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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Juliana Abramides dos Santos
Arte urbana no capitalismo em chamas: pixo e graffiti em
explosão
DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL
SÃO PAULO
2019
Juliana Abramides dos Santos
DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Serviço Social sob a orientação do Prof. Dr. Antônio Carlos Mazzeo.
2019
Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese de doutorado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos. Assinatura: Data: E-mail:
Ficha Catalográfica
dos SANTOS, JULIANA Abramides Arte urbana no capitalismo em chamas: pixo e graffiti em explosão / JULIANA Abramides dos SANTOS. -- São Paulo: [s.n.], 2019. 283p. il. ; cm. Orientador: Antônio Carlos Mazzeo. Co-Orientador: Kevin B. Anderson. Tese (Doutorado em Serviço Social)-- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social, 2019. 1. Arte Urbana. 2. Capitalismo Contemporâneo. 3. Pixo. 4. Graffiti. I. Mazzeo, Antônio Carlos. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social. III. Título.I. Mazzeo, Antônio Carlos. II. Anderson, Kevin B., co-orient. IV. Título.
Banca Examinadora
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O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Número do Processo-
145851/2015-0.
This study was financed in part by the Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Finance Code 001-145851/2015-0.
Esta tese de doutorado jamais poderia ser escrita sem o contato e apoio
de inúmeras parcerias. A todos os pixadores/as e grafiteiros/as e especialmente
a/os entrevistados/as.
Aos meus pais, uns anjos. Veja bem: Maria e José. Vocês são demais.
Meus correspondentes internacionais, enviaram imagens para compor o
trabalho, direto da Itália e Portugal.
À minha amiga de outras vidas, mesmo. Fernanda Castanho, uma
empatia e generosidade de outro mundo. Fernanda me auxiliou com o
tratamento, dicas e catálogo de imagens.
Querida amiga Samara Xavier, amora, chegamos ao fim do ciclo, grata
pela força, sem você não venceria os impasses burocráticos. Lia, grata pelos
passeios e momentos de descontração paras equilibrar o batidão intelectual.
André Juarez obrigada pela força sempre e pelas fotos do México.
Ao Julio Santos Rocha, meu companheiro, melhor amigo que tenta
aguentar esse furacão dois mil e faz o que pode para estar presente e me apoiar;
esteve comigo em parte da pesquisa de imagens pelas regiões de SP e nos
momentos finais da impressão e entrega, enquanto eu assinava os papéis ele
coordenava a facção de exemplares.
Às inspiradoras professoras Dras. Carla Cristina Garcia, Maria Lúcia Silva
Barroco, Cristina Maria Brites, Maria Lúcia Martinelli, Maria Beatriz C.
Abramides e Jeanne Marie Gagnebin.
Aos meus orientadores Antônio Carlos Mazzeo e Kevin B. Anderson.
Arte urbana no capitalismo em chamas: pixo e graffiti em explosão
Juliana Abramides dos Santos
No século XXI, a arte mais difundida não está sendo produzida
pelos grupos elitistas, burgueses e aristocráticos, mas tem sido criada por
jovens e adultos que proclamam identidades territoriais enquanto fazem
inscrições grafitadas e pixadas. A principal vertente plástica no mundo,
hoje, é a estética da periferia e se manifesta de forma diferenciada como
expressão de resistências urbana, artística e cultural ao capitalismo em
chamas.
Palavras-Chave: arte urbana, estética contemporânea, capitalismo em chamas, pixo e graffiti.
Capitalism on fire: pixo and graffiti in explosion
Juliana Abramides dos Santos
In the 21st century, the most widespread art is not being produced by the
great art centers and elitist, bourgeois and aristocratic groups but has been
created by young people and adults who proclaim territorial identities while
marking visible surfaces. The main plastic aspect in the world today is the
aesthetics of the periphery and manifests itself differently as an expression of
urban, artistic and cultural resistances to the burning capitalism.
Key-words: urban art, contemporary aesthetics, capitalism on fire, pixo and graffiti.
Apresentação…………….........................………….………………….……………….………13
Introdução - Estética e Contemporaneidade:
breves notas para uma discussão ……......................………….…......….......21
Capítulo I - As paredes e os muros falam.................….......……39
Caverna.....……...................………….….…...................………….…40
Tumba.....……...................………….….…...................…………….43
Inscriptiones: Graffiti e Pix.....……...................………….……..46
Graffiti Medieval.....……...................………….……………………….49
Capela Sistina.....……...................…………………………………...….….51
Muralismo Mexicano.....……...................………….……………..53
Brigadas Muralistas no Chile.....……...................….……..57
Muro de Berlim.....……....................................………….……..59
Pichos e Cartazes em Paris, 1968.....……...................……….61
Movimento Hip-Hop.....……...................…..................……….65
Graffiti - Philadelphia e New York.....……...................……..71
Origens da Arte Urbana - São Paulo ....................….…..80
Praça Tahrir, Cairo/Egito, 2011....……...................…………..91
Capítulo II - Marcas Urbanas: São Paulo, Los Angeles e São Francisco..97
Pixo.....……...................………….….…...................………….………….99
Arte Urbana, Hoje..............………….….…...................…………123
Ocupação da Mulher na Cidade…...................…………129
Graffiti e Mural na Califórnia………………………..…………...135
Graffiti em Los Angeles………………………………………...……...136
Tags à beira do Rio Los Angeles………………………………...137
Great Wall.....……...................………….….…...................………..141
Art District.....……...................…………………………………………..….143
Venice Beach.....……...................………….…………………………...144
Movimento Chicano - São Francisco…........................145
Capítulo III - O mundo em chamas: o capitalismo contemporâneo…...148
Burgos: Cidades Muradas.……...................………….….150
Regulação do Estado Neoliberal.……..............……..151
Moderno e Pós-moderno.……...................………….….160
O mundo está em ruínas? .……...................………….….169
`Capítulo IV - Arte no contexto da desigualdade Urbana.….…..........174
Desigualdade na ocupação Urbana..........………….…178
Ressignificação Territorial em SP..........………….…183
Precariado........………….…........………….…........………….…191
Realidade ou ilusão - Los Angeles........………........………….…195
Capítulo V: As origens históricas e os destinos políticos na arte urbana…..204
Capital Quebrado?…......................................………….…209
O não lugar…........................................................………….…213
Brazil - Colônia?…........…………………………………...……….…216
Imperialismo e Racismo…........………………...….…….…220
Desigualdade Global: a fome.....………….………...……225
Hibernação e a depressão.....…………...…...….…….…230
Armamento Visual Antiarte………………………….….….235
Observações e Conclusões Aproximativas.................................239
Glossário Urbano………..........................................................................................243
Referências Bibliográficas.................................................................................248
13
O aparecimento do tema aqui abraçado inicia-se numa tentativa de
despedida da cidade onde nasci e vivi por toda minha vida. O desenrolar de uma
tese é processo complexo, cheio de camadas e altos e baixos. Atividade solitária,
escrever envolve a imersão na solitude, ou na solidão; por vezes, plenitude; em
outros momentos, o mais completo vazio e desgaste, cansaços físico e emocional;
o esvaziar de um corpo que somente se energiza depois que tudo finda. Imagino
que sombras me habitam, e que o concreto paira nos céus e as delineia. Os elos de
mim, ao se encontrarem, me tornam inteira. Como posso entender os elos
rizomáticos que me levam a mediar a escrita?
O presente trabalho acompanha a riqueza das manifestações culturais
urbanas, em busca de capturar em meio às fachadas texturizadas, componentes
políticos da urbe, expressos em graffitis, pixos e estêncil. Percorre
ilustrativamente as expressões escritas e imagéticas expostas em muros, edifícios,
terrenos baldios, casas abandonadas e em outros veículos e bens públicos, como
formas de ressignificação do espaço urbano.
São Paulo, Nova York, Los Angeles, São Francisco, Berlim e Lisboa são
importantes centros culturais modernos, de composição urbana complexa,
lugares por onde artistas urbanos desenham e escrevem o fluxo citadino. Pela
profusão enorme de imagens e pessoas que percorrem o chão e as alturas, por
onde nada se desvenda facilmente e nada é totalmente impenetrável, se desvela a
temática desta tese.
Estas formas evidenciam um conjunto de manifestações da questão social
constitutivas do reflexo da desigualdade social contemporânea. Cabe-nos expor
as formas simbólicas e as expressões contestatórias objetivadas nas ruas que
caracterizam a tez de decomposição social da sociedade capitalista e que apontam
para as necessárias transformações sociais, econômicas, políticas e culturais a
serem conquistadas.
As configurações do espaço público em grandes cidades vislumbram a
inscrição e circulação simbólica profícua de manifestações públicas, artísticas e
14
políticas. As cidades vivem marcadas de produções inusitadas de atividades, entre
as quais o skate, as rinhas de rap1, as inscrições de poemas, as pixações e pichações,
os atos políticos, as ações de black blocs2, as danças de rua, as colagens e os graffitis,
e todas as movimentações de luta por apropriação e ressignificação cultural, "há
algo de político no ar das cidades lutando para se expressar” (HARVEY, 2014, pp.
211).
É necessário explicitar que a cultura de rua, enquanto expressão de
resistência e afirmação cultural, apresenta tanto uma necessidade quanto uma
função social para a sua existência e permanência. Procuramos levantar os traços
da realidade da vivência social que apontam a importância contida nessa escrita
dinâmica de códigos.
A arte e as demais inscrições urbanas3 revelam “o lugar de fala” e também
transmitem valores sociais e éticos, ao mesmo tempo em que mantém um
primado da marca do indivíduo. Qual diálogo nos propõem os signos que tomam
de assalto o espaço urbano?
Cabe-nos ressaltar o histórico de produção artística e/ou criativa plástica na
época da civilização burguesa do capitalismo em chamas realizada por sujeitos
periféricos partícipes da classe trabalhadora, donde o paradoxo da produção
humana criativa relativa às condições materiais está na base das vivências diretas
de produção e reprodução cultural; embora a verdade da arte nem sempre
coincida com a verdade da vida.
Tais manifestações, inseridas na cultura mundializada, tendem a
reproduzir, no processo contraditório do movimento da realidade, certos
aspectos do mundo capitalista, até porque somos todos bombardeados
diariamente pelo que Adorno chamou de indústria cultural; ou a negá-los, em
seus aspectos reificantes, ao assumirem uma atitude política de contestação
genérica ao “sistema”.
1 Nas grandes cidades, especialmente as rinhas, ou batalhas de rap, acontecem semanalmente. Em geral, duas
pessoas desafiam-se a improvisar rimando as palavras em um ritmo que, por vezes, o grupo ao redor ou uma
pessoa faz com a boca e versam sobre um tema escolhido na hora. 2Pessoas andando de preto, em bloco, em tradução literal, caracteriza uma tática de ação direta de influência ou
vertente anarquista; uma forma de ação que ataca com depredação locais símbolos do capitalismo, como bancos,
grandes corporações e franquias, como McDonald’s. A expressão original é alemã: schwarzer block, e foi cunhada
pelos policiais para designar os militantes ou ativistas de esquerda vestidos de preto e com máscaras, nas
manifestações contra a guerra nuclear, na década de 1980. 3E aqui não damos ênfase às formas mais decorativas, provavelmente as preferências superficiais burguesas
15
Conhecer a linguagem dos pixos e graffitis é desvelar o significado da arte
urbana; os significados históricos e os sentidos atribuídos pelos sujeitos sociais
vivos e ativos. O graffiti e o pixo são expressões da classe trabalhadora, de jovens
pauperizados das periferias e guetos das grandes metrópoles.
Escritores/as e desenhistas do fluxo urbano ocupam a cidade expressando
a indignação, a negação das injustiças, o combate à discriminação e opressão social
de classe, gênero, raça e etnia e as formas de exploração capitalista de dominação
de classe. Mesmo que os sujeitos, em seus locais de origem, não estejam
autoconscientes, ainda assim podem apresentar expressões de desafio dirigida
para o exterior, em direção aos aparatos culturais e políticos centrais dominantes
da cidade, como um cri de coeur, ou um grito que vem do coração.
Embora as inscrições grafitadas sejam uma constante histórica desde
tempos remotos quando do nascimento da linguagem ela adquire significados
sociais, culturais e políticos distintos a cada tempo do desenvolvimento da
humanidade. A street art ou arte urbana se intensifica a partir da década de 70 do
século XX, em um período de crises econômicas em que há um incremento da
desigualdade social e urbana, momento da crise estrutural do capital.
A cidade de São Paulo apresenta a maior gama e diversidade de produção
de arte urbana no mundo, são dez mil pixadores ativos que inscrevem suas marcas
na cidade nos topos, prédios com estratégias particulares de ação. Por trás da
visualidade de inúmeros pixos expostos por toda a cidade há um anonimato de
sujeitos que querem ser lembrados, suas inscrições são gritos de existência, plenos
de significados.
O graffiti ressurge na contemporaneidade potencialmente nos Estados
Unidos, assim, fez-se necessário a busca da raiz desta expressão cultural. A
Califórnia apresenta uma cultura mexicano-estadunidense e já na década de 40
alguns escritores das ruas de ascendência latina emergem com caligrafias
próprias. Ao mesmo tempo o muralismo mexicano tem uma continuidade
histórica e artística no chamado movimento chicano de fundamental expressão
naquele estado. Neste sentido, centralizamos a pesquisa na Grande São Paulo,
cidade natal da autora e da PUC-SP e na Grande Los Angeles e na Área da Baía -
São Francisco, ambas cidades na Califórnia, por ocasião da bolsa de doutorado,
por seis meses na Universidade de Santa Bárbara naquele estado.
16
Durante todo o transcorrer da pesquisa, fizemos estudos bibliográfico e
videográfico de publicações em inglês, espanhol, e em português, sobre arte de
rua, arte urbana, comunicações visuais ativistas e de militância, pixo, graffiti e as
concepções e discussões materialistas da estética e da política. Realizamos
entrevistas, observações, registros fotográficos, pesquisa virtual de imagem.
Acompanhamos os rolês e aprendemos a usar o spray em atividades de rua.
As entrevistas semi estruturadas seguiram um roteiro previamente
elaborado, ou foram feitas a partir de livres conversas; o gravador ou o recurso de
áudio por meio dos aplicativos de rede social foram utilizados em todas as
ocasiões, no intuito de coletar os depoimentos e opiniões que, após a transcrição
na íntegra, se tornaram importantes documentos históricos, ilustrativos e
analíticos. Os nomes dos entrevistados foram mantidos, tendo em vista a
autorização obtida, alguns pixadores utilizam nomes codificados e assim os
preservamos. Optamos por utilizar, no corpo do texto, ao longo dos capítulos, as
partes das entrevistas que dão mais voz aos interlocutores.
As entrevistas realizadas com artistas de rua, pesquisadoras/es,
documentarista e pixadoras/es, são parte essencial do material histórico coletado.
A observação buscou a compreensão da complexidade e totalidade dos grupos e
indivíduos pesquisados, assim, recolhemos desde inocentes anedotas e “causos”,
a históricos de conflitos entre grupos, motivações pessoais, tudo como parte de
um tipo de cultura de rua em desvelamento. Em tais significados compartilhados
nas trocas entre os sujeitos pesquisados, encontramos algumas chaves para a
compreensão dessa cultura particular como campo de realização humana na
urbe.
Em São Paulo, as entrevistas foram realizadas em rolês4, pistas de skate,
atividades de hip-hop, encontros marcados para entrevistas e também nos points
de Osasco, galeria Olido - centro de São Paulo, e no Largo da Batata. Entrevistamos
a grafiteira e muralista Clara Leff; o artista de estêncil Celso Gitahy; a muralista
Mag Magrela; a ex-pixadora carioca Gisele Sagi; o artista plástico e pixador Cripta
Djan Ivson; o artista plástico e pixador Loucuras; o grafiteiro de vanguarda Rui
Amaral, o pixador ATA; o grafiteiro Paulo Ito; a poeta, documentarista e diretora
Cristina Fonseca.
4 Saídas para grafitar ou pixar.
17
Em São Paulo, percorremos bairros para descobrir inscrições, a saber: Na
região centro-sul: Jabaquara, Saúde, Santo Amaro, Vila Mariana e Santa Cruz; na
região sul: Campo Limpo, M’Boi Mirim, Jardim Monte Azul; na região leste,
Itaquera, Penha, São Mateus; na região norte: Freguesia do Ó, Casa Verde,
Tucuruvi; na Região oeste: Lapa, Pinheiros, Barra Funda, Perdizes; no Centro:
Campos Elíseos, Santa Cecília, Brás, Luz, Pedro II, Bela Vista, Cambuci,
Liberdade, Sé e República.
Em Los Angeles/Califórnia, continuamos com o processo de registro
fotográfico e das entrevistas. Fomos ao Art District e em Venice Beach - locais de
concentração de arte urbana na grande L. A.; rodamos Downtown, Chinatown, Little
tokyo, Glendale, Culver City, Santa Mônica, Koreatown, Beverly Hills, Macarthur Park.
Visitamos o Social and Public Art Resource Center onde pesquisamos a muralista
Judith Baca que realizou o primeiro mural gigante da história5; fizemos o Graffiti
Tour6 e entrevistamos o pioneiro grafiteiro e Membro da comunidade do distrito
de artes de L.A. - A.k.a. Shandu One. Em São Francisco, visitamos o instituto
Precita Eyes Muralist e toda a região de muralismo chicano.
Os registros fotográficos, as imagens e arquivos de galerias, casas de
escritores e grafiteiros, são parte do material de análise. As imagens de diferentes
expressões culturais e artísticas foram selecionadas, tendo em vista o enfoque da
pesquisa e coletadas nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, no Brasil; nos EUA,
em Santa Bárbara, Venice - Los Angeles, São Francisco, e Nova York7; além de
registros pesquisados em outras cidades como Berlim, Praga, Bratislava,Nashville,
em busca de traçar elos significativos de um tipo de cultura urbana que tem fortes
raízes americanas em sua configuração contemporânea.
As pesquisas foram elaboradas tendo como norte as orientações do Código
de Ética da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e as
normativas específicas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes).
5Disponível em: http://sparcinla.org/. Acesso em: novembro de 2018. 6 Disponível em: https://laarttours.com/graffititour/. Acesso em: setembro de 2018. 7 O processo de pesquisa, nos EUA, foi iniciado no ano de 2016, a partir da ida da doutoranda, para Nova York,
com recursos próprios, além da leitura da bibliografia específica, majoritariamente em língua inglesa, o que exigiu
o aperfeiçoamento da língua para a realização da pesquisa.
18
Assim, cabe-nos compreender os processos criativos e as expressões
contestatórias objetivadas nas ruas, posto que nos auxiliam a caracterizar a face
contemporânea da questão social no desenvolvimento da sociedade capitalista;
talvez, esta, a catarse atual. Consideramos a necessidade de explicitar a função
social dessa cultura de rua e as razões de sua permanência e perpetuação; levantar
as motivações e os sentidos contidos nas ações coletivas dessa dinâmica e nos
códigos marcados pela cidade. Fundamentalmente, captar o campo das
possibilidades de produção da objetividade e subjetividade de grafiteiros,
muralistas e pixadores resultantes das suas realidades específicas, bem como as
respostas históricas às suas condições de vida.
A tese se propõe a contribuir com o desvelamento de uma pulsante arte de
rua, ainda pouco estudada, pouco compreendida, extremamente estigmatizada e
reprimida, e muitas vezes contraditoriamente apoiada, quando se configura em
elemento catalisador para a ordem estabelecida. Jovens pauperizados,
precarizados, periféricos que buscam expressões de criação e contestação ao
sistema opressor em um mundo que os segmenta enquanto classe, etnia, raça e
gênero. Esta tese se dirige a todos/as aqueles/as que resistem à barbárie imposta
pelo capital, que se voltam para as múltiplas determinações da vida social, em que
a objetividade e subjetividade se articulam permanentemente; e que a criação da
arte de rua possa ser mais um elemento aglutinador das inquietações e conquistas
entre aqueles e aquelas que que atuam com as expressões da questão social e suas
formas de enfrentamento na direção de um projeto de sociedade, igualitário e
libertário na direção da emancipação humana.
Estrutura da Tese
A Introdução - Estética e Contemporaneidade: breves notas para uma
discussão, propõe breves notas sobre as relações entre estética e política no intuito
de apresentar os parâmetros teóricos de análise da estética contemporânea ora
pesquisada: reflexos artísticos, mimese, processos criativos. Ainda, recupera os
valores históricos de um tipo de humanidade.
O capítulo I: As paredes e os muros falam, expõe a pesquisa histórica sobre
as inscrições grafitadas em muros, paredes, tumbas, tetos, igrejas e cavernas,
19
enquanto uma forma de comunicação artística no desenvolvimento da
humanidade. Resgatamos os processos artísticos, ao longo do século XX, a partir
do muralismo mexicano e da ocupação plástica do muro de Berlim. Recuperamos
a arte de rua enquanto transgressão, ativismo, militância, engajamento e
contestação. Abarca a eclosão da arte urbana nos EUA e no Brasil. Retomamos
historicamente outros momentos ápices, ilustrando-se períodos políticos
importantes dos últimos 50 anos: o maio de 68; as brigadas muralistas no Chile; e
a rebelião no Egito, enquanto movimentos revolucionários, reivindicatórios e
humanistas, que abrangem, no interior das suas táticas, a arte visual. Estão ali os
traçados da origem do graffiti uma das artes mais prolíficas do século XXI.
No capítulo II: marcas urbanas: São Paulo, Los Angeles e São Francisco,
para desnudar os entendimentos dos fluxos imagéticos apontamos a função social
da existência do pixo, graffiti e muralismo nas grandes metrópoles nas
particularidades da Grande São Paulo e capital, e nos EUA- Califórnia na área
metropolitana de Los Angeles e na Baía de São Francisco. As escritas e desenhos
presentes em muros, edifícios, terrenos baldios e em outros veículos e bens
públicos são trabalhados como formas de resistência e afirmação política e
cultural. São apresentadas as falas das/dos entrevistadas/os enquanto história e
sentidos atribuídos pelos escritores e desenhistas do fluxo urbano. Artistas
urbanos são dos que mais conhecem a cidade, os cantos, pontes, bueiros, topos de
prédios. A linguagem própria desse conhecimento da cidade se conforma nas
inscrições codificadas.
No Capítulo III: O mundo em chamas: capitalismo contemporâneo,
demarca-se o território de resistência ao modo de produção capitalista em chamas
e traça-se um panorama ideo-cultural contemporâneo a partir das discussões
sobre a modernidade e a pós- modernidade. Enfatizam-se os cenários de
exploração, opressão e desigualdade agudizados pela acumulação flexível e a
regulação do Estado Neoliberal, nas particularidades brasileira e estadunidense.
No Capítulo IV - O pixo e o graffiti no contexto da desigualdade urbana
recuperam-se as dimensões da desigualdade na ocupação urbana; da situação do
jovem precariado, do racismo e a segregação territorial manifestadas na Grande
20
São Paulo e capital; assim como nos EUA, na área metropolitana de Los
Angeles/Califórnia. Busca ainda analisar o pixo e o graffiti enquanto
ressignificações territoriais nas grandes cidades.
No Capítulo V - As origens históricas e os destinos políticos na arte
urbana, ensaios a partir de imagens de murais, pixos e graffitis, ao longo do
mundo, ilustram algumas faces da decadência e desumanização da vida no
capitalismo em chamas. Abarcam as origens históricas e os destinos políticos das
imagens escolhidas.
Nas observações e conclusões aproximativas, retomo o núcleo central das
nossas indagações acerca da arte urbana enquanto a principal vertente plástica no
mundo, hoje, uma estética periférica que se manifesta de forma diferenciada
como expressão de resistências urbana, artística, política e cultural. Reafirmamos
a atualidade do objeto pesquisado e a pertinência de dar ouvidos à voz, aos gritos
que vem das ruas; dar à luz a imagens e comunicações enquanto formas de
afirmação da existência e contestação ao mundo normativo, autoritário, da
desigualdade, racismo, preconceito, discriminação, opressão; destruidor da
natureza e da humanidade.
I -
21
Para Baudelaire, a ideia da arte como bela, agradável, é muito pequena. No
final do poema Ao Leitor, ele escreve:
É o Tédio! – O olhar esquivo à mínima emoção,
Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.
Tu conheces, leitor, o monstro delicado,
- Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!8
Ele se dirige ao leitor de poemas da tradição lírica e o chama de hipócrita.
Não se deve ler por deleite ou meramente por uma atividade da academia
francesa, numa postura acomodada. Baudelaire vê beleza e fascínio no mundo
urbano e da moda, ao mesmo tempo em que tem uma crítica reflexão à inserção
capitalista nas relações sociais, culturais e artísticas. O que ele busca trazer à tona
são as sensações e experiências intensas que o leitor não vai conseguir dar o nome,
quer fazer valer o máximo da potencialidade da arte, na assunção de sua condição
de poeta.
O modernismo e as vanguardas estavam intimamente conectados à
modernização e industrialização. Era aquele o momento da criação das galerias,
as ruas internas cheias de lojas, locais de passagem. Toda a sua obra está debruçada
sobre os fenômenos da modernidade, a quem Walter Benjamin chamou de lírico,
no apogeu do capitalismo9; o poeta e o crítico; a mesma figura do fascínio e da
crítica.
Aqui estamos, vivendo e tentando compreender a nossa época, com a
análise profunda de nosso tempo. E pescando a finitude e a plenitude de poder-
ser, do transeunte, flâneur10 e flanêuse, trabalhadores e as linhas sobrepostas de
imagens de força sedutora.
O poeta, nasce e vive em Paris, cidade em construção e constante mudança.
A vida do poeta não explica, mas é parte da sua obra e, assim, a poesia é central e
8 As Flores do Mal. Tradução, introdução e notas por Ivan Junqueira.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 9 Modo de organização social e econômica da vida, mais vasto e dinâmico que qualquer outro na história e que
apresenta as principais características: propriedade privada dos meios de produção, lucro como incentivo, livre
competição do mercado para venda de bens de consumo, aquisição de matéria-prima mais barata, uso de labour
barato, exploração da mais-valia e expansão e investimento para acumular capital. 10 Deparei-me a primeira vez com esta palavra ao ler As Flores do Mal, de Baudelaire. Do verbo francês flâner,
ou flâneur, aquele que vaga no mundo, é existente na primeira metade do século XXI nas passagens de boulevards,
em Paris. A figura masculina do privilégio e do lazer, com tempo e dinheiro e nenhuma responsabilidade imediata
para direcionar a sua atenção. O flâneur entende a cidade como poucos habitantes porque a memoriza em seus pés.
No entanto, o flâneur, de Baudelaire, é um artista que busca refúgio na multidão. Lauren Elkin cria o termo
flanêuse, para a forma feminina de flâneur. Uma observadora da cidade.
22
não um acessório. Na introdução aos pequenos poemas em prosa, ele aponta as
apreensões momentâneas, a captação livre. Escreve para o leitor não se martirizar
pela escravidão do tempo. E o que é “embriagai-vos”? É se envolver na observação
do mundo, olhar para a cidade como se olha para uma paisagem, conversar com
as ruas e expressões da cidade enquanto forma de espetáculo.
Considere a beleza de estar na cidade; a pintura sobre o cinza representa
não apenas a subjetividade interna de quem produz a arte, mas também uma
interioridade particularizada que se reflete na vitalidade da paisagem e manifesta-
se no que há de interesse ao humano que vive a mesma exterioridade plástica
agora interiorizada por outrem.
Agora, as flanêuses e flâneurs invertem a hierarquia dos elementos visuais e
vivem a cidade de maneira ativa, inscrevem, escrevem, apropriam-se das
superfícies reivindicando os suportes públicos para a arte e a comunicação.
Tornada a cidade a grande galeria a céu aberto, será que a arte vinga no antigo
propósito vanguardista de ser usufruída no cotidiano, o produto urbano que não
pode ter preço de venda e que não tem cifra e, portanto, não pode ser mercadoria,
a participação ativa da estética na política?
Baudelaire entendeu que até a poesia se torna mercadoria, os que escrevem
o fluxo urbano com signos, poemas e cores podem vender a sua força de trabalho
para pintar uma fachada mas a forma de apresentação nos suportes murados, isto
não pode ser comercializado.
II- A assinatura é a primeira marca do artista do graffiti, originariamente tudo
começa na tag. É no Renascimento que as/ artistas começam a assinar as suas
obras. É claro que as expressões artísticas urbanas de hoje não terão relação com
o renascimento, pois o movimento tinha um processo revolucionário de fundo,
uma nova cosmologia. Aqui, a cosmologia é a da desagregação, um mundo em
profunda decadência que ameaça no mais a existência humana e que se relaciona
com a sede de lucro desenfreada da sociedade capitalista sem freios éticos. Ao
mesmo tempo as artes urbanas explicitam e se contrapõem a este referido
mundo.
23
A noção de indivíduo não fora trans-histórica, até os séculos XIV e XV,
quando o mundo ocidental veio a produzir um inovador movimento social,
econômico, e cultural na história da humanidade, o Renascimento, inaugurado
com o advento da sociedade capitalista. As condições históricas são favoráveis ao
afloramento da arte e ciência, mas seria verdade a afirmação de Lukács de que se
se podem verificar constelações históricas nas quais, em sentido inverso, a ciência
ou a arte podem obscurecer ou deformar a vida cotidiana?11
A capacidade de individuação, no sentido de absorver as capacidades
genéricas desenvolvidas na humanidade, que resulta na elaboração das
subjetividades e da criação da personalidade, encontra-se em todos os entes
humanos, mas de que maneira é possível avançar no desenvolvimento existencial
dessa capacidade? É evidente que a capacidade individual parte dos indivíduos
que se sobressaem e jamais do termo médio de uma dada época. Como videar12 a
capacidade máxima dos indivíduos representativos, aqueles que realizam até o fim
a possibilidade apresentada?
Ou como acentuou Engels:
Desconfio cada dia mais da minha habilidade e da minha capacidade criadora como poeta desde que li Aos jovens poetas, de Goethe, onde me encontro descrito com tanta exatidão quanto é possível fazê-lo; com esta leitura, compreendi claramente que meus versos não têm nada de arte; contudo, continuarei praticando a rima, pois é um ‘agradável complemento’, como diz Goehte (ENGELS, 2010: 310)
Hegel, em sua Estética (1962, p. 20), discorre que na pintura se afirma pela
primeira vez o princípio da subjetividade “[...] ao mesmo tempo finita e infinita,
o princípio da nossa própria vida, e contemplamos nas obras dela tudo o que vive,
atua e se agita dentro de nós”. Ele está dizendo que, na pintura, o divino surge
vividamente associado à comunidade e estabelece entre os que a contemplam
uma identidade e mediação espirituais.
Para ele, ao mesmo tempo em que existe uma pintura cristã, existe a grega,
a romana e a oriental, mas coloca que nos limites do “romântico”, a arte da pintura
atingiu o seu maior desenvolvimento, no sentido de empregar e exaurir os
recursos. Mas porque Heller defende o renascimento e Hegel o romantismo,
como períodos de excelência artísticas? Parece que Heller está defendendo um
11Para saber mais, ler : Ontologia do Ser Social. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Livraria
Editora Ciências Humanas, 1979. 12 Visualizar, palavra criada no romance Laranja Mecânica de Anthony Burgess, 1962.
24
modo de vida em transformação e revolução; a eclosão maior da sociedade
capitalista estimulou uma explosão de potencialidades nas pintura, escultura e
poética, enquanto Hegel está defendendo o que representa o período romântico,
o nacionalismo e a potencialidade máxima da expressão do espírito através do
Estado, sendo também a máxima representação desse espírito na arte.
Os nossos pensamentos e sentimentos estão orientados para os diálogos
presentes no espírito da história, força motriz da vida. A arte dirige a nossa
atenção para outro lugar; retira-nos do cotidiano e nos leva a outro estado de
concentração, em recolhimento ou exteriorização. A arte tem essa capacidade de
chamar a nossa atenção para objetos e conteúdos que nos escapam na realidade
corrente.
A percepção (aesthesis), esta disciplina que envolve o belo, o feio e as
práticas artísticas está num todo da criação, assim como o trabalho não alienado
(criador), uma viagem, práticas esportivas e mesmo a ciência podem se
caracterizar em formas privilegiadas de suspender o cotidiano. Ainda, a
consciência elevada, como a memória, a awareness13 e a sincronicidade14, são
oportunidades potencializadoras de se retornar à realidade de outra maneira.
Temos falado dos efeitos subjetivos da arte e que assim a definem como
arte. As possibilidades do despertar do torpor da vida cotidiana são inúmeras e
aqui temos defendido que, tendo a arte um potencial humanizador, pode também
estimular os processos de conhecimento, da história e, mais, ter uma função
social, ou política, no bojo da sociedade. E esta é uma possibilidade e não um
dever. Além do mais, uma expressão ou obra pode adquirir uma função estética,
ou política, não necessariamente desejada pelo sujeito que a realizou.
A força expressiva de ideias e sentimentos, no caminho hegeliano da
dialeticidade, é a de que a subjetividade penetra no exterior, como uma
objetividade que lhe pertence, na união do particular e do universal, realizada na
forma exterior. É evidente que o caminho de Hegel se refere ao lado espiritual do
conteúdo que apresenta independência da realidade empírica, ao mesmo tempo
13A awareness é um estado de sentir e estar consciente significativamente e conectado a um entendimento
universal. Na psicologia, a linha de Gestalt- Terapia utiliza a awareness, como método prático terapêutico. 14A sincronicidade foi inicialmente descrita por Carl Gustav Jung e trata-se de experiência de um ou mais eventos
altamente significativos que têm relação entre si mas não causal; quando ele acontece, é um evento suspenso no
cotidiano.
25
em que considera que somente com a realidade concreta é que essa subjetividade
se tornará concreta e viva.
III-
A arte ressoa na alma; ajuda-nos a apurar os sentidos; estimula; dá força;
deprime; aponta para a realidade com outro olhar. Pode aguçar não somente os
sentidos e as sensações, mas também pode acessar os estados de sono,
inconsciência, cognição; nos causa torpor e fala diretamente a outros eus. Se, ao
ver os campos floridos de Van Gogh, sinto a sua dor nos últimos dias de sua vida
e me vejo ali deitada, sinto o sol a aquecer um pouco de minh’alma. A arte
condensa núcleos de sentidos e nos faz aprender algo sobre a realidade sem que
saibamos a correlação com a mesma.
O reflexo da realidade15 opera-se nas lembranças da existência (cognitivas,
sensoriais, factuais, narrativas), que adquirem características próprias nos
variados meios de expressão, na combinação de emoção, técnica, recursos,
intuição e forma. O reflexo estético16 é a forma social da apropriação do real pela
consciência, que reproduz, não de maneira mecânica, a realidade objetiva. A arte
é uma das representações de conhecimento do real; tanto o pensamento
cotidiano, quanto a arte, ou a ciência, refletem uma mesma realidade objetiva,
mas cada área de objetivação da vida se expressa com diferentes características.
Mas a arte não conhece a vida material; a arte fala da essência humana. Adolfo
Sánchez Vázquez (1978), retomando a estética marxista e as teorias de Lukács, fala
que os objetos representados na arte são portadores de um significado social do
15Usamos aqui o contexto da teoria do reflexo abarcado na Estética de Georg Lukács, em que a realidade cotidiana
é captada pelos reflexos artísticos, de maneira não mecânica, ou fotográfica, mas por uma elaboração
antropomórfica, que seleciona e reordena as categorias da realidade objetiva. A categoria ordenadora central desse
movimento, para ele, é a particularidade que a torna sensível às determinações universais da vida humana. Lukács
está pautado, nessa formulação, fundamentalmente, na estética de Hegel; por exemplo, toda a formulação do
interesse pelo “reflexo exterior da interioridade” (HEGEL). 16O reflexo estético cria, por um lado, reproduções da realidade nas quais o ser em si da objetividade é
transformado em um ser para nós do mundo representado na individualidade da obra de arte; por outro lado, na
eficácia exercida por tais obras, desperta e se eleva a autoconsciência humana: quando o sujeito receptivo
experimenta – da maneira acima referida – uma tal realidade em si, nasce nele um para-si do sujeito, uma
autoconsciência, a qual não está separada de uma maneira hostil do mundo exterior, mas antes significa uma
relação mais rica e mais profunda de um mundo externo concebido com riqueza e profundidade, do homem
enquanto membro da sociedade, da classe, da nação, enquanto microcosmos autoconsciente no macrocosmos do
desenvolvimento da humanidade. (LUKÁCS, 1970, p. 296).
26
mundo humano em que a arte vê as relações humanas em suas manifestações
individuais e não na mera generalidade.
A jornada do conhecimento de que a arte nos dá sobre a humanidade não
é o da mera imitação mas o da mediação e da mimese do concreto real ao
concreto artístico. Para Benjamim (1994), a faculdade mimética é a natureza que
a cultura usa para criar uma segunda natureza, ou seja, é a habilidade de criar uma
relação simbólica com a realidade. Nessa concepção, a imagem, a magia e a
imaginação tornam-se um outro objeto. A magia da mimese está no ato de
desenhar e copiar a qualidade e o poder do original, a tal ponto que a
representação pode, até mesmo, assumir aquela qualidade e poder. Então a arte
terá um correlato com a realidade que nem sempre sabemos apontar qual, já que
a vivência de toda a realidade artística contém necessariamente um momento de
alusão à realidade. (Lukács, 1982)
Em sua Estética, o filósofo húngaro Lukács (1970) argumenta que a obra de
arte terá por tarefa específica representar o humano, o seu destino, suas
manifestações. A trama de Édipo, por exemplo, provoca emoções nos
espectadores ou leitores, independentemente de eles conhecerem os
pressupostos históricos dessa obra. Para Lukács, está presente na arte a relação
humano-humanidade, ou seja, a representação simbólica na arte é sempre o
reflexo condensado do mundo humano.
Ao internalizar o livre e o belo, e ao transformá-los, por meio da qualidade
da natureza e da beleza sublime nos valores culturais da burguesia, um reino de
aparente unidade e liberdade é criado no campo da cultura, no qual eles devem
ser dominados, apaziguando as relações antagônicas da existência, e essa cultura
afirma e esconde as condições sociais da vida. Após satisfeitas suas necessidades
é que o ser humano encontra a medida para as coisas e, ao mesmo tempo, é esse
ser, em especial, que satisfaz as próprias necessidades, mas também as de toda e
qualquer espécie. Ora, o ser humano reproduz a natureza toda e é capaz de aplicar
a medida de todo o necessário e, ainda, pode estabelecer a medida do belo. A arte
é uma atividade sensível, assim como a filosofia e a religião; por ser sensível, é
parte integrante do processo de formação humana.
Se a consciência da natureza é, primeiro, consciência animal, a consciência
da necessidade de relações com outros seres humanos é a consciência da vida
social. A linguagem, tão antiga como a consciência, nasce da necessidade de
27
intercâmbio com outros humanos, ou seja, a consciência plena é subjetiva e
objetiva. A cultura se desenvolve na luta pela existência e por melhores condições
de vida17 e se conforma em “Tudo aquilo que foi criado, construído e conquistado
pela humanidade, ao longo da história, em contraposição ao que lhe foi dado pela
natureza, e que serve para aumentar o conhecimento e a capacidade para
enfrentar e subjugar a natureza”. (Trotsky, 1981, p. 52). A base da cultura é a
consciência e o desenvolvimento do processo de consciência, de si e a do outro.
Aqui buscamos atentar para a necessidade e a visualidade de transformações
culturais na busca de emancipação humana.
As grandes obras de arte tornam-se trans-históricas; atravessam os tempos.
A arte somente existe em relação a outrem. Uma obra de arte não existe se não há
público e uma expressão torna-se verdadeiramente artística se quem observa é
atingido por ela não apenas por dizer: “Isso é bonito ou feio”, mas se ali, naquele
momento de encontro, há uma entrega e identificação; quando eu vivo algo
jamais vivido, ou rememoro sentimentos, ou aprendo ao sentir algo novo. A arte
deve tocar no âmago; causar catarse; afetar; fazer rir ou chorar; sentir raiva e paz
ao mesmo tempo ou qualquer outro sentimento não nomeável.
IV-
Quando, numa barca, estamos sozinhos em meio à enormidade do rio
Amazonas, com o vento a bater na face, um calorzinho de outono aquece a relação
de igualdade entre nós e a natureza18; produz a sensação de aumento das
possibilidades de apreender a liberdade. Ou, como dizia Clarice Lispector (1992):
“Um pouco de aventura liberta a alma cativa do algoz cotidiano”. No processo de
desenvolvimento humano, no plano da prévia ideação e da teleologia, o ser
17Aqui entendemos o trabalho como fundante da existência humana, e a linguagem, a política, a arte são produtos
do trabalho. Ao contrário daqueles que buscaram argumentar que a linguagem antecede o trabalho, vemos que
esses atributos são resultado da precisão que o homem teve de se comunicar, devido às mudanças ocorridas e às
intensificações da produção, pelas quais as relações sociais foram se complexificando cada vez mais. A linguagem
consolida-se a partir da intensificação e do desenvolvimento das relações entre os homens, tem que ver com o
desenvolvimento das forças produtivas do trabalho. Na medida em que o homem foi se apropriando da natureza e
desenvolvendo sua produção, os laços comunitários foram aumentando e nisso se fez necessário ampliar e
sofisticar a linguagem, assim sendo, este deve ser tomado como resultado das forças produtivas do trabalho.
Portanto, o trabalho é o cerne do mundo e autoprodução humana. Veja-se no terceiro manuscrito em Karl Marx
nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2006. 18 Na relação entre ser humano e natureza, à medida que se apropria e domina a natureza pelo trabalho, o ser
humano se afasta dela ao estabelecer os recuos das barreiras naturais. A criação do mundo humano difere
totalmente da natureza; criam-se sociabilidades e objetivações políticas, culturais e ideológicas.
28
humano formula questões e vê necessidades a serem supridas e, em todo esse
processo, ele cria. A percepção consciente, plena de intencionalidade, vincula-se
ao ato de criar movida por necessidades concretas sempre novas; criar é estar em
movimento com possibilidades de aufhebung (transcender) da vida cotidiana. O
ser humano criativo surge a partir da possibilidade de escolhas. A criatividade não
se resume ao fazer artístico e, mesmo, a um produto, mas como experiência de
vida, que possibilita ampliar a percepção e a consciência em relação a si mesmo e
ao outro.
As expressões criativas são mais amplas e podem ocorrer na vida
cotidiana19, na ciência ou na arte. A concepção de arte aqui como forma de
consciência social e do si-mesmo encontram-se plasmadas no movimento da
realidade e num tanto de magia da qualidade da pintura em reunir tantos
elementos e objetos em uma singular representação sendo que cada um de nós é
movido por paixões, desejos, expectativas e necessidades; ou da arte que nasce
pela necessidade de sobrevivência.
Os grafismos que compõem a complexidade visual das grandes cidades é
parte do cotidiano de seres sociais dotados de razão, história e consciência;
capazes de reflexões e críticas acerca de ações e pensamentos. No cotidiano, no
qual o indivíduo se socializa e responde às necessidades imediatas; assimila
costumes e normas; vincula-se à sociedade, incorpora mediações na dinâmica
voltada à singularidade.20
No processo de desenvolvimento humano, no plano da prévia ideação e da
teleologia, o ser humano formula questões e necessidades a serem supridas e, em
todo esse processo, ele cria. O devir criativo não está apenas na curiosidade,
técnica, forma ou representação de algo, visto que a capacidade criativa exige
que o ser universalize a si mesmo. O ser humano criativo surge a partir da
possibilidade de escolhas.
19Segundo Lukács, a vida cotidiana possui uma universalidade tal que a sociedade somente pode ser entendida em
sua totalidade quando se entende a vida cotidiana em sua heterogeneidade universal, a vida cotidiana é aquele
conjunto de atividades que caracterizam as possibilidades de reprodução social. O filósofo Húngaro propõe que a
estética tem sua base ontológica no terreno da espontaneidade da vida cotidiana mas para se auto-realizar enquanto
fisionomia a cada tempo histórico-social deve ser submetida a um caminho consciente ou não a transformações
qualitativas de conteúdo e ou forma, espontaneidade que é inerente a natureza particularista das atividades
humanas. 20Os humanos não são apenas seres genéricos nem meramente seres singulares, mas há uma totalidade que envolve
a singularidade – a tendência cotidiana da individualidade, dos desejos, e das necessidades – e a universalidade –
sociabilidade, objetividade. Para melhor entender, leia o livro de Maria Lúcia Silva Barroco: “Ética e Serviço
Social - fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez Editora, 1996.
29
A criatividade não se resume ao fazer artístico ou, mesmo, a um produto,
mas é experiência de vida que possibilita ampliar a percepção e a consciência em
relação a si mesmo e ao outro. A proposição universal de criar relaciona-se com a
vida, ela mesma, a qualidade de vida; o mínimo de inteligência é suficiente para
que o indivíduo seja capaz de tornar-se ativo em sua vida, na comunidade ou na
sociedade. A não ser que esteja doente, estressado, sufocado, limitado.
O american dream, enquanto ideologia dos apologetas do poder, nos Estados
Unidos da América, prevalece como existência moral e de conduta introjetada de
que tudo é possível e que o estilo “correto” de ser e de vida é o “americano”. São
os menestréis possuidores da liberdade de escolha de mercado, de compra, de ir
e vir como potência na valoração máxima do indivíduo, a expressão da ideologia
pungente e avassaladora do capital, portanto inerente à classe dominante,
burguesa, detentora dos meios de produção.
A liberdade, na Idade Média, era uma questão de transcendência somente
alcançada de forma espiritual. Na sociedade burguesa, a liberdade é objetivada
pelo indivíduo. Diante das alternativas, desenvolvemos a capacidade da escolha.
Aí está a gênese da liberdade. Subjetivamente, também vivenciamos a sensação
da liberdade. Nina Simone, em entrevista reprisada no documentário homônimo
de 2016, afirma que a Liberdade é apenas um sentimento, diz ela: “Como você
explicará a alguém que nunca se apaixonou o que é a paixão?”. Algumas vezes, no
palco, ela se sentiu livre. “I will tell what freedom means to me. No fear! If i could had
that half of my life… No fear! A new way of seeing something”21. Nina Simone vai
descobrindo, ao longo da vida, que não compactuará com a opressão racial e se
agrega a movimentos sociais e pares de luta. Suas composições perpassam a
função social, não por obrigatoriedade, mas por sentido de expressão daquilo que
a compositora vivenciava em sua vida. E ainda transita por outros temas que
balançam o seu coração. Uma artista completa referenda a vida e se lança ao
mundo em potência e plenitude. Intuitivamente ela diz que a liberdade não é um
sentimento mas uma condição objetiva.
A liberdade pressupõe a existência de alternativas e possibilidades
concretas de escolha entre elas. Como diz Marx, “Os homens fazem a sua própria
21 Eu vou te dizer o que liberdade significa para mim. Nenhum medo! Um novo jeito de ver algo.Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=nPD8f2m8WGI
30
história, mas não fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas
por eles próprios, e sim nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e
transmitidas pelo passado” (2010, p.124). Essa capacidade é desenvolvida
historicamente e não dada por natureza. A liberdade frente às escolhas é parte da
capacidade consciente dirigida a uma finalidade. Capacidade prática para realizar
objetivamente as escolhas e para que novas escolhas sejam criadas. A liberdade é
um processo de auto realização enquanto origem de novas possibilidades, nas
quais, por meio de sua ação, o indivíduo social cria-se e recria-se constantemente,
como um ser autotranscendente.
Determinados valores podem ser vivenciados mais intensamente em certas
relações do que em outras com certas objetivações que as demais. Ao indivíduo,
é posta a necessidade da escolha e reação ou intenção e, então, da escolha perante
alternativas cotidianas das mais simples às mais complexas. Os valores culturais
presentes em cada época estimulam ou retardam a criatividade humana.
Quanto mais rica a diversificação de relações, mais complexas as
elaborações. Por exemplo: cada língua codificada é uma forma de prisma da
realidade, nomear o real, designar, é também sentir e pensar sobre ele por meio
das línguas. Assim, os de língua anglo-saxã não conhecem a palavra saudades e
também não vivem da mesma maneira a saudade. Ao se falar mais de uma língua,
amplia-se o repertório de existência, sensações, maneiras de pensar e as
designações.
A liberdade, no plano subjetivo, isto é, da problemática das possibilidades,
do ponto de vista da organização social, se coloca diante da possibilidade concreta
de ser livre. Quais serão os teores de verdade que as imagens contêm e induzem
a quais efeitos, quais são suas origens éticas e quais os destinos políticos da
estética contemporânea mais difundida no mundo? No que as imagens públicas
urbanas concernem ao jeito de ser de indivíduos e das coletividades? Ao resgatar
toda a referência cultural e artística do legado da humanidade, há que se pensar
no desenvolvimento da própria cultura e de que maneira se articula com a
universalidade22.
22 É fundamental que o ser humano genérico se aproprie de todos os bens culturais produzidos pela humanidade.
“[...] Uma nova classe não recomeça a criar toda a cultura desde o início, mas se apossa do passado, escolhe-o,
retoca-o, o recompõe e continua a construir daí. Sem o uso do guarda-roupa de ‘segunda mão’ do passado não
haveria progresso no processo histórico [...] Os dias que vivemos ainda não representam a época de uma nova
cultura, mas no máximo seu limiar. Devemos em primeiro lugar nos apossar oficialmente dos elementos mais
31
A incessante busca por valorar a vida, uma perspectiva de ver a vida,
compreende que a medida da liberdade individual está socialmente
impossibilitada pela condição material existente. Vejamos um pouco a
complexidade da liberdade nas dimensões ético-política e na micropolítica da
subjetividade expressa em sensações e sentimentos. No campo da subjetividade -
autonomia23, autoconhecimento, desejos e o que faz, por exemplo, com que uma
pessoa se aprisione em um par de sapatos, ou seja, para sermos espiritualmente
livres, não podemos permanecer na escravatura das necessidades corporais ou de
desejos, quanto mais escravos de necessidades criadas, tal qual ter vários pares de
sapato, e a incessante vontade de consumo.
Os “processos criativos” vinculam-se a sentimentos de amplitude e de
liberdade, ao preencher vazios, atenuar medos e acalmar anseios, e esta
possibilidade de dar vazão a sentimentos, sensações e fantasias, são vivências
interiores. A criatividade revela o que está encoberto, possibilitando ao sujeito
formas estéticas de transfiguração, aberturas e revelações, tornando-se a
expressão do verdadeiro self que, em contato com a realidade externa, tem sua
existência fortalecida e não aniquilada. “Definir é matar, sugerir é criar” (Mallarmé,
2013). Parte-se do pressuposto de que o ser humano é ser criativo em potencial e
tem como necessidade realizar esse potencial se as circunstâncias da vida social e
individual o permitirem.
Como experiência vital, criar intensifica o viver. Os processos de criação
ocorrem no cotidiano, no trabalho, na ciência, na arte e, em geral, quando sua
atividade lhe é significativa, sua sensibilidade pode ser estimulada. Essa realidade
criativa se dá na mediação do singular com o universal, do indivíduo com a
cultura. Criar não é algo privilegiado do campo artístico, mas uma necessidade
vital de concretizar um dos potenciais humanos. A criação representa uma
descarga de energias emocionais e intuitivas que renova a potência; neste
processo o indivíduo amplia o espectro de ser e atuar no mundo ao enriquecer a
sua própria produtividade.
importantes da velha cultura, a fim de podermos ao menos abrir caminho à construção de uma cultura nova.”
(TROTSKY, 2007, p. 143 e 154, grifo do original).
23No cotidiano dinâmico e heterogêneo, tende-se a emitir respostas automáticas, valores, crenças e preconceitos.
A escolha é um exercício de liberdade, no cotidiano reificado; os valores morais tendem a ser interiorizados
acriticamente e constituem a alienação moral. Há uma distinção entre a autonomia, a consciência da possibilidade
de escolha. A autonomia demarca-se quando o eixo de uma escolha está marcado pela personalidade individual. É
evidente, nesse processo, saber que sem alternativas existentes não há possibilidade da autonomia entrar em cena.
32
V - A forma é a materialização da ideia, mas nem sempre ambas mantêm uma
relação direta e simbiótica entre si. Uma forma nova com o conteúdo velho, ou
um conteúdo novo com uma forma velha, entram em contradição, uma arte
histórica; uma arte que se torna trans-histórica apresenta uma unidade
transformadora tanto na forma como no conteúdo. A partir dessa premissa
passamos a observar a arte urbana.
Em termos da arte de mural, comparativamente à do graffiti, temos que,
na arte mural, que mais se aproxima à da pintura, há possível figuração de duas
ou três dimensões do real enquanto que o graffiti e o pixo apresentam realidades
mais intrínsecas. O pixo expressa uma preocupação maior com o local de
exposição, o risco de exposição, do que com seu conteúdo concreto. A realidade
espacial adquire uma nova dimensão, que, no caso do pixo, apresenta a renúncia
à cor, o que havia ocorrido na escultura e na poesia concreta, com a renúncia da
rima.
Algo a se considerar é que os graffitis e murais transcendem as
possibilidades de superfície, que também interferem naquilo que poderá ser
figurado. Atingem magnitudes impressionantes, até então abrangidas apenas pela
arquitetura; são formas de carimbar e transformar arquiteturas, não somente
como adornos. Ao mesmo tempo, a iluminação externa, em locais a céu aberto,
apresenta riquezas particulares nas variadas épocas do ano e a cada dia uma
modificação natural incide sobre murais e graffitis: a luz da manhã, do meio-dia,
o crepúsculo, a aurora, o tempo das chuvas, o céu de outono, a luz por entre as
nuvens, a luz artificial que brota na noite, enfim, toda a gama de iluminação dá
origem a efeitos variados ideados ou ao acaso.
Parece-me interessante que a renúncia burguesa aos elementos externos de
composição das arquiteturas de edifícios pode ter aberto espaço para essa
necessidade, que, em nosso entendimento, não adentram potencialmente os
campos da subjetividade e apresentam posições menores, no campo das artes, o
que é muito distinto das artes abstratas, que expressam uma realidade sensível e
plástica, que atingem outros níveis de consciência e reciprocidade. Para o icônico
artista Rui Amaral, o conceito decorativo de arte é um sequestro.
33
Se, no tempo das arquiteturas monumentais Góticas, a pintura é totalmente
externa e há necessidade de adornos nas catedrais, janelas recobertas de motivos,
no tempo de agora, a necessidade pode ser a de colocar a pintura para fora, sendo
que os prédios, igrejas, são simplificados em seus contornos exteriores.
Há pouco tempo, em fins do século XX e início do século XXI, talvez a
escultura estivesse mais próxima da arquitetura do que a pintura, na arte
muralista. Com o emprego dos mais variados materiais, a representação espacial,
que, no caso da pintura, depende sempre de uma superfície, ganha essa outra
dupla dimensão: a superfície de prédios e a visualidade em diferentes locais na
cidade, próximo ou distante da pintura, ou na virtualidade, com a difusão das
fotos. Mais pessoas observam um mural urbano do que vão a um museu, é apenas
por estar circulando na cidade e se deparar com algo menor, ou monumental, que
salta aos traços cinzentos típicos de metrópoles do tipo LA, ou SP, com prédios
gigantescos, produções industriais, concentração de Capital e poucas áreas verdes,
com tráfico e ritmos intensos, de fluxos populacionais.
Na antiguidade greco-romana, a pintura revestia as paredes e os murais em
branco para decorar templos e moradias. Vemos essa independência da pintura
iniciada no muralismo mexicano, em que são retratados grandes acontecimentos
históricos e substanciais valores de lutas contemporâneas, donde se ressalta a
grandeza humana com virtuosismo técnico.
Agora, a delimitação da forma adquire outros contornos, pelo incremento
da relação espacial. Hoje, o graffiti dirige-se diretamente ao espectador, de
maneira instigante e vívida. Está nas esquinas, vielas, nos viadutos, embaixo e nas
alturas das pontes. A pintura tem, no seu meio de representação, as figuras, mas
também as cores. É nessa delicadeza sensível que podemos sentir que apenas a
cor pode expressar uma subjetividade que estabelece interlocução com os sujeitos
que a miram e com ela interagem.
É necessário considerar a concreta expressão da forma sensível, através
da perfeição das formas exteriores, para considerar a arte bela? Ou o lado sensível
pode ser absorvido por outras singularidades interiores? Em que seria comparável
exprimir uma exaltação superior de uma arte perante a outra? Tomar-se-ia a
produção contemporânea de uma outra época, ou a concreção de um mesmo
tipo de forma artística como medida? O elogio à perfeição dar-se-ia não pela
34
fidelidade de representações mas na referência dos conteúdos compartilhados ou
sentimentos e sensações de impressão na alma?
Na arte visual, rica e multiforme, damos ênfase aqui ao graffiti, mas
encontramos no nosso período corrente a arte conceitual contemporânea, mais
ligada ao “pós-moderno”24. Também existem formas pertencentes à
modernidade tal qual a referência nos murais do realismo social - algo muito
“moderno”. O modernismo entendido por esse movimento acadêmico, sensível
e revolucionário, tanto em se unir a sentidos políticos com as proximidades de
eclosões e revoluções sociais, quanto a estabelecer questionamentos no interior
da própria arte. Pressupomos que é impossível pensar que modernidade tardia é
esta, sem levarmos em conta os movimentos por alteridade, os movimentos
LGBTQIA+, feministas, a efervescência que vem das ruas, os movimentos raciais
e os movimentos ambientalistas.
VI -
Arte e política têm características próprias e não se situam no mesmo plano,
conquanto, a arte apresenta direcionamentos ideológicos por não estar dissociada
da sociedade. A arte pode assumir direcionamentos ideo-políticos e a política
pode se valer da arte para promover propaganda e processos de consciência e até
dominação. Os dogmatismos impostos de um plano para outro não fazem mais
do que estimular o sectarismo e as limitações que podem tão somente inibir os
processos criativos. Do contrário, seria mais benéfico promover mais criatividade
e liberdade na política.
Política e arte não andam sempre juntas, no processo de desenvolvimento
histórico, tanto que, em momentos de ditadura, com táticas de repressão no
campo político e artístico, no Brasil, registra-se alto desenvolvimento artístico. A
politicidade não pode ser entendida acima das classes sociais25, a estrutura de
24 O pós-modernismo apresenta um sistema de ideias e também práticas culturais em que se defende que a fundação
de todo o pensamento clássico social colapsou e que não existem mais grandes narrativas ou meta narrativas - num
todo, as concepções de história e sociedade. E aí atinge o cume da afirmação da inexistência de História. O mundo
pós-moderno está generalizado a este ponto, dominado pelas novas mídias digitais que retiram a importância do
curso da história, que anulam o passado. O mundo está em constante fluxo de ideias, imagens, informações. Jean
Baudrillard acredita que a mídia eletrônica destruiu as nossas relações com o passado e criou um mundo caótico e
vazio. 25“Não é preciso demonstrar que a separação da arte dos outros aspectos da vida social resulta da estrutura de
classes da sociedade. Sua auto-suficiência, como se ela se bastasse a si mesma, constitui o reverso da medalha: a
transformação da arte em propriedade das classes privilegiadas. A evolução da arte, no fundo, segue o caminho de
35
classes vem determinando a forma e o conteúdo da história humana, isto é, a
cultura também assume esse caráter, assim como as relações materiais e seus
reflexos ideológicos. A estética é política mas tem uma complexidade e
universalidade tal que transcende a política. O princípio fundamental da arte é a
necessidade e o da política é a vontade.
A arte surge muito mais como um fenômeno universal mas a política se
liga mais ao particular, nos modos em que ainda vivemos. E mesmo que o modo
de produção esteja globalizado, cada nação tem certas singularidades. A estética
pode suprassumir a esfera do Capital mas a política não consegue.
Pensar que quem faz arte tem o dever-ser político correto nesta ou naquela
direção, é um debate muito em voga. Segundo o artista Paulo Ito (entrevista em
2017): “A arte não necessariamente está vinculada à qualidade, e por vezes algo de ruptura
como as vanguardas e a quebra do establishment pode ser considerado algo político”
Mas sejamos sensatos/as: a arte verdadeira transcende o seu momento
histórico e é lembrada e reverenciada independentemente do tempo e espaço a
que se vincula e pode ser reapropriada em outros momentos históricos. O
“socialismo real” ruiu e continuamos a ler Maiakovski, e as belas esculturas de
Camille Claudel, muito à frente do seu tempo, começam a ter maior valorização
hoje, mais de 70 anos depois de sua morte ou as belas cerâmicas dos tempos da
Dinastia Shang na China, mais de mil anos a.C. que nos enchem os olhos de
beleza.
Temos discutido na relação entre arte e política que a forma artística, apesar
de manter constante relações com as exigências econômicas e produtivas, possui
leis próprias. A arte desenvolve-se na vida e pela vida; não está atada à
imediaticidade da vida, em sua espontaneidade. A vida cotidiana apresenta um
efeito contraditório, de massante repetição e potencial evocatório.
O desenvolvimento da capacidade humana se relaciona a cada situação,
momento, configuração da história social e pessoal de cada um. O que dizer de
uma artista em profícua criação que, em determinados momentos, não consegue
pintar nada? Devemos ainda nos concentrar em priorizar esteticamente a arte que
uma crescente fusão com a vida, isto é, com a produção, as festividades populares e a vida coletiva”. (Trotsky,
2007, p. 114)
36
traz harmonia social? O obscurantismo do real deverá refletir um mundo ideal na
arte ou a arte de um mundo decadente em chamas?
A verdade de um julgamento estético e a beleza de uma obra de arte devem,
por sua própria essência, afetar ao público sem distinção de sexo e nascimento,
mas, para isso, independentemente de sua posição no processo de produção,
todos os indivíduos deveriam estar expostos a valores culturais, para da luz à
existência humana.
VII - Contraditoriamente, os traços híbridos da reprodução26 contemporânea
estão presentes também na cultura dos povos originários; quilombolas; na classe
trabalhadora; em grupos de grafiteiros/as e pixadores/as; ou em qualquer
agrupamento social majoritariamente subordinado à exploração, dominação e à
ideologia do capital. Esse é o processo de concreção das relações alienadas e
estranhadas. A existência parece colocada na trincheira entre a incapacidade de se
realizar, em virtude da subsunção à ordem vigente, restando apenas aos
indivíduos estabelecer sociabilização entre concorrentes, e mediatizados pela
coisa, na qual sua realização só pode se objetivar perante o dinheiro, e a super
capacidade de realizar tudo e qualquer coisa que quiserem.
Por quanto tempo temos sido expostos a informações de consumo
incessantes que invadem nossa vida: preços, letreiros, mostradores de mercados,
nomes de loja e outdoors? A presença de manifestações visuais ilustrativas ou
cifradas também existe do ponto de vista de quem observa e ou contempla na
necessária interlocução, daquilo grafado ou observado, com quem observa. O
capitalismo vem subvertendo e absorvendo todas as formas de expressão criadas,
capturadas e transformadas em publicidade em valor capital, em fluxo imagético.
Os grafismos selvagens – escritas, garranchos e rebarbas ou elaboradas grafias e
murais a partir do uso do spray, canetas e tintas transformam as escritas urbanas.
Ao mesmo tempo essas novas imagens e tipologias criadas são incorporadas e se
tornam jargões, novas tipologias de letras para o word, novas propagandas.
26Não há vida sem reprodução e não há sociedade sem vida cotidiana; todas as capacidades e os afetos
fundamentais são apreendidos no cotidiano. O ser humano, ao nascer, encontra-se vinculado a uma estrutura social
- estrato, classe -, é ele o ser genérico ou o ser social.
37
Ao mesmo tempo, desta vez, quem reverte a lógica e absorve o que foi
desenvolvido pela sociedade capitalista é a arte imagética de rua que em diversas
vertentes compete com a poluição e que pode incitar valores e ao mesmo tempo
ser cifra de difícil compreensão para leigos. A arma de identificação,
reivindicação, expressão e existência em alguma história fugaz. O público não é
consumidor, o público busca entender, admira, sente, compreende, sente ojeriza,
repulsa. Ataque ao suporte, a guerrilha urbana de imagens está instalada. Aqui
nem sempre importa o que está escrito, o significado das palavras sem aparente
importância da semântica, a linguagem suja, sem conceitos, a imaginação furiosa,
demarca os mais bem posicionados edifícios de maneira monumental.
Graffiti, pixo e estêncil27 rompem com os espaços de exposição tradicional,
os museus e as galerias, para criar diálogos com lugares e recolocar o campo da
criação artística entre os elementos da vida cotidiana. Aliás, é fundamental a
supressão dos museus ainda mais se pensarmos que a onipresença da publicidade
recorre por sobre o valor estético em que a fortuna de uma artista depende
somente, por muitas vezes, de um bom empresário. Claro que também sob o jugo
social capital a arte é mercadoria, agora até a água o é. E quem vive por mais de
três dias sem água?
O dinheiro, a publicidade, a propaganda, a ideologia dominante define o
futuro da maioria. Como disse Mariátegui: a elite aristocrata se compunha de
finos amantes das artes e das letras; já a elite burguesa se compõe de banqueiros,
industriais, técnicos. "A atividade prática exclui da vida desta gente toda a
atividade estética" (1980, p. 137). A civilidade Capital é da potência, não é estética;
a sociedade em construção é estética e cooperativa.
Encontramos, na discussão do materialismo histórico-dialético, a premissa
de que, no momento em que uma produção social humana entra em decadência,
a cultura28 também a segue. A decadência cultural corresponde à necessidade de
uma nova formação social. Qual é a transformação cultural que vivemos? As
formas, na arte, têm mais a ver com o desenvolvimento da linguagem, que possui
27Estêncil é uma técnica de pintura utilizada para aplicar um desenho sobre qualquer superfície, com o uso de tinta,
sendo aerossol ou não, o estêncil é feito com papel, plástico, metal ou acetato, onde tem uma boa durabilidade e
seja fácil de cortar, para fazer a forma do desenho. 28 Karl Marx e Friedrich Engels nunca fizeram uma teoria da cultura. A nossa elaboração se pauta-se na elaboração abordagem crítica sobre das artes e da cultura nos estudos teóricos do legado a partir de G. Lukács, Walter Benjamin, Adorno, Trótski, Marcuse, Frantz Fanon Fredric Jameson, David Harvey, Perry Anderson, Erson de Oliveira, e Celso Frederico.
38
leis próprias, mais do que com o desenvolvimento da sociedade, apesar de manter
constante relações com as exigências econômicas e produtivas.
O conhecimento da realidade na arte não é mediada pela ideologia na ciência
é forma sistematizada de conhecer. A grande contradição da arte como instância
Criativa e o capitalismo enquanto sistema que nega o indivíduo criador, o ser
producente está tanto na divisão do trabalho quanto na rasteira educação artística.
Ainda bem que, como temos visto no Brasil, que as classes populares se
reinventam e que o campo da reprodução cultural pós moderna não domina
todas as mentes e almas. É aí que vemos o florescer de um tipo monumental e
exuberante de arte. É claro que se notarmos até mesmo entre as/os artistas
escolhidos, há alguns de influência nas artes na família e no processo de formação;
mas a origem, o espraiamento e a força da cultura de ruas e da arte de rua são
proletárias, na forma mais genérica e específica.
E se lembrarmos dos tempos históricos da arquitetura, escultura, quadros,
música, parece que a elite burguesa não fracassou mas não apresenta traços
lúdicos e imaginativos o suficiente para enfrentar o campo da estética, afinal o
avanço tecnológico; a eficiência; o consumo são mais importantes.
O signo existe do ponto de vista da necessidade de interlocução e
comunicação daquilo grafado, inscrito, colado com aquele que observa; ao ocupar
o espaço público, apresenta outra leitura de percepção da cidade e estimula a
vivência na metrópole. O artista urbano, habitante da cidade, afirma o território
e transforma a sua ação pincelada, colada ou escrita em cenário da cidade em
meio à já tradicional impessoalidade anônima urbana.
Está nas ruas em atualização ou modificação constante. Muros- suportes
que se tornam amplos museus a céu aberto. A arte nos ajuda a conhecer um ao
outro como seres humanos. A arte urbana faz parte de uma visão de mundo cultural e
sendo assim não é algo individual mas social.
Das famosas Tags29, ou assinaturas de nomes pessoais e grupos, até os
ostensivos murais artísticos, os trabalhos poéticos ou identitários refletem o
espírito único da época. De modo genérico, a arte plástica de rua é aquela que sai
do confinamento do museu, espaço institucional de legitimação, e usa a rua como
suporte. Desvela características peculiares do cotidiano metropolitano e disputa
29Inscrição de nome ou assinatura, surgida em NY nos anos 80. É a criação de uma assinatura estilizada individual.
A complexidade da grafia varia.
39
espaço público com interesses imobiliários, comerciais, históricos, estéticos e
comunicacionais, documentando e questionando o modo de vida dos habitantes
de uma cidade. Irreverentes e com regras próprias, as artes plásticas de rua
transbordam o espaço urbano, transformando-o em suporte artístico, a partir de
pixos30, esculturas, colagens, murais e os tradicionais graffitis.
Todas as sociedades usam a fala como veículo de linguagem e há outras
formas notáveis de se comunicar, especialmente nas variedades de escritas. A
invenção da escrita marca uma transição na história da humanidade, pois se inicia
com rabiscos, desenhos, riscos, listas; marcas feitas em madeiras, argilas ou
pedras, para registrar objetos, animais, pessoas, eventos significantes. Por
30Pixo, verbo pixar. Escrever em paredes de muros, prédios, calçadas, janelas e com caligrafia invejável. graffiti e
pixo andam juntos, mas o pixo é criminalizado e enquadrado como crime ambiental, o mesmo crime de quem
destrói complexos ecossistemas, tal qual a Samarco, a Vale, entre outras. O mais importante debate acerca da
pixação está entre o crime e a arte; em São Paulo, é inegável a pixação enquanto fenômeno cultural, esse debate
será aprofundado nesta tese.
40
exemplo, uma marca ou uma pintura pode ter sido desenhada para representar
cada trato de posse da terra por uma família particular.31
É indiscutível o poder e o significado da escrita como marcas na história. A
escrita apresenta um significado de guardar informação e administrar
necessidades no início de civilizações. Uma sociedade que possui escritos localiza-
se no tempo e espaço. Os documentos acumulam-se e gravam o passado, as
informações posteriormente podem ser novamente coletadas.
Ideias e experiências podem ser passadas por gerações sem a escrita mas
apenas se forem repetidas regularmente e oralizadas a cada nova geração. A
escrita pode durar milhares de anos e, por meio delas e da pesquisa documental,
historiadores podem reconstruir as vidas de antepassados. A seguir expomos uma
breve visão histórica das inscrições grafitadas ao longo do desenvolvimento da
humanidade à atualidade.
A grafia em paredes é feita desde a pré-história. Nessa expressão remota,
historicizam-se registros em muros, cavernas e rochas, com vestígios até hoje
encontrados que datam de 40 mil anos. Os achados de figuras de mãos humanas,
por sua vez, estão estampados numa gruta na ilha de Sulawesi, na Indonésia;
também com essa mesma datação, consta uma roda vermelha, na parede de uma
gruta espanhola, em El Casillo. A capacidade de abstração e representação
figurativa provavelmente já se encontrava na África antes da diáspora, o tempo
para descobrir vestígios dessa manifestação artística ancestral.
31 GELB, I. A study of writing. Chicago: University of Chicago Press, 1952.
41
Representações artísticas rupestres realizadas em paredes e outras
superfícies de rochas e cavernas expressam um tipo de faculdade humana
universal e encontrada em todo o mundo. No Brasil - em Rio Grande do Norte,
Piauí e Paraíba - localiza-se a maior concentração de arte rupestre do mundo. O
clima seco, a vegetação impenetrável e a dificuldade de ocupação, em algumas
áreas, contribuíram para conservação. No Piauí, são mais de 500 pinturas
encontradas no sítio arqueológico; datadas de 6 a 10 mil anos, feitas com uma
pedra ferrosa de cor avermelhada (Fig. 1).
Figura 1 - Parque Nacional de Sete Cidades – Piauí/BR.
Fonte: Imagem de Luiz Augusto Vieira (2018).
Lascas de pedra, galhos de árvore eram instrumentos para a arte criativa do
grafismo. Os registros rupestres são fonte para entendermos o processo do contar
histórias, do desenvolvimento da linguagem e das “faculdades estéticas humanas”
(Fig. 2).
Figura 2 - Figuras rupestres de animais e pessoas.
42
Fonte: Museu Nacional de Antropologia do México.
A linguagem da cotidianidade constitui-se em um complicado sistema de
mediação, a respeito do qual o sujeito se comporta, que se faz claro por sinais,
símbolos, palavras e enunciados. A reunião abstrata de um largo processo de
generalização e distanciamento da realidade e percepção sensível apresentam-se.
Na formação da arte rupestre, um processo na criação da linguagem, ou seja, de
desenhos, letras, signos, expressa-se enquanto reflexo das representações do
mundo que cercam humanos na pré-história.
Primeiramente, os registros mais antigos de arte rupestre são de mãos
humanas; depois, de animais, plantas e pessoas; e em outro momento do
desenvolvimento das capacidades humanas, começam a ser desenhados
instrumentos de trabalho - para caçar. Vão surgindo os símbolos e desenhos
gráficos que parecem representar lutas, movimentos, danças, rituais e momentos
de condensação da vida cotidiana daquele tempo humano. A arte rupestre pode
ser encontrada em todos os cantos geográficos do planeta terra.
A arte figurativa dos tempos pré-históricos: paleolítico, mesolítico e
neolítico, considerada arte primitiva no sentido próprio da evolução das artes,
apresenta, como se verifica na Figura 3, uma relação entre forma e conteúdo; em
um aperfeiçoamento técnico, percebe-se o uso de cores, a sobreposição de
imagens, a profundidade, em um estágio evoluído e de perfeição. Nas pinturas
em cavernas e muros, é possível definir características da vida dos antepassados e
nos aproximarmos daqueles seres que realizaram a arte rupestre. Ainda que
saibamos muito pouco das origens das atividades humanas, e aqui não se trata de
discutir a gênese das capacidades estéticas, reconhecemos desde as artes
43
primitivas uma manifestação inicial de “reflexos miméticos” (LUKÁCS, 1966).
Algumas reminiscências e estudos etnográficos indicam caminhos com os
dados arqueológicos de que dispomos, acerca dos povos mais originários.
Historicamente, tratamos de momentos que podem ser ressaltados e que se
vinculam a um tipo de linguagem visual com razões históricas e constituições
estruturais diferenciadas a cada período.
Figura 3 - Arte figurativa de animais.
Fonte: Imagem de André Juarez. Museu Nacional de Antropologia do México.
44
Os antigos egípcios eram tão apaixonados pela vida que intencionavam
manter um espelho da vida na terra, mesmo após a morte (HAMDY; STONE,
2014). As antigas pinturas em paredes, no Egito, são de uma época florescida à
beira do Rio Nilo, há 4 mil anos. As pinturas egípcias antigas eram feitas nos
túmulos dos faraós, portanto, não eram apenas para ser vistas, mas para
embelezar, acompanhar e cuidar do morto. As tumbas subterrâneas ficavam
cobertas de representações coloridas, com comidas, bebidas, rituais e paisagens.
Os faraós são mostrados, por vezes, com seus escravos ao seu redor, para que
pudessem servir e cuidar deles na vida após a morte.
A pintura era realizada de algumas formas: diretamente na superfície; uma
imagem levantada acima do fundo, em relevo; e a pintura cuidadosa, com os
detalhes da imagem; relevo que foi esculpido e é chamado de "relevo afundado";
e as imagens pintadas com um fundo em relevo ao redor delas32 (Figs. 4 e 5).
Figura 4 - Gansos, pintura de 2600 a.C. encontrada em uma tumba no complexo funerário Meibum.
Fonte: Museu do Cairo (imagem 31.6.8).
Figura 5 - Divindade gato adorna a câmara subterrânea da tumba de um famoso artesão - Sennedjem (1300 a.C.).
32Para saber mais, leia WILKINSON, Charle K. Egyptian Wall Paintings. The metropolitan museum of art’s
collection of facsimiles. Catalogue compiled by Marsha Hill. New York: The Metropolitan Museum of Art,
1983.
45
Fonte: Museu do Cairo (imagem 30.4.2).
A pintura que os egípcios usavam era colorida ou tingida com minerais
naturalmente encontrados em sua área e algumas cores eram importadas, como,
por exemplo, o vermelho terra, ocre e amarelo vindo do mineral auripigmento.
As cores favoritas usadas na pintura foram o vermelho, azul, verde, dourado e
preto; mas também utilizaram branco, rosa e cinza. As cores e todos os objetos
encontrados nos túmulos foram preservados devido ao ambiente seco e fresco e
é por isso que podemos vê-los hoje em tons tão claros (Figs. 6 e 7). As cores eram
preparadas com minerais, em um pó fino, e misturadas com uma espécie de
"cola" feita de resíduos animais ou plantas.
Figura 6 - Rekhmire era um antigo egípcio nobre e oficial da 18a dinastia (1475 a.C.) que serviu de Governador da Cidade.
Fonte: Museu do Cairo (imagem 30.4.80).
Figura 7 - Adoração ao Deus-Falcão Ra-harakhty e à Deusa do Oeste.
Área necrópole de Sheikh Abd el-Qurn (1320 a.C.).
46
Fonte: Museu do Cairo (imagem 30.4.31).
Era importante fazer a mistura certa, porque a pintura tinha que não só
ficar nas paredes, como também durar para sempre. Havia diferenças na cor do
tom de pele entre homens e mulheres. Os homens eram representados em um
tom marrom avermelhado mais escuro, para refletir sua vida ao ar livre e as
mulheres tinham em uma cor mais clara, quase amarelo amarronzado para
mostrar que viviam, principalmente, em ambientes fechados ou em local
abrigado. Os artistas egípcios misturavam as cores para mostrar detalhes nas
pinturas mais próximos da vida real. Os deuses também eram pintados e tinham
cores definidas. Por exemplo, o deus Anúbis tinha sua cabeça de chacal pintada
de preto, porque era o deus dos mortos.
47
Um momento ápice de expressão pública do graffiti (graffiti) se estabelece
na Roma Antiga (VIII a.C. a V d.C.), criticado pela elite romana e visto como a
principal comunicação da plebe. Os graffitis e as pichações eram uma marca das
grandes cidades do Império Romano (I a.C. a V d.C.). Na Roma Imperial, no
Coliseu, se presenciava a violência física entre os gladiadores, escravos, e muitos
outros, a matarem-se uns aos outros, enquanto a multidão observava e aplaudia,
mas também se observavam, na porta do anfiteatro oval, frases de incitação à
violência; pichações de apoio ou repúdio ao Império; frases de amor ou de
conotação sexual (Fig.8).
Figura 8 - Inscrição em Pompeia dentro da Casa das Lobas (Prostíbulos). Tema erótico. Sul da Itália onde as cidades foram fundadas pelos gregos.
Fonte: Imagem por Beatriz Abramides (mãe da autora), 2019.
Recentemente, uma descoberta de um modesto graffiti, inscrito em carvão
numa parede, muda a história de Pompeia, e define a data exata em que o
Vesúvio, em erupção, destruiu a cidade romana, assim como Herculano, Stabiles
e Oplontis, no ano 79 da nossa era. O graffiti, recentemente descoberto na Casa
do Jardim, um dos edifícios atualmente escavados em Pompeia data a inscrição:
"XVI K NOV", que significa "o décimo sexto dia antes das calendas de novembro",
ou seja, no dia 17 de outubro. Se a cidade tivesse sido enterrada sob as cinzas do
48
Vesúvio desde 24 de agosto, seu autor não poderia ter escrito esse minúsculo texto
quase dois meses depois33 (Fig. 9).
Figura 9 - Inscrição: "XVI K NOV", que significa "o décimo sexto dia antes das calendas de novembro".
Fonte: Parque Arqueológico em Pompeia.
Originárias do latim, as palavras “graffiti” “inscrições” e “pichação/pixação”
derivam, respectivamente, de graffito, inscriptiones e do pix (piche). Na itália, em
Roma e em Pompeia principia algum tipo de cultura da cidade, e as inscrições
possuíam uma expressão de rebeldia, transgressão e contestação à ordem
estabelecida, ainda que não majoritariamente e, portanto, outras perspectivas
eram também escritas ou desenhadas como formas particulares de comunicação.
A inscrição tanto significa a escrita como a pintura e é por isso que
utilizaremos inscrição, ao longo do texto, com essa definição. A escrita na
superfície (pincel, rolo e, hoje, spray) ou escavada (pedra, prego, estilete, faca); a
33 “Para o especialista em pinturas romanas Alix Barbet, diretor de pesquisa honorário do CNRS, essa descoberta
põe fim a um debate que não deveria mais ter motivo para existir, se não houvesse a teimosia de alguns
‘pompeianistas’ em se agarrar à data de 24 de agosto: ‘Pesquisas recentes já diziam que não era a data certa. [...]’.
Alix Barbet apresenta um outro importante elemento agrícola: ‘Temos provas de que a vindima acabou. Havia
borras de vinho, assim como sementes de uva, e os grandes potes de terracota estavam cheios e selados em duas
casas’. Mas os textos dos agrônomos antigos, Columella bem como Plínio, o Velho, especificam que as colheitas
de uva começava no equinócio de outono - 21 de setembro - e terminavam ao pôr das Plêiades em 11 de novembro.
[...] Outros elementos indicam uma data outonal para o desastre: a presença, nas casas pompeianas, de muitos
braseiros, pouco úteis em agosto, ou as grandes roupas que transportavam alguns habitantes. Portanto, Pompeia
foi enterrada sob as cinzas em 24 de outubro de 79 e não em 24 de agosto”. (Fonte: CNN, grifos do original).
49
gravura ou a pintura. No entanto, na mesma Itália, Francesco Maria Avelino
escreve disegni graffiti, para falar do desenho, ou propriamente, do que ocorre
desde o século XVI como disegno esterno.
Inscrições eram também deixadas pela cidade indicando a orientação de
algum local. Os navios que atracavam em Pompeia, traziam marinheiros de
diversas nacionalidades, assim, graffitis eram inscritos nas paredes e chãos para
simbolizar locais. Como é o exemplo da figura abaixo (Fig 10), em que o desenho
de um membro masculino, em uma pedra no chão, aponta a direção da Casa das
Lobas.
Fig 10 - Inscrição no chão.
Fonte: Imagem fotografada por Beatriz Abramides (mãe da autora), 2019.
50
Se o graffiti escrito e o pixo, hoje, são vistos como destrutivos e feitos por
“vândalos”, isto pode decorrer de uma compreensão de mundo a partir da
modernidade. Anteriormente, pessoas de quase todos os níveis da sociedade
esculpiam graffitis em prédios antigos e isto não era visto como algo a ser
condenado.
Durante a Idade Média, principalmente entre os séculos XII e XV, muitas
igrejas e catedrais medievais em toda a Europa ocidental foram cobertas com
inscrições escavadas34. Um terço das marcas encontradas, que hoje são conhecidas
como marcas de bruxas, eram consideradas de proteção ritual contra as
influências do mal (Fig 11).
Fig 11 - A e B símbolos inscritos em igrejas medievais conhecidas como marcas de bruxas.
Fonte: Champion (2015).
A maior parte de inscrições é de desenhos sendo apenas 5% escritos35, a
raridade é, em parte, resultado das baixas taxas de alfabetização. Muitas imagens
eram grafadas sobre fé, espiritualidade; mas também as vivências do cotidiano da
sociedade agrícola, camponesa e marítima representadas com os moinhos de
vento, mãos, pessoas, cavalos, cavaleiros, gansos e barcos, feras e dragões.
Os demônios também aparecem (Fig 12), enquanto a igreja medieval era
formalmente adornada com anjos e demônios, quando se trata do graffiti nas
paredes, há apenas demônios - muitas dúzias deles, do grotesco ao cômico,
dançando através da pedra livre de anjos.
Fig 12 - O lobinho: belzebu, mefistófeles, tinhoso.
34Os maçons medievais, as pessoas que construíram esses monumentos, deixaram as marcas mais antigas
encontradas em qualquer igreja ou catedral medieval. A história tradicional é que cada pedreiro individual teria
sua própria marca pessoal, que ele inscreveria onde quer que trabalhasse. Essas marcas angulares, conhecidas hoje
como "marcas de pedreiro", atuaram como uma forma de controle de qualidade. Eles também permitiram que o
"mestre pedreiro", que trabalhava como arquiteto e pagador, calculasse quanto cada um de seus operários deveria
ser pago. Os maçons continuam hoje com essa velha prática de marcar seu trabalho, mas suas marcas são mais
discretas, escondidas entre pedras e cantos escuros.. 35 Para saber mais leia: CHAMPION, Matthew. Medieval Graffiti: The Lost Voices of England's Churches.
England:Ebury Press, 2015.
51
Fonte: Champion (2015).
Anjos eram os seres celestiais, adornavam vidros e bancos esculpidos. Eles
enchiam as páginas da Bíblia, mas não se esperava que fizessem parte da vida das
pessoas no mundo. Demônios, por outro lado, eram muito reais mesmo; são eles
que trazem as doenças, as pragas, desequilibram a psique. Demônios eram muito
reais e temidos. Esse medo levou as pessoas a esculpir suas contra-maldições nas
paredes da igreja paroquial
A maioria dos documentos históricos da época medieval não fala da maior
parte da população: a plebe e mesmo os documentos em que aparecem os plebeus
como livros contábeis, foram escritos e compilados por sacerdotes, escribas e
advogados da elite, ou sejam sem lugar de fala das classes subalternizadas. Aliás,
como têm sido na história da luta de classes. A voz do plebeu medieval, a vasta
maioria do povo medieval - estava em grande parte perdida. As evidências nas
paredes sugerem que elas foram feitas por todos: desde o senhor da mansão e do
pároco, até o mais humilde dos plebeus mas o estudo das inscrições antigas
começam a contar a vida desses plebeus e não apenas o mundos dos cavaleiros,
príncipes e reis.
52
A pintura nas paredes é uma forma de comunicação coletiva; as paredes
serviram para ilustrar as lições religiosas da igreja e incorporar o novo
humanismo do período do Renascimento, por meio das inovações de
perspectivas e da anatomia naturalista.
A Criação de Adão é um detalhe que está localizado no teto da Capela
Sistina, no Vaticano, sede da Igreja Católica Apostólica Romana. Compõe as cenas
das pinturas da criação e mostra o exato momento em que Adão recebe a energia
da vida como dádiva de Deus. Parece ser um momento fundamental na temática
religiosa católica (Fig. 13).
Figura 13 36 - A Criação de Adão, de Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni. Pintura no teto da Capela Sistina (1508-1512).
O tempo do renascimento, de Lutero, Shakespeare, Leonardo da Vinci e
Michelangelo Buonarroti, expressa renovação acadêmica, intelectual e artística37.
Ali na pintura, vemos a criação do mundo por Deus; a narrativa da origem da
36A Criação de Adão compõe um conjunto de pinturas de cenas bíblicas pintadas por Michelangelo no teto da
Capela Sistina, entre os anos de 1508 e 1510, a pedido do papa Júlio II. A narrativa do momento em que Deus
cria o primeiro homem, Adão.
37Curioso lembrar que, no Renascimento, o grande ícone da arte era Rafael, enquanto hoje é Michelangelo.
53
gênese, que aponta para o futuro da humanidade. O mundo em que o homem é
o centro de tudo; o poder criador divino cria o mundo da racionalidade. Ou seria
a criação de Adão, o homem que cria Deus, o conceito de que o humano é tão
sagrado que ele tem Deus?
Deus não pode ter uma forma senão ser abstração do pensamento, mas a
pintura necessita de representação da forma e sem poder evitar o
antropomorfismo38, a transforma em forma humana, mas, então, esse Deus pai
figurado tal qual indivíduo humano, somente poderia ser Jesus Cristo - o salvador.
Não tal qual A Sagrada Família ou a Paixão de Cristo, que são histórias míticas, ou
místicas, transformadas em pintura. Michelangelo era anatomista e dissecava
corpos para compreender seu funcionamento. Corpos admiráveis foram criados,
a ponto de parecerem vivos. Se lermos da esquerda para a direita, o Adão, criado
por ele, estende seu braço aos céus e extrai, do alto <de seu cérebro>, a ideia de
Deus. Deus que recria a ideia na imagem e semelhança do homem.
A luta pela liberação da arte contra a sua submissão à religião é um fato
fundamental de sua origem e desligamento. Na relação de sua transcendência e
da transcendência humana, a arte se abre pouco a pouco para sua independência.
A elevação ao humano-genérico se realiza na mediação da consciência, no
movimento da singularidade em direção à universalidade; significa a
sociabilidade humanizada no processo de vir-a-ser para si e para o outro.
Já no século passado, após a revolução mexicana, de 1910 a 1917, os murais
serviram de veículo artístico para a educação sobre os ideias da nova sociedade e
as virtudes e demônios do passado. Uma forma de criar uma nova consciência
38Uma forma de pensamento que atribui características ou aspectos humanos a animais, deuses, elementos da
natureza e constituintes da realidade em geral.
54
nacional. O valores da classe trabalhadora, aí incluídos o operariado, setores
médios, assalariados/as, trabalhadoras/es liberais, contra os valores das regras do
capitalismo, e clérigos. Desde essa época, o muralismo contemporâneo têm sido
identificado com os pobres, a revolução, e o comunismo.
Diego Rivera foi o expoente do muralismo mexicano; maior pintor de
paredes do mundo, ao menos até o século passado. Era comunista, membro de
um grupo político de pessoas que se contrapunha à propriedade privada dos
meios de produção e lutava pela dissolução do Estado e do Capital. Em sua
autobiografia, disse: “years before [while studying art in Paris], i had envisioned
the mural as the art form of the industrial society of the future”39.
Ele migra por um período para os EUA, na Califórnia, "o passo
intermediário ideal entre o México e os Estados Unidos", mas era Manhattan, a
fortaleza do capitalismo, que o atraía com mais força. Nesse ponto, o artista já
havia sido expulso do partido comunista mexicano, pois o consideravam
renegado, após exposição no MOMA NY. Here and there40 vemos algumas
posturas autoritárias de partidos comunistas. E isso, imagine, Rivera pintara
murais com propaganda para o partido. O que acontece, a seguir, ao mural de
Detroit é deveras ambíguo. Diego é convidado a pintar um grande mural no
Rockefeller Center41 e o tema seria: Man at the Crossroads Looking with hope and
High Vision to the Choosing of a New Better Future (Homem na encruzilhada
olhando com esperanças e amplitude para a escolha de um futuro novo e melhor)
(Fig. 14). Não foram os Rockefellers que decidiram sobre a pintura, mas o
arquiteto que trabalhava na parte construtiva da empresa; no entanto, estavam
cientes da posição política do artista.
O mural foi acertado para estar pronto em 1o de maio, dia do trabalhador,
e Diego aprontou uma das boas: o mural, com o tema do homem olhando para o
futuro com a esperança de um mundo melhor, foi feito - Um mural com um
trabalhador no centro de controle de uma máquina. No lado esquerdo, o lado
capitalista, um clube, um campo de batalha e um grupo de policiais controlando
uma mobilização de desempregados; do lado direito, a cena socialista, com atletas
39“Anos antes (enquanto estudava arte em Paris), eu imaginara o mural como a forma de arte da sociedade
industrial do futuro.” Veja-se em FOARD, Scheila Wood; PIETRAS, Jamie. The great Hispanic Heritage: Diego
Rivera. 2nd Edition. New York: Infobase Publishing, 2010. 40Aqui e lá. 41 Rivera já havia caricaturado o Rockfeller de maneira crítica em um conhecido mural da Cidade do México.
55
mulheres no estádio, celebração do dia do trabalho e aliados do futuro dando as
mãos: americanos, africanos, russos e o líder comunista, Lênin.
Os Rockefellers pediram para que ele substituísse a cara de Lênin por
alguém desconhecido. Mas Diego preferiu ver o mural destruído; ele até sugeriu
que trocaria a imagem americana por uma cena de Abraham Lincoln, que aboliu
a escravidão, mas não retiraria Lênin. Bem, o mural foi enviado para o Museu de
Arte Moderna e, no ano seguinte, totalmente destruído.
Figura 14 - Homem na encruzilhada olhando com esperanças e amplitude para a
escolha de um futuro novo e melhor.
Fonte: Livro - The great Hispanic Heritage.
Rivera voltou ao México meses depois, quando o dinheiro acabou. Estava
desolado, mas decidido a continuar pintando. “For i am not merely an ‘artist’ but
a man performing his biological function of producing paintings, just as a tree
produces flowers and fruits”42. (RIVERA, In: MARNHAM, 2010, p. 1). Diego tinha
paixão por indústria, e durante a Grande Depressão, em 1933, nos EUA, foi
convidado pela Ford Motor Company para criar um mural gigante com a
figuração do local de trabalho naquela indústria.
O muralismo combina os estudos acadêmicos europeus com os
ensinamentos indígenas, um contexto totalmente latino-americano. Em um
tempo de crescente debate sobre a arte revolucionária, nasce o movimento
mexicano, também chamado de Mexican Mural Renaissance.
42“Não sou meramente um ‘artista’ mas um homem performando sua função biológica de produzir pinturas, assim
como a árvore produz flores e frutas” (L.T.).
56
David Alfaro Siqueiros43 lançou o manifesto já sob influência de Rivera, e
argumenta que uma forma de fortalecer a arte é trazer valores da pintura
possivelmente perdidos e endossar com novos valores. Por exemplo, entender os
incríveis recursos humanos da arte indígena, de outros povos originários ou das
artes primitivas primordiais de tempos longínquos. Os muralistas recuperam o
trabalho de pinturas e esculturas de habitantes anciões Mayas, Incas, Zapoteca,
Azteca. Siqueiros defendia que a proximidade climática desses povos ajudaria a
assimilar a vitalidade de seus trabalhos e clama por uma produção de arte
universal.
O muralismo dirigia-se à história insurgente, ao presente da luta de classes
e ao futuro possível de sonhos e conquistas dos trabalhadores. Para os muralistas,
a arte era uma arma, a forma mural, de grandes dimensões e cores vivas, a arte
acessível a todas as pessoas. Era um tempo de ascensão do realismo socialista,
parte artística do processo revolucionário socialista, que, posteriormente, foi
tomado pelo poder burocrata e autoritário de Stalin. O realismo socialista, que
fortemente influencia o muralismo, pressupõe que a arte deve se espraiar por
toda a classe trabalhadora - a arte “pertence ao povo” e reflete um projeto
“vanguardista” de recondução da arte à práxis da vida.
O renascimento do muralismo pós revolução mexicana cria as bases
estilísticas e de inovação para a moderna cultura do mural. Nos EUA,
principalmente pelos murais sociais realistas, durante o New Deal, mais de 2.500
murais foram pintados com financiamento governamental. Quando se aproxima
o período da II Guerra Mundial, no entanto, o financiamento de arte social realista
é identificado com o totalitarismo soviético, enquanto o abstracionismo
expressionista, principalmente o de NY, como símbolo de liberdade individual
nos círculos de vanguarda. No início dos anos 1960, apenas a arte abstrata,
geométrica endossada pela crítica curatorial, era considerada arte.
Epopeia do Povo Mexicano, ou História do México através dos Séculos, é
um afresco do pintor mexicano Diego Rivera realizado na escadaria principal do
Palácio Nacional, entre 1929 e 1935 (Fig. 15).
43Em 1940, Rivera e Siqueiros estavam na ativa nos EUA. Durante 13 anos, a intermitente jornada de trabalho
tinha um sentido econômico pessoal, pela total falta de mercado no México para vender as obras. A primeira
galeria privada de arte mexicana abriu em 1935 e tinha os norte-americanos entre seus principais clientes.
57
Figura 15 - Epopeia do Povo Mexicano, ou História do México através dos Séculos, afresco de Diego Rivera.
Fonte: Livro - The great Hispanic Heritage.
Durante os anos 1960, uma nova forma de propaganda política surgiu no
Chile, que anos mais tarde serviria para trazer, de certa forma, arte àqueles que
não tiveram acesso a ela. A história muralista no Chile caminha da propaganda
política à arte política. Embora as primeiras paredes tenham sido pintadas em
58
1963, foi em 1968 que nasceu a primeira brigada muralista, a Brigada Ramona
Parra (BRP) (Fig. 16), cujo nome homenageia um jovem militante comunista
morto em manifestação realizada em Santiago em 1946. A BRP e o Catalão Elmo,
foram os pioneiros nas brigadas.44 A missão principal dos jovens que tomaram as
ruas era a de agitação e propaganda comunista.
Figura 16 – Manifestação da Brigada Ramona Parra (1972).
Fonte: Video - Brigada Ramona Parra - Rayando en la Clandestinidad45.
A BRP era formada por jovens militantes e a maioria dos estudantes
pintavam apenas à noite e com o aperfeiçoamento da velocidade, organização e
técnica, podiam em dois minutos e meio pintar uma parede de 30 metros. Cada
pequena brigada era composta de não mais do que 25 brigadistas, divididos em
traçadores, âncoras, enchedoras e máquinas de filetagem.
Alguns pesquisadores reconhecidos apontam dois marcos que podem ser
considerados como fundamentais para esse agrupamento:o Sexto Congresso da
Juventude Comunista do Chile, em 1968, da qual emanou-se a necessidade de
articular grupos dedicados à elaboração de propaganda; e a Marcha pelo Vietnã,
realizada em 1969, que contou com a participação de cerca de duas mil pessoas
que viajaram de Valparaíso a Santiago para exigir a libertação do país asiático.
Nessa demonstração, convocada por um dos fundadores das brigadas,
Danilo Bahamondes, os manifestantes foram em frente para realizar várias
intervenções gráficas na estrada que liga o porto à capital. No início, o trabalho
dos grupos concentra-se no desenvolvimento da quarta candidatura presidencial
de Salvador Allende e propõe a coligação com slogans pela Unidade Popular. Após
44 Os apontamentos históricos sobre as brigadas chilenas estão pautados em: DALMÁS, Carine. 2006. Brigadas
muralistas e cartazes de propaganda da experiência chilena (1970-1973). Tese (Doutorado em História Social) -
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2006. 45 https://www.youtube.com/watch?v=sTMnEUcFWnM
59
a eleição de Allende, em 1970, as brigadas fazem desenhos coloridos e imagens
representativas da realidade dos trabalhadores, da família, da geografia do país,
dentre outros temas pictóricos, como forma de comunicar e celebrar a gestão
realizada pelo governo da época.
Como resultado dessas motivações, grandes murais foram feitos, os quais,
além de intervirem no espaço público, evocaram a experiência latino-americana
do muralismo. Sem dúvida, essas manifestações gráficas tornaram-se parte
importante do imaginário cultural da época.
Imediatamente após o golpe de Estado de 1973, as intervenções dessas
brigadas foram apagadas e vários de seus membros vítimas de perseguição
política. Por causa das dificuldades, que significaram o estabelecimento de uma
ditadura militar, o trabalho das brigadas foi limitado quase exclusivamente a
produções gráficas de pequeno formato, como folhetos, panfletos, cartazes, entre
outros, que circulavam dentro de um subterrâneo espaço limitado.
No final dos anos 1980, na véspera da realização do plebiscito de 1988, que
marcou o retorno à democracia, as brigadas retomam o espaço urbano. Daquela
época em diante, a BRP desenvolve um trabalho sustentado em diferentes
localidades do país. No seio da Juventude Comunista, essa brigada tem até hoje a
missão de fazer publicidade política a partir da criação de um discurso oposto ao
discurso dominante.
Figura 17 - Extramural Activity, 2013.
Fonte: Extramural Activity.
O Muro de Berlim (1961- 1989), um dos maiores símbolos da Guerra Fria,
simbolizava fisicamente a divisão ideológica da Alemanha Ocidental (capitalista)
60
e a Oriental (socialista), integrante do bloco da extinta União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS).
Em 1984, Thierry Noir torna-se o primeiro artista a pintar ilegalmente o
Muro de Berlim. Esse ato rebelde inspirou outros artistas e, nos cinco anos
seguintes, o Muro foi coberto com camadas de obras de arte e imagens, criando
uma arte de protesto única, uma das maiores obras de arte pública e de rua do
século XX. Mais do que qualquer outro indivíduo, Thierry Noir deixou um
testemunho duradouro do poder do protesto artístico em nome da liberdade, ele
tinha o intuito de colocar a arte nas ruas e não somente fechada dentro dos
museus (Fig. 18).
Figura 18 - Muro de Berlim, 1985.
Fonte © Thierry Noir
A inevitável crise do Leste Europeu, emblematicamente simbolizada na
queda do Muro de Berlim, em 1989, envolve o chamado “campo socialista” no
todo. Evidencia um mote sustentado pelos apologistas conservadores de direita,
de propagação e disseminação ideológica do “fim da história” e do triunfo do
capitalismo como única alternativa para a humanidade. E você acha mesmo
possível apenas uma saída? O fortalecimento da ideologia do “pensamento único”,
sob a lógica do grande capital, volta-se para a sociedade da liberdade fundada na
lógica do mercado em detrimento da lógica dos direitos sociais.
Figura 19 - Meu Deus, ajude-me sobreviver a este amor mortal (trad.).
61
Artista Dmitri Vrubel (1990).46
Fonte: Imagem por Juliana Abramides, 2013.
Em outubro de 1979 comemorava-se o trigésimo aniversário da Alemanha
Oriental, o líder alemão Erich Honecker (imagem à direita) recebia os
“camaradas" socialistas. Quando o estadista Leonid Brezhnev chegou, ao se
cumprimentarem, os dois se abraçam, trocam tapinhas nas costas e um beijo
fraternal na boca, um tradicional cumprimento entre líderes socialistas, em casos
de profunda admiração, respeito e camaradagem mútua entre os líderes. Dimitri
Vrubel reproduziu a cena no graffiti (Fig. 19) do lado oriental de um pedaço
remanescente do Muro de Berlim.
46 Em um dos mais conhecidos graffitis do muro de Berlim, figura Leonid Brezhnev e Erich Honecker num fraterno
enlace, reproduzida a partir de uma fotografia capturada no 30o aniversário de celebração da fundação da República
Democrática Germânica.
62
Veremos, nas raízes da retomada de uso dos grafismos em locais públicos,
a expressão de tendências políticas e ideológicas que se manifestam pela
inconformidade com o poderio, a burocracia, o centralismo estatal, que se
materializam na militância pela reforma educacional, e culmina com a expressiva
greve dos trabalhadores em 1968, em Paris/França. Na revolta estudantil de 1968,
em Paris, o spray foi usado como forma de protesto contra as instituições
universitárias e manifestações pela liberdade de expressão (Fig. 20).
Figura 20 - “Sejam realistas, exijam o impossível”.
Fonte: razãoinadequada.com
Naquele maio, a pichação escrita em Paris torna-se arma de reivindicação
para comunicação, agitação e afirmação da revolta estudantil. Essa foi a primeira
manifestação histórica de escritos urbanos de importância no século XX.
Em Paris, os protestos de estudantes universitários e secundaristas
reivindicavam a reformulação dos currículos e a reforma do ensino, bem como
se contrapunham ao governo reacionário de Charles de Gaulle e à política
63
hegemônica do capitalismo no plano internacional. Balões pintados invadiram as
estações de metrô, ruas e universidades de Paris, com palavras de ordem
antiautoritárias; barricadas com até três metros de altura foram erguidas no
tradicional bairro do Quartier Latin. Maio de 1968 perpetuou as palavras de
ordem: é proibido proibir, escritas em muros de toda a cidade de Paris,
reverberada no Brasil na voz de Caetano Veloso, no início da Tropicália47.
Ali, os jovens apropriam-se da superfície da cidade enquanto suporte para
os protestos e a disseminação de ideais revolucionários. O destino ético da
comunicação estudantil volta-se à destruição da sociedade espetacular mercantil.
A poesia francesa estava nos muros da Sorbonne, que se transformaram em
painéis fundamentais de comunicação e disseminação dos ideais revolucionários.
Cada período tem a cultura que se vincula a ele, e maio-junho de 1968
apresenta características de contradições sociopolíticas que irrompe nas
mobilizações acadêmicas com questões filosóficas, intelectuais e estruturais. Em
maio de 1968, a guerrilha urbana marca os muros da universidade com palavras-
conceito; a visão ideológica está definida.
Algumas frases, em Paris, eram citações de autores e, outras, criações
anônimas que demonstravam o espírito de luta do movimento. As frases
conhecidas pichadas eram:
❖ “Abaixo ao burguês”;
❖ “Sejamos realistas, exijamos o impossível”;
❖ “Você está sendo intoxicado: rádio, televisão, jornal, mentira”;
❖ “A liberdade do outro amplia a minha ao infinito (Bakunin)”;
❖ “Abrir as portas dos asilos, das prisões e outros liceus”;
❖ “Insurreição pelo signo”;
❖ “É proibido proibir: lei de 10 de maio de 1968”.
Tal qual os cartazes de informação e propaganda e murais das brigadas
chilenas, as centenas de cartazes produzidos em Paris faziam parte de um
contexto de levante popular. Lá, a unificação popular tinha um direcionamento
partidário e de lutas por direitos sociais; aqui, a luta travada defende um novo
47Movimento de contracultura na música popular brasileira com influências musicais da bossa nova, do baião, do
rock inglês dos Beatles; influências plásticas de Andy Warhol e Hélio Oiticica e do cinema novo, principalmente
da vertente criada por Glauber Rocha. Para aprofundar-se no mundo tropicalista, leia Verdade Tropical, de Caetano
Veloso (2012), e Tropicália - uma Revolução na Cultura Brasileira, de Carlos Basualdo (2007)
64
mundo e luta pela unificação dos trabalhadores e estudantes. Os ateliês
produziram muito e com temáticas constantes como: a repressão policial; a
alienação promovida pelos meios de comunicação; a amizade entre os rebeldes e
a unificação. Os cartazes eram majoritariamente feitos com técnicas de silk-screen
ou serigrafia, método muito utilizado pelos construtivistas russos48 (Fig 21 a 25).
Figura 21 - La beauté - A Beleza Está nas Ruas.
Fig. 22 - Poder Popular. Fig. 23 - A polícia está nas belas artes. As belas artes estão nas ruas.
48 Para saber mais sobre 1968, leia: Como Incendiar um País, Editora Veneta.
65
Fig. 24 - Universidade Popular, Sim. Fig. 25 - Não à burocracia.
Fonte: Imagens reproduzidas de: Como Incendiar um País, Editora Veneta.
O movimento hip-hop ganha força, primeiro nos EUA, a partir da década
de 1970, enquanto uma mistura heterogênea de culturas africanas que vieram da
66
diáspora, espalhando-se em seguida para outras partes do mundo, inclusive o
Brasil desde meados dos anos 80. Marcado sobretudo pelo posicionamento
contestatório às desigualdades sociais e raciais, utiliza-se de gestos, escritas,
imagens, etc., apoiando-se em quatro figuras artísticas: o/a mestre/a de cerimônia
(MC), o/a disc-jóquei (DJ), o/a dançarino/a (b. boy/b. girl) e o/a grafiteiro/a. Sua
face mais expressiva, contudo, encontra-se no rap, poesia cantada que nasce da
junção do MC e do DJ. Além disso, o hip-hop revela-se como um espaço de uso
social da linguagem, envolvendo, desse modo, práticas de letramento.
O hip-hop é permeado por um potencial social que difunde a ideia de
emancipação a partir da manifestação artística do rap, do break e do graffiti. Desde
sua origem, o movimento sociocultural vem permeado de crítica social, luta
contestatória e pela emancipação negra. Advindo de guetos americanos e
praticado em comunidades periféricas, o hip-hop adquire um poder simbólico
global, que aglutina jovens em diferentes países, guardadas as particularidades
socioculturais, que apresentam o mesmo determinante estrutural, a sociedade de
classes, produtora da desigualdade, exploração, opressão e dominação social,
étnica, racial, de gênero, etária e de orientação sexual.
O hip-hop, enquanto estratégia contemporânea de enfrentamento à
desigualdade e exclusão social de jovens espalhados pelo mundo, e que se
presentifica desde a mundialização financeira e cultural do capital, é permeado
por um potencial social a partir da manifestação artística do rap, do break49 e do
graffiti. Desde sua origem, o movimento vem permeado de crítica social, luta
contestatória e pela emancipação negra. Advindo e praticado majoritária e
originariamente em comunidades periféricas, por jovens pauperizados, o hip-hop
adquire um poder simbólico global ao aglutinar jovens em diferentes países, a
partir de suas particularidades sócio-históricas e culturais, mas que apresentam o
mesmo determinante estrutural, a sociedade de classes, produtora da
desigualdade, da exploração, da opressão e dominação nas instâncias social,
étnica, racial, de gênero, etária e de orientação sexual.
O movimento é inerentemente constituído de linguagem política; usa a
comunicação como uma arma que provoca as pessoas e as faz pensar. Em um
49Ao contrário do que a maioria das pessoas pode pensar, no Brasil, o hip-hop desponta por meio da dança, do
break, Um dos responsáveis por sua difusão foi o b.boy (dançarino do break) Nelson Triunfo. Para saber mais
sobre o assunto, leia Hip Hop: a Periferia Grita.
67
passado recente, o hip-hop parecia ser passageiro; manifestação chata ou
barulhenta; uma algazarra da juventude festiva; mas, nos últimos 35 anos, a
cultura hip-hop emergiu da subcultura marginal para tornar-se fenômeno que
satura o mainstream (ditado pelo status quo) e tem impacto global na formação de
opinião e pensamento. O hip-hop faz uma longa viagem do Bronx, bairro
periférico de NY, constituído majoritariamente por negros e latinos pobres, para
o mundo. Segundo Todd Boyd (2002), a larga cultura que rodeia o hip-hop é ativa
e militante e emerge do contexto único afro-americano, que tal qual os
antecessores blues, o jazz e o soul, é uma cultura que dá a voz aos mais
empobrecidos na escalada social americana. Segue o autor:
Though the roots of the culture are informed by the African American oral tradition, as well as the lived conditions of poor Black and Latino youth in postindustrial New York, hip hop has been able to expand from this initial base, and has become, in my mind, a dominant generational voice throughout the world, be they gangbangers in South Central Los Angeles, Algerian immigrants in Paris, or blackface Japanese youth bouncing to the phattest track in Tokyo's Roppongi district, not to mention the proverbial suburban White teenagers or rural "rednecks" who also constitute a large segment of hip hop's consumer base. (BOYD, T., 2002, p. 15).
Embora as raízes da cultura sejam informadas pela tradição oral afro-americana, bem como pelas condições vividas pelos jovens negros e latinos pobres na Nova York pós-industrial, o hip-hop conseguiu se expandir a partir dessa base inicial, e se tornou, na minha mente, uma voz geracional dominante em todo o mundo, seja gangbangers (membro de um grupo de jovens violentos N.E.) no centro-sul de Los Angeles; imigrantes argelinos, em Paris; ou jovens japoneses negros saltando para a pista, no distrito de Roppongi, em Tóquio, para não mencionar os proverbiais adolescentes brancos ou rurais rednecks (pescoços vermelhos <lit> caipiras N.E.) que também constituem um grande segmento da base de consumidores do hip-hop.” (BOYD, T., 2002, p. 15).
A segregação dos guetos no bairro do Harlem e do sul do Bronx produziu
as condições para que o hip-hop surgisse ali com potencialidade. Nos EUA, na
década de 1960, prolifera-se a discussão sobre igualdade racial e cresce o moderno
movimento por direitos civis dos afro-americanos (1955 a 1968): Martin Luther
King50, Malcolm X, Panteras Negras, com propostas distintas, mas com o objetivo
50 Curiosidade: Martin Luther King leu e foi influenciado por Henry David Thoreau.
68
da luta para acabar com a segregação racial e ampliar os direitos da população
afro-americana51.
Em um de seus inúmeros discursos, Malcolm X diz:
It’s always very easy for us to be ready to move and ready to talk and ready to act, but unless we get down into the heart of the ghetto and begin to deal with the problem of jobs, schools, and the other basic questions, we are going to be unable to deal with any revolutionary perspective, or with any revolution for that matter. (MALCOLM X. The Worldwide Revolution. December 13, 1964).52
É sempre fácil estarmos prontos para agir e conversar mas a menos que adentramos o coração do gueto e comecemos a lidar com o problema de empregos, escolas e outras questões básicas, nós seremos incapazes de lidar com qualquer perspectiva revolucionária, ou com qualquer revolução. (MALCOLM X. A Revolução Mundial. 13 de dezembro, 1964).
Afrika Bambaataa, compositor, produtor e um dos criadores do
movimento e que já fora de gangues buscou a pacificação das disputas e juntou as
lideranças das gangues do Bronx e formou a Zulu Nation. O Dj e produtor criou
as bases do miami bass e do freestyle, além de ser o responsável pelo nome dado ao
movimento.
Na década de 1980 e início dos anos 1990, rappers escreveram letras
politizadas em reação às medidas políticas e econômicas, são canções como Fight
the Power, de Public Enemy; Who Protect us from You”, de Boogie Down; Sound
of da Police, de Krs-one; Raise the Flag, de X-clan; Panther Power, de Paris.
Músicas do gueto, protesto ou guerrilha (o nome do álbum de Paris, de 1994, é
Guerrilha Funk). O que demonstra uma emergência e insurgência de um hip-hop
inspirado por movimentos políticos. A busca das raízes africanas, a denúncia do
racismo, a rebelião contra as perseguições e brutalidades policiais. Por todo esse
período, o rap se aproxima da juventude desprovida de direitos muito mais do
que a igreja ou as organizações por direitos civis.
O sucesso comercial do rap consciente ajuda a incentivar o surgimento do
“raptivista” (rapper ativista). O que se passa é que a mídia captura e divulga essa
nova onda de jovens que detém a palavra e se posicionam como liderança, após a
geração que luta por direitos civis como artistas rappers e não enquanto líderes
políticos.
51Todd Boyd, no livro The New H.N.I.C.: The Death of Civil Rights and the Reign of Hip-Hop, sugere que black
power fez o que, posteriormente, o hip-hop continuou, ou seja, afastar-se do sentimento passivo do sofrimento. 52 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=M2E5IkJbEA4. Acesso em: 14 mar. 2019.
69
Sister Souljah escreve o rap The Hate that Hate Produced, em que diz: “Se
você tem algo a dizer fale e com autoridade, se não saia fora e fique quieto, temos
o poder de dizer a verdade e o que for necessário, de fazer o que deve ser feito.
[...] Eu sou africana primeiro”. Ela ganha a atenção nacional desde o início de 1990
e Bill Clinton, à época, retira a fala de Souljah de contexto e diz que ela está
advogando por violência contra a população branca.
É claro que a luxúria em torno da fama que assola a sociedade americana
imbrica no paradoxo entre ser liderança e ser disco de ouro e superstar, ao mesmo
tempo, o que vem se discutindo é que, em si, o hip-hop, sendo primordial e
originariamente uma expressão cultural formada com atitudes, valores, objetivos
e práticas da comunidade afro-americana, não tem, sozinho, a função de
impulsionar um movimento político ao mesmo tempo em que pode atuar na
esfera da conscientização. No conjunto de ações culturais, políticas e econômicas,
em estratégia pelos direitos de negros e latinos, o hip-hop se enquadra no
movimento pós direitos civis e, como diz Harold Cruse (1984), o movimento deve
ser combinado para ser bem-sucedido.
Sem romantizar o passado, é evidente que os jovens americanos negros e
hispânicos se organizaram em diversas instâncias na luta por direitos civis e
sociais e muitos morreram em tais batalhas. Os Panteras Negras, em 1969, tinham
uma plataforma com dez pontos estratégicos a serem conquistados. A geração hip-
hop, hoje, não tem uma organização nacional que promova o empoderamento53
negro com linhas estratégicas ou organizações engajadas ativa e legalmente para
superar as políticas públicas que afetam a vida dos negros americanos (BYNOE,
2004).
Mas, de que maneira, os ativistas, no hip-hop, demonstram que estão firmes
em práticas de incentivo às reparações históricas em que cada geração descobre a
sua missão (FANON, 1963) ? Então, o que leva essa geração à frente? É inegável o
potencial da disseminação e do diálogo sobre a constituição de cultura, mas há
impacto nas políticas e nos debates públicos? Não cabe, aqui, estudar, mas
reafirmar o papel da cultura no processo de conscientização e mediação de
53Aqui compreendemos a importância de empoderar-se com o intuito de a valoração vir acompanhada do
enfrentamento e também de questionamento do status quo e de um modo de sociabilidade. Parece ser ilusória a
ideologia da social-democracia de que é possível empoderar-se mediante a ofensiva neonazista - em que os mais
prejudicados são os negros e a comunidade LGBTQIA+, e da ofensiva do capital, que amplia a exploração,
prejudicando negros, imigrantes e mulheres.
70
conteúdos políticos, quando o rap e toda a cultura hip-hop, em todas as suas
vertentes, falam de desespero e niilismo, mas também de esperança e
empoderamento para que os jovens negros busquem um modo de vida, uma
profissão, ou mesmo uma forma política de justiça, reparação e igualdade étnico-
racial.
Paradoxalmente, esse entendimento de estética urbana de conscientização
também pode levar a imaginar como mudar o mundo, ou mesmo incentivar
formas retrógradas e de manutenção do status quo, quando boa parte de suas
manifestações, fundamentalmente quando falamos do rap, se referem e afirmam
a misoginia, a ofensa gratuita, ou trazem mensagens de ostentação ou puramente
materiais.
No Brasil, o hip-hop54 constitui-se enquanto movimento social “organizado
pelos jovens afro-brasileiros como resposta ao abandono social, à pobreza e ao
racismo” (AMARAL; CARRIL, 2015, p. 82). A juventude identifica-se com as
necessidades sócio-políticas estadunidense, principalmente pelo fator de
divulgação massificada da cultura pop e, hoje, fundamentalmente, o rap encontra-
se contraditoriamente nessa cultura. Interessa-nos ressaltar que, tendo em vista a
marginalidade racial e de classe brasileira, aqui, o hip-hop apresenta uma
preponderância principal de continuidade ao ativismo contra-hegemônico.
Desde meados da década de 80, principiado como um movimento no
centro velho de São Paulo e depois espalhado por toda a metrópole, desde sempre
por juventudes urbanas, na maioria, de negras/os e periféricas/os, o hip-hop no
Brasil combina e recombina as bases da cultura composta dos b-girls e b-boys na
dança, DK’s nas pick-ups, MC’s na poesia e grafitagem visual.
A luta cotidiana de desnaturalizar os preconceitos e enraizar políticas
necessárias para a melhoria de vida é conteúdo constante desta cultura urbana
enquanto espaço de afirmação e questionamento, quebra de padrões e criação de
novas narrativas. Estudiosa da cultura, a cientista social e professora Ana Lúcia
Souza55, considera que o Hip-hop é uma escola, ela diz:
Hip-hop é escola que consegue fazer o que a escola oficial ainda não sabe porque ignora as demandas da juventude, ignora as origens do Brasil, ignora a forΩça política e cultural das gentes que
54Apesar de fundamental, o assunto não é específico, na tese, assim sugerimos a leitura do livro organizado por
Mônica do Amaral e Lourdes Carril: O Hip-hop e as Diásporas Africanas na Modernidade: Uma Discussão
Contemporânea sobre Cultura e Educação. 55Doutora em linguística com a tese defendida na Unicamp: Letramentos de Reexistência: Culturas e Identidades
no Movimento Hip-Hop, 2009.
71
todos os dias enfrentam a beleza e a brutalidade do cotidiano. Na escola, nos corpos que lá estão, pode-se perceber a cultura Hip-Hop em movimento - indícios que mostram crianças e jovens dizendo de arte, história, sustentando a estética que positiva ser negro e negra e chamando-a para suas identidades. MAURO, 2016, p. 91).
A casa hip-hop56 é um exemplo de local comunitário e educativo de
reprodução da cultura hip-hop, localizada na periferia de Diadema, em São Paulo,
fundada pelo afro-brasileiro King Nino Brown, apresenta influência no
movimento negro americano. Desde 2002, o mesmo fundador forma a Nação
Zulu Brasil (após contato com Afrika Bambaataa em 1994), no intuito de ensinar,
no centro comunitário, os elementos da cultura e estimular a resistência negra nas
américas.
O rap nacional mantém um impulso de afirmação da consciência racial e
desigualdade social, contudo, alguns grupos ainda enfrentam a reprodução da
opressão de gênero, facilmente verificada em letras racistas. O Racionais MC’s é
um exemplo de grupo, nesses termos, que hoje em dia vem repensando a atitude
de objetificação da mulher, ao mesmo tempo, um dos grupos mais populares e
que, mesmo considerado famoso, ainda fala a voz da periferia, e mantém
identidade com seus territórios de origem. Não nos cabe trabalhar a
particularidade do rap, mas lembramos de uma figura ainda viva que estabelece
bem as conexões entre as marginalidades e os jovens afro-brasileiros por meio da
diáspora, o Emicida. O rapper afro-brasileiro, veio de um bairro pobre da zona
norte, desde criança esteve cotidianamente exposto à violência policial e ao
preconceito, além de presenciar corpos assassinados. O hip-hop têm sido
fundamental nesta luta contra a opressão e o racismo nos estímulo à identidade
racial e ao reconhecimento de si e dos antepassados enquanto belos, artísticos,
fortes, inteligentes, a valoração da vida de negras e negros por todo país. Em um
de seus raps, diz o Emicida:
Minha pele, Luanda Antessala, Aruanda Tipo T'Challa, Wakanda Veneno Black Mamba Bandoleiro em bando Qué o comanda dessas banda? 'Sa noite ceis vão ver mais sangue Do que Hotel Ruanda A era vem selvagem Pantera sem amarra Mostra garra negra
56 São inúmeras casas de cultura atuantes nas periferias, guetos e favelas, em toda a Grande São Paulo.
72
Eu trouxe a noite como camuflagem Sou vingador, vingando a dor Dos esmagados pela engrenagem Ceis veio golpe, eu vim Sabotage (Pantera Negra)
O ressurgimento do graffiti como expressão transgressora de mobilização
cultural e política desponta na Filadélfia/Pensilvânia - a gênese - (Fig. 26), depois
Boston/Massachusetts, NY/Nova York57 e em LA/Califórnia, influenciado pela
cultura hip-hop.
Fig 26 - Pier privado abandonado em Filadélfia.
57Hoje, em NY, o graffiti não é tão forte, se comparado a SP. No início desta pesquisa, estivemos por lá e
encontramos algumas tags em paredes externas que cercam algumas linhas de metrô e trem, principalmente na
direção do Brooklyn e para o Queen. E não é tão marcante, como é hoje na cidade de São Paulo, considerada a
capital do graffiti
no mundo.
73
Fonte: Imagem por Marissa C.
Tell me who’s gonna dream the impossible dream Of the beautiful cities and the island’s genes When your works of art brought into being All that the ghetto stopped you from seeing Bums on the sidewalk, garbage in the street Abandoned buildings, bricks of concrete (Grandmaster Flash and Melle Mel)58
Diga-me quem vai sonhar o sonho impossível Das belas cidades e dos genes da ilha Quando suas obras de arte trouxeram à luz Tudo o que o gueto te impediu de ver Vagabundos na calçada, lixo na rua Prédios abandonados, tijolos de concreto (Grandmaster Flash e Melle Mel)
58 Ouça em https://www.youtube.com/watch?v=LoQHL09L724.
74
Já em 1966, encontramos o artigo denominado: What the walls say today:
a study of contemporary graffiti59/O que as Paredes Têm a Dizer Hoje: Um
Estudo do graffiti Contemporâneo, com análise social do graffiti na região
metropolitana da cidade de LA.
Cada cidade oferece o contexto para a expressão cultural produzida.Nas
décadas de 60 e 70 as graffiti gangs começam a se mover ao longo do sistema
prisional na Filadélfia. A juventude do centro da cidade de começa a espalhar as
inscrições pela metrópole; nos ônibus, nas escolas, casas geminadas, estações
policiais. Surge o estilo philly wicket na década de 80, considerado vandalismo e
crime, feito nos becos, vielas, locais abandonados e bueiros da Filadélfia (Fig 27).
Figura 27 A e B - Estilo Wicket.
Fonte: Tone. Fonte: Naw.
O que faz dos writers e suas inscrições importantes, além da gênese, é o que
hoje vemos nos pixadores (também writers). Como os fora da lei orquestram e
calculam os métodos e as loucuras; começam a planejar o marketing da mídia de
si mesmo. O uso do spray nas escritas urbanas, traz agilidade e rapidez para os
grafismos.
Aqui, têm-se o avanço em direção daquilo que se torna a street art, ou arte
de rua60. Os graffitis - desenhos e escritos, nas laterais e dentro de trens e metrô -
, eram feitos desde o final da década de 1960 por grupos de latinos negros
pauperizados que pixavam, com radicalidade, signos, riscos trabalhados, símbolos
(Fig. 28).
59 Esse é o primeiro registro acadêmico mais antigo por nós encontrado sobre o graffiti contemporâneo LOMAS
H. and WELTMAN G. What the walls say today: a study of contemporary graffiti. Paper presented at the american
psychiatric association, Atlantic City, New Jersey, 1966. 60Helene de Nicolay, na revista francesa L’Art Vivant, de 1973, escreve: “Se você for a NY, evite os museus. Eles
não têm nada a mostrar. Ao contrário a arte está descendo nas ruas, e mesmo mais abaixo nos metrôs”. (FONSECA,
1982, p. 30).
75
Fig 28 (A e B) - trens em Nova York.
Fonte: Imagem de Bruce Davidson.
O embrionário movimento de escrever pela cidade têm nos traçados de
Tracy 168 (Fig. 29) forte referência. Aos 11 anos, ele começa a riscar os trens e se
torna um ícone no estilo wildstyle (Fig 30). A sua tag continha o número 168 por
ele gostar da sonoridade, apesar de morar na 165th.
Fig 29 - Tracy 168 .
76
Figura 30 (A, B, C) - Evolução do traçado wild style iniciado
por Tracy 168.
Fonte: @TRACY "168" WiLD STYLE.
O “vandalismo” em forma de graffiti atingiu o sistema de trânsito de NY,
cobrindo todos os metrôs com tags e grandes murais coloridos. Nem todos
gostaram da conquista do graffiti, nos metrôs. Desde a sua criação, a epidemia de
marcação de NY gerou um círculo de propagandistas da cultura que adotaram o
graffiti não apenas, mas por causa de sua natureza criminosa. “You hit your name
and maybe something in the whole scheme of the system gives a death
rattle"/Você marca seu nome e talvez algo em todo o esquema do sistema dá um
chocalho mortal, escreveu, esperançosamente, Norman Mailer, o publicitário
mais chamativo do graffiti, em 1973.
A segunda geração de traçados e da arte urbana são os graffitis inscritos nas
laterais dos vagões do metrô de NY, que se tornariam os mensageiros por toda a
trama viária urbana. Naquela linda cidade planejada, a cidade da maçã, plena de
cerejeiras e cheia de guetos, o graffiti torna-se um dos pilares do movimento hip-
77
hop, com a dança (break) e a música (rap). Um livro brilhante de fotografias de
metrô, de Henry Chalfant e Martha Cooper, publicado em 1984, tornou-se
conhecido como a “bíblia” do movimento dos graffitis, por ter inspirado jovens e
adultos em todo o mundo a desfigurar propriedades (Fig. 31).
Figura 31 - Vandalismo em forma de graffiti no transporte público de NY.
Fonte: Imagem de Martha Cooper (1984).
Esse foi o cenário até o surgimento de trabalhos, como os de Basquiat61. O
artista, quando colocava nomes na parede, formava poesias concretas; lembrava
de Prometeu e nomes de filósofos; com formas de memória, colocava palavras
no trabalho, como vindas na cabeça, coisas que havia lido e visto na televisão.
Usava a coroa como uma tag de graffiti, como consta no topo do lado direito da
Figura 32. A coroa era símbolo do copyright - direito autoral,, nos graffitis e nas
outras formas artísticas, Basquiat apresenta uma predileção por temas infantis e
tem muitas influências televisivas e da visualidade pop, apresentava uma fusão
gráfica de palavras, cartoons, misturas de conexões e anatomia humana e que
mostravam um humor típico.
Figura 32 - Jean-Michel Basquiat: Quality meat, pure meat (1982).
61Um artista de influência já aos 23 anos; morreu aos 28.
78
Fonte: Reprodução da exposição CCBB-SP (2018).62
A qualidade das inscrições novaiorquinas era tão surpreendente que o seu
valor estético passou a ser notado por apreciadores de arte e a inspirar artigos
elogiosos em diversas revistas de arte. Ali começam a trabalhar a impressão ótica,
por exemplo, fazendo uma porta em uma lateral de um prédio, embaralhando a
impressão de qual seria a entrada para o edifício.
O expoente do cenário da demarcação de territórios com nomes (tags) foi
um garoto de Manhattan, um office-boy de 17 anos, que morava na rua 183, no
Bronx e circulava de metrô pela cidade. Seu nome era Demetrius, mas ele passou
a assinar suas tags como Taki 183 (apelido para Demetrius em Grego) e essa
visibilidade chamou a atenção do jornal New York Times (21 de julho de 1971), que
o entrevistou. Ele não fora o primeiro mas a visibilidade midiática o impulsionou
a tornar-se ídolo e conquistou centenas de seguidores que igualmente queriam
sair do anonimato. Taki 183 foi elevado à condição de “pai” do graffiti nos EUA,
pois alastrou a sua marca por toda NY. Mesmo com o status obtido por Takis 183,
62 Exposição sobre o artista com obras da coleção Mugrabi. Centro Cultural Banco do Brasil (abr./jul. 2018).
79
tudo deveria ser feito com rapidez, ousadia e precisão, na produção do graffiti na
ilegalidade, o senso de perigo, a rapidez, um flash.
Foi em NY, no ano de 1975, a primeira exibição de Graffiti Art no Artists
Space. Os metrôs são pintados desde 1972. “Eu existo, vivo aqui, habito em tal rua.”
Essa foi a revolta da identidade, combater o anonimato. Os graffitis vão mais
longe no anonimato e não põem nomes, mas apresentam pseudônimos, numa
clara reversão de códigos.
A guerrilha contra o racismo, feita por meio da linguagem da dança,
música e das artes plásticas, teve radicalidade máxima nas inscrições feitas em
metrôs. As pixações no metrô apresentavam cores neons ambulantes pela cidade,
um novo tipo de intervenção diferenciado da cultura dominante naquele
momento histórico: artes de galeria e disco music63. Nos graffitis e inscrições
marcados pela cidade, não importava o que estava escrito; o significado das
palavras não apresentava importância semântica, diferentemente dos escritos
franceses do movimento político estudantil, no ano de 1968.
A linguagem fervorosa, com jatos de tinta marcados em vagões ou em toda
a extensão do trem não apresenta elitismo, nem é hippie e não há preço de exibição
para ser instalada nas melhores paredes de uma cidade. São ocupados gigantescos
murais de publicidade ou os luminosos em pontos de ônibus, em que deveria
haver indicação de horários e itinerários, incitando todos a se sentirem
inadequados, a não ser que comprem coisas.
Especialmente no Bronx, o uso de tintas spray inicia-se na mesma época
que a música rap, manipulado para “marcar” o nome em locais públicos seguidos
dos números das casas que moravam - as chamadas tags -, inicialmente nas ruas
de moradia e, depois, como marcas de visibilidade nos trens e metrôs
circundantes. As tags mostram quem é o autor, como escreve e como se expõe na
vida. O spray expressa-se em uma “contracultura” em sua ligação íntima com a
“poesia marginal”64. Em 1971 - 1972 TOPCAT 126, leva a escrita gangster Philly para
63 Gênero de música dançante popular na década de 1970. O estilo era tocado nas discotecas e teve raízes em
clubes de dança voltados para negros, latino-americanos, gays e apreciadores de música psicodélica, além de
outras comunidades na cidade de NY e Filadélfia, durante os anos 1970. 64“Principalmente POESIA MARGINAL mais avançada, porque grande parte dela é bastante conservadora, careta,
essa é a verdade.” “Eu comecei então a prestar um pouco mais de atenção e a perceber o spray como manifestação
válida da CONTRACULTURA na sua ligação íntima com a POESIA MARGINAL, principalmente POESIA
MARGINAL mais avançada, porque grande parte dela é bastante conservadora, careta, essa é a verdade.” (Décio
Pignatari, entrevista em setembro de 1981, apud CRISTINA, 1982, p. 72).
80
O Harlem. O seu estilo conhecido por "Broadway Elegant" ou Manhattan Style,
marca a primeira onda tipográfica da história dos graffitis de Nova York,
particularmente influente nas linhas de metrô da Upper West Side.
Em NY, especialmente no Bronx, as tags com nomes, feitas com spray, eram
para demarcação do local, símbolo de identidade e pertencimento territorial,
realizadas inicialmente nas ruas das próprias pessoas que pixavam: TAKI 183,
STITCH 1, Freddie 173, CAT 187, T-REX 131, SNAKE 1 e RAY-B 954. A
sobreposição de marcas sempre foi evitada. Nomes escritos justapostos,
representando as primeiras escritas feitas com spray, se tornam o primórdio do
graffiti (Fig. 33).
Figura 33 - Primeiras Tags em NY
Fonte: Documentário: Wall Writers: Graffiti in its Innocence.
Verifica-se a obviedade do porquê desde a reprodução excessiva de uma
mesma marca pela cidade, como a de Taki 183 (Fig. 33B) que, à época, podia ser
vista em cada esquina de NY, como mostra o documentário Wall Writers: Graffiti
in its Innocence. O filme mostra as raízes do pioneirismo na arte de rua: os
cadernos dos escritores, as primeiras telas, as propagandas em outdoors na época
e edifícios completamente cobertos por pinturas feita com spray.
Em 1977, Jenny Holzer começou a criar frases curtas e irônicas que não
eram poesia nem cabiam em livros. Por exemplo: “A propriedade privada criou o
crime”; “Quem pensa que é importante é louco”; “Divirta-se, já que você não
consegue mudar nada”. Sem saber bem o que fazer com sua produção, começou
a pregá-las nos muros. Mais tarde, chegou a fazer parceria com a legendária Lady
Pink, uma das raras mulheres a ascender no mundo do graffiti.
Nos graffitis produzidos em NY, as letras tomaram a forma de ilustrações
elaboradas com a inserção de cores e traços ousados, transcendendo assim a grafia
de uma expressão ou nome. Em NY, a guerrilha ocorre por meio da linguagem,
81
em tapumes, guetos, ônibus, elevadores, galerias, monumentos, caminhões e a
radicalidade máxima nos metrôs. O desenvolvimento dessa linguagem radical
caminhou para o que hoje conhecemos por street art, ou arte urbana, quando as
laterais de prédios começam a ser pintadas em maior escala e iniciam-se os
trabalhos de 3D, que são a evolução do animal style - as letras em 2D, tipicamente
americanas (Fig. 32). É a evolução da impressão ótica, visto que, por exemplo,
desenha-se um prédio na lateral de outro, e confunde-se a entrada real do edifício.
Figura 34 - Letra e desenho 3D (2018).
Fonte: Imagem de Odeith.
A intensificação da arte urbana na América Latina teve referência na
pintura de murais em espaços públicos, tradição nas zonas suburbanas e bairros
industriais iniciada com a prática da pintura mural mexicana a partir de 1910, que
trazia consigo forte apelo político e social e impulsionou o aparecimento de
82
diversas formas de arte em espaços públicos. O renascimento do muralismo pós
revolução mexicana cria as bases estilísticas e de inovação para a moderna cultura
do mural; nos Estados Unidos, principalmente pelos murais chicanos. Se hoje
temos a arte de mural como a grande arte das ruas também nas vertentes do
graffiti, pixo e estêncil muito se estende a influência potente do muralismo
mexicano.
Também no Brasil esta tradição influencia a intencionalidade de realizar a
arte para o povo como se nota nas pinturas de Di Cavalcanti e de Cândido
Portinari (Figs. 32 e 33), ambos se dedicavam aos temas da cultura e história
brasileira, na chamada à participação para a construção de um mundo melhor. O
muralismo brasileiro apresenta um sensível reflexo condensado do momento
contemporâneo de desenvolvimento das cidades, além de estar referendado no
movimento histórico mexicano, vincula-se às tradições de comunicação
comunitárias que acontecem nas festas e folguedos populares, folclóricos e
religiosos. O muralismo brasileiro utilizou espaços públicos e esteve atrelado à
expansão urbana, tal qual, hoje os murais ocupam a cena da grande capital do país
e suas linguagens se espraiam mundo afora. O surgimento de propostas
gigantescas, tal qual o mural de azulejos de Cândido Portinari, destinado ao prédio
do Ministério da Educação com colaboração de Le Corbusier, Lúcio Costa e Oscar
Niemeyer, afirma também uma proposta de modernismo na arquitetura.
Figura 35 - Mural projetado por Di Cavalcanti na fachada do prédio localizado no vértice das ruas Martins Fontes e Major Quedinho, na região central
no centro de SP (1954).
83
Fonte: Imagem: @obviousmag. Figura 36 - Descoberta do Ouro (1941) Pintura mural a têmpera. Washington, D.C. Obra executada para decorar a Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso, Washington.
Fonte:@artemuralbrasil.
Os desenhos e grafias de letras e tipologias singulares em espaços públicos
teve também uma importante passagem no contexto político em São Paulo desde
84
o período da autocracia burguesa (a ditadura civil militar) a partir de 1964, como
afirma Abramides (2018, p. 10):
A convicção política e ideológica tomava conta de corações e mentes dos jovens estudantes que se reuniam e saiam às ruas de forma organizada, com panfletos, faixas, pichações e bolinhas de gude para jogar nos pés dos cavalos das tropas policiais, bem como lencinhos com éter para se protegerem das bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral nas passeatas, barricadas e outras mobilizações de rua. As manifestações ocorriam no centro de São Paulo e em bairros com aglomerações populares como em Pinheiros, no Largo da Batata, e em Santo Amaro, no Largo 13, em que juntamente com operários(as) e outros(as) trabalhadores lutavam contra o arrocho salarial e com solicitação às pessoas para que aderissem à luta com palavras de ordem que se sucediam ininterruptamente: “você aí parado também é explorado”, “abaixo a repressão mais arroz e mais feijão”, “vai acabar, vai acabar, a ditadura militar”….
Na luta de resistência à ditadura no Brasil e em toda América Latina, os
movimentos sociais utilizaram os suportes da rua com pichações em estátuas e
muros para divulgação de frases contestatórias e de incitação à luta para derrotar
os golpes militares no continente (Fig 37).
Figura 37 - Pichação feita por estudantes.
Fonte: Acervo Estadão.
O ano de 1968 representou época de muita efervescência e combate, em
que os estudantes de Paris, com barricadas nas ruas, expressaram radicalidade na
luta contra a Guerra do Vietnã impetrada pelo imperialismo norte-americano,
seguidas de grandes mobilizações contra o estado capitalista de exploração e lutas
85
específicas em defesa da educação pública, estatal, livre, gratuita e universal. Esses
acontecimentos tiveram influência marcante para a ação estudantil em nosso país,
manifestadas coletivamente, na particularidade da luta contra a ditadura militar-
empresarial e a superexploração dos trabalhadores, no processo de
desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo entre os países centrais e
periféricos em que a América Latina encontra-se inserida.
Cristina Fonseca65, pioneira na abordagem sobre escritos nas ruas, na
década de 70, aborda as marcas66 de letras na cidade enquanto poesia concreta.
Primeiramente, o que chama a atenção da documentarista e escritora é que,
diferentemente das pichações de protesto comuns na época, como: “Democracia
Já!”, a linguagem era singular, rebelde e muito criativa, que brincava com as letras
integradas ao espaço público67, “se por exemplo os grafiteiros enxergassem na
sombra da árvore, dois olhos, eles completavam com a boca e nariz”.
Figura 38 – Pichação de protesto.
Fonte: Acervo Estadão.
65Cristina Fonseca, escritora e documentarista, fez faculdade de Letras, na USP, e de Jornalismo, na Cásper Líbero.
Mestra e doutora pelo programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, orientada pelo professor Arlindo
Machado. 66As inscrições aqui trabalhadas estão em ambientes externos, acessados por qualquer transeunte, mesmo
reconhecendo que essas expressões ocorrem em banheiros, espaços internos de escolas e universidades e
transportes públicos. 67Entrevista realizada pela pesquisadora com Cristina Fonseca, no dia 11 de abril de 2019.
86
Como era rápida, a linguagem era muito concisa, mas tinha conteúdo; a
linguagem era icônica como a poesia concreta, e para a autora é como se essa nova
forma de inscrições nas ruas tivesse a influência da poesia concreta, como, por
exemplo, o escrito nos muros em 1981: “So, So” (somente sou, só sou, estou na
minha). Na década de 1980, a poesia formada pelo acaso, nos muros de São Paulo,
parecia, aos olhos de Fonseca, um “jogo lúdico de linguagem”; a valorização do
“signo”; a exploração da sonoridade e objetividade das palavras; a busca por uma
semântica extrema; um gosto mudado, a “linguagem da cidade”. A autora chama
de poesia do acaso68 as obras abertas casuais, feitas por estudantes, inscrições que
estavam “à margem”69 nas proximidades da Universidade de São Paulo (USP) e da
Pontifícia Universidade Católica (PUC) e talvez por isso possivelmente uma
influência da poesia concreta (Fig. 39).
Figura 39 - Exemplo atual de poesia nos muros (2019)
Crédito de Imagem: Simone Sapienza.
68 Título do livro-objeto: Intersemiótico com Interação de Mensagens Verbais e Não Verbais (1982), de Cristina
Fonseca. 69 Diferente do que é a poesia marginal, de influência beatnik.
87
No início dos anos 70, as poesias e frases invadiram os muros perto das
universidades, ruas da Vila Madalena, com inscrições anônimas surgidas na
madrugada70:
❖ Ventos estomacais moverão moinhos nos planaltos centrais;
❖ Não basta cuspir, temos que vomitar;
❖ A boca que tanto beijei agora me nega um sorriso;
❖ Mais vale ser um bêbado conhecido do que um alcoólatra anônimo;
❖ Os mortos fora do cemitério, a terra para quem a trabalha.71
Também na mesma época tem outras inscrições com recados e trocadilhos
descontraídos, como:
❖ Fumaça na Cabeça,
❖ Gonha mó breu.
O graffiti e o pixo despontam, em São Paulo, marcadamente, a partir de
1979, e determinados grupos e sujeitos passam a expressar publicamente
inquietações e insatisfações diretamente vinculadas às desigualdades social e
racial. Os graffitis têm sido desde então happenings, teatro urbano escritural
(Décio Pignatari), performances: tem a escolha do local para o ato, o material, o
risco, a fuga da polícia, a adrenalina-emoção.
No desenvolvimento da linguagem gráfica, de desenhos e letras nas ruas,
encontramos alguns desenhos que reproduzem quadrinhos norte-americanos e
desenhos kitsch que trabalham com uma influência de segunda linha das artes
plásticas; existe também o mural meramente decorativo72; e, ainda, alguns
grafiteiros da era pós-graffiti tornam-se institucionalizados ou conhecidos e
referendados, a ponto de terem espaços públicos liberados para as suas
composições, como é o caso do Kobra, mais ligado à arte de mural, e dos Gêmeos,
ligados à linguagem do graffiti. Já as letras, ou são de negação, ou afirmação
política, e poemas e frases de efeito, enquanto as pixações são as grafia que vem
das tags americanas e que, no Brasil, atingem uma peculiaridade própria, ao se
70 Em 1972, o arquiteto Maurício Fridman pinta o muro de sua casa e parte da calçada com cores berrantes e é
processado. Foi a primeira experiência documentada em São Paulo de utilização de muros externos para pintura. 71 Frase retiradas do livro: Alex Vallauri da Gravura ao graffiti (2013), de Beatriz Rota-Rossi. 72 Aqui vamos desconsiderar os rabiscos sem prévia ideação, ou seja, rabiscar o nome ou qualquer outro símbolo
sem preocupação com a linha, o espaço, etc.
88
tornarem escritas singulares de código e guerrilha do signo, como veremos mais
à frente.
A escola de graffiti, em São Paulo, inicia-se com Alex Vallauri73 – o mais
famoso artista de rua na década de 80; John Howard e Maurício Villaça que
estavam afinados com a tradição contestatória do maio de 68. Alex Vallauri inicia
seus trabalhos nas ruas com o uso de desenhos em máscaras a forma da bota, ele
já tinha prática com estêncil e xilogravura e utiliza a forma de máscara positiva
para reproduzir desenhos nas ruas. As figuras (Fig. 41) eram também estampadas
em serigrafia em camisetas, na ideia de completude do graffiti ambulante, dizia
Vallauri: “Quero deixar a cidade mais bonita, soltar a imaginação das pessoas,
diverti-las” (apud ROTA-ROSSI, 2013, p. 159).
Figura 40 – A arte do graffiti é divulgada Figura 41 – A bota (Alex Vallauri, 1979).
em jornais.
1o.4.1982 27.3.1988
Fonte: Acervo Estadão. Fonte: ROSSI, 2013.
73Nascido no norte da África, ainda adolescente, Alex Vallauri começa a desenhar pelas ruas de Buenos
Aires/Argentina, à margem sul do Rio da Prata. “Eram anos de radicalismos, de efervescência cultural e de defesa
de ideias. Os costumes eram colocados de pernas pro ar. Caíam mitos, valores e normas do passado. Discutia-se
sobretudo nas escolas, nos bares, nos sindicatos.” (ROSSI, 2013). Alex convive e expressa seus trabalhos artísticos
na Europa, Argentina, Brasil e EUA; seus graffitis de rua são expostos em Buenos Aires, São Paulo e NY.
89
Na sequência Tupinambá e Rui Amaral que por ser pioneiro do graffiti no
Brasil, um ícone da arte urbana, seu painel, no início do túnel entre a rua da
Consolação e a avenida Paulista, é preservado desde o ano em que foi feito,
enquanto outros graffitis no mesmo trecho são frequentemente alternados (Fig.
42).
Figura 42 - Graffiti feito por Rui Amaral, em 1992, no Buraco da Paulista.
Preservado e conservado ano a ano por ter se tornado patrimônio histórico para os grafiteiros.
Fonte: Imagem de Juliana Abramides ( 2017).
Segundo Celso Gitahy, artista urbano desde a década de 1980, o graffiti legal é
o mural; o que marca o graffiti é a ilegalidade e não a estética. “[...] o graffiti
verdadeiro, underground nunca vai morrer. O que está acontecendo hoje é uma
outra coisa, o street art” (Entrevista em 2017). Isso está explodindo no mundo.
Celso Gitahy74 é artista paulistano, com formação acadêmica; além de
participar de mostras em galerias e museus, utiliza o espaço público como suporte
74Celso Gitahy: graduado pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo; mestrado em Arte Contemporânea
e Docência no Ensino Superior pela Universidade Camilo Castelo Branco. Inicia sua produção artística na década
de oitenta, participando de salões de arte contemporânea com desenho, pintura, instalação e atuando na cidade de
São Paulo com graffitis. No início dos anos 90 cria, com o apoio da Secretaria Municipal de Educação de São
Paulo, o projeto: O Graffiti é Legal, com o objetivo de transmitir conhecimentos e experiências artísticas a jovens
estudantes da rede pública de ensino, chegando a obter atenção das principais mídias escritas e eletrônicas do país.
Seu universo de imagens é composto por ícones de consumo misturados com o Homem e a natureza, criando
90
para o desenvolvimento de sua obra desde a década de oitenta. Seu universo de
imagens é composto por ícones de consumo misturados com o Homem e a
natureza, criando metáforas visuais com nuances críticas, irônicas e bem
humoradas principalmente a partir do estêncil. Em seu repertório imagético, se
destacam o Tvnauta (astronauta voador com cabeça de televisão) e as Pílulas
coloridas (Fig. 43) denominadas pelo artista como: “Estimulantes visuais".
Figura 43 - Beco do Batman, Vila Madalena.
Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2019.
O estêncil é uma técnica de pintura utilizada para aplicar um desenho sobre
qualquer superfície, com o uso de tinta, aerossol ou não. Feito com papel, plástico,
metal, ou acetato, tem boa durabilidade e é cortado com facilidade, para fazer a
forma do desenho. Sua aplicação teve início nos países orientais, na China e no
Japão, nos anos 500 a.C., utilizado com elementos naturais, como folhas e rochas,
para fazer máscaras das partes que não podiam ser cobertas por tinta. Durante a
Segunda Guerra Mundial, teve seu uso ampliado, para fazer intervenções urbanas.
A técnica foi muito utilizada para fazer propaganda da guerra.
O estêncil serve de matriz para impressão por mimeógrafo e é a base da
pintura serigráfica. Nos dias atuais, o Stencil Art tornou-se um novo movimento
artístico, urbano, feito na rua e para a rua, com desenhos cada vez mais
metáforas visuais com nuances críticas, irônicas e bem-humoradas. Entre outros artigos e textos importantes sobre
o tema: Autor do livro: O que É Graffiti, da Coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense. Participou de várias
exposições dentro e fora do Brasil, em países como França, Hungria, Austrália, Alemanha, Estados Unidos, entre
outros. Atualmente, além de trabalhar com galerias de arte, continua utilizando o espaço público como suporte
para suas obras. Vive e trabalha em São Paulo, capital.
91
elaborados, com cortes eletrônicos, que possibilitam muito mais criatividade ao
artista. Hoje, as pinturas com estêncil têm várias camadas e cores, tornando as
pinturas realistas de alta qualidade. Por vezes, é difícil saber se a pintura foi feita
com estêncil ou a mão livre.
As máscaras têm seu valor, mas se distinguem da técnica e habilidade
necessárias à realização do graffiti. Ainda no final da década de 70, alguns poetas
se tornam grafiteiros, como Walter da Silveira, um artista intermídia que busca as
relações semânticas e sonoras, unindo palavras distintas da cultura pop. Seu
primeiro poema visual, em 1978, se tornou um icônico graffiti em SP (Fig. 44) e
chegou a fazer parte da capa da revista Veja.
Figura 44 - Foto reprodução de graffiti de Walter da Silveira .
Fonte: Caixa Cultural Brasília, exposição em 2014.
O Beco do Batman (Fig. 45) ganha vida a partir do final dos anos 80, com
pixadores e grafiteiros, época em que ambas as expressões eram transgressoras
por aqui. Um dos primeiros desenhos ali encontrado foi de um homem-morcego
(batman) dos quadrinhos, na sequência influências cubistas e psicodélicas foram
surgindo. Rui Amaral e John Howard começam a grafitar por toda a vila
madalena, ocupam o beco no sentido de deixar mais bonito um local que estava
92
sem visualidade. Naquela época foram diversas vezes presos e o John Howard fez
até um graffiti na delegacia.
Hoje, o Beco é um local com todas as paredes grafitadas, se tornou ponto
turístico com bancas de venda de bijuterias, artesanatos e peças de arte; por ali
encontra-se também restaurantes, cervejarias, locais para shows gratuitos e uma
vitrine dos principais grafiteiros do Brasil. A Vila Madalena é um dos principais
bairros boêmios e de circulação cultural em SP e o Beco é uma galeria a céu
aberto, tal qual o District Art, em LA, com mais habitabilidade e circulação.
Figura 46 - Beco do Batman.
Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2019.
93
75
O jovem de 20 anos, Khaled Said, foi torturado e morto pela polícia
truculenta do regime ditatorial de Hosni Mubarak (1981 a 2011), na Alexandria, em
6 de junho de 2010. Cinco dias depois, surge a página do Facebook denominada
Somos Todos Khaled Said, que ganha popularidade instantânea e desempenha
um papel decisivo na organização dos protestos de 25 de janeiro, no Egito (Fig.
47).
Figura 47 - Celebração da cidade de mártires (trad. nossa)
Reprodução do livro de Hamdy e Stone (2014).
75 Tunísia, Líbia, Argélia e Síria também estiveram em processo de rebelião por libertação, no mesmo período.
Ressaltamos que essa onda de mobilizações árabes inspirou uma série de outras mobilizações:
- Maio de 2011, uma multidão tomou a Plaza de Madrid de Puerta del Sol;
- 1o de outubro de 2011, Occupy Wall Street;
- 14 de fevereiro de 2011, Ocupação do Capitólio de Madison, Wisconsin/EUA;
- 15 de maio de 2011, ocupação por 44 dias da Praça da Catalunha em Barcelona;
- 15 de junho, mobilização da Praça Syntagma em Atenas.
94
O criador da página é preso e depois solto, fato que também incita as
mobilizações. Após o período de eleições fraudulentas para o parlamento, em
dezembro do mesmo ano, a página do Facebook faz uma chamada para uma
celebração especial no dia da polícia - 25 de janeiro de 2011 -, que, na sequência,
é chamado de dia da revolução. O dia, propositalmente escolhido, marca o início
da revolução de 18 dias contra o governo de Mubarak. A praça Tahrir se torna o
centro de encontro em que ao menos 50 mil protestantes tomaram as ruas do
Cairo, além de milhares em outras cidades. Os ativistas divulgam as formas
específicas para se proteger contra a polícia truculenta.
Milhares de muros, mobiliários públicos e caminhões são ocupados pela
arte de rua, por todo o Egito; a poesia e a música também acompanham as ações
da juventude insurgente. Foi uma explosão nas ruas, com gigantes murais
faraônicos, islâmicos e também com influência da arte moderna. Todo o processo
revolucionário deu-se no âmbito das ruas da cidade do Cairo e da Alexandria,
independentemente da classe política tradicional, da teoria e da academia. A arte
estava sendo suporte para uma crítica e transformação de um tipo de sociedade
marcada por um longo período ditatorial.
Durante 18 dias e noites, quando a angústia, o medo e a revolta insistiam
em acampar no meio de Tahrir, milhares de egípcios buscavam inspiração no
poeta Ahmed Fouad Negm (1929-2013) e recitavam um de seus mais famosos
versos: “Os homens corajosos são corajosos. Os covardes são covardes. Venham
com os corajosos, juntos, até a praça”, clamavam.
Antes do período de rebelião, havia rabiscos e tags pela cidade do Cairo e o
uso majoritário de stickers (adesivos) e estêncil - marcas registradas de campanhas
publicitárias e políticas já familiares para a sociedade. Além de graffitis para
celebridades, ídolos, ou esportistas (Fig. 48).
95
Figura 48 – Reprodução de stickers, marcas e graffitis expostos na cidade do Cairo.
Fonte: Reprodução do livro de Hamdy e Stone (2014).
96
No processo de rebelião, existiam demandas claras que também foram
tomando conta das comunicações visuais:
❖ A queda do regime de Mubarak;
❖ O fim da lei de emergência;
❖ Liberdade;
❖ Justiça;
❖ A formação de um novo governo não militarizado;
❖ O gerenciamento produtivo de todos os recursos egípcios.
Os protestos continuaram diários e, no oitavo dia contínuo de lutas, mais
de um milhão de pessoas estavam nas ruas. A batalha pacífica enfrentava a
truculência do poderio militar com tanques de guerra nas ruas (Fig. 49).
Figura 49 - “Abaixo o tirânico; abaixo o regime” (trad. nossa), slogan escrito em um veículo policial queimado.
Fonte: Reprodução do livro de Hamdy e Stone (2014).
97
Em 11 de fevereiro de 2011, os bravos jovens reunidos na praça central do
Cairo forçaram a renúncia do ditador Hosni Mubarak, após quase três décadas de
governo. A Primavera Árabe parecia florescer a democracia em um país sedento
por liberdades civis. Entre 2011 e 2012, a nação foi controlada pelo comandante
supremo das Forças Armadas, em prosseguimento ao controle militar imposto
em 1952
Em 30 de junho de 2012, o primeiro presidente eleito do Egito, o islamita
Mohamed Morsy, assumiu o poder em 30 de junho de 2012; foi um produto de
acordo do complexo militar com os muçulmanos. Um ano depois, foi derrubado
por uma junta militar articulada por Abdel Fattah Al-Sisi, líder dos golpistas, que
assumiu o comando do país e, em junho de 2014, depois de 10 meses, Al-Sisi
“ganha” a eleição, com 97,6%, dando início a uma ditadura ainda mais repressiva
do que todas as outras na história do Egito moderno.
O sopro de liberdade e as aspirações, perseguidos pelos jovens de Tahrir,
foram iniciados por brutais assassinatos e deram sequência aos mártires que,
infelizmente, com toda a luta pacífica por parte dos civis, deram lugar a um
regime autocrático, com prisão arbitrária, sumiço de jornalistas e opositores, e
pena de morte. Hoje, mais de 61 mil egípcios estão nas prisões, apenas por suas
convicções políticas.
Figura 50 – Arte de rua na revolução egípcia, Grafitti as a Weapon - Flyer feito por
Ganzeer.
Fonte: Reprodução do livro de Hamdy e Stone (2014).
98
Figura 50 - Khaled Said (por Brian T. Edwards, Tahrir outubro de 2011) e a frase: “Fim de circulação” (trad. nossa).
Fonte: Reprodução do livro de Hamdy e Stone (2014).
99
A diversidade de comunicações visuais que usam a rua como suporte -
stencil, sticker, lambe-lambe, letreiro, graffiti, grapixo76 (Fig 51) e pixo -, dificulta o
entendimento gráfico urbano; numa mesma parede, pode-se encontrar uma
miscelânea de formas aleatórias; linhas e colagens sobrepostas, que se relacionam
com o ambiente urbano e por ele são nutridas.
Figura 51 - Grapixo. São Bernardo do Campo- Grande SP, 2018.
Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2018).
Aquilo que desconhecemos, é um todo caótico. Como compreender uma
frase, nas paredes do Líbano, sem conhecer sequer uma letra do alfabeto árabe, o
segundo mais usado no mundo depois do latino? Ao nos aproximarmos das
expressões gráficas, conhecemos as técnicas, os estilos, traços e, pouco a pouco,
76 O grapixo é uma mescla de graffiti com pichação. Utiliza-se mais de uma cor, no estilo de escrita, ou tag reto,
com contorno e preenchimento.
100
cada tipo de comunicação se diferencia, porém, a sua compreensão pressupõe o
estudo de cada linguagem.
O graffiti, no Brasil, divide-se em duas vertentes: o pixo e o graffiti; o
primeiro é um estilo de graffiti original de São Paulo.77 A principal diferença entre
os dois estilos de arte é que o graffiti está baseado em figuras e multicores,
enquanto a pixação é feita a partir de letras codificadas e em frequentemente em
monocromatismo. No Atlas Mundial de Arte de Rua e graffiti (2014) a pixação é
chamada de brazilian graffiti. Ambas as expressões têm influência do graffiti
estadunidense mas progridem para outros caminhos.
No graffiti mundial, particularmente nos EUA, a forma escrita (write),
expressa nas tags, são também as formas menos respeitadas na categoria graffiti.
As tags/os pixos, são o início do graffiti, a entrada na arte de rua para a grande
maioria mas muitos continuam na vertente da escrita e de maneira disciplinada
desenvolvem uma caligrafia autoral para escrever palavras muitas vezes criadas.
Aqui nos remetemos que a retomada das inscrições grafitadas, que de certa
forma nunca pararam, sempre alguém esteve por escrever os nomes pelas ruas,
árvores ou pedras. Mas enquanto expressão coletiva e marcadamente a partir da
década de 70 do século XX e em todo início do século XXI, essa forma de
comunicação jovem nasce juntamente ao período de crise econômica do
capitalismo. O graffiti e o pixo são uma expressão da classe trabalhadora
empobrecida dos grandes centros urbanos.
77Aqui usamos pixo como expressão de graffiti, a partir de escritas codificadas e que tiveram origem no tag
estadunidense, no desenvolvimento do tag reto paulistano e depois espalhou-se pelo Brasil adquirindo
particularidades na forma e chamamos picho (grafado com ch) às escritas em paredes com tipologia comum de
letra e fácil decifre. Seguimos a comunicação iniciada por Gustavo Lassala, no livro Pichação não É Pixação:
Introdução à Análise de Expressões Gráficas Urbanas (2010). O autor, no intuito de estudar a pichação no campo
das diferenciações da visualidade na cidade de São Paulo, faz uma diferenciação entre pichação e pixação, sendo
a primeira grafia relativa a quaisquer escritos urbanos e a segunda à típica intervenção gráfica paulistana.
101
São Paulo78 tem a maior extensão e concentração de artes plásticas urbanas
no mundo. Na década de 70, encontravam-se inscritas, em algumas partes da
cidade, grafias ordinárias, que aprendemos na escola depois de repeti-las tantas
vezes na aula de caligrafia. Na década de 80, o movimento da pixação delimita
espaço com atuação de indivíduos e grupos grafando tags, símbolos, pseudônimos
e logotipos. É quando começa a surgir a tag reta79, escrita peculiar e característica
da cidade, com letras alongadas e pontiagudas, pintadas com rolo ou spray e que
buscam ocupar o maior espaço possível do suporte. Diferencia-se das letras
desenhadas e o tipo de letra paulistana é único no mundo.
Figura 52 - Escrita peculiar da cidade de SP/SP, Rua Teodoro Sampaio, esquina com a Rua Cunha Gago.
Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2017).
78 São Paulo! Comoção de minha vida... Os meus amores são flores feitas de original... Arlequinal!... Traje de
losangos... Cinza e ouro... Luz e bruma... Forno e inverno morno... Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes de Paris... Arys! Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!... São Paulo! Comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América! (Poema Inspiração, de Mário de Andrade, em Paulicéia Desvairada,
1922). 79O pixo reto, em São Paulo, começa com influência das letras de banda de metal, dos anos 80, e hoje apresenta
um conjunto de códigos e regras singulares.
102
A pixação é uma expressão cultural de comunicação que nasce nas
periferias de São Paulo, nos anos 1980, e se espraia para outras metrópoles
brasileiras. A pixação tem sua trajetória paralela ao movimento punk, e por muitos
anos esteve vinculada à disputa pelo espaço entre gangues80. Grafada com x, tal
qual pixe, antes mencionado, apresenta regras próprias, na visualidade que se
define entre a tipografia, a letragem e a criação de signos. O movimento
tipicamente periférico utiliza a cidade enquanto suporte midiático. Hoje são 10
mil pixadores ativos na cidade de São Paulo. O risco, a criação, a marcação de
território, a forma de se localizar no espaço-tempo (Fig. 53)
Figura 53 - Avenida Senador Queiroz nas proximidades da Avenida Cásper
Líbero - São Paulo.
Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2017).
A despeito de as tags, graffitis e pichos serem feitos nas grandes cidades em
todo o mundo, este tipo de graffiti (a tag reta ou pixo) é tipicamente paulistano,
uma vez que o traçado, a tipologia, os riscos assumidos para fazer as inscrições na
ilegalidade, como em topo, laterais e por vezes por todo fachada de prédios altos,
nasceram na cultura da metrópole paulistana.
80Devemos salientar que aqui não trataremos das Street Gang ou gangues de rua, por não ser objeto da tese.
103
Figura 54 - O pixo subverte a ordem da propaganda, é a mídia de si mesmo. Centro de SP.
Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2016).
É um movimento que é criminalizado, que é crime perante a lei. Então é um enfrentamento diário do Estado, isso já é ser, já é uma atitude política, é um ato político, você está afrontando o Estado e a sociedade de uma forma geral. [...] o muro é o maior símbolo da nossa segregação espacial né, cria fronteiras onde reforça diferenças. Então acho que a maior resposta pra segregação espacial que a gente vive na cidade de São Paulo é a pixação. (Djan, pixador e artista plástico, entrevista em 2017)81.
81 Entrevista realizada pela pesquisadora com o pixador e artista plástico Djan, em abril de 2017.
104
Cripta Djan82, brasileiro, jovem, negro, criado na periferia de Osasco, na
grande São Paulo, arquivista de documentos e grande conhecedor da pixação,
compreende que o pixo e o graffiti tratam da mesma coisa, porque a origem do
graffiti é o write (escrever), a primeira forma das tags nos EUA. E até hoje, nos
guetos, eles usam o termo “escrita”. No início, era só a letra, como o pixo aqui
também é, apenas com a diferença de que o graffiti foi absorvendo e
transformando a forma durante os anos 70 e o pixo foi aperfeiçoando a tipologia
e os signos.
Um dos modos de reconhecimento, na pixação, acontece por aquele que
grafar seu nome no maior número de lugares e em locais de destaque, como nos
topos de prédios, pois são os que ganham visibilidade e notoriedade, a isso eles
denominam ibope. É um movimento que tem seus próprios códigos de conduta,
pois criou um mecanismo de reconhecimento, memória, circuito e valorização
próprios. A legitimação acontece dentro do circuito por eles criado.
A quantidade de marcas e a diversidade de locais onde se pixa são fatores
de valorização, o que demonstra uma forma de deslocamento social pela cidade.
Nessa cultura particular de rua, existe um conhecimento geográfico da metrópole
para realizar novos pixos e reconhecer os pixos realizados. Outro valor da cultura
é a não sobreposição de um pixo por outro, algo que acontece também na cultura
do graffiti; os chamados atropelos se caracterizam por ofensa e, no passado, já foi
motivo de brigas que acabaram em mortes.
A busca de visibilidade, a necessidade de atingir fama, reconhecimento e
respeito do grupo social, estão entre as principais motivações dos pixadores e a
ação política pouco aparece enquanto atitude consciente entre os adeptos do rolê.
As modalidades são as formas de atuar na cidade com o pixo. Cada qual
escolhe uma. Existe um agrupamento de modalidades que nós consideramos
aventura: subir nos lugares, escalar, entrar em prédios driblando a segurança,
82Cripta Djan, como é conhecido na pixação (Cripta é o nome da gangue de que faz parte desde os 12 anos),
destaca-se nos cenários nacional e internacional a partir da notabilidade de ter sido bem-sucedido em todas as
modalidades do pixo, por abrangência e dificuldade dos locais acessados por sua escrita e por ter um conteúdo
político. Djan Ivson, além disso é artista plástico, vídeo-documentarista e um dos idealizadores das ações
realizadas na 28ª e na 29ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, que obtiveram grande repercussão e trouxeram
a pixação ao debate da arte e ao centro das atenções; ele pixou a obra do artista Nuno Ramos. Djan é figura
fundamental para esta pesquisa, e realizei, ao longo dos anos de 2016 e 2017, as entrevistas em que me apresentou
dezenas de pixadores/as e artistas; me forneceu material documental; e longas entrevistas, que se tornam base para
a produção textual de nossa pesquisa. Para saber mais sobre Djan Ivson Silva, busque novamente por Gustavo
Lassala: Em Nome do Pixo - A Experiência Social e Estética do Pixador e Artista Djan Ivson (2014).
105
subir ou descer de escadas, rapel, cordinha, etc e na maioria das vezes sem
equipamentos de segurança (Fig. 55).
Figura 55 - Pixadores caminham sem equipamento de segurança.
Fonte: Imagem por Ata.
O pixador vive a cidade, acompanha qualquer transformação cotidiana -
um muro ou poste novo -, isso porque a observação espacial e da arquitetura é
constante, na busca para encontrar espaço. Explora a cidade de outra forma; se
um prédio não foi construído para ser escalado, o pixador ressignifica os espaços:
Cripta Djan reflete sobre a fugacidade da inscrição urbana pixada: “a
propriedade privada é uma intervenção permanente no espaço público, diferentemente do
pixo que é uma intervenção efêmera”. Considerados locais de valoração positivo de
quem marca o alto do edifício, um pontilhão na rodovia; locais de alta visibilidade
e de difícil acesso; locais também que podem depois ser publicados na mídia
quando aparecem em foto de jornal ou na televisão. Quanto mais disseminada
pela cidade e em locais de visibilidade e dificuldade estiverem a sua marca,
melhor.
Uma prática de grupo, é calcular um espaço que possa ser ocupado e dividir
pelo número de presentes, assim se faz uma agenda. Uma agenda também pode
ser composta não no mesmo dia, em que cada pixador/a coloca a sua assinatura
em um espaço, sem justaposição com uma exposição de pixos em um mesmo
quadrante (Fig. 56).
Figura 56 - Agenda na parede com vários pixos justapostos.
106
Fonte: Imagem da Ata. (2019).
Também a ação de vandalizar e vivenciar situações de risco são
componentes dessa prática. Por vezes, parece uma competição esportiva, com os
desafios de escalada, acesso a alturas, quantidade de locais pixados, raciocínios
para entrar nos prédios sem ser pego.
107
O pixo talvez se coloque no âmbito do desprezo que a sociedade tem pela
subalternidade. E somente quem entende sabe o que nos muros está escrito. É a
voz dos sem voz; é o grito mudo dos invisíveis; é a criação de uma escrita cifrada
por quem não teve alfabetização corrente; uma escrita que despreza a sociedade
de uma forma geral, que somente pode entender se estudar a linguagem do pixo;
assim como, ao pegar um texto em libanês, que nunca estudou, você vai ter que
aprender a linguagem, a língua, para começar a compreender.
A composição social dos pixadores, organizados em gangues, outrora, ou
em grupos que realizam as práticas majoritariamente de forma ilegal e não
contratada, se constitui de sujeitos sociais pertencentes à classe trabalhadora,
inseridos ou não no mundo do trabalho, inscritos nos setores mais pauperizados
da população.
Em fins da década de 1980, por volta de 198883, já existia a grife “Os
Melhores”. Os primeiros pixadores surgiam: Bilão e Juneca; logo depois, Marcelo
Xuin, com a tag Ossos, e Tchentcho (Fig. 57), pioneiros e ícones em escrever na
modalidade de ponta-cabeça nos topos de prédios. Nos anos 90, Xuin foi o
primeiro pixador a deixar sua marca no Terraço Itália – um dos edifícios mais
altos do Brasil na época.
Figura 57 - Cartaz do grupo (grife) Os Melhores. Figura 58 - Tag do
Tchentcho.
Fonte: Imagem: Arquivo Cripta Djan
83 Entrevista com Tchentcho (disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0a4dVBWzKbQ. Publicado
em maio de 2015).
108
A tag Causa Maremoto estava por toda a cidade, nos anos 80. Assim como
o Cão Fila, mas aí é outro caso, porque era o dono de um canil que fazia
propaganda do estabelecimento. Mas ele acaba por incentivar mais pessoas a
escreverem nomes pelos muros, porque acreditavam que ele era alguém que
estava promovendo o próprio nome, e que era famoso. O próprio Juneca,
conhecido por todos na pixação foi influenciado pelo Cão Fila. Já na década de
50, os termos pixação e pixadores eram utilizados para referenciar as
propagandas de candidatos a vereador nas ruas.
A apropriação libertária do pixo incomoda porque vivemos numa
sociedade capitalista, totalmente materialista. Então, hoje, o bem material está
acima da vida. Um muro que não tem vida, uma coisa abstrata, é superficialmente
danificado, pois não é inutilizado. Uma porta pixada vai continuar abrindo e
fechando; é ainda uma porta, o que muda é a visualidade. “Há quem diga que
pixador, antes de tudo, é guerrilheiro.” (Cripta Djan). O pixo é uma degradação
simbólica de propriedades privadas, porque, de fato, não destrói, mas incomoda.
A sociedade materialista é a que mata por causa de uma batida no carro, como
segue Djan:
Então hoje a vida não vale nada, o que vale é o bem material então o ódio do pixo vem justamente disso desse apego ao meu, ah, meu muro, meu carro, né, meu prédio, e eles não entendem que todo esse meu deles tá ocupando o espaço que deveria ser público, entendeu? (entrevista em 2017).
Principal nome da década de 1990 na pixação, o #DI# começou a pixar em
1988, foi o primeiro a se arriscar para lançar nos topos de imponentes prédios
corporativos e instituições artísticas, como o Conjunto Nacional. No dia em que
pixou o prédio, ligou para a imprensa como se fosse um morador enfurecido
denunciando uma pixação; seu pixo foi parar nas manchetes de jornal. “O #DI# se
via como um esteta de vanguarda. Para ele, a pixação era a fronteira final do borrão entre
arte e vandalismo” (Djan, pixador e artista, entrevista em 2017).
#DI hoje já é falecido, mas seu pixo continua ali perto do terminal Bandeira,
que leva a população da zona sul para o centro. Um prédio visível da Sé (Fig. 59).
109
Figura 59 - Pixo de #DI em prédio perto do terminal Bandeira, visível da Sé
Fonte: Imagem de arquivo de Cripta Djan.
110
Já é de conhecimento generalizado a existência de estereótipos explícitos
relativos aos grupos de pixadores. A atitude hostil contra a ação de escritas em
locais públicos ou particulares, mas de visibilidade urbana, se investe de
argumentos conservadores, burgueses e de preconceito de cor e classe. Para os
que fazem o rolê, a ação é por protesto ou auto-expressão identitária, uma
maneira criativa de se aventurar na cidade, mesmo que para algumas pessoas seja
vandalismo (Fig. 64).
Tanto o desejo de embelezar um viaduto quanto o desejo de enfeiar a
cidade, e incomodar, são intervenções dirigidas mais ao presente do que à
memória ou ao futuro. Apresenta-se no belo e no feio a estética da contestação ao
real. Djan nos diz: “A pixação é a distopia, a sensação de que tudo vai ficar pior, que é
feio mesmo, afirmação do vandalismo, da ação agressiva. Falta de esperança no mundo.
Supera todos os limites de apropriação” (2017). A falta de esperança aponta para a
ausência de perspectivas reais em se lançar ao futuro. É preciso ser realista. Não
adianta sonhar com o que é feito de fantasia; querer o impossível; mas naturalizar
o horror, pois um prédio pega fogo, e pessoas nascem na rua. O pesadelo pode
ser imaginável, mas não o sonho.
Figura 60 - Pixo protesto Figura 61- Possíveis letras A
111
Fonte: Imagem: Ata.
De que maneira o poder instituído vai colocando as culturas em caixotes e
separando-as entre o que é bom e ruim? Por exemplo, o pixo que nasce colado ao
graffiti é ainda criminalizado e passa por um tratamento repressivo, com negação
da cultura. Ao mesmo tempo, mesmo considerado seu pioneirismo, têm-se uma
distinção moral no sentido da negação do pixo enquanto expressão cultural
genuína.
No Brasil, em São Paulo, a pixação e o graffiti ganham ênfase na década de
90, com inscrições de letras e desenhos em prédios e casas particulares
112
abandonadas. De maneira a transgredir a lei84 de proteção à propriedade privada,
jovens da classe trabalhadora criam marcas e reivindicam a existência e o direito
ao usufruto de qualquer espaço, público ou não.
A pixação e o rap sempre mantiveram uma atitude de claro antagonismo em relação às classes dominantes, uma proximidade ao ilícito e muita ambiguidade em relação ao consumo e à sociedade de massas. Embora a pixação compartilhe elementos essenciais da sociedade de consumo de massas - a produção de signos, a criação de marcas, a reprodução repetitiva de imagens -, ela nunca abandonou uma atitude de transgressão. (CALDEIRA, 2014, p.16, grifos da autora).
O ato de pixar é um crime e a pixação se coloca no local da reivindicação do
uso público da cidade. O pixo só existe porque tem muro e espaços segregados.
São Paulo é a cidade fortaleza. "O pixo é a expressão mais presente da cidade, é o sujeito
periférico gritando em cores. O público consumidor de Romero Britto nunca vai gostar nem
entender a gente." (Cripta Djan). De fato, é comum que quem faça grafitagem tenha
iniciado os caminhos na cultura das ruas na pixação, assim como, quem faz graffiti
fora do Brasil também iniciou com as tags. E ali é um início, e por vezes existem
muitas caligrafias ingênuas, no entanto, há quem migre para o desenho e quem
permanece a evoluir numa caligrafia própria, e isso exige muita dedicação e
disciplina.
Essa dicotomia entre pixo e graffiti, feio e belo é frequente no senso
comum e diversas tentativas de poder público ou atividades comunitárias
buscaram o caminho da “salvação do pixo”. Acontece que as culturas por mais que
tenham raízes semelhantes adquirem contornos distintos como as modalidades,
as formas de organização, o risco, a aventura e a forma. (Fig. 62). O pixador e
artista Cripta Djan reflete sobre esta dicotomia quando diz que:
O graffiti ele serve até como um parâmetro de demonização do pixo né, ele é apontado como uma cura né, parece que a pixação é uma fase primária do graffiti onde o cara realmente vai ta maduro um dia se ele virar grafiteiro, é até o próprio discurso do prefeito Dória85. [...] É a cura né, o graffiti é a cura da pixação. É apontado como a cura a sociedade é
84A prática do graffiti, realizada com o objetivo de valorizar os patrimônios público e privado, mediante
manifestação artística, com autorização do proprietário, foi legalizada em 1998.
85 João Dória, prefeito da cidade São Paulo nos anos de 2017 e 2018, depois abandona o cargo para concorrer ao
Governo do Estado de SP. Dória instaurou o programa "Cidade Linda" logo após sua posse, com o objetivo de
revitalizar áreas degradadas da cidade, teve como uma das ações a retirada de graffitis dos muros e de locais
públicos, inclusive graffitis que haviam sido financiados pela gestão anterior. O então prefeito também sugeriu
punições mais pesadas para quem realiza a arte urbana ilegal, declarando guerra principalmente aos pixadores,
declarando-os como bandidos.
113
muito comum você parar qualquer pessoa na rua perguntar se a pixação é bonita, você não precisa nem falar do graffiti, ela vai falar: não, a pixação é feia. [...] Então, já virou uma cultura (Djan, entrevista em 2017).
Figura 62 - “Não é graffiti. É um mundo propriamente nosso! (trad.).
Fonte: Frame do filme Pixo.86
O pixador que teve grande evolução na caligrafia e tem reconhecimento
entre os pixadores vem se apresentado em galerias com seu trabalho autoral
inspirado no universo da pixação mas sem misturar as doses, já que o pixo é só na
rua (Fig. 63).
Figura 63 - Peça artística de Cripta Djan, que já fez exposições individuais e cria a sua elaboração a partir do traçado da pixação
86 PIXO. Direção: João Wainer e Roberto T. Oliveira. 2010. Disponível em: https://vimeo.com/29691112.
Acesso em: 11 Jan. 2019.
114
Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2017).
Djan participou da Bienal de SP em 2010 que resolve convidar 3 pixadores
após a invasão à Bienal em 2008, em que Cripta junto a outros/as 39 pixadores/as
intervém em andar vazio daquela Bienal destinado à participação de artista e que
não contava com a intervenção-pixo (nesta bienal a pixadora Carol foi a única
presa e ficou 53 dias em cárcere por danos ao patrimônio); participou da Bienal
de Berlim em 2012 e foi para a Bienal de Veneza em 2018.
As marcas urbanas afirmam território e sobrepõem os limites do espaço
privado em relação ao espaço público, estabelecendo, doravante, uma postura
entre a vida cotidiana e a política. Uma outra forma de pensar e agir se estabelece
com uma lógica e valores próprios. A produção particular de signos e caligrafias
antes inexistentes impõe uma forma do ser urbano.
O graffiti primitivo é, por definição de quem faz, na gênese, uma arte ilegal.
A necessidade do sujeito que quer tomar conta da cidade, interferir no espaço em
branco e sair dos muros para a cidade, sempre sendo apagados não pararam de
aumentar. E é parte da experiência, na cidade, especialmente em pontes, túneis,
vias expressas, becos, vielas e atalhos. As marcas inscritas na ilegalidade se tornam
referência, status e geografia quando grafiteiros e pixadores indicam uma
localidade geográfica a partir de um graffiti ou pixo; no caso do pixo, o potencial
localizador está na ocupação dos topos de prédios.
Existem duas escolas tradicionais da pixação nacional, o Pixo Reto Paulista
e o Xarpi Carioca (pixar ao contrário) (Fig. 64). Os dois têm o mesmo tempo
115
histórico de tradição, apesar de em São Paulo os adeptos desenvolverem um
modo mais complexo nos estilos, letras e modalidades, pois os pixadores se guiam
por outras inscrições, como forma de localização.
Figura 64 - Xarpi carioca. Letras e símbolos mais arredondados diferenciando-se do pixo reto paulistano.
Fonte: Imagem de Sagi (2017).
Um sistema particular de signos, regras e relações sociais, que se torna uma
linguagem singular de jovens majoritariamente do sexo masculino, de classe
média baixa, e pobres, que vivem nas periferias. Uma produção cultural de alta
potência e visualidade que marca presença na cena paulistana. O pixo apresenta
uma influência da cultura punk do ponto de vista transgressor, na composição dos
letreiros também apresenta influência das tipografias das bandas de metal
copiadas primeiramente de capas e logos de bandas como Iron Maiden e
Metallica, se aprimorando depois (Figs. 65 A e B).
Figura 65 A e B – Reprodução dos logos das bandas de metal do início da década de 80.
116
Fonte: @metalremains
Figura 66– Reprodução de capas de álbuns de bandas punks do final da década de 70.
117
1o Álbum do The Clash, 1977. 1o Álbum dos Ramones, 1976.
8a Edição da Punk Magazine, 1977.
Logo da banda The Exploited, 1979.
Fonte: wiplash.net
Tanto a pixação de São Paulo como o denominado Xarpi, no Rio de Janeiro
em geral, registram o nome de quem pixa, que pode ser uma abreviação ou uma
118
criação com as letras e também muitas vezes se registra o nome do grupo,
chamado de grife ou união, ao qual o pixador está vinculado (Quadro 1). O Xarpi
é originário do RJ, são assinaturas individuais, existem poucos grupos no RJ e se
assemelha mais às Tags pois tem um formato mais arredondado enquanto o pixo
é uma tag reta, originárias do Rio de Janeiro, essas pichações também são
conhecidas como “carioquinhas”. Há esta particularidade ao movimento de
pixação no Rio que se verifica no nome xarpi: os pixadores começam a
pronunciar as palavras de maneira cifrada ao inverter a ordem das letras de trás
para frente; uma maneira de modificação linguística em nome de proteção ao
circuito cultural.
Figura 67 - Caminho para a Avenida 23 de Maio vindo da zona oeste -SP.
Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2016.
Por que grife? A grife é uma etiqueta, na moda ela é caracterizada em um
produto de luxo com peças exclusivas que levam a assinatura do estilista. Grife
vem da palavra francesa graphie, ou seja grafia, a representação da escrita87. A grife
no pixo é representada também por uma logo (logomarca, logotipo). E significa
87Grifes famosas no mundo da moda: Chanel, Louis Vuitton, Dior, Prada, Valentino e Hermès.
119
uma aliança de pixadores e cada indivíduo que participa da união (outro nome
para grife), espalha pela cidade o seu símbolo (logo) ao lado do pixo. É comum
que os grupos de pixadores façam o ritual de inscrição da pixação (não sendo uma
regra), da seguinte maneira: assinar primeiro a logo da grife, depois o pixo
individual, a assinatura (o nome), o ano que foi feito e a zona dentro da capital ou
da grande São Paulo (exemplo zona oeste).
Quadro 1 - Algumas grifes paulistanas.
Os Melhores Círculo Vicioso
Os + antigos Quartel General
Os porra nenhuma
RGS- registrados no código penal
Turma da mão
Os+temidos União osasco Os Infernais
Os podrão CBR (Camburão)
OS + IM (os mais imundos)
Os + fortes
UDR União Desce o Rolo
Zona oeste pra cima
FOM - Foda-se O Mundo
Os muito loucos
Os sem noção DKD (DKDência)
Os piores Zona oeste Pixo
Donos do Ibope
ILS (Ilusões) Notáveis
Os+antigos Os + errados Os fora da lei Dead Kenedys DK
Turma da janela
Os mal criados
Os nada consta
Os quase nada Turma do Trote
Os diferentes
sociedade alternativa
Fala que é nóis
Os 13 Os simples É o terror
Os iguais Classe A NCL Necrópole
Os + que todos Gang da escalada
Os da hora Adolescência Rebelde
Os 2° MIL GRAUS
Cada 1 por si Os invasores
120
Para entrar na grife é importante que o pixador já tenha notoriedade e que
os organizadores da união aprovem a entrada. É esta uma forma de elevar o
prestígio na cultura da pixação, ao se associar a uma grife. Além de marcar o
símbolo da grife pela cidade, é dever daquele que ingressa numa família,
reverenciar os pixadores daquela grife que já faleceram (e as mortes são bem
frequentes no ato de pixar, seja pelo risco nas alturas sem proteção ou por
assassinato por policiais e civis; e antigamente por brigas entre gangues) (Fig 70).
Por muitos anos, as grifes se organizaram como gangues e havia muita rivalidade
e violência entre grifes, esta realidade já não se faz majoritária no pixo em SP.
Figura 68 - Cemitério de pixos
Fonte: Arquivo MN
Além da grife, existem as alianças em que duas ou mais grifes se unem,
ampliando a rede de relações de pixadores, por exemplo: A grife Círculo Vicioso
se uniu à grife Os + Fortes e se tornaram a aliança: Círculo Forte (família). Pode
também acontecer de um pixo vir acompanhado dos símbolos da aliança, grife, o
pixo autoral, etc.
A pessoa, por vezes, não teve alfabetização, mas inventa códigos de
linguagem e escreve a cidade, sabe ler a cidade. Ela quer se atrelar a algo, as
matrículas simbólicas criadas nos nomes das grifes e tag de pseudos nomes
121
correm inversamente à publicidade, primeiro questionam propagandas nas
linhas dos olhos e nomes de loja no topo da cabeça, depois subvertem esses
códigos com outra cifra. Grosso modo, são indivíduos empobrecidos que se
mobilizam para tornar público descontentamentos sociais através de ações
individuais e coletivas de alto risco mas com caráter simbólico de uma estética
agressiva.
Figura 69 (A, B, C e D) – Exemplos de grife e pixo
Grife: Quartel General. Pixo: MN. Pixo: Os Bambas.
Pixo: Fantasmas.
Fonte: Imagens por Juliana Abramides (2018).
122
Figura 70 - Logo de União (grife) Os + Imundos e convite de festa dos RGS (zona leste).
Fonte: Reprodução da revista Vaidapé de junho e março de 2017, respectivamente88.
Nas conversas informais em momentos de participação nos eventos, points
e rolês, pudemos constatar que os/as pixadores/as são jovens da periferia de todas
as regiões de SP e grande SP, que trabalham com baixos salários como: motoboy,
construção civil, panfletagem de propaganda, frentista de posto, office boy.
E por que, além de marcar a cidade toda, é importante ocupar o centro?
O centro é mídia, é o reflexo condensado e síntese do que acontece nas periferias
e por toda a cidade, pelo centro se cruzam: trabalhadores do comércio, de
empresas públicas e privadas, em serviço público; bancários; profissionais
liberais, do sexo (homens, mulheres e travestis), camelôs, catadores de papel e
papelão, catadores de latinhas, caixeiros viajantes, artesãos, feirantes, panfleteiros,
“homens placa”; trabalhadores infantis; moradores de edifícios clássicos e
simples; moradores em cortiços, pensões, hotéis e rua; turistas nacionais e
88A revista realizou uma série de entrevistas com pixadores. A Vaidapé é um coletivo de mídia fundado em 2012
por jovens comunicadores da cidade de São Paulo, que apresentam direcionamento midiático na defesa dos direitos
humanos, denúncia da violência institucional e valorização das movimentações culturais e artísticas periféricas.
Site: http://vaidape.com.br/
123
estrangeiros; transeuntes em circulação, em divertimento e a passeio;
empresários, banqueiros, comerciantes; representantes dos poderes executivo,
legislativo e judiciário; estudantes; religiosos em pregação; manifestantes em
protestos e reivindicações; músicos, malabaristas, estátuas humanas, cuspidores
de fogo; boêmios e botequeiros.
Na década de 1940, começa a ocupação de muros, topo e laterais de prédios
com as publicidades. O pixo subverte essa ordem da propaganda, nasce a mídia
de si mesmo (Fig. 71).
Figura 71 - Ocupação de muros, topo e laterais de prédios com publicidade, na
década de 1940.
Fonte: Imagem de Alice Brill (1954). Arquivo IMS.
124
Os points reúnem pixadores de toda a grande São Paulo e a prática
recorrente é a troca de folhinhas (Fig. 72), uma forma de contato em que em uma
folha de papel, caderno, ou agenda, cada pixador assina o seu pixo, aquilo que
lança. A folhinha é guardada e colecionada em pastas. Também no point se
divulgam as festas, contam-se as novidades, fala-se dos que se foram, divulgam-
se os pixos feitos e articulam-se novos rolês, de maneira que alguém da região
oeste se articula com o de outra região e assim, numa rede de proteção, podem
pixar em grupos.
Figura 72 - Folhinha.
Fonte: Imagem de Juliana Abramides
Sua inscrição está na cidade mas ninguém sabe quem você é a não ser os
que fazem parte do núcleo pixação e você tem que ter algum destaque nas ruas
para ser conhecida/o. Ao mesmo tempo, a maior parte dos que pixam está
preocupada em ter sua marca na cidade inteira para promover sua existência.
Instintivamente, pixadores expressam, no âmbito da subjetividade, a negação da
opressão e a negação da propriedade privada. Uma forma peculiar de transitar e
se comunicar. A pixação torna-se uma referência entre os praticantes; a leitura da
cidade tem uma identidade regional de identificação das zonas urbanas por meio
das marcas. Identidades coletivas, individuais e regionais, nessa ordem de
importância.
125
O mapa The Encryption Of Power (Fig. 73) representa o histórico de atuação
do Pixo no centro da cidade de São Paulo. Esse trabalho é o resultado de uma
parceria feita entre a curadoria do pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza de
2018, a Escola da Cidade e o Djan. Contribuição importante para ampliar a
discussão sobre o pixo em outros campos além das ruas89.
Figura 73 - Mapa - The Encryption Of Power - histórico do Pixo no centro da cidade de
SP.
Fonte: Imagem de Cripta Djan (2018).
89“Usando dados coletados de 12.853 postagens no Instagram – também destacando a importância das mídias
sociais na cultura urbana contemporânea – é possível visualizar a distribuição geográfica das menções de "pixo" e
"pixação" através de suas localizações na cidade. Além disso, as multas aplicadas aos ofensores e as notícias dos
últimos trinta anos que mencionam o Pixo são georreferenciadas e exibidas com a data, veículo de mídia e título.
Combinadas, essas informações fornecem uma descrição das formas pelas quais a sociedade vê essa prática e as
lógicas de punição que ela implica. Por fim, o mapa cruza esses dados com mais de 40.000 pontos de preços de
metro do quadrado dos edifícios desse recorte – dados fornecidos pelo DataZap – bem como com informação sobre
as instituições culturais emblemáticas que os pixadores atacaram no passado”. (Cripta Djan, em postagem de sua
página no Facebook: Cripta Djan Ivson. Acesso em dezembro de 2018.)
126
Artistas, escritores ao longo dos tempos muitas vezes ampliaram as
fronteiras das convenções ao longo da história: os costumes moralmente
vinculantes fixos de um determinado grupo foram rompidos frente a injustiça ou
ao julgamento social. Como traduz o poeta concreto, Décio Pignatari: “O graffiti
também é uma arte do precário, uma espécie de manchete lírica que tal como o
jornal pode desaparecer com o tempo [...] Uma forma curiosa de publicação, só
existe enquanto aquela realidade.” (entrevista em setembro de 1981, apud
CRISTINA, 1982, p. 41).
O artista urbano contemporâneo caminha entre a legalidade e a ilegalidade.
Consegue pintar um muro com autorização e o faz com dinheiro do bolso ou por
meio de incentivos, festivais, patrocínios. Seja como for o engajamento político e
social é uma constante: preconceitos diversos; o racismo; o feminismo; as
temáticas ecológicas como poluição e desmatamento também despontam.
Alguns caminham mais para o lúdico e transversalmente para o político.
O espaço público é diverso: pontes, edifícios, fábricas abandonadas. Não há
uma concentração de expressões visuais urbanas na cidade mas está por todos os
lados. As regiões periféricas, áreas desguarnecidas de monumentos foram por
muito tempo regiões desconectadas com o circuito cultural de shows, concertos,
bibliotecas, aliás do ponto de vista das ações do Estado interventor ainda são, mas
cada vez mais a periferia se organiza com saraus, casa de hip-hop e centros culturais.
As interferências plásticas das artes urbanas são periféricas e ocupam as periferias
com cores e identidades simbólicas para jovens e trabalhadores/as. Esta é uma
dimensão pública consciente da ocupação do espaço com arte.
São muitos artistas a serem destacados na história mais recente da arte
urbana em São Paulo, e seria impossível nomear a todos/as. Lembramos de um
importante ícone do graffiti no Brasil e no exterior. Niggaz (Fig.74), nascido no
Grajaú - periferia da Zona Sul de São Paulo, morreu jovem aos 21 anos, e seus
murais continuam colorindo a cidade, o artista entusiasta e influente artista,
apresentava graffitis irreverentes com forte identidade racial e que lembram
histórias em quadrinhos. Para o artista o pincel ou o spray eram uma arma de
127
transformação do mundo. Ele que sofrera por toda a adolescência racismo e
preconceito, encontrou na arte uma forma de reconhecimento por toda cidade
de São Paulo e no mundo90.
Figura 74 - graffiti de Niggaz na Praça que leva seu nome na Vila Madalena.
Fonte: Reprodução do livro Niggaz - Graffiti, Memória e Juventude.
O Grajaú é um exemplo de região periférica da zona sul, situada há quase
30 km do centro da capital paulista, uma área que sofre com a violência e a
segregação ao mesmo tempo um bairro de forte mobilização político-cultural e
de origem de importantes artistas urbanos. O Grajaú abrigar importantes murais
ao longo da região, um dos locais de maior produção de graffitis no mundo. São
realizações individuais e também de projetos sociais organizados por coletivos de
artistas com financiamento empresarial como por exemplo o projeto
“Transformações: Arte Urbana e Cidadania” realizado em 2015 no Jardim das
Gaivotas.
...Eu sou…
90 Veja-se em: Niggaz - Graffiti, Memória e Juventude. Com financiamento da Funarte organizado por Mauro
Neri em 2016.
128
aquele que pega o busão lotado
O grafiteiro que toma um enquadro
O MC de talento mas que não tem nem o da condução
Eu sou, aquele poeta, partideiro nato,
Que das equações do tabuleiro de xadrez é um rato
E o mágico, com as tintas de doação…
Grajaú, se eu errei, merci bocu (CRIOLO)
Em meados da década de 90, também em São Paulo, emergem alguns dos
mundialmente conhecidos grafiteiros: Nunca, Os Gêmeos, Onesto, Kobra, Vitché,
Binho e Zezão. O grafiteiro Nunca (Fig.75) apresenta um viés artístico politizado,
traz à tona assuntos étnicos, históricos e sobre o racismo. O artista tem a
intencionalidade de ressignificar a representação histórica do Brasil e ao mesmo
tempo incentivar a reconexão com as nossas bases hereditárias indígenas.
Francisco Rodrigues- o Nunca, vindo do bairro de Itaquera, inicia seus trabalhos
na rua com a pixação e posteriormente desenvolve um trabalho colorido a partir
da influência de artistas e intelectuais de vanguarda como Lygia Clark e Oswald
de Andrade.
Figura 75- Do lado esquerdo o grafiteiro Nunca. Do lado direito, os irmãos - Os Gêmeos, graffiti na Avenida 23 de Maio-SP.
Fonte: Imagem de Juliana Abramides
129
Graffiti verdadeiro é o graffiti ilegal, o pixo também o é. E na transversal
da cidade eles se encontram. A arte urbana com tinta ou spray e que é autorizada
é a arte mural que alguns chamam de pós graffiti. O realismo mágico adentra
cenas do cotidiano criando dualidades: Gustavo e Octávio - Os Gêmeos (Fig.75 e
76), estão entre os mais importantes contribuintes para o desenvolvimento da arte
urbana no mundo, são de 1974, nascidos no Cambuci, em São Paulo. A dupla
decide por um trabalho colorido mas com predominância do uso do amarelo nas
personagens, uma constante, trabalham artisticamente com temas que transitam
entre a fantasia e a realidade.
Figura 76 - Os Gêmeos.
Fonte: caixadepandora.com
130
O grafiteiro Alex Hornest, nascido em 1972, no bairro do Tatuapé na zona
leste de São Paulo, mais conhecido como Onesto é também pintor, escultor e
artista multimídia de São Paulo. Desde a década de 90 faz graffitis. A relação entre
a cidade e os moradores é o foco de seus graffitis. Como vemos na imagem de um
personagem andando de bicicleta e levando consigo a placa de proibido, feita no
festival Bike Here em Viena, 2010 (Fig. 77).
Figura 77 - Graffiti por Onesto
Fonte: Imagem do Festival Bike Here
131
O também conhecido Kobra (Fig.78) cuja peculiaridade são os gigantescos
murais que parecem fotografias com sobreposição de miscelâneas coloridas, veio
da periferia da Zona Sul - Jardim Martinica. O muralista também iniciou suas
atividades como pixador.
Figura 78 - Mural de Kobra retrata o arquiteto modernista e comunista Oscar
Niemeyer
Fonte: Imagem de Juliana Abramides. Avenida Paulista, São Paulo, 2018
132
Mesmo nos países de maior desenvolvimento do campo político
democrático, a igualdade completa para as mulheres não foi atingida. Nenhum
Estado burguês reconhece a completa igualdade dos direitos. As mulheres
ganham menos ocupando os mesmos cargos que homens, são interrompidas
incessantemente em suas falas, devem provar mais valor e competência numa
mesma área. Nós vivemos a feminização do mundo do trabalho com piores
condições e o maior de todos os problemas é a opressão e violência sofrida tanto
no seio doméstico quanto nas ruas.
Figura 79 - Clara Leff, 2018.
Fonte: Imagem de Juliana Abramides (Entrevista no dia da finalização do mural).. Rua Gama Cerqueira, 385, Cambuci - São Paulo, 2018.
Quando entrevistei a Clara Leff, ela estava finalizando o graffiti acima (Fig.
79) com seu então companheiro também grafiteiro, Gatuno. Ela me disse que
pintava já a algum tempo, mas que começa a ir para os murais de rua para ocupar
esse espaço público, que até então tinha medo de ocupar, mesmo andando,
principalmente sozinha, nas ruas de São Paulo. Fazendo graffiti, muitas vezes está
133
com alguma parceria, ou pessoas se interessam e param para acompanhar o
trabalho.
O sentimento de serenidade da mulher intercala-se às condições exteriores
do mundo natural. Uma satisfação conquistada, numa alma que comprime o
sensível e o finito, que triunfa nos sentimentos. O triunfo de uma conciliação com
o mundo da natureza. A necessidade de se recolher na paz interior da alma reclusa
em si.
A profundidade da tela transborda conteúdos a serem contemplados; os
objetos animados, colocados por si, provocam um eco na alma, a disposição do
final do dia e a calmaria da água de um lago recolhido. Os elementos reunidos
não são apenas imitação por uma disposição própria e vigor particular espargido,
que causa certa fonte de simpatia, esta, a natureza, “uma fonte inesgotável de
assuntos para a arte” (HEGEL, 1962, p. 81)
A artista começou a fazer graffiti em 2015. Mesmo antes de começar a
pintar, ela diz que tinha muito medo de andar nas ruas sozinha. Então ao ir ocupar
os muros com a lata na mão a artista pode iniciar um processo de vivência segura
nas ruas, já que, quando se pinta, muitas pessoas do bairro ou transeuntes param
para conversar ou mesmo oferecer um prato de comida.
O empoderamento feminino91, se torna então, inspiração e a forma de falar
de Clara Leff, frente à realidade de tantos anos de silenciamento das mulheres.
Em um de seus trabalhos, a série “faces”, ela faz uma crítica aos padrões de beleza
criados para as mulheres, além das personagens serem sempre azuis e
esverdeadas. A maioria de seus graffitis fala sobre a natureza e os seres humanos
em uma esfera mais misteriosa, amorosa e mágica. Clara utiliza sempre as latas
de spray e começou a pintar, praticando em casa por 06 meses para desenvolver
a técnica antes de sair nas ruas:
Eu só uso latas de spray! Um dos meus maiores amores neste mundo é a lata de spray. Eu nunca esquecerei o dia em que usei um pela primeira vez… Sempre digo que me apaixonei inicialmente pela lata de spray e depois com o graffiti. As latas de spray permitem uma “dança” com a parede, usamos todo o corpo para pintar, adoro isso! (entrevista em 2018).
A educação de gênero aprendida na família, escola, mídia, no
posicionamento dos governantes e das políticas de Estado, por meio da
91Para saber mais de mobilizações de mulheres artistas na sociedade ler: Women, art, and Society by Whitney
Chadwick. 2nd ed. Thames and Hudson, NY: 1996.
134
socialização, em que crianças e adolescentes, gradualmente, internalizam normas
sociais, corresponde a produções culturais e não determinações biológicas
prévias. A desigualdade de gêneros resulta, prioritariamente, da diferença de
socialização de papéis entre gêneros. Aprendemos a nos apresentar enquanto
gênero, roupas, estilo de cabelo, linguagem corporal e tom de voz.92
Mag Magrela pinta desde 2007, a artista também tem uma referência em
casa, já que o pai é desenhista e pintor. Mag começa a grafitar após uma oficina
com o pioneiro artista urbano Rui Amaral, e lá conheceu uma galera da quebrada
- onde começou a grafitar. Apesar de ser da Vila Madalena, lá foi o último lugar
a pintar.
O campo da criação não tem que ter regra. Mag cria personagens que caminham
para o lúdico e para o mágico.
Todos os lugares que eu tentei me encaixar de alguma forma tinham regras de ser ou de fazer. Eu já desenhava e quando eu fui pro graffiti, eu me apaixonei, eu podia usar qualquer material e qualquer local. Se abriu um portal da minha personalidade. (...) o graffiti me proporciona conhecer a cidade e lugares de um jeito único (entrevista em 2019).
A artista multimídia e cantora diz que teve algumas fases, a primeira foi a
criação personagem um ser masculino parecido com seu irmão. A segunda e mais
longa fase retrata o feminino. Mag diz que sempre negou muito a feminilidade e
então em 2010 começa a desenhar o sangue e “bucetas”, inicia o trabalho com a
energia do chacra básico. A libido reverberou até 2016. A grafiteira faz uma
reflexão sobre esta necessidade da negação do corpo feminino:
Parece que a sociedade só quer o seu lado gatinho. Então eu negava muito meu corpo. A cultura patriarcal vende o tempo inteiro para que você se encaixe nesse lugar. Muitas mulheres das artes passam por isso e questionam isso. (...) Já ouvi criança falar: - não sabia que mulher pingava.
A última fase da artista é o lugar de cura (Fig.80) pintando plantas e
natureza mas busca entender e questionar o lugar da segregação (o mural de Mag
Magrela sobre a temática aparece no capítulo IV). As mulheres foram excluídas e
ainda são, seus salários são menores, toda a potência da mulher deve ser
duplamente explicada seu valor sempre colocado à prova. E é por isso que as
92 A jornalista Norah Vincent passou 18 meses disfarçada de homem e transformou sua experiência no livro Self-
Made Man: One Woman’s Year Disguised as a Man. Ela passou a frequentar círculos sociais, de esportes, casa de
strip-tease, monastério e grupos de suportes masculinos. Em uma das experiências, ela relata que foi a uma loja
de carros e o vendedor a assediou, quando era mulher, e quando voltou como homem, o vendedor apenas falou de
negócios.
135
mulheres estão se organizando e se reunindo e trabalhando entre si no palco, no
cenário. Mulher chama mulher, negras e negros estão se unindo nos movimentos
sociais e também nas cenas profissionais para conquistarem trabalho e
consideração.
Figura 80 - Patuá da Fisgada, São Paulo, 2016.
Fonte: Mag Magrela
136
Gisele é a Sagi (Fig. 81), a guria é de uma coragem atroz e ficou conhecida
num tipo de pixo que considero “esportivo”. Ela é a maior pixadora e lançou suas
marcas por todo Rio de Janeiro e fez muitos rolês em São Paulo chegando a fazer
parte da grife Os Melhores. A jovem, agora aposentada do pixo, se considerou
viciada com a lata na mão e hoje está há 06 meses sem pixar. Sagi começou em
1999 com 13 anos com amigos de onde morava que pixavam, lançou Sagi que é
gisa, gisele de trás pra frente. Começou a pixar de escada e de pé (uma pessoa
sobe no ombro da outra pra ganhar altura). Em um rolê em Nova Iguaçu - RJ
levou um tiro na perna e parou por um tempo, quando voltou, viveu
intensamente e impulsivamente, numa vontade de adrenalina. Ela lembra:
Passei anos da minha vida pixando compulsivamente todas as semanas, muitas passagens na polícia, perdi as guardas dos meus filhos, meu casamento acabou (entrevista em 2019).
Figura 81 (A e B) - Sagi lança nos viadutos, sua marca registrada.
Fonte: Imagens cedidas pela xarpista.
No RJ são poucas mulheres que tem nome na rua (no sentido de divulgação
mesmo, nomes espalhados pela cidade, que tem caminhada constante). O
movimento da pixação é majoritariamente de composição masculina, segundo
Djan (entrevista em 2017) quando as mulheres entram na pixação elas se destacam
e viram o centro das atenções. Mas a “mina precisa vencer a descrença, criar o
grupo dela e conseguir espaço. “Não é fácil você ser uma mina num movimento
que só tem homem. Primeiro que todo mundo já quer te comer né?’.
137
A xarpista começa a comandar a modalidade de fazer escadinha de ferro,
de corda, em viadutos, descendo de corda de nó, corda de rapel (Fig. 82). Nesta
modalidade, são poucas as pessoas que fazem. Por esse motivo, ela ficou muito
conhecida no universo da pixação e ficou consagrada “no vandalismo da pixação”.
O viaduto é uma modalidade que fica no mínimo 30 anos no mundo, somente
sai quando o tempo desgasta em até 50 anos. E é uma modalidade altamente
arriscada porque não tem equipamentos de segurança, “se eu tivesse uma câimbra
eu poderia cair e morrer”, uma modalidade que você somente segura com as
mãos. Fora isso ela lançou em pedras, janelas, linhas de trem com a versatilidade
de modalidade.
Figura 82 (A e B) - Pixo de rapel.
Fonte: Imagem cedida pela xarpista.
138
Na Califórnia, toda a cultura do graffiti, é obviamente acompanhada da
cultura chicana ou dos mexicanos-estadunidenses. Os writers (escritores) cholo (de
ascendência latino-americana) já tinham um estilo próprio na década de 40 antes
do graffiti contemporâneo emergir. Ao longo do anos os estilos e alfabetos vão se
aprimorando nas ruas e também quando emergem as ondas de encarceramento
crescentes desde a década de 60.
Os murais chicanos em São Francisco são de uma beleza de conteúdo e na
forma. Uma arte que recupera a ancestralidade e dá continuidade a uma arte
mexicana por excelência: o muralismo. Notadamente de cunho político, os
murais tomam conta da região Mission.
Descendo para Los Angeles, vemos pelas linhas de trem de norte a sul em
becos e vielas o estilo bomb de letra, tão famoso nos EUA. São as letras
arredondadas as chamadas bomb, por serem uma “bubble letter” ou letra em
formato de bolha. O uso de tintas e spray nos muros e fachadas transforma a
escritas urbanas tão contaminadas de publicidade, principalmente em LA. O
grafismo selvagem, garranchos e rebarbas; o graffiti Naif (ingênuo e espontâneo)
ou rebuscado se combinam aos preços, letreiros, mostradores de mercados.
139
Los Angeles, como toda cidade grande, tem um ritmo acelerado de
sociabilidade, ao mesmo tempo em que apresenta praias, trilhas e parques, que
podem proporcionar um contraste de vivência. A grande metrópole multicultural
apresenta arsenal de arte do mundo todo, tal qual NY; o entretenimento mundial.
Urbanisticamente, não há tanto interesse em LA, uma cidade espaçada. A não ser
o charme insuportável das áreas de luxo, na Beverly Hills, com enormes áreas
verdes, por exemplo. São diversas vizinhanças, cada uma enquanto um nicho
cultural de identidades e singularidades muito definidas: Westwood, Santa
Mônica, Venice, Brentwood, Ecopark, Silverlake.
O rigor com o graffiti ilegal é maior em LA do que em SP e também a
cultura que aqui vemos de tags, pixos, colagens, murais, etc., por toda a cidade, em
LA a profusão de imagens não compete com as publicitárias. Ali, as imagens
suburbanas estão mais escondidas e as propagandas dominam o cenário de
maneira massiva. Chegamos ao distrito de arte de LA e fizemos um tour em
companhia de A.k.a One, pioneiro no graffiti em LA que explicou um pouco
sobre a história da arte local. Ao longo do trajeto de trem pude observar diversas
tags e graffitis nas linhas de trem e nas beiradas da cidade (FIg. 83), foi de lá que
avistei o Rio Los Angeles.
Figura 83 - Graffitis na beira dos trilhos
Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).
140
93
A marca do graffiti em NY é o metrô; em SP, os arranha-céus, em LA é o
rio Los Angeles, na beira da rodovia 101 (Fig. 62). Desde que o Corpo de
Engenheiros do Exército se moveu para canalizar o rio, em 1938, o trecho de 51
quilômetros de concreto cinza do rio e a baixa presença policial ofereceram aos
grafiteiros não apenas uma grande tela para murais coloridos, mas também a
atração da aventura em um lugar aparentemente desprovido de leis.
Figura 84 - Rio Los Angeles Visto do Trem (2018).
Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2018).
Para realizar tags, desde o final da década de 1960, é preciso passar por
túneis sob o rio. Nos anos 90, populariza-se o graffiti quando ainda ali era uma
93Subtítulo referenciado em Ulysses (2010).
141
terra de ninguém e o avistamento de um corpo morto, tráfico de drogas, ou
tiroteio, era comum. Os primeiros escritos são do início de 1900, traçando uma
linha do tempo físico da experiência humana ao longo do rio.
Uma tag remonta ao início de 1900 e foi encontrada nas vigas de uma ponte
perto da confluência do Arroyo Seco. Ele leu "Kid Bill 8-3-14" na fonte ocidental.
Acredita-se que a tag e outras semelhantes, muitas vezes com "Kid" precedendo o
nome, foram deixadas por transeuntes que viajaram pelos trens que correm o rio.
O grupo também encontrou pichações deixadas por Pachucos94 no rio, nos anos
1940. Uma peça dizia "Killer de Dog Town 8-9-48" e foi escrita com alcatrão
coletado de um pátio de trens local e pintado nas vigas perto do histórico William
Mead Housing Projects, perto da Main Street, no centro de Los Angeles. Vivendo
nos bairros pobres cercando o rio, os Pachucos marcariam o território de suas
gangues que haviam se formado em face da crescente violência e discriminação
motivada por motivos raciais contra os jovens mexicanos-americanos.
Num local considerado, por anos, um repositório para o escoamento
urbano, os grafiteiros traziam vida e vitalidade ao rio, algo que estava faltando
desde que fora pavimentado. No início dos anos 1990, a cidade vivenciou altos
exemplos de violência de gangues e assassinatos e um aumento nas tensões
raciais, após o espancamento policial de Rodney King e o assassinato de Latasha
Harlins95. O aumento na violência entre gangues e policiais coincidiu com uma
explosão de pichações de gangues e de "tag banging", que foi um período perigoso
para os grafiteiros, pois havia um sinal verde para que membros de gangues
atirassem em qualquer tagger que entrasse no rio. No entanto, a violência do início
dos anos 90 se esgotou lentamente, já que muitos taggers foram presos ou
absorvidos por gangues. Isso deixou o rio aberto para os grafiteiros, em meados
94 Pachucos são Chicanos e mexicanos de cultura noturna e vestes extravagantes. 95Latasha Harlins (14 de julho de 1975 – 16 de março de 1991) uma menina afro-americana de 15 anos, estudante
do Westchester High School, em Los Angeles. A garota entrou na Empire Liquor Market na South Figueroa Street,
pegou o suco de laranja da geladeira e o colocou na bolsa, com 2 dólares em suas mãos para pagar por isso. No
entanto, a dona da loja, a coreana-americana Soon Ja Du, acreditava que Harlins estava roubando o suco. Uma
briga iniciou-se no local quando a senhora tentou puxar a bolsa da menina através do balcão. Enquanto isso,
Harlins lutou de volta, derrubando a mulher de 51 anos. Harlins tirou o suco de laranja da bolsa e o colocou de
volta no balcão e depois virou-se para sair. Logo, Du se levantou e puxou uma arma do balcão e disparou contra
Harlins na parte de trás da cabeça, a três metros de distância. A morte de Harlins ocorreu treze dias depois do
espancamento filmado de Rodney King pela polícia. Algumas fontes citam os dois assassinatos como uma das
causas dos tumultos de Los Angeles, em 1992.
142
da década de 1990 e trouxe uma onda de peças de arte grafitadas coloridas em
grande escala.
Crews (grupos) como MSK "Mad Society Kings" ganharam notoriedade
internacional. O tagger Sabre, do grupo MSK, pintou uma das maiores obras de
graffiti do mundo, ao longo da margem do rio, perto da autoestrada 5, em 1997.
Outro notável escritor da MSK, REVOK, expôs seu trabalho na exposição "Art in
the Streets" da MOCA, a primeira grande exposição de graffiti do museu e arte de
rua nos EUA.
Os grafiteiros da crew MTA - "Metro Transit Assassins" também ganharam
notoriedade internacional, em 2008, por pintarem uma tag MTA na beira do rio
escrita em letras maiúsculas de 700 metros de largura (Fig. 85), nas proximidades
da rua 4. Ambas as marcas históricas foram pintadas com uma camada de tinta
cinza, em 2009, que podia ser avistada de um avião, quando o Corpo de
Engenheiros do Exército usou US$ 837.000 de dinheiro federal para pintar mais
de 45 milhas de rio que caem em sua jurisdição. Para o grupo, o dinheiro poderia
ser gasto pagando artistas para pintar o rio e deixando-o belo, ao invés de parecido
com um presídio. Hoje, os escritores e artistas de ambas as crew estão agora
vendendo seu trabalho em galerias de arte nacionais e internacionais.
Figura 85 - Mural gigante MTA.
143
Fonte: Imagem de Lawrence K.Ho.
A onda de gentrificação, a partir da revitalização feita na região ribeirinha,
desde 2012, em lugares como Elysian Valley (Frogtown), trouxe cafeterias da moda,
boutiques, cervejarias artesanais e empresas para a região. Isso deixou muitos
moradores antigos do local preocupados com o deslocamento e a mudança de sua
comunidade para algo em que não poderão mais se identificar ou viver.
À medida que a população dos bairros muda, trazendo um afluxo de
moradores brancos para a área, os residentes mais novos já tomaram os esforços
de combate aos graffiti em suas próprias mãos. O Conselho de Bairro de Los Feliz
organiza eventos de limpeza, que incluem a limpeza de graffitis uma vez por mês,
e o conselho do bairro Elysian Valley organiza o Dia de Embelezamento de EV,
no qual os moradores limpam o lixo e as pichações. O Corpo de Engenheiros do
Exército também toma medidas pesadas para manter o graffiti fora do rio,
gastando cerca de US $ 250 mil por ano para espalhar pichações ao longo dos 90
quilômetros de aterros que caem em sua jurisdição. Os empreiteiros encarregados
da remoção de pichações inspecionam o rio rotineiramente e tentam encobrir
pichações dentro de 24 a 48 horas, disse Jay Field, porta-voz da Army Corp.
144
Em 1976, Judith Baca inicia a história da pintura monumental, o The Great
Wall of Los Angeles, maior mural no mundo, tem meia milha de longitude, ao
longo do canal no Vale de São Fernando em North Hollywood (Fig. 86). O mural
foi realizado com a colaboração multicultural de mais de 400 jovens e em torno
de cem pessoas na equipe de apoio e 40 artistas assistentes. Cada seção da parede
foi projetada por um artista diferente, sob a supervisão de Baca.
Figura 86 – Mural The Great Wall of Los Angeles
Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).
145
Com 4 metros de altura por 840 metros de extensão, o equivalente a seis
quarteirões, em LA, a grande muralha é o maior mural do mundo, oferece 105
murais compondo a narrativa da história da Califórnia, até a década de 1950, pela
ótica das mulheres, minorias e dos povos étnicos (Fig. 87). Judith baca projetou a
“grande muralha” preocupada com as condições estéticas físicas e espaciais mas
também se direciona às questões históricas, sociais, ambientais e culturais que
afetam a cidade. Por exemplo a Figura 87 representa o momento da deportação
de mexicanos antes pertencentes àquela terra e são expulsos e segregados, ainda
hoje os EUA querem limitar a entrada de mexicanos ou mesmo baní-los do país.
Figura 87 – Detalhe do mural que apresenta a narrativa da história da Califórnia até a
década de 1950.
Fonte: Imagem por Juliana Abramides, 2019.
.
146
No antigo bairro de armazéns, do centro de Los Angeles, ainda existem
alguns artistas residentes remanescentes dos anos 80; aqueles dias valentes em
que pintores, escultores e outros, sem nenhum código oficial da cidade nos livros,
começaram a trabalhar e a morar em prédios industriais abandonados.
Em meados dos anos 1970, alguns artistas convertem antigos espaços
industriais e comerciais em estúdios de trabalho, às vezes alugando espaços para
criar e se alojar por preços muito baratos. Somente em 1981, a cidade de Los
Angeles aprovou o decreto Artista em Residência, que permitia o uso residencial
de edifícios anteriormente industriais e comercialmente zonados; os artistas há
muito tempo usavam esses espaços como residências, de forma ilegal, e a lei
procurou levar essa prática à legalidade e regulamentação. Galerias de arte, cafés
e locais de espetáculos abriram-se, à medida que a população ao vivo crescia.
Figura 88 - Art District. “Influência legislativa à venda” (trad.)
Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).
147
Venice Beach é onde se unem a street art e a praia mais icônica do sul da
Califórnia. Localizadas no coração do calçadão de Venice Beach, entre o skate park
e as quadras de basquete, as paredes de arte são o marco histórico mais famoso
do graffiti de Los Angeles.
Figura 89 - Um amor à beira mar
Fonte: Juliana Abramides (2018).
148
Ao longo do movimento chicano por direitos civis e justiça social
principiado no início dos anos 1960, os murais, como parte da afirmação
identitária dos mexicanos-americanos, novamente provaram ser importante
ferramenta na reivindicação de sua herança cultural. O muralismo chicano
recupera símbolos do México, histórias, religiosidades e mitologias, em um
movimento de identificação cultural e de resistência sociopolítica.
Figura 90 - Mural de Hailey Gaiser21.
Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2018.96
O local com acentuada movimentação relativa ao muralismo chicano é
São Francisco (a chamada Bay area), no distrito Mission. Ali, a “meca” dos murais
chicanos apresenta um movimento anti-apartheid e identitário, com murais de
temas políticos e campanhas, como a de 1992, no aniversário da invasão de
Columbus, em que se organizaram os “500 anos de resistência”.
96“Este mural de Hailey Gaiser é inspirado pela cidade de San Juan Citala, Jalisco/México, de onde minha família
provém. É uma pequena cidade de fazendeiros dedicada ao trabalho duro, valores familiares e comunitários. Eu
dedico este mural a eles e à comunidade Mission/SF.” (trad. nossa).
149
Muitos dos murais são produzidos sob o estímulo da organização Precita
Eyes, cuja gênese está diretamente conectada com o surgimento do movimento
chicano (Figs. 91 e 92).
Figura 91 - Distrito Mission, San Francisco (2018). Imagens religiosas e bandeira do Panamá no poste de rua à esquerda.
Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2018.
Figura 92 - Juana Alícia “La Llorona’s” Sacred Waters (2004).
Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2018.
150
Os Muralistas da Mission apresentam um posicionamento de revoltas
social e espiritual; aqui a arte e a política sempre caminham juntas. A arte pública,
que toma conta da região, revela um centro de militância e ativismo com apoios
diretos e participação em movimentos e protestos por direitos sociais, humanos
e por igualdades étnica e social.
Em São Francisco, vemos as marcas deixadas pelo muralismo de Rivera no
City Club, Golden Gate e San Francisco Art Institute. A sua feroz marca política
inspira o respeito pelos trabalhadores; a reverência à história e a luta contra a
ganância. Na progressista e colorida cidade de San Francisco, temos a certeza de
que o muralismo já não é mais símbolo de uma época mas uma forma artística de
se posicionar no mundo.
O mural reproduzido na Figura 93 é sobre as comunidades reclamando
para si o que lhes pertence, utilizando os recursos naturais que lhes foram
roubados por centenas de anos, o que fez da Europa e da América do Norte
lugares tão ricos enquanto os demais mantiveram-se na pauperidade.
Figura 93 - Naya Bihana (Um Novo Alvorecer), Martin Travers, 2002.
Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2018).
151
Quando examinamos a história do capitalismo, verificamos que está
situado, em sua fase inicial, na Inglaterra, na segunda metade do século XVI e
início do século XVII, ocasião em que se estabelece mais prontamente a relação
entre capitalistas e assalariados (isto é, antes disso, existiam relações de produção
nessas qualidades, mas não ainda em escala considerável). Ou seja, estamos
levando em conta o modo pelo qual se define a propriedade privada dos meios
de produção e suas relações sociais. A sociedade de produção de mercadorias é
anterior ao estabelecimento da sociedade do capital, relação social de produção
em que também a força de trabalho se torna uma mercadoria.
A partir da propriedade privada dos meios de produção e da divisão social
do trabalho, as relações entre os indivíduos se aplicam na forma de alienação97
onde os homens são limitados devido à existência de classes. O capitalismo, em
sua essência, estabelece a exploração do humano pelo humano, relação social que
se expressa na apropriação privada da produção social e coletiva. A contradição
fundante da sociedade é o domínio do capital sobre a classe trabalhadora.
O capital ainda em germe, não desenvolvido, cindiu os homens de suas
potencialidades. De toda forma, conforme já foi apontado, todo esse processo de
desenvolvimento é fruto da produção humana e reflete o salto qualitativo em
relação à natureza. Isso significa que as diversas formas de propriedades
registradas na história dos homens, tais como, a primitiva, antiguidade, medieval
97A alienação (entfremdung) é uma categoria fundante de toda a elaboração de Marx, existente em todas as formas
de sociabilidade, que se constituem a partir da consolidação da divisão social do trabalho, do Estado,
concomitantemente à política, às classes sociais e à propriedade privada. Nessa direção, a alienação é produto da
sociedade de classes. Na Idade Média, enquanto o estranhamento se efetivou, por meio da religião, na sociedade
capitalista moderna concretiza-se a partir do processo produtivo. Ainda, a produção passa a se consolidar de
maneira alheia aos homens, ao ser concebida como parte integrante da sociedade estranhada. Vale ressaltar que na
forma mais plena da divisão social do trabalho, isto é, do capital, a alienação adquire formas específicas, a partir
da instituição da sociedade salarial, quando as capacidades humanas estão estabelecidas na forma do dinheiro; sua
existência é medida pela venda da força de trabalho.
152
e moderna (sociedade capitalista) devem ser entendidas como afastamento das
barreiras naturais dos homens, ainda que eles mantenham relação com a
natureza.
A existência e organização do comércio, mercado financista, dos bancos, da
moeda de troca, do sistema de empréstimo, ao longo de outros tempos histórico-
econômicos, não são suficientes para constituir uma sociedade capitalista. As
transações monetárias e a produção para o mercado eram comuns, no mundo
medieval, por sua vez, no mundo escravocrata, a compra e venda de pessoas
escravizadas era lucrativo, enquanto na classe mercantil eram os grupos
intermediários entre produtores e consumidores, e diferentes da classe burguesa.
O que se vê como traço de continuidade são duas coisas interligadas, ou
seja, os processos de dominação de povos e divisão de classes, ao longo das
sociedades escravocratas, feudal ou capitalista. Isso se, em termos gerais, falarmos
dos movimentos reais combinados e complexos, com traços peculiares a essas
generalizações.
Nas suas fases de desenvolvimento, o capitalismo passa por transições de
desenvolvimento técnico e divisão de trabalho. O que nos interessa aqui é
concentrar na hipótese de que o Capital, às vezes, tem sido representado sob o
aspecto de uma luta constante pela liberdade econômica, pois, na falta de controle
e regulamentação, pode encontrar condições favoráveis para sua expansão,
portanto o caráter anárquico do capitalismo é inerente à sua lógica.
O capital, para manter sua hegemonia sobre o trabalho, precisa do Estado,
força externa ao homem e instrumento para amenizar os conflitos e garantir
afluência e igualdade entre os detentores dos meios de produção e, também, para
continuar a usurpar as capacidades humanas a fim de garantir a concorrência e a
concentração de riqueza. Logo, o Estado é uma necessidade do capital e a ele está
subordinado, daí as leis, a violência para perpetuar a ordem vigente e a
concorrência que garantem a sobrevivência do capital.
153
As primeiras cidades burguesas não passavam dos limites da muralha e
mantinham até 20 mil habitantes. O crescimento delas com o advento e a
ascensão burguesa espraia-se desde as feiras, enquanto grandes centros de
comércio, e, com esse crescimento, criou-se uma grande malha econômica, que
estimula o início das práticas bancárias. Burguês era, na Idade Média, a pessoa que
morava nos burgos, povoados protegidos por muros. Os burgos são, portanto, as
cidades protegidas por muros98.
Também as primeiras cidades antigas eram cercadas por muros, que
tinham a função de manter a defesa militar e enfatizavam a separação da
comunidade urbana e da rural. Elas apareceram 3.500 anos a.C. nos vales do Rio
Nilo, no Egito, do Tigre e Eufrates - hoje o Iraque, e nos vales do Rio Indo, onde
hoje é o Paquistão.
O pixo da Figura 94 é de 2010, feito embaixo da ponte da Av. Sumaré,SP.
O pixador buscou um nome para lançar que tivesse relação com os muros, as
muralhas e escolheu Burgo.
Figura 94 - Pixo: Burgo. Assinatura: G. Pixa desde 1989.
Fonte: Imagem: Juliana Abramides, 2017.
98Também as primeiras cidades antigas eram cercadas por muros, que tinham a função de manter a defesa militar
e enfatizavam a separação da comunidade urbana e da rural. Elas apareceram 3.500 anos a.C. nos vales do Rio
Nilo, no Egito, do Tigre e Eufrates - hoje o Iraque, e nos vales do Rio Indo, onde hoje é o Paquistão.
154
No filme Eu, Daniel Blake, de Ken Loach, o protagonista picha a parede do
prédio da previdência. Após sofrer um ataque cardíaco, o carpinteiro é
desaconselhado pelos médicos a retornar ao trabalho, e Daniel Blake busca, então,
receber os benefícios de auxílio doença. Entretanto, esbarra na teia da burocracia
governamental, potencializada pelo fato de ser um analfabeto digital. O filme
mostra a luta entre as misérias relativas ao mundo do trabalho, o controle do
Estado burocrático e o poder do Capital (Fig. 95).
Figura 95 - Eu, Daniel Blake (2016).
Fonte: Foto frame do filme.
A mundialização do capital e suas transformações na esfera do
mundo do trabalho, do Estado e da cultura expressam a extrema acumulação e
concentração do capital, ampliação da desigualdade social, agudização da
pobreza, desemprego estrutural, diferentes formas da exploração do
trabalho (subemprego, trabalho precarizados), ampliação do trabalho informal,
diversas expressões de negligência social e de violência, entre outras.
No capitalismo em chamas, o modo de crescimento econômico apresenta
contradições internas que se tornam crises cíclicas, fazem parte do processo de
acumulação e impulsionam a reorganização lógica de sustentação da relação
social - capital. O capital é um processo, uma relação social e não uma coisa
material, é um processo de reprodução da vida social por meio da produção de
155
mercadorias, em que todas as pessoas do mundo capitalista estão totalmente
implicadas e “[…] o processo mascara e fetichiza, alcança crescimento mediante a
destruição criativa, cria novos desejos e necessidades, explora a capacidade do
trabalho e do desejo humanos, transforma espaços e acelera o ritmo da vida”
(HARVEY,1992, p. 307).
A reorganização do capital após a última grande crise estrutural e sistêmica,
com características de queda da taxa de lucro e crise de superprodução, fez
ampliar a exploração e incentivar, no campo estatal, a retração dos serviços e das
políticas públicas. No modo vigente do “regime de acumulação flexível”, o capital,
para voltar a ampliar o lucro, busca implementar a desregulamentação das
relações de trabalho, a partir do desemprego estrutural, da terceirização e
redução dos direitos trabalhistas, no intuito de adotar o trabalho informal, o
trabalho em tempo parcial, intermitente e por período determinado. Essas
transformações precisam ocorrer no âmbito do Estado para que sejam
regulamentadas socialmente, e materializadas nas reformas trabalhista, sindical e
previdenciária fundamentalmente.
A crise estrutural do capital, de 1973, na esfera internacional deu-se na base
do modelo de produção taylorista-fordista, atingindo principalmente as taxas de
lucro das economias mundiais, como a dos EUA, Inglaterra e Alemanha. Nesse
momento, iniciam-se outros processos de organização do capital, que já não é
mais monopolista, mas, como acentua Otília Arantes (1998, p. 139):
Estamos diante de uma rede transnacional que interliga alguns nichos de desenvolvimento espalhados pelo mundo, que por sua vez vão escasseando em virtude do ímpeto destrutivo da competição capitalista atual: essa a fonte da nova marginalidade urbana, muito diversa da que conhecemos no auge do antigo processo de modernização.
Também fazem parte deste contexto histórico o fenômeno da estagflação
que corresponde à estagnação econômica com altas taxas de inflação; a
crise de superprodução e da crise internacional do petróleo como
elementos detonadores da estagnação econômica. O conjunto dessas
determinações impõe novas estratégias de recomposição orgânica
metabólica, do capital (Mészáros).
O perfil do capitalismo contemporâneo, em um todo planetarizado,
apresenta processos inéditos, sua dinâmica transfere a lógica interna do capital
156
para todos os processos da vida cultural e o desenvolvimento da socialização e
reprodução política, cultural e ideológica por meios eletrônicos - celular,
televisão, game, multimídia.
Sob a orientação macroeconômica internacional da financeirização da
economia, realiza-se a centralização do grande capital dos monopólios e das
grandes corporações internacionais, sob o jugo de superpotências
imperialistas que se tornam cada vez mais mundializadas e utilizando os países
periféricos para exploração da força de trabalho a partir das compras das
empresas nacionais privatizadas e das garantias do direito de propriedade dos
estrangeiros.
A base material é organizada de forma que, para reproduzir os seres sociais
- nós precisamos fazer parte desse processo; aliás, a (re)produção refere-se
justamente à produção da vida material e reprodução do modo de vida. E o
sistema econômico-social capitalista atinge altos patamares de desenvolvimento,
em curto período de tempo, ao longo de transformações abrangentes e difusas,
por meio da nova divisão internacional do trabalho; de empresas transnacionais
dinâmicas e rápidas; e intensa movimentação bancária internacional.
A acumulação flexível, como resposta do capital à sua própria crise, no
mundo do trabalho, advinda da reestruturação produtiva, atinge a objetividade e
a subjetividade da classe trabalhadora, ocasionando desemprego estrutural;
precarização do trabalho; diminuição de postos de trabalho; salários variáveis;
contratos flexíveis; ampliação do trabalho informal, precarizado, temporário,
intermitente, e na quebra de direitos sociais e trabalhistas99.
A realidade no mundo do trabalho encontra-se atravessados pela implantação
do neoliberalismo, um projeto político de Estado que redefine as regras, as
relações sociais e as representações coletivas adequadas à realização do capital.100
A Nova gerência liberal quanto às políticas públicas: com a redução de dotação
99Ver: Harvey (1992) e Antunes (1995). 100“O balanço do neoliberalismo é provisório, pois esse é um movimento ainda inacabado. O veredicto, porém
nos países mais ricos do mundo em que seus frutos parecem maduros pode-se dizer: Economicamente, o
neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente,
ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muito de seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais
desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo
alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores jamais sonharam, disseminando a simples ideia de que não
há mais alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se às suas
normas […]. Esse fenômeno chama-se hegemonia, ainda que, naturalmente, milhões de pessoas não acreditem em
suas receitas e resistam a seus regimes” (ANDERSON, 1995, p. 22).
157
orçamentária para políticas sociais universais, como educação e saúde,
privatizações e um conjunto de contrarreformas (do Estado, do ensino superior,
previdenciária, sindical e trabalhista); está na ponta um estado punitivo e
carcerário; atingindo e precarizando ainda mais a classe que só tem a vender a sua
força de trabalho.
A sociedade de classes cria cisões entre os seres e como esse modo operante
de ser no dia a dia está vinculado ao processo de dominação? Vejamos, a maioria
dos/as trabalhadores/as deve acordar cedo; pegar transporte lotado por duas
horas101 ou mais e trabalhar o dia todo, chegar em casa exaustos/as, fazer comida,
cuidar das crianças/adolescentes e no dia seguinte a história repete-se. Sobrando
um dia de folga na semana, o que resta a fazer: o prazer, comer, embriagar-se,
dançar, transar e, se der tempo, pois ainda tem-se as roupas a serem lavadas e
passadas, o cuidado e as brincadeiras com as crianças, arrumar a casa, etc.
Segundo Loicq Wacquant (2012)102, o surgimento de um novo regime de
"marginalidade avançada" é impulsionado pela fragmentação do trabalho
assalariado, o recuo do estado social e a disseminação da estigmatização
territorial. Isso foi confirmado na década de 1990, quando um governo de
esquerda após o outro atravessou a luta contra a criminalidade nas ruas até o posto
de prioridade nacional, nas zonas urbanas, em que a insegurança social se
aprofundava, com a normalização do desemprego e dos empregos precários. A
penalização da pobreza emerge como elemento central da implementação do
projeto neoliberal, o 'punho de ferro' do estado penal, acasalando-se com a 'mão
invisível' do mercado, em conjunção com o desgaste da rede de segurança social.
Mapeando o boom carcerário da América depois de 1973, ficou claro que a retração acelerada do bem-estar social, levando à infame "reforma do bem-estar" de 1996, e a expansão explosiva da justiça criminal eram duas mudanças convergentes e complementares para a regulação punitiva da pobreza racializada; que o "workfare" disciplinar e o "prisonare" castigatório supervisionam as mesmas populações despojadas e desonradas desestabilizadas pela dissolução do pacto fordista-keynesiano e concentradas nos distritos depreciados da cidade polarizada; e que colocar as frações marginalizadas da classe trabalhadora pós-industrial sob rígida tutela guiada pelo behaviorismo moral oferece um estágio teatral privilegiado no qual as elites governantes podem projetar a autoridade do Estado e reforçar o déficit de legitimidade que sofrem sempre que abandonam suas missões estabelecidas. proteção social e econômica. (WACQUANT, 2012, p. 68, grifos do autor).
101 Vídeo: Terminal Grajaú, Humilhação Coletiva, publicado em 28 de agosto de 2013, mostra a precariedade da
mobilidade dos/as trabalhadores/as na cidade de São Paulo, com enfoque no terminal Grajaú (Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=cuXKJvLHUgM&t=2s. Acesso em: mar. 2019). 102O autor chega às ruas do hyper ghetto (hiperghetto); às profundezas do gigantesco sistema carcerário americano,
a partir do trabalho de campo sobre as estratégias de vida de jovens afro-americanos em Chicago.
158
Há um número indefinido de processos nascidos da hibridização contínua
de práticas e ideias neoliberais com as condições e formas locais. Para
salvaguardar as instituições financeiras e reprimir a resistência popular, o
neoliberalismo não é uma ideologia econômica ou um pacote de políticas, mas
uma 'normatividade generalizada’ (WACQUANT, 2012).
A busca antropológica do neoliberalismo como elaboração de Estado,
conforme o mercado, centra-se no mecanismo institucional para estabelecer a
dominação e seu impacto operacional para a adesão social. Loïc defende que o
Estado regula ativamente - em vez de "desregulamentar" - a economia em favor
das corporações transforma o apoio social em um vetor de disciplina; e o direito
ao desenvolvimento pessoal em uma obrigação de trabalhar em empregos
precários. Nesse sentido, o autor estabelece três teses sobre a reconstrução do
Estado (e não redução ou minimização) como uma máquina de estratificação.
Tese 1: O neoliberalismo não é um projeto econômico, mas um projeto
político; o que implica não o desmantelamento, mas a reengenharia do estado.
Em primeiro lugar, os mercados, em toda parte, são e sempre foram criações
políticas: são sistemas de troca baseados em preços que seguem regras que devem
ser estabelecidas e arbitradas por autoridades políticas robustas e apoiadas por
amplos mecanismos legais e administrativos, que, na era moderna, equivale a
instituições estatais. Em segundo, as relações sociais e os construtos culturais
necessariamente sustentam as trocas econômicas e as pessoas normalmente se
irritam com as sanções do mercado: o Estado deve intervir e superar a oposição e
controlar as estratégias de evasão. Em terceiro, o neoliberalismo não tentou
restaurar o liberalismo do final do século XIX, mas superar a falsa concepção de
Estado do último século.
Tal reengenharia institucional pauta-se nos mecanismos do mercado; na
política social disciplinar, com a mudança do bem-estar protetor, concedida
categoricamente como direito, para o trabalho corretivo, sob o qual a assistência
social é condicionada à submissão ao emprego flexível e implica mandatos
comportamentais específicos (treinamento, testes, procura de emprego); a
política espacial expansionista, pela difusão da insegurança social nas zonas
urbanas impactadas pelo trabalho flexível e pela organização da soberania do
Estado controlador; e, por último, a responsabilidade individual como discurso
motivador e fluxo cultural que compõem esses vários componentes da atividade
159
do Estado. Essa concepção vai além da perspectiva da regra de mercado, na
medida em que concede papel dinâmico ao estado nas quatro frentes: econômica,
social, penal e cultural.
Tese 2: O neoliberalismo implica uma inclinação para a direita do campo
burocrático. Aqui o autor recupera Bourdieu, e sugere que o estado
contemporâneo é atravessado por duas batalhas internas que são homólogas aos
confrontos no espaço social: a batalha vertical (entre dominantes e dominados)
opõe a “nobreza de alto estado” dos formuladores de políticas com noções
neoliberais e que desejam fomentar a mercantilização; e a "nobreza do baixo
estado" dos executantes que defendem as missões de proteção da burocracia
pública. A “mão direita” é a ala econômica que pretende impor restrições fiscais e
disciplina de mercado, e a "mão esquerda", o estado, a ala social, que protege e
apoia as categorias desprovidas de capital econômico e cultural. A via da justiça
criminal - a polícia, os tribunais, a prisão e suas extensões: condicional, liberdade
condicional, bases de dados judiciais, responsabilidades civis e burocráticas
ligadas a sanções criminais, são um componente do Estado disciplinador (mão
direita).
It follows that the velocity, magnitude and effects of this institutional torque will vary from country to country, depending on its position in the international order, the makeup of its national field of power and the configuration of its social space and cultural divisions. (WACQUANT, 2012, p. 74).
Segue-se que a velocidade, a magnitude e os efeitos da toada institucional variam de país para país, dependendo de sua posição na ordem internacional, da composição de seu campo nacional de poder e da configuração de seu espaço social e divisões culturais. (WACQUANT, 2012, p. 74).
Tese 3: O crescimento e a glorificação da ala penal do estado são um
componente integral do Leviatã neoliberal. Com poucas e precisas exceções
(Canadá, Alemanha, Áustria e partes da Escandinávia), o encarceramento
aumentou em todas as sociedades pós-industriais do Ocidente; cresceu nas nações
pós-ditaduras da América Latina e explodiu nos estados-nações.
A constituição dos pobres urbanos está fadada ao sistema prisional, à
precarização do trabalho; o que se encontra composto dos imigrantes em situação
de trabalho ilegal e semiescravidão; os pauperizados: pessoas em situação de rua,
com deficiência mental, ou física, e os idosos; a população estagnada:
trabalhadores com condições de vida e trabalho insalubres e mal pagos (BRAGA,
160
2013). Por exemplo, em junho de 2013, os donos e gerentes de 14 lojas Seven
Eleven, nos EUA, foram indiciados e cobrados por fazerem “o sistema de
plantation contemporânea”, forçando imigrantes sem documentos a trabalhar
cem horas por semana, mas pagando-lhes menos do que o mínimo e forçando-
os a viver em habitações lotadas e degradadas.
Existe uma parcela populacional à espera do trabalho que. com a
precarização do trabalho e o corte em políticas sociais, conforma-se nos pobres
urbanos; os mesmos que vivem em condições alarmantes no cotidiano e que
acabam por aceitar o trabalho e salário que tiver em vista a desregulamentação
trabalhista ou mesmo a falta de qualquer regulação prévia.
O aumento implacável da população carcerária é, além disso, apenas uma
manifestação grosseira e superficial da expansão e exaltação do Estado penal na
era do mercado em glória. Outros indicadores incluem o desdobramento agressivo
da polícia nos bairros, com a propaganda midiática do perigo criminal constante
e do combate ao “crime” como prioridade dos governos neoliberais.
Não é por acaso que os EUA ficaram hiper punitivos depois de meados da
década de 1970, assim como o trabalho precarizado, o apoio social foi revertido,
o gueto negro implodiu e a pobreza endureceu, na metrópole dualista. Não é por
acaso que o Chile se tornou o principal encarcerador da América Latina, no início
dos anos 80 e o Reino Unido a locomotiva penal da União Europeia, no final dos
anos 90, quando o Estado se torna neoliberal. Existe profunda conexão estrutural
e funcional entre o domínio do mercado e a punição, após o fim da era
keynesiana-fordista.
Em novembro de 1990, assume a presidência dos EUA Ronald Reagan e,
em 1994, inicia-se a reestruturação produtiva na América, com ondas de milhões
de demissões e aumento da carga de trabalho com o mesmo salário; enquanto
isso, os americanos mais ricos tiveram um corte de metade dos impostos. Com o
congelamento de salários, houve aumento de empréstimos, explosão de falências
pessoais, crescimento do uso de antidepressivos e encarceramento em massa, e
subida dos custos de saúde.
O Estado penal foi implantado nos países que percorreram o caminho
neoliberal porque promete ajudar a resolver os dois dilemas. a mercantilização
criada para a manutenção da ordem social e política: (1) reprime os crescentes
deslocamentos causados pela normalização da insegurança social na base da classe
161
e da estrutura urbana; e (2) restaura a autoridade da elite governante, ao reafirmar
a “lei e ordem”, justamente quando essa autoridade está sendo minada pelos
fluxos acelerados de dinheiro, capital, sinais e pessoas, além das fronteiras
nacionais e pela limitação da ação estatal por parte dos governos, órgãos
supranacionais e capital financeiro. O conceito de campo burocrático ajuda a
capturar essas missões de punição gêmeas na medida em que nos direciona a
prestar igual atenção aos momentos materiais e simbólicos da política pública -
aqui, ao papel instrumental do disciplinamento de classes e à missão
comunicativa de projetar soberania, a justiça assume. Também nos convida a
passar de uma concepção repressiva para produtiva de penalidade, que enfatiza
sua qualidade performativa (WACQUANT, 2008b), de tal forma que podemos
discernir que o aumento de orçamentos, pessoal e precedência dada aos órgãos
policiais e judiciais, em todas as sociedades transformadas pelo neoliberalismo,
como programa econômico, não são uma heresia, uma anomalia ou um
fenômeno transitório, mas componentes integrais do estado neoliberal.
Adentrando o universo carcerário, há algumas décadas, nos EUA, os
encarcerados são os negros e latinos; 13% da população no país é negra e 40% da
população está presa. Além da prisão seletiva e das péssimas condições nas
prisões103, o sistema de encarceramento em massa não funciona, tendo em vista
que 70% dos presos voltam aos sistema prisional em três anos104. Os EUA abriga
5% da população mundial e 25% dos presos no mundo e o Brasil é o 3o país no
mundo em total de população carcerária.
O projeto neoliberal, de caráter conservador e punitivo, expressa a
naturalização da sociedade capitalista e das desigualdades sociais a ele inerentes,
tidas como inevitáveis. Essa forma política realiza ainda o desmonte das
conquistas sociais acumuladas no processo de luta da classe
trabalhadora consubstanciadas na conquista de direitos sociais.
Os EUA, um país que segue o modelo de gestão neoliberal, do Estado
Mínimo; o país dos grandes monopólios, como a Amazon, o Facebook e o Google,
103Em 2013, estima-se que 30 mil presos, nas prisões de toda a Califórnia, tenham participado de uma greve de
fome para protestar contra o confinamento solitário e outras condições de tortura. 104Sobre sistema carcerário: a sociedade escandinava adotou um modelo de suspensão de liberdade com dormitório
privativo, lavanderia e comida feita pelos presos, ajuda coletiva de mentores que são preparados por 3 anos para o
cuidado, conhecimento de psicologia e valores comunitários; Os presos são encorajados a guardar dinheiro de ao
menos 50% do que ganham; o trabalho na prisão tem o mesmo valor-hora médio de fora da prisão e as celas são
quartos com duas trancas, sendo a tranca de fora usada apenas para a pernoite.
162
apresenta uma grande parcela da população em situação de precariedade. A
média de riqueza estadunidense, por raça, no ano de 2016, era de US$ 171 mil da
família branca e US$ 17.600 da família afro-americana. Em muitas comunidades,
o sistema prisional está repleto de pessoas negras, e apenas 30% da população de
americanos negros se forma na universidade.
A desigualdade só aumentou, ao longo dos últimos cem anos. Os afro-
americanos ganham menos, e estão mais suscetíveis ao desemprego, em
decorrência da discriminação racial dos patrões. Por outro lado, 75% de brancos
são proprietários de casas, enquanto menos de 50% de negros e latinos compõem
essa porcentagem.
A desigualdade, em relação à propriedade, acumulou por séculos o valor
da moradia. Durante a grande depressão, quase 50% dos proprietários urbanos
estavam endividados e, então, Franklin Roosevelt deu início ao New Deal, quando
a população passa a ter o direito ao crédito hipotecário; no entanto, a
administração federal não o concedeu em áreas que considerava de risco,
geralmente calculado com base em raça. A mudança de uma família negra era
uma ameaça ao preço dos imóveis. Quando a administração federal de hipotecas
fez o mapa indicador de quais seriam as áreas de risco, pintou de vermelho as
regiões com mais famílias negras. Os frutos do racismo viraram justificativa para
mais racismo, pois a segregação afetou o acesso a empregos; a classificação da
escola como segura; a valorização imobiliária.
Os EUA, a terra das oportunidades? A lacuna entre ricos e pobres, nos
últimos 30 anos, aumentou e os ricos ficaram ainda mais ricos. Os underclass,
novos pobres urbanos, incluem muitos afro-americanos, que estão retidos por
mais de uma geração no ciclo de pobreza. São os mais pobres que vivem em
bairros com tráfico de drogas, gangues e violência, nas grandes metrópoles. E os
negros são as pessoas que mais encontram barreiras para adquirir riquezas.
Figura 96 - Little Tokyo/LA (2018)
163
Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2018.
Em Paulicéia Desvairada (1922), Mário de Andrade insulta o burguês e ataca
as elites retrógradas que atuam no capitalismo105 dos anos 1920 na metrópole
industrializada da cidade de São Paulo. O autor, partícipe do empenho
modernista para destruir um passado literário, político e cultural que mantinha a
sociedade brasileira amarrada a comportamentos que vigoraram em fins do
século XIX, se questiona: Afinal, quem é esse burguês que se encontra plasmado
da herança conservadora do passado? Quem é o burguês em sua ode? É o inimigo
indiferente à modernização estética e social; o ser refugiado na bolha social e
linguística. O asséptico satisfeito de si, diz Mário:
Eu insulto o burguês-funesto! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Fora os que algarismam os amanhãs! Olha a vida dos nossos setembros! Fará Sol? Choverá? Arlequinal! Mas à chuva dos rosais O êxtase fará sempre Sol! (Mário de Andrade, 1922).
Enquanto Oswald de Andrade enfatizava a decadência da burguesia
cafeicultora, Mário de Andrade, ao criticar o burguês urbano, expressava o ritmo
105 Categoria de interpretação histórica.
164
da modernização e restauração da cidade de São Paulo. A metropolização torna-
se objeto do exercício poético desse escritor106. A cidade é tema fundamental de
seu primeiro e último livro de poesia: Paulicéia Desvairada (1922) e Lira Paulistana
(1945).
Do ponto de vista formal, são versos livres, uma linguagem coloquial
marcada pela irreverência e crítica às convenções burguesas, elemento tanto da
estrutura formal quanto do conteúdo crítico e radicalmente contrário à burguesia,
no mais importante momento histórico-cultural do século XX, que dá origem às
expressões artísticas concentradas na Semana de Arte Moderna, no caso
brasileiro, mas, no todo, críticas que já eram feitas no romantismo e que se
agudizam no modernismo; a postura revolucionária no intento de romper com
os velhos padrões na arte e literatura.
Figura 97 - Casarão na Avenida Paulista, 1919, entre as ruas Pd. João Manuel e Alameda Ministro Rocha Azevedo, construído em 1905, foi a residência do Barão do Café,
Joaquim Franco de Mello
Fonte: Imagem por Julio Rocha, 2016 (companheiro da autora).
Os processos de modernização e de modificação urbanas acontecem
inúmeras vezes ao longo da reprodução do capital.
[...] a urbanização do capital pressupõe a capacidade de o poder de classe capitalista dominar o processo urbano. Isso implica a dominação da classe capitalista não apenas sobre os aparelhos de Estado (em particular, as instâncias do poder estatal que administram e governam as condições sociais e infraestruturais nas estruturas territoriais), como também sobre populações inteiras -
106 Em 1922, depois de ter participado da Semana de Arte Moderna, lançou a primeira edição de Paulicéia Desvairada. Sobre a cidade, publicou também outros livros de poemas, como Lira Paulistana (1945).
165
seus estilos de vida, sua capacidade de trabalho, seus valores culturais e políticos, suas visões de mundo. (HARVEY, 2014, p. 133).
O poeta modernista está consciente das modificações modernizantes de
sua cidade natal, no processo de expansão do capital, e busca uma linguagem para
exprimir a metrópole. A cidade explode em setores de comércio e indústria.
Demograficamente e na implantação de equipamentos e serviços, ocorrem a
crescente ebulição e reprodução do espaço urbano destinadas à valorização do
solo urbano. Nesse processo, a metrópole paulistana cria uma identidade própria
com a verticalização do maior centro da América do Sul.
À época de Mário de Andrade, o momento estético parametriza-se por um
modernismo importado da Europa, na “vanguarda brasileira”107. Há uma
independência mental brasileira, mas com claras inclinações para as influências
europeias, ao mesmo tempo em que conseguir uma expressão artística brasileira
era um dos principais objetivos do modernismo.
Em 1942, Mário de Andrade situou os alvos do movimento: o direito
permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e
a estabilização de uma consciência criadora nacional. Essa busca da brasilidade
respondia, no plano cultural, às profundas modificações vividas pela sociedade
brasileira e, especialmente, pelas elites paulistas, nos primeiros 20 anos do século
XX. Anos de intensa ebulição cultural e do nascimento, no Brasil, da cultura
urbana. A abolição da escravatura, a industrialização, os ciclos migratórios,
deslocaram a supremacia da aristocracia rural para uma oligarquia urbana de
sotaque estrangeiro, no intenso crescimento do intercâmbio com a Europa e os
EUA.
No século XXI, a Europa Central perde esse caráter influenciador das
tendências artísticas e culturais, e torna-se inegável o potencial influenciador dos
EUA na cultura mundializada - num mundo em que o imperialismo burguês
apresenta caráter hegemônico. A ética consumista hedonista propõe o modelo
estandardizado, a hiperglobalização, a partir da esfera de mercado global, que têm
na revolução informacional a agilidade para fixar imagens que influenciam, a
partir da cultura do consumismo, culturas do mundo inteiro.
107Tarsila do Amaral, de família rica alicerçada na fortuna do latifúndio e da monocultura cafeeira, estuda na
Europa; Oswald, 10 anos antes da semana de 22 também volta da Europa impressionado com os movimentos
renovadores, como o futurismo de Marinetti, e os versos livres de Paul Fort; Anita Malfatti estuda na Alemanha e
nos EUA no choque de se romper com a tradição predecessora dos objetos e faces delimitadas pelo expressionismo
e as paisagens deformadas; o escultor Victor Brecheret volta de Roma/Itália em 1917.
166
Para Trotsky, do ponto de vista histórico-antropológico, a civilização
aparece com o surgimento da cultura (kultur), isto é, quando agrupamentos
humanos criam e transmitem formas de conhecimento, valores e representações.
Vinculados a um modo específico de produção da vida material de dadas
sociedade e época, trabalho e cultura estão nas raízes do processo de constituição
e desenvolvimento humana/o. É pelo trabalho que o ser se autoproduz e satisfaz
as necessidades de sobrevivência enquanto conservação da existência: alimentos,
proteção, roupas, habitação, comida e bebida. Após satisfeitas as necessidades
básicas, outras aparecem e o atendimento dessas novas necessidades constitui o
primeiro ato histórico.
Por outro lado, em Lukács, a cultura aparece de maneira oposta à
civilização (Zivilisation), compreendendo o conjunto das objetivações dotadas de
valor e supérfluo ao sustento imediato. “Por exemplo, a beleza interna de uma
casa pertence ao conceito de cultura; não sua solidez, nem sua calefação, etc.”
(LUKÁCS, 1978, p. 3]. Em Marcuse (1982), há um conceito de cultura geral que
expressa a implicação do espírito no processo da totalidade da vida social em
determinado momento histórico, tendo em vista que a reprodução de ideias –
nos âmbitos cultural e espiritual – e a reprodução material – a civilização – devem
ser entendidas como unidade indissolúvel. A cultura é articulada às outras esferas
da vida social, e decifrada nas tendências sociais gerais dos fenômenos e pelos
quais seus interesses se realizam.
Nos últimos 40 anos, as mudanças na economia e na política, acentuam as
modificações nas demais esferas da vida social. A condição do capitalismo
mundial alterou-se muito e no âmago desse processo a lógica cultural do
“capitalismo tardio”108(JAMESON,1984) também se modifica. O tempo e o espaço
sociais são constructos culturais que dependem, portanto, do modo distinto de
produção agregado de conceitos sociais de espaço e tempo (HARVEY, 1992).
A apreensão do tempo na atualidade coloca o indivíduo refém do instante
presente por não se abrir ao passado e nem ao futuro, o que permite dizer que a
atuação em projetos, do indivíduo que não apresenta identidade pessoal, a qual
depende da persistência do ‘eu’ através do tempo, será nula, pois, este não se lança
ao futuro. A sociedade industrial dependia de uma identidade persistente a
108 Ou capitalismo transnacional, sociedade da imagem, capitalista midiático. Lembramos que Jameson parte de
Derrida e Guy Debord para as elaborações teóricas às quais temos nos referido.
167
sociedade do esgotamento (Byung-Chul Han) necessita de flexibilidade, multitarefa
para o aumento produtivo.
Assim considerado pela linha do pensamento crítico americano, o pós-
moderno109 caracteriza a dimensão cultural da fase superior do capitalismo
avançado (HARVEY, 1992).
Na pós-modernidade, embora incorpore a razão instrumental
caracterizada na modernidade, expressão cultural do capitalismo em seu período
de expansão econômica, consubstanciado no fordismo e na política de bem-estar
social do Estado keynesiano, acrescentam-se ainda formas irracionalistas de
apreensão, expressão e representação da realidade.
Quando, em 1984, faz o ensaio Mapeando o Pós-moderno, Andreas Huyssen
indica que a trajetória do pós-moderno apresenta uma confusão de códigos, o que
dificulta o entendimento e a demarcação desse período histórico. De toda forma,
o autor identifica que ali, na década de 1980, há uma transformação cultural
sensível em curso, que modifica os parâmetros na estética e nos modos culturais,
no entanto, seu ponto de vista difere do defendido por Fredric Jameson110, pois o
último, identifica o pós-moderno com a lógica de um novo estágio de
desenvolvimento do capital, não nos esqueçamos que, é também na década de 80,
o principal momento em que no complexo de reestruturação produtiva, o
Toyotismo111, alcança poder ideológico na era da mundialização do capital e de
sua forma societal manipulatória.
Nosso entendimento é que, se continuamos no capitalismo em chamas, não
é possível ser outro tempo histórico e a relação de continuidade mantida, ou não,
já que o próprio termo ‘pós-modernismo’ o estabelece enquanto fenômeno
relacional: “O modernismo do qual o pós-modernismo se separa permanece
109 “Para começar, alguns breves comentários sobre a trajetória e as migrações do termo `pós- modernismo`. Em
crítica literária, a expressão remonta ao fim da década de 50, quando o termo foi usado por Irving Howe e Harry
Levin para lamentar a queda de nível do movimento modernista. [...] foi usado enfaticamente pela primeira vez
nos anos 60 por críticos literários como Leslie Fiedler e Ihab Hassan, que sustentaram visões amplamente
divergentes do que fosse literatura pós-moderna. Foi somente no início até meados da década de 70 que o termo
ganhou um curso mais geral, aplicando-se primeiramente à arquitetura e depois à dança, ao teatro, à pintura, ao
cinema e à música.” (HUYSSEN, 1984, p. 24 - self made translation). 110 Jameson foi estimulado pelo estudo de Ernest Mandel - Late Capitalism/O Capitalismo Tardio/ de 1977. 111 “[...] o potencial heurístico do conceito de toyotismo é limitado `a compreensão de uma nova lógica de
produção de mercadorias, novos princípios de administração da produção capitalista, de gestão da força de
trabalho, cujo valor universal é constituir uma nova hegemonia do capital na produção, por meio da captura da
subjetividade operária pela lógica do capital.” (ALVES, 2010, p.31).
168
inscrito na própria palavra com a qual descrevemos nossa distância do
modernismo” (HUYSSEN, 1984, p. 22).
Passados todos esses anos, conseguimos identificar novas formas estéticas
ou reciclagens do modernismo, ou mesmo outros tempos históricos da cultura?
Se o consideramos um tempo histórico, o pós-modernismo ainda está vigente?
Quais as características potencialmente transformadoras, na perspectiva
emancipatória, que se vinculam a um ideário pós-moderno? Em termos de arte,
a vertente crítica deixa de existir? Se levarmos ao campo da arte conceitual
contemporânea, talvez sim. Mas basta olhar para o rap, o teatro e as artes urbanas
para sabermos que há uma busca potencial de crítica social fundante.
Partimos para a análise do pós-moderno enquanto uma ideologia, ou "uma
forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada"
(MÉSZÁROS, 1996, p. 22), donde a cultura se caracteriza como elemento
específico da sociedade de consumo, um processo de culturalização, tal como
vemos em Jameson. A dinâmica ideocultural do pós-moderno contribui para
reverter os avanços políticos da década de 1960 e o avanço ao conservadorismo?
Ou essa dinâmica está imbuída de críticas e rebate exatamente a perda desse
poder de questionamento que o “alto modernismo” atinge ? A cultura vincula-se
aos sujeitos históricos que a produzem e, portanto, se vincula a certas condições
de existência, produção e reprodução social.
até que ponto modernismo e vanguarda, como formas de uma cultura de oposição, estiveram, entretanto, conceitual e praticamente ligadas à modernização capitalista e/ou ao vanguardismo comunista, esse irmão gêmeo da modernização. (HUYSSEN, 1984, p. 24).
Se o modernismo continha, no seu interior, o racionalismo, o movimento
futurista e concretista e o anticapitalismo radical, romântico e utópico, também
continham os posicionamentos modernizantes e os antimodernos. Não podemos
crer que a versão do modernismo tão somente triunfou e, portanto, a nossa
referência para a cultura unicamente pode ser ela e nos esquivar íamos
prontamente do “pós-modernismo”, sendo que, como diz José Paulo Netto (2010,
p. 15): “O que se pode designar como movimento pós-moderno constitui um campo
ídeo-teórico muito heterogêneo e, especialmente no terreno das suas inclinações
políticas, pode-se mesmo distinguir uma teorização pós-moderna de capitulação
e outra de oposição” (grifos do autor).
169
Na década de 1960, nos EUA, nas artes, o estatuto de museu surge como
detentor de seleção da riqueza artística. A fase inicial do pós-modernismo envolve
um ataque iconoclástico à “arte institucional” (BÜRGUER, 2008). O modo como
a arte é socialmente percebida e como é produzida, distribuída, comercializada e
consumida. Na teoria da vanguarda, o autor argumenta que a principal meta das
vanguardas europeias - o movimento Dadá, o início do movimento surrealista e
toda a arte de vanguarda pós-revolução soviética -, foi atacar e minar a arte
institucional burguesa. Ou seja, a separação da “grande arte” da vida cotidiana.
Como vemos nas defesas de Trotski (1981), a fusão entre arte e vida, quer romper
com a tradição da “obra de arte autônoma”.
A arte moderna emancipa-se de instâncias das quais dependia, como o
reino, a aristocracia, o clérigo, a igreja. A/o artista individual ganha notoriedade
pelo desenvolvimento autônomo imputado nas obras de arte.
A principal característica da arte na idade moderna é sem dúvida a autonomia. A ordem burguesa não só liberou a arte de suas tutelas tradicionais (da igreja à corte), como instalou-se num mundo à parte, muito além do domínio material da reprodução da vida. Graças a essa transcendência da dimensão estética, passou para o primeiro plano o livre desenvolvimento da obra segundo sua legalidade interna. [...]. A arte autônoma deve portanto sua emancipação à racionalização capitalista da dimensão cultural. [...] Cumprindo seu destino moderno, a arte verá sua autonomia converter-se em princípio de dissolução. (ARANTES, 1998, p. 22).
Na década de 1960, a politização da cultura, caracterizada como de
contestação, tem, em uma de suas vertentes, o discurso anti-institucional, que se
torna força motriz para os pós-modernistas americanos:
Talvez pela primeira vez na cultura norte-americana fez sentido político uma revolta vanguardista contra uma tradição de grande arte e o que era percebido como seu papel hegemônico. A grande arte havia florescido e se institucionalizado na cultura burguesa dos museus, galerias, concertos, discos e livros de bolsos dos anos 50. (HUYSSEN, 1991, p. 38).
Essa vanguarda anti-institucional é a da contracultura, dos movimentos
pacifistas, das revoltas universitárias, de visão antagônica à “grande arte” dos
museus, identificadas com aquelas vanguardas e que está vivenciando o primeiro
dos diversos momentos de booms tecnológicos. São dessa década o primeiro chip,
a fita cassete, a TV em cores, o braço mecânico automatizado – o robô industrial.
Os formatos de performances, happenings, vídeo-arte, as artes psicodélicas, os
teatros alternativos e de rua abraçam as novas tecnologias pós-industriais (1960,
170
70 e 80) que se tornam parte da estética do pós-moderno, isso mesmo nos dias
atuais quando se convenciona o uso dos microfones sem fio, por exemplo, nas
performances, uma tecnologia surgida na década de 1980.
Os anos 1960 foram de questionamentos políticos e também artísticos
quanto ao papel do artista, a função do público, o sistema artístico de produção e
exposição. O público é repensado em posições ativas, retirando-o de uma situação
contemplativa perante a produção artística. Questiona-se também a ideia de obra
como algo relativo ao divino, eterno e merecedor de contemplação, surgindo a
ideia de difundir a arte no cotidiano e mesmo apresentá-la efemeramente.
Questionavam-se instâncias até então legitimadoras da arte: os museus, as
galerias, os institutos e também o mercado de arte, o que resultou em crescente
negação e insubordinação dos artistas112.
Quando então o pós-moderno passa a ser o tempo de hegemonia do
capital? Justamente o tempo em que o pensamento da oposição não é mais
operante na cultura, do ponto de vista da crítica teleológica, no momento de
radicalidade do fetichismo da mercadoria como a nossa natureza e realidade
únicas e a pulsão de morte, o conformismo, a indiferenciação e o hedonismo
enquanto realização do ser, tomam conta (HANSEN, 2000).Na década de 1970 é
que a noção teleológica começa a ser extinta e se inicia o período “pós-
vanguardas”; as distinções perdem terreno, os movimentos da década anterior
passam a ser questionados. Esse é o momento em que ganha força o fragmento, a
dispersão, o pastiche, o saque do vocabulário, imagens, temas e formas pré-
modernos, não modernos e modernos. Em 1970, as bases de sustentação do
capitalismo mundial começam a mostrar sinais visíveis de exaurimento em suas
formas de produção e reprodução, impulsionando uma das maiores crises do
modo de produção capitalista: a crise de superprodução, a queda tendencial da
taxa de lucro, crise do petróleo, o fim do padrão ouro internacional, e início da
derrocada de um tipo de ideário socialista - com a crise do socialismo real
existente.
Desse momento em diante, passamos a armazenar tudo nos computadores
e a cultura de massas, que incorpora todas as conquistas artísticas no campo da
112 Utilizar-se dos espaços abertos de maneira a assumir novas relações entre o privado e o público, em oposição
à academia, às escolas de artes e às galerias, e nascer enquanto arte de protesto é um dos potenciais das artes de
rua.
171
publicidade, ganha vida. Naquela década, há o advento dos microprocessadores,
e em 1976 o Apple I torna-se o primeiro computador pessoal. Também se
embaralham as noções daquilo que se torna uma lacuna e um borrão, entre a
grande arte e a cultura de massas, em que tudo se torna arte, e se cristaliza em
princípios do século XXI.
A valorização extremada do prazer imediato e individual nasce no mundo
capitalista moderno. Na etapa atual histórica, a cultura é também produto, a partir
da venda dos “estilos de vida”, a cada nova tendência e novo padrão de
comportamento individual e social, surgem novos nichos de mercado: “a
produção estética hoje está integrada à produção das mercadorias em geral: a
urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que cada
vez mais pareçam novidades” (JAMESON, 1991, p. 30).
Será bem-sucedida a tese de que a pós-modernidade é a força motriz de
influência na reprodução cultural na contemporaneidade? E em que medida?
Tudo é arte ou o fim da “obra de arte?” Mas, e as razões de ser dos movimentos
neoconservadores, neofascistas, reacionários, estarão vinculados a esse ideário?
Ou como entender a relação dialética entre alvorecer e decadência, destruição e
novos processos de encadeamentos artísticos?
Para David Harvey (1993), a experiência da temporalidade humana, na
“condição pós-moderna” é esquizofrênica113. O esquizofrênico é aquele que
vive num presente perpétuo sem fazer conexões entre passado, presente e
futuro. A experiência concreta do tempo pode se dar pela linguagem, quando
conectamos fatos da nossa história em frases, mas o esquizofrênico não chega
a articular a linguagem dessa maneira, vivenciando, portanto, como assinala
Frederic Jameson (1984, p. 22), que será “[…] uma experiência da materialidade
significante isolada, desconectada e descontínua que não consegue encadear-
se em uma sequência coerente”.
A apreensão do tempo, na atualidade, coloca o indivíduo refém do instante
presente numa “contemplação virtual hipnótica” por não se abrir ao passado e
nem ao futuro, o que permite dizer que a atuação em projetos é do indivíduo que
não apresenta identidade pessoal, a qual “[…] depende da nossa persistência do ‘eu’
e de ‘mim’ através do tempo” (idem), será nula, pois o homem, como projeto, é
113 A esquizofrenia refere-se aqui a um modo de compreender a realidade; nesse sentido, não se propõe, de
forma alguma, a constituir-se como diagnóstico.
172
aquele que se lança ao futuro. Jameson continua:“O esquizofrênico está sujeito
desse modo a uma visão indiferenciada do mundo no presente, uma experiência
que não é de modo algum agradável” (1984, p. 23).
O presentismo como ideologia dominante da pós-modernidade dá
sustentação a todas as formas de alienação, em que a fuga da realidade anestesiada
na imediaticidade do prazer interfere no modo de vida dos seres sociais. É o que
notamos no bojo de tal conjunto heterogêneo de ideias e valores - a ressonância
cultural cotidiana e não apenas no campo da arte ou no campo estético. E aqui,
novamente, concordamos com Jameson quanto a uma lógica cultural da
sociedade “pós-industrial”, em algo colado ao econômico, por isso ser difícil
examiná-la em separado.
A “cultura de consumo” devora objetos, ideias e ideais “[...] e, nela, a própria
distinção entre realidade e representações é esfumaçada: promove-se uma
semiologização do real, em que os significantes se autonomizam em face dos
referentes materiais e, no limite, se entificam”. (NETTO, 2010, p. 14, grifos do
autor).
Se pensarmos no potencial da comunicação nesse processo como um
elemento importante que se aglutina à fase a-histórica da ideologia, verifica-se a
produção cultural do mundo todo de muitos períodos históricos, o que
complementa a “aflição contemporânea” de que tudo já foi feito. Parece que um
ideário pós-moderno se aproveita justamente da crise do moderno.
O incêndio do prédio do Museu Nacional114, na Quinta da Boa Vista, no Rio
de Janeiro em 2018, é o símbolo da falência da sociedade brasileira e de um tipo
114 Em 10 junho de 2018, o Museu Nacional, localizado no Rio de Janeiro completou 200 anos, pouco menos de
2 meses depois, foi devastado pelas chamas. Em 2010, o incêndio foi no Instituto Butantã; em 2013, no Memorial
da América Latina; em 2014, o Liceu de Artes; em 2015, o Museu da Língua Portuguesa; em 2016, a Cinemateca;
e agora, em 2018, o Museu Nacional. O Museu Nacional continha, entre tantos itens, o maior acervo de peças,
documentos e pesquisas sobre os povos indígenas na América do Sul. Coleções etnográficas, de aracnídeos,
borboletas, insetos e moluscos, fósseis, a biblioteca do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do
museu, um dos acervos mais completos na área, contando com 37 mil volumes, constituído ao longo de mais de
50 anos.
173
de sociedade chamuscada. Vimos no Brasil o adensamento da conduta
reacionária, o descaso a certa história que aconteceu no País, somado aos
etnocídios e extermínios diários, estão marcados no nosso sangue. Que país é esse
que não vê valor na proteção das origens? No irracionalismo, a história não
importa, principalmente nos países que devem ser controlados para não serem
potência, como o Brasil.
Os objetos guardados em formol, mumificados, ou preservados atrás dos
vidros das vitrines, compunham a exposição do passado. No Brasil, a dizimação
de muitos povos, como os Tupinambá, fez com que todo esse material coletado
ao longo dos séculos, somados às pesquisas desenvolvidas especialmente no
século XX, tenha se tornado fonte de conhecimento e retomada de uma história
que – passada oralmente por vários séculos antes e mesmo depois do processo de
colonização – desapareceu com os povos que as alimentavam. Tudo o que
compunha a história dos chamados povos sem história. Além de múmias egípcias,
coleção greco-romana, fósseis de animais pré-históricos, o crânio mais antigo
encontrado em território nacional e nas Américas *Luiza*, objetos de antigas
culturas sul-americanas, bibliotecas doadas por cientistas ligados ao museu,
documentos históricos, relatórios científicos raros ou não, coleções de espécies da
fauna, flora e da geologia, especialmente das brasileiras, coletadas ao longo de
quase dois séculos por pesquisadores de várias procedências.
Boa parte do acervo era também objeto de pesquisas atuais, de arqueólogos,
antropólogos, biólogos, historiadores, que tinham nesses objetos a fonte primária
de seus trabalhos acadêmicos. Tudo o que estava guardado no edifício do Museu
virou cinza.
Ainda perdemos a nossa cultura devastada pela invasão portuguesa, um
massacre de vidas e de saberes que assola até hoje nossa cultura originária. Depois,
ao longo do processo de miscigenação advindo dos colonizadores, fugitivos de
guerra, imigração constante ao longo dos últimos 140 anos vimos compondo uma
outra base de saberes e vivências culturais que mais uma vez vem sendo dizimada.
Ora, esse é um contínuo processo de dominação.
Por outro lado, danificar, destruir e inscrever em esculturas públicas pode
ter um significado de questionar a memória e a história. Afinal, por quê temos
174
figuras gigantescas de colonizadores e assassinos ao longo das cidades, nomes de
ruas de ditadores e não temos explícitas as figuras representativas, saberes e povos
originários ou das classes populares? Quando questionam a postura do
movimento de pixadores que destroem monumentos históricos, o que se
defende? São monumentos feitos por quem, para quê? O Pixo Manifesto Escrito
(PME) foi um exemplo de guerrilha anônima iniciada nas mobilizações com o
movimento passe livre em 2013 na cidade de São Paulo: fizeram atos como pixar
o Monumento à Bandeira, quando da aprovação da Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) 215115. Esse foi um dos momentos de participação política mais
efetiva pelos pixadores que vinham no ano de 2013 se engajando nos atos pelo
passe livre. Todos os protestos realizados pelo PME geraram repercussão sem
expor ou creditar os membros do grupo pelos feitos (Fig. 98).
Figura 98 - Monumento às bandeiras, escultura de Victor Brecheret, foi alvo de tintas
como formas de protesto diversas vezes e também com outros intuitos
115A principal medida prevista pela PEC 215 (em tramitação desde 2000) pretende transferir do poder Executivo para o
Legislativo a atribuição de demarcar as terras indígenas. O Congresso brasileiro tem uma bancada ruralista e de apoio ao
agronegócio muito forte. Segundo estudo produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA), esta transferência de competência
“impactaria diretamente os processos de demarcação de 228 Terras Indígenas (TIs) que ainda não foram homologados. Essas
terras representam uma área de 7.807.539 hectares, com uma população de 107.203 indígenas. Outro aspecto relevante é a
abertura das TIs para empreendimentos de alto impacto socioambiental, como estradas e hidrelétricas – o que é proibido na
atualidade e pode afetar todas as 698 TIs do país. […]”. Ainda o texto também analisa as inovações incluídas pelo deputado
Osmar Serraglio (PMDB/PR) no relatório da PEC 215 apresentado no início deste mês. Entre elas, estão a possibilidade de
aplicação retroativa dos efeitos da PEC sobre TIs já demarcadas, homologadas e registradas e a inclusão da tese do “marco
temporal” no texto constitucional – tanto para Terras Indígenas, quanto para Territórios Remanescentes de Quilombo. De
acordo com essa tese, só teriam direito às terras as populações que detivessem sua posse em 5 de outubro de 1988, data de
promulgação da Constituição. Caso a PEC 215 e as propostas agregadas a ela sejam aprovadas, os pesquisadores do ISA
também preveem uma diminuição drástica na criação de Unidades de Conservação (UCs) – como parques e reservas –, uma
vez que a atuação dos parlamentares nesse sentido é inexpressiva: das 310 UCs federais criadas nos últimos 65 anos, apenas
cinco foram iniciativa do Congresso – ou 0,03% da área total das UCs federais. A proposta pode paralisar ainda os processos
de reconhecimento de 1611 Territórios Remanescentes de Quilombo em andamento em diferentes regiões do país. (Disponível
em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/pec-215-pode-paralisar-228-processos-de-demarcacao-
de-terras-indigenas. Acesso em: janeiro de 2017).
175
Fonte: Imagem por Cripta.
O monopólio das influências culturais através de símbolo e poder
apresentam funções sociais, este é um fenômeno criado desde fins do século
passado que destrói organicamente as memórias históricas. Edward Said diz que
a cultura é uma forma de memória contra a aniquilação, uma forma de luta contra
a extinção e a obliteração, para ele a cultura pode ser uma ameaça para o poder,
uma forma de resistência descolonizante, sendo a colonização perda do lugar para
o estrangeiro.
As histórias da formação das colonizações e independências, das
ditaduras e lutas pelas democracias, dos fugidos e libertos, podem ser
recompostas na evocação de lembranças, experiências e histórias de vida
daqueles que ficam para semente - os velhos e velhas guardiões da memória.
Narrativas que, no campo da moral, normatizam vidas, transmitem saberes e
curas, lembram o que deve ser lembrado e assumem identidades na vida
cotidiana. A memória, em nosso cotidiano, liga o presente ao passado; mostra
a diferença e aponta a repetição, o que eu fiz ontem, o que farei hoje; permite-
nos distinguir comportamentos, determinações.
Quem é visto é lembrado, e a rua é uma potente mídia de divulgação de si
mesmo. Quem não quer deixar uma marca na história? Alexandre Barbosa
Pereira, no artigo Quem não É Visto não É Lembrado: sociabilidade, escrita,
visibilidade e memória na São Paulo da Pixação, discute como a pixação
configura-se como um dispositivo de sociabilidade, reconhecimento e memória
para os protagonistas escritores jovens moradores das periferias. É um desejo
permanente de ser lembrado, típico do indivíduo contemporâneo, que tem o
176
risco real de perder-se nas massas. Ser esquecida/o é a impermanência finita, a
luta pela sobrevivência é também a luta por ser imortal. O curioso é que ao
mesmo tempo que se torna memória, a arte urbana pode ser apagada a qualquer
momento sendo algo de temporalidade fugaz.
Em Jean-Pierre Vernant o “passado” aparece como parte do cosmo e a
exploração dele e o canto da Mnemosyne, um deciframento do invisível, do
sobrenatural. A memória evoca o passado que aparece como dimensão do além.
A Deusa Mnemósine é irmã do tempo e mãe das Musas. Narrar é uma forma de
sobreviver a morte e permanecer na memória e na transmissão de uma geração
para outra. (Anita Guimarães). A memória pode ser filha do tempo mas nem
sempre o seu tempo é cronológico. A memória sofre flutuações a depender do
momento que é acionada.
Por exemplo, a memória de indivíduos que viveram uma situação
traumática, difere da memória de meses após o trauma. Nesse caso, memória
triste, a saber, aquela que pode provocar necessidade de esquecimento. Para quem
viveu uma guerra ou outras experiências traumáticas muitas vezes o calar é
frequente. Em face da lembrança traumatizante, o silêncio parece se impor a
todos aqueles que querem evitar culpar as vítimas e quem é vítima prefere o
silêncio. Ainda existem aqueles que sofreram traumas e que se aprisionam ao
passado e que retomam o mesmo ponto quando, por instância, o corpo de algum
ente querido não foi encontrado após anos ou foi brutalmente torturado e
assassinado. Há a necessidade de reparação, encontro com a verdade. Em outra
mão ao lermos na revista Veja "Ditabranda" ou na Folha de S. Paulo "Pra que mexer
no passado?" a ordem do discurso de lembrar ou esquecer o passado se entrelaça
à persuasão para o esquecer. Ou o lembrar se torna mexer em ossos pesados que
podem alterar conjunturas políticas, favorecimentos, situações acomodadas de
quem prefere manter verdades e lembranças esquecidas.
As narrativas dos povos originários Dessanas (Brasil) dizem que não há
cronologias ou datas de quando foi criado o sol, a lua ou as estrelas. Existe uma
memória que recoloca o sentido das coisas e relaciona a origem do mundo com a
vida do modo de viver que informa a arte, a música e os cantos. Na memória da
antiguidade do mundo, montanhas tem sentimentos, igarapés, cachoeiras e
bichos são parentes e cada um compondo grandes famílias no sentido universal
da criação.
177
Platão escreveu que a natureza mortal procura, na medida do possível, ser e ficar
imortal. O lugar da memória é o ser imortal, o que foi deixado de legado e
aprendizado na história, valores, culturas e constante mutação. Em meio a nossa
sempre constante incapacidade de entender a magia da vida, temos no
abafamento estressante do mundo moderno, corpos e mentes atados à
imediaticidade, presos no presente perpétuo, naturalizando a barbárie sem
possibilidade de criar um futuro proibido pois a história acabou e nossas mentes
criadoras estão atadas e cegas. O que lembramos na inversão da criação da
humanidade é que há sempre o caráter de transformação da realidade pelas
objetivações humanas: no trabalho, na arte ou na ciência, o que se faz modificar
as estruturas da tradição para algo novo.
No Brasil, tem sido frequente a tentativa de apagar a história das violências
do passado nas ditaduras latino-americanas e do fascismo e nazismo. Tenta-se
naturalizar as violências para servir de mote às truculências do presente. Uma
forma de “esquecimento organizado” (Rosas, 2010)
No ano de 2019, é empossado o atual presidente do Brasil, e o cenário de
desinformação, des-historicização, à medida que o critério de validade de notícia
e história se torna flutuante e opinativa, crível com uma foto descontextualizada,
um título chamativo e com a narração inventada. É assim que, no quinto maior
país do Mundo, o maior país da América do Sul, aqui, a esquizofrenia está
implantada enquanto ideologia. Chega-se ao absurdo de comemorar, aberta e
oficialmente, o golpe de 1964, antes o revisionismo historiográfico (que durante
mais de duas décadas procurou suavizar o terror da ditadura para as gerações mais
recentes) já havia se instalado na antessala da barbárie para lhes abrir a porta.
Enquanto nosso atual governo proclama a nova política, a mais antiquada,
a escola sem partido, na verdade, a escola sem criticidade, fica cada vez mais
evidente, ou escamoteado, o uso das várias formas de ideologia - discursos de e
sobre a moralidade, a religião, a política e a arte.
Não é a primeira vez que tentam nos convencer disso; lembremo-nos do
período do pós-guerra, em que estudantes foram levados a acreditar no fim da
ideologia. É essa a estratégia de rotular a esquerda como um todo de “ideólogos”
e reivindicar para si - o governo atual, por exemplo - a imunidade relativa à
corrupção e a toda forma de ideologia, colocando-se fora da política, estando
dentro dela de maneira falaciosamente neutral.
178
O desejo por beleza e significados é fundamental na existência humana e
algumas formas artísticas, têm se expressado ao longo de todos os períodos, como
a dança e a grafia em paredes. Antes do desenvolvimento do mercado cultural de
pinturas privativas surgido no Século XVII na Holanda, a maior parte das artes
eram públicas, comissionadas pela realeza, o clérigo ou cidadãos poderosos pela
glória comunitária e enaltecimento de conquistas e assim eram colocadas nos
espaços públicos.
Figura 99 - Graffiti no Brás - SP (2015).
Fonte: Imagem cedida pelo artista Paulo Ito.
179
No entanto, o cenário se modifica após a revolução industrial e do
desenvolvimento do Capitalismo, donde os valores econômicos sobrepõem se aos
valores de sociabilidade. A cidade, enquanto produção de riquezas e multiplicação
das desigualdades, ao segregar os grupos e as classes sociais, é espaço de luta para
a fruição e produção da vida urbana, como espaço coletivo de sociabilidade. O
grafiteiro e o pixador, habitantes da cidade, afirmam o território e transformam
a sua ação pincelada em cenário da cidade; sendo a pincelada, ou a sprayada,
decorativa ou de demarcação identitária.
A desigualdade crônica brasileira é aguda, tal qual a de NY dos anos 70 e a
São Francisco e a Los Angeles dos anos 2000 e a vibrante cultura do graffiti é
exponencial, em ambos os locais. A pixação, enquanto forma de tag tipicamente
brasileira, e mais singular em São Paulo, é originária dos bairros pobres. Uma
caligrafia crua, em preto, normalmente alongada. As tipografias vêm sendo
desenvolvidas por muitas mãos, ao longo do tempo. Uma marca urbana, um
vandalismo sagaz, advindo daqueles totalmente desprovidos de direitos. Em São
Francisco, o muralismo chicano, realizado por artistas de origem ancestral latina,
marcadamente mexicana, é referenciado no muralismo mexicano e apresenta um
viés social e político bem definido. Em Los Angeles, a repressão policial é intensa
e os graffitis estão mais escondidos ou em locais bem demarcados. As metrópoles
amplamente culturais apresentam um urbanidade desenvolvida com
particularidades urbanísticas e uma desigualdade social atroz que no mais se
presentifica no crescimento contínuo da população em situação de rua.
No Brasil e nos EUA são os negros dentre todos os ainda mais perseguidos
e confinados, os que estão mais sujeitos à violência policial, ao preconceito, à
discriminação, ao estigma fortemente presentes em uma sociedade de classes de
exploração e opressão. O subúrbio alastra-se e espalha-se. Os escritores das ruas
têm a chance da fama, de publicar seus nomes do mesmo jeito que veem as
marcas e publicidades estampadas em painéis de ônibus116. Do caos à
experimentação artística, o graffiti é tanto um conjunto de manifestações da
questão social quanto a reação artística a essas expressões. Enquanto parte da
116 Em 2007 foi regulamentada a lei municipal 14.223, a Lei Cidade Limpa visou reduzir a poluição visual na
cidade, principalmente a partir da proibição de propaganda em áreas externas da cidade. Antes da lei Cidade Limpa,
na capital Paulistana, toda a comunicação visual de mídia exterior(outdoors, faixas e anúncios) competiam entre
si, assim como acontece na Time Square, por exemplo. No entanto, esta mesma lei, deixou uma única exceção: a
publicidade em espaços externos só seria possível no mobiliário urbano (ou seja, pontos de ônibus, totens,
banheiros públicos, entre outros, incluindo, portanto, bancas de jornais e revistas).
180
cultura geral, a cultura de rua apresenta a voz sistematicamente negligenciada da
sociedade. Uma possível forma de desenvolver habilidades e alcançar algum tipo
de sucesso.
A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros. A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade. (ANTROPOFAGIA PERIFÉRICA, Sérgio Vaz117).
Os muros fazem parte da arquitetura e da cultura das cidades, são símbolos
da separação e da fragmentação sócio-cultural e do segregacionismo entre classes
e do ponto de vista político, as implicações da realização dessas atividades nascem
imbuídas de rebeldia expressas nas marcas inscritas nos muros, edifícios e
monumentos das cidades. No Brasil, 84,35% das pessoas habitam e/ou vivem em
situação urbana, nos EUA 80,7% da população está no meio urbano.
A arte urbana de rua, marcadamente o graffiti e o pixo é um protesto instintivo
fruto da desigualdade social vivida por jovens das periferias e favelas. Ao increver-
se desenhos e símbolos em um muro, uma lateral de prédio pela cidade é uma
forma de marcar um local a que não tem acesso.
A precariedade de condições de vida, moradia e trabalho a que são submetidas
a maior parte da população jovem, negra; o descaso do Estado mínimo; a muralha
cultural da elite; a segregação territorial; a gentrificação urbanística estão
presentes na vida cotidiana de grande parte daqueles que fazem a guerrilha do
signo por meio da arte urbana. O pixo e o graffiti são as vozes da cidade que
clamam por igualdade de direitos, de condições e acesso. O gueto e a periferia
estão vivos!
O graffiti intervém na paisagem urbana, atinge diretamente a população
transeunte e apresenta uma concepção de mundo que escancara a principal
fronteira da divisão social, a propriedade privada, ao mesmo tempo em que nega
a principal forma da sociedade de classes - a mercadoria. O graffiti não é
institucional e está fora dos limites do mercado de arte. Apesar de que, podem
entrar no circuito de galerias - já não sendo mais graffiti ou fazer parte de
estampar o arsenal mercadológico de objetos, roupas e acessórios.
117 Segundo seu perfil no Facebook:"Vira-lata da literatura, Poeta das ruas, agitador cultural, Cooperifa até os
ossos, vagabundo nato";. ‘
181
Embora a parte do graffiti escrita e ilegal compartilhe elementos essenciais
da sociedade de consumo de massas - a produção de signos, a criação de marcas,
a reprodução repetitiva de imagens -, nessa mesma ilegalidade é que permanece
na atitude de transgressão e ocupa espaços que a publicidade outrora ocupou, ou
em algumas cidades ainda ocupa.
grafiteiros, em geral, são originários de bairros periféricos, e dos que são
moradores de regiões mais centrais, uma ínfima minoria fez curso superior,
principalmente entre os escritores de pixo; o analfabetismo funcional é marcante
e em sua maioria escancara-se a situação de pobreza e escasso acesso às políticas
públicas, à cidade e ao emprego. Como acentua Caldeira (2012, p. 2): “Por meio
das inscrições pintadas nos mais diversos locais, eles transcendem seus locais de
origem e suas condições originais, e penetram em todos os tipos de espaço [...]”.
Figura 100 - “Nina” por Apolo Torres. Avenida da Consolação-SP.
Fonte de Imagem: Juliana Abramides (2017).
182
A urbanização é crucial na história do processo de acumulação do capital,
sendo necessária uma constante readequação da vida urbana. E por mais que as
forças do capital estejam em constante movimento, é impossível o controle total
das populações. É nesse sentido que levantamos a questão política estratégica de
prestar atenção aos movimentos anti-capitalistas urbanos e em como eles podem
ser potencializados.
Fig 101 - Ponte da Avenida Sumaré, São Paulo.
Fonte de Imagem: Juliana Abramides (2016).
É quase impossível conceber a vida fora das cidades, ou ao menos sem ter
a referência do urbano. O urbano é permeado de admiração, sociabilidade,
prazer, produção social de riqueza e apropriação desigual, fruição social e coletiva
de diferenciações que se batem com a questão material. O espaço118 metrópole
relaciona-se com as forças produtivas, com a divisão do trabalho e com as relações
da propriedade privada dos meios de produção.
Para os humanos, na sociedade burguesa, o produto do trabalho aparece
como um objeto estranho que tem poder sobre ele e, simultaneamente, o mundo
118 Henri Lefebvre, no livro A Produção do Espaço, diz que existe uma história do espaço, que está por ser escrita,
o conceito de espaço liga o mental e o cultural, o social e o histórico. Ele divide esse complexo em: Descoberta de
espaço; Organização espacial na produção da sociedade; Criação de obras, paisagem e o cenário.
183
exterior sensível o enfrenta hostilmente. O trabalho produz mercadorias e produz
a si mesmo como mercadoria. Assim, a natureza do trabalho, enquanto práxis
positiva de autocriação, é negada. A alienação torna-se a inversão da natureza
criativa, livre e consciente do trabalho. Vale ressaltar que, na forma mais plena da
divisão social do trabalho, isto é, do capital, a alienação adquire formas específicas
a partir da instituição da sociedade salarial, quando as capacidades humanas estão
sumariadas na forma do dinheiro e sua existência é medida pela venda da força
de trabalho. O espaço é continuamente reestruturado no urbanismo moderno; os
processos são determinados pelo capital financeiro de compra e venda de terras
e edifícios, em que se instalam novas fábricas, indústrias ou escritórios119.
Figura 104 - Pixo escrito Harlem em um bairro mais elitizado, o Soho.
Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2015).
O sistema capitalista é extremamente dinâmico e adaptável ou tempo
inteiro as criações de comunicação, arte e no trabalho são capturadas e absorvidas
como parte das novas tecnologias, dos processos de capturar os consumidores nos
anúncios e propagandas. O capitalismo em chamas utiliza-se muito da propaganda,
da venda de um modo de ser, de padrões morais. Como parte da acumulação
capitalista, a produção é imediatamente reprodução, circulação, distribuição e
consumo. No seio do processo de circulação de mercadorias, a reprodução de
ideias, práticas e valores tornam-se parte do incentivo à aquisição das
119 Quando uma área apresenta possíveis lucros, é especulada, desocupam-se moradias, por exemplo, das áreas
centrais, para construção de edifícios para escritórios e assim que a área está remodelada investidores buscam um
potencial especulativo para outra área.
184
mercadorias, ao mesmo tempo, em que há o estímulo ao consumo reproduzem-
se ideais e valores burgueses como o consumismo, a ideia de livre mercado, o ter
em detrimento do ser; relações de posse.
O lugar da inovação tecnológica é rápido e dinâmico e ocupa um espaço
crescente desde a industrialização da sociedade pós industrial se comparado a
outros sistemas sociais, em que a imensa maioria vincula-se ao trabalho na terra
e com desenvolvimento tecnológico mais lento. A cidade triunfa na existência de
fábricas, escritórios, lojas e indústrias. O tempo do capital quadricentenário, o
maior desenvolvimento de riquezas e a contradição entre a humanização e
desumanização traduzem-se na vida cotidiana com suas expressões dilaceradas.
A riqueza; o conforto material; o acesso à informação, educação, cultura, ao lazer,
à saúde; de outro lado, a falta de acesso, a pobreza, penúria, miséria, falta de
trabalho e moradia; 8 milhões de pessoas no Brasil não têm onde morar.
A desigualdade é gerada pela apropriação privada da riqueza produzida
coletivamente. Com a divisão do trabalho e com o desenvolvimento das forças
produtivas cria-se a produção excedente que passa a ser apropriada de forma
privada, gerando o fim da propriedade comunal e a necessidade histórica da
propriedade privada. O Estado surge para regular a desigualdade criada pela
propriedade privada, portanto, o fundamento histórico do Estado é a
desigualdade. O fundamento da desigualdade não é a capacidade de produção do
excedente em si, pois o que gera a produção excedente é a divisão do trabalho e
o desenvolvimento das forças produtivas.
Isso supõe dizer que, no modo de produção capitalista, a exploração
econômica (re)produz a desigualdade social, cultural, educacional e territorial que
cria e recria antagonismos de classe, enquanto valores inerentes à criação de valor
e de mais-valia. A desigualdade é intrínseca ao capitalismo para a manutenção da
exploração da força de trabalho, da propriedade privada dos meios de produção,
da existência de classes antagônicas na sociedade.
Por outro lado, o capitalismo é um modo de produção associado a um
sistema de ideias. A noção de propriedade privada é socialmente construída e
legalmente instituída. Na reprodução de valores na sociedade burguesa o direito
tem lócus privilegiado. O direito de propriedade, tal qual o direito à vida e à
liberdade, é defendido como direito natural humano por juristas, filósofos e
economistas políticos. A propriedade do solo e da terra é considerada fonte
185
originária de toda riqueza e é vista como um valor eterno120.
Figura 105 - Um picho (grafia comum) entre a Avenida Francisco Matarazzo e a Rua Cardoso de Almeida. Um direito por favor!
Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2015).
A declaração dos direitos humanos coloca o direito à propriedade entre os
direitos naturais. Terra, campos, águas e florestas são propriedades adquiridas e
não inatas. O princípio moral e legal da propriedade privada se sobrepõe aos
direitos de vida e do morar.
O agravamento das precárias condições de habitação dos trabalhadores e a
ausência de moradia relacionam-se à industrialização e à crescente migração para
as grandes cidades no processo de desenvolvimento do capitalismo. A
precariedade, insuficiência e déficit da habitação social têm se configurado como
uma das expressões mais dramáticas da questão social para amplas parcelas da
população. O acesso à moradia definido pelo mercado do solo é de alto custo.
Cortiços, favelas, ocupações irregulares, moradias sem registro, aparecem como
formas mais comuns de reprodução da população empobrecida no capitalismo
contemporâneo. As favelas e as áreas de autoconstrução na periferia urbana
revelam estratégias de sobrevivência em uma metrópole em que a economia de
mercado, aí incluído o preço do solo, impede o acesso da classe trabalhadora de
baixa renda à moradia em áreas centrais da cidade e com infraestrutura.
O acesso à moradia definido pelo mercado do solo é de alto custo. Cortiços
e favelas aparecem como formas mais comuns de reprodução da classe
120 Se a conquista gerou um Direito Natural de poucos, os muitos precisam apenas reunir forças suficientes, para
adquirir o Direito Natural à Reconquista daquilo que lhes foi tomado. No curso da história, os conquistadores
procuram conferir, por meio de leis, por eles mesmos promulgadas, um certo reconhecimento social ao seu Direito
de Posse que emerge originariamente da violência (MARX, 2005, p. 2).
186
trabalhadora no capitalismo contemporâneo. As favelas e as áreas de
autoconstrução na periferia urbana revelam estratégias de sobrevivência em uma
metrópole em que a economia de mercado, aí incluído o preço do solo, impede
o acesso da classe trabalhadora de baixa renda à moradia em áreas centrais da
cidade e com infraestrutura. O custo que existe para morar está embutido em
todas as taxas pagas, no preço do terreno e do imóvel e na localização. Qualquer
terreno apresenta um custo para a cidade que é fruto da infraestrutura que a
cidade oferece. Ruas pavimentadas, esgoto, luz, água, linhas telefônicas,
transporte, enfim uma série de serviços. O custo do terreno varia de acordo com
os serviços vinculados a ele, levando em conta a localização e características da
área. As ocupações em favelas são geralmente realizadas em áreas desvalorizadas
pela localização e qualidade ambiental e geológica, fora dos interesse dos agentes
do mercado da terra.
O movimento socioterritorial de urbanização brasileiro foi intenso e veloz.
Esse desenvolvimento urbano foi acompanhado da privação da população pobre
e trabalhadora do acesso a serviços públicos, a direitos sociais da cidade e à riqueza
social. “Desde 1970, o crescimento das favelas em todo o Hemisfério Sul
ultrapassou a urbanização propriamente dita” (DAVIS, 2006, p. 27). As
construções das cidades têm sido a autoconstrução de moradias populares por
meio da qual os próprios moradores aliados a parceiros, amigos e parentes
constroem suas moradias sem planejamento ou projeto, com materiais
improvisados e, por etapas, de acordo com a entrada de recursos financeiros.
Muitas vezes, começam com barracos feitos de madeiras improvisadas e lonas
que, aos poucos, vão se tornando moradias de alvenaria; sobem-se andares e
algumas casas tornam-se até pequenos prédios.
A prática de autoconstrução insere-se no contexto capitalista como forma
construtiva autônoma em que trabalhadores aos finais de semana, feriados e
férias constroem suas próprias casas: escolhem terreno, fazem projeto e realizam
a obra sem custos com intermediários para o planejamento e a mão de obra. O
surgimento das favela, a moradia de aluguel em casas insalubres, cortiços ou
mesmo o crescente número de pessoas vivendo nas ruas, é a resposta de luta pela
sobrevivência dos setores mais pauperizados no padrão perverso de ocupação
socioespacial.
Em síntese, as periferias das cidades brasileiras são castigadas pelas
187
enchentes, ausência ou escasso acesso aos serviços de saneamento básico,
péssimas condições de habitabilidade, ausência de serviços básicos, como rede de
esgoto, coleta de lixo e água potável – essa é a dura realidade urbana vivida por
milhões de moradores das grandes metrópoles brasileiras.
A sociabilidade, o prazer de estar com o outro é que estabelece a diferença
urbana. A cidade tem mil encantos e movimentação constante. Estamos a
dezenove anos adentro do século 21 e, nesse tempo, tornou-se quase impossível
conceber a vida fora das cidades ou, ao mesmo tempo, sem ter a referência do
urbano, que constitui espaço de admiração, produção social de riqueza e
apropriação desigual, fruição social e coletiva de diferenciações que se imbricam
com a questão material.
O Neon vaga veloz por sobre o asfalto irregular, ignorando ressaltos, lombadas, regos, buracos, saliências, costelas, seixos, negra nesga na noite negra, aprisionada, a música hipnótica, tum-tum tum-tum, rege o tronco que trança, tum-tum tum-tum, sensuais as mãos deslizam no couro do volante, tum-tum tum-tum, o corpo, o carro, avançam, abduzem as luzes que luzem à esquerda à direita [...]. (RUFFATO, L.,2001, p.g 14).
De um lado, a riqueza, o conforto material; acesso à informação, educação,
ao lazer, à saúde, aos espaços culturais, aos excessos. De outro, a pobreza, penúria,
miséria; a falta de moradia, de acesso.
Figura 106 - A grande São Paulo
188
Fonte: Governo do Estado de SP.
Pânico, medo, ansiedade, depressão, jogo de interesses, jogos patológicos,
reificação, desejo, individualismo, vontade de morte, descontentamento,
compulsões. Comportamentos que refletem a angústia inerente à precariedade
da vida humana. A grande patologia social é o medo acrescido das patologias
psíquicas do transtornos de ansiedade e humor.
Figura 107 - Bairros de São Paulo por Zona
189
Fonte: Governo do Estado de SP.
Os murais e graffitis revelam uma dada realidade social e que são também
o conhecimento de um tipo de vida nas grandes cidades que traduzem sua
complexidade policlassista multifacetada. Outrossim, toda cultura deve ser vista
como a maneira possível de humanos se organizarem, se adaptarem e
transformarem o meio em que vivem. As particularidades do cotidiano, nas
grandes cidades, afetam direta e indiretamente as populações participantes desses
grupos sociais.
190
O cotidiano corresponde ao dia a dia, quando satisfazemos as nossas
necessidades primárias de higiene ao acordar, escovar os dentes; buscar e
preparar o alimento; dormir, morar; satisfazer as vontades e os desejos. A vida
cotidiana é a vida plena; ou seja, cada um de nós participa dela com todos os
aspectos da individualidade, personalidade, do jeito de ser. O cotidiano é a esfera
da reprodução do indivíduo nas suas necessidades básicas e na vida social; é no
dia-a-dia que nos colocamos como seres por inteiro com nossas capacidades,
conquanto não possamos vivenciar aguçadamente com toda intensidade todas as
nossas potências todos os dias.
As grandes aglomerações, denominadas hipercidades, onde vivem mais de
10 milhões de habitantes, estão inseridas em estruturas de urbanização
consolidada, nas quais o preço desse processo, denominado de conurbação
urbana, é o agravamento das expressões da questão social, mais precisamente, da
desigualdade social.
As diversas manifestações da questão social interferem nas condições de vida
e trabalho por meio do desemprego, do trabalho informal; da situação de moradia
em cortiços, pensões, favelas, moradias provisórias; do acesso precário à
educação, saúde, ao lazer e à cultura e se reproduzem nas expressões culturais, no
modo como vivem, se relacionam, se comportam, criam e resistem às opressões
da sociedade capitalista em chamas.
As marcas urbanas expõem contradições abarcadas pela questão social e
inseridas na profunda marca da desigualdade intrínseca ao capital e revelam a
necessidade de jovens empobrecidos conquistarem visibilidade e intervirem de
maneira criativa e transgressora na configuração social do urbano. Como diz a
Mag Magrela “a rua é muito incrível pra quebrar barreiras segregacionista” (artista
plástica e grafiteira, entrevista em 2019).
Figura 108 - Mag Magrela, Fortaleza - CE (2018).
191
Fonte: Imagem cedida pela artista, foto tirada pela equipe do 5º Festival Concreto
Um espaço segregador, contraditório, de jovens sem emprego e/ou
192
ocupados com bicos121 rotativos que giram pelas ruas da cidade sem encontrar o
espaço para se ocuparem com trabalho ou sem acesso a escolaridade de qualidade.
Como adentrar os shopping centers envidraçados com preços inacessíveis à
população majoritária ou conviver com opressoras residências com
monumentais fortalezas de defesa, que distanciam os grupos sociais. Vamos ao
cinema, pagar 38 reais, ou 5% do salário mínimo de fome.
A segregação residencial na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) por
classe e etnia é também a segregação da sociabilidade e da apropriação e do uso
dos espaços coletivos da cidade. A separação de locais de brancos e negros, de
pobres e ricos, ou da classe média, demonstra de que modo barreiras étnicas e de
classe estão inscritas na espacialidade e no tempo, moldando relações e
cristalizando desigualdades. 122
São exemplos os espaços segregados, em que grupos sociais e raças não se
misturam, como os concertos pagos da Sala São Paulo. Grupos periféricos terão
menos acesso à seletividade de oportunidades a recursos, ao mercado de trabalho,
a serviços públicos, equipamentos culturais e de consumo. Nessa perspectiva,
grupos com menor diversidade de relações terão menor mobilidade social123. O
mapa racial do Brasil do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
aponta São Paulo como a terceira região de maior segregação.124
Os muros têm a função primordial de separar e delimitar territórios e
determinar os espaços entre o público e o privado, entre o que pode ser mostrado
e o que se pretende ocultar: protegem, definem caminhos, escondem, restringem
o olhar, limitam a passagem, são barreiras entre territórios e espaços. Muros de
pedra-fortaleza, muro de ferro-presídio, o alambrado com arame farpado, muro de vidro-
aquário, pastilhas cerâmicas ou pintadas é muro alvo para inscrição vida longa.
Existem muros que cercam até mesmo pedaços da cidade e o bairro do
Morumbi, por exemplo, traz a nítida lembrança do modelo mastodôntico de
fachadas fortalezas. A forma estética dessa arquitetura identifica-se com a
121 Bicos: trabalho temporário, pontual. 122 A tese de Danilo Sales do Nascimento concentra-se na segregação racial encontrada nas classes média e alta,
e evidencia que negros das classes média e alta têm as residências localizadas mais próximas dos pobres do que
de brancos do mesmo estrato social. Os brancos de classes média e alta vivem nos locais mais privilegiados da
metrópole paulistana. 123O debate está pautado em diversas pesquisas e publicações, a exemplo: Territorialidade Negra e Segregação
na Cidade de São Paulo, de Reinaldo José de Oliveira, Editora Martins Fontes, 2016. 124Avaiable in : https://www.nexojornal.com.br/especial/2015/12/16/O-que-o-mapa-racial-do-Brasil-revela-
sobre-a-segregação-no-país. Dezembro de 2016.
193
segurança contra a violência urbana, com o pressuposto de que quanto mais
muros e grades maior a segurança125.
Os “enclaves fortificados” (CALDEIRA, 2000) são espaços fechados e
monitorados, destinados a residência, lazer, trabalho e consumo; por exemplo,
conjuntos comerciais, shopping centers, condomínios auto suficientes, com
estruturas abrangentes de comércio, e estabelecimentos particulares de saúde,
educação e divertimento. Espaços criados para ampliar a homogeneidade social
e distanciar os pobres, pessoas em situação de rua e negros; espaços fechados com
vigilância e acessos controlados; espaço do abrigo e da solidão. Os muros dividem
o público e o privado e são as telas em branco para as inscrições.
As culturas das expressões gráficas urbanas contêm um caráter político
manifestado na visibilidade transgressora, e tendo em vista a recusa a
comportamentos e leis instituídas, desvinculam-se do fator excludência urbana
de usufruto cultural e moradia, e agridem a propriedade particular na ocupação
de fachadas, paredes e muros de casas e prédios, modificando o cenário de
invisibilidade das produções culturais periféricas.
A dimensão ilegal desse comportamento de grupo torna-se marca
indelével de expressão cultural e resistência à hegemonia burguesa126. O
pressuposto aqui é a transgressão enquanto sinônimo de desobediência civil de
agredir as leis, não se ater a elas; tais ações explicitam as tensões sociais existentes
na metrópole. Certa noite de outono, um sujeito marca uma propriedade alheia
com a sua tag ou símbolo do seu grupo. O que essa existência não violenta traz, à
luz do dia?
Na rua cê me encontra um dia vai entender Sociedade me ignora de manhã todos vão ver Meu protesto é ilegal o gringo filma em agá-dê Mas a real do que acontece é só na hora do rolê. (Cabes Mc, Hd Rolê 2)
125 “A ideia, que parece óbvia, é a de que, ocultando o máximo possível o que se passa intramuros, evita-se a
invasão e o roubo. Entretanto, um prédio murado não deixa de ser assaltado e na visão de assaltantes o muro
protege as ações de arrastão e furtos.” (Raquel Rolnik. Disponível em:
https://raquelrolnik.wordpress.com/2012/08/16/quanto-mais-altos-os-muros-e-grades-mais-protecao-certo-
errado/. Acesso em: agosto de 2015 ). 126 Historicamente estabelecida, a lei penal explicita-se por ser uma das formas de poder do Estado de acordo com
as decisões políticas funcionais em determinada época, se referem-se à esfera da reprodução de valores e
comportamentos disciplinados e vigiados pelo Estado de interesse à manutenção [do status quo] da sociedade
capitalista. (KARAM, 2003).
194
Tais desobediências não têm caráter de manutenção de status quo ou de
preservação de direitos, mas apresentam um impasse que gera incômodos por ser
algo que não pode ser controlado. “É por protesto mesmo, contra o sistema que eu pixo”
(MN, pixador, entrevista em 2017127). MN, hoje, começa a experimentar pernas
robóticas para voltar a andar; perdeu-as enquanto pixava no trem. Há uma
resposta desmedida e altamente opressora em resposta ao ato transgressor, são
sanções, punições, agressões físicas ou até a morte realizada pela força punitiva
do Estado (Fig. 109).
Figura 109 - Com tanta função possível ao Estado por quê a punição truculenta é a normatividade?
Fonte: Arquivo MN
Os grafiteiros ilegais e os pixadores estão entre os poucos grupos sociais
que atacam a base simbólica e material da vida social. O pessoal da pixação é
fanático com a lata na mão, claramente vê o muro enquanto mídia de si mesmo,
com invenção de códigos ou pseudo nomes. Não é prática de modismo e nem se
veem pixadores fazendo apologias para que outros inscrevam em muros. A
pixadora Gisele adverte quanto aos perigos e ao vício de pixar, ela que por anos
fez o xarpi, trata o pixar como uma ação viciante que gera adrenalina, pelos riscos
e desafios que se coloca. Gisele tem seu pixo SAGI marcado por muitos viadutos
no RJ, ela que adorava se pendurar nas pontes hoje parou de pixar após um
episódio de quase morte.
O questionamento de território demarcado por regras leva à ultrapassagem
de limites e obstáculos, o muro; adentrar um prédio; escalar um monumento. O
127 MN que já assinou exorcity, pixa desde o início da adolescência e em um rolê que fazia em um trem, teve um
súbito apagão e foi parar embaixo do trem, perdeu as pernas. MN continua a pixar.
195
gesto, cotidiano, contém risco enquanto o sistema normativo está intacto. Tanto
a pixação quanto o graffiti são atos transgressivos128 e a maior parte dos
entrevistados diz que ambos perdem a legitimidade, se forem legalizados. Eles
escancaram, principalmente em áreas mais ricas, um destoar na cidade que
desestabiliza uma continuidade de modus vivendi, do estado de coisas da
normalidade cadente.
A desobediência civil que se instaura na calada da noite, em ações que
violam a lei e a propriedade privada, demonstra uma série de conflitos e negações
do status quo: inscrever e escrever, com códigos cifrados, a negação da submissão;
questionar a lei e a forma do existir social. Ao pixar uma casa, ou prédio
abandonado, prática bem comum ao pixo, escancara-se mais uma injustiça social,
um local sem usufruto útil se destaca pela distopia do feio. Conquanto os grupos
de pixadores não se caracterizem em organizações ideológicas definidas, têm
originalidade tática, comunicação própria e afirmam valores anti-sistema,
conforme denominação por eles atribuída.
Eu pixo de escada ou então/Eu vou na escalada/Na calada da noite/Eu vou varando a madrugada/Pixando sua parede pintada/Não quero nem saber/O vício é rebelde só pra você não esquecer/Correr o risco de morrer ou de ser preso é normal. (Criadores não domesticados, Rap do Xarpi).
Grupos sociais que buscam e lutam pela sobrevivência na ilegalidade
devem ser entendidos no sentido amplo de penalização da pobreza “elaborada
para administrar os efeitos das políticas neoliberais nos escalões mais baixos da
estrutura de sociedades avançadas” (WACQUANT, 2015, p. 93).
A vida cotidiana apresenta-se afetada por múltiplos códigos no espaço de
reprodução econômica e também cultural. Uma potente forma de suspender o
cotidiano de jovens precarizados, um movimento que tem uma íntima relação
com a metrópole, um movimento que cria a cidade e é influenciado por ela. São
sujeitos subversivos na forma, a cidade é suporte independente de autorizações,
e no conteúdo, na subversão das letras e criação de códigos próprios. O ato é
poético e é político. Processos criativos na vida em sociedade podem contribuir
para ações e escolhas mais livres e autônomas, em face do abafamento criativo
cotidiano. Nem todo processo criativo é artístico, e pode ocorrer em todas as
128A transgressão das regras pode vir ainda pela necessidade de trabalho, como acontece com músicos de rua,
ambulantes, ou artesãos.
196
práxis, no cotidiano, ou no momento de suspensão do cotidiano no trabalho, no
estudo129.
No caso dos países periféricos, o precariado (Fig. 110) é constituído pela
parcela dos trabalhadores que desempenha os trabalhos mais instáveis; jovens,
que desenvolvem suas atividades em trabalhos temporários, parciais,
intermitentes, na informalidade, sem carteira assinada. É a “fração mais mal paga
e explorada do proletariado urbano e dos trabalhadores agrícolas, excluídos a
população pauperizada e o lumpemproletariado, por considerá-la própria à
reprodução do capitalismo periférico” (BRAGA, 2013, p. 19).
Figura 110 - Avenida Consolação nas proximidades da praça Rosavelt.
Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2017).
129São elementos disparadores de processos criativos: a fantasia, imaginação, sensibilidade; brincar; a brincadeira
interior, as ideias aparentemente desconexas, emoções, cores, os sons, as formas, os conceitos, a curiosidade, as
imagens, a desconstrução do cotidiano e o inconformismo.
197
Parte desta população é composta por jovens que criam uma cultura
independente, a cultura urbana que traz elementos de sociabilidade em
atividades que aumentam a possibilidade de objetivação de desejos e de inserção
social. Este tipo de cultura pode criar de maneira autônoma oportunidades
financeiras para grupos que realizam atividades de chapéu130, artesãos de ruas, ou
esportistas. Esta realidade se vê atravessada pelo sistema repressor estatal que de
um lado não provê políticas públicas de inserção da juventude ao trabalho e a
cultura e, por outro lado, reprime as práticas criativas e autônomas com
apreensão de mercadorias, artesanatos e expulsão dos locais de trabalho. Ainda
neste contexto há artistas urbanos que se tornam profissionais e começam a
realizar murais e graffitis pagos ou passam a fazer parte do mundo das galerias.
São eles, jovens sobrepujando o esquecimento social frente a um sistema
de educação pública tosco que mais se assemelha a presídios com grades e janelas
de ferro, insuficiência de vagas, professores mal remunerados e merendas
controladas. A ausência de trabalho, individualismo extremado e ausência de
perspectivas de significado social são marcas de suas vidas cotidianas no
capitalismo em chamas. Como ressalta Harvey sobre como identificar as
necessidades de usufruir da vida na cidade:
o direito à cidade surge dos gritos que vem das ruas do papel desenfreado pela sensibilidade que vem das ruas (…) do sombrio desespero, da marginalização e da juventude ociosa perdida no puro tédio do aumento do desemprego e do desleixo nos subúrbios sem alma que termina por se transformar em redutos de ruidosa rebeldia. (HARVEY, 2014, p. 12)
A arte urbana é marginal, não vem da cultura escolar, nem da cultura oficial
e muito menos da cultura erudita. Esta forma de apropriação do espaço urbano,
expresso na cultura de rua é expressão do mundo da imediaticidade131; esta arte
reflete o grau de desagregação da cultura que vem no bojo das crises das relações
sociais do capital, tanto no Brasil quanto nos EUA. O reflexo desta crise de
sociabilidade na construção cultural aparece na miséria e na grandeza de um tipo
de produção periférica- o hip-hop, o rap, o pixo, as poesias marginais, com teor de
130 Atividades de chapéu são aquelas em que uma performance (musical, cômica, teatral, mímica) tem ao lado
um chapéu para que o público transeunte em parques, museus, grandes avenidas, joguem no chapéu um dinheiro,
uma gorjeta de incentivo ao artista. 131“É preciso partir da imediaticidade da vida cotidiana, e ao mesmo tempo ir além dela para poder apreender o
ser como autêntico em-si” (LUKÁCS, 2010, p. 37). Admite-se aqui que a sociedade massificada, racionalista,
logicista, pragmática, individualista e repressiva tende a reduzir, ou, até mesmo, aniquilar essas potencialidades.
198
elaboração e criticidade variável; que no caso do pixo, apresenta uma mediação
menor, por se tratar de uma comunicação endógena, mas ao mesmo tempo tem
alto poder de criação de uma estética própria a partir de novos signos até então
inexistentes.
Enquanto movimentos culturais estas expressões também fazem parte do
mundo da reificação, quando algumas apresentam de um lado uma grande
alienação, estranhamento, em relação a eles mesmo, e de outro lado uma grande
manifestação relativa aos problemas que eles vivem por mais que isto nem
sempre esteja expresso nas representações sígnicas e artísticas em si ou no
discurso sobre a ação.
O mesmo acontece com grandes murais que apresentam uma expressão
mais impactante com maior elaboração artística que podem se referir ou não a
um grau maior de mediação, já que encontramos dentre eles muitos murais
decorativos, por exemplo, sem necessariamente expressar uma criticidade social.
O que se vê é que independentemente do grau de desagregação social que
vivemos, a arte urbana se coloca entre as expressões culturais de peso na
atualidade. São estas, expressões artísticas num momento de crise estrutural. É
uma arte periférica que fala dos problemas sociais e da crise do capital, como
veremos mais detalhadamente no próximo capítulo.
O graffiti é a ruína das cidades. Um bairro que sucumbiu ao graffiti
telegráfico para o mundo que o controle social e parental lá quebrou. De maneira
geral aqueles que agem em insurreição total ao status quo em enfrentamento ao
capitalismo seriam segundo Hobsbawm “certamente revolucionários no sentido
mais literal do termo” (1985, p. 246). No entanto, uma subversão total dependeria
de atacar as forças produtivas, ao invés de propriedades particulares,
propriedades privadas de meio de produção, grandes corporações e bancos. Se
não se questiona a base material ou a “produção da vida” não questiona-se o
Capital se não puramente o status quo que no mais é a forma de viver particular
mas não necessariamente universal.
Vamos exemplificar a partir do grupo de pessoas que se tornam veganas,
deixam de consumir produtos de grandes empresas e passam a plantar o seu
próprio alimento e consumir de produtores pequenos artesanais e locais. Elas
atacam o status quo mas o Capital permanece se reproduzindo. E mais nesse
199
quesito continuamos marxistas não adianta mexer no consumo se o todo é
consumo, circulação e produção. Na contribuição à crítica da economia política
Marx descreve que a produção não se limita a apenas oferecer um objeto material
à necessidade mas oferece uma necessidade ao objeto material, ou seja, quando o
consumo perpassa a camada primitiva do imediato, o consumo-impulso
apresenta o objeto-mediador. E prossegue dizendo que:
O objeto de arte - como qualquer outro produto - cria um público capaz de compreender a arte e fruir a sua beleza. Portanto, a produção não produz somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto (2010, p. 137).
Hoje, as artes plásticas urbanas são modos particulares de manifestação,
criados majoritariamente por jovens de todos os grandes centros do mundo,
originariamente132 setores pauperizados, moradores das periferias dos grandes
centros urbanos, em que a desigualdade, em todos os níveis, se acentua, fruto do
desenvolvimento desigual e combinado da sociabilidade capitalista. O jovem
precariado, em suas lutas, aparentemente mais ‘desorganizado’, quer o fim da
precarização completa que o avassala e sonha com um mundo melhor”
(ANTUNES, 2018, p.59).
Bem e como alguém sem emprego pode abrir um comércio e trabalhar se
não tem capital de giro. Esta pessoa na linha da miséria deverá : trabalhar no
comércio ambulante ou roubar, agora temos uma opção extra que é o trabalho
em serviços tipo Uber. Nesse tipo de serviço de chofer qualquer pessoa com carta
de motorista pode trabalhar e se o indivíduo não tiver carro, uma outra empresa
aluga o carro a ele. Vejamos, a princípio uma empresa estrangeira entra no
mercado nacional e pessoas sem nenhuma experiência anterior de trabalho em
carros passam a ser choferes. A empresa não paga nada de impostos e também
não é penalizada. Uma operação irregular, ilegal e aceita por diversos grupos
sociais que podem ter acesso a um transporte confortável por um preço
anteriormente impraticável. Na mesma via, o profissional, motorista, paga de 20
a 25% para a empresa uber sob cada corrida praticada e as despesas do carro: óleo,
gás, manutenção, balinha e água ou qualquer outra despesa com o carro, incluso
acidentes é ônus do trabalhador.
132 Na gênese do ressurgimento do graffiti, em potencialidade, os realizadores dessa expressão são pessoas
periféricas, jovens pauperizados. Hoje, com a globalização da expressão consolidada na chamada Street Art,
existem outros setores sociais que também o fazem.
201
Fonte: Imagem por Juliana Abramides
Na cidade dos commodities, por muito tempo, as laranjas foram o principal
produto; depois, a indústria dos automóveis; houve a época do cigarro; e, hoje, o
entretenimento está em alta por lá. L.A. é provavelmente a cidade mais
diversificada dos EUA. Ao longo de cem anos, vem importando talentosos artistas,
escritores e visionários, agregando um enorme contingente de labour intelectual
202
de imigrantes de todo o mundo.
Yet for even more peculiar reasons- this essentially deracinated city has become the world capital of an immense Culture Industry which since the 1920s has imported myriads of the most talented writers, filmmakers, artists and visionaries. (DAVIS, 1990:17)
Ainda por razões ainda mais peculiares - esta é a cidade desvinculada que se tornou a capital mundial da imensa indústria cultural que desde os anos 20 importou miríades dos mais talentosos escritores, cineastas, artistas e visionários. (DAVIS, 1990, p.17).
Na Califórnia, na região das proximidades da Baía de São Francisco, está o
modelo da nova indústria, o vale do silício. A tecnologia é uma das grandes forças
motrizes da economia californiana. Em L.A. está a já antiga e bem desenvolvida
Hollywood, colônia de economia mundial. Os EUA apresentam as maiores
empresas de mídia e também a maior economia do mundo. Organizações de
larga escala, lobistas, corporações econômicas, agências governamentais exercem
influência direta nos hábitos e nas decisões e com veloz visualidade midiática.
A descoberta de ouro, nas montanhas da Serra Nevada, foi um dos motivos
de os EUA batalharem pela Califórnia, antes pertencente ao México, na nomeada
Guerra Civil: América versus México (1846-1848). Apesar da potencialidade para o
trabalho escravo destinado a cavar atrás do ouro, a prática de escravismo não
ocorreu na Califórnia, pois quando ela foi tornada parte dos EUA já era o
momento de proibição da escravidão133.
Com clima de deserto, banhado pelo Oceano Pacífico, por praias, desde
pouco depois da expansão americana, o Estado da Califórnia é considerado a
lenda presentificada simbolicamente na cidade de Los Angeles, a cidade das
estrelas, das fotos, das palmeiras e do campo de óleos, onde todos teriam seus
carros. Foi a partir de 1870 que começam a criar a venda da “ideia” do Paraíso na
terra, a tão sonhada Califórnia134.
Até 1876, a cidade era inacessível, distante dos centros populacionais; não
apresentava uma baía de fácil acesso, tal qual São Francisco, ou oceano navegável,
133Para saber sobre a Guerra Civil citada: RICHARDS, Leonard L. The California GOld Rush and the Coming of
The Civil War. New York: Alfred A. Knopf, 2007. 134 No livro Paradise Promoted: the Booster Campaign that Created Los Angeles: 1870-1930, Tom Zimmerman
apresenta uma série de coleções de imagens e estórias sobre as estratégias imagéticas que tornaram o sul da
Califórnia a terra prometida, ou seja, como a cidade se promoveu por 60 anos como o local onde os sonhos se
realizam.
203
como Sacramento, mas torna-se acessível com a vinculação à ferrovia
transcontinental do Pacífico Sul. Em 1886, Santa Fé trouxe a segunda linha
transcontinental mais econômica, e a competição intra linhas na emergência do
espírito capitalista. Começa o tráfego de pessoas para trabalhar nas linhas de trem
e permanecer nas terras e tráfego de bens consumo. Aí começam os anúncios, a
Califórnia estava sendo chamada de a “Nossa Itália” e de Céus Ensolarados da
Glória (Sunlit Skies of Glory).
Os esforços impulsionados primeiramente por turistas e fazendeiros
depois se desenvolvem economicamente na forma da Câmara de Comércio, que
se tornou em dois anos a maior organização do tipo no país. Já em 1920, outras
organizações estavam montadas, como a Associação de Manufatureiros e
Comerciantes, o Clube Automobilístico e outros clubes. Primeiramente, os
impulsionadores profissionais de propaganda iniciam as campanhas de
superlativos californianos: a metrópole do sudoeste; a cidade das maravilhas dos
EUA; a capital climática do novo mundo.
A Câmara de Comércio encoraja os anúncios sobre a maravilha de cidade
e estabelece primeiramente os escritórios de agricultura e, posteriormente, os
industriais, para que os recém-chegados tivessem local para trabalhar. A
campanha serve para atrair pessoas para LA e também criar uma cidade funcional
em prover trabalhos. Sempre impulsionando, por meio de panfletos, aa busca de
criação do porto, valorização de recursos naturais, métodos para a agricultura
semi-árida, e irrigação. Se precisavam manter a cidade em emergência, também
precisavam encontrar trabalho para os que vinham para estruturar uma cidade
industrial que estava sendo construída. Curioso ressaltar que quem cria o sistema
de água que muda o curso da história no sul da Califórnia foi o engenheiro
William Mulholland.135
LA, desde então, têm sido a cidade de grandes distâncias, deliberadamente
escolhida para ser configurada na horizontal e não na vertical. O que, naquele
momento, abrandava o acúmulo populacional da cidade emergente, mas
posteriormente se torna uma questão para o transporte de mercadorias e pessoas.
Foi criada a Los Angeles Railway (Lary), ou Carros Amarelos, e a Elétrico Pacífico,
ou os carros vermelhos, que em 1929 rodavam 1.164 milhas (o maior sistema
135 Sobrenome dado a uma rua em LA. Quem não se lembra do icônico filme Mulholland Drive (A CIdade dos
Sonhos) do diretor DAvid Lynch?
204
interurbano à época) e a Lary abrangia 406 milhas. A última linha dessas rodovias
em Long Beach foi fechada em 1963.
Figura 111 - Região Metropolitana de Los Ângeles/Califórnia
Fonte:www. censusreporter.org.
O primeiro estúdio, em LA, foi uma lavanderia no centro da cidade e o
primeiro estúdio de Hollywood era um celeiro. Já nos anos 30, oito grandes
estúdios dominavam o mercado de filmagem e estabeleceram gigantescas e
complexas fábricas de produção. Uma delas, a conhecida Universal Studio, iniciou
a sua própria cidade.
205
[...] Contemporary residential security in Los Angeles - whether in the fortified mansion or ther average suburban bunker - depends upon voracious consumption of private security services. (DAVIS, 2006, p. 248).
[...] A segurança residencial contemporânea em Los Angeles - seja na mansão fortificada ou em outro abrigo médio - depende do consumo voraz de serviços de segurança privada. (DAVIS, 2006, p. 248).
Em LA encontrava-se a eterna primavera - simbolizada majoritariamente
pelas laranjas - e Hollywood, a cidade cenário para filmes. O objetivo da indústria
de filmagens era criar a nova fantasia - o Cinema. Pessoas lindas e belas vivendo
um modo de vida sem limites, em meio ao ar limpo e fresco. A mítica Hollywood,
perto das montanhas e do mar, dos desertos e da vida urbana. O que se torna, anos
depois, a maior máquina de sonhos.
Os efeitos culturais da massificação da mídia e da globalização de mercado
favorecem a disseminação das informações; de produtos e estilos de vida, de
maneira que a reprodução social da vida, ao mesmo tempo mesclada por
diferentes cruzamentos de cultura, em que se acessa a toda a produção que se
veicula e compartilha na rede internacional, também permite questionar se não
se vivia em uma ordem informacional única e singular e não plural.
Hollywood é uma das maiores indústrias de influência, que participa
vividamente na reprodução de valores e condutas no mundo e se constitui no
maior e mais poderoso impulsionador da cultura popular. As culturais locais
adquirem adicionais culturais de outros países e, ao mesmo tempo, se
fragmentam. O interessante é que se criam formas híbridas de ser. No entanto, o
poder da indústria audiovisual abrange muito mais visualidades do que uma
produção local pode alcançar. O alcance do cinema (uma das principais formas
de dominação da ideologia estadunidense) e também da música, ou da cultura pop
USA, apresenta uma abrangência inigualável e é por meio dessa cultura também
que, contraditoriamente, outras culturas se destacam. Por exemplo, quando
Bhangra, uma melodia da região de Punjab, na Índia, é reconhecida na música de
Beyoncé, que utiliza esse ritmo e harmonia próprios.
Segundo Mike Davis, em seu estudo sobre Los Angeles intitulado Cidade de
Quartzo, o processo de intervenção dos intelectuais: literatos, cineastas, músicos e
artistas - isto é, os fabricantes do espetáculo [e não os intelectuais práticos -
planejadores, engenheiros e políticos -] que realmente constroem cidades na
formação cultural de LA e na produção de mitos das cidades, integram o espectro
206
de "Los Angeles", de onde se retira fundamental entendimento sobre o destino do
modernismo e o futuro de uma Europa do pós-guerra dominada pelo fordismo
estadunidense. E onde estão os cientistas, a cultura mais preciosa do sul da
Califórnia, que moldaram sua economia pós-guerra impulsionada por foguetes?
Corporate America prides itself on profit, greed and the overall Disneyite conditioning of its workforce.) call 'imagineering'. Where one might have expected the presence of the world's largest scientific and engineering community to cultivate a regional enlightenment, science has consorted instead with pulp fiction, vulgar psychology, and even satanism to create yet another layer of California cultdom. This ironic double transfiguration of science into science fiction, and science fiction into religion, is considered in a brief account of the Sorcerers. (DAVIS, 1990: 22-23)
A América corporativa orgulha-se do lucro, da ganância e do condicionamento geral da força de trabalho da Disney. Chame "imaginar". Onde se poderia esperar que a presença da maior comunidade científica e de engenharia do mundo cultivasse um esclarecimento regional, a ciência consorcia com a ficção pulp, a psicologia vulgar e até o satanismo para criar mais uma camada da cultura da Califórnia. Essa irônica dupla transfiguração da ciência em ficção científica e ficção científica em religião é considerada em um breve relato dos Feiticeiros. (DAVIS, 1990, p. 22-23, grifo do autor).
Um, em cada cinco californianos, vive na pobreza; o índice mais alto do
país. Além disso, a Califórnia tem 140 mil sem-tetos, fundamentalmente nas
cidades de LA e San Francisco. Representam 25% de pessoas em situação de rua
no país e cerca de 10% estão apenas em LA.
O estado é desigual, a moradia é cara, o preço médio de uma casa é US$
540 mil. Só cerca de 30% dos lares podem se permitir a pagar uma hipoteca assim,
assumindo 20% de entrada. São as facetas mais sombrias da cidade considerada
umas das capitais do mundo, que nos levam ao inferno da classe subalternizada e
pobre trabalhadora. Uma cidade glamourizada e considerada, pela maioria dos
que ali buscam uma vida, como um lugar mítico, onde tudo é possível acontecer.
“O paradoxo da fábrica de sonhos e da manufatura idílica de pesadelos” (Mike
Davis,1990).
Alguns em LA vivem em um potencial set de filmagem; na Hollywood
Street parece ser halloween todos os dias. Cidade louca, uma grande metrópole,
multicultural, super diversificada, com muitos nichos representados por
específica vizinhança, em que cada região tem uma identidade muito singular.
207
Um ritmo super acelerado, ao mesmo tempo em que se pode viver a cidade com
imersão cultural de todas as formas, do entretenimento à diversão e culinária.
Apresenta a internacionalização da formação de classes com enorme quantidade
de trabalhadores manuais latinos e um crescente estrato rentista de investidores
asiáticos. “Ondas de imigrantes chineses, coreanos e armênios de classe média,
aumentados por israelenses, iranianos e outros, fizeram de Los Angeles o centro
mais dinâmico do capitalismo étnico familiar no planeta” (DAVIS, 1990, p. 104).
3.999.742 pessoas vivem na área metropolitana de LA, o maior condado do
país. São muitos imigrantes, vindos de todo o mundo para trabalhar na grande
indústria do entretenimento. Dos moradores de LA, 36,9% são nascidos fora dos
EUA, e, desses, 60% são latino-americanos e 30% asiáticos (Gráfico 2)136.
Gráfico 2 – Dados de estrangeiros residentes em LA – naturalidade.
Os residentes de LA se configuram em metade do gênero masculino e
metade do gênero feminino. A maior porcentagem da população é latino
americana majoritariamente da região central - 39%, sendo declarados 28%
brancos, 11% Asiáticos e 9% negros. (Gráfico 3).
Gráfico 3 – Dados de residentes em LA – Gênero e Etnicidade.
136Todos os dados e gráficos a seguir foram reproduzidos a partir do censo oficial. (Disponível em:
censusreporter.org. Acesso em: 21 maio 2019). A confiabilidade dos dados foram conferidas com o Prof. Dr. Kevin
B. Anderson.
208
59% da população residente em LA têm uma outra língua falada dentro das
moradias, sendo a língua espanhola, a principal segunda língua e 42% dos adultos
falam apenas inglês dentro de casa.
Gráfico 4 – Idioma.
O Glamour e a ilusão de que quem vai para LA tudo alcança pode ser
contraposta pelos dados sociais de que 17,4% pessoas vivem atualmente abaixo da
linha da pobreza. (Gráfico 5).
Gráfico 5 – Pobreza.
Para se locomover em LA é preciso ter carro, o sistema de transporte não é
209
dos mais eficientes e são longas jornadas para se chegar aos destinos, 70% da
população usa carro para trabalhar (Gráfico 5).
Gráfico 6 – Meios de transporte para o trabalho.
O maior ranking de iletrados em todo o país, 33, 5%, está na Califórnia e
apenas 10% da população possui graduação superior (Gráfico 6).
Gráfico 7 – Níveis de escolaridade da população de LA
210
Figura 112 - Axis Valhalla, Art District, Los Angeles
Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).
Algumas expressões de artistas engajados apresentam uma forma
contestatória e insurgente a um tipo de sociedade. A produção artística se refere
a um mundo inteiramente nosso e tem um caráter evocador de si mesma que
reflete as contradições da vida social. A arte atua essencialmente na
conscientização dos conflitos histórico-sociais que brotam da realidade. Assim,
selecionamos alguns murais, graffitis, estêncil e pixo por valores simbólicos,
políticos ou por apresentarem um questionamento social no conjunto das
representações.
Selecionamos fotografias sobre artes urbanas e, a partir delas, recolhemos
reflexões da questão redigida em forma de ensaios com os temas que se impõem
211
ao instante do real contemporâneo: ansiedade, depressão, alienação, feminismo,
degradação ambiental, crise do capital. Ao mesmo tempo, tentei escolher não
apenas reproduções representativas de uma dada realidade mas algo que
penetrasse os poros e os sentimentos, não tão somente contemplativos, mas com
inclinações de práticas, críticas ou vislumbramentos de um tipo de sociedade.
Quais serão os teores de verdade que as imagens contém e induzem a quais
efeitos, quais são as origens históricas e quais os destinos políticos da estética
contemporânea mais difundida no mundo? No que as imagens públicas urbanas
concernem ao jeito de ser de indivíduos e das coletividades? Ao resgatar toda
referência cultural e artística do legado da humanidade há que se pensar no
desenvolvimento da própria cultura e de que maneira ela se articula com a
universalidade137.
Em sua obra Estética, o filosofo húngaro György Lukács decifrou que as
respostas humanas emocionais estão vinculadas ao mundo objetivo circundante
que as desencadeiam, os indivíduos reagem no interior de alternativas concretas
nas relações entre liberdade e necessidade. A nossa proposição aqui é a de que a
criação artística é, ao mesmo tempo, descobrimento do núcleo da vida e crítica
da vida sendo parte do processo de autoconsciência da humanidade.
Para além dos interesses práticos imediatos, a arte afeta a humanidade por
inteira, à substância humana dos indivíduos histórico-sociais, contra as tendências
que ferem e envelhecem a integridade humana. Em sua dialética, a arte possibilita
a elevação do indivíduo de sua genericidade em si à sua genericidade para si, à
compreensão do caráter histórico-social da individualidade. Se a criação artística
remete à autocompreensão dos indivíduos em seu vínculo com a história, os
destinos sociais, a estética e a dimensão ética se encontram numa viva unidade.
Aqui propomos que a experiência estética da arte urbana é parte causadora
da transformação qualitativa da subjetividade em relação à coisificação e
fragmentação do indivíduo sob o sociometabolismo do capital. Se a barbárie é o
real, se a arte contemporânea verifica uma crítica social, ética e política ao real,
137 É fundamental que o ser humano genérico se aproprie de todos os bens culturais produzidos pela humanidade.
(...) Uma nova classe não recomeça a criar toda a cultura desde o início, mas se apossa do passado, escolhe-o,
retoca-o, o recompõe e continua a construir daí. Sem o uso do guarda-roupa de “segunda mão” do passado não
haveria progresso no processo histórico (...) Os dias que vivemos ainda não representam a época de uma nova
cultura, mas no máximo seu limiar. Devemos em primeiro lugar nos apossar oficialmente dos elementos mais
importantes da velha cultura, a fim de podermos ao menos abrir caminho à construção de uma cultura nova
(TROTSKY, 2007, p. 143 e 154).
212
ainda podemos voltar a apontar para o futuro. Não é apenas identificar a
catástrofe mas reinventar a cidade ludicamente e criar novas possibilidades de
sociabilidade humana.
As dimensões políticas, embora não sejam obrigatórias, estão presentes na
arte. Se na política existe a organização da vida em sociedade; na arte, temos o
sentido da beleza, felicidade, do prazer, gosto e, possivelmente, da influência
moral, mas a arte mostra, em cada uma das suas linguagens próprias, uma forma
de vivenciar o mundo, e, por vezes, de captura magnética ou aprendizado prévio
para apreciação.
Tais dimensões podem aparecer nos fatos urbanos, na memória privada
que reflete o processo de reprodução do cotidiano urbano, a realidade, enquanto
modo de ver a sociedade, ou, também, de maneira consciente e estrategista e de
proposição moral e de influência de comportamento enquanto arte engajada, de
protesto, marginal, as duas últimas no campo da desobediência civil em forma de
arte.
No filme The Edukators (2004), o diretor e roteirista Hans Weingartner
descreve os últimos dez anos de sua vida, numa tentativa de encontrar um
movimento político que dialogasse com os anos de ativismo político por ele
vivido. A resistência poética baseia-se em um trio que invade mansões de pessoas
milionárias para bagunçar, mover todas as coisas de lugar. Uma ação direta não
violenta que balança individualmente as estruturas mas não está atenta a causar
transformações. O filme alemão narra a insatisfação de três jovens que se tornam
“os educadores” e ao invadirem propriedades alheias sem roubar nada criam uma
sensação de insegurança e de falta de comando. Uma tática de mudança de padrão
de comportamento, de questionamento do status quo. O título original: Die Fetten
Jahre Sind Vorbei/Os Dias de Fartura Estão Contados, consta nas mensagens
deixadas nas casas. Questiona-se o consumismo, o abuso das televisões, a
desigualdade social.
213
Figura 113 - Todo coração é uma célula revolucionária. (trad.).
Fonte: Imagem Frame do Filme Edukators, 2003.
A ação não violenta de bagunçar a casa alheia apresenta-se ali na
desobediência civil contra a supremacia de uma classe social sobre a outra ou de
um grupo social sobre o outro. A emergência de superar o sistema vigente, as leis,
normas e formas de governo apresenta por meio da objetivação do ato, a busca
por mudança, mas qual o imperativo histórico e concreto? A desordem para
acabar com a riqueza?
No desenvolvimento das dimensões antropológica, econômica e política
das forças sociais e da história, a cultura engloba os valores, as normas e regras, as
linguagens, as formas de expressão, as artes, formas de vestir, comer, adornar o
corpo. Uma forma de ilustrar o poder das normas sociais é por meio das reações
às violações das normas. Aqueles que violam as regras são comumente alvo de
críticas dos demais. Algo como ser repreendido por pegar gelo com a mão no
freezer ou ser ridicularizado pela menor falta de etiqueta à mesa; as normas são
poderosas, pois as normas e os valores podem se tornar leis.
As contestações, militâncias e os ativismos nas ruas ora ocorrem por meio
de um discurso crítico, um protesto verbal, palavras de ordem/slogan; de recursos
não verbais, como barricadas com pneus, paralisação de uma via com caminhões
em protestos coletivos; em protestos individuais pode-se atear fogo ao corpo,
214
praticar jejum prolongado, ou suicídio público. O direito de greve, uma
contestação de trabalhadores, por exemplo, está em vias de ser extinto. Ao longo
da história, outras manifestações coletivas que desobedecem à lei em nome de
um ideal, da conquista de direito, transformação societária, notória injustiça são:
a rebeldia, desordem de rua, as insurreições, agitações momentâneas. E, ainda, as
mídias sociais vêm transformando protestos políticos numa nova forma de
comunicação e estratégia de mobilização, diferente das mobilizações da década
de 1960138.
As diversas mobilizações sociais139 expressam um conjunto de ações
coletivas dirigidas tanto às necessidades imediatas de melhores condições de vida
e trabalho, quanto às manifestações históricas na construção de novas
sociabilidades, em que as ações de rua, os bloqueios, as passeatas, paralisações e
pichações são estratégias de agitação e propaganda das lutas sociais. As múltiplas
formas de organização apresentam distintas motivações ou demandas de classe,
gênero, etnia, raça, religião, entre outras, e têm papel fundamental na superação
das formas de exploração e dominação capitalista e na construção de uma nova
sociabilidade.
138Por exemplo, os protestos turcos antigoverno, em 2013, publicaram mais de 10 milhões de tweets. Se a mídia
local não divulga, usar bem essas ferramentas pode ser uma forma eficiente de comunicação. 139Por movimento social se entende que é sempre uma ação coletiva decorrente de uma luta sociocultural,
econômica ou política. São elementos constitutivos dos movimentos sociais: estratégias, identidade e visão de
mundo, lideranças, articulação, redes de mobilização, comunicação, ocupações urbanas. Podem realizar ações
coletivas propositivas as quais resultam em transformações nos valores e instituições da sociedade. Mas também
pode haver mobilização social que abarca outros valores; de conquista de novos direitos, de contestação ao sistema
capitalista ou manutenção do status quo.
215
Figura 114 - Imagem da esquerda, Os Gêmeos; imagem da direita, o italiano Blu. Avenida Fontes Pereira de Melo, prédio vazio, Lisboa/Portugal.
Fonte: Imagem por José Ivanez dos Santos - pai da autora.
O grafiteiro/muralista italiano Blu é um artista engajado, tem sua
identidade escondida e começou a pintar em Bologna/Itália. Nessa mesma
cidade, decidiu apagar todos os seus trabalhos das paredes em protesto contra a
especulação imobiliária; eram murais com mais de 20 anos. Os murais de Blu
podem ser encontrados em cidades como Berlim/Alemanha, Santiago/Chile,
Lisboa/Portugal, Cidade do México, Belgrado/Sérvia e Manágua/Nicarágua. Suas
obras ocupam faces inteiras de edifícios, na indissociabilidade do prédio e mural.
216
O conteúdo político emerge do seu trabalho, por exemplo, no Chile, os murais
cercam o rio Mapocho e retratam o projeto da construção da hidrelétrica de
Hidroaysén e seu impacto ambiental no ecossistema da Patagônia.
A prefeitura de Bolonha inicialmente quis abolir o que chamavam de
“vandalismo gráfico” e passou a oferecer um serviço pago às administradoras de
condomínios para remoção dos graffitis. E depois quando os murais começaram
a ficar famosos propôs fazer tours de arte de rua com a criação de produtos:
estampa de cartões, capas de livros e discos. A cidade começou a usar a estética da
resistência para suas campanhas de marketing140 e para posar de salvadora da arte
de rua. Para evitar que seus murais se tornassem privados e pudessem
impulsionar na alta de preços dos aluguéis e propriedades da região, o muralista
Blu começou a apagar os murais antes da abertura da exposição. Com a ajuda de
coletivos locais e voluntários, Blu cobriu de tinta cinzenta suas obras, algumas
com mais de vinte anos de existência.
O capitalismo está em crise, ao mesmo tempo, contraditoriamente, está
fixado como modo de vida predominante e apresenta uma hegemonia
internacional. Um sistema rígido, que afunila a riqueza para uma pequena elite
burguesa. Desde a década de 1970, nos contam a mentira do gotejamento
econômico: se cortarmos as taxas das grandes riquezas, então, trabalhos serão
gerados e todos se beneficiarão. A classe dominante, detentora dos meios de
produção, que detém a riqueza socialmente produzida, por meio da exploração
da força humana de trabalho, vem destruindo o meio ambiente, expandindo o
complexo industrial prisional, congelando gastos com a educação pública e
programas sociais, e declarando guerra aos sindicatos. Tudo isso sob a alegação
de uma “democracia saudável” que se sustenta a serviço do capital sobre o
trabalho.
Na realidade, bancos, instituições financeiras, empresas e corporações,
acumulam mais poder do que o próprio governo. Suas decisões afetam a todos,
mas ninguém os elegeu e eles não são responsáveis perante ninguém. Suas únicas
140 Se, por um lado, os organizadores da exposição não pediram autorização para o autor, antes de incluir suas
obras no evento, por outro, os murais foram retirados pelo museu de prédios abandonados para serem exibidos no
evento e os envolvidos alegam que pediram permissão aos proprietários dos edifícios. O caso de Blu expõe as
reações contraditórias despertadas por trabalhos não requisitados ou permitidos que oscilam entre rejeitar como
poluição visual indesejada pelos proprietários e pela administração pública, ou promover como atrativos turísticos
e imobiliários.
217
motivações são os resultados finais. Decisões econômicas e políticas que afetam a
vida das pessoas comuns devem estar sob controle popular. À medida que os ricos
ficam mais ricos, as pessoas comuns trabalham mais e lutam para sobreviver.
O capitalismo em chamas limita a democracia, porque a elite econômica pode
comprar o poder, o que deveria estar na soberania exercida pelo povo (democracia)
Esse não é um sistema que promova a aptidão de muitos, e sim de poucos. É um
sistema que desconsidera o bem-estar das pessoas e da maioria da população do
planeta.
O futuro das reservas naturais de água, óleo, pré-sal e o grau de
sustentabilidade e salubridade para habitarmos o planeta Terra têm dependido
dos níveis de expansão do capital. A expansão constante que produz rompantes
destruições de variadas espécies, desmatamento, extorsão de reservas naturais; ou
você acha que basta você reduzir o seu tempo do banho para que as coisas
mudem?141 É evidente a necessidade de ser superada essa ordem metabólica
destrutiva da humanidade e natureza. Qual o desafio maior senão o de destruir o
curso destrutivo do capital? Até que ponto o desenvolvimento econômico, a pós-
industrialização, a pós-colonização e a modernização podem ser considerados
progresso?
O ser humano tem origem na natureza e é ele próprio ser orgânico e
natural; seus atributos de diferenciação com os demais seres naturais aparecem
em sua autoconstrução humana, na materialidade da existência histórica, a partir
da relação com a natureza. O devir do ser humano está para si mesmo, em relação
à natureza e o devir da natureza está para o ser social. A natureza é seu corpo e
sua alma.
Na interatividade do homem com a natureza (mediada pelo trabalho), a fim
de satisfazer suas necessidades, o homem não somente a alterou como também a
si mesmo e se distanciou dela, logo, possibilitou-lhe – também por meio do
trabalho – criar a linguagem, cuja finalidade foi a de se comunicar com os demais
e, concomitantemente, produzir arte, cultura, formas de organização societária e
outros atributos que resultam das relações travadas no mundo humano. É no ato
do trabalho que os homens vão rompendo as barreiras naturais; é a libertação dos
141 A barbárie capitalista é omnilateral e polifacética - e é ubíqua: contém-se no arsenal termo-nuclear que pode
aniquilar repentinamente todas as formas de vida sobre o planeta tanto quanto na lenta e cotidiana
contaminação/destruição dos recursos hídricos, que pode igualmente inviabilizar a vida sobre a terra. (NETTO,
2010, p. 31).
218
limites da natureza. No entanto, na exploração desenfreada desse ato, dessa
relação, é que os limites da natureza se fazem novamente presentes e não se pode
ter controle das forças da energia natural com a incessante expropriação.
O trabalho, para Marx, é condição fundamental para a existência humana;
é atividade universal do ser humano. Escrevendo em 1876, em seu ensaio
intitulado O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem”, Engels
(1976), ao afirmar que não só a riqueza, mas também o homem é o produto do
trabalho, evidencia que o trabalho está contido nos homens, pois foi o trabalho
que os criou. Concordando com o autor, partimos da premissa de que o processo
de desenvolvimento do homem é resultado do trabalho, devido ao homem (por
meio do trabalho) ter dado o salto – ontológico – de ser animal para social. O
trabalho possibilitou ao homem se libertar da natureza e subordiná-la.
Para manter a vida humana, há necessidade eterna de relacionamento com
o mundo da natureza, onde se encontra o necessário para a existência. E até
quando manteremos esse hiato com a natureza, se somos parte dela? A natureza
é o corpo do humano e com ela devemos permanecer em relação, para não
morrermos; o humano é parte da natureza e o trabalho é atividade-meio vital
dessa relação. A economia capitalista nutre a ilusão de que mais capital gera mais
vida, que gera mais capacidade para viver. Enquanto isso, a luta e a histeria
coletiva na preocupação em sobreviver dirige-se ao sustento da mera vida e não
da boa vida. A humanidade não precisa sucumbir à barbárie.
220
Miguel Ángel Belinchón Bujes, o Belin, nasceu em 26 de setembro de 1979,
na cidade de Linares/Espanha. Belin apresenta uma arte com uma justaposição
de estilos. Aqui vemos um mural hiper-realista, com a reprodução minuciosa do
rosto de uma senhora, combinado a um corpo e cores, sombra e luz, na roupa,
mais lúdico.
Uma idosa solitária tem nas mãos um cofrinho, depreende-se que ela não
tem apoio da família, do Estado, apenas conta com as moedinhas para sobreviver.
Essa senhora nos faz lembrar de algumas personagens da terceira ou quarta idade
que circulam por São Paulo, algumas estão em situação de rua. Qual é o lugar na
sociedade de uma pessoa após os 75 anos? Ela não está aposentada, ou é
aposentada compulsoriamente; se receber aposentadoria, será, em média, um
salário mínimo por mês, o que hoje, no ano de 2018, é de R$ 954. Uma pessoa
nessa idade tem mais gastos cotidianos do que um adulto de 50 anos, porque tem
que cobrir a compra de medicações. O lugar social da pessoa idosa é ficar para
“escanteio”; a capacidade de raciocínio, em geral, fica mais lenta; não há espaço
de socialização no trabalho, na família, por vezes, os mais novos não têm
paciência e já se mantém o poder de voz e ensinamento de que o respeito foge à
regra, para com os idosos. Se pensarmos nos espaços destinados à socialização dos
grupos que não podem trabalhar, vemos clubes, escola, parques de diversão,
brinquedotecas, para crianças na fase de crescimento, mas e para uma senhora
idosa, o que há?
No filme Réquiem para um Sonho, de Darren Aronofsky, é apresentada
uma visão frenética, perturbada e única, sobre pessoas que vivem em desespero,
mas que tentam caçar seus sonhos. Harry Goldfarb e Marion Silver formam um
casal apaixonado, que tem como sonho montar um pequeno negócio e serem,
assim, felizes; mas ambos são viciados em heroína, o que faz com que,
repetidamente, Harry penhore a televisão de sua mãe, uma idosa que fica o dia
todo em casa, para conseguir dinheiro. Sara, mãe de Harry, é viciada em assistir
programas de TV, e um dia recebe um convite para participar do seu show
favorito, o Tappy Tibbons Show, que é transmitido para todo o país. Sara começa
a tomar pílulas de emagrecimento, receitadas por seu médico, para entrar em seu
vestido predileto. Só que, aos poucos, Sara começa a tomar cada vez mais pílulas,
até se tornar uma viciada no medicamento. A crueza de um tipo de realidade está
221
ali representada, é o lugar a que estão relegados tantos idosos que não tem mais
serviência à sociedade em chamas.
Nas famílias, decai a autoridade de homens e mulheres mais velhos. Na
sociedade industrial, já aposentados, tornam-se mais pobres do que enquanto
compunham a força de trabalho ativa. Já sem função laborativa ou familiar,
muitos idosos apresentam dificuldade em manter uma vida digna. A questão do
isolamento pode ser um estereótipo, se olharmos para as estatísticas de que ainda
continuam a se relacionar com a família e que os filhos adultos cuidam de seus
pais. Mas qual é a qualidade dessas relações sociais?
Figura - 116- Bratislava/Eslováquia.
Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2013).
222
Figura 117 - TVNAUTA, por Celso Gitahy
Fonte: Imagem cedida pelo artista.
Uma cabeça de monitor de computador e tigres sedentos de petróleo; ao
fundo, as cores da bandeira brasileira, o verde e o amarelo. Os elementos de
223
composição remetem a uma vivência muito atual. O que seria esse rolê chamado
“Americanização?”. Tal influência não se restringe ao meio financeiro, mas é
considerada como impulso para a difusão de sua cultura, padrão de vida e ideais,
que repercute na substituição de características nacionais por valores dos demais
países, em busca de assemelhar-se (ainda que involuntariamente) com o que é
valorizado.
Seria o povo brasileiro demasiado certinho, educado para ser servo? O país
é mais velho que os EUA, mas não pode se desenvolver jamais. Porque o Brasil é
um dos países mais “paga pau” e americanizado do mundo? No Brasil, vendem-
se as estatais a preços baixos e favorecem a entrada do capital internacional. Por
onde caminha essa síndrome de pequenez? Temos petróleo, água em abundância,
fauna, flora, ervas medicinais. Mas teve o caso da produtividade das refinarias
abaixo da capacidade, em 2018, quando o nosso petróleo foi enviado para ser
refinado fora do país para er (re)comprado com valor atrelado ao dólar,
escancarando a abertura do mercado nacional para o mercado externo.
Semiurgia é a ciência da manipulação da força ideológica do discurso para
efeito de domínio sociopolítico. Fui buscar um biquíni na loja e vi uma calça que
não é mais bailarina, é flare; e o biquíni cintura alta, é cropped; e os outros modelos
todos de calça: pantacourt, cigarrete, boyfriend, legging, skiny, jegging, fitness, wellness
e a loja, em promoção, estava, é claro, On sale e 50% OFF. Não é novidade sermos
colonizados. Se a língua é pátria, estamos americanizados.
Há uma massiva divulgação do modo de vida americano, por meio da
indústria cinematográfica, de onde são transmitidos padrões de comportamento,
jeito de ser e consumir. E o uso cotidiano das palavras: backup, shopping center, jeans,
pen drive, check-in, design, ok, link, show, jeans, pizza, delivery, game, TBT - throwback
thursday.
O homem no estêncil tem cabelo LCD, os tigres com cabeça de motor LCD
encurralam a figura central; o espraiamento da comunicação eletrônica e a mídia
de massas desenvolvem um papel muito potente na reprodução da vida social.
Influenciam a partir dos signos, memes, imagens, fluxos contínuos, das
mensagens cognitivas e subliminares. Essa é a idade da dominação midiática, em
que todo o significado é criado pelo fluxo imagético. Parte significativa de nosso
mundo tornou-se um universo de faz-de-conta, em que respondemos muito mais
224
a imagens nas mídias sociais do que a uma pessoa real. A vida é fragmentada,
dissolvida e descrita na TV; a vida é inventada, falseada por meio dos aplicativos.
Na idade cibernética, tudo é produto cultural baseado em imagem.
Votamos em memes, Facebook é sinônimo de RG, só que com muito mais
informações sobre nossos hábitos e padrões; e ideológico, com “infos” que são
divulgadas para influenciar o nosso consumo, voto, posicionamento frente à vida.
É veículo de informação sem nenhum filtro. O que aqui está, é verídico e ponto,
e assim é a rede de buscas mundiais. Quem é que passa da página 2 do Google
para pesquisar algo? A informação rasa e fácil.
Se Baudrillard, que, em sua juventude, foi influenciado pelo marxismo, diz
que a expansão da comunicação eletrônica e do poderio dos meios midiáticos de
massa revertem a teoria marxista de que as forças econômicas moldam e
influenciam a sociedade. Mas quem rege os meios de comunicação?
Após os períodos revolucionários, de colônia; períodos de governos de
ditadura, agora o capital, que se reestrutura cada vez mais rapidamente, adentrou
profundamente as subjetividades. As novas práticas sociometabólicas da
sociedade neoliberal tendem a fragmentar as subjetividades. Os tipos humanos,
que a sociedade burguesa produz, forma e deforma, têm em si, na mente e no
corpo, a marca do fetichismo da mercadoria. A individualidade de classe, na
medida em que a negação da individualidade pessoal tensiona, no limite de sua
negação, a subjetividade humana.
O capitalismo vai saturando as formas de ser e existir, tanto nas condições
objetivas, materializadas no trabalho e suas formas, quanto nas várias dimensões
da subjetividade (personalidade, reflexo condensado, criatividade, desejos,
pulsões, cognição, em que se relacionam consciente versus inconsciente). O
sociometabolismo do capital é constituído por processo de subjetivação, que
forma os indivíduos e as classes. Nesse sentido, objetividade e subjetividade, se
apresentam em uma unidade. A sociedade imersa no capitalismo em chamas é uma
subjetividade em frustração constante, por não atingir o nível de exigência, uma
subjetividade em desefetivação pelo estresse de longas jornadas de trabalho e
alcances de produtividade também na vida familiar e na social e zumbizada pelas
teias da manipulação social.
As imagens publicitárias com incentivo a práticas e valores, como o
consumismo, individualismo, imediatismo e exibicionismo exacerbados
225
encontram-se nos metrôs, ônibus, banheiros, mensagens de celular, spams,em e-
mails, nas salas de cinema e no teatro, Instagram, snapchat, Facebook. O uso de
instagrans é um exemplo simples da superexposição de imagens e da própria
imagem, em que um perfil pode ser divulgador de marcas apenas em troca de
produtos. Ex.: Postar fotos esportivas sempre usando produtos nike. A televisão é
ainda parte da sociedade do “sim senhor”, “obrigado”, “por favor”. A obediência
servil, passiva e de inconsciente atemporal. O sujeito obediente é o do dever, o
sujeito ativo pós-moderno142 , é o sujeito do prazer, da liberdade, do bel-prazer,
da autoajuda, do ouvido interno. Narcisista, “o eu difunde-se e torna-se difuso”
(HAN, 2018, p. 84).
O estêncil de Celso apresenta uma crítica aos modos de alienação presentes
na sociedade capitalista consumista, a arte pode nos trazer processos reflexivos de
se repensar a realidade social, política, cultural e econômica. Como diz o escritor
espanhol “O modo mais eficaz de tornar os pobres inofensivos é ensiná-los a
querer imitar os riscos. Esse é o veneno com que o capitalismo cega 143.
Figura - 118 - Picho com frase do escritor Carlos Ruiz.
Fonte: Imagem por Juliana Abramides
142O pós–moderno é o tempo de hegemonia do capital: Como explicita James Hansen “(…) pós-moderno é
justamente o tempo em que o pensamento da oposição não é mais operante na cultura […] conforme a crítica
teleológica, […], não mais encontramos a imagem da nossa esperança nos nossos produtos, que passam a existir
de modo alegremente autonomizado, em formas que radicalizam o fetichismo da mercadoria como a nossa natureza
e realidade únicas e em que encontramos, como realização da nossa felicidade, a indiferenciação, a regressão, a
pulsão de morte, em formas hedonistas, conformistas e de má-fé”. (HANSEN, 2000, p. 62-63). 143 A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón. São Paulo: Editora Objetiva, 2015
226
Figura - 119 - Mural na região de casas noturnas entre downtown e chinatown, Los Angeles/CA.
Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).
The colonial world is a world cut in two. The dividing line, the frontiers are shown by barracks and police stations. In the colonies it is the policeman and the soldier who are the official, instituted go-betweens, the spokesmen of the settler and his rule of oppression. In capitalist societies the educational system, whether lay or clerical, the structure of moral reflexes handed down from father to son, the exemplary honesty of workers who are given a medal after fifty years of good and loyal service, and the affection which springs from harmonious relations and good behavior--all these aesthetic expressions of respect for the established order serve to create around the exploited person an atmosphere of submission and of inhibition which lightens the task of policing considerably. In the capitalist countries
O mundo colonial é um mundo cortado em dois. A linha divisória, as fronteiras são mostradas por quartéis e delegacias de polícia. Nas colônias é o policial e o soldado que são o oficial, instituíram intermediários, os porta-vozes do colono e sua regra de opressão. Nas sociedades capitalistas, o sistema educacional, leigo ou clerical, a estrutura dos reflexos morais transmitidos de pai para filho, a honestidade exemplar dos trabalhadores que recebem uma medalha após cinquenta anos de serviço bom e leal e a afeição que brota da harmonia relações e bom comportamento - todas essas expressões estéticas de respeito pela ordem estabelecida servem para criar em torno da pessoa explorada uma atmosfera de submissão e de inibição que ilumina consideravelmente a tarefa de policiar. Nos
227
a multitude of moral teachers, counselors and "bewilderers" separate the exploited from those in power. In the colonial countries, on the contrary, the policeman and the soldier, by their immediate presence and their frequent and direct action maintain contact with the native and advise him by means of rifle butts and napalm not to budge. It is obvious here that the agents of government speak the language of pure force. The intermediary does not lighten the oppression, nor seek to hide the domination; he shows them up and puts them into practice with the clear conscience of an upholder of the peace; yet he is the bringer of violence into the home and into the mind of the native. (FRANTZ FANON, 1963, p. 37).
países capitalistas, uma multidão de professores de moral, conselheiros e "perplexos" separa os explorados daqueles que estão no poder. Nos países coloniais, pelo contrário, o policial e o soldado, por sua presença imediata e sua ação frequente e direta, mantêm contato com o nativo e o aconselham por meio de pontas de fuzil e napalm a não ceder. É óbvio aqui que os agentes do governo falam a linguagem da força pura. O intermediário não alivia a opressão nem procura ocultar a dominação; ele os mostra e os põe em prática com a consciência limpa de um defensor da paz; mas ele é o portador da violência para o lar e para a mente do nativo. (FRANTZ FANON, 1963, p. 37).
As diversas formas de racismo adquirem papéis social, ideológico e
político. Em O Racismo como Arma Ideológica de Dominação, Clóvis Moura (1994) analisa
como o racismo se renova enquanto instrumento de dominação tendo sido ao longo da história
a “justificação dos privilégios das elites e dos infortúnios das classes subalternas”. O autor se
refere ao racismo enquanto instrumento de ideologia da dominação “[...] e somente assim
pode-se explicar a sua permanencia como tendencia de pensamento”.
O racismo tem um caráter de dominação ideopolítico, além da dominação
étnica. Nas nações que vivenciaram a dominação colonial escravista, a herança
desses sistemas se reproduz quando mantém um sistema de exploração das
camadas trabalhadoras negras e mestiças. Mantém formas de segregação ou de
não inserção social dos negros e negras.
Desde o século VII, países ocidentais estabeleceram colônias em numerosas
áreas, impondo o poderio e as regras em territórios alheios, com uso militar
superior e força, o que moldou socialmente o mundo como o conhecemos hoje.
O neocolonialismo, ou a fase do imperialismo, multiplica as formas de racismo, em novas
roupagens. O racismo como ideologia neocolonial adquire algumas formas, como de “[...] uma
reciclagem hipocrita do antigo sistema colonial, que se reestrutura no neo-colonialismo
tecnocratico, racista”. (MOURA, 1994, p. 15).
Em Rebeliões da Senzala, Clóvis Moura 2014 destaca o caráter ativo dos
negros na resistência ao escravismo e luta por emancipação. Uma rebeldia
permanente e organizada dirigida pelos escravizados em todo o território
nacional, no Brasil. Moura destaca que o movimento de mudança radical foi uma
228
força importante no desgaste do sistema escravista; dissolveu as bases do modo de
vida em diversos níveis – econômico, social e militar – e influiu poderosamente
para que esse tipo de trabalho entrasse em crise e fosse substituído pelo trabalho
livre.
Em Civilização Americana em Julgamento, Raya Dunayevskaya (1983)
apresenta contundente crítica à sociedade americana donde fala sobre a auto-
atividade do negro desde antes da Guerra Civil até depois da II Guerra Mundial.
Em uma clara alusão à política do governo Kennedy, do posicionamento das
forças armadas do Estado, “os cães” da polícia nos ataques ao negro e o
espraiamento do posicionamento racista “branco do sul uivando aos ventos” para
o norte, através do Ku Klux Klan (KKK). Na atividade de organização pelos direitos
sociais dos negros, principalmente entre as eras da pós I Guerra e da era pós-II
Guerra Mundial, “quando o negro, longe de fugir defensivamente do
linchamento, tomou a ofensiva por seus plenos direitos sobre todos frentes e,
sobretudo, no sul”.
O capitalismo estadunidense, em uma revolução inacabada, expande-se,
depois da Guerra Civil. O capitalismo que fora amarrado às plantações de
algodão. Ainda em 1877, quando o trabalho emerge no norte e iniciam-se as
primeiras greves ferroviárias, toda a mão de obra negra, no sul, se volta para a
agricultura.
Quais as forças de atuação, no sul, para abandonar a segregação social?
Parece que a conclusão, até 1942, era que todo pensamento progressista, no sul,
inexistia. Será que a mentalidade patriótica e mestre de escravos ainda
permanece por lá, dentre os fazendeiros?
A civilização americana é identificada na consciência mundial por três
fases, no desenvolvimento da sua história. A primeira é a Declaração da
Independência e a liberdade das treze colônias americanas do domínio imperial
britânico. A segunda é a Guerra Civil. A terceira é a tecnologia e o poder mundial,
que estão atualmente sendo desafiados pelo país, que quebrou o monopólio
nuclear da América - a Rússia -, e afirma que todo louvor pela emancipação e
pela proclamação da independência não podia branquear o presente ou que a
democracia americana jamais poderia reescrever a história.
Após a guerra civil, que culminou com o fim da escravidão, em 1865, a
discriminação legal (como a segregação obrigatória no sul - hotéis, restaurantes,
229
bares, etc. e escolas separados), ataram os negros aos mais baixos degraus da
escada econômica). A discriminação racial se tornou-se ilegal desde o ato dos
direitos civis, mas, na prática, persiste, apesar de alguns negros terem se tornado
classe média, com melhores trabalhos, a maioria é pobre e tem trabalhos mal
pagos.
A autora marxista defende que há uma nova dimensão humana alcançada
por meio do gênio de um povo oprimido na luta pela liberdade, nacional e
internacionalmente; o papel da vanguarda dos negros torna-se a medida do
homem em ação e pensamento e “[...] nada pode impedi-lo de ser o mais amargo
inimigo da sociedade existente” (DUNAYEVSKAYA, 1983, p. 6). No meio da
guerra, o negro eclodiu em uma série de manifestações, em Chicago, Detroit, NY,
bem como nos acampamentos do exército, com os mineiros, na greve geral do
mesmo ano, foram a primeira instância na história dos EUA, quando ambos os
trabalhadores, branco e negro, recusaram-se a suspender a luta de classes ou a luta
pela igualdade de direitos. Sobre o abolicionismo e a guerra civil, ela fala sobre a
impossibilidade de se ter uma definição sobre esses momentos históricos, desde
que a atividade do negro, na formação da civilização americana, permanece em
branco (até aquele momento) nas mentes dos historiadores acadêmicos. Segue
Raya:
O historiador burguês é cego não só para o papel do negro, mas para o do branco Abolicionistas. Principalmente não registrado por todos os padrões historiadores, e hermeticamente selado de seu poder de compreensão, são três décadas de Luta abolicionista de brancos e negros que precedeu a Guerra Civil e tornou isso irreprimível conflito inevitável. No entanto, estas são as décadas quando o cadinho do qual o primeiro grande expressão independente do gênio americano foi forjado. (...) Apenas historiadores negros como W. E. B. Du Bois, G. Carter Woodson e J. A. Rogers fizeram a pesquisa meticulosa para definir o s limites e revelar o papel criativo dos negros na História americana”. (DUNAYEVSKAYA, 1983, p. 7).
O africano, trazido aqui como escravo contra a sua vontade, desempenhou
um papel decisivo na formação da Civilização Americana144. No início do século
17, havia cerca de 10 mil negros livres nos EUA. Nesse ínterim, o que a autora
ressalta é a importância das revoltas de escravos, primeiro no apelo dos negros
144“Alguns sentem que é errado começar a história do negro na América com sua chegada aqui como um escravo,
em 1619, desde que ele já havia alcançado estas costas muito antes - com a descoberta do mundo novo, na verdade,
principalmente como servos ou, em alguns casos, na comitiva dos próprios exploradores.” (DUNAYEVSKAYA,
1983, p. 8).
230
livres, no escravo fugitivo sendo "conduzido" através da Ferrovia Subterrânea por
ex-escravos fugitivos.
Os anos 1820-1830 marcaram o nascimento do capitalismo industrial, de
modo que o algodão e a economia das plantações movia o comércio e, na Nova
Inglaterra, a indústria têxtil e apolítica em geral.
A manutenção de uma “supremacia branca” nos estados do sul surge a
partir da produção do algodão. Houve um "acordo de cavalheiros" entre os
proprietários das plantações com o capital do norte, bem como com auxílio do
KKK, de que, na indústria do sul - os produtos têxteis - se desenvolveriam sob a
condição de deixar intocado um suprimento de mão de obra negra das
plantações, “quando eles estabelecem o palco desenfreado de violência contra o
trabalho” (DUNAYEVSKAYA, 1983, p. 12). Além de estarem livres da escravidão,
os negros foram libertados também de uma maneira de ganhar a vida: “sem-terra
eram os novos libertos e sem dinheiro” (DUNAYEVSKAYA, 1983, p. 2).
231
Figura 120 - O trabalho abaixo ganhou proporções por conta do ano de 2014, das mobilizações não vai ter copa. Vila Madalena, SP.
Fonte: Imagem cedida por Paulo Ito.
O artista pinta em locais públicos nas redondezas do campus universitário
desde 1997, com atividades junto a um coletivo. Na rua, por conta própria nos
anos 2000, integrou o núcleo do aprendiz do Gilberto DImenstein, na época
pintava com rolo e pincel, pintava muros comerciais e postes. A partir daí inicia
o uso de spray tendo uma atuação mais solitária, e faz com os amigos o que chama
“pintura de domingo”, para pintar, relaxar e curtir no sol mais do que enquanto
carreira. Para ele é uma satisfação pintar dentro de uma ocupação e fortalecer o
movimento de moradia e vê a sua arte e a pintura como uma forma de colaborar
socialmente. Então busca ter essa participação com o movimento social.
232
Qual a profundidade de sentimentos que a figura de uma criança
representa? Uma criança em choro olha para o céu; uma figura que clama por
piedade. Quem negará a necessidade por carinho e alimento de uma tenra face
inocente? Quem são esses seres enervados que ignoram os sofrimentos físicos de
uma criança?
Só nas estações, quando vai parando, lentamente começa a dizer:
- se tem gente com fome, dá de comer; se tem gente com fome dá de comer;
se tem gente com fome dá de comer.
Mas o freio de ar todo autoritário manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuuuu (SOLANO TRINDADE).
Por que mesmo os países ricos também apresentam, dentre a população,
pessoas extremamente pobres? A desigualdade de poder e riqueza pode ser
visualizada na comparação dos dados econômicos de riqueza nacional,
exportação, produto interno bruto e renda per capita e dados sociais de fome,
moradia, expectativa de vida, crescimento populacional, mortalidade infantil.
Países de alta renda contém 18% da população mundial, mas concentram 68% de
riqueza, quase metade da população mundial, 3,4 bilhões de pessoas vivem com
menos de 5,50 dólares. A fome, a má nutrição e a famigeração são as maiores
causas para problemas de saúde, subsistência e desenvolvimento pessoal. Uma em
cada nove pessoas no mundo, ou 795 milhões, não tem comida o suficiente para
ter uma vida ativa e sadia. A vasta maioria das pessoas famintas mora em países
que foram colonizados, explorados pelos ditos países desenvolvido.145
Não falta alimento no mundo, existe um padrão perverso que caminha para
dois sentidos a escassez e o desperdício. Os americanos desperdiçam a cada dia
cerca de 150 mil toneladas de alimentos, em torno de 422 gramas por habitante,
principalmente frutas e verduras.
145As duas tabelas a seguir são de dados coletados do Serviço de Educação Mundial contra a Fome (disponível
em: https://www.worldhunger.org/world-hunger-and-poverty-facts-and-statistics): ⅔ de toda essa população vive
na Ásia, a África Subsaariana apresenta a maior prevalência de famigerados, uma em cada quatro pessoas está
desnutrida.
233
Gráfico 8 - Desperdício de comida diário per capita nos EUA146 .
Não dá para metade da população no mundo estar com fome ou subnutrida
enquanto sustentamos o modelo do consumismo e desperdício de países
imperialistas tal qual os EUA. O desperdício é diário, comida no prato, alimentos
que passam da validade, a compra daquilo que não se necessita, os restaurantes
colocando alimentos na lata do lixo todos os dias. Enquanto tem gente com fome.
Ainda há o problema do desperdício na colheita, na produção, transporte,
armazenamento, comercialização e consumos dos alimentos.
Porcentagem de todas as terras cultivadas colhidas desperdiçadas por
categoria e porcentagem de cada tipo de terra cultivada explorada desperdiçada
(Gráfico 9) . Total de terras cultivadas desperdiçadas = 30,02 milhões de acres (IC
95%: 29,29 a 30,76 milhões de acres), representando 7,7% (7,5-7,9%) do total colhido:
Gráfico 9 - Desperdício de alimentos na colheita.
146 As duas tabelas acima que seguem foram reproduzidas do artigo “Relationship between food waste, diet
quality, and environmental sustainability” (Relação entre desperdício de alimentos, qualidade da dieta e
sustentabilidade ambiental)
https://journals.plos.org/plosone/article/authors?id=10.1371/journal.pone.0195405
234
Será que não existe algo de errado quando se é possível alimentar cada ser
maravilhoso neste mundo e bilhões de pessoas estão desnutridas? Tem alimento
mas é preciso da mediação do dinheiro para comprar o alimento, ou de terra para
plantar o alimento próprio. Então é a pobreza a questão! Se todo mundo puder
ter comida, por quê não estabelecemos urgentemente um parâmetro mínimo de
humanidade em que esteja decretado que amanhã todos tenham moradia e
comida? É o Lucro ou as Pessoas? a tese do Noam Chomsky. É Socialismo ou Barbárie
segundo Rosa Luxemburgo.
Será que tudo precisa visar o lucro? Até mesmo a comida que é algo básico
para a existência humana? Que loucura é essa? Atravessadores na comercialização
de comida? Especuladores que fazem fortuna nos mercados futuros de alimentos?
Deveríamos começar por aí um processo de socialização das riquezas. Por que
não produzir alimento para a vida ao invés de para o lucro? Que tal? Transformar
todas as empresas capitalistas de alimentos em cooperativas sem fins lucrativos
controladas pequenos produtores rurais e pelos trabalhadores?
A pouca nutrição de populações na miséria causa 45% das mortes de
crianças com menos de 5 anos, ou 3,1 milhões todos os anos. Crianças abaixo do
peso, sem forças, substância para sobreviver, para aprender, crianças com atrofia
no cérebro. Se as mulheres agricultoras tivessem o mesmo acesso a recursos que
os homens, o número de famintos no mundo poderia ser reduzido em até 150
milhões. Registra-se que 66 milhões de crianças em idade escolar freqüentam as
aulas estando famintas, em todo o mundo do sul e Ásia, com 23 milhões somente
na África. Em torno de U$ 3,2 bilhões são necessários, por ano, para alcançar todos
os 66 milhões de crianças em idade escolar famintas.
No mundo, 32 milhões de pessoas passam fome, e mais de 65 milhões de
pessoas não ingerem a quantidade mínima diária de calorias, ou seja, se
alimentam de forma precária. Quanto foi gasto na Copa do Mundo de 2014, no
Brasil? De acordo com o relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), foram
R$ 25,5 bilhões. Do total, R$ 7 bilhões foram gastos em mobilidade urbana e R$ 8
bilhões em estádios. As obras relativas a aeroportos custaram R$ 6,2 bilhões e as
obras no entorno dos estádios custaram R$ 996 milhões.
O Brasil apresenta um potencial agrícola potente o suficiente para dominar
o comércio mundial, no entanto a bárbara desigualdade social e a concentração
fundiária impede que as pessoas tenham o suficiente para sua nutrição, apesar de
235
o país ter alimentos em quantidade suficiente para todo mundo. A fome é um
problema social da sociedade cindida em classes, a fome é crônica, é a incerteza
da sobrevivência em países como Brasil, Índia, Nepal, Iêmen e vários outros. Com
o surgimento da divisão social do trabalho associada à apropriação da riqueza
coletiva, rompe-se a condição de acesso à alimentação para parte da população, o
que resulta em fome coletiva.
Apesar do avanço no combate à fome, nos últimos anos, a pesquisa do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2016, mostrou que 13
milhões de brasileiros ainda passam fome, e que 50 milhões de pessoas vivem
abaixo da linha da pobreza. A luta contra a fome, no Brasil, teve atenção especial
durante o governo Lula, quando foram criados programas sociais, como o Fome
Zero, que substitui o Programa implantado por FHC: Comunidade solidária; e o
programa Bolsa Família que amplia e unifica programas anteriores de
transferência de renda . Em 2014, pela primeira vez, o Brasil saiu do mapa da
fome da Organização das Nações Unidas (ONU).
O direito à alimentação deveria ser o primeiro elemento de um tratado
mundial. Mas quem será ingênuo de crer que o capital está interessado em
erradicar a fome? O combate à fome, a promoção da segurança alimentar tem que
ser política de estado mas por quê não é? É importante enfatizar que a miséria é
uma produção humana. Miséria e pobreza são, antes de tudo, uma questão ético-
política.
A situação de penúria é tal que, ou se tem um trabalho mal remunerado,
que não é suficiente para a própria alimentação, o que obriga a todos os membros
da família a trabalhar, inclusive as crianças e os idosos! Será que estamos voltando
aos tempos da revolução industrial? Que parâmetro de vida é esse em que crianças
não estudam e vão pra carvoaria? Em que idosos não podem ter o seu direito ao
descanso depois de uma vida toda árdua sol a sol na batalha pela sobrevivência.
Estamos em guerra, a guerra por se manter vivo.
236
Figura 121 - Drew Merritt, Downtown de Los Angeles, setembro de 2018.
Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).
O ser contemporâneo inebriado de sono e potencializado a sentir medo em
seu ócio, é estimulado a trabalhar ou, então, fugir ao real, absorto em imagens que
chegam ao córtex visual primário estimulando a sonolência.
O estresse, a ansiedade, obesidade, o esgotamento, a depressão, são
vivências corpóreo-psíquicas, ou doenças que estão intimamente ligadas a um
modo de vida. Levamos em conta que, por exemplo, a depressão relaciona-se
com produções químicas do corpo e a obesidade também pode estar relacionada
ao metabolismo da pessoa, mais do que a fatores externos. Ainda assim, essas
doenças, além do fator sofrimento, também vinculam-se ao aparecimento de
novas doenças estimuladas por essas.
237
Esses processos de desefetivação ampliam o mundo subterrâneo da alma
ao abafar processos de criatividade e limitar capacidades ontológicas humanas
fundamentais, na redução da criação de alternativas. Somos afetados por
símbolos e sentidos implícitos na reprodução cultural e o consumismo é a
principal forma de fetichismo.
As dimensões corporal, espiritual e mental, que compreendem a
subjetividade, estão estimuladas para a liberação de instintos e desejos, atrelando
o desejo de ser ao desejo de ter (consumir), com hiperssexualização, com
permanência do estímulo à disciplinarização e ao produtivismo, com formas cada
vez mais plurais de realização, ao mesmo tempo em que se exige a ultra
especialização novamente, como forma de consumo e não finalidade, já que o
mais especializado será tão igualmente precarizado, mas com força motriz
inversa, dado o tempo de escolarização. A massiva desesperança e vontade de
morte toma conta manifesta no excesso de estímulos, informações, imagens,
impulsos. A atenção excessiva em uma longa jornada de trabalho ou duas nos
deixa estafados.
Nós enchemos o mundo com objetos e mercadorias com vida útil e validade cada vez menores. essa loja de mercadorias não se distingue muito de um manicômio. Aparentemente, temos tudo; só nos falta o essencial, a saber, o mundo. O mundo perdeu sua alma e sua fala, se tornou desprovido de qualquer som. O alarido da comunicação sufoca o silêncio. A proliferação e massificação das coisas expulsa o vazio. As coisas super povoam céu e terra. Esse universo-mercadoria não é mais apropriado para se morar. (...) Já é hora de transformar essa casa mercantil novamente numa moradia, numa casa de festas, onde valha mesmo a pena viver. (HAN, 2018, p.127-128)
A apreensão do tempo na atualidade coloca o indivíduo refém do instante
presente por não se abrir ao passado e nem ao futuro, o que permite dizer que a
atuação em projetos, do indivíduo que não apresenta identidade pessoal, a qual
depende da persistência do ‘eu’ através do tempo, será nula, pois, este não se lança
ao futuro. A sociedade industrial dependia de uma identidade persistente a
sociedade do esgotamento (Byung-Chul Han) necessita de flexibilidade, multitarefa
para o aumento produtivo. A lógica pós-moderna com ênfase no presentismo, na
valorização do consumo de forma a levar ao extremo o fetichismo da mercadoria,
em que a publicidade e o show business triunfam enquanto dimensão artística,
contribui para a reprodução e ampliação da alienação presente no modo de
produção capitalista. A sociedade do desempenho é a nossa angústia, fracasso,
sentimento de insuficiência transferido para o consumo. O mundo se vê
238
confrontado em ser o si mesmo que se transfere por ter que ter pra ser o si
mesmo.
A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o homem na
sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de um
retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em
estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção indispensável para
sobreviver na vida selvagem. Nesta outra etapa da modernidade, vive-se num
“estado de perpétua emergência” (BAUMAN, 2005, p. 41) e ir contra o caos
estabelece a medida de ir pela norma e lei de uma sociedade em degenerescência
das relações sociais e fragmentação das relações de produção. No tempo
devastado pela objetividade e subjetividade do capital em meio à banalização
cultural generalizada os humanos inseridos nessa sociabilidade aprendem a se
comportar na intensidade fragmentada.
O ser humano tem potencialidades inerentes a si e para sua concretização
busca a projeção para fora de si da sua potencialidade no processo teleológico de
acúmulo de finalidades posto em ação. No processo de consciência é possível
perceber a finalidade contida na ação, no entanto, a prévia ideação pode não
caminhar para a teleologia. Entende-se que as determinações objetivas, por vezes,
dificultam a efetivação de uma vida lúdica e sensibilizadora; ainda assim na
cotidianidade, é possível enxergar além da parede, sempre, em busca das
suspensões147.
O processo de coisificação a valorização das coisas se tornam sombras que
colocam a valorização humana na penumbra do palco. Afirmar a humanidade é
repor as relações diretas entre os seres sociais sem que elas sejam reduzidas e
mediadas pelas coisas, isto é, colocar como central a dissolução dessa sociedade
pautada nas relações coisificadas. O capital, o modo de vida burguês é uma
147 “Elas – que permitem aos indivíduos, via homogeneização, assumirem-se como seres humano- genéricos – não
podem ser contínuas: estabelecem um circuito de retorno à cotidianidade; ao efetuar este retorno, o indivíduo
enquanto tal comporta-se cotidianamente com mais eficácia e, ao mesmo tempo, percebe a cotidianidade
diferencialmente: pode percebê-la como espaço compulsório de humanização (de enriquecimento e ampliação do
ser social). Está contida aqui, nitidamente, uma dialética de tensões: o retorno à cotidianidade após uma suspensão
(seja criativa, seja fruidora) supõe a alternativa de um indivíduo mais refinado, educado (justamente porque se
alçou à consciência humano-genérica) (...) CARVALHO; NETTO, 1996, p. 70). A determinação essencial do
indivíduo está em seu caráter humano genérico e se confirma no processo de elaboração do mundo objetivo, onde
“se relaciona consigo mesmo como um ser universal, e por isso livre”. (MARX, 1992, p. 85) O ser humano é ser
existente conscientemente para si mesmo e além de ser objetivo é um ser genérico, para Marx a objetividade
genérica (Gattungsgegenständlichkeit) expressa a universalidade humana que se objetiva na realidade, a
objetividade está em que cada objeto do seu trabalho que é, portanto a objetivação da vida genérica humana.#
239
existência circundada por coisas ou objetos, a reprodução e força de existência do
capital está nas formas de realização da produção, da circulação e do consumo
desses objetos-mercadorias. A imagem aqui é a forma final do objeto e o extremo
do fetiche, a forma final da reificação da mercadoria.
A sociedade de mercado é movida por esses valores imagéticos em que o
mundo fetichizado com formas-fetiche movem as existências. Como ilustração,
uma trabalhadora poupa 08 meses de salário para comprar um produto com
multi-funcionalidades pouco utilizadas mas por ser uma mercadoria de imagem-
último tipo. Ao comprar este objeto-imagem sente-se mais bonita, mais poderosa
e inserida socialmente. Esta mulher será elogiada por ter esse objeto. Não é o
valor de uso do objeto que fascina mas a generalização do código “atualização”. O
sistema deverá ser atualizado (software, app sistema Os ou etc), estar em
compasso com a moda ou a atualidade dos usos de roupas, o que pressupõe novos
consumos. O código estar atualizado se liga ao presente perpétuo148.
Além da ausência de perspectivas e de projetos, da crise econômica e falta
de empregos há um convencimento, uma compreensão de que buscar uma
outra forma de sociedade e o comprometimento com a vida cotidiana coletiva
é algo utópico. A nós foi ensinado de que não há mais possibilidades, que o
capitalismo venceu. E é esse o cerne da diferenciação entre moderno e pós-
moderno.
A insegurança social gerada na era do assalariado precário e do desemprego
estrutural em massa é gerida pela mão direita do controlador de vidas, o aparato
repressor do Estado. A adesão da classe dominante à ideologia neoliberal resulta
na redução do Estado Social, no aumento do favorecimento econômico das
classes dominantes pelo Estado e no fortalecimento do Estado penal para os
pobres. Esta ênfase prisional se apresenta no encarceramento em massas
majoritariamente de pobres, jovens e negros e do extermínio desta mesma
população. A criminalização da pobreza no Brasil é uma cultura pública inscrita
na estrutura do Estado.
Ora, se determinadas práticas de sobrevivência se tornam recorrentes elas
148“O próprio ato de consumir se apresenta sob a aparência de um gesto cultural legitimador, na forma de bens
simbólicos - como se disse à exaustão: de imagens ou de simulacros. É a forma-mercadoria no seu estágio mais
avançado como forma-mercadoria no seu estágio mais avançado como forma-publicitária. O que se consome é um
estilo de vida e nada escapa a essa imaterialização que tomou conta do social (...) a cultura tornou-se peça central
na máquina reprodutiva do capitalismo, a sua nova mola propulsora”. (ARANTES, 1998, p. 99)
240
se sobrepõe à legalidade e a lei se torna retrógrada. Vejamos se o Estado que deve
promover emprego para a regulação social, prioriza investimentos em bancos ao
perdoar dívidas bilionárias e congela gastos sociais. Esse Estado está reproduzindo
condições de desregulação social que empurra. Aqui lembramos que o
entendimento de uma sociedade em decadência sendo a arte vinculada a este
momento histórico mais relacionada a ele a arte urbana ou street art. A essência
histórica desta realidade conduz a um ciclo autêntico desta compreensão de
mundo ao nos referirmos ao conhecimento imanente.
Este corpo nobre lotado de tudo que precisa, mastiga e devora a sua própria
negação. Byung-Chul Han em seu pequeno e inovador livro a Sociedade do
Cansaço argumenta que hoje já não vivemos na sociedade disciplinar, da
negatividade e proibições, isso primordialmente, já que sempre há uma
combinação de formas de viver. A sociedade do desempenho torna-se a sociedade
do esgotamento através do poder hábil. O sujeito de psique da afirmação. Um
combo transicional de uma sociedade disciplinar, onde entre muros e paredes, a
vida foi apagada. Onde o sujeito obediente e mental ainda não é depressivo; e a
do esgotamento neurológico e informacional de descrença e labirinto quanto ao
futuro, o que nos incapacita para tomar ações.
We shall not be reactives.
241
Figura 122 - Manifestante lança flores.
Fonte: Imagem Reprodução do livro Banksy - wall and piece. Quando a gaúcha Espertina Martins, filha de família anarquista de
Lajeado/RS, armada com um buquê de flores que camuflava dinamites, aos 15
anos, foi a heroína da manifestação de operários que protestavam por melhores
salários, em 1917. A garota lançou as flores contra a tropa de policiais, e, ao mesmo
tempo, possivelmente um tio seu (já que toda a família Martins tinha a marca do
242
ativismo contra opressões e injustiças das condições de trabalho, no início do
século passado), jogou uma bomba, e com a explosão a tropa debandou. Meses
depois, estourava a A Guerra dos Braços Cruzado, que parou Porto Alegre/RS e
da qual Espertina e a família participaram ativamente.
Espertina, já moça, tornou-se feminista e continuou fiel à suas concepções
revolucionárias e anarquistas, até o final da vida, e performou um ato poético
radical que, anos depois, foi figurado por Banksy (Fig. 122), um dos conhecidos
artistas de rua. Mas será que ele sabia dessa história?
They expect to be able to shout their message in your face from every available surface but you’re never allowed to answer back. Well, they started a fight and the wall is the weapon of choice to hit then back (...) Some people become cops because they want to make the world a better place. Some people become vandals because they want to make the world a better looking place. (Banksy, 2006. Banksy - wall and piece. The Random House Group Limited, United Kingdom, 2006).
Eles esperam poder gritar mensagens na tua cara de todas as formas possíveis, mas você nunca tem permissão para responder. Bem, eles começaram uma briga e o muro é a arma de escolha para bater e depois voltar [...] Algumas pessoas se tornam policiais porque querem tornar o mundo um lugar melhor. Algumas pessoas se tornam vândalos porque querem tornar o mundo um lugar mais bonito. (BANKSY, 2006. Banksy - Wall and Piece, 2006).
.
No Cabaret Voltaire, centro de entretenimento artístico, um grupo de
escritores, poetas e artistas plásticos de diversas nacionalidades reuniam-se a fim
de realizar concertos, leitura de poesias e reuniões políticas. Em Zurique, 1916,
no centro da guerra o desencanto vivido nos fins da carnificina - na primeira
guerra mundial, Hugo Ball quase foi listado para a batalha mas por problemas de
saúde não o foi, começou a publicar artigos anti-guerra, foi perseguido em terra
natal na Romênia e migrou para a Suíça, e questionava a necessidade da arte em
meio à barbárie. Um momento de crise de vida e moral impulsionou um grupo
de artistas a recusa ao positivismo, à razão positiva. Os artistas queriam destruir
todas as convenções com respeito a essa forma, criando uma anti-arte. Escândalo,
ruptura, experimentação contra as leis da lógica, as purezas do pensamento,
crônica da intemporalidade, o caos contra a ordem, a perfeição contra a
imperfeição.
A estética dadaísta negava a razão, o sentido, a provocação, a poesia estaria
na ação e as fronteiras entre arte e vida deveriam ser abolidas. Clamava Tristan
Tzara: "Não reconhecemos nenhuma teoria, estamos fartos das academias
cubistas e futuristas: laboratórios de ideias formais. Se faz arte para acariciar aos
243
gentis burgueses?". O movimento criou uma linguagem poética livre, anárquica
e sem limites com mescla de gêneros. E é essa síntese que nos interessa para nossa
argumentação. O principal problema de todas as manifestações artísticas estava,
segundo os dadaístas, em almejar o impossível: explicar o ser humano Tristan
Tzara 149 decreta: "A obra de arte não deve ser a beleza em si mesma, porque a
beleza está morta".
No seu esforço para expressar a negação de todos os valores estéticos e
artísticos correntes, os dadaístas usaram, com frequência, métodos
deliberadamente incompreensíveis. Nas pinturas e esculturas, por exemplo,
tinham por hábito aproveitar pedaços de materiais encontrados pelas ruas ou
objetos que haviam sido jogados fora150.
Para nós um ícone do pixo, Ata, trabalha atualmente como operador de
empilhadeira, cria uma síntese, a palavra que vem de seu nome e que está em toda
a cidade, um pixo comunicável. O maior pixador dos anos 2000. Por 20 anos
narra a sua estória, um esportista mo pixo e outras práticas como patins, escalada,
rapel, etc; aventureiro, planeja meticulosamente seus atos e vai da janela ao topo,
da funicular à linha de trem. Seu material de trabalho: a corda, cadeirinha de
madeira, equipamentos que um trabalhador usaria para limpar as pastilhas de um
prédio, e muitas latas de spray. O objetivo? Alcançar o topo mais alto, esticar as
linhas para um traçado longo e firme, desafiar o perigo. Ousadia define o pixo,
não há limites.
149Tristan Tzara, cujo verdadeiro nome era Samuel Rosenstock, nasceu em Moinesti, na Romênia, em 16 de abril
de 1896. Começou a escrever poesia muito cedo e, aos dezessete anos, já era colaborador de uma das revistas de
vanguarda de seu país: Simbolul. Em 1915 adotou o pseudônimo pelo qual ficou conhecido e que significa “triste
em meu país”. No mesmo ano mudou-se para Zurique, para estudar ciências humanas e filosofia. Ali se converteu
em um dos fundadores do Cabaré Voltaire. Junto a Jean Arp e Hugo Ball, foi um dos criadores e líder do
movimento dadaísta. Em 1918, subscreveu o Manifesto Dadá, a declaração programática mais importante do
movimento que revolucionaria a arte através da sua negação, buscando romper com todos os parâmetros
estabelecidos ao longo da história da arte ocidental. 150Não quero nenhuma palavra que tenha sido descoberta por outrem. Todas as palavras foram descobertas pelos
outros. Quero a minha própria asneira, e vogais e consoantes também que lhe correspondam. Se uma vibração
mede sete centímetros, quero palavras que meçam precisamente sete centímetros. As palavras do senhor Silva só
medem dois centímetros e meio. Assim podemos ver perfeitamente como surge a linguagem articulada. Pura e
simplesmente deixo cair os sons. Surgem palavras, ombros de palavras; pernas, braços, mãos de palavras. Au, oi,
u. Não devemos deixar surgir muitas palavras. Um verso é a oportunidade de dispensarmos palavras e linguagem.
Essa maldita linguagem à qual se cola a porcaria como à mão do traficante que as moedas gastaram. A palavra,
quero-a quando acaba e quando começa. Cada coisa tem a sua palavra; pois a palavra própria transformou-se em
coisa. Porque é que a árvore não há-de chamar-se plupluch e pluplubach depois da chuva? E porque é que raio há-
de chamar-se seja o que for? Havemos de pendurar a boca nisso? A palavra, a palavra, a dor precisamente aí, a
palavra, meus senhores, é uma questão pública de suprema importância.
Zurique, 14 de Julho de 1916 (Primeiro Manifesto Dadá, Hugo Ball)
245
O núcleo central das nossas indagações se estabelece acerca da arte urbana
enquanto a principal vertente plástica no mundo, uma estética periférica que se
manifesta de forma diferenciada como expressão de resistência e ocupação
urbana, artística, política e cultural. Reafirmamos a atualidade do objeto
pesquisado e a pertinência de dar ouvidos à voz, aos gritos que vem das ruas; dar
à luz a imagens e comunicações enquanto formas de afirmação da existência e
contestação ao mundo normativo, autoritário, destruidor da natureza; da
desigualdade, racismo, preconceito e discriminação. Por mais que o significado
social street art apresente um primado da forma frente ao conteúdo, já que aparece
como uma expressão muito visual, por ser expressão da época da imagem,
encontramos significações sociais e políticas de maneira explícita no
questionamento do status quo visível em desenhos ou contida intrinsecamente ao
ato transgressor. Toda pessoa tem capacidade de ser criativa e cada uma de
maneira diferente expressa sua criatividade e a busca da emancipação é a de criar
outra sociabilidade, libertária e igualitária de indivíduos sociais, com o fim da
sociedade de classes.
A arte de rua com graffitis e pixações se soma ao conjunto de indignações,
transgressões, gritos de negação do status quo opressor, mesmo que de forma
dispersa, sem organização e consciência necessária, mas sem dúvida, sujeitos
sociais históricos, partícipes da classe trabalhadora e portanto, sujeitos aliados de
um processo de transformação social. O spray é sintético, e envolve o ambiente
com economia de palavras e reivindicação ideogrâmica. O graffiti é uma
caligrafia geométrica singular urbana; um pensamento não linear com letras
móveis litigantes que apresenta ramificações: graffiti-protesto, graffiti-curtição,
graffiti-arte.
246
Se as cidades foram construídas a partir de muros, são eles os suportes de
comunicação mais eficientes e visíveis. A inscrição em muros não é novidade,
parte da história na ancestralidade e desenvolvimento de civilizações até mesmo
esquecidas, é expressão humana presente na antiguidade com narrativas
históricas, religiosas e míticas de diversos povos. É uma constante histórica. O
destino político da arte urbana se volta ao questionamento da sociedade
espetacular mercantil. O desenrolar das crises urbanas. Quem são esses sujeitos
ativos nas ruas das grandes cidades? Como a insurgência na esfera urbana se
articula com outras lutas mais gerais? Vimos no desenvolvimento da tese que
os/as insurgentes pixadores/as e grafiteiros/as dos grande centros urbanos
analisados, são jovens, periféricos/as, parte do precariado urbano que se amplia a
cada dia fruto das investidas do capital contra o trabalho. De outro lado, sofrem a
discriminação e opressão de classe, social, e racial, tanto em São Paulo, no Brasil,
como na Califórnia nos Estados Unidos da América. Pelas entrevistas e
depoimentos essas vozes que se expressam nas inscrições vêm de uma negação
econômica, social, cultural, que é estrutural e estruturante da sociedade de classes
do modo de produção capitalista que se amplia a partir da crise metabólica do
capital a partir de meados dos anos 70, em que para recuperar as taxas de lucro o
capitalista estabelece novas estratégias de superexploração no trabalho e retração
de direitos sociais e políticas na esfera do Estado. É o capitalismo em chamas, em
decomposição, posto que há um antagonismo entre forças produtivas e relações
sociais de produção, portanto as reformas democráticas passíveis de serem
desenvolvidas no período do crescimento econômico do capitalismo, nesta fase,
do neoliberalismo, já não mais são passíveis de realização, pelo esgotamento e
crise do antigo Estado de Bem Estar Social, que no Brasil sequer se realizou.
Porém o capitalismo permanece hegemônico e articuladamente estruturado e
dominante no plano internacional.
A quadra histórica contemporânea expressa a barbárie com guerras, fome,
desregulamentação do trabalho, desemprego estrutural, destruição da natureza,
destruição de direitos sociais e trabalhistas historicamente conquistados,
ampliação da discriminação e preconceito, avanço da direita em vários países do
planeta. No caso brasileiro, desde 2016, com o golpe de direita, a regulação do
Estado Neoliberal e as medidas de destruição de direitos se aceleraram,
apresentando um quadro ainda mais barbarizante a partir de 2019 com a eleição
247
de um governo de extrema direita, racista, homofóbico, preconceituoso com
traços fascistas de governar, privatista, subordinado ao imperialismo norte-
americano, em que o projeto civilizatório está fortemente ameaçado.
O governador eleito e ex-prefeito da cidade de São Paulo criminaliza os/as
jovens pixadores/as e grafiteiros/as da cidade, bem como os moradores de rua, e
residentes na Cracolândia, com repressão, prisões e criminalização. Em todo o
Brasil e particularmente em São Paulo, aumentam-se os chamados crimes de ódio
e de racismo. Entre janeiro e maio de 2018, cresceram em 29%, na cidade de São
Paulo, os crimes de racismo e injúria racial. A pesquisa da Rede Nossa São Paulo151
apresenta que 70% dos paulistanos avaliaram que o preconceito e a discriminação
contra a população negra aumentou, nos últimos 10 anos. A sociedade exige de
todas e todos nós vigilância, resistência e unidade nas lutas, reconhecendo todas
as formas de resistência popular, social, cultural e a arte de rua e os artistas de rua,
aliados nesta trajetória de lutas.
Os EUA erguem um muro contra nao brancos, contra pobres, os mexicanos, centro-
americanos, sul americanos. Cerca de 900 incidentes152 (pichações, agressões verbais e
físicas racistas ou xenófobas) foram registrados em 2016, nos dez dias após a posse
do presidente dos EUA, Donald Trump e outros muros vêm sendo erguidos153.
Muitos autores evocaram o nome de Trump, durante os ataques, o que demonstra
uma ligação da onda de ataques ao êxito eleitoral. Para além do fenômeno de um
presidente específico naquele país, por vezes, o nosso co-orientador nos disse da
importância de se estudar e analisar os EUA pois como disse Kevin B. Anderson:
“O racismo aqui é tão profundo que mesmo os “progressistas” dos EUA são às
vezes cegos ou tomados como garantidos, enquanto pessoas de fora, até mesmo
151 13/11/de novembro de 2018. 152 ONG Associação de Monitoramento Southern Poverty Law Center .
❖ 153Em 2018 Donald Trump anuncia que vai construir um muro na fronteira dos EUA com o México, para
evitar que os latino-americanos entrem ilegalmente nos EUA.
❖ Israel vem construindo na Cisjordânia desde 2002. O Muro de Israel possui enormes dimensões, com uma
extensão de 721 km, 8 metros de altura, trincheiras com 2 metros de profundidade, arames farpados e torres
de vigilância a cada 300 metros – tudo isso para ser intransponível. Foram construídos dois muros: um
muro que cercou as fronteiras da cidade de Jerusalém, bloqueando a passagem livre dos palestinos para a
parte ocidental de Jerusalém; e o outro muro foi construído externamente, onde Israel visou cercar e
controlar suas colônias na faixa de Gaza.
❖ Em 2015 a Hungria termina de erguer ps 175 km de barreira com arames farpados na fronteira com Sérvia.
❖ Também em 2015 a Bulgária constrói uma barreira de 32km de arame farpado para bloquear a população
da turquia. em 2011 a Grécia bloqueou em Kastanis a fronteira com a Turquia.
❖ Aqui em São Paulo temos a cidade amuralhada Alphaville, á 30 km do centro da capital paulista com 12
mil residências e segurança própria.
248
liberais como Tocqueville (e muitos desde então) perceberam verdades sobre
profundidade do racismo que aqui intelectuais têm evitado ou minimizado”.
No decorrer da tese, garantidas as situações de particularidades sócio-
históricas das cidades metrópoles em que a arte de rua é uma constante e se
amplia, a situação do modo de produção é o mesmo, ou seja o capitalismo em
chamas. De um lado, o capitalismo de um país central, imperialista, os Estados
Unidos da América, de outro a cidade de São Paulo, o polo mais desenvolvido do
Brasil, com seu processo de industrialização e urbanização desnudando a
desigualdade social, territorial e espacial, em um país de capitalismo periférico,
tardio e dependente. Ou seja a classe trabalhadora é internacional, assim como a
solidariedade de classe. A juventude pobre e negra da periferia de São Paulo e dos
guetos dos EEUU, são filhos/as da classe trabalhadora explorada e oprimida pelo
capital, e o racismo estrutural e estruturante mata lá e mata cá. Como
pesquisadoras, estudiosas, militantes, profissionais da área das ciências humanas
e sociais, da educação, das artes, que partimos das múltiplas expressões da
Questão Social, como matéria-prima do trabalho profissional, que articulamos o
projeto profissional a um projeto societário emancipatório, compreendemos
ainda que a arte de rua como mediação do trabalho profissional, e expressão
contestatória que envolve objetividade e subjetividade, sensações e desejos,
rebeldia e contestação, estratégias e táticas e sobretudo uma forma própria de
linguagem precisa ser conhecida, apreendida como uma de nossas aliadas
libertárias.
249
Agenda - coexistência de vários pixos preenchendo uma mesma superfície de
maneira organizada sem atropelo.
Atropelo/atropelar – escrever por cima de outra inscrição: graffiti, pixo, stêncil,
tag, etc.
Bafo – Pessoa que está iniciando na pixação ou que é a primeira a pixar em um
grupo.
Backjump - graffiti feito com spray feito em trem/ônibus enquanto está parado
durante o percurso (numa estação por exemplo). Segunda tendência
Bite - Cópia, influência directa de um estilo de outro writer.
Bomb ou Bombing - graffiti rápido, associado à ilegalidade, com letras mais
simples e eficazes. O bomb original é feito com contorno mais grosso e
preenchimento das letras em cor diferente.
Bubble Style - Estilo de letras arredondadas, mais simples e "primárias", mas que
é ainda hoje um dos estilos mais presentes no graffiti.
Cap - Cápsula aplicável nas latas para a pulverização do spray. Existem variados
caps, que variam a pressão, originando um traço mais suave ou mais grosso
Characters - Retratos, caricaturas, bonecos pintados a graffiti.
250
Crew - Tradução de da palavra grupo em inglês. Grupos que se reúnem para
pichar e que representam um mesmo nome - a grife. É regra geral no pixo
assinatura do nome/ tag e a respectiva crew.
3D - Estilo tridimensional, baseado na sombra das letras ou letras tridimensionais.
O estilo foi desenvolvido inicialmente nos EUA e em sua evolução os resultados
são pinturas que transbordam as paredes, é bem comum que apareçam animais
pintados.
Degradé - Passagem de uma cor para a outra sem um corte directo. Por exemplo
uma graduação de diferentes tons da mesma cor.
Encaixe –Serve como ‘’tapa buraco”, pixo feito em pequenos espaços brancos.
Escada humana – Quando um pichador utiliza o outro para subir, a fim de pixar.
Escalada - modalidade de pixação na qual o indivíduo escala locais altos, como
prédios, para deixar sua marca.
End to end - Carruagem ou comboio pintado de uma extremidade à outra, sem
atingir a parte superior do mesmo (por ex. as janelas e parte superior do comboio
não são pintadas).
Fill-in - Preenchimento (simples ou elaborado) do interior das letras de um
graffiti.
Folhinha – Uma espécie de autógrafos que são trocados em reuniões.
Grafismo selvagem – escritas, garranchos e rebarbas.
graffiti - Considera-se graffiti uma inscrição caligrafada ou um desenho pintado
ou gravado sobre um suporte que não é normalmente previsto para esta
finalidade. Por muito tempo visto como um assunto irrelevante ou mera
contravenção, atualmente o graffiti já é considerado como forma de expressão
incluída no âmbito das artes visuais, mais especificamente, da street art ou arte
urbana - em que o artista aproveita os espaços públicos, criando uma linguagem
intencional para interferir na cidade. Grafitar em locais públicos ou privados, sem
autorização dos respectivos proprietários, é atividade proibida por lei em vários
países.
251
graffiti Naif – ingênuo – preços, letreiros, mostradores de mercados.
Grife - grupo formado por várias gangues de pixadores. Para mostrar a qual
pertencem, os pichadores assinam o nome ou símbolo da grife junto com sua tag.
Grapixo – O grapixo é uma mescla de graffiti com pichação. Utilização de mais
de uma cor no estilo de escrita ou tag reto, com contorno e preenchimento.
Grife - grupo formado por vários pixadores. Para mostrar a qual pertencem, os
pixadores assinam o nome ou símbolo da grife junto com sua tag.
Hall of Fame - Trabalho geralmente legal, mural mais trabalhado onde
normalmente pinta mais do que um artista na mesma obra, explorando as
técnicas mais evoluídas.
Highline - Contorno geral de todo o graffiti, posterior ao outline.
Hollow - graffiti ou Bomb que não tem fill (preenchimento) algum e, geralmente,
é ilegal
Homenagem - pixo com nomes de pixadores já falecidos.
Ibope - nível de popularidade dentro da pixação. Os mais conhecidos são os que
conseguem deixar mais marcas pelas ruas da cidade ou em lugares de grande
visibilidade, altos e perigosos.
Inline - Contorno das letras, realizado na parte de dentro das letras.
Jet – Tala ( lata ao inverno) – Tatin ( tinta ao inverso) = spray
Kings Writer que adquiriu respeito e admiração dentro da comunidade do
graffiti. Um estatuto que todos procuram e que está inevitavelmente ligado à
qualidade, postura e anos de experiência.
Mídia – Quando um pichador diz: “Alí é mídia” significa que é um lugar bom para
sair em veículos de comunicação com televisão, internet, fotografias entre outros.
Outline - Contorno das letras cuja cor é aplicada igualmente ao volume das
mesmas, dando uma noção de tridimensionalidade.
252
Pichação - Escritos legíveis nas formas de poemas, protestos, indignações, frases
de amor, frases sem sentido, rabiscos de nomes.
Pico - topo do prédio
Pixo – pixação paulista, inscrição com letras em geral em monocromatismo feita
nas modalidades: muros, janelas, viadutos, prédios altos ou baixos, túneis, trens,
locais e casas abandonadas. Para cada região do Brasil a pixação possui
características únicas mas a principal cidade é São Paulo. Também conhecida com
o tag reta.
Point - local onde os pixadores se reúnem para confraternizar, pixar juntos e
trocar folhinhas.
Quebrada – Onde o pixador cresceu
Rodar - ser pego pela polícia.
Rolê - sair para pixar ou grafitar.
Roof-top - graffiti aplicado em telhados, outdoors ou outras superfícies elevadas.
Um estilo associado ao risco e ao difícil acesso mas que é uma das vertentes mais
respeitáveis entre os writers.
Rolê – sair para praticar o pixo
Spot - Denominação dada ao lugar onde é feito um graffiti.
Tag - Nome/Pseudónimo de quem grafita ou pixa. O termo surgiu em Nova
Iorque, com os jovens que denominavam o ato de escrever seus nomes pela
cidade, e principalmente, nos vagões dos trens, como 'writing', 'tagging" ou
'hitting'.
Tag reto - traços retos, com letras alongadas e pontiagudas, estilo caligráfico
desenvolvido em São Paulo. Pode ser realizado com tinta spray ou rolo de tinta.
Topo – Lugar alto para pixar
Throw-up - Estilo situado entre o "tag"/assinatura de rua e o bombing. Letras
rápidas normalmente sem preenchimento de cor (apenas contorno).
253
Top to bottom - Carruagem ou carruagens pintadas de cima a baixo, sem chegar
no entanto às extremidades horizontais.
Toy - O oposto de King.
Writer inexperiente, no começo ou que não consegue atingir um nível de
qualidade e respeito dentro da comunidade.
Train - Denominação de um comboio pintado.
Whole Car - Carruagem inteiramente pintada, de uma ponta à outra e de cima a
baixo.
Whole Train - Um comboio com todas as carruagens inteiramente pintadas, de
uma ponta à outra e de cima a baixo.
Wild Style - Estilo nova iorquino de letras. Um dos primeiros estilos a ser utilizado
no surgimento do graffiti.
Writer - Escritor de graffiti ou no caso brasileiro - pixador.
Xarpi - pixação carioca.
254
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