do é sobretudo a experiência corporificada de umsujeito no mundo e menos uma tematização so-bre esta vivida. Este segundo tipo de narrativaindica a dimensão corporificada de toda e qual-quer narrativa – dimensão pouco visível quandoapenas as narrativas que explicam as nossas ex-periências são levadas em conta.

O debate sobre a dimensão corporificada dasnarrativas – protagonizado por filósofos, estudi-osos da cognição e antropólogos – não teve, en-tretanto, consequências imediatas e diretas para aconcepção de narrativa nesta tradição da antro-pologia médica. Foram Kirmayer29, Alan Young35

e Grouleau et al.36 os que desencadearam essa re-visão. Eles identificaram que a literatura sobrenarrativa de experiência de adoecimento estavadominada pela concepção reflexiva, que tem opropósito de explicar a experiência vivida de ado-ecimento. Estes autores perceberam que a ideia deKleinman37 – de que as narrativas de experiênciade adoecimento obedecem a esquemas lógicos ecoerentes e se organizam em torno de atribuiçõescausais – havia se tornado hegemônica. A despei-to da centralidade da noção de experiência de ado-ecimento e da sua relação intrínseca com a corpo-reidade, o foco exclusivo em modos explicativosde narrar ignorou o caráter multifacetado da ex-periência de adoecimento. A explicação do vividoa partir da perspectiva causal não foi tomadacomo uma forma, dentre outras, de vivenciar/narrar os processos de adoecimentos.

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Considerado o fluxo do processo de adoeci-mento, o modo explicativo de narrar requer, emgeral, a elaboração do vivido através da reflexãosobre a experiência de adoecimento. Esse exercí-cio demanda tempo e não costuma se produzirimediatamente quando o sujeito se vê surpreen-dido pelo adoecimento. Nos momentos iniciaisdo processo de adoecimento, as narrativas porcomplexos em cadeia, por contiguidade tempo-ral e espacial, são uma forma possível de narrara experiência. Partindo do corpo em ação na si-tuação, elas abrem ao sujeito adoecido a possibi-lidade de atribuição de sentido à experiência vivi-da. Contar a experiência a partir de exemplos, dasuposição de semelhança e diferença do vividopróprio face àquele por outros, foi também –junto com a narrativa por complexo em cadeia –outra forma de narrar, percebida quando a cor-poreidade se fez central para a narrativa. Esta,mostrou-se, então, quando liberta do jugo domodelo explicativo, reveladora da dimensão pré-reflexiva da existência e do conhecimento tácitoatravés do qual se vive. Este conhecimento – táci-to – é condição de possibilidade para a elabora-ção do conhecimento e da narrativa através doqual explicamos a vida, indicando que a experi-ência vivida não se resume nem se encerra naexplicação que podemos ter sobre ela.

Pesquisas em saúde mental

com abordagens narrativas

Três foram as tradições que resgatamos parapensar o uso da narratividade. Três escolhas, to-davia, não aleatórias, pois são aquelas que se fi-zeram passíveis de aplicabilidade para a pesquisano campo de interface entre a Saúde Mental e aSaúde Coletiva. A seguir, apresentam-se exem-plos de seu uso em estudos de grande porte ediscutem-se suas possíveis complementaridadee imbricações.

Em pesquisas avaliativas e participativas emserviços públicos de saúde38-40, baseadas na her-menêutica gadameriana e na teoria narrativa dePaul Ricoeur, utilizou-se a transcrição das grava-ções de grupos focais com gestores, trabalhado-res, usuários e familiares para a construção denarrativas. Após uma primeira rodada de grupofocal com cada grupo de interesse, foram identi-ficados e extraídos, do material transcrito, nú-cleos argumentais que respondiam às questõescolocadas pelas pesquisas. Estes constituíram ofio condutor para a construção das narrativas, apartir do dito pelos participantes e respeitando-o. Em uma segunda rodada, essas narrativas fo-ram apresentadas aos mesmos participantes dos

grupos anteriores, para que pudessem contestá-las, corrigi-las e validá-las, a maioria das vezesconseguindo aprofundar o discutido no primei-ro grupo3. Após a transcrição da segunda roda-da, foram construídas novas narrativas que, jun-to àquelas dos primeiros grupos, constituíram-se material-base para a construção de parâme-tros e dispositivos avaliativos. Com esta escolha,

pretendíamos não somente contar uma história

única e cronologicamente arranjada, mas, sobre-

tudo, compreender os processos de trabalho e as

trocas que acontecem no cotidiano [dos serviços]38.Em pesquisa orientada pela concepção de ex-

periência em Benjamin41, voltada para trabalha-dores de serviços residenciais terapêuticos, inves-tigaram-se os efeitos, sobre as práticas de cuida-do e sobre a percepção de si como cuidadores,que o compartilhamento de narrativas referidasàs experiências no cotidiano desses serviços podiaproduzir. Foram narrativas curtas e fragmentári-as as que escreveram esses trabalhadores, atravésdas quais se retomaram rasgos do passado que,iluminando o presente, redesenhavam um futu-ro. A cada encontro proposto pela pesquisa, eratrabalhado o texto previamente escrito por umdos participantes, através de leitura coletiva, co-mentários, sugestões. Esse trabalho visava nãoapenas a melhor legibilidade das ideias propostaspelo autor do texto, mas o compartilhamento daexperiência por ele protagonizada e sua elabora-ção coletiva. A intervenção proposta pela pesqui-sa tomava a forma de uma experiência de passa-gem do eu ao plural. Para além da intensidadedas lembranças individuais, as narrativas que fo-ram assim elaboradas iam construindo a densi-dade de uma memória ao mesmo tempo pessoale coletiva, levando a transformações do agora.

Em pesquisa sobre a experiência de adoeci-mento inscrita no campo da antropologia e saú-de de orientação fenomenológica, objetivou-seconhecer a perspectiva de psiquiatras e de usuá-rios de serviços de saúde mental sobre a experi-ência do adoecimento em pessoas diagnostica-das com transtornos do espectro esquizofrêni-co42. Foram feitos vários grupos focais: com usu-ários, com psiquiatras e com ambos juntos. Osgrupos foram audiogravados, transcritos e, pos-teriormente, categorizados e codificados de modoa contemplar os três grandes momentos no pro-cesso de adoecimento: antecedentes, crise/iníciodo adoecimento e restabelecimento/não restabe-lecimento. Nesta perspectiva, a narrativa, ao for-necer diferentes contornos aos distintos modosde viver a experiência43, é mais do que um meiode comunicá-la, ou meramente a forma pela qual

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a experiência é representada, simbolizada e re-contada; trata-se de uma dimensão inerente a elaprópria42. A ênfase, então, é colocada na descri-ção, sendo necessário que esta explicite o que estáimplícito na experiência vivida, corporal e pré-reflexiva, um modo de narrar no qual o adoeci-mento seja explicitado de modo mais corporifi-cado, menos reflexivo; ou seja, um modo em queos significados atribuídos à experiência apresen-tam-se mais próximos àquela pré-objetiva dacorporeidade44.

As narrativas, na pesquisa citada sobre a ex-periência do adoecimento na esquizofrenia, fo-cam-se na descrição do vivenciado e, portanto,são apresentadas como unidade narrativa, talcomo foram expressas pelos participantes dapesquisa, sendo posteriormente categorizadas ecodificadas pelos pesquisadores. O objetivo é fa-vorecer que narrativas encarnadas revelem a di-mensão pré-reflexiva e experiencial do viver comesquizofrenia. Já na pesquisa informada pela te-oria narrativa de Ricoeur, o conhecimento daexperiência é subsídio para a análise e a avaliaçãodos processos de trabalho, em que a construçãodas narrativas por parte dos pesquisadores – comdestaque de núcleos argumentais explicitandoexperiências, consensos e dissensos – produz efei-tos de narratividade14 que enriquecem a espiralhermenêutica. Por fim, na pesquisa de inspira-ção benjaminiana, mais do que o conhecimentoda experiência através das narrativas, é o com-partilhamento dessas narrativas – inacabadas,entrecortadas, fora de ordem – o que pode con-ferir caráter de experiência ao vivido, levando àreinvenção do presente.

Considerações Finais

No âmbito da saúde Coletiva, o estudo das prá-ticas tem se mostrado um campo fértil e insti-gante. Quando a pesquisa busca se aproximardos novos serviços (como no caso da saúde men-tal, que experimentou grande expansão em tem-pos recentes) ou estudar práticas inovadoras(como as advindas da Reforma Psiquiátrica), orecurso às abordagens narrativas tem sido cadavez mais frequente. Contudo, ainda poucos tra-balhos discutem as relações entre abordagem teó-rica, suas variações metodológicas e as implica-ções dessas escolhas nas investigações.

Buscamos, no presente artigo, explicitar al-guns dos principais pressupostos de três corren-tes de abordagem narrativa que têm sido utiliza-

das na Saúde Coletiva e, com exemplos de suaaplicação concreta, estabelecer as articulaçõesentre essas abordagens e sua utilidade nesta área.

Destacamos a relevância atual da intersecçãodesses campos de saber como um promissor deinvestigação, compromissado tanto com as ex-periências encarnadas e em primeira pessoa (in-transferíveis, portanto) – como ocorre quandoqueremos saber como foi viver determinada for-ma de adoecer, os percursos dos pacientes e suaspercepções –, quanto com a importância e a ne-cessidade de sua ‘traducibilidade’ para o campodas políticas e das práticas, no sentido de contri-buir para formar serviços mais porosos e plásti-cos às necessidades dos usuários e que incorpo-rem construtivamente as experiências e os apren-dizados de seus trabalhadores. Isso nos obriga aconsiderar a necessária miscigenação-inovação-criação que o campo dos estudos das práticas desaúde nos apresenta, incluindo aqui os aspectoséticos e clínicos envolvidos nos desenhos.

Chamamos atenção para o fato de as abor-dagens etnográficas clássicas assumirem muitasvezes o pressuposto de que uma boa aculturaçãoresolveria a maioria dos problemas técnicos, so-bretudo em relação à qualidade do material cons-truído narrativamente, dando pouca ênfase, porexemplo, à intersubjetividade. Esta se destacousobremaneira nos estudos que referimos, pro-vavelmente por se tratar – direta ou indireta-mente – de pesquisas envolvendo diagnostica-dos dentro do espectro psicótico, que sabidamen-te nos oferecem histórias fragmentadas, em umaordenação singular e não submetidas à lógicaretórica habitual.

Também propusemo-nos analisar as singu-laridades/diferenças no modo de fazer pesquisade práticas em saúde mental: na pesquisa avalia-tiva, ousamos a construção narrativa como for-ma de produzir um material denso e que permi-tisse maior aprofundamento das questões em es-tudo; na pesquisa sobre a experiência de adoeci-mento, respeitamos as construções originais dosusuários, pois não desejávamos racionalizar nemdar um ordenamento alheio à experiência encar-nada; na pesquisa com trabalhadores, valemo-nos de narrativas inconclusas e fragmentadas paraproduzir compartilhamento e reflexão, gerandoefeitos de transformação nas equipes.

Sem pretensões de exaurir completamente ne-nhuma das abordagens apresentadas, mas, antes,propondo-se iniciar uma possível articulação en-tre elas, o presente estudo almeja contribuir com odebate metodológico na saúde coletiva.

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Colaboradores

RT Onocko-Campos, AL Palombini, E Leal, ODSerpa Júnior, IOP Baccari, AL Ferrer, AG Diaz eMAZ Xavier participaram igualmente de todasas etapas de elaboração do artigo.

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Artigo apresentado em 01/04/2013Aprovado em 17/05/2013Versão final apresentada em 05/06/2013

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