Luzia Rocha, "Camille Saint-Saëns em Portugal: análise de quatro caricaturas de Rafael Bordalo...

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II E NCONTRO I BERO-A MERICANO DE J OVENS MUSICÓLOGOS II E NCUENTRO I BEROAMERICANO DE J ÓVENES MUSICÓLOGOS Actas Casa da Música - Porto 26 e 27 de Fevereiro de 2014

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II ENCONTRO IBERO-AMERICANO DE

JOVENS MUSICÓLOGOS

II ENCUENTRO IBEROAMERICANO DE JÓVENES

MUSICÓLOGOS

Actas

Casa da Música - Porto

26 e 27 de Fevereiro de 2014

MARCO BRESCIA ROSANA MARRECO BRESCIA

(EDITORES)

II ENCONTRO IBERO-AMERICANO DE JOVENS

MUSICÓLOGOS

II ENCUENTRO IBEROAMERICANO DE JÓVENES

MUSICÓLOGOS

ACTAS

Tagus-Atlanticus Associação Cultural

Porto, 2014

Brescia, M., Marreco Brescia, R. (editores) Actas do II Encontro Ibero-Americano de Jovens Musicólogos, Porto Actas del II Encuentro Iberoamericano de Jóvenes Musicologos, Oporto Tagus-Atlanticus Associação Cultural, 2014 ISBN: 978-989-20-4949-6 Depósito Legal: 379146/14 Imagem da capa: Rodrigo Teodoro de Paula Organização: Grupo Musicologia Criativa Rosana Marreco Brescia Marco Brescia Luzia Rocha Rodrigo Teodoro de Paula Rui Araújo Rui Magno Pinto Bart Vanspauwen Llorián García Florez Raquel Rojo Carillo Ricardo Bernardes CESEM, Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical - Universidade Nova de Lisboa Agradecimentos: Marcelo Campos Hazan Victoria Eli Luca Chiantore Paula Gomes Ribeiro

INDEX

Marco Brescia | Rosana Marreco Brescia Apresentação 1 Presentación 3

I Marcelo Campos Hazan 5 Música, religião e poder: a colaboração de Francisco Manuel da Silva com a Ordem Terceira do Carmo do Rio de Janeiro (1854-1865)

II. Victoria Eli 21 El patrimonio musical en la convergencia entre musicología y etnomusicología

III. Paula Gomes Ribeiro 29 Restituir a política à musicologia (uma vez mais...)

1. Alexandre José de Abreu 37 Alda e Semira de José Pedro de Santanna Gomes e o Teatro Panóptico

2. Alfonso Pérez Sánchez 43 Musicología aplicada: El Tempo como elemento divergente entre las lecturas del intérprete, el crítico y el musicólogo

3. Allan Medeiros Falqueiro 53 Simetria Inversional como síntese do leste e oeste na música de Béla Bartók

4. Ana Carina Dias 61 No Pó na Música

5. Andrea García Alcantarilla 69 El trío con piano, una ventana a la música de cámara de Joaquín Turina

6. António Jorge Marques 77 Son Regina: Deambulações históricas de uma aria di bravura

7. Beatriz Carneiro Pavan 87 O complexo da língua francesa do século XVIII na sua relação com a música para cravo de François Couperin: indiossincrasias em prol de uma construção eloquente

8. Camila Costa Zaneta 95 As influências de Hans-Joachim Koellreutter no cenário da música no Brasil: um breve panorama

9. Carla Silva Reis 103 Trajetórias em contraponto: um estudo microssociológico da formação superior em piano em duas universidades brasileiras

10. Carlos Arthur Avezum Pereira 111 Música e Tecnologia: desdobramentos da Aura Benjaminiana

11. Cecília Maria Gomes Pires 119 Entre o erudito e o popular: a relação do grupo SaGrama com o Movimento Armonial

12. Consuelo Perez Colodrero | Desirée García Gil 125 “Una canción en los labios y la verdad en el corazón”: relaciones entre educación, música e ideología a través de la revista Y de la Sección Femenina (1938-1945)

13. Daniel Bredel 133 Aspectos históricos, sociológicos e psicológicos do discurso musical de Eduardo Bértola em Tramos, Lucípherez e Grandes Trópicos

14. Daniel Lovisi 141 Música instrumental em Minas Gerais: um estudo sobre um grupo de violonistas-compositores de Belo Horizonte

15. David Barbero Consuegra 149 La importación española de modelos de radiofonía musical. El caso francés

16. Denise Hiromi Aoki 157 A influência da música francesa no primeiro movimento do Quarteto de Cordas Nº 3 de Heitor Villa-Lobos

17. Diana González 165 La Música de Cámara a comienzos del siglo XX en Madrid a través de la obra crítica de Manuel Manrique de Lara (1863-1929)

18. Eduardo R. Salgado 173 Influencia de las políticas locales en la MPU de las ciudades: los casos de Valladolid y Palencia

19. Eliana Asano Ramos 181 Uma análise da canção Canavial (1984) de Ernst Mahle

20. Eloy V. Palazón 189 Hacia el arte sonoro: consideraciones sobre el tiempo en la obra de Morton Feldman

21. Enrique Valarelli Menezes 199 A síncopa consistente no samba

22. Erika de Andrade Silva 205 A proposta de educação musical nas escolas Waldorf como inspiração para o trabalho em outros contextos

23. Fernando Lacerda Simões Duarte 211 O modelo pré-interpretativo restaurista em face da tradição musical local em Viçosa (Minas Gerais, Brasil): memória e identidade reveladas em dois conjuntos de manuscritos de 1944 para a Semana Santa

24. Frederico Lyra de Carvalho 219 Primeiros apontamentos sobre a música de Steve Coleman: Ritmo

25. Garazi Echeandia 227 Conrado del Campo, cuarteto Nº7 para instrumentos de arco. Estudio y Edición Crítica

26. Giovani Mendoza 237 La Banda Marcial Caracas vista a través del Archivo Pedro Elías Gutiérrez (APEG)

27. Gisele Laura Haddad 247 Sociedades Sinfônicas: a idade da Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto (SP)

28. Ignacio Soto Silva 255 Etnomusicología y Educación Intercultural: un acercamiento al rol de los dispositivos curriculares [Etno]musicales en escuelas con Educación Intercultural Bilingüe (EIB), en territorio Mapuche Williche

29. Inez Beatriz de Castro Martins 263 Análise quantitativa e qualitativa das obras do Arquivo da Banda da Polícia Militar do Ceará (1897-1932)

30. Isabel Albergaria 271 O órgão em Portugal após as Lutas Liberais: a actividade organeira nos Açores no século XIX como consequência da importação de instrumentos de Joaquim António Peres Fontanes e António Xavier Machado e Cerveira

31. Isabel Pina 279 A construção do génio e da loucura

32. Iván Adriano Zetina Ríos 287 Los Doce Estudios para guitarra de Heitor Villa-Lobos: Notas sobre el ritmo

33. Javier Ares Yebra 295 La música para guitarra en España y Portugal: 1789-1800

34. Jenny Silvestre 303 O Tratado Reglas Generales de Acompañar (1702/1736) de José Torres, uma nova leitura

35. Joan Benavent Peiro 309

Apuntes Biográficos del Maestro de Capilla de la Seu d’Urgell 561Bruno Pagueras 36. João Afonso | Isabel Pina 315

A pluralidade de Pessoa na concepção sonora do Filme do Desassossego 37. João Ricardo Pinto 321

Da Rádio para a Televisão: Modelos e processos de produção musical nos primórdios da televisão em Portugal

38. Johanna Calderón Ochoa 329 Entre lo tradicional y lo académico en la música colombiana. Aportes del compositor Jesús Alberto “Chucho” Rey al Bambuco Andino Colombiano

39. José R. Muñoz Molina 335 Arthur Rubinstein en los escritos críticos de Xavier Montsalvatge

40. Julia María Martínez-Lombó Testa 343 Imágenes de lo nacional en la obra sinfónica de Evaristo Fernández Blanco

41. Kelly Nogueira Marques 353 A Influência da Tecnologia da Música do Século XX

42. Laize Guazina 359 Projetos sociais e os percursos formativos de estudantes de Licenciatura em Música: algumas reflexões sobre subjectividades, universidade e direitos

43. Laura Touriñan Morandeira 367 Martín Sánchez Allú y Marcial del Adalid: una amistad patente a través de sus intercambios musicales pianísticos entre 1848 y 1854. Significación de la primera sonata para piano de aquel

44. Lilian Maria Pereira da Silva 381 Sobre o Tratado para violino escrito por Leopold Mozart: Tradução e análise de extractos do Tratado

45. Liz Mary Pérez de Alejo 385 Joaquín Nin Castellanos (La Habana, 1879-1949): su presencia en el escenario cubano de comienzos del siglo XX

46. Lucas Eduardo da Silva Galon | Sara Cecília Cesca 395 O papel da Musicologia na Educação Musical

47. Luiz Alves da Silva 401 O Conde Friedrich von Spreti – Fontes inéditas de uma testemunha ocular das atividades musicais na Corte Imperial do Rio de Janeiro e na Imperial Fazenda de Santa Cruz em 1829

48. Luzia Rocha 407 Camille Saint-Saëns em Portugal: análise de quatro caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro

49. Marcus Vinícius Medeiros Pereira 415 O Acervo Vicente de Paula Medeiros: investigando as práticas musicais no início do século XX no interior do Brasil

50. María Consuelo Iglesias Fernández 423 Voces Patrióticas en la Escena Madrileña de Principios del S. XIX: el caso de la Guerra de la Independencia (1808-1814)

51. María da Gloria Lemos de Ledezma 431 A Arte de Trovar em Diálogo com o Cancionaiero de Elomar Figueira Mello

52. María Encarnación Bernal Martínez 439 Influencias Internacionales en la obra del compositor español de la generación del 51, Claudio Prieto

53. María Fouz Moreno 447 La renovación del cantar de ciego en el siglo XX: el caso de Paco Pixiñas

54. Maria Helena Cruz Martins Rodrigues Milheiro 455 O movimiento orfeónico em Portugal: o caso do Orfeão dos Trabalhadores e Artistas de Condeixa (1903-1929)

55. María Jesús Perucha Arranz 463

Aportación de la Revista La Ciudad de Dios a los estudios de Estética Musical en España: 1881-1936 56. Maria João Neves 471

Reinvidicando um Logos Musical 57. Maria Luisa Castilho 479

A obra policoral de Manuel de Tavares no contexto da Península Ibérica e Internacional 58. Maria Teresa Arfini 491

Felix Mendelssohn Bartholdy and the Problem of Program Music 59. Marília Chibim Orsi e Chaves 497

Novos Caminhos na Educação Brasileira: Música no Currículo Escolar 60. Marina Barba 505

Maestría escénica y compositiva en la música de Ramón Carnicer para el drama de Gil de Zárate: Carlos II, el Hechizado

61. Miguel Palou Espinosa 511 Alfonso Fontanelli (1557-1622): introducción a una problemática socio-cultural de la prática musical y la nobleza italiana en el Tardo-Renacimiento

62. Nieves Hernández Romero 519 El arpa: un campo para la proyección musical femenina en el siglo XIX

63. Nuria Barros Presas 525 La alameda decimonónica: ¿un salón urbano musicalmente democrático?

64. Patrícia de Almeida Ferreira Lopes 533 Procedimentos de construção na improvisação: um estudo da Improvisação Nº 2 de Patrícia Lopes

65. Paula González Suitt 541 Actividades musicales en la escuela primaria: la conciencia profesional de los profesores de escuela

66. Pedro Buil Tercero 551 La percepción social de la armonía en la música popular. Un modelo en el canon estético de los Greatest Hits

67. Pedro Luengo 559 Iconografía musical en las fiestas sevillanas por la exaltación al trono de Fernando VI

68. Raquel Rohr 571 Desenvolvimento e consolidação do ensino de música no estado do Espírito Santo no século XX

69. Ricardo Nuno Futre Pinheiro 577 Jazz Musica as a Political Message

70. Roberto Votta 583 As técnicas de edição musical no Brasil durante a primeira metade do séc. XX e suas implicações na obra de H. Villa-Lobos

71. Rodrigo Teodoro de Paula 591 A música encomendada: compositores e freiras musicistas nos conventos portuenses de Santa Clara e São Bento da Ave Maria (1764-1833)

72. Rui Filipe Duarte Marques 599 O associativismo musical enquanto cultura de participação – um estudo de caso da Tuna Souselense

73. Ruth Abellán Alzallú 607 El pensamento algorítmico en la música de Gabriel Brnčić

74. Sofia Ferreira Teixeira 615 Aspectos sobre a mitificação da figura do maestro: a construção do império e da fama de Herbert von Karajan

75. Sofia Vieira Lopes 621 O concurso enquanto espectáculo musical – reflexões acerca dos antecedentes do Festival RTP da Canção

76. Sónia Duarte 627

Imagens de Música na Pintura Portuguesa: do século XVI ao século XX. O caso da cidade do Porto 77. Tânia Sofia Gomes Valente 633

Gustavo Romanov Salvini: um professor de canto à frente do seu tempo e esquecido no tempo 78. Tiago Manuel da Hora 641

Joaquim Simões da Hora, Produtor: o legado para a história da produção discográfica de música erudita em Portugal

79. Trinidad Jiménez 649 La flauta en el jazz flamenco: la hipertextualidad en “Almoraima” de Jorge Prado

80. Vera Fouter Fouter 657 La adaptación en la corte de Catalina II de los compositores extranjeros: los casos de Domenico Cimarosa, Giuseppe Sarti y Vicente Martín y Soler

81. Virginia Sánchez Rodríguez 665 Contrastes formales, estéticos y estilísticos en la música del cine español cinco décadas atrás

LUZIA ROCHA

48. CAMILLE SAINT-SAËNS EM PORTUGAL: ANÁLISE DE QUATRO CARICATURAS DE RAFAEL

BORDALO PINHEIRO

Luzia Rocha / CESEM – Universidade Nova de Lisboa,

Universidade Lusíada de Lisboa

O caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) era um dilettanti frequentador assíduo do teatro de S. Carlos. No seu jornal O António Maria fez várias caricaturas sobre récitas, cantores, músicos, maestros, público, empresários, etc., expondo-os, deste modo, na sua vertente mais cómica. A vinda de Camille Saint-Saëns a Lisboa, no ano de 1880, fez levantar o entusiasmo geral. Não obstante, as suas récitas no teatro nem sempre correram da melhor forma, facto este fielmente documentado pelo lápis de Bordalo Pinheiro. Este artigo pretende analisar quatro caricaturas sobre Saint-Saëns considerando aspectos iconográficos-musicais, na sua relação mais íntima com a Musicologia, História da Arte, História e Sociologia. Palavras-chave: Camille Saint-Saëns, Caricatura, Séc. XIX, Rafael Bordalo Pinheiro, Teatro de S. Carlos. No mês de Novembro do ano de 1880, Lisboa recebeu pela primeira vez Camille Saint-Saëns. O músico

apresentou-se na mais importante sala de ópera do país, o Teatro de S. Carlos, onde realizou quatro concertos. A

presença de tal celebridade em Lisboa revestiu-se de uma aura de entusiasmo, mas nem tudo correria pelo melhor

durante a sua estadia em Portugal. A imprensa portuguesa deu grande destaque à sua vinda e aos concertos e Rafael

Bordalo Pinheiro não foi excepção.

Rafael Bordalo Pinheiro (n. 21/03/1846 – m. 23/01/1905) foi actor amador, pintor, gravador, litógrafo,

caricaturista, ceramista. Como caricaturista destacou-se no panorama nacional uma vez que possuía um tipo de traço

exímio. O seu interesse pelo trabalho de caricaturistas estrangeiros1 também lhe permitiu criar um estilo e linguagem

muito próprias e inovadoras para época. Em Portugal a sua consagração como caricaturista deu-se com trabalhos como O

António Maria (primeira série em 1879 e segunda em 1891) Álbum das Glorias (primeira série em 1880, segunda série em

1885, terceira série em 1902), Pontos nos ii (1885), A Paródia (1900)2. A sua actividade artística estendeu-se além

1 Guilherme de Azevedo, amigo pessoal e colaborador literário de Rafael Bordalo Pinheiro, refere: “Raphael Bordalo Pinheiro é sobretudo um caricaturista do seu tempo e do seu meio, nem podia ser d’outro modo para ser um grande artista. A caricatura entre nós, n’um paiz pequeno como o nosso, e intellectualmente atrazado, tem de ser individual e não syntethica como a fazem geralmente lá fora os caricaturistas das grandes nações. Mas fazer a caricatura d’esta natureza não é desenhar o individuo acentuando-lhe unicamente os traços phisicos mais salientes; é suprehender-lhe ao mesmo tempo a linha moral, e traduzir tudo n’uma formula que resuma ao mesmo tempo o homem exterior e o homem interior. [...]. A memoria phisionomica de Bordallo e a rapidez com que trabalha são prodigiosas. [...] Conhece e convive intimamente á sua mesa de trabalho com todos os mestres da arte, com quem estuda e aperfeiçoa dia a dia os seus methodos, Hogarth, Daumier, Gavarni, Grandville, Gillray, e uma infinidade d’albuns, de caricturas, de jornais francezes, inglezes e allemães, bloqueiam-no sempre em grandes filas. Sem perder o seu natural ponto de vista portuguez, está em communidade constante com o espírito europeu, unico meio de que é possível lançar mão para não se ensandecer”. O Contemporaneo, 77, 5º ano, p. 124. 2 Rafael Bordalo Pinheiro publicou, ainda, O Calcanhar de Aquiles (1870), O Dente da Baronesa (1870), Mercado de Melões (1870), A Berlinda (1870-1871), O Binóculo (1870), Apontamentos de R.B.P. sobre a Picaresca Viagem do Imperador do Rasilb pela Europa (1872), M.J. ou a História Tétrica Duma

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ACTAS DO II ENCONTRO IBERO-AMERICANO DE JOVENS MUSICÓLOGOS / PORTO 2014 fronteiras em colaborações com os periódicos El Mundo Cómico, Ilustración Española y Americana (Madrid), The

Illustrated London News (Londres). Durante um período da sua vida (1875-1879) viveu no Brasil, onde trabalhou em

vários jornais de caricaturas: O Mosquito (1876-1877), Psit!!! (1877), O Besouro (1878-1879). Tal como criara Henry

Monier, em França, a personagem Joseph Prudhomme, que representava o espírito constitucional e burguês, Bordalo criou

o Zé Povinho (12 de Junho de 1875), uma representação simbólica do povo português3, ainda hoje um elemento

importante e actual para o povo português na crítica social e política.

Fig. 1 – Rafael Bordalo Pinheiro.

As caricaturas sobre Camille Saint-Saëns encontram-se publicadas na primeira série do jornal O António Maria4.

O jornal abordava com bastante ênfase a vida política nacional mas não descurava a literatura, artes plásticas, costumes,

teatro e música. No âmbito da música era regular a publicação de rubricas variadas (por exemplo, Antonio Maria nos

Espectaculos, Antonio Maria nos Theatro, Simphonias, Variações) e de caricaturas sobre o mais variado tipo de espéctaculos

a que Bordalo assistia. Para além da função de reportagem, as suas caricaturas funcionam também como um importante

compêndio iconográfico de cantores, músicos, compositores, empresários dilettanti, etc.

Rafael Bordalo Pinheiro possuía a formação musical típica da classe burguesa da época e tinha uma especial

predilecção pelas idas ao Teatro de S. Carlos. São muitas as caricaturas sobre récitas e concertos que Bordalo assistiu neste

Teatro, a sala de ópera mais importante da capital e do país. José-Augusto França refere, precisamente, a sua relevância:

Os bastidores da vida nacional, em concentração lisboeta, que Bordalo frequenta, os “mentideros” de S. Bento, de S. Carlos e de

S. Martinho (como ele diz, santificando assim a trindade social do Parlamento, do Teatro e do Café), que são as suas

confessadas, gostosamente confessadas, fontes de informação, a nós nos informam pelo interior das coisas, tal como no tempo

eram vistas, acreditadas e vividas. E isso contem uma dimensão histórica inapreciável – a única que afinal merece crédito5.

Empresa Lírica (1873), Álbum de Caricaturas: Frases e Anexins da Língua Portuguesa (1875), A Lanterna Mágica (1875), No Lazareto de Lisboa (1881), O Almanaque do António Maria para 1882 (1882), para além de inúmeras colaborações como ilustrador 3 Do mesmo modo criou no Brasil o Psit e o Arola, que representavam a realidade social desse país. 4 O jornal usou como título os dois primeiros nomes do político António Maria Fontes Pereira de Melo. Formado em engenharia, Fontes Pereira de Melo entrou muito novo no governo e foi, desde a Regeneração até à data da sua morte, em 1887, uma das figuras mais marcantes da política portuguesa. Em 1858 atingiu a chefia do partido regenerador e foi com o apoio dessa força política que tornou realidade um vasto projecto de reequipamento material do país. À sua política ficou ligado o nome de “fontismo”. É uma das figuras políticas mais caricaturadas por Rafael Bordalo Pinheiro. 5 José-Augusto França: Rafael Bordalo Pinheiro o português tal e qual, Lisboa, Bertrand, 1980, p. 12.

LUZIA ROCHA

Era rotineira a crónica de espectáculos do Teatro de S. Carlos nas páginas de O António Maria. O interesse não

se limitava à ópera, mas também aos faits divers que ali ocorriam, quer relacionado com a música, quer com a política ou

com o social. A visita de uma celebridade internacional como Camille Saint-Saëns não passou ao lado de toda a imprensa

lisboeta, em geral, e do lápis de Rafael Bordalo Pinheiro, em particular. Aparecem, assim, algumas caricaturas muito

interessantes nas páginas do António Maria, dedicadas à passagem deste artista por Lisboa. Saint-Saëns realizou quatro

concertos nos dias 5, 8, 10 e 13 de Novembro. Executou ao piano composições da sua autoria e outras dos seus

compositores favoritos (como Beethoven, Rameau, Gounod ou Liszt). Também dirigiu a orquestra do Teatro de S.

Carlos.

A primeira caricatura está publicada na edição do dia 11 de Novembro de 1880, na página 365. É dedicada a

Saint-Saëns enquanto autor da última6Danse Macabre7(Op. 40), tocada em três dos seus quatro concertos em Lisboa.

Esta obra foi das mais apreciadas pelo público, juntamente com o oratório Le Déluge (Op. 45). Saint-Saëns dirige a Danse

Macabre no topo de um piano, segurando uma batuta (ambos objectos símbolos da sua condição de intérprete e

compositor/maestro). No plano inferior da caricatura está representado no palco, entrando e cumprimentando a plateia e

depois, saindo. Mais uma vez os seus dedos estão numa posição estranha e cómica, que associo à sua condição de

pianista. O seu nariz grande volta a estar também em evidência. É também sugerido um tipo de andar peculiar e

particular, muito afectado e pomposo. Em segundo plano vários elementos iconográficos remetem-nos para o tema da

morte: a lua cheia reflectida em águas paradas8, ciprestes e esqueletos dançando. São em número de doze, o mesmo

número de notas com que a harpa inicia a peça. Estas notas (repetição da nota ré) são tocadas pela harpa para ilustrar as

doze badaladas da meia-noite, altura em que os esqueletos saem das sepulturas para iniciar a dança da morte.

Curiosamente os esqueletos estão coroados. A adição das coroas à iconografia da dança macabra é totalmente fora do

comum e a sua concreta aplicação, neste caso, reveste-se de contornos nacionais. Para Bordalo Pinheiro, que tinha

simpatias pelos emergentes ideais republicanos, o tema da dança da morte é direccionado para questões políticas. As

palavras fixadas neste mesmo desenho (“República Francesa”), que saem directamente da batuta de Saint-Saëns, não

aludem à sua nacionalidade, mas sim ao triunfo da república em França e ao desejo de Bordalo Pinheiro da ‘morte’ da

monarquia portuguesa, simbolizada pelos esqueletos coroados de reis. O poema de Henri Cazalis serviu de inspiração

para Saint-Saëns, e também para a caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro:

Zig et zig et zig, la Mort en cadence

Frappant une tombe avec son talon,

La mort à minuit joue una ir de danse,

Zig et zig et zag, sur son violon.

Le vent d’hiver soufflé et la nuit est sombre,

Des gémissements sortent des tilleuls.

6 O termo “última” remete-nos para outras danças dos mortos na música, possivelmente à anterior Totentanz de Franz Liszt (1849). 7 Poema Sinfónico composto em Outubro de 1874. A música é baseada numa melodia de Saint- Saëns escrita em 1872 sobre o poema Egalité, Fraternité de Henri Cazalis. Dedicada A Madame C. Montigny-Rémaury. Cf. Sabina Teller Ratner: Camille Saint- Saëns 1835-1921, A thematic catalogue of his complete Works, Oxford, Oxford University Press, 2002. 8 A água estagnada seria um poderoso e recorrente elemento usado por poetas, pintores e músicos simbolistas para representar a morte. Debussy, por exemplo, utilizou este elemento em Pélleas e Mélisande.

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ACTAS DO II ENCONTRO IBERO-AMERICANO DE JOVENS MUSICÓLOGOS / PORTO 2014

Les squelettes blancs vont à travers l’ombre

Courant et sautant sous leurs grands linceuls.

Zig et zig et zig, chacun se trémousse

On entend claquer los os des danseurs

. . . . . . . . . . .

Mais, crac! Tout-à-coup on cesse la ronde,

On se pousse, on fuit, le coq à chanté.

Henri Cazalis9.

Fig. 2 – Rafael Bordalo Pinheiro: A Saint-Saens auctor da ultima dança macabra.

A segunda caricatura está publicada na edição do dia 11 de Novembro de 1880, na página 367. O seu conteúdo é

respeitante à segunda récita de Saint-Saëns, do dia 10 de Novembro. A afluência de espectadores ao concerto ficou muito

aquém das expectativas. Bordalo Pinheiro não poupa o público lisboeta e dirige-lhes, nesta caricatura, uma forte crítica.

Vemos uma representação da sala do Coliseu, completamente lotada, com os palhaços e cavalinhos em actuação. Por

outro lado, a sala do S. Carlos onde Saint-Saëns tocou, ficou literalmente “às moscas”. A legenda que acompanha o

desenho, esclarece o observador: “Em quanto o Colyseu transbordava de gente para ver os Cavallinhos10, S. Carlos tinha

trezentos ouvintes para escutar Saint-Saens, um artista cujo talento único, enche de admiração o mundo e só em Lisboa

não consegue encher de espectadores dez camarotes”11.

9 Cf. http://www.danse-macabre.net/ (01/02/14). O penúltimo verso do poema é mudado, mais tarde, para “Mais, psit! Tout-à-coup on quitte la ronde”, conforme indicado em S. T. Ratner, Camille Saint-Saëns..., p. 292. 10 Nesta época a sala do Coliseu apresentava regularmente espectáculos de índole circense. 11 O António Maria, 10-XI-1880, p. 367.

LUZIA ROCHA

Fig.3 – Concerto de Saint-Saëns no Teatro de S. Carlos.

A caricatura desenvolve-se com novo desenho, onde Bordalo usa a ironia: vemos um piano cavalgante e o

empresário Diogo de Freitas Brito a segurar um arco forrado a papéis de música. Saint-Saëns protagoniza um incrível

salto acrobático. Mais uma vez, o texto esclarece o observador e reforça o cómico da situação: “Pediamos aos nossos

dilettanti que não faltem no concerto proximo porque, em vez de interpretar Beethoven, Saint-Saens promette forrar um

arco de pipa com o papel de uma symphonia, e furar esse arco numa cambalhota. Vão cedo se quiserem apanhar

logar!”12.

Bordalo sugere que a única maneira de os espectadores optarem pelo espectáculo de Saint-Saëns seria a sua

transformação num número de circo, igual aos que eram vistos no Coliseu. Está aqui inerente uma forte crítica ao

público e à sua fraca formação intelectual, que leva a escolha dos “Cavallinhos” em detrimento da oportunidade única de

ver tal artista, que pela primeira vez se apresentava no nosso país. A crítica intensifica-se e expande-se a outras instituições

artísticas, para além do S. Carlos, com o comentário seguinte:“À empreza aconselhamos que em vez de escripturar artistas

[Saint-Saëns] de tal ordem, escripture simplesmente alguns burros sabios. Ha um conservatório d’elles na Academia de

Bellas Artes, rua de S. Francisco”13. Outro periódico lisboeta, O Pimpão, publicou uma notícia que comprova a

veracidade da situação e que reforça a opinião de Rafael Bordalo Pinheiro: “Camilo de Saint Saens que além de músico

notável é um escriptor de primeira ordem tem tido o praser de se ver preferido pelo Tony Grice e pelos poneys do sr.

Diaz. O Coliseu tem estado sempre cheio, o S. Carlos na noite dos concertos perfeitamente um deserto”14.

12 Ibid., loc. cit. 13 Ibid., loc. cit. 14 O Pimpão, 14-XI-1880.

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ACTAS DO II ENCONTRO IBERO-AMERICANO DE JOVENS MUSICÓLOGOS / PORTO 2014

Fig. 4 – Rafael Bordalo Pinheiro: Concerto de Saint-Saëns no Teatro de S. Carlos.

A terceira caricatura está publicada na edição de 11 de Novembro de 1880, na página 371. Saint-Saëns aparece

caricaturado com uma grande nariz, tipo “bico de papagaio”. Ao seu lado está a soprano Erminia Borghi-Mamo, habitué

das páginas de O António Maria. A sua presença ao lado do compositor tem um duplo significado. Em primeiro lugar,

Borghi-Mamo era usualmente caricaturada pelo seu enorme nariz, algo que tinha particularmente em comum com Saint-

Saëns. Em segundo lugar, foi esta cantora quem executou o romance da ópera Etienne Marcel15, de Saint-Saëns,

acompanhada pelo próprio ao piano. Ambos envergam trajes de cerimónia e Saint-Saëns tem os seus dedos da mão em

posição algo estranha e tensa, possivelmente por causa de ser pianista. Outra figura regular das caricaturas de Bordalo

Pinheiro é a chamada “corista gorda”, que aqui aparece a debitar uma lenga-lenga tradicional, totalmente apropriada aos

famosos “narizes”: “Serobicos massaricos, quem vos deu tamanhos bicos?”.

Fig. 5 – Rafael Bordalo Pinheiro: Theatro de S. Carlos.

15 Ópera em 4 actos, libreto de Louis Gallet.

LUZIA ROCHA

A quarta caricatura diz respeito ao último concerto, no qual Saint-Saëns apresentou ao público português uma

nova composição da sua autoria, intitulada Une nuit à Lisbonne16 (Op. 63). A peça, composta para flauta, oboé, clarinete

(sib), fagote, trompas (mib), harpa e cordas foi dedicada a Sua Majestade, El-Rei D. Luís de Portugal, em poder na época

da visita do compositor. Nesta caricatura, intitulada Dois Espelhos, Bordalo estabelece o paralelismo cómico-pitoresco

entre o que seria a impressão do compositor entre uma noite passada em Lisboa e uma noite passada em Madrid. Assim,

uma composição intitulada Une nuit à Madrid reflecte uma imagem no espelho de alegria e entusiasmo. Vemos Saint-

Saëns a tocar castanholas e a dançar com uma bela espanhola que também toca castanholas e pandeiro. Por outro lado,

em Une nuit à Lisbonne, o espelho reflecte monotonia, na pessoa de uma velha senhora, feia, com cara de zangada e um

Saint-Saëns muito pouco animado.

Fig. 6 – Rafael Bordalo Pinheiro: Dois Espelhos.

Este último desenho de Rafael Bordalo Pinheiro pode sugerir várias interpretações. Estaria o caricaturista

zangado com a ausência de público tendo-o caracterizado na sua faceta mais monótona? Estaria a caracterizar a

melancolia dos portugueses, nada comparável à alegria dos nossos vizinhos espanhóis? Ou seria a peça Une nuit à

Lisbonne aborrecida? Teria sido Lisboa uma fraca inspiração para o compositor? Estas são algumas das perguntas que se

podem colocar, perante a ausência de mais explicações. A caricatura mostra também Saint-Saëns a “voar” de volta para a

terra natal, exibindo a partitura do seu oratório Le Déluge (Op.45), executado no último concerto e muito apreciado pelo

público português.

Muitas obras têm sido publicadas relativamente ao Teatro de S. Carlos e/ou Rafael Bordalo Pinheiro, contendo

informação complementar ao artigo aqui apresentado e conteúdos extremamente relevantes para a compreensão deste

tema17, bem como publicações no domínio da música e caricatura18. As caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro expõem as

récitas do Teatro de S. Carlos na sua vertente mais cómica. Estas documentam a visita de Camille Saint-Saëns a Lisboa

na sua globalidade. As peripécias que envolveram os seus concertos – sendo a mais gravosa a falta de público no S. Carlos

– são aqui expostas de uma maneira clara, com um sentido de humor acutilante. Além do mais, estes documentos são

16 Peça composta em Lisboa e terminada a 10 de Novembro de 1880. 17 É o caso das obras de Francisco da Fonseca Benevides: O Real Theatro de S. Carlos – desde a sua fundação em 1793 até à actualidade, Lisboa, Typographia Castro & Irmão, 1883; Mário Moreau: O Teatro de S. Carlos, Lisboa, Hugin, 1999; Mário Vieira de Carvalho: Pensar é Morrer ou o Teatro de S. Carlos na mudança de sistemas sociocomunicativos desde fins do séc. XVIII aos nossos dias, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993; Luzia Rocha: Ópera & Caricatura: O Teatro de S. Carlos na obra de Rafael Bordalo Pinheiro, Lisboa, CESEM/Colibri, 2010. 18 É o caso da pertinente monografia de Karl Stork: Musik und Musiker in Karikatur und Satire, s.l., Laaber-Verlag, 1998.

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ACTAS DO II ENCONTRO IBERO-AMERICANO DE JOVENS MUSICÓLOGOS / PORTO 2014 preciosidades iconográficas que mostram visualmente Saint-Saëns, por certo a juntar ao leque de imagens já conhecidas e

identificadas por muitos investigadores em numerosos trabalhos de investigação. Bordalo Pinheiro expõe também outros

aspectos – cantores, coristas, público, etc – interligados com a prestação musical de Saint-Saëns, mostrando o mais

particular que existia no mundo da ópera lisboeta e nos meandros do Teatro de S. Carlos.