Justiça para quem?

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Autor: Josué Mastrodi Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho. Autor do Livro Direitos Sociais Fundamentais (Ed. Lumen Juris). Professor e pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. e-mail: [email protected] tel. 19 8128 5166 Título do artigo: Justiça para quem? Resumo: Justiça é conceito abstrato que somente se torna concreto a partir das relações sociais de poder que estruturam toda e qualquer sociedade. Os grupos ou classes sociais que historicamente detém mais poder têm a efetiva capacidade de organizar o grupo social segundo a satisfação prioritária de seus próprios interesses, em detrimento dos interesses dos demais grupos ou classes sociais. Para que seus interesses sejam satisfeitos de forma prioritária, eles são apresentados como interesses universais, adequados à sociedade como um todo. Essa aparência de justiça acaba por esconder sua essência de injustiça. Palavras-chave: Justiça abstrata. Justiça concreta. Direito e modo de produção capitalista. Violência e poder social como direcionadores do sentido das normas jurídicas. Title: Justice for whom? Abstract: Justice is a very abstract concept that only becomes concrete due to the social relations of Power which structure all and every society. Groups or social classes that historically possess more power have effective capacity to organize the entire social body in such a way its own interests are satisfied better and before the interests of the other groups or classes. For the sake of using social goods first, the interests of the dominant class are shown as universal interests, that fit society as a whole. This appearance of justice conceals the essence of this society is anything but related to justice. Keywords. Abstract justice. Concrete justice. Law and capitalist mode of production. Violence and social power giving sense to legal norms. Vinculação ao eixo temático Direitos Fundamentais e Novos Direitos

Transcript of Justiça para quem?

Autor: Josué Mastrodi

Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela

Universidade Gama Filho. Autor do Livro Direitos Sociais Fundamentais (Ed. Lumen Juris).

Professor e pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

e-mail: [email protected]

tel. 19 8128 5166

Título do artigo: Justiça para quem?

Resumo: Justiça é conceito abstrato que somente se torna concreto a partir das relações

sociais de poder que estruturam toda e qualquer sociedade. Os grupos ou classes sociais que

historicamente detém mais poder têm a efetiva capacidade de organizar o grupo social

segundo a satisfação prioritária de seus próprios interesses, em detrimento dos interesses dos

demais grupos ou classes sociais. Para que seus interesses sejam satisfeitos de forma

prioritária, eles são apresentados como interesses universais, adequados à sociedade como um

todo. Essa aparência de justiça acaba por esconder sua essência de injustiça.

Palavras-chave: Justiça abstrata. Justiça concreta. Direito e modo de produção capitalista.

Violência e poder social como direcionadores do sentido das normas jurídicas.

Title: Justice for whom?

Abstract: Justice is a very abstract concept that only becomes concrete due to the social

relations of Power which structure all and every society. Groups or social classes that

historically possess more power have effective capacity to organize the entire social body in

such a way its own interests are satisfied better and before the interests of the other groups or

classes. For the sake of using social goods first, the interests of the dominant class are shown

as universal interests, that fit society as a whole. This appearance of justice conceals the

essence of this society is anything but related to justice.

Keywords. Abstract justice. Concrete justice. Law and capitalist mode of production.

Violence and social power giving sense to legal norms.

Vinculação ao eixo temático Direitos Fundamentais e Novos Direitos

Justiça para quem?

1. Introdução

Justiça é um dos termos com o maior número de acepções possíveis, seja em língua

portuguesa, inglesa, alemã ou qualquer outra. Não existe definição unívoca, tampouco uma

que seja universalmente aceita. Neste trabalho, justiça será apresentada como um termo que

decorre da cristalização histórica de relações sociais de poder, relações estas que estruturam

a sociedade de tal modo que, a partir delas, desenvolvem-se as próprias definições e

compreensões que os indivíduos têm de si e do mundo. Ou seja, justo é tudo aquilo que é

conforme a tais definições e compreensões. Aliás, é por isso mesmo que o termo justiça tem

conteúdo tão variado: por conta das incontáveis relações sociais de poder travadas ao longo da

história.

Nessas relações, há grupos sociais que detêm mais capacidade de imposição de seus

interesses que outros, o que faz com que certas definições de justiça sejam mais favoráveis

àqueles do que a estes, posto que baseadas na visão de mundo dos grupos hegemônicos. Tais

relações de poder são tão intrínsecas às sociedades que os grupos menos favorecidos acabam

por aceitar os valores e conceitos do grupo dominante como justos, ainda que tais valores e

conceitos consolidem a situação de dominação. Essa estrutura de dominação subjaz toda e

qualquer compreensão de justiça, compreensão que se altera na história na medida em que

novas relações de poder se estabelecem na sociedade. A própria definição filosófica de justiça

decorre dessas relações estruturais de poder.

Para não tornar este artigo por demais extenso, desenvolverei o tema a partir da

estrutura de pensamento jusnatural de caráter racionalista, deixando de lado a ideia de que a

justiça decorreria da natureza das coisas (compreensão desenvolvida na Antiguidade, pela

qual algo é justo porque é assim que ele deve ser), ou que decorreria da revelação de uma

vontade divina, em que justo é tudo aquilo que deriva da vontade do Criador.1

1 Não obstante, há no jusnaturalismo divino um problema que acabará por ser tratado mais adiante. Nos mais

diversos grupos sociais, ao longo da história, sempre se conferiu a uma pessoa ou a uma casta a prerrogativa de

conversar com Deus. O sacerdote, nesse cenário, acaba tendo uma posição social privilegiada porque, como

apenas ele tem acesso à divindade, jamais é possível aos demais membros daquela sociedade saber se o que é

dito pelo sacerdote decorre da vontade de Deus ou do simples arbítrio do próprio sacerdote. Em que pese o tema

justiça divina não ser objeto deste trabalho, ela foi lembrada apenas para ressaltar que, mesmo nesta situação,

Segundo a posição iluminista, justiça decorre do que pode ser acertado pelos membros

da sociedade dentro de alguma espécie de pacto ou contrato social. Impossível não notar que

se trata de uma especulação sobre permitir aos homens que decidam seus destinos sem

qualquer necessidade de importunar Deus (aliás, a própria noção de Deus é deixada de lado:

em termos racionais, os homens podem até viver sem Deus). Essa ideia tira de Deus a

prerrogativa de determinar os destinos do grupo social e a põe nas mãos dos homens, que

passariam a decidir seus destinos conforme sua vontade, e não a Dele. Essa ideia deu tão certo

que hoje, no ocidente, é praticamente impensável considerar que o Estado possa ser atrelado à

Igreja, ou que os valores religiosos devam estabelecer o conteúdo das normas jurídicas. O

Estado, segundo o contrato social, deve ser laico.2

2. Justiça racional

Voltando à ideia de contrato social: todos os autores iluministas, de uma forma ou de

outra, acabaram estipulando que é possível viver em sociedade mediante consensos, criando-

se princípios de convivência a partir dos quais o próprio ethos é estabelecido. Esses princípios

valorizam sobremaneira o indivíduo e sua vontade, chegando-se a considerar que este é

naturalmente livre para fazer o que quiser, desde que não invada a individualidade ou a

liberdade de terceiros.3 Aliás, a sociedade é entendida como o conjunto de indivíduos livres

impera uma relação de poder, que é efetivamente o cerne desta discussão. Aliás, o iluminismo e o

antropocentrismo devem ser entendidos como formas de luta social contra o poder do clero e dos nobres

(alçados por Deus a tal posição), como forma de reorganizar a sociedade conforme outros critérios de justiça

mais favoráveis aos demais grupos.

2 Cabe, aqui, a seguinte pergunta: por que o Estado deve ser laico? Exatamente para impedir que o poder social

seja exercido pela casta de sacerdotes (ou do grupo nomeado por Deus para governar). A partir do momento em

que valores religiosos não devam mais ser considerados importantes, ou ao menos tão importantes quanto todos

os outros valores sociais, a noção de justiça se seculariza. Na verdade, esta discussão não envolve uma disputa

ideológica entre ateus de um lado e religiosos de outro, mas uma luta social em que o grupo anteriormente

dominado, para tornar-se dominante, precisava justificar sua força social e quebrar o fundamento da força do

grupo antes dominador, agora dominado. De igual modo, não afirmo que os fundamentos ideológicos são mais

importantes que a luta social: é porque a luta social se desenvolve e o novo grupo social ascende que seus

valores e conceitos justificadores se tornam mais relevantes. Tanto que se o Estado deixar de ser laico

dificilmente isso alteraria estruturalmente as relações sociais de poder.

3 Essa regra de ouro, pela qual o limite de um termina onde o limite do outro começa, é baseada no imperativo

kantiano pelo qual a conduta do indivíduo deve ser de tal modo que esta se torne conduta universal. Mas há um

problema aqui, que é objeto deste trabalho: quem estabelece de fato esse limite entre as liberdades? Trata-se de

questão lógica levantada até mesmo para KELSEN (2003), que considera inviável identificar objetivamente onde

começa a liberdade de um e termina a de outro. Tal definição acaba ocorrendo pela decisão de autoridade

política por meio da positivação de norma jurídica. Não obstante, a questão pode ser novamente apresentada:

qual o critério de justiça da autoridade ao definir o limite entre as liberdades?

que decidiram conviver por vontade própria de cada um (Cf. ROUSSEAU ou RAWLS), como se

não houvesse necessidade de convivência para manutenção das próprias condições de

sobrevivência do grupo.

O critério de legitimidade das regras e das condutas sociais não se funda mais na

vontade de Deus, que foi substituída pela crítica da Razão. Todas as regras sociais e a própria

noção de justiça passam a ser definidas a partir de critérios racionais. Declara-se, com o

racionalismo, que a justiça é logicamente demonstrável.

Ao se fundar a noção de justiça sobre a lógica, criam-se normas –morais e jurídicas–

racionais que, exatamente por serem racionais, são necessariamente justas. Como a razão não

admite duas respostas certas para a mesma situação (pois é formalmente ilógico haver dois

resultados verdadeiros para um único problema), a aplicação desse critério às normas de

conduta e à própria noção de justiça impõe a afirmação de que só existiria uma forma justa de

se conduzir em sociedade. Assim, a vontade dos homens é apresentada como legítima se

racionalmente justificada. Se as condutas humanas, por outro lado, não passarem pela crítica

da Razão, elas são injustas.

No final do século XX, a racionalidade lógica da justiça –a ideia de justiça racional–

passou a ser relativizada. Justiça ainda é termo cuja definição depende, conforme a época e o

lugar, do estabelecimento de consensos sociais. Mas tais consensos passaram a ser aceitos se

fundamentados sobre certa razoabilidade. Ou seja, para se definir claramente o que se possa

entender por justiça (ou por algo justo), pressupõe-se que as pessoas estabeleçam uma série de

acordos prévios sobre suas próprias vidas e sobre a forma como elas convivem para, a partir

dessas definições, considerarem que tudo o que for conforme essas mesmas definições é justo.

As diferentes posições filosóficas e até sociológicas sobre a noção de justiça passaram a

conviver no que se convencionou denominar de pluralismo político. Não é mais possível falar

em uma única resposta certa ou numa única forma de se fazer justiça.

Porém, essa relativização da justiça não passa de uma forma de luta social pela qual o

grupo dominante mantém o status quo.4 Afinal, se tantas são as formas de justiça possíveis, a

4 Cf., a propósito, LEAL HURTADO (2008), para quem as teorias sociais pós-modernas têm servido para retardar

as possibilidades de mudança social justamente por servirem de sustento ideológico ao neoliberalismo. Em que

atual formatação do que é justo, por também ser fundada em certa razoabilidade, também é

válida e pode ser mantida, sem necessidade de qualquer mudança que favoreça os grupos

dominados.

3. Poder e estrutura social

Poder é uma relação ora intersubjetiva, ora social. Num caso ou no outro, trata da

capacidade de uma pessoa ou de um grupo ver satisfeitos suas necessidades, interesses e

vontades à custa de outra pessoa ou de outro grupo (RUSSELL, 1957:1-7). Em termos sociais,

um grupo é dominante sempre que consome o produto do trabalho social do outro grupo sem

qualquer contraprestação. Deve-se notar que se trata de uma relação dialética: um grupo só é

dominante porque domina outro grupo. É inconcebível compreender um grupo dominante

sem outro que seja dominado.

Do mesmo jeito, é impensável conceber a existência de uma pessoa rica sem compará-

la com uma pessoa pobre. E, dado que os bens produzidos em qualquer sociedade são

escassos (i.e., não há recursos para todos ao mesmo tempo, de modo ilimitado), se alguém se

apropria desses bens, ele se torna rico na medida em que as outras pessoas empobrecem. Para

que isso seja possível em sociedade, isto é, que uma parcela aceite empobrecer ao mesmo

tempo em que outra enriquece, é preciso que haja formas de controle social, seja físico (força

material, exercício efetivo de violência), seja ideológico (consolidação de valores e princípios

pelos quais até mesmo os que empobrecem entendam que a estrutura social é justa).

O poder se apresenta e se estabelece como estruturador da sociedade porque é

justamente por ele que o grupo dominante impõe a outro(s) grupo(s) que trabalhe(m) em seu

favor. Sempre que um grupo trabalha de modo que o produto do trabalho é consumido por

outro grupo, sem qualquer contrapartida equivalente, há relação de poder entre eles. Essa

relação social, embora estruturante de qualquer sociedade, não se apresenta de modo evidente.

Ao contrário, as relações sociais são costumeiramente apresentadas e analisadas a partir de

uma ótica de colaboração entre os indivíduos, todos contribuindo em maior ou menor medida

pese seu estudo tratar em especial da realidade do Chile, as considerações teóricas servem perfeitamente à

compreensão da estrutura social capitalista nos demais países.

para o sucesso do corpo social. Ou seja, a relação de dominação, em regra, está oculta e dá-se

a entender, por conta disso, que ela sequer exista.

Para tratar de relações sociais, convém lembrar a mais importante delas: o trabalho.

Trata-se da relação social mais importante de todas, pois é pelo trabalho que o homem

transforma a natureza (ou os recursos naturais) em bens de consumo necessários à sua

sobrevivência. É pelo trabalho que se produzem comida, bebida, moradia, vestimentas,

medicamentos, ferramentas, máquinas, novos processos produtivos, novas tecnologias etc..

Aliás, a evolução das capacidades produtivas (a melhoria das forças pelas quais a natureza é

transformada) determina a forma como as pessoas se relacionam na sociedade, já que novas

formas de produzir impõem novas formas de as pessoas se organizarem para o trabalho.

O trabalho é uma relação social porque é impossível trabalhar sozinho. Os homens

dependem uns dos outros para que a produção ocorra. Ninguém é capaz de, como se fosse um

Robinson Crusoé, criar as próprias condições de sobrevivência (e até o Crusoé precisou do

Sexta-Feira!).5

Sobre os bens produzidos pelo grupo social, estes englobam todos os bens de consumo

coletados, plantados, manufaturados, industrializados. Não há, é claro, apenas bens materiais

necessários à satisfação de condições biológicas, mas estes são primordiais. Se há bens de

caráter ideal, como a necessidade de rituais para com deuses ou a criação de peças teatrais ou

de pinturas, esculturas, arquiteturas, eles são condicionados pelo desenvolvimento material e

histórico da sociedade, na medida em que estas novas necessidades são culturalmente criadas.

5 Algo que fica nítido na seguinte passagem de CAFFÉ ALVES (1987:194): “A partir de um determinado nível do

desenvolvimento histórico-social, cada homem ou grupo de homens não pode num dado momento realizar

isoladamente todas as tarefas cujos produtos possam a um só tempo satisfazer a todas as suas respectivas

necessidades. Aliás, em tempo algum ao homem foi possível realizar-se como tal de forma solitária, visto que

mesmo antes do aparecimento da divisão do trabalho já havia uma conjugação social dos esforços dos membros

das comunidades primitivas, no período da coleta ou apropriação direta dos frutos naturais, com vistas

exatamente a superar a baixa produtividade de cada indivíduo isoladamente considerado, e que era inferior aos

níveis de sua subsistência: o indivíduo não sobreviveria se confiasse apenas em suas próprias forças. Com a

divisão social do trabalho, entretanto, a sociabilidade se perfaz segundo outras exigências, vinculadas não só à

conjugação de esforços dos homens, mas também, e ao mesmo tempo, à necessidade de seu relacionamento

recíproco e integrado para a complementação mútua das atividades que cada membro do grupo ou o grupo

todo desenvolve de forma especializada: enquanto uns guardavam o rebanho, outros cultivavam a terra;

enquanto uns defendiam o grupo, outros fiavam ou teciam; enquanto uns caçavam ou pescavam, outros

praticavam ritos religiosos ... Assim, a maior produtividade, gerando o excedente econômico, decorre

exatamente dessa divisão do trabalho, da especialização das atividades e da consequente necessidade de haver

trocas recíprocas entre os homens ou grupos sociais para a satisfação das necessidades engendradas num

determinado nível do desenvolvimento histórico-social.”

Essas novas necessidades, artificialmente criadas (resultado da superação de necessidades

naturais), são impostas segundo as relações sociais estruturais e não por força da natureza:

são impostas por um grupo social em relação a outro. Não obstante, são necessidades

igualmente vitais e que precisam ser satisfeitas. Isto fica ainda mais claro pela afirmação a

seguir, que dá fundamento objetivo à compreensão de qualquer realidade social:

A conclusão geral a que chequei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos,

pode formular-se resumidamente assim: na produção social da sua existência, os homens estabelecem

relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que

correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto

destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual

se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de

consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social,

política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser

social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças

produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, ou

que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até

então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu

entrave. Surge então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera, mais

ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. MARX (2003:5).

Na medida em que se trabalha e se criam novas formas de produção, a própria

condição do trabalho melhora. Máquinas permitem que a produção ocorra de forma mais

eficiente, mais rápida, mais barata. O detentor dessas máquinas passa a ter uma relevância

social maior do que aqueles que não a detêm. Por possuir o meio de produção, este

proprietário fica em uma posição social privilegiada, pois é capaz de produzir em medida

maior que os demais. Sua posição social lhe confere um poder que os outros indivíduos não

possuem.

Na Idade Média, os senhores feudais detinham o principal bem de produção existente:

as glebas. Afinal, o estágio das forças produtivas da época dava aos donos da terra o acesso a

todo produto agropecuário. Os bens produzidos de forma artesanal e, posteriormente,

manufaturados, eram residuais naquela formação social. Com o avanço das forças produtivas,

a estrutura social se modificou radicalmente, já que os produtos maquinofaturados e

industriais passaram a ter importância social maior que os produzidos nas glebas. A força

econômica e militar dos proprietários das fábricas e dos comerciantes, ao longo do tempo,

causou importante modificação política na sociedade, a ponto de alterar as relações sociais de

força, até então altamente favoráveis aos estamentos da nobreza e do clero.

Essa elevação gradual do poder dos comerciantes e industriais foi constatada pelos

escritores iluministas dos anos 1600 a 1800, em especial GROTIUS (1583-1645), HOBBES

(1588-1679), LOCKE (1632-1704), ROUSSEAU (1712-1778), MONTESQUIEU (1689-1755),

KANT (1724-1804) e HEGEL (1770-1831), que em suas obras identificaram os ideais do grupo

social então subalterno, a burguesia, como valores universais que deveriam organizar a

sociedade, em substituição aos valores nobiliárquicos então vigentes.

Note-se que os valores burgueses, em especial as noções de liberdade e de

individualidade, de igualdade perante a lei etc. são fundamentais para a organização da

sociedade atual, porém totalmente incompatíveis com a estrutura feudal. A modificação da

estrutura social, contudo, não ocorreu porque os valores sociais burgueses foram aceitos pelo

grupo então dominante, tampouco que isso tenha ocorrido de uma hora para outra. Houve ao

menos 200 anos de constante e intensa luta social, cujo ápice, em termos históricos, é a

revolução francesa de 1789.

Esses valores, (a liberdade, a igualdade de oportunidades etc.) são apresentados como

universais, como direitos conferidos a todos os seres humanos, porém são concretamente

exercíveis quase que exclusivamente pela classe social burguesa.6 Mas afinal, se todos têm

esses direitos, por que a grande massa da população mundial não os exerce? É porque tais

direitos não existem na prática. Porém, por conta da estrutura objetiva da realidade social, esta

se apresenta como se todos tivessem esses direitos à sua disposição.

Isto acontece por conta da aparência de nossa sociedade, apresentada como

democrática, livre e igualitária. Afinal, se as relações sociais transparecessem aos olhos dos

dominados como realmente são, a sociedade poderia sofrer sua desagregação por conta do

confronto entre as classes sociais. A dimensão prática da vida social fica, assim, escondida

por debaixo de considerações teóricas, que ora negam a desigualdade social, ora consideram

que tal desigualdade, no âmbito do capitalismo, será naturalmente ajustada pelas condições

econômicas determinadas pelo livre mercado (MÉSZÁROS, 2004:62).

6 “As Liberdades Públicas conquistadas pela Era Moderna mostram-se eficientes para garantir o

desenvolvimento da economia de mercado, porém inadequadas para a proteção dos interesses concretos da

maior parte dos membros da sociedade de massas” (MASTRODI, 2008:77)

4. Divisão social do trabalho e (in)justiça

Em princípio, ninguém trabalha de graça. Nem mesmo em regimes escravistas. Ainda

que o ser humano posto na condição de escravo não receba salário para trabalhar, seu

proprietário tem o ônus de conservá-lo. Ou seja, o escravo não é remunerado, mas recebe

comida, bebida e vestimenta. Os servos da gleba não recebiam remuneração, mas consumiam

parte da colheita que plantavam nas terras do senhor feudal. O dominado sempre recebe algo,

geralmente o mínimo necessário para sua sobrevivência, para a manutenção de sua vida de

modo que continue a produzir.

Mas recebe esse mínimo em troca de quê? A contraprestação do senhor é difusa e

apresentada como algo de qualidade diferente, mas quantitativamente tão ou mais importante

que o trabalho realizado pelo escravo ou pelo servo: a proteção do senhor7 (CAFFÉ ALVES,

1987). Fica clara, nesses dois modos de produção, a relação de poder entre o senhor, de um

lado, e o escravo ou o servo de outro. Estes trabalham, aquele consome praticamente todo o

produto de seu trabalho, sem objetivamente lhes prestar qualquer retribuição equivalente.

As relações sociais se baseiam nas trocas, pois é por meio da troca de excedentes que

a satisfação das necessidades humanas se realiza: “A divisão social do trabalho induz à

necessária troca de esforços, entre os homens, mediante o intercâmbio de diferentes

produtos; pois bem, em princípio, a ‘reciprocidade real’ deveria presidir essas relações de

troca, visto que normalmente não se dá mais do que se recebe” (CAFFÉ ALVES, 1987:194).

Contudo, para a realização do trabalho necessário à produção social, as pessoas estão

divididas em classes sociais, estruturadas de modo assimétrico. Por conta dessa assimetria, as

7 Aliás, esse esforço material do trabalho na gleba pelos servos não era considerado equivalente ao esforço

espiritual dos sacerdotes na condução religiosa dos servos (e também dos nobres) ao paraíso para livrá-los da

danação eterna; ou ao esforço de proteção terrestre dos senhores. Na verdade, a estrutura social da época se

fundava no pressuposto que o trabalho diário e ininterrupto dos servos da gleba jamais seria suficiente para

retribuir todo o importante serviço de proteção material e espiritual prestado graciosamente pelos integrantes

do primeiro e do segundo estados aos membros do terceiro. O terceiro estado estaria, assim, sempre em dívida

para com os outros estamentos. Essa prática de dominação ideológica é até mesmo anterior. CAFFÉ ALVES

(1987:197-198) dá conta de que o trabalho agrícola no Egito Antigo só era possível porque o faraó, por meio de

sua intercessão direta junto aos deuses, realizada segundo seus ritos sagrados e secretos, controlava o fluxo da

vazão do rio Nilo, fazendo com que a terra se tornasse fértil para o plantio, condição sem a qual não haveria

sequer expectativa de produção. Assim, o rito do faraó se tornava o serviço mais importante de todo o reino, pois

sem ele não haveria possibilidade de colheita.

relações sociais de classe a classe não são horizontais, não estão em pé de igualdade. Ou seja,

não há equivalência entre o esforço ou serviço realizado do lado de quem trabalha e o

esforço ou serviço realizado do lado de quem detém a propriedade dos meios de produção.

Assim, para evitar a desagregação social, as teorias sociais tradicionais acabam por ocultar

essa assimetria, tratando como equivalentes todas as trocas sociais:

A realidade histórica diz mais do que o princípio, de vez que, por circunstâncias múltiplas, exatamente

em razão da divisão do trabalho, se criaram condições para o aparecimento de desigualdades sociais de

caráter estrutural e antagonismos de classe. Esse fato enseja o aparecimento da “reciprocidade ilusória

ou imaginária” ... mediante a manipulação de processos ideológicos. De qualquer modo, há entre os

homens uma exigência de reciprocidade e de compensação em suas relações de troca, tanto a nível

econômico quanto a nível social: o intercâmbio das tarefas, a troca de bens e serviços, deve expressar

uma reciprocidade de certo modo simétrica ou equivalente quanto aos esforços exigidos para sua

respectiva prestação ou produção segundo a natureza e o grau de especialização envolvidos.

Nesse sentido, no que respeita à relação de poder, a dominação, para se apresentar como legítima,

precisa aparecer como um serviço prestado necessariamente pelos dominadores aos dominados,

devendo estes devolver àqueles, de igual forma e de modo espontâneo, esforço equivalente (CAFFÉ

ALVES, 1987:195).

5. O capitalismo é justo para todo mundo?

A relação social de poder não é tão clara assim no capitalismo. Afinal, o empregado

recebe salário por seu trabalho. E como o valor do salário foi decidido por consenso entre

patrão e empregado, o trabalho é considerado justo por ambas as partes. Mas se o valor

recebido a título de salário é justo, como explicar o lucro do patrão? Pois, se o empregado

recebesse o valor justo de seu trabalho, não sobraria nada para o proprietário dos bens de

produção lucrar. E mais: se o trabalhador não estiver satisfeito com as condições de trabalho a

que se submeteu por sua vontade, basta deixar de trabalhar e procurar outro emprego.

O primeiro problema reside no valor do salário. Este não é estipulado por consenso.

Há muito mais pessoas procurando emprego do que vagas de trabalho. O proprietário dos

bens de produção, justamente por essa condição, pode leiloar a vaga, contratando aquele que

aceitar receber o menor salário. Claro que, a partir do século XIX, e com mais força no século

XX, leis foram criadas para mitigar a capacidade de pressão dos empregadores, mas até hoje a

expressão salário mínimo reflete muito menos o valor “fixado em lei, nacionalmente

unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com

moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência

social,...”8 que o máximo que os empregadores aceitam pagar.

O segundo problema está na ideia abstrata de que o empregado é livre para trabalhar

onde quiser. Ora, ninguém é livre para ficar sem comer. O empregado precisa do emprego

para sobreviver. Em geral, o empregado não tem condições materiais de ficar meses sem

salário, e quanto mais tempo ficar desempregado, menores são suas condições de negociar por

um bom emprego.

O terceiro –e principal– problema está no pressuposto que é o empregado quem

precisa do empregador. Eis aqui o cerne da estrutura social do capitalismo: estabelece-se uma

relação entre indivíduos de classes sociais diferentes de modo que o proprietário dos meios de

produção tem a prerrogativa de determinar quem será contratado para produzir.

Há ainda um quarto problema, que está implícito nos anteriores: a relação entre patrão

e empregado, por se revestir de uma qualidade jurídica (o contrato de trabalho) e por ser

regulada por leis, acaba se apresentando como justa. No entanto, isso decorre de uma

confusão entre a noção de direito (sistema estatal organizado de imposição de condutas pelo

cumprimento de normas jurídicas) e de justiça (conjunto de valores estruturantes de uma

visão de mundo e de suas relações sociais, valores estes entendidos como adequados à

manutenção da convivência social). Nada impede que as normas jurídicas sejam justas, Mas

como justiça se refere à organização do mundo conforme um certo ponto de vista fundado em

interesses sociais sobre bens escassos, o direito estatal acaba por refletir muito mais os

interesses sociais dos grupos hegemônicos que os interesses dos grupos dominados. É claro

que o contrato de trabalho garante o salário ao empregado, mas também garante que este

estará sempre subordinado ao seu patrão.

Ora, na verdade, para que o modo de produção funcione, é preciso que haja produção,

que somente ocorre se alguém trabalhar. Ou seja, embora o trabalho seja o fundamento de

transformação dos recursos naturais em bens de consumo, estipula-se que somente pode

trabalhar quem for escolhido pelo proprietário dos bens de capital. O trabalhador fica

irremediavelmente submetido ao poder de mando do capitalista. Realiza-se, assim, uma troca:

8 Cf. art. 7°, IV, da Constituição da República Federativa do Brasil.

o empregado recebe salário para trabalhar, salário este que é pago pelo capitalista com a

venda do produto produzido pelo empregado. O equivalente ao salário é a capacidade de

organização empresarial do capitalista. E, exatamente como nos modos de produção

anteriores, como o feudal, essa organização empresarial é apresentada como se fosse muito

mais importante que o esforço do trabalhador, como se o trabalho sequer pudesse ser

realizado sem a presença prévia da empresa e do organizado capitalista.

Assim, fica claro que, até mesmo no modo de produção capitalista há uma profunda

relação de poder que estrutura a sociedade contemporânea: de um lado, proprietários dos

meios de produção, detentores da capacidade de transformar recursos naturais em produtos de

consumo de forma eficiente; de outro, todos os demais indivíduos que, por não terem

condições de produzir para sua própria sobrevivência, empregam-se a serviço dos primeiros, e

sob comando destes, à custa de salário. Note que o produto do trabalho do empregado não

pertence ao empregado, mas ao proprietário dos bens de produção.

Toda a sociedade moderna se estrutura a partir dessa relação de poder entre capital e

trabalho. Os proprietários dos bens de produção pertencem a uma classe social que detém um

poder muito maior aqueles que não são proprietários senão de sua própria força de trabalho.

Essa relação social é totalmente assimétrica, desproporcional e vertical, porém apresentada

como perfeitamente simétrica, sinalagmática e horizontal, na forma jurídica de um contrato

de trabalho em que as partes recebem valores equivalentes por suas contraprestações

recíprocas. Mas, na verdade, um dos lados (o dos empregados, que ficam do lado de baixo)

acaba entregando muito mais do que de fato recebe.

Essa relação social, transcrita na relação jurídica do contrato, é vista como justa

(neutra, imparcial, equitativa e equilibrada). Ela é assimilada nesses termos tanto pela classe

dos trabalhadores quanto pela dos capitalistas e confere conteúdo de justiça a toda

organização social. Em outras palavras, considera-se perfeitamente justa toda relação social

em que uma pessoa receba salário mínimo para trabalhar, ainda que esse salário não seja

suficiente para arcar com os custos de sua sobrevivência.

6. A Justiça é ideológica9

Conforme abordado no item 3, acima, concebe-se a realidade social a partir da relação

dialética entre a evolução das forças produtivas e as relações sociais de produção, de modo

que, na medida em que as forças produtivas (conteúdo) atingem novo estágio de

desenvolvimento, as relações sociais (forma) tornam-se insuficientes (ou até mesmo, um

entrave ao fluxo daquelas) para conformar o conteúdo social que se alterou. As forças

produtivas acabam por precisar de nova organização. Do contrário, perde-se a racionalidade

necessária para empreender o processo produtivo, que é imprescindível à satisfação das

necessidades individuais pois, não fosse a produção realizada pelos homens em conjunto,

jamais teria sido possível manter a sobrevivência enquanto espécie, tampouco transformar a

natureza em mundo cultural.

No âmbito do modo de produção capitalista, as forças produtivas estão organizadas de

forma que o resultado do processo produtivo e as decisões sobre a distribuição desse resultado

competem aos detentores ou controladores dos meios de produção, denominados capitalistas.

Isto significa que aqueles que não possuem ou não controlam os meios de produção só podem

sobreviver mediante o emprego de sua força de trabalho a serviço daqueles primeiros. Tal

relação de produção entre capitalistas e trabalhadores organiza o modo de produção como um

todo e, nesse sentido, fundamenta e justifica toda a organização institucional da sociedade

moderna.10

Com a mesma força que o atual modo de produção permite à humanidade chegar ao

estágio mais avançado de seu desenvolvimento histórico, com o descobrimento e com a

invenção de produtos que prolongam a vida (como vacinas, medicamentos, processos

cirúrgicos, bem como todos os insumos –e os insumos dos insumos– necessários para a

produção de tais produtos), que conferem mais conforto e comodidade (os veículos de

transporte, os meios de comunicação, os sistemas de refrigeração e de calefação), o

capitalismo também marginaliza, na forma de externalidades do processo, bilhões de pessoas,

impedindo a estas o acesso aos mesmos bens que permite produzir; também causa degradação

9 As considerações desenvolvidas neste item foram em sua maior parte tratadas no item 1 do capítulo VI de

MASTRODI (2008a:258-261), O substrato material das ideologias.

10 Não é por outra razão que o Estado e o direito servem, em especial, à manutenção do modo de produção

capitalista pela organização das forças produtivas segundo essa mesma conformação, conferindo tutela estatal à

propriedade privada e garantindo o cumprimento dos contratos, em especial do contrato de trabalho, sem o qual

os meios de produção ficariam ociosos e o sistema produtivo perderia eficiência.

ambiental que é socializada pela comunidade, enquanto o resultado (a acumulação de

excedentes) do processo produtivo permanece privado.

Vê-se, assim, que as relações sociais entre capitalistas e trabalhadores são

assimétricas, pois fundamentadas em posições sociais profundamente antagônicas de

dominação e exploração. Para que seja possível atingir o admirável mundo novo do

capitalismo, este modo de produção se organiza de forma que uma classe realiza toda a

produção, ao mesmo tempo em que outra classe, por direito, tem acesso a todo o excedente

produzido. Esta situação é perfeitamente percebida na prática.

No entanto, por que há tantas teorias que não confirmam tal constatação empírica?

Será que essa situação de desigualdade é considerada pelas teorias? Se não é, qual o motivo

dessa desconsideração? Haveria valores mais fundamentais que o da erradicação da

desigualdade? Quais? E por quê? As respostas a estas perguntas estão intimamente

relacionadas tanto aos interesses particulares das classes sociais quanto às ideologias que se

formam a partir da necessidade de concretização de tais interesses.

A ideologia é um elemento constitutivo da realidade social, que não nasce

abstratamente, nem de forma autônoma, mas a partir das relações sociais (não apenas as

comunicadas, mas as efetivamente realizadas na práxis histórica). Trata-se de uma forma

específica de consciência social (MÉSZÁROS, 2004:65), que se desenvolve a partir dos

interesses de cada grupo ou classe social, na medida em que a natureza é transformada para o

fim de satisfazer as necessidades materiais humanas. Ela tem relação direta com a posição

social das pessoas no âmbito da estrutura social e com a forma pela qual as pessoas

organizam a produção social.

Há inequívoco interesse de todos os membros da sociedade no processo produtivo, já

que é por meio deste que se satisfazem todas as necessidades humanas e, a partir deste, que as

condições materiais e espirituais para o desenvolvimento da sociedade são ampliadas e

melhoradas (CAFFÉ ALVES, 1987:161). No entanto, o resultado da produção não é distribuído

em nome e interesse da coletividade, “mas em nome e no interesse de grupos particulares

(classes) que para isso detêm a hegemonia econômico-social, política e ideológica da

sociedade” (1987:161).

É claro que os demais grupos (classes) sociais são também beneficiados, ainda que

indiretamente, mas apenas na medida da manutenção mínima de suas condições vitais para

promover a reprodução do sistema. Note-se, assim, que a posição das classes em cada polo da

relação social estrutural –i.e., da relação entre pessoas mediada por bens de produção, de

forma que a propriedade ou controle destes bens determina a posição social da pessoa ou

classe, a divisão social do trabalho e o modo de produção como um todo– determina em que

medida as pessoas de cada classe terão acesso à distribuição do produto social.

Essa posição social não é teórica, mas prática. A realidade prática não determina

apenas a posição social de classe, mas também a compreensão que os membros dessa classe

têm dessa mesma realidade: a partir do ponto de vista proporcionado pela posição social, os

membros dessa classe constituem (bem como são constituídos por) determinadas formas de

conceber o mundo:

Fundamentalmente social, a evolução incessante da humanidade efetuou-se no contexto de oposições de

sexo, de geração, de classe etc. Essas situações-oposições diversas e contraditórias determinam

consciências diversas e contraditórias sobre o mundo e, portanto, manifestações verbais díspares sobre

ele. Não se sente, não se pensa e não se fala do mundo do mesmo modo em um palácio e em uma

choupana (CARBONI E MAESTRI, 2003:104).

Desse modo, não pode uma ideologia ter existido antes da realidade material, pois é

esta que a determina (CAFFÉ ALVES, 1987:172). Há, assim, toda uma conformação material e

histórica prévia, que condiciona a visão de mundo das pessoas. Daí porque não se pode

aceitar o pressuposto de a sociedade se organiza por si própria, ideal e racionalmente, sem a

estruturalidade de um grupo social que desenvolva tal ou qual conceituação, historicamente

cristalizada.11

Não obstante, não se deve pensar na ideologia como algo irreal ou apenas ideal. Em

qualquer de suas concepções –seja como um conjunto global ou ciência de ideias sobre um

determinado objeto de estudo, seja como falsa consciência sobre a realidade social–, a

ideologia representa um determinado estado material de coisas, que a condiciona e que é

conformado por ela. Nesse sentido, a ideologia se apresenta como um “componente interno

das próprias relações de produção” (CAFFÉ ALVES, 1987:172). Isto é, as relações sociais de

11 Esta concepção decorre da constatação de que nenhuma ideia poderia subsistir antes de alguém tê-la pensado.

Para tê-la pensado, é preciso, antes disso, que esse alguém tenha se alimentado e satisfeito outras necessidades,

biológicas e culturais, condicionando o desenvolvimento de uma linguagem pela qual pudesse organizar e

expressar tal pensamento. Nesse sentido, cf. ENGELS (s/d: 345 e 351).

produção não existiam antes em essência, para só depois surgirem as formas ideológicas de

sua organização; ao contrário, essas relações “são sempre geradas fora do pensamento e, ao

mesmo tempo, através dele, passando este pensamento a estar sempre numa relação de co-

nascimento com o real social” (1987:172).

7. Justiça: na prática, ela é justa para quem?12

A ideologia tem papel fundamental na organização de um modo de produção, como o

capitalista, em que há desigualdade na divisão do trabalho e iniquidade na apropriação e

distribuição dos excedentes de produção. A trama ideológica retroalimenta a compreensão da

estrutura social, dando relevância a certos valores e princípios (extraídos das relações

sociais) como se esses valores e princípios fossem, eles próprios, os determinantes da

estrutura social. Não é outra a posição de CAFFÉ ALVES (1987:173):

As relações de produção, na sociedade dominada pelo capital, pressupõem a trama ideológica não como

mero instrumento imaginário que pudesse aparecer após sua instauração, mas como elemento

constitutivo de sua própria estrutura objetiva. Por outro lado, essa estrutura condiciona também a

maneira de pensá-la e de operá-la, a ela mesma, no âmbito da práxis cotidiana, a ponto de tornar o

engano de suas aparências funcionais não como produto imaginário do sujeito apenas, mas exatamente

como resultado da ação objetiva dessa forma de organização social.

A cristalização de uma dada compreensão da realidade social decorre da prática

reiterada de certas formas de organização social. Em outras palavras, certa visão de mundo

acaba se naturalizando na medida em que as pessoas organizam sua produção (sua práxis

produtiva, sua vida social) sempre de uma determinada e mesma forma. Aquelas práticas se

tornam cada vez mais reais e concretas para o grupo ou classe social, base a partir da qual

seus membros traçam e desenvolvem seu modo de compreender a realidade. É justamente esta

a posição desse autor:

Como é possível que a minoria privilegiada domine a maioria despossuída e tire dessa relação as

condições de continuidade desse privilégio, mediante a apropriação da mais-valia e a consequente

acumulação ampliada dos bens produtivos? Como é possível fazê-la legítima? A resposta a estas

indagações só pode ser encontrada na análise do fenômeno do poder em sua íntima conexão com os

processos econômicos e ideológicos emergentes de uma situação estrutural determinada. Como

primeira aproximação do problema, é preciso sublinhar que a própria exploração ou a situação de

restrição econômica ou a miséria devem ser acolhidas pelos explorados de modo natural, isto é, como

não sendo um produto de relações sociais determinadas e a respeito das quais os homens têm ação

muito limitada ou não têm qualquer laço de responsabilidade (1987:175).

12 As considerações desenvolvidas neste item foram em sua maior parte tratadas no item 2 do capítulo VI de

MASTRODI (2008a:261-266), Aparência de satisfação equânime dos interesses comuns.

CAFFÉ ALVES afirma, ainda, que as relações sociais que concretamente se realizam em

condição de desigualdade, em qualquer período histórico, dependem, para sua naturalização

ou neutralização, de um processo de abstração e formalização, necessário para ocultar sua

desigualdade:

Com essa abstração e despersonalização, as relações sociais reais antagônicas e conflitivas se

esfumaçam na esfera formal das aparências institucionais, ocultando a verdadeira estrutura social e o

conjunto dos poderes reais dos agrupamentos dominantes. É, portanto, através dos conceitos

progressivamente mais abstratos do Monarca Absoluto, da Nação, do Estado e do Direito, que poderes

muito concretos se tornam efetivos e dinâmicos em ordem, a manter e reproduzir o sistema social de

classes (1987:180).

Assim, em termos materiais e históricos, um grupo ou classe acaba, por conta da

conformação das forças sociais, impondo sua visão de mundo sobre a visão de mundo das

demais classes ou grupos, de tal maneira que sua forma particular de compreender a

realidade acaba sendo universalizada como o modo de a sociedade como um todo

compreender essa mesma realidade. Embora tal fato aponte para uma divisão interna da

sociedade, já que evidencia a presença de grupos sociais com interesses divergentes, a

imposição de uma visão de mundo universal é importante como referência unificadora, que

impede a desagregação do tecido social (CAFFÉ ALVES, 1987:169), pois sem a ideologia

como componente interno das relações de produção, estas não teriam condições materiais

mínimas de ocorrer.

Deve ficar claro que não se trata apenas da mera aceitação de argumentos de lado a

lado. Não se trata de uma simples discussão, de um afável debate político sem consequências

práticas. As pessoas, profundamente divididas em classes sociais, têm interesses antagônicos,

já que estão em disputa pelo produto social, ou seja, em luta pelos meios materiais de garantia

de sobrevivência orgânica dos membros da sociedade.

Isto quer dizer que o embate não é só teórico (embora também seja teórico), e de

forma alguma apenas metafórico, mas predominantemente prático, dimensão que não se

resume à simples constatação ou percepção empírica dos fatos sociais, mas ao substrato

material e concreto em que nascemos e nos constituímos, vivemos, nos alimentamos, nos

organizamos e tomamos consciência de nossa realidade etc.. Nesse sentido, deve-se perceber

a presença indelével de relações de poder no âmbito da sociedade, tanto aquelas em que

certas posições sociais são impostas por coerção quanto aquelas em que certas posições

sociais são dadas como se a pessoa ou classe dominada considerasse tratar de uma situação

natural de igualdade.13

Note-se que a possibilidade de coerção não consiste apenas na ameaça ou no uso de

violência física, mas também na possibilidade de controle (pela concessão ou privação) de

certos bens que, por qualquer razão, inibam a resistência do coagido (CAFFÉ ALVES,

1987:189). Essa possibilidade, porém, só existe quando a pessoa ou classe que domina o

acesso à produção social tem poder material suficiente para empreender de tal modo. Em vez

de se utilizar da ameaça ou do emprego da coerção, a pessoa ou classe dominante atua por

meio da aplicação de fatores de consenso, desenvolvidos em termos ideológicos, apelando

para símbolos e conceitos abstratos com os quais os dominados podem concordar,

consignando legitimidade àquela forma de atuação:

Na verdade, a legitimidade é dada pela capacidade, no exercício do poder político, de mobilizar fatores

consensuais de tal sorte a fazer acreditar, por parte daqueles a quem são endereçados os atos de

comando, que os detentores do poder têm efetivo direito a exercê-lo. Ao se engendrar nos dominados a

crença de que os dominadores têm direito a dominar, cria-se também a ideia correlata do dever de

obediência, um dever quase moral, não-sentido como uma obrigação heterogênea. A força, em

princípio, é quase nula, porque os submetidos ao poder não se sentem forçados a obedecer, visto

estarem de acordo em seguir o dirigente; parece que o condutor e os conduzidos querem o mesmo

objetivo, havendo, portanto, interesses compartilhados (CAFFÉ ALVES, 1987:189).

Nesse sentido, o poder informado como legítimo não pode, jamais, se descolar da

possibilidade de se fazer efetivo, mediante o uso de meios coercitivos por seus detentores que,

numa sociedade dividida em classes, é empregado pelos possuidores e controladores dos

13 Conforme lição de CAFFÉ ALVES (1987:171-172), esse poder, que está sempre presente enquanto fenômeno

social, “Funda-se na relação de conflito derivada da distribuição desigual dos bens sociais realizada com base na

forma estrutural assumida por determinado modo de produção. Os bens são assinalados como bens econômicos

conforme aparecem como resultado do esforço humano e se encontram de forma limitada. Com a provisão

restringida desses bens surge o conflito e, por consequência, aparece o problema do poder. Com efeito, sendo

escassa a quantidade dos bens a distribuir entre os agentes sociais em face de suas necessidades, torna-se

indispensável, à ordem e à manutenção da convivência humana, a submissão das partes a determinadas regras

de distribuição, mesmo contra suas vontades, visto que podem não corresponder plenamente àquelas

necessidades. Entretanto, em razão da própria escassez de bens e da divisão do trabalho, é comum criar-se um

contexto social em que uma das partes assegura, de um modo ou de outro, uma participação privilegiada na

distribuição desses bens, gerando situações compreensíveis de antagonismo e conflito.

A dominância continuada das relações conflitivas, ao nível do processo econômico, conduz à indispensável

produção e conservação de uma força contrária –o poder político– que tem por fim reacender, ao nível da

produção e reprodução ideológicas e mediante formas e estruturas jurídico-políticas e outros expedientes, o

aspecto da universalidade e solidariedade das relações humanas, neste plano, porém, de modo abstrato e formal,

buscando uma ordem e uma paz social a despeito dos processos reais conflitivos subjacentes no plano

estrutural, e chegando, se preciso for, para a mantença dessa ordem, a lançar mão de meios de violência viva

ou aberta (coação física ou moral). Por isso se pode chegar à conclusão de que a desigualdade estrutural, no

plano das relações econômicas, não pode subsistir como tal e reproduzir-se, sem o respaldo imprescindível das

formas de indução subjetivas e objetivas originadas nos níveis ideológico e jurídico-político.”

meios de produção. Tal substrato material é em geral ocultado, como se o sistema social como

um todo pudesse manter-se conforme sua organização atual mesmo sem a possibilidade de

uso efetivo da coerção.

Na modernidade, centraliza-se o uso legítimo da violência física na figura do Estado,

que detém seu monopólio e a utiliza apenas em situações muito singulares, previstas pela

ordem jurídica. Mas, ainda assim, o Estado não se funda no exercício da coerção, mas em

ideais gerais e abstratos de organização da sociedade segundo certos interesses afirmados

como comuns a todas as pessoas, independentemente de sua classe ou de outras

particularidades. Tal comunhão de interesses entre classes manifestamente antagônicas,

organizada num determinado sentido segundo a composição das visões de mundo existentes

na sociedade, não é apenas imaginária, pois tem seu fundamento na necessidade comum da

realização da produção social (sem a qual as necessidades humanas não são satisfeitas).

Porém, esses interesses afirmados como universais, comuns a todos os membros da

sociedade, não refletem as contradições estruturais do sistema e os privilégios obtidos pela

classe dominante, que se apropria do excedente da produção porque, se as refletissem, não

atingiriam a possibilidade de consenso, tampouco de naturalizar, neutralizar ou legitimar as

condições de dominação. É por isto que CAFFÉ ALVES (1987:191-192) conclui, a esse

respeito, que:

Na esfera das relações de poder, o maior ou menor consentimento só é possível se o esquema de

dominação imperativa aparece mais ou menos vinculado ou submetido a outro propósito superior,

projetado ao nível ideológico, a respeito do qual todos os membros da sociedade, sejam dominantes ou

dominados, dirigentes ou dirigidos, aparecem como vitalmente interessados. Com efeito, grande parte

dos comandos normativos da ordem jurídica, positivada na sociedade capitalista, normalmente encontra

sua justificativa ou legitimidade na ideia expressa ou virtual do bem comum a ser realizado, a despeito

do que venha efetivamente a encaminhar e concretizar interesses exclusivamente parciais dessa

sociedade.

Sobre a relação entre poder de dominação e poder de direção, este se apresenta como a

forma legítima que determina os interesses daquele e, ao mesmo tempo, que os oculta sob o

manto dessa aparente legitimidade: “O poder de dominação realizado e expresso sob a forma

predominante de poder de direção da sociedade é o que, no discurso de Gramsci, se

denomina hegemonia; assim, o poder hegemônico é exatamente o poder dominador capaz de

manifestar-se e legitimar-se como poder consensual ou de direção” (CAFFÉ ALVES, 1987:192).

Assim, por exemplo, a proteção jurídica da propriedade é dada como algo fundamental

para a organização da sociedade porque refletiria um princípio político de interesse comum,

baseado na liberdade dos homens, e não uma necessidade econômica que diz respeito à

manutenção do modo de produção capitalista. O fato de que a imensa maioria das pessoas não

tem e jamais terá condições concretas de ser proprietária de bens de produção é ocultado sob a

abstração de que todos são livres para buscar sua felicidade, comprando tantos bens materiais

quantos puderem.

Mas essa liberdade de buscar a felicidade sem condições materiais para tanto não

passa de ilusão. Se isso é justiça, trata-se de uma justiça ideologicamente construída. Na

esteira do que já disse Max na Tese II sobre Feuerbach, tratar do maior problema da

realidade humana de uma forma abstrata, apartada da realidade prática, é tratar de um

problema real sem levar a realidade em conta (MASTRODI (2008a:275). A percepção de que

há classes sociais em conflito material no âmbito da sociedade, visando cada qual a participar,

da melhor forma possível, dos escassos produtos sociais e de sua distribuição, traz a lume

uma única verdade social empiricamente verificável: que há desigualdade social porque há

situação de dominação e exploração social de uma classe sobre outra. A justiça somente será

real e concreta quando essas condições históricas forem concretamente superadas. Até lá,

justiça continuará sendo apenas uma palavra bonita.

Enquanto a ideia de justiça permanecer sendo apresentada como um valor universal e

abstrato de saudável equilíbrio entre os grupos sociais, ela serve justamente para ocultar uma

situação de exploração do homem pelo homem que concretamente ocorre em toda e qualquer

sociedade historicamente identificada, exploração esta perpetuada por relações de poder tão

bem estruturadas que até mesmo os explorados acreditam que há justiça nas condições de

dominação a que estão sujeitos. Trata-se de situação que só poderá ser alterada a partir da

conscientização dessas condições históricas e da efetiva luta por transformação social, de

modo análogo ao que ocorreu do iluminismo à queda da Bastilha.

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