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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Juliana Abramides dos Santos Arte urbana no capitalismo em chamas: pixo e graffiti em explosão DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO  

 

PUC-SP      

  

Juliana Abramides dos Santos   

  

Arte urbana no capitalismo em chamas: pixo e graffiti em 

explosão 

  

   

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL     

SÃO PAULO      

2019   

     

   

Juliana Abramides dos Santos      

  

   

      

  

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL   

  

  

Tese apresentada à Banca Examinadora da           Pontifícia Universidade Católica de São         Paulo, como exigência parcial para obtenção           do título de Doutora em Serviço Social sob a                 orientação do Prof. Dr. Antônio Carlos           Mazzeo.   

2019    

                           Autorizo exclusivamente para fins       acadêmicos e científicos, a reprodução total           ou parcial desta tese de doutorado por             processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.  Assinatura:  Data: E-mail:             

         Ficha Catalográfica   

 

dos SANTOS, JULIANA Abramides Arte urbana           no capitalismo em chamas: pixo e graffiti em               explosão / JULIANA Abramides dos SANTOS. --             São Paulo: [s.n.], 2019. 283p. il. ; cm. Orientador:                 Antônio Carlos Mazzeo. Co-Orientador: Kevin B.           Anderson. Tese (Doutorado em Serviço Social)--           Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,           Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço           Social, 2019. 1. Arte Urbana. 2. Capitalismo             Contemporâneo. 3. Pixo. 4. Graffiti. I. Mazzeo,             Antônio Carlos. II. Pontifícia Universidade         Católica de São Paulo, Programa de Estudos             Pós-Graduados em Serviço Social. III. Título.I.           Mazzeo, Antônio Carlos. II. Anderson, Kevin B.,             co-orient. IV. Título. 

 

    

            

  

       

      

  

           Banca Examinadora   

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Aos escritores/as e desenhistas do fluxo de imagens urbanas.   

          

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Número do Processo- 

145851/2015-0. 

This study was financed in part by the Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Finance Code 001-145851/2015-0. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Esta tese de doutorado jamais poderia ser escrita sem o contato e apoio                         

de inúmeras parcerias. A todos os pixadores/as e grafiteiros/as e especialmente                     

a/os entrevistados/as.  

Aos meus pais, uns anjos. Veja bem: Maria e José. Vocês são demais.                         

Meus correspondentes internacionais, enviaram imagens para compor o               

trabalho, direto da Itália e Portugal. 

À minha amiga de outras vidas, mesmo. Fernanda Castanho, uma                   

empatia e generosidade de outro mundo. Fernanda me auxiliou com o                     

tratamento, dicas e catálogo de imagens. 

Querida amiga Samara Xavier, amora, chegamos ao fim do ciclo, grata                     

pela força, sem você não venceria os impasses burocráticos. Lia, grata pelos                       

passeios e momentos de descontração paras equilibrar o batidão intelectual.                   

André Juarez obrigada pela força sempre e pelas fotos do México. 

Ao Julio Santos Rocha, meu companheiro, melhor amigo que tenta                   

aguentar esse furacão dois mil e faz o que pode para estar presente e me apoiar;                               

esteve comigo em parte da pesquisa de imagens pelas regiões de SP e nos                           

momentos finais da impressão e entrega, enquanto eu assinava os papéis ele                       

coordenava a facção de exemplares. 

Às inspiradoras professoras Dras. Carla Cristina Garcia, Maria Lúcia Silva                   

Barroco, Cristina Maria Brites, Maria Lúcia Martinelli, Maria Beatriz C.                   

Abramides e Jeanne Marie Gagnebin. 

Aos meus orientadores Antônio Carlos Mazzeo e Kevin B. Anderson. 

 

   

 

 

Arte urbana no capitalismo em chamas: pixo e graffiti em explosão 

 Juliana Abramides dos Santos 

      

   

 No século XXI, a arte mais difundida não está sendo produzida                     

pelos grupos elitistas, burgueses e aristocráticos, mas tem sido criada por                     

jovens e adultos que proclamam identidades territoriais enquanto fazem                 

inscrições grafitadas e pixadas. A principal vertente plástica no mundo,                   

hoje, é a estética da periferia e se manifesta de forma diferenciada como                         

expressão de resistências urbana, artística e cultural ao capitalismo em                   

chamas. 

     

Palavras-Chave: arte urbana, estética contemporânea, capitalismo em chamas, pixo e graffiti.           

Capitalism on fire: pixo and graffiti in explosion 

  

 Juliana Abramides dos Santos 

   

 

 

 

In the 21st century, the most widespread art is not being produced by the                           

great art centers and elitist, bourgeois and aristocratic groups but has been                       

created by young people and adults who proclaim territorial identities while                     

marking visible surfaces. The main plastic aspect in the world today is the                         

aesthetics of the periphery and manifests itself differently as an expression of                       

urban, artistic and cultural resistances to the burning capitalism. 

        

  Key-words: urban art, contemporary aesthetics, capitalism on fire, pixo and graffiti.   

 Apresentação…………….........................………….………………….……………….………13 

Introdução - Estética e Contemporaneidade:   

breves notas para uma discussão ……......................………….…......….......21 

Capítulo I - As paredes e os muros falam.................….......……39  

Caverna.....……...................………….….…...................………….…40 

Tumba.....……...................………….….…...................…………….43 

Inscriptiones: Graffiti e Pix.....……...................………….……..46 

Graffiti Medieval.....……...................………….……………………….49 

Capela Sistina.....……...................…………………………………...….….51 

Muralismo Mexicano.....……...................………….……………..53  

Brigadas Muralistas no Chile.....……...................….……..57 

Muro de Berlim.....……....................................………….……..59 

  Pichos e Cartazes em Paris, 1968.....……...................……….61 

Movimento Hip-Hop.....……...................…..................……….65 

Graffiti - Philadelphia e New York.....……...................……..71 

  Origens da Arte Urbana - São Paulo ....................….…..80 

Praça Tahrir, Cairo/Egito, 2011....……...................…………..91  

 

Capítulo II - Marcas Urbanas: São Paulo, Los Angeles e São Francisco..97 

Pixo.....……...................………….….…...................………….………….99 

Arte Urbana, Hoje..............………….….…...................…………123 

Ocupação da Mulher na Cidade…...................…………129 

Graffiti e Mural na Califórnia………………………..…………...135 

Graffiti em Los Angeles………………………………………...……...136 

Tags à beira do Rio Los Angeles………………………………...137 

Great Wall.....……...................………….….…...................………..141 

Art District.....……...................…………………………………………..….143 

Venice Beach.....……...................………….…………………………...144 

Movimento Chicano - São Francisco…........................145 

 

Capítulo III - O mundo em chamas: o capitalismo contemporâneo…...148 

Burgos: Cidades Muradas.……...................………….….150 

  Regulação do Estado Neoliberal.……..............……..151 

Moderno e Pós-moderno.……...................………….….160 

O mundo está em ruínas? .……...................………….….169 

 

`Capítulo IV - Arte no contexto da desigualdade Urbana.….…..........174 

Desigualdade na ocupação Urbana..........………….…178 

Ressignificação Territorial em SP..........………….…183 

Precariado........………….…........………….…........………….…191 

Realidade ou ilusão - Los Angeles........………........………….…195 

 

Capítulo V: As origens históricas e os destinos políticos na arte urbana…..204 

Capital Quebrado?…......................................………….…209 

O não lugar…........................................................………….…213 

Brazil - Colônia?…........…………………………………...……….…216 

Imperialismo e Racismo…........………………...….…….…220 

Desigualdade Global: a fome.....………….………...……225 

Hibernação e a depressão.....…………...…...….…….…230 

Armamento Visual Antiarte………………………….….….235 

 

Observações e Conclusões Aproximativas.................................239 

 

Glossário Urbano………..........................................................................................243 

 

Referências Bibliográficas.................................................................................248 

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O aparecimento do tema aqui abraçado inicia-se numa tentativa de

despedida da cidade onde nasci e vivi por toda minha vida. O desenrolar de uma

tese é processo complexo, cheio de camadas e altos e baixos. Atividade solitária,

escrever envolve a imersão na solitude, ou na solidão; por vezes, plenitude; em

outros momentos, o mais completo vazio e desgaste, cansaços físico e emocional;

o esvaziar de um corpo que somente se energiza depois que tudo finda. Imagino

que sombras me habitam, e que o concreto paira nos céus e as delineia. Os elos de

mim, ao se encontrarem, me tornam inteira. Como posso entender os elos

rizomáticos que me levam a mediar a escrita?

O presente trabalho acompanha a riqueza das manifestações culturais

urbanas, em busca de capturar em meio às fachadas texturizadas, componentes

políticos da urbe, expressos em graffitis, pixos e estêncil. Percorre

ilustrativamente as expressões escritas e imagéticas expostas em muros, edifícios,

terrenos baldios, casas abandonadas e em outros veículos e bens públicos, como

formas de ressignificação do espaço urbano.

São Paulo, Nova York, Los Angeles, São Francisco, Berlim e Lisboa são

importantes centros culturais modernos, de composição urbana complexa,

lugares por onde artistas urbanos desenham e escrevem o fluxo citadino. Pela

profusão enorme de imagens e pessoas que percorrem o chão e as alturas, por

onde nada se desvenda facilmente e nada é totalmente impenetrável, se desvela a

temática desta tese.

Estas formas evidenciam um conjunto de manifestações da questão social

constitutivas do reflexo da desigualdade social contemporânea. Cabe-nos expor

as formas simbólicas e as expressões contestatórias objetivadas nas ruas que

caracterizam a tez de decomposição social da sociedade capitalista e que apontam

para as necessárias transformações sociais, econômicas, políticas e culturais a

serem conquistadas.

As configurações do espaço público em grandes cidades vislumbram a

inscrição e circulação simbólica profícua de manifestações públicas, artísticas e

14

políticas. As cidades vivem marcadas de produções inusitadas de atividades, entre

as quais o skate, as rinhas de rap1, as inscrições de poemas, as pixações e pichações,

os atos políticos, as ações de black blocs2, as danças de rua, as colagens e os graffitis,

e todas as movimentações de luta por apropriação e ressignificação cultural, "há

algo de político no ar das cidades lutando para se expressar” (HARVEY, 2014, pp.

211).

É necessário explicitar que a cultura de rua, enquanto expressão de

resistência e afirmação cultural, apresenta tanto uma necessidade quanto uma

função social para a sua existência e permanência. Procuramos levantar os traços

da realidade da vivência social que apontam a importância contida nessa escrita

dinâmica de códigos.

A arte e as demais inscrições urbanas3 revelam “o lugar de fala” e também

transmitem valores sociais e éticos, ao mesmo tempo em que mantém um

primado da marca do indivíduo. Qual diálogo nos propõem os signos que tomam

de assalto o espaço urbano?

Cabe-nos ressaltar o histórico de produção artística e/ou criativa plástica na

época da civilização burguesa do capitalismo em chamas realizada por sujeitos

periféricos partícipes da classe trabalhadora, donde o paradoxo da produção

humana criativa relativa às condições materiais está na base das vivências diretas

de produção e reprodução cultural; embora a verdade da arte nem sempre

coincida com a verdade da vida.

Tais manifestações, inseridas na cultura mundializada, tendem a

reproduzir, no processo contraditório do movimento da realidade, certos

aspectos do mundo capitalista, até porque somos todos bombardeados

diariamente pelo que Adorno chamou de indústria cultural; ou a negá-los, em

seus aspectos reificantes, ao assumirem uma atitude política de contestação

genérica ao “sistema”.

1 Nas grandes cidades, especialmente as rinhas, ou batalhas de rap, acontecem semanalmente. Em geral, duas

pessoas desafiam-se a improvisar rimando as palavras em um ritmo que, por vezes, o grupo ao redor ou uma

pessoa faz com a boca e versam sobre um tema escolhido na hora. 2Pessoas andando de preto, em bloco, em tradução literal, caracteriza uma tática de ação direta de influência ou

vertente anarquista; uma forma de ação que ataca com depredação locais símbolos do capitalismo, como bancos,

grandes corporações e franquias, como McDonald’s. A expressão original é alemã: schwarzer block, e foi cunhada

pelos policiais para designar os militantes ou ativistas de esquerda vestidos de preto e com máscaras, nas

manifestações contra a guerra nuclear, na década de 1980. 3E aqui não damos ênfase às formas mais decorativas, provavelmente as preferências superficiais burguesas

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Conhecer a linguagem dos pixos e graffitis é desvelar o significado da arte

urbana; os significados históricos e os sentidos atribuídos pelos sujeitos sociais

vivos e ativos. O graffiti e o pixo são expressões da classe trabalhadora, de jovens

pauperizados das periferias e guetos das grandes metrópoles.

Escritores/as e desenhistas do fluxo urbano ocupam a cidade expressando

a indignação, a negação das injustiças, o combate à discriminação e opressão social

de classe, gênero, raça e etnia e as formas de exploração capitalista de dominação

de classe. Mesmo que os sujeitos, em seus locais de origem, não estejam

autoconscientes, ainda assim podem apresentar expressões de desafio dirigida

para o exterior, em direção aos aparatos culturais e políticos centrais dominantes

da cidade, como um cri de coeur, ou um grito que vem do coração.

Embora as inscrições grafitadas sejam uma constante histórica desde

tempos remotos quando do nascimento da linguagem ela adquire significados

sociais, culturais e políticos distintos a cada tempo do desenvolvimento da

humanidade. A street art ou arte urbana se intensifica a partir da década de 70 do

século XX, em um período de crises econômicas em que há um incremento da

desigualdade social e urbana, momento da crise estrutural do capital.

A cidade de São Paulo apresenta a maior gama e diversidade de produção

de arte urbana no mundo, são dez mil pixadores ativos que inscrevem suas marcas

na cidade nos topos, prédios com estratégias particulares de ação. Por trás da

visualidade de inúmeros pixos expostos por toda a cidade há um anonimato de

sujeitos que querem ser lembrados, suas inscrições são gritos de existência, plenos

de significados.

O graffiti ressurge na contemporaneidade potencialmente nos Estados

Unidos, assim, fez-se necessário a busca da raiz desta expressão cultural. A

Califórnia apresenta uma cultura mexicano-estadunidense e já na década de 40

alguns escritores das ruas de ascendência latina emergem com caligrafias

próprias. Ao mesmo tempo o muralismo mexicano tem uma continuidade

histórica e artística no chamado movimento chicano de fundamental expressão

naquele estado. Neste sentido, centralizamos a pesquisa na Grande São Paulo,

cidade natal da autora e da PUC-SP e na Grande Los Angeles e na Área da Baía -

São Francisco, ambas cidades na Califórnia, por ocasião da bolsa de doutorado,

por seis meses na Universidade de Santa Bárbara naquele estado.

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Durante todo o transcorrer da pesquisa, fizemos estudos bibliográfico e

videográfico de publicações em inglês, espanhol, e em português, sobre arte de

rua, arte urbana, comunicações visuais ativistas e de militância, pixo, graffiti e as

concepções e discussões materialistas da estética e da política. Realizamos

entrevistas, observações, registros fotográficos, pesquisa virtual de imagem.

Acompanhamos os rolês e aprendemos a usar o spray em atividades de rua.

As entrevistas semi estruturadas seguiram um roteiro previamente

elaborado, ou foram feitas a partir de livres conversas; o gravador ou o recurso de

áudio por meio dos aplicativos de rede social foram utilizados em todas as

ocasiões, no intuito de coletar os depoimentos e opiniões que, após a transcrição

na íntegra, se tornaram importantes documentos históricos, ilustrativos e

analíticos. Os nomes dos entrevistados foram mantidos, tendo em vista a

autorização obtida, alguns pixadores utilizam nomes codificados e assim os

preservamos. Optamos por utilizar, no corpo do texto, ao longo dos capítulos, as

partes das entrevistas que dão mais voz aos interlocutores.

As entrevistas realizadas com artistas de rua, pesquisadoras/es,

documentarista e pixadoras/es, são parte essencial do material histórico coletado.

A observação buscou a compreensão da complexidade e totalidade dos grupos e

indivíduos pesquisados, assim, recolhemos desde inocentes anedotas e “causos”,

a históricos de conflitos entre grupos, motivações pessoais, tudo como parte de

um tipo de cultura de rua em desvelamento. Em tais significados compartilhados

nas trocas entre os sujeitos pesquisados, encontramos algumas chaves para a

compreensão dessa cultura particular como campo de realização humana na

urbe.

Em São Paulo, as entrevistas foram realizadas em rolês4, pistas de skate,

atividades de hip-hop, encontros marcados para entrevistas e também nos points

de Osasco, galeria Olido - centro de São Paulo, e no Largo da Batata. Entrevistamos

a grafiteira e muralista Clara Leff; o artista de estêncil Celso Gitahy; a muralista

Mag Magrela; a ex-pixadora carioca Gisele Sagi; o artista plástico e pixador Cripta

Djan Ivson; o artista plástico e pixador Loucuras; o grafiteiro de vanguarda Rui

Amaral, o pixador ATA; o grafiteiro Paulo Ito; a poeta, documentarista e diretora

Cristina Fonseca.

4 Saídas para grafitar ou pixar.

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Em São Paulo, percorremos bairros para descobrir inscrições, a saber: Na

região centro-sul: Jabaquara, Saúde, Santo Amaro, Vila Mariana e Santa Cruz; na

região sul: Campo Limpo, M’Boi Mirim, Jardim Monte Azul; na região leste,

Itaquera, Penha, São Mateus; na região norte: Freguesia do Ó, Casa Verde,

Tucuruvi; na Região oeste: Lapa, Pinheiros, Barra Funda, Perdizes; no Centro:

Campos Elíseos, Santa Cecília, Brás, Luz, Pedro II, Bela Vista, Cambuci,

Liberdade, Sé e República.

Em Los Angeles/Califórnia, continuamos com o processo de registro

fotográfico e das entrevistas. Fomos ao Art District e em Venice Beach - locais de

concentração de arte urbana na grande L. A.; rodamos Downtown, Chinatown, Little

tokyo, Glendale, Culver City, Santa Mônica, Koreatown, Beverly Hills, Macarthur Park.

Visitamos o Social and Public Art Resource Center onde pesquisamos a muralista

Judith Baca que realizou o primeiro mural gigante da história5; fizemos o Graffiti

Tour6 e entrevistamos o pioneiro grafiteiro e Membro da comunidade do distrito

de artes de L.A. - A.k.a. Shandu One. Em São Francisco, visitamos o instituto

Precita Eyes Muralist e toda a região de muralismo chicano.

Os registros fotográficos, as imagens e arquivos de galerias, casas de

escritores e grafiteiros, são parte do material de análise. As imagens de diferentes

expressões culturais e artísticas foram selecionadas, tendo em vista o enfoque da

pesquisa e coletadas nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, no Brasil; nos EUA,

em Santa Bárbara, Venice - Los Angeles, São Francisco, e Nova York7; além de

registros pesquisados em outras cidades como Berlim, Praga, Bratislava,Nashville,

em busca de traçar elos significativos de um tipo de cultura urbana que tem fortes

raízes americanas em sua configuração contemporânea.

As pesquisas foram elaboradas tendo como norte as orientações do Código

de Ética da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e as

normativas específicas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior (Capes).

5Disponível em: http://sparcinla.org/. Acesso em: novembro de 2018. 6 Disponível em: https://laarttours.com/graffititour/. Acesso em: setembro de 2018. 7 O processo de pesquisa, nos EUA, foi iniciado no ano de 2016, a partir da ida da doutoranda, para Nova York,

com recursos próprios, além da leitura da bibliografia específica, majoritariamente em língua inglesa, o que exigiu

o aperfeiçoamento da língua para a realização da pesquisa.

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Assim, cabe-nos compreender os processos criativos e as expressões

contestatórias objetivadas nas ruas, posto que nos auxiliam a caracterizar a face

contemporânea da questão social no desenvolvimento da sociedade capitalista;

talvez, esta, a catarse atual. Consideramos a necessidade de explicitar a função

social dessa cultura de rua e as razões de sua permanência e perpetuação; levantar

as motivações e os sentidos contidos nas ações coletivas dessa dinâmica e nos

códigos marcados pela cidade. Fundamentalmente, captar o campo das

possibilidades de produção da objetividade e subjetividade de grafiteiros,

muralistas e pixadores resultantes das suas realidades específicas, bem como as

respostas históricas às suas condições de vida.

A tese se propõe a contribuir com o desvelamento de uma pulsante arte de

rua, ainda pouco estudada, pouco compreendida, extremamente estigmatizada e

reprimida, e muitas vezes contraditoriamente apoiada, quando se configura em

elemento catalisador para a ordem estabelecida. Jovens pauperizados,

precarizados, periféricos que buscam expressões de criação e contestação ao

sistema opressor em um mundo que os segmenta enquanto classe, etnia, raça e

gênero. Esta tese se dirige a todos/as aqueles/as que resistem à barbárie imposta

pelo capital, que se voltam para as múltiplas determinações da vida social, em que

a objetividade e subjetividade se articulam permanentemente; e que a criação da

arte de rua possa ser mais um elemento aglutinador das inquietações e conquistas

entre aqueles e aquelas que que atuam com as expressões da questão social e suas

formas de enfrentamento na direção de um projeto de sociedade, igualitário e

libertário na direção da emancipação humana.

Estrutura da Tese

A Introdução - Estética e Contemporaneidade: breves notas para uma

discussão, propõe breves notas sobre as relações entre estética e política no intuito

de apresentar os parâmetros teóricos de análise da estética contemporânea ora

pesquisada: reflexos artísticos, mimese, processos criativos. Ainda, recupera os

valores históricos de um tipo de humanidade.

O capítulo I: As paredes e os muros falam, expõe a pesquisa histórica sobre

as inscrições grafitadas em muros, paredes, tumbas, tetos, igrejas e cavernas,

19

enquanto uma forma de comunicação artística no desenvolvimento da

humanidade. Resgatamos os processos artísticos, ao longo do século XX, a partir

do muralismo mexicano e da ocupação plástica do muro de Berlim. Recuperamos

a arte de rua enquanto transgressão, ativismo, militância, engajamento e

contestação. Abarca a eclosão da arte urbana nos EUA e no Brasil. Retomamos

historicamente outros momentos ápices, ilustrando-se períodos políticos

importantes dos últimos 50 anos: o maio de 68; as brigadas muralistas no Chile; e

a rebelião no Egito, enquanto movimentos revolucionários, reivindicatórios e

humanistas, que abrangem, no interior das suas táticas, a arte visual. Estão ali os

traçados da origem do graffiti uma das artes mais prolíficas do século XXI.

No capítulo II: marcas urbanas: São Paulo, Los Angeles e São Francisco,

para desnudar os entendimentos dos fluxos imagéticos apontamos a função social

da existência do pixo, graffiti e muralismo nas grandes metrópoles nas

particularidades da Grande São Paulo e capital, e nos EUA- Califórnia na área

metropolitana de Los Angeles e na Baía de São Francisco. As escritas e desenhos

presentes em muros, edifícios, terrenos baldios e em outros veículos e bens

públicos são trabalhados como formas de resistência e afirmação política e

cultural. São apresentadas as falas das/dos entrevistadas/os enquanto história e

sentidos atribuídos pelos escritores e desenhistas do fluxo urbano. Artistas

urbanos são dos que mais conhecem a cidade, os cantos, pontes, bueiros, topos de

prédios. A linguagem própria desse conhecimento da cidade se conforma nas

inscrições codificadas.

No Capítulo III: O mundo em chamas: capitalismo contemporâneo,

demarca-se o território de resistência ao modo de produção capitalista em chamas

e traça-se um panorama ideo-cultural contemporâneo a partir das discussões

sobre a modernidade e a pós- modernidade. Enfatizam-se os cenários de

exploração, opressão e desigualdade agudizados pela acumulação flexível e a

regulação do Estado Neoliberal, nas particularidades brasileira e estadunidense.

No Capítulo IV - O pixo e o graffiti no contexto da desigualdade urbana

recuperam-se as dimensões da desigualdade na ocupação urbana; da situação do

jovem precariado, do racismo e a segregação territorial manifestadas na Grande

20

São Paulo e capital; assim como nos EUA, na área metropolitana de Los

Angeles/Califórnia. Busca ainda analisar o pixo e o graffiti enquanto

ressignificações territoriais nas grandes cidades.

No Capítulo V - As origens históricas e os destinos políticos na arte

urbana, ensaios a partir de imagens de murais, pixos e graffitis, ao longo do

mundo, ilustram algumas faces da decadência e desumanização da vida no

capitalismo em chamas. Abarcam as origens históricas e os destinos políticos das

imagens escolhidas.

Nas observações e conclusões aproximativas, retomo o núcleo central das

nossas indagações acerca da arte urbana enquanto a principal vertente plástica no

mundo, hoje, uma estética periférica que se manifesta de forma diferenciada

como expressão de resistências urbana, artística, política e cultural. Reafirmamos

a atualidade do objeto pesquisado e a pertinência de dar ouvidos à voz, aos gritos

que vem das ruas; dar à luz a imagens e comunicações enquanto formas de

afirmação da existência e contestação ao mundo normativo, autoritário, da

desigualdade, racismo, preconceito, discriminação, opressão; destruidor da

natureza e da humanidade.

I -

21

Para Baudelaire, a ideia da arte como bela, agradável, é muito pequena. No

final do poema Ao Leitor, ele escreve:

É o Tédio! – O olhar esquivo à mínima emoção,

Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.

Tu conheces, leitor, o monstro delicado,

- Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!8

Ele se dirige ao leitor de poemas da tradição lírica e o chama de hipócrita.

Não se deve ler por deleite ou meramente por uma atividade da academia

francesa, numa postura acomodada. Baudelaire vê beleza e fascínio no mundo

urbano e da moda, ao mesmo tempo em que tem uma crítica reflexão à inserção

capitalista nas relações sociais, culturais e artísticas. O que ele busca trazer à tona

são as sensações e experiências intensas que o leitor não vai conseguir dar o nome,

quer fazer valer o máximo da potencialidade da arte, na assunção de sua condição

de poeta.

O modernismo e as vanguardas estavam intimamente conectados à

modernização e industrialização. Era aquele o momento da criação das galerias,

as ruas internas cheias de lojas, locais de passagem. Toda a sua obra está debruçada

sobre os fenômenos da modernidade, a quem Walter Benjamin chamou de lírico,

no apogeu do capitalismo9; o poeta e o crítico; a mesma figura do fascínio e da

crítica.

Aqui estamos, vivendo e tentando compreender a nossa época, com a

análise profunda de nosso tempo. E pescando a finitude e a plenitude de poder-

ser, do transeunte, flâneur10 e flanêuse, trabalhadores e as linhas sobrepostas de

imagens de força sedutora.

O poeta, nasce e vive em Paris, cidade em construção e constante mudança.

A vida do poeta não explica, mas é parte da sua obra e, assim, a poesia é central e

8 As Flores do Mal. Tradução, introdução e notas por Ivan Junqueira.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 9 Modo de organização social e econômica da vida, mais vasto e dinâmico que qualquer outro na história e que

apresenta as principais características: propriedade privada dos meios de produção, lucro como incentivo, livre

competição do mercado para venda de bens de consumo, aquisição de matéria-prima mais barata, uso de labour

barato, exploração da mais-valia e expansão e investimento para acumular capital. 10 Deparei-me a primeira vez com esta palavra ao ler As Flores do Mal, de Baudelaire. Do verbo francês flâner,

ou flâneur, aquele que vaga no mundo, é existente na primeira metade do século XXI nas passagens de boulevards,

em Paris. A figura masculina do privilégio e do lazer, com tempo e dinheiro e nenhuma responsabilidade imediata

para direcionar a sua atenção. O flâneur entende a cidade como poucos habitantes porque a memoriza em seus pés.

No entanto, o flâneur, de Baudelaire, é um artista que busca refúgio na multidão. Lauren Elkin cria o termo

flanêuse, para a forma feminina de flâneur. Uma observadora da cidade.

22

não um acessório. Na introdução aos pequenos poemas em prosa, ele aponta as

apreensões momentâneas, a captação livre. Escreve para o leitor não se martirizar

pela escravidão do tempo. E o que é “embriagai-vos”? É se envolver na observação

do mundo, olhar para a cidade como se olha para uma paisagem, conversar com

as ruas e expressões da cidade enquanto forma de espetáculo.

Considere a beleza de estar na cidade; a pintura sobre o cinza representa

não apenas a subjetividade interna de quem produz a arte, mas também uma

interioridade particularizada que se reflete na vitalidade da paisagem e manifesta-

se no que há de interesse ao humano que vive a mesma exterioridade plástica

agora interiorizada por outrem.

Agora, as flanêuses e flâneurs invertem a hierarquia dos elementos visuais e

vivem a cidade de maneira ativa, inscrevem, escrevem, apropriam-se das

superfícies reivindicando os suportes públicos para a arte e a comunicação.

Tornada a cidade a grande galeria a céu aberto, será que a arte vinga no antigo

propósito vanguardista de ser usufruída no cotidiano, o produto urbano que não

pode ter preço de venda e que não tem cifra e, portanto, não pode ser mercadoria,

a participação ativa da estética na política?

Baudelaire entendeu que até a poesia se torna mercadoria, os que escrevem

o fluxo urbano com signos, poemas e cores podem vender a sua força de trabalho

para pintar uma fachada mas a forma de apresentação nos suportes murados, isto

não pode ser comercializado.

II- A assinatura é a primeira marca do artista do graffiti, originariamente tudo

começa na tag. É no Renascimento que as/ artistas começam a assinar as suas

obras. É claro que as expressões artísticas urbanas de hoje não terão relação com

o renascimento, pois o movimento tinha um processo revolucionário de fundo,

uma nova cosmologia. Aqui, a cosmologia é a da desagregação, um mundo em

profunda decadência que ameaça no mais a existência humana e que se relaciona

com a sede de lucro desenfreada da sociedade capitalista sem freios éticos. Ao

mesmo tempo as artes urbanas explicitam e se contrapõem a este referido

mundo.

23

A noção de indivíduo não fora trans-histórica, até os séculos XIV e XV,

quando o mundo ocidental veio a produzir um inovador movimento social,

econômico, e cultural na história da humanidade, o Renascimento, inaugurado

com o advento da sociedade capitalista. As condições históricas são favoráveis ao

afloramento da arte e ciência, mas seria verdade a afirmação de Lukács de que se

se podem verificar constelações históricas nas quais, em sentido inverso, a ciência

ou a arte podem obscurecer ou deformar a vida cotidiana?11

A capacidade de individuação, no sentido de absorver as capacidades

genéricas desenvolvidas na humanidade, que resulta na elaboração das

subjetividades e da criação da personalidade, encontra-se em todos os entes

humanos, mas de que maneira é possível avançar no desenvolvimento existencial

dessa capacidade? É evidente que a capacidade individual parte dos indivíduos

que se sobressaem e jamais do termo médio de uma dada época. Como videar12 a

capacidade máxima dos indivíduos representativos, aqueles que realizam até o fim

a possibilidade apresentada?

Ou como acentuou Engels:

Desconfio cada dia mais da minha habilidade e da minha capacidade criadora como poeta desde que li Aos jovens poetas, de Goethe, onde me encontro descrito com tanta exatidão quanto é possível fazê-lo; com esta leitura, compreendi claramente que meus versos não têm nada de arte; contudo, continuarei praticando a rima, pois é um ‘agradável complemento’, como diz Goehte (ENGELS, 2010: 310)

Hegel, em sua Estética (1962, p. 20), discorre que na pintura se afirma pela

primeira vez o princípio da subjetividade “[...] ao mesmo tempo finita e infinita,

o princípio da nossa própria vida, e contemplamos nas obras dela tudo o que vive,

atua e se agita dentro de nós”. Ele está dizendo que, na pintura, o divino surge

vividamente associado à comunidade e estabelece entre os que a contemplam

uma identidade e mediação espirituais.

Para ele, ao mesmo tempo em que existe uma pintura cristã, existe a grega,

a romana e a oriental, mas coloca que nos limites do “romântico”, a arte da pintura

atingiu o seu maior desenvolvimento, no sentido de empregar e exaurir os

recursos. Mas porque Heller defende o renascimento e Hegel o romantismo,

como períodos de excelência artísticas? Parece que Heller está defendendo um

11Para saber mais, ler : Ontologia do Ser Social. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Livraria

Editora Ciências Humanas, 1979. 12 Visualizar, palavra criada no romance Laranja Mecânica de Anthony Burgess, 1962.

24

modo de vida em transformação e revolução; a eclosão maior da sociedade

capitalista estimulou uma explosão de potencialidades nas pintura, escultura e

poética, enquanto Hegel está defendendo o que representa o período romântico,

o nacionalismo e a potencialidade máxima da expressão do espírito através do

Estado, sendo também a máxima representação desse espírito na arte.

Os nossos pensamentos e sentimentos estão orientados para os diálogos

presentes no espírito da história, força motriz da vida. A arte dirige a nossa

atenção para outro lugar; retira-nos do cotidiano e nos leva a outro estado de

concentração, em recolhimento ou exteriorização. A arte tem essa capacidade de

chamar a nossa atenção para objetos e conteúdos que nos escapam na realidade

corrente.

A percepção (aesthesis), esta disciplina que envolve o belo, o feio e as

práticas artísticas está num todo da criação, assim como o trabalho não alienado

(criador), uma viagem, práticas esportivas e mesmo a ciência podem se

caracterizar em formas privilegiadas de suspender o cotidiano. Ainda, a

consciência elevada, como a memória, a awareness13 e a sincronicidade14, são

oportunidades potencializadoras de se retornar à realidade de outra maneira.

Temos falado dos efeitos subjetivos da arte e que assim a definem como

arte. As possibilidades do despertar do torpor da vida cotidiana são inúmeras e

aqui temos defendido que, tendo a arte um potencial humanizador, pode também

estimular os processos de conhecimento, da história e, mais, ter uma função

social, ou política, no bojo da sociedade. E esta é uma possibilidade e não um

dever. Além do mais, uma expressão ou obra pode adquirir uma função estética,

ou política, não necessariamente desejada pelo sujeito que a realizou.

A força expressiva de ideias e sentimentos, no caminho hegeliano da

dialeticidade, é a de que a subjetividade penetra no exterior, como uma

objetividade que lhe pertence, na união do particular e do universal, realizada na

forma exterior. É evidente que o caminho de Hegel se refere ao lado espiritual do

conteúdo que apresenta independência da realidade empírica, ao mesmo tempo

13A awareness é um estado de sentir e estar consciente significativamente e conectado a um entendimento

universal. Na psicologia, a linha de Gestalt- Terapia utiliza a awareness, como método prático terapêutico. 14A sincronicidade foi inicialmente descrita por Carl Gustav Jung e trata-se de experiência de um ou mais eventos

altamente significativos que têm relação entre si mas não causal; quando ele acontece, é um evento suspenso no

cotidiano.

25

em que considera que somente com a realidade concreta é que essa subjetividade

se tornará concreta e viva.

III-

A arte ressoa na alma; ajuda-nos a apurar os sentidos; estimula; dá força;

deprime; aponta para a realidade com outro olhar. Pode aguçar não somente os

sentidos e as sensações, mas também pode acessar os estados de sono,

inconsciência, cognição; nos causa torpor e fala diretamente a outros eus. Se, ao

ver os campos floridos de Van Gogh, sinto a sua dor nos últimos dias de sua vida

e me vejo ali deitada, sinto o sol a aquecer um pouco de minh’alma. A arte

condensa núcleos de sentidos e nos faz aprender algo sobre a realidade sem que

saibamos a correlação com a mesma.

O reflexo da realidade15 opera-se nas lembranças da existência (cognitivas,

sensoriais, factuais, narrativas), que adquirem características próprias nos

variados meios de expressão, na combinação de emoção, técnica, recursos,

intuição e forma. O reflexo estético16 é a forma social da apropriação do real pela

consciência, que reproduz, não de maneira mecânica, a realidade objetiva. A arte

é uma das representações de conhecimento do real; tanto o pensamento

cotidiano, quanto a arte, ou a ciência, refletem uma mesma realidade objetiva,

mas cada área de objetivação da vida se expressa com diferentes características.

Mas a arte não conhece a vida material; a arte fala da essência humana. Adolfo

Sánchez Vázquez (1978), retomando a estética marxista e as teorias de Lukács, fala

que os objetos representados na arte são portadores de um significado social do

15Usamos aqui o contexto da teoria do reflexo abarcado na Estética de Georg Lukács, em que a realidade cotidiana

é captada pelos reflexos artísticos, de maneira não mecânica, ou fotográfica, mas por uma elaboração

antropomórfica, que seleciona e reordena as categorias da realidade objetiva. A categoria ordenadora central desse

movimento, para ele, é a particularidade que a torna sensível às determinações universais da vida humana. Lukács

está pautado, nessa formulação, fundamentalmente, na estética de Hegel; por exemplo, toda a formulação do

interesse pelo “reflexo exterior da interioridade” (HEGEL). 16O reflexo estético cria, por um lado, reproduções da realidade nas quais o ser em si da objetividade é

transformado em um ser para nós do mundo representado na individualidade da obra de arte; por outro lado, na

eficácia exercida por tais obras, desperta e se eleva a autoconsciência humana: quando o sujeito receptivo

experimenta – da maneira acima referida – uma tal realidade em si, nasce nele um para-si do sujeito, uma

autoconsciência, a qual não está separada de uma maneira hostil do mundo exterior, mas antes significa uma

relação mais rica e mais profunda de um mundo externo concebido com riqueza e profundidade, do homem

enquanto membro da sociedade, da classe, da nação, enquanto microcosmos autoconsciente no macrocosmos do

desenvolvimento da humanidade. (LUKÁCS, 1970, p. 296).

26

mundo humano em que a arte vê as relações humanas em suas manifestações

individuais e não na mera generalidade.

A jornada do conhecimento de que a arte nos dá sobre a humanidade não

é o da mera imitação mas o da mediação e da mimese do concreto real ao

concreto artístico. Para Benjamim (1994), a faculdade mimética é a natureza que

a cultura usa para criar uma segunda natureza, ou seja, é a habilidade de criar uma

relação simbólica com a realidade. Nessa concepção, a imagem, a magia e a

imaginação tornam-se um outro objeto. A magia da mimese está no ato de

desenhar e copiar a qualidade e o poder do original, a tal ponto que a

representação pode, até mesmo, assumir aquela qualidade e poder. Então a arte

terá um correlato com a realidade que nem sempre sabemos apontar qual, já que

a vivência de toda a realidade artística contém necessariamente um momento de

alusão à realidade. (Lukács, 1982)

Em sua Estética, o filósofo húngaro Lukács (1970) argumenta que a obra de

arte terá por tarefa específica representar o humano, o seu destino, suas

manifestações. A trama de Édipo, por exemplo, provoca emoções nos

espectadores ou leitores, independentemente de eles conhecerem os

pressupostos históricos dessa obra. Para Lukács, está presente na arte a relação

humano-humanidade, ou seja, a representação simbólica na arte é sempre o

reflexo condensado do mundo humano.

Ao internalizar o livre e o belo, e ao transformá-los, por meio da qualidade

da natureza e da beleza sublime nos valores culturais da burguesia, um reino de

aparente unidade e liberdade é criado no campo da cultura, no qual eles devem

ser dominados, apaziguando as relações antagônicas da existência, e essa cultura

afirma e esconde as condições sociais da vida. Após satisfeitas suas necessidades

é que o ser humano encontra a medida para as coisas e, ao mesmo tempo, é esse

ser, em especial, que satisfaz as próprias necessidades, mas também as de toda e

qualquer espécie. Ora, o ser humano reproduz a natureza toda e é capaz de aplicar

a medida de todo o necessário e, ainda, pode estabelecer a medida do belo. A arte

é uma atividade sensível, assim como a filosofia e a religião; por ser sensível, é

parte integrante do processo de formação humana.

Se a consciência da natureza é, primeiro, consciência animal, a consciência

da necessidade de relações com outros seres humanos é a consciência da vida

social. A linguagem, tão antiga como a consciência, nasce da necessidade de

27

intercâmbio com outros humanos, ou seja, a consciência plena é subjetiva e

objetiva. A cultura se desenvolve na luta pela existência e por melhores condições

de vida17 e se conforma em “Tudo aquilo que foi criado, construído e conquistado

pela humanidade, ao longo da história, em contraposição ao que lhe foi dado pela

natureza, e que serve para aumentar o conhecimento e a capacidade para

enfrentar e subjugar a natureza”. (Trotsky, 1981, p. 52). A base da cultura é a

consciência e o desenvolvimento do processo de consciência, de si e a do outro.

Aqui buscamos atentar para a necessidade e a visualidade de transformações

culturais na busca de emancipação humana.

As grandes obras de arte tornam-se trans-históricas; atravessam os tempos.

A arte somente existe em relação a outrem. Uma obra de arte não existe se não há

público e uma expressão torna-se verdadeiramente artística se quem observa é

atingido por ela não apenas por dizer: “Isso é bonito ou feio”, mas se ali, naquele

momento de encontro, há uma entrega e identificação; quando eu vivo algo

jamais vivido, ou rememoro sentimentos, ou aprendo ao sentir algo novo. A arte

deve tocar no âmago; causar catarse; afetar; fazer rir ou chorar; sentir raiva e paz

ao mesmo tempo ou qualquer outro sentimento não nomeável.

IV-

Quando, numa barca, estamos sozinhos em meio à enormidade do rio

Amazonas, com o vento a bater na face, um calorzinho de outono aquece a relação

de igualdade entre nós e a natureza18; produz a sensação de aumento das

possibilidades de apreender a liberdade. Ou, como dizia Clarice Lispector (1992):

“Um pouco de aventura liberta a alma cativa do algoz cotidiano”. No processo de

desenvolvimento humano, no plano da prévia ideação e da teleologia, o ser

17Aqui entendemos o trabalho como fundante da existência humana, e a linguagem, a política, a arte são produtos

do trabalho. Ao contrário daqueles que buscaram argumentar que a linguagem antecede o trabalho, vemos que

esses atributos são resultado da precisão que o homem teve de se comunicar, devido às mudanças ocorridas e às

intensificações da produção, pelas quais as relações sociais foram se complexificando cada vez mais. A linguagem

consolida-se a partir da intensificação e do desenvolvimento das relações entre os homens, tem que ver com o

desenvolvimento das forças produtivas do trabalho. Na medida em que o homem foi se apropriando da natureza e

desenvolvendo sua produção, os laços comunitários foram aumentando e nisso se fez necessário ampliar e

sofisticar a linguagem, assim sendo, este deve ser tomado como resultado das forças produtivas do trabalho.

Portanto, o trabalho é o cerne do mundo e autoprodução humana. Veja-se no terceiro manuscrito em Karl Marx

nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2006. 18 Na relação entre ser humano e natureza, à medida que se apropria e domina a natureza pelo trabalho, o ser

humano se afasta dela ao estabelecer os recuos das barreiras naturais. A criação do mundo humano difere

totalmente da natureza; criam-se sociabilidades e objetivações políticas, culturais e ideológicas.

28

humano formula questões e vê necessidades a serem supridas e, em todo esse

processo, ele cria. A percepção consciente, plena de intencionalidade, vincula-se

ao ato de criar movida por necessidades concretas sempre novas; criar é estar em

movimento com possibilidades de aufhebung (transcender) da vida cotidiana. O

ser humano criativo surge a partir da possibilidade de escolhas. A criatividade não

se resume ao fazer artístico e, mesmo, a um produto, mas como experiência de

vida, que possibilita ampliar a percepção e a consciência em relação a si mesmo e

ao outro.

As expressões criativas são mais amplas e podem ocorrer na vida

cotidiana19, na ciência ou na arte. A concepção de arte aqui como forma de

consciência social e do si-mesmo encontram-se plasmadas no movimento da

realidade e num tanto de magia da qualidade da pintura em reunir tantos

elementos e objetos em uma singular representação sendo que cada um de nós é

movido por paixões, desejos, expectativas e necessidades; ou da arte que nasce

pela necessidade de sobrevivência.

Os grafismos que compõem a complexidade visual das grandes cidades é

parte do cotidiano de seres sociais dotados de razão, história e consciência;

capazes de reflexões e críticas acerca de ações e pensamentos. No cotidiano, no

qual o indivíduo se socializa e responde às necessidades imediatas; assimila

costumes e normas; vincula-se à sociedade, incorpora mediações na dinâmica

voltada à singularidade.20

No processo de desenvolvimento humano, no plano da prévia ideação e da

teleologia, o ser humano formula questões e necessidades a serem supridas e, em

todo esse processo, ele cria. O devir criativo não está apenas na curiosidade,

técnica, forma ou representação de algo, visto que a capacidade criativa exige

que o ser universalize a si mesmo. O ser humano criativo surge a partir da

possibilidade de escolhas.

19Segundo Lukács, a vida cotidiana possui uma universalidade tal que a sociedade somente pode ser entendida em

sua totalidade quando se entende a vida cotidiana em sua heterogeneidade universal, a vida cotidiana é aquele

conjunto de atividades que caracterizam as possibilidades de reprodução social. O filósofo Húngaro propõe que a

estética tem sua base ontológica no terreno da espontaneidade da vida cotidiana mas para se auto-realizar enquanto

fisionomia a cada tempo histórico-social deve ser submetida a um caminho consciente ou não a transformações

qualitativas de conteúdo e ou forma, espontaneidade que é inerente a natureza particularista das atividades

humanas. 20Os humanos não são apenas seres genéricos nem meramente seres singulares, mas há uma totalidade que envolve

a singularidade – a tendência cotidiana da individualidade, dos desejos, e das necessidades – e a universalidade –

sociabilidade, objetividade. Para melhor entender, leia o livro de Maria Lúcia Silva Barroco: “Ética e Serviço

Social - fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez Editora, 1996.

29

A criatividade não se resume ao fazer artístico ou, mesmo, a um produto,

mas é experiência de vida que possibilita ampliar a percepção e a consciência em

relação a si mesmo e ao outro. A proposição universal de criar relaciona-se com a

vida, ela mesma, a qualidade de vida; o mínimo de inteligência é suficiente para

que o indivíduo seja capaz de tornar-se ativo em sua vida, na comunidade ou na

sociedade. A não ser que esteja doente, estressado, sufocado, limitado.

O american dream, enquanto ideologia dos apologetas do poder, nos Estados

Unidos da América, prevalece como existência moral e de conduta introjetada de

que tudo é possível e que o estilo “correto” de ser e de vida é o “americano”. São

os menestréis possuidores da liberdade de escolha de mercado, de compra, de ir

e vir como potência na valoração máxima do indivíduo, a expressão da ideologia

pungente e avassaladora do capital, portanto inerente à classe dominante,

burguesa, detentora dos meios de produção.

A liberdade, na Idade Média, era uma questão de transcendência somente

alcançada de forma espiritual. Na sociedade burguesa, a liberdade é objetivada

pelo indivíduo. Diante das alternativas, desenvolvemos a capacidade da escolha.

Aí está a gênese da liberdade. Subjetivamente, também vivenciamos a sensação

da liberdade. Nina Simone, em entrevista reprisada no documentário homônimo

de 2016, afirma que a Liberdade é apenas um sentimento, diz ela: “Como você

explicará a alguém que nunca se apaixonou o que é a paixão?”. Algumas vezes, no

palco, ela se sentiu livre. “I will tell what freedom means to me. No fear! If i could had

that half of my life… No fear! A new way of seeing something”21. Nina Simone vai

descobrindo, ao longo da vida, que não compactuará com a opressão racial e se

agrega a movimentos sociais e pares de luta. Suas composições perpassam a

função social, não por obrigatoriedade, mas por sentido de expressão daquilo que

a compositora vivenciava em sua vida. E ainda transita por outros temas que

balançam o seu coração. Uma artista completa referenda a vida e se lança ao

mundo em potência e plenitude. Intuitivamente ela diz que a liberdade não é um

sentimento mas uma condição objetiva.

A liberdade pressupõe a existência de alternativas e possibilidades

concretas de escolha entre elas. Como diz Marx, “Os homens fazem a sua própria

21 Eu vou te dizer o que liberdade significa para mim. Nenhum medo! Um novo jeito de ver algo.Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=nPD8f2m8WGI

30

história, mas não fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas

por eles próprios, e sim nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e

transmitidas pelo passado” (2010, p.124). Essa capacidade é desenvolvida

historicamente e não dada por natureza. A liberdade frente às escolhas é parte da

capacidade consciente dirigida a uma finalidade. Capacidade prática para realizar

objetivamente as escolhas e para que novas escolhas sejam criadas. A liberdade é

um processo de auto realização enquanto origem de novas possibilidades, nas

quais, por meio de sua ação, o indivíduo social cria-se e recria-se constantemente,

como um ser autotranscendente.

Determinados valores podem ser vivenciados mais intensamente em certas

relações do que em outras com certas objetivações que as demais. Ao indivíduo,

é posta a necessidade da escolha e reação ou intenção e, então, da escolha perante

alternativas cotidianas das mais simples às mais complexas. Os valores culturais

presentes em cada época estimulam ou retardam a criatividade humana.

Quanto mais rica a diversificação de relações, mais complexas as

elaborações. Por exemplo: cada língua codificada é uma forma de prisma da

realidade, nomear o real, designar, é também sentir e pensar sobre ele por meio

das línguas. Assim, os de língua anglo-saxã não conhecem a palavra saudades e

também não vivem da mesma maneira a saudade. Ao se falar mais de uma língua,

amplia-se o repertório de existência, sensações, maneiras de pensar e as

designações.

A liberdade, no plano subjetivo, isto é, da problemática das possibilidades,

do ponto de vista da organização social, se coloca diante da possibilidade concreta

de ser livre. Quais serão os teores de verdade que as imagens contêm e induzem

a quais efeitos, quais são suas origens éticas e quais os destinos políticos da

estética contemporânea mais difundida no mundo? No que as imagens públicas

urbanas concernem ao jeito de ser de indivíduos e das coletividades? Ao resgatar

toda a referência cultural e artística do legado da humanidade, há que se pensar

no desenvolvimento da própria cultura e de que maneira se articula com a

universalidade22.

22 É fundamental que o ser humano genérico se aproprie de todos os bens culturais produzidos pela humanidade.

“[...] Uma nova classe não recomeça a criar toda a cultura desde o início, mas se apossa do passado, escolhe-o,

retoca-o, o recompõe e continua a construir daí. Sem o uso do guarda-roupa de ‘segunda mão’ do passado não

haveria progresso no processo histórico [...] Os dias que vivemos ainda não representam a época de uma nova

cultura, mas no máximo seu limiar. Devemos em primeiro lugar nos apossar oficialmente dos elementos mais

31

A incessante busca por valorar a vida, uma perspectiva de ver a vida,

compreende que a medida da liberdade individual está socialmente

impossibilitada pela condição material existente. Vejamos um pouco a

complexidade da liberdade nas dimensões ético-política e na micropolítica da

subjetividade expressa em sensações e sentimentos. No campo da subjetividade -

autonomia23, autoconhecimento, desejos e o que faz, por exemplo, com que uma

pessoa se aprisione em um par de sapatos, ou seja, para sermos espiritualmente

livres, não podemos permanecer na escravatura das necessidades corporais ou de

desejos, quanto mais escravos de necessidades criadas, tal qual ter vários pares de

sapato, e a incessante vontade de consumo.

Os “processos criativos” vinculam-se a sentimentos de amplitude e de

liberdade, ao preencher vazios, atenuar medos e acalmar anseios, e esta

possibilidade de dar vazão a sentimentos, sensações e fantasias, são vivências

interiores. A criatividade revela o que está encoberto, possibilitando ao sujeito

formas estéticas de transfiguração, aberturas e revelações, tornando-se a

expressão do verdadeiro self que, em contato com a realidade externa, tem sua

existência fortalecida e não aniquilada. “Definir é matar, sugerir é criar” (Mallarmé,

2013). Parte-se do pressuposto de que o ser humano é ser criativo em potencial e

tem como necessidade realizar esse potencial se as circunstâncias da vida social e

individual o permitirem.

Como experiência vital, criar intensifica o viver. Os processos de criação

ocorrem no cotidiano, no trabalho, na ciência, na arte e, em geral, quando sua

atividade lhe é significativa, sua sensibilidade pode ser estimulada. Essa realidade

criativa se dá na mediação do singular com o universal, do indivíduo com a

cultura. Criar não é algo privilegiado do campo artístico, mas uma necessidade

vital de concretizar um dos potenciais humanos. A criação representa uma

descarga de energias emocionais e intuitivas que renova a potência; neste

processo o indivíduo amplia o espectro de ser e atuar no mundo ao enriquecer a

sua própria produtividade.

importantes da velha cultura, a fim de podermos ao menos abrir caminho à construção de uma cultura nova.”

(TROTSKY, 2007, p. 143 e 154, grifo do original).

23No cotidiano dinâmico e heterogêneo, tende-se a emitir respostas automáticas, valores, crenças e preconceitos.

A escolha é um exercício de liberdade, no cotidiano reificado; os valores morais tendem a ser interiorizados

acriticamente e constituem a alienação moral. Há uma distinção entre a autonomia, a consciência da possibilidade

de escolha. A autonomia demarca-se quando o eixo de uma escolha está marcado pela personalidade individual. É

evidente, nesse processo, saber que sem alternativas existentes não há possibilidade da autonomia entrar em cena.

32

V - A forma é a materialização da ideia, mas nem sempre ambas mantêm uma

relação direta e simbiótica entre si. Uma forma nova com o conteúdo velho, ou

um conteúdo novo com uma forma velha, entram em contradição, uma arte

histórica; uma arte que se torna trans-histórica apresenta uma unidade

transformadora tanto na forma como no conteúdo. A partir dessa premissa

passamos a observar a arte urbana.

Em termos da arte de mural, comparativamente à do graffiti, temos que,

na arte mural, que mais se aproxima à da pintura, há possível figuração de duas

ou três dimensões do real enquanto que o graffiti e o pixo apresentam realidades

mais intrínsecas. O pixo expressa uma preocupação maior com o local de

exposição, o risco de exposição, do que com seu conteúdo concreto. A realidade

espacial adquire uma nova dimensão, que, no caso do pixo, apresenta a renúncia

à cor, o que havia ocorrido na escultura e na poesia concreta, com a renúncia da

rima.

Algo a se considerar é que os graffitis e murais transcendem as

possibilidades de superfície, que também interferem naquilo que poderá ser

figurado. Atingem magnitudes impressionantes, até então abrangidas apenas pela

arquitetura; são formas de carimbar e transformar arquiteturas, não somente

como adornos. Ao mesmo tempo, a iluminação externa, em locais a céu aberto,

apresenta riquezas particulares nas variadas épocas do ano e a cada dia uma

modificação natural incide sobre murais e graffitis: a luz da manhã, do meio-dia,

o crepúsculo, a aurora, o tempo das chuvas, o céu de outono, a luz por entre as

nuvens, a luz artificial que brota na noite, enfim, toda a gama de iluminação dá

origem a efeitos variados ideados ou ao acaso.

Parece-me interessante que a renúncia burguesa aos elementos externos de

composição das arquiteturas de edifícios pode ter aberto espaço para essa

necessidade, que, em nosso entendimento, não adentram potencialmente os

campos da subjetividade e apresentam posições menores, no campo das artes, o

que é muito distinto das artes abstratas, que expressam uma realidade sensível e

plástica, que atingem outros níveis de consciência e reciprocidade. Para o icônico

artista Rui Amaral, o conceito decorativo de arte é um sequestro.

33

Se, no tempo das arquiteturas monumentais Góticas, a pintura é totalmente

externa e há necessidade de adornos nas catedrais, janelas recobertas de motivos,

no tempo de agora, a necessidade pode ser a de colocar a pintura para fora, sendo

que os prédios, igrejas, são simplificados em seus contornos exteriores.

Há pouco tempo, em fins do século XX e início do século XXI, talvez a

escultura estivesse mais próxima da arquitetura do que a pintura, na arte

muralista. Com o emprego dos mais variados materiais, a representação espacial,

que, no caso da pintura, depende sempre de uma superfície, ganha essa outra

dupla dimensão: a superfície de prédios e a visualidade em diferentes locais na

cidade, próximo ou distante da pintura, ou na virtualidade, com a difusão das

fotos. Mais pessoas observam um mural urbano do que vão a um museu, é apenas

por estar circulando na cidade e se deparar com algo menor, ou monumental, que

salta aos traços cinzentos típicos de metrópoles do tipo LA, ou SP, com prédios

gigantescos, produções industriais, concentração de Capital e poucas áreas verdes,

com tráfico e ritmos intensos, de fluxos populacionais.

Na antiguidade greco-romana, a pintura revestia as paredes e os murais em

branco para decorar templos e moradias. Vemos essa independência da pintura

iniciada no muralismo mexicano, em que são retratados grandes acontecimentos

históricos e substanciais valores de lutas contemporâneas, donde se ressalta a

grandeza humana com virtuosismo técnico.

Agora, a delimitação da forma adquire outros contornos, pelo incremento

da relação espacial. Hoje, o graffiti dirige-se diretamente ao espectador, de

maneira instigante e vívida. Está nas esquinas, vielas, nos viadutos, embaixo e nas

alturas das pontes. A pintura tem, no seu meio de representação, as figuras, mas

também as cores. É nessa delicadeza sensível que podemos sentir que apenas a

cor pode expressar uma subjetividade que estabelece interlocução com os sujeitos

que a miram e com ela interagem.

É necessário considerar a concreta expressão da forma sensível, através

da perfeição das formas exteriores, para considerar a arte bela? Ou o lado sensível

pode ser absorvido por outras singularidades interiores? Em que seria comparável

exprimir uma exaltação superior de uma arte perante a outra? Tomar-se-ia a

produção contemporânea de uma outra época, ou a concreção de um mesmo

tipo de forma artística como medida? O elogio à perfeição dar-se-ia não pela

34

fidelidade de representações mas na referência dos conteúdos compartilhados ou

sentimentos e sensações de impressão na alma?

Na arte visual, rica e multiforme, damos ênfase aqui ao graffiti, mas

encontramos no nosso período corrente a arte conceitual contemporânea, mais

ligada ao “pós-moderno”24. Também existem formas pertencentes à

modernidade tal qual a referência nos murais do realismo social - algo muito

“moderno”. O modernismo entendido por esse movimento acadêmico, sensível

e revolucionário, tanto em se unir a sentidos políticos com as proximidades de

eclosões e revoluções sociais, quanto a estabelecer questionamentos no interior

da própria arte. Pressupomos que é impossível pensar que modernidade tardia é

esta, sem levarmos em conta os movimentos por alteridade, os movimentos

LGBTQIA+, feministas, a efervescência que vem das ruas, os movimentos raciais

e os movimentos ambientalistas.

VI -

Arte e política têm características próprias e não se situam no mesmo plano,

conquanto, a arte apresenta direcionamentos ideológicos por não estar dissociada

da sociedade. A arte pode assumir direcionamentos ideo-políticos e a política

pode se valer da arte para promover propaganda e processos de consciência e até

dominação. Os dogmatismos impostos de um plano para outro não fazem mais

do que estimular o sectarismo e as limitações que podem tão somente inibir os

processos criativos. Do contrário, seria mais benéfico promover mais criatividade

e liberdade na política.

Política e arte não andam sempre juntas, no processo de desenvolvimento

histórico, tanto que, em momentos de ditadura, com táticas de repressão no

campo político e artístico, no Brasil, registra-se alto desenvolvimento artístico. A

politicidade não pode ser entendida acima das classes sociais25, a estrutura de

24 O pós-modernismo apresenta um sistema de ideias e também práticas culturais em que se defende que a fundação

de todo o pensamento clássico social colapsou e que não existem mais grandes narrativas ou meta narrativas - num

todo, as concepções de história e sociedade. E aí atinge o cume da afirmação da inexistência de História. O mundo

pós-moderno está generalizado a este ponto, dominado pelas novas mídias digitais que retiram a importância do

curso da história, que anulam o passado. O mundo está em constante fluxo de ideias, imagens, informações. Jean

Baudrillard acredita que a mídia eletrônica destruiu as nossas relações com o passado e criou um mundo caótico e

vazio. 25“Não é preciso demonstrar que a separação da arte dos outros aspectos da vida social resulta da estrutura de

classes da sociedade. Sua auto-suficiência, como se ela se bastasse a si mesma, constitui o reverso da medalha: a

transformação da arte em propriedade das classes privilegiadas. A evolução da arte, no fundo, segue o caminho de

35

classes vem determinando a forma e o conteúdo da história humana, isto é, a

cultura também assume esse caráter, assim como as relações materiais e seus

reflexos ideológicos. A estética é política mas tem uma complexidade e

universalidade tal que transcende a política. O princípio fundamental da arte é a

necessidade e o da política é a vontade.

A arte surge muito mais como um fenômeno universal mas a política se

liga mais ao particular, nos modos em que ainda vivemos. E mesmo que o modo

de produção esteja globalizado, cada nação tem certas singularidades. A estética

pode suprassumir a esfera do Capital mas a política não consegue.

Pensar que quem faz arte tem o dever-ser político correto nesta ou naquela

direção, é um debate muito em voga. Segundo o artista Paulo Ito (entrevista em

2017): “A arte não necessariamente está vinculada à qualidade, e por vezes algo de ruptura

como as vanguardas e a quebra do establishment pode ser considerado algo político”

Mas sejamos sensatos/as: a arte verdadeira transcende o seu momento

histórico e é lembrada e reverenciada independentemente do tempo e espaço a

que se vincula e pode ser reapropriada em outros momentos históricos. O

“socialismo real” ruiu e continuamos a ler Maiakovski, e as belas esculturas de

Camille Claudel, muito à frente do seu tempo, começam a ter maior valorização

hoje, mais de 70 anos depois de sua morte ou as belas cerâmicas dos tempos da

Dinastia Shang na China, mais de mil anos a.C. que nos enchem os olhos de

beleza.

Temos discutido na relação entre arte e política que a forma artística, apesar

de manter constante relações com as exigências econômicas e produtivas, possui

leis próprias. A arte desenvolve-se na vida e pela vida; não está atada à

imediaticidade da vida, em sua espontaneidade. A vida cotidiana apresenta um

efeito contraditório, de massante repetição e potencial evocatório.

O desenvolvimento da capacidade humana se relaciona a cada situação,

momento, configuração da história social e pessoal de cada um. O que dizer de

uma artista em profícua criação que, em determinados momentos, não consegue

pintar nada? Devemos ainda nos concentrar em priorizar esteticamente a arte que

uma crescente fusão com a vida, isto é, com a produção, as festividades populares e a vida coletiva”. (Trotsky,

2007, p. 114)

36

traz harmonia social? O obscurantismo do real deverá refletir um mundo ideal na

arte ou a arte de um mundo decadente em chamas?

A verdade de um julgamento estético e a beleza de uma obra de arte devem,

por sua própria essência, afetar ao público sem distinção de sexo e nascimento,

mas, para isso, independentemente de sua posição no processo de produção,

todos os indivíduos deveriam estar expostos a valores culturais, para da luz à

existência humana.

VII - Contraditoriamente, os traços híbridos da reprodução26 contemporânea

estão presentes também na cultura dos povos originários; quilombolas; na classe

trabalhadora; em grupos de grafiteiros/as e pixadores/as; ou em qualquer

agrupamento social majoritariamente subordinado à exploração, dominação e à

ideologia do capital. Esse é o processo de concreção das relações alienadas e

estranhadas. A existência parece colocada na trincheira entre a incapacidade de se

realizar, em virtude da subsunção à ordem vigente, restando apenas aos

indivíduos estabelecer sociabilização entre concorrentes, e mediatizados pela

coisa, na qual sua realização só pode se objetivar perante o dinheiro, e a super

capacidade de realizar tudo e qualquer coisa que quiserem.

Por quanto tempo temos sido expostos a informações de consumo

incessantes que invadem nossa vida: preços, letreiros, mostradores de mercados,

nomes de loja e outdoors? A presença de manifestações visuais ilustrativas ou

cifradas também existe do ponto de vista de quem observa e ou contempla na

necessária interlocução, daquilo grafado ou observado, com quem observa. O

capitalismo vem subvertendo e absorvendo todas as formas de expressão criadas,

capturadas e transformadas em publicidade em valor capital, em fluxo imagético.

Os grafismos selvagens – escritas, garranchos e rebarbas ou elaboradas grafias e

murais a partir do uso do spray, canetas e tintas transformam as escritas urbanas.

Ao mesmo tempo essas novas imagens e tipologias criadas são incorporadas e se

tornam jargões, novas tipologias de letras para o word, novas propagandas.

26Não há vida sem reprodução e não há sociedade sem vida cotidiana; todas as capacidades e os afetos

fundamentais são apreendidos no cotidiano. O ser humano, ao nascer, encontra-se vinculado a uma estrutura social

- estrato, classe -, é ele o ser genérico ou o ser social.

37

Ao mesmo tempo, desta vez, quem reverte a lógica e absorve o que foi

desenvolvido pela sociedade capitalista é a arte imagética de rua que em diversas

vertentes compete com a poluição e que pode incitar valores e ao mesmo tempo

ser cifra de difícil compreensão para leigos. A arma de identificação,

reivindicação, expressão e existência em alguma história fugaz. O público não é

consumidor, o público busca entender, admira, sente, compreende, sente ojeriza,

repulsa. Ataque ao suporte, a guerrilha urbana de imagens está instalada. Aqui

nem sempre importa o que está escrito, o significado das palavras sem aparente

importância da semântica, a linguagem suja, sem conceitos, a imaginação furiosa,

demarca os mais bem posicionados edifícios de maneira monumental.

Graffiti, pixo e estêncil27 rompem com os espaços de exposição tradicional,

os museus e as galerias, para criar diálogos com lugares e recolocar o campo da

criação artística entre os elementos da vida cotidiana. Aliás, é fundamental a

supressão dos museus ainda mais se pensarmos que a onipresença da publicidade

recorre por sobre o valor estético em que a fortuna de uma artista depende

somente, por muitas vezes, de um bom empresário. Claro que também sob o jugo

social capital a arte é mercadoria, agora até a água o é. E quem vive por mais de

três dias sem água?

O dinheiro, a publicidade, a propaganda, a ideologia dominante define o

futuro da maioria. Como disse Mariátegui: a elite aristocrata se compunha de

finos amantes das artes e das letras; já a elite burguesa se compõe de banqueiros,

industriais, técnicos. "A atividade prática exclui da vida desta gente toda a

atividade estética" (1980, p. 137). A civilidade Capital é da potência, não é estética;

a sociedade em construção é estética e cooperativa.

Encontramos, na discussão do materialismo histórico-dialético, a premissa

de que, no momento em que uma produção social humana entra em decadência,

a cultura28 também a segue. A decadência cultural corresponde à necessidade de

uma nova formação social. Qual é a transformação cultural que vivemos? As

formas, na arte, têm mais a ver com o desenvolvimento da linguagem, que possui

27Estêncil é uma técnica de pintura utilizada para aplicar um desenho sobre qualquer superfície, com o uso de tinta,

sendo aerossol ou não, o estêncil é feito com papel, plástico, metal ou acetato, onde tem uma boa durabilidade e

seja fácil de cortar, para fazer a forma do desenho. 28 Karl Marx e Friedrich Engels nunca fizeram uma teoria da cultura. A nossa elaboração se pauta-se na elaboração abordagem crítica sobre das artes e da cultura nos estudos teóricos do legado a partir de G. Lukács, Walter Benjamin, Adorno, Trótski, Marcuse, Frantz Fanon Fredric Jameson, David Harvey, Perry Anderson, Erson de Oliveira, e Celso Frederico.

38

leis próprias, mais do que com o desenvolvimento da sociedade, apesar de manter

constante relações com as exigências econômicas e produtivas.

O conhecimento da realidade na arte não é mediada pela ideologia na ciência

é forma sistematizada de conhecer. A grande contradição da arte como instância

Criativa e o capitalismo enquanto sistema que nega o indivíduo criador, o ser

producente está tanto na divisão do trabalho quanto na rasteira educação artística.

Ainda bem que, como temos visto no Brasil, que as classes populares se

reinventam e que o campo da reprodução cultural pós moderna não domina

todas as mentes e almas. É aí que vemos o florescer de um tipo monumental e

exuberante de arte. É claro que se notarmos até mesmo entre as/os artistas

escolhidos, há alguns de influência nas artes na família e no processo de formação;

mas a origem, o espraiamento e a força da cultura de ruas e da arte de rua são

proletárias, na forma mais genérica e específica.

E se lembrarmos dos tempos históricos da arquitetura, escultura, quadros,

música, parece que a elite burguesa não fracassou mas não apresenta traços

lúdicos e imaginativos o suficiente para enfrentar o campo da estética, afinal o

avanço tecnológico; a eficiência; o consumo são mais importantes.

O signo existe do ponto de vista da necessidade de interlocução e

comunicação daquilo grafado, inscrito, colado com aquele que observa; ao ocupar

o espaço público, apresenta outra leitura de percepção da cidade e estimula a

vivência na metrópole. O artista urbano, habitante da cidade, afirma o território

e transforma a sua ação pincelada, colada ou escrita em cenário da cidade em

meio à já tradicional impessoalidade anônima urbana.

Está nas ruas em atualização ou modificação constante. Muros- suportes

que se tornam amplos museus a céu aberto. A arte nos ajuda a conhecer um ao

outro como seres humanos. A arte urbana faz parte de uma visão de mundo cultural e

sendo assim não é algo individual mas social.

Das famosas Tags29, ou assinaturas de nomes pessoais e grupos, até os

ostensivos murais artísticos, os trabalhos poéticos ou identitários refletem o

espírito único da época. De modo genérico, a arte plástica de rua é aquela que sai

do confinamento do museu, espaço institucional de legitimação, e usa a rua como

suporte. Desvela características peculiares do cotidiano metropolitano e disputa

29Inscrição de nome ou assinatura, surgida em NY nos anos 80. É a criação de uma assinatura estilizada individual.

A complexidade da grafia varia.

39

espaço público com interesses imobiliários, comerciais, históricos, estéticos e

comunicacionais, documentando e questionando o modo de vida dos habitantes

de uma cidade. Irreverentes e com regras próprias, as artes plásticas de rua

transbordam o espaço urbano, transformando-o em suporte artístico, a partir de

pixos30, esculturas, colagens, murais e os tradicionais graffitis.

Todas as sociedades usam a fala como veículo de linguagem e há outras

formas notáveis de se comunicar, especialmente nas variedades de escritas. A

invenção da escrita marca uma transição na história da humanidade, pois se inicia

com rabiscos, desenhos, riscos, listas; marcas feitas em madeiras, argilas ou

pedras, para registrar objetos, animais, pessoas, eventos significantes. Por

30Pixo, verbo pixar. Escrever em paredes de muros, prédios, calçadas, janelas e com caligrafia invejável. graffiti e

pixo andam juntos, mas o pixo é criminalizado e enquadrado como crime ambiental, o mesmo crime de quem

destrói complexos ecossistemas, tal qual a Samarco, a Vale, entre outras. O mais importante debate acerca da

pixação está entre o crime e a arte; em São Paulo, é inegável a pixação enquanto fenômeno cultural, esse debate

será aprofundado nesta tese.

40

exemplo, uma marca ou uma pintura pode ter sido desenhada para representar

cada trato de posse da terra por uma família particular.31

É indiscutível o poder e o significado da escrita como marcas na história. A

escrita apresenta um significado de guardar informação e administrar

necessidades no início de civilizações. Uma sociedade que possui escritos localiza-

se no tempo e espaço. Os documentos acumulam-se e gravam o passado, as

informações posteriormente podem ser novamente coletadas.

Ideias e experiências podem ser passadas por gerações sem a escrita mas

apenas se forem repetidas regularmente e oralizadas a cada nova geração. A

escrita pode durar milhares de anos e, por meio delas e da pesquisa documental,

historiadores podem reconstruir as vidas de antepassados. A seguir expomos uma

breve visão histórica das inscrições grafitadas ao longo do desenvolvimento da

humanidade à atualidade.

A grafia em paredes é feita desde a pré-história. Nessa expressão remota,

historicizam-se registros em muros, cavernas e rochas, com vestígios até hoje

encontrados que datam de 40 mil anos. Os achados de figuras de mãos humanas,

por sua vez, estão estampados numa gruta na ilha de Sulawesi, na Indonésia;

também com essa mesma datação, consta uma roda vermelha, na parede de uma

gruta espanhola, em El Casillo. A capacidade de abstração e representação

figurativa provavelmente já se encontrava na África antes da diáspora, o tempo

para descobrir vestígios dessa manifestação artística ancestral.

31 GELB, I. A study of writing. Chicago: University of Chicago Press, 1952.

41

Representações artísticas rupestres realizadas em paredes e outras

superfícies de rochas e cavernas expressam um tipo de faculdade humana

universal e encontrada em todo o mundo. No Brasil - em Rio Grande do Norte,

Piauí e Paraíba - localiza-se a maior concentração de arte rupestre do mundo. O

clima seco, a vegetação impenetrável e a dificuldade de ocupação, em algumas

áreas, contribuíram para conservação. No Piauí, são mais de 500 pinturas

encontradas no sítio arqueológico; datadas de 6 a 10 mil anos, feitas com uma

pedra ferrosa de cor avermelhada (Fig. 1).

Figura 1 - Parque Nacional de Sete Cidades – Piauí/BR.

Fonte: Imagem de Luiz Augusto Vieira (2018).

Lascas de pedra, galhos de árvore eram instrumentos para a arte criativa do

grafismo. Os registros rupestres são fonte para entendermos o processo do contar

histórias, do desenvolvimento da linguagem e das “faculdades estéticas humanas”

(Fig. 2).

Figura 2 - Figuras rupestres de animais e pessoas.

42

Fonte: Museu Nacional de Antropologia do México.

A linguagem da cotidianidade constitui-se em um complicado sistema de

mediação, a respeito do qual o sujeito se comporta, que se faz claro por sinais,

símbolos, palavras e enunciados. A reunião abstrata de um largo processo de

generalização e distanciamento da realidade e percepção sensível apresentam-se.

Na formação da arte rupestre, um processo na criação da linguagem, ou seja, de

desenhos, letras, signos, expressa-se enquanto reflexo das representações do

mundo que cercam humanos na pré-história.

Primeiramente, os registros mais antigos de arte rupestre são de mãos

humanas; depois, de animais, plantas e pessoas; e em outro momento do

desenvolvimento das capacidades humanas, começam a ser desenhados

instrumentos de trabalho - para caçar. Vão surgindo os símbolos e desenhos

gráficos que parecem representar lutas, movimentos, danças, rituais e momentos

de condensação da vida cotidiana daquele tempo humano. A arte rupestre pode

ser encontrada em todos os cantos geográficos do planeta terra.

A arte figurativa dos tempos pré-históricos: paleolítico, mesolítico e

neolítico, considerada arte primitiva no sentido próprio da evolução das artes,

apresenta, como se verifica na Figura 3, uma relação entre forma e conteúdo; em

um aperfeiçoamento técnico, percebe-se o uso de cores, a sobreposição de

imagens, a profundidade, em um estágio evoluído e de perfeição. Nas pinturas

em cavernas e muros, é possível definir características da vida dos antepassados e

nos aproximarmos daqueles seres que realizaram a arte rupestre. Ainda que

saibamos muito pouco das origens das atividades humanas, e aqui não se trata de

discutir a gênese das capacidades estéticas, reconhecemos desde as artes

43

primitivas uma manifestação inicial de “reflexos miméticos” (LUKÁCS, 1966).

Algumas reminiscências e estudos etnográficos indicam caminhos com os

dados arqueológicos de que dispomos, acerca dos povos mais originários.

Historicamente, tratamos de momentos que podem ser ressaltados e que se

vinculam a um tipo de linguagem visual com razões históricas e constituições

estruturais diferenciadas a cada período.

Figura 3 - Arte figurativa de animais.

Fonte: Imagem de André Juarez. Museu Nacional de Antropologia do México.

44

Os antigos egípcios eram tão apaixonados pela vida que intencionavam

manter um espelho da vida na terra, mesmo após a morte (HAMDY; STONE,

2014). As antigas pinturas em paredes, no Egito, são de uma época florescida à

beira do Rio Nilo, há 4 mil anos. As pinturas egípcias antigas eram feitas nos

túmulos dos faraós, portanto, não eram apenas para ser vistas, mas para

embelezar, acompanhar e cuidar do morto. As tumbas subterrâneas ficavam

cobertas de representações coloridas, com comidas, bebidas, rituais e paisagens.

Os faraós são mostrados, por vezes, com seus escravos ao seu redor, para que

pudessem servir e cuidar deles na vida após a morte.

A pintura era realizada de algumas formas: diretamente na superfície; uma

imagem levantada acima do fundo, em relevo; e a pintura cuidadosa, com os

detalhes da imagem; relevo que foi esculpido e é chamado de "relevo afundado";

e as imagens pintadas com um fundo em relevo ao redor delas32 (Figs. 4 e 5).

Figura 4 - Gansos, pintura de 2600 a.C. encontrada em uma tumba no complexo funerário Meibum.

Fonte: Museu do Cairo (imagem 31.6.8).

Figura 5 - Divindade gato adorna a câmara subterrânea da tumba de um famoso artesão - Sennedjem (1300 a.C.).

32Para saber mais, leia WILKINSON, Charle K. Egyptian Wall Paintings. The metropolitan museum of art’s

collection of facsimiles. Catalogue compiled by Marsha Hill. New York: The Metropolitan Museum of Art,

1983.

45

Fonte: Museu do Cairo (imagem 30.4.2).

A pintura que os egípcios usavam era colorida ou tingida com minerais

naturalmente encontrados em sua área e algumas cores eram importadas, como,

por exemplo, o vermelho terra, ocre e amarelo vindo do mineral auripigmento.

As cores favoritas usadas na pintura foram o vermelho, azul, verde, dourado e

preto; mas também utilizaram branco, rosa e cinza. As cores e todos os objetos

encontrados nos túmulos foram preservados devido ao ambiente seco e fresco e

é por isso que podemos vê-los hoje em tons tão claros (Figs. 6 e 7). As cores eram

preparadas com minerais, em um pó fino, e misturadas com uma espécie de

"cola" feita de resíduos animais ou plantas.

Figura 6 - Rekhmire era um antigo egípcio nobre e oficial da 18a dinastia (1475 a.C.) que serviu de Governador da Cidade.

Fonte: Museu do Cairo (imagem 30.4.80).

Figura 7 - Adoração ao Deus-Falcão Ra-harakhty e à Deusa do Oeste.

Área necrópole de Sheikh Abd el-Qurn (1320 a.C.).

46

Fonte: Museu do Cairo (imagem 30.4.31).

Era importante fazer a mistura certa, porque a pintura tinha que não só

ficar nas paredes, como também durar para sempre. Havia diferenças na cor do

tom de pele entre homens e mulheres. Os homens eram representados em um

tom marrom avermelhado mais escuro, para refletir sua vida ao ar livre e as

mulheres tinham em uma cor mais clara, quase amarelo amarronzado para

mostrar que viviam, principalmente, em ambientes fechados ou em local

abrigado. Os artistas egípcios misturavam as cores para mostrar detalhes nas

pinturas mais próximos da vida real. Os deuses também eram pintados e tinham

cores definidas. Por exemplo, o deus Anúbis tinha sua cabeça de chacal pintada

de preto, porque era o deus dos mortos.

47

Um momento ápice de expressão pública do graffiti (graffiti) se estabelece

na Roma Antiga (VIII a.C. a V d.C.), criticado pela elite romana e visto como a

principal comunicação da plebe. Os graffitis e as pichações eram uma marca das

grandes cidades do Império Romano (I a.C. a V d.C.). Na Roma Imperial, no

Coliseu, se presenciava a violência física entre os gladiadores, escravos, e muitos

outros, a matarem-se uns aos outros, enquanto a multidão observava e aplaudia,

mas também se observavam, na porta do anfiteatro oval, frases de incitação à

violência; pichações de apoio ou repúdio ao Império; frases de amor ou de

conotação sexual (Fig.8).

Figura 8 - Inscrição em Pompeia dentro da Casa das Lobas (Prostíbulos). Tema erótico. Sul da Itália onde as cidades foram fundadas pelos gregos.

Fonte: Imagem por Beatriz Abramides (mãe da autora), 2019.

Recentemente, uma descoberta de um modesto graffiti, inscrito em carvão

numa parede, muda a história de Pompeia, e define a data exata em que o

Vesúvio, em erupção, destruiu a cidade romana, assim como Herculano, Stabiles

e Oplontis, no ano 79 da nossa era. O graffiti, recentemente descoberto na Casa

do Jardim, um dos edifícios atualmente escavados em Pompeia data a inscrição:

"XVI K NOV", que significa "o décimo sexto dia antes das calendas de novembro",

ou seja, no dia 17 de outubro. Se a cidade tivesse sido enterrada sob as cinzas do

48

Vesúvio desde 24 de agosto, seu autor não poderia ter escrito esse minúsculo texto

quase dois meses depois33 (Fig. 9).

Figura 9 - Inscrição: "XVI K NOV", que significa "o décimo sexto dia antes das calendas de novembro".

Fonte: Parque Arqueológico em Pompeia.

Originárias do latim, as palavras “graffiti” “inscrições” e “pichação/pixação”

derivam, respectivamente, de graffito, inscriptiones e do pix (piche). Na itália, em

Roma e em Pompeia principia algum tipo de cultura da cidade, e as inscrições

possuíam uma expressão de rebeldia, transgressão e contestação à ordem

estabelecida, ainda que não majoritariamente e, portanto, outras perspectivas

eram também escritas ou desenhadas como formas particulares de comunicação.

A inscrição tanto significa a escrita como a pintura e é por isso que

utilizaremos inscrição, ao longo do texto, com essa definição. A escrita na

superfície (pincel, rolo e, hoje, spray) ou escavada (pedra, prego, estilete, faca); a

33 “Para o especialista em pinturas romanas Alix Barbet, diretor de pesquisa honorário do CNRS, essa descoberta

põe fim a um debate que não deveria mais ter motivo para existir, se não houvesse a teimosia de alguns

‘pompeianistas’ em se agarrar à data de 24 de agosto: ‘Pesquisas recentes já diziam que não era a data certa. [...]’.

Alix Barbet apresenta um outro importante elemento agrícola: ‘Temos provas de que a vindima acabou. Havia

borras de vinho, assim como sementes de uva, e os grandes potes de terracota estavam cheios e selados em duas

casas’. Mas os textos dos agrônomos antigos, Columella bem como Plínio, o Velho, especificam que as colheitas

de uva começava no equinócio de outono - 21 de setembro - e terminavam ao pôr das Plêiades em 11 de novembro.

[...] Outros elementos indicam uma data outonal para o desastre: a presença, nas casas pompeianas, de muitos

braseiros, pouco úteis em agosto, ou as grandes roupas que transportavam alguns habitantes. Portanto, Pompeia

foi enterrada sob as cinzas em 24 de outubro de 79 e não em 24 de agosto”. (Fonte: CNN, grifos do original).

49

gravura ou a pintura. No entanto, na mesma Itália, Francesco Maria Avelino

escreve disegni graffiti, para falar do desenho, ou propriamente, do que ocorre

desde o século XVI como disegno esterno.

Inscrições eram também deixadas pela cidade indicando a orientação de

algum local. Os navios que atracavam em Pompeia, traziam marinheiros de

diversas nacionalidades, assim, graffitis eram inscritos nas paredes e chãos para

simbolizar locais. Como é o exemplo da figura abaixo (Fig 10), em que o desenho

de um membro masculino, em uma pedra no chão, aponta a direção da Casa das

Lobas.

Fig 10 - Inscrição no chão.

Fonte: Imagem fotografada por Beatriz Abramides (mãe da autora), 2019.

50

Se o graffiti escrito e o pixo, hoje, são vistos como destrutivos e feitos por

“vândalos”, isto pode decorrer de uma compreensão de mundo a partir da

modernidade. Anteriormente, pessoas de quase todos os níveis da sociedade

esculpiam graffitis em prédios antigos e isto não era visto como algo a ser

condenado.

Durante a Idade Média, principalmente entre os séculos XII e XV, muitas

igrejas e catedrais medievais em toda a Europa ocidental foram cobertas com

inscrições escavadas34. Um terço das marcas encontradas, que hoje são conhecidas

como marcas de bruxas, eram consideradas de proteção ritual contra as

influências do mal (Fig 11).

Fig 11 - A e B símbolos inscritos em igrejas medievais conhecidas como marcas de bruxas.

Fonte: Champion (2015).

A maior parte de inscrições é de desenhos sendo apenas 5% escritos35, a

raridade é, em parte, resultado das baixas taxas de alfabetização. Muitas imagens

eram grafadas sobre fé, espiritualidade; mas também as vivências do cotidiano da

sociedade agrícola, camponesa e marítima representadas com os moinhos de

vento, mãos, pessoas, cavalos, cavaleiros, gansos e barcos, feras e dragões.

Os demônios também aparecem (Fig 12), enquanto a igreja medieval era

formalmente adornada com anjos e demônios, quando se trata do graffiti nas

paredes, há apenas demônios - muitas dúzias deles, do grotesco ao cômico,

dançando através da pedra livre de anjos.

Fig 12 - O lobinho: belzebu, mefistófeles, tinhoso.

34Os maçons medievais, as pessoas que construíram esses monumentos, deixaram as marcas mais antigas

encontradas em qualquer igreja ou catedral medieval. A história tradicional é que cada pedreiro individual teria

sua própria marca pessoal, que ele inscreveria onde quer que trabalhasse. Essas marcas angulares, conhecidas hoje

como "marcas de pedreiro", atuaram como uma forma de controle de qualidade. Eles também permitiram que o

"mestre pedreiro", que trabalhava como arquiteto e pagador, calculasse quanto cada um de seus operários deveria

ser pago. Os maçons continuam hoje com essa velha prática de marcar seu trabalho, mas suas marcas são mais

discretas, escondidas entre pedras e cantos escuros.. 35 Para saber mais leia: CHAMPION, Matthew. Medieval Graffiti: The Lost Voices of England's Churches.

England:Ebury Press, 2015.

51

Fonte: Champion (2015).

Anjos eram os seres celestiais, adornavam vidros e bancos esculpidos. Eles

enchiam as páginas da Bíblia, mas não se esperava que fizessem parte da vida das

pessoas no mundo. Demônios, por outro lado, eram muito reais mesmo; são eles

que trazem as doenças, as pragas, desequilibram a psique. Demônios eram muito

reais e temidos. Esse medo levou as pessoas a esculpir suas contra-maldições nas

paredes da igreja paroquial

A maioria dos documentos históricos da época medieval não fala da maior

parte da população: a plebe e mesmo os documentos em que aparecem os plebeus

como livros contábeis, foram escritos e compilados por sacerdotes, escribas e

advogados da elite, ou sejam sem lugar de fala das classes subalternizadas. Aliás,

como têm sido na história da luta de classes. A voz do plebeu medieval, a vasta

maioria do povo medieval - estava em grande parte perdida. As evidências nas

paredes sugerem que elas foram feitas por todos: desde o senhor da mansão e do

pároco, até o mais humilde dos plebeus mas o estudo das inscrições antigas

começam a contar a vida desses plebeus e não apenas o mundos dos cavaleiros,

príncipes e reis.

52

A pintura nas paredes é uma forma de comunicação coletiva; as paredes

serviram para ilustrar as lições religiosas da igreja e incorporar o novo

humanismo do período do Renascimento, por meio das inovações de

perspectivas e da anatomia naturalista.

A Criação de Adão é um detalhe que está localizado no teto da Capela

Sistina, no Vaticano, sede da Igreja Católica Apostólica Romana. Compõe as cenas

das pinturas da criação e mostra o exato momento em que Adão recebe a energia

da vida como dádiva de Deus. Parece ser um momento fundamental na temática

religiosa católica (Fig. 13).

Figura 13 36 - A Criação de Adão, de Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni. Pintura no teto da Capela Sistina (1508-1512).

O tempo do renascimento, de Lutero, Shakespeare, Leonardo da Vinci e

Michelangelo Buonarroti, expressa renovação acadêmica, intelectual e artística37.

Ali na pintura, vemos a criação do mundo por Deus; a narrativa da origem da

36A Criação de Adão compõe um conjunto de pinturas de cenas bíblicas pintadas por Michelangelo no teto da

Capela Sistina, entre os anos de 1508 e 1510, a pedido do papa Júlio II. A narrativa do momento em que Deus

cria o primeiro homem, Adão.

37Curioso lembrar que, no Renascimento, o grande ícone da arte era Rafael, enquanto hoje é Michelangelo.

53

gênese, que aponta para o futuro da humanidade. O mundo em que o homem é

o centro de tudo; o poder criador divino cria o mundo da racionalidade. Ou seria

a criação de Adão, o homem que cria Deus, o conceito de que o humano é tão

sagrado que ele tem Deus?

Deus não pode ter uma forma senão ser abstração do pensamento, mas a

pintura necessita de representação da forma e sem poder evitar o

antropomorfismo38, a transforma em forma humana, mas, então, esse Deus pai

figurado tal qual indivíduo humano, somente poderia ser Jesus Cristo - o salvador.

Não tal qual A Sagrada Família ou a Paixão de Cristo, que são histórias míticas, ou

místicas, transformadas em pintura. Michelangelo era anatomista e dissecava

corpos para compreender seu funcionamento. Corpos admiráveis foram criados,

a ponto de parecerem vivos. Se lermos da esquerda para a direita, o Adão, criado

por ele, estende seu braço aos céus e extrai, do alto <de seu cérebro>, a ideia de

Deus. Deus que recria a ideia na imagem e semelhança do homem.

A luta pela liberação da arte contra a sua submissão à religião é um fato

fundamental de sua origem e desligamento. Na relação de sua transcendência e

da transcendência humana, a arte se abre pouco a pouco para sua independência.

A elevação ao humano-genérico se realiza na mediação da consciência, no

movimento da singularidade em direção à universalidade; significa a

sociabilidade humanizada no processo de vir-a-ser para si e para o outro.

Já no século passado, após a revolução mexicana, de 1910 a 1917, os murais

serviram de veículo artístico para a educação sobre os ideias da nova sociedade e

as virtudes e demônios do passado. Uma forma de criar uma nova consciência

38Uma forma de pensamento que atribui características ou aspectos humanos a animais, deuses, elementos da

natureza e constituintes da realidade em geral.

54

nacional. O valores da classe trabalhadora, aí incluídos o operariado, setores

médios, assalariados/as, trabalhadoras/es liberais, contra os valores das regras do

capitalismo, e clérigos. Desde essa época, o muralismo contemporâneo têm sido

identificado com os pobres, a revolução, e o comunismo.

Diego Rivera foi o expoente do muralismo mexicano; maior pintor de

paredes do mundo, ao menos até o século passado. Era comunista, membro de

um grupo político de pessoas que se contrapunha à propriedade privada dos

meios de produção e lutava pela dissolução do Estado e do Capital. Em sua

autobiografia, disse: “years before [while studying art in Paris], i had envisioned

the mural as the art form of the industrial society of the future”39.

Ele migra por um período para os EUA, na Califórnia, "o passo

intermediário ideal entre o México e os Estados Unidos", mas era Manhattan, a

fortaleza do capitalismo, que o atraía com mais força. Nesse ponto, o artista já

havia sido expulso do partido comunista mexicano, pois o consideravam

renegado, após exposição no MOMA NY. Here and there40 vemos algumas

posturas autoritárias de partidos comunistas. E isso, imagine, Rivera pintara

murais com propaganda para o partido. O que acontece, a seguir, ao mural de

Detroit é deveras ambíguo. Diego é convidado a pintar um grande mural no

Rockefeller Center41 e o tema seria: Man at the Crossroads Looking with hope and

High Vision to the Choosing of a New Better Future (Homem na encruzilhada

olhando com esperanças e amplitude para a escolha de um futuro novo e melhor)

(Fig. 14). Não foram os Rockefellers que decidiram sobre a pintura, mas o

arquiteto que trabalhava na parte construtiva da empresa; no entanto, estavam

cientes da posição política do artista.

O mural foi acertado para estar pronto em 1o de maio, dia do trabalhador,

e Diego aprontou uma das boas: o mural, com o tema do homem olhando para o

futuro com a esperança de um mundo melhor, foi feito - Um mural com um

trabalhador no centro de controle de uma máquina. No lado esquerdo, o lado

capitalista, um clube, um campo de batalha e um grupo de policiais controlando

uma mobilização de desempregados; do lado direito, a cena socialista, com atletas

39“Anos antes (enquanto estudava arte em Paris), eu imaginara o mural como a forma de arte da sociedade

industrial do futuro.” Veja-se em FOARD, Scheila Wood; PIETRAS, Jamie. The great Hispanic Heritage: Diego

Rivera. 2nd Edition. New York: Infobase Publishing, 2010. 40Aqui e lá. 41 Rivera já havia caricaturado o Rockfeller de maneira crítica em um conhecido mural da Cidade do México.

55

mulheres no estádio, celebração do dia do trabalho e aliados do futuro dando as

mãos: americanos, africanos, russos e o líder comunista, Lênin.

Os Rockefellers pediram para que ele substituísse a cara de Lênin por

alguém desconhecido. Mas Diego preferiu ver o mural destruído; ele até sugeriu

que trocaria a imagem americana por uma cena de Abraham Lincoln, que aboliu

a escravidão, mas não retiraria Lênin. Bem, o mural foi enviado para o Museu de

Arte Moderna e, no ano seguinte, totalmente destruído.

Figura 14 - Homem na encruzilhada olhando com esperanças e amplitude para a

escolha de um futuro novo e melhor.

Fonte: Livro - The great Hispanic Heritage.

Rivera voltou ao México meses depois, quando o dinheiro acabou. Estava

desolado, mas decidido a continuar pintando. “For i am not merely an ‘artist’ but

a man performing his biological function of producing paintings, just as a tree

produces flowers and fruits”42. (RIVERA, In: MARNHAM, 2010, p. 1). Diego tinha

paixão por indústria, e durante a Grande Depressão, em 1933, nos EUA, foi

convidado pela Ford Motor Company para criar um mural gigante com a

figuração do local de trabalho naquela indústria.

O muralismo combina os estudos acadêmicos europeus com os

ensinamentos indígenas, um contexto totalmente latino-americano. Em um

tempo de crescente debate sobre a arte revolucionária, nasce o movimento

mexicano, também chamado de Mexican Mural Renaissance.

42“Não sou meramente um ‘artista’ mas um homem performando sua função biológica de produzir pinturas, assim

como a árvore produz flores e frutas” (L.T.).

56

David Alfaro Siqueiros43 lançou o manifesto já sob influência de Rivera, e

argumenta que uma forma de fortalecer a arte é trazer valores da pintura

possivelmente perdidos e endossar com novos valores. Por exemplo, entender os

incríveis recursos humanos da arte indígena, de outros povos originários ou das

artes primitivas primordiais de tempos longínquos. Os muralistas recuperam o

trabalho de pinturas e esculturas de habitantes anciões Mayas, Incas, Zapoteca,

Azteca. Siqueiros defendia que a proximidade climática desses povos ajudaria a

assimilar a vitalidade de seus trabalhos e clama por uma produção de arte

universal.

O muralismo dirigia-se à história insurgente, ao presente da luta de classes

e ao futuro possível de sonhos e conquistas dos trabalhadores. Para os muralistas,

a arte era uma arma, a forma mural, de grandes dimensões e cores vivas, a arte

acessível a todas as pessoas. Era um tempo de ascensão do realismo socialista,

parte artística do processo revolucionário socialista, que, posteriormente, foi

tomado pelo poder burocrata e autoritário de Stalin. O realismo socialista, que

fortemente influencia o muralismo, pressupõe que a arte deve se espraiar por

toda a classe trabalhadora - a arte “pertence ao povo” e reflete um projeto

“vanguardista” de recondução da arte à práxis da vida.

O renascimento do muralismo pós revolução mexicana cria as bases

estilísticas e de inovação para a moderna cultura do mural. Nos EUA,

principalmente pelos murais sociais realistas, durante o New Deal, mais de 2.500

murais foram pintados com financiamento governamental. Quando se aproxima

o período da II Guerra Mundial, no entanto, o financiamento de arte social realista

é identificado com o totalitarismo soviético, enquanto o abstracionismo

expressionista, principalmente o de NY, como símbolo de liberdade individual

nos círculos de vanguarda. No início dos anos 1960, apenas a arte abstrata,

geométrica endossada pela crítica curatorial, era considerada arte.

Epopeia do Povo Mexicano, ou História do México através dos Séculos, é

um afresco do pintor mexicano Diego Rivera realizado na escadaria principal do

Palácio Nacional, entre 1929 e 1935 (Fig. 15).

43Em 1940, Rivera e Siqueiros estavam na ativa nos EUA. Durante 13 anos, a intermitente jornada de trabalho

tinha um sentido econômico pessoal, pela total falta de mercado no México para vender as obras. A primeira

galeria privada de arte mexicana abriu em 1935 e tinha os norte-americanos entre seus principais clientes.

57

Figura 15 - Epopeia do Povo Mexicano, ou História do México através dos Séculos, afresco de Diego Rivera.

Fonte: Livro - The great Hispanic Heritage.

Durante os anos 1960, uma nova forma de propaganda política surgiu no

Chile, que anos mais tarde serviria para trazer, de certa forma, arte àqueles que

não tiveram acesso a ela. A história muralista no Chile caminha da propaganda

política à arte política. Embora as primeiras paredes tenham sido pintadas em

58

1963, foi em 1968 que nasceu a primeira brigada muralista, a Brigada Ramona

Parra (BRP) (Fig. 16), cujo nome homenageia um jovem militante comunista

morto em manifestação realizada em Santiago em 1946. A BRP e o Catalão Elmo,

foram os pioneiros nas brigadas.44 A missão principal dos jovens que tomaram as

ruas era a de agitação e propaganda comunista.

Figura 16 – Manifestação da Brigada Ramona Parra (1972).

Fonte: Video - Brigada Ramona Parra - Rayando en la Clandestinidad45.

A BRP era formada por jovens militantes e a maioria dos estudantes

pintavam apenas à noite e com o aperfeiçoamento da velocidade, organização e

técnica, podiam em dois minutos e meio pintar uma parede de 30 metros. Cada

pequena brigada era composta de não mais do que 25 brigadistas, divididos em

traçadores, âncoras, enchedoras e máquinas de filetagem.

Alguns pesquisadores reconhecidos apontam dois marcos que podem ser

considerados como fundamentais para esse agrupamento:o Sexto Congresso da

Juventude Comunista do Chile, em 1968, da qual emanou-se a necessidade de

articular grupos dedicados à elaboração de propaganda; e a Marcha pelo Vietnã,

realizada em 1969, que contou com a participação de cerca de duas mil pessoas

que viajaram de Valparaíso a Santiago para exigir a libertação do país asiático.

Nessa demonstração, convocada por um dos fundadores das brigadas,

Danilo Bahamondes, os manifestantes foram em frente para realizar várias

intervenções gráficas na estrada que liga o porto à capital. No início, o trabalho

dos grupos concentra-se no desenvolvimento da quarta candidatura presidencial

de Salvador Allende e propõe a coligação com slogans pela Unidade Popular. Após

44 Os apontamentos históricos sobre as brigadas chilenas estão pautados em: DALMÁS, Carine. 2006. Brigadas

muralistas e cartazes de propaganda da experiência chilena (1970-1973). Tese (Doutorado em História Social) -

Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2006. 45 https://www.youtube.com/watch?v=sTMnEUcFWnM

59

a eleição de Allende, em 1970, as brigadas fazem desenhos coloridos e imagens

representativas da realidade dos trabalhadores, da família, da geografia do país,

dentre outros temas pictóricos, como forma de comunicar e celebrar a gestão

realizada pelo governo da época.

Como resultado dessas motivações, grandes murais foram feitos, os quais,

além de intervirem no espaço público, evocaram a experiência latino-americana

do muralismo. Sem dúvida, essas manifestações gráficas tornaram-se parte

importante do imaginário cultural da época.

Imediatamente após o golpe de Estado de 1973, as intervenções dessas

brigadas foram apagadas e vários de seus membros vítimas de perseguição

política. Por causa das dificuldades, que significaram o estabelecimento de uma

ditadura militar, o trabalho das brigadas foi limitado quase exclusivamente a

produções gráficas de pequeno formato, como folhetos, panfletos, cartazes, entre

outros, que circulavam dentro de um subterrâneo espaço limitado.

No final dos anos 1980, na véspera da realização do plebiscito de 1988, que

marcou o retorno à democracia, as brigadas retomam o espaço urbano. Daquela

época em diante, a BRP desenvolve um trabalho sustentado em diferentes

localidades do país. No seio da Juventude Comunista, essa brigada tem até hoje a

missão de fazer publicidade política a partir da criação de um discurso oposto ao

discurso dominante.

Figura 17 - Extramural Activity, 2013.

Fonte: Extramural Activity.

O Muro de Berlim (1961- 1989), um dos maiores símbolos da Guerra Fria,

simbolizava fisicamente a divisão ideológica da Alemanha Ocidental (capitalista)

60

e a Oriental (socialista), integrante do bloco da extinta União das Repúblicas

Socialistas Soviéticas (URSS).

Em 1984, Thierry Noir torna-se o primeiro artista a pintar ilegalmente o

Muro de Berlim. Esse ato rebelde inspirou outros artistas e, nos cinco anos

seguintes, o Muro foi coberto com camadas de obras de arte e imagens, criando

uma arte de protesto única, uma das maiores obras de arte pública e de rua do

século XX. Mais do que qualquer outro indivíduo, Thierry Noir deixou um

testemunho duradouro do poder do protesto artístico em nome da liberdade, ele

tinha o intuito de colocar a arte nas ruas e não somente fechada dentro dos

museus (Fig. 18).

Figura 18 - Muro de Berlim, 1985.

Fonte © Thierry Noir

A inevitável crise do Leste Europeu, emblematicamente simbolizada na

queda do Muro de Berlim, em 1989, envolve o chamado “campo socialista” no

todo. Evidencia um mote sustentado pelos apologistas conservadores de direita,

de propagação e disseminação ideológica do “fim da história” e do triunfo do

capitalismo como única alternativa para a humanidade. E você acha mesmo

possível apenas uma saída? O fortalecimento da ideologia do “pensamento único”,

sob a lógica do grande capital, volta-se para a sociedade da liberdade fundada na

lógica do mercado em detrimento da lógica dos direitos sociais.

Figura 19 - Meu Deus, ajude-me sobreviver a este amor mortal (trad.).

61

Artista Dmitri Vrubel (1990).46

Fonte: Imagem por Juliana Abramides, 2013.

Em outubro de 1979 comemorava-se o trigésimo aniversário da Alemanha

Oriental, o líder alemão Erich Honecker (imagem à direita) recebia os

“camaradas" socialistas. Quando o estadista Leonid Brezhnev chegou, ao se

cumprimentarem, os dois se abraçam, trocam tapinhas nas costas e um beijo

fraternal na boca, um tradicional cumprimento entre líderes socialistas, em casos

de profunda admiração, respeito e camaradagem mútua entre os líderes. Dimitri

Vrubel reproduziu a cena no graffiti (Fig. 19) do lado oriental de um pedaço

remanescente do Muro de Berlim.

46 Em um dos mais conhecidos graffitis do muro de Berlim, figura Leonid Brezhnev e Erich Honecker num fraterno

enlace, reproduzida a partir de uma fotografia capturada no 30o aniversário de celebração da fundação da República

Democrática Germânica.

62

Veremos, nas raízes da retomada de uso dos grafismos em locais públicos,

a expressão de tendências políticas e ideológicas que se manifestam pela

inconformidade com o poderio, a burocracia, o centralismo estatal, que se

materializam na militância pela reforma educacional, e culmina com a expressiva

greve dos trabalhadores em 1968, em Paris/França. Na revolta estudantil de 1968,

em Paris, o spray foi usado como forma de protesto contra as instituições

universitárias e manifestações pela liberdade de expressão (Fig. 20).

Figura 20 - “Sejam realistas, exijam o impossível”.

Fonte: razãoinadequada.com

Naquele maio, a pichação escrita em Paris torna-se arma de reivindicação

para comunicação, agitação e afirmação da revolta estudantil. Essa foi a primeira

manifestação histórica de escritos urbanos de importância no século XX.

Em Paris, os protestos de estudantes universitários e secundaristas

reivindicavam a reformulação dos currículos e a reforma do ensino, bem como

se contrapunham ao governo reacionário de Charles de Gaulle e à política

63

hegemônica do capitalismo no plano internacional. Balões pintados invadiram as

estações de metrô, ruas e universidades de Paris, com palavras de ordem

antiautoritárias; barricadas com até três metros de altura foram erguidas no

tradicional bairro do Quartier Latin. Maio de 1968 perpetuou as palavras de

ordem: é proibido proibir, escritas em muros de toda a cidade de Paris,

reverberada no Brasil na voz de Caetano Veloso, no início da Tropicália47.

Ali, os jovens apropriam-se da superfície da cidade enquanto suporte para

os protestos e a disseminação de ideais revolucionários. O destino ético da

comunicação estudantil volta-se à destruição da sociedade espetacular mercantil.

A poesia francesa estava nos muros da Sorbonne, que se transformaram em

painéis fundamentais de comunicação e disseminação dos ideais revolucionários.

Cada período tem a cultura que se vincula a ele, e maio-junho de 1968

apresenta características de contradições sociopolíticas que irrompe nas

mobilizações acadêmicas com questões filosóficas, intelectuais e estruturais. Em

maio de 1968, a guerrilha urbana marca os muros da universidade com palavras-

conceito; a visão ideológica está definida.

Algumas frases, em Paris, eram citações de autores e, outras, criações

anônimas que demonstravam o espírito de luta do movimento. As frases

conhecidas pichadas eram:

❖ “Abaixo ao burguês”;

❖ “Sejamos realistas, exijamos o impossível”;

❖ “Você está sendo intoxicado: rádio, televisão, jornal, mentira”;

❖ “A liberdade do outro amplia a minha ao infinito (Bakunin)”;

❖ “Abrir as portas dos asilos, das prisões e outros liceus”;

❖ “Insurreição pelo signo”;

❖ “É proibido proibir: lei de 10 de maio de 1968”.

Tal qual os cartazes de informação e propaganda e murais das brigadas

chilenas, as centenas de cartazes produzidos em Paris faziam parte de um

contexto de levante popular. Lá, a unificação popular tinha um direcionamento

partidário e de lutas por direitos sociais; aqui, a luta travada defende um novo

47Movimento de contracultura na música popular brasileira com influências musicais da bossa nova, do baião, do

rock inglês dos Beatles; influências plásticas de Andy Warhol e Hélio Oiticica e do cinema novo, principalmente

da vertente criada por Glauber Rocha. Para aprofundar-se no mundo tropicalista, leia Verdade Tropical, de Caetano

Veloso (2012), e Tropicália - uma Revolução na Cultura Brasileira, de Carlos Basualdo (2007)

64

mundo e luta pela unificação dos trabalhadores e estudantes. Os ateliês

produziram muito e com temáticas constantes como: a repressão policial; a

alienação promovida pelos meios de comunicação; a amizade entre os rebeldes e

a unificação. Os cartazes eram majoritariamente feitos com técnicas de silk-screen

ou serigrafia, método muito utilizado pelos construtivistas russos48 (Fig 21 a 25).

Figura 21 - La beauté - A Beleza Está nas Ruas.

Fig. 22 - Poder Popular. Fig. 23 - A polícia está nas belas artes. As belas artes estão nas ruas.

48 Para saber mais sobre 1968, leia: Como Incendiar um País, Editora Veneta.

65

Fig. 24 - Universidade Popular, Sim. Fig. 25 - Não à burocracia.

Fonte: Imagens reproduzidas de: Como Incendiar um País, Editora Veneta.

O movimento hip-hop ganha força, primeiro nos EUA, a partir da década

de 1970, enquanto uma mistura heterogênea de culturas africanas que vieram da

66

diáspora, espalhando-se em seguida para outras partes do mundo, inclusive o

Brasil desde meados dos anos 80. Marcado sobretudo pelo posicionamento

contestatório às desigualdades sociais e raciais, utiliza-se de gestos, escritas,

imagens, etc., apoiando-se em quatro figuras artísticas: o/a mestre/a de cerimônia

(MC), o/a disc-jóquei (DJ), o/a dançarino/a (b. boy/b. girl) e o/a grafiteiro/a. Sua

face mais expressiva, contudo, encontra-se no rap, poesia cantada que nasce da

junção do MC e do DJ. Além disso, o hip-hop revela-se como um espaço de uso

social da linguagem, envolvendo, desse modo, práticas de letramento.

O hip-hop é permeado por um potencial social que difunde a ideia de

emancipação a partir da manifestação artística do rap, do break e do graffiti. Desde

sua origem, o movimento sociocultural vem permeado de crítica social, luta

contestatória e pela emancipação negra. Advindo de guetos americanos e

praticado em comunidades periféricas, o hip-hop adquire um poder simbólico

global, que aglutina jovens em diferentes países, guardadas as particularidades

socioculturais, que apresentam o mesmo determinante estrutural, a sociedade de

classes, produtora da desigualdade, exploração, opressão e dominação social,

étnica, racial, de gênero, etária e de orientação sexual.

O hip-hop, enquanto estratégia contemporânea de enfrentamento à

desigualdade e exclusão social de jovens espalhados pelo mundo, e que se

presentifica desde a mundialização financeira e cultural do capital, é permeado

por um potencial social a partir da manifestação artística do rap, do break49 e do

graffiti. Desde sua origem, o movimento vem permeado de crítica social, luta

contestatória e pela emancipação negra. Advindo e praticado majoritária e

originariamente em comunidades periféricas, por jovens pauperizados, o hip-hop

adquire um poder simbólico global ao aglutinar jovens em diferentes países, a

partir de suas particularidades sócio-históricas e culturais, mas que apresentam o

mesmo determinante estrutural, a sociedade de classes, produtora da

desigualdade, da exploração, da opressão e dominação nas instâncias social,

étnica, racial, de gênero, etária e de orientação sexual.

O movimento é inerentemente constituído de linguagem política; usa a

comunicação como uma arma que provoca as pessoas e as faz pensar. Em um

49Ao contrário do que a maioria das pessoas pode pensar, no Brasil, o hip-hop desponta por meio da dança, do

break, Um dos responsáveis por sua difusão foi o b.boy (dançarino do break) Nelson Triunfo. Para saber mais

sobre o assunto, leia Hip Hop: a Periferia Grita.

67

passado recente, o hip-hop parecia ser passageiro; manifestação chata ou

barulhenta; uma algazarra da juventude festiva; mas, nos últimos 35 anos, a

cultura hip-hop emergiu da subcultura marginal para tornar-se fenômeno que

satura o mainstream (ditado pelo status quo) e tem impacto global na formação de

opinião e pensamento. O hip-hop faz uma longa viagem do Bronx, bairro

periférico de NY, constituído majoritariamente por negros e latinos pobres, para

o mundo. Segundo Todd Boyd (2002), a larga cultura que rodeia o hip-hop é ativa

e militante e emerge do contexto único afro-americano, que tal qual os

antecessores blues, o jazz e o soul, é uma cultura que dá a voz aos mais

empobrecidos na escalada social americana. Segue o autor:

Though the roots of the culture are informed by the African American oral tradition, as well as the lived conditions of poor Black and Latino youth in postindustrial New York, hip hop has been able to expand from this initial base, and has become, in my mind, a dominant generational voice throughout the world, be they gangbangers in South Central Los Angeles, Algerian immigrants in Paris, or blackface Japanese youth bouncing to the phattest track in Tokyo's Roppongi district, not to mention the proverbial suburban White teenagers or rural "rednecks" who also constitute a large segment of hip hop's consumer base. (BOYD, T., 2002, p. 15).

Embora as raízes da cultura sejam informadas pela tradição oral afro-americana, bem como pelas condições vividas pelos jovens negros e latinos pobres na Nova York pós-industrial, o hip-hop conseguiu se expandir a partir dessa base inicial, e se tornou, na minha mente, uma voz geracional dominante em todo o mundo, seja gangbangers (membro de um grupo de jovens violentos N.E.) no centro-sul de Los Angeles; imigrantes argelinos, em Paris; ou jovens japoneses negros saltando para a pista, no distrito de Roppongi, em Tóquio, para não mencionar os proverbiais adolescentes brancos ou rurais rednecks (pescoços vermelhos <lit> caipiras N.E.) que também constituem um grande segmento da base de consumidores do hip-hop.” (BOYD, T., 2002, p. 15).

A segregação dos guetos no bairro do Harlem e do sul do Bronx produziu

as condições para que o hip-hop surgisse ali com potencialidade. Nos EUA, na

década de 1960, prolifera-se a discussão sobre igualdade racial e cresce o moderno

movimento por direitos civis dos afro-americanos (1955 a 1968): Martin Luther

King50, Malcolm X, Panteras Negras, com propostas distintas, mas com o objetivo

50 Curiosidade: Martin Luther King leu e foi influenciado por Henry David Thoreau.

68

da luta para acabar com a segregação racial e ampliar os direitos da população

afro-americana51.

Em um de seus inúmeros discursos, Malcolm X diz:

It’s always very easy for us to be ready to move and ready to talk and ready to act, but unless we get down into the heart of the ghetto and begin to deal with the problem of jobs, schools, and the other basic questions, we are going to be unable to deal with any revolutionary perspective, or with any revolution for that matter. (MALCOLM X. The Worldwide Revolution. December 13, 1964).52

É sempre fácil estarmos prontos para agir e conversar mas a menos que adentramos o coração do gueto e comecemos a lidar com o problema de empregos, escolas e outras questões básicas, nós seremos incapazes de lidar com qualquer perspectiva revolucionária, ou com qualquer revolução. (MALCOLM X. A Revolução Mundial. 13 de dezembro, 1964).

Afrika Bambaataa, compositor, produtor e um dos criadores do

movimento e que já fora de gangues buscou a pacificação das disputas e juntou as

lideranças das gangues do Bronx e formou a Zulu Nation. O Dj e produtor criou

as bases do miami bass e do freestyle, além de ser o responsável pelo nome dado ao

movimento.

Na década de 1980 e início dos anos 1990, rappers escreveram letras

politizadas em reação às medidas políticas e econômicas, são canções como Fight

the Power, de Public Enemy; Who Protect us from You”, de Boogie Down; Sound

of da Police, de Krs-one; Raise the Flag, de X-clan; Panther Power, de Paris.

Músicas do gueto, protesto ou guerrilha (o nome do álbum de Paris, de 1994, é

Guerrilha Funk). O que demonstra uma emergência e insurgência de um hip-hop

inspirado por movimentos políticos. A busca das raízes africanas, a denúncia do

racismo, a rebelião contra as perseguições e brutalidades policiais. Por todo esse

período, o rap se aproxima da juventude desprovida de direitos muito mais do

que a igreja ou as organizações por direitos civis.

O sucesso comercial do rap consciente ajuda a incentivar o surgimento do

“raptivista” (rapper ativista). O que se passa é que a mídia captura e divulga essa

nova onda de jovens que detém a palavra e se posicionam como liderança, após a

geração que luta por direitos civis como artistas rappers e não enquanto líderes

políticos.

51Todd Boyd, no livro The New H.N.I.C.: The Death of Civil Rights and the Reign of Hip-Hop, sugere que black

power fez o que, posteriormente, o hip-hop continuou, ou seja, afastar-se do sentimento passivo do sofrimento. 52 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=M2E5IkJbEA4. Acesso em: 14 mar. 2019.

69

Sister Souljah escreve o rap The Hate that Hate Produced, em que diz: “Se

você tem algo a dizer fale e com autoridade, se não saia fora e fique quieto, temos

o poder de dizer a verdade e o que for necessário, de fazer o que deve ser feito.

[...] Eu sou africana primeiro”. Ela ganha a atenção nacional desde o início de 1990

e Bill Clinton, à época, retira a fala de Souljah de contexto e diz que ela está

advogando por violência contra a população branca.

É claro que a luxúria em torno da fama que assola a sociedade americana

imbrica no paradoxo entre ser liderança e ser disco de ouro e superstar, ao mesmo

tempo, o que vem se discutindo é que, em si, o hip-hop, sendo primordial e

originariamente uma expressão cultural formada com atitudes, valores, objetivos

e práticas da comunidade afro-americana, não tem, sozinho, a função de

impulsionar um movimento político ao mesmo tempo em que pode atuar na

esfera da conscientização. No conjunto de ações culturais, políticas e econômicas,

em estratégia pelos direitos de negros e latinos, o hip-hop se enquadra no

movimento pós direitos civis e, como diz Harold Cruse (1984), o movimento deve

ser combinado para ser bem-sucedido.

Sem romantizar o passado, é evidente que os jovens americanos negros e

hispânicos se organizaram em diversas instâncias na luta por direitos civis e

sociais e muitos morreram em tais batalhas. Os Panteras Negras, em 1969, tinham

uma plataforma com dez pontos estratégicos a serem conquistados. A geração hip-

hop, hoje, não tem uma organização nacional que promova o empoderamento53

negro com linhas estratégicas ou organizações engajadas ativa e legalmente para

superar as políticas públicas que afetam a vida dos negros americanos (BYNOE,

2004).

Mas, de que maneira, os ativistas, no hip-hop, demonstram que estão firmes

em práticas de incentivo às reparações históricas em que cada geração descobre a

sua missão (FANON, 1963) ? Então, o que leva essa geração à frente? É inegável o

potencial da disseminação e do diálogo sobre a constituição de cultura, mas há

impacto nas políticas e nos debates públicos? Não cabe, aqui, estudar, mas

reafirmar o papel da cultura no processo de conscientização e mediação de

53Aqui compreendemos a importância de empoderar-se com o intuito de a valoração vir acompanhada do

enfrentamento e também de questionamento do status quo e de um modo de sociabilidade. Parece ser ilusória a

ideologia da social-democracia de que é possível empoderar-se mediante a ofensiva neonazista - em que os mais

prejudicados são os negros e a comunidade LGBTQIA+, e da ofensiva do capital, que amplia a exploração,

prejudicando negros, imigrantes e mulheres.

70

conteúdos políticos, quando o rap e toda a cultura hip-hop, em todas as suas

vertentes, falam de desespero e niilismo, mas também de esperança e

empoderamento para que os jovens negros busquem um modo de vida, uma

profissão, ou mesmo uma forma política de justiça, reparação e igualdade étnico-

racial.

Paradoxalmente, esse entendimento de estética urbana de conscientização

também pode levar a imaginar como mudar o mundo, ou mesmo incentivar

formas retrógradas e de manutenção do status quo, quando boa parte de suas

manifestações, fundamentalmente quando falamos do rap, se referem e afirmam

a misoginia, a ofensa gratuita, ou trazem mensagens de ostentação ou puramente

materiais.

No Brasil, o hip-hop54 constitui-se enquanto movimento social “organizado

pelos jovens afro-brasileiros como resposta ao abandono social, à pobreza e ao

racismo” (AMARAL; CARRIL, 2015, p. 82). A juventude identifica-se com as

necessidades sócio-políticas estadunidense, principalmente pelo fator de

divulgação massificada da cultura pop e, hoje, fundamentalmente, o rap encontra-

se contraditoriamente nessa cultura. Interessa-nos ressaltar que, tendo em vista a

marginalidade racial e de classe brasileira, aqui, o hip-hop apresenta uma

preponderância principal de continuidade ao ativismo contra-hegemônico.

Desde meados da década de 80, principiado como um movimento no

centro velho de São Paulo e depois espalhado por toda a metrópole, desde sempre

por juventudes urbanas, na maioria, de negras/os e periféricas/os, o hip-hop no

Brasil combina e recombina as bases da cultura composta dos b-girls e b-boys na

dança, DK’s nas pick-ups, MC’s na poesia e grafitagem visual.

A luta cotidiana de desnaturalizar os preconceitos e enraizar políticas

necessárias para a melhoria de vida é conteúdo constante desta cultura urbana

enquanto espaço de afirmação e questionamento, quebra de padrões e criação de

novas narrativas. Estudiosa da cultura, a cientista social e professora Ana Lúcia

Souza55, considera que o Hip-hop é uma escola, ela diz:

Hip-hop é escola que consegue fazer o que a escola oficial ainda não sabe porque ignora as demandas da juventude, ignora as origens do Brasil, ignora a forΩça política e cultural das gentes que

54Apesar de fundamental, o assunto não é específico, na tese, assim sugerimos a leitura do livro organizado por

Mônica do Amaral e Lourdes Carril: O Hip-hop e as Diásporas Africanas na Modernidade: Uma Discussão

Contemporânea sobre Cultura e Educação. 55Doutora em linguística com a tese defendida na Unicamp: Letramentos de Reexistência: Culturas e Identidades

no Movimento Hip-Hop, 2009.

71

todos os dias enfrentam a beleza e a brutalidade do cotidiano. Na escola, nos corpos que lá estão, pode-se perceber a cultura Hip-Hop em movimento - indícios que mostram crianças e jovens dizendo de arte, história, sustentando a estética que positiva ser negro e negra e chamando-a para suas identidades. MAURO, 2016, p. 91).

A casa hip-hop56 é um exemplo de local comunitário e educativo de

reprodução da cultura hip-hop, localizada na periferia de Diadema, em São Paulo,

fundada pelo afro-brasileiro King Nino Brown, apresenta influência no

movimento negro americano. Desde 2002, o mesmo fundador forma a Nação

Zulu Brasil (após contato com Afrika Bambaataa em 1994), no intuito de ensinar,

no centro comunitário, os elementos da cultura e estimular a resistência negra nas

américas.

O rap nacional mantém um impulso de afirmação da consciência racial e

desigualdade social, contudo, alguns grupos ainda enfrentam a reprodução da

opressão de gênero, facilmente verificada em letras racistas. O Racionais MC’s é

um exemplo de grupo, nesses termos, que hoje em dia vem repensando a atitude

de objetificação da mulher, ao mesmo tempo, um dos grupos mais populares e

que, mesmo considerado famoso, ainda fala a voz da periferia, e mantém

identidade com seus territórios de origem. Não nos cabe trabalhar a

particularidade do rap, mas lembramos de uma figura ainda viva que estabelece

bem as conexões entre as marginalidades e os jovens afro-brasileiros por meio da

diáspora, o Emicida. O rapper afro-brasileiro, veio de um bairro pobre da zona

norte, desde criança esteve cotidianamente exposto à violência policial e ao

preconceito, além de presenciar corpos assassinados. O hip-hop têm sido

fundamental nesta luta contra a opressão e o racismo nos estímulo à identidade

racial e ao reconhecimento de si e dos antepassados enquanto belos, artísticos,

fortes, inteligentes, a valoração da vida de negras e negros por todo país. Em um

de seus raps, diz o Emicida:

Minha pele, Luanda Antessala, Aruanda Tipo T'Challa, Wakanda Veneno Black Mamba Bandoleiro em bando Qué o comanda dessas banda? 'Sa noite ceis vão ver mais sangue Do que Hotel Ruanda A era vem selvagem Pantera sem amarra Mostra garra negra

56 São inúmeras casas de cultura atuantes nas periferias, guetos e favelas, em toda a Grande São Paulo.

72

Eu trouxe a noite como camuflagem Sou vingador, vingando a dor Dos esmagados pela engrenagem Ceis veio golpe, eu vim Sabotage (Pantera Negra)

O ressurgimento do graffiti como expressão transgressora de mobilização

cultural e política desponta na Filadélfia/Pensilvânia - a gênese - (Fig. 26), depois

Boston/Massachusetts, NY/Nova York57 e em LA/Califórnia, influenciado pela

cultura hip-hop.

Fig 26 - Pier privado abandonado em Filadélfia.

57Hoje, em NY, o graffiti não é tão forte, se comparado a SP. No início desta pesquisa, estivemos por lá e

encontramos algumas tags em paredes externas que cercam algumas linhas de metrô e trem, principalmente na

direção do Brooklyn e para o Queen. E não é tão marcante, como é hoje na cidade de São Paulo, considerada a

capital do graffiti

no mundo.

73

Fonte: Imagem por Marissa C.

Tell me who’s gonna dream the impossible dream Of the beautiful cities and the island’s genes When your works of art brought into being All that the ghetto stopped you from seeing Bums on the sidewalk, garbage in the street Abandoned buildings, bricks of concrete (Grandmaster Flash and Melle Mel)58

Diga-me quem vai sonhar o sonho impossível Das belas cidades e dos genes da ilha Quando suas obras de arte trouxeram à luz Tudo o que o gueto te impediu de ver Vagabundos na calçada, lixo na rua Prédios abandonados, tijolos de concreto (Grandmaster Flash e Melle Mel)

58 Ouça em https://www.youtube.com/watch?v=LoQHL09L724.

74

Já em 1966, encontramos o artigo denominado: What the walls say today:

a study of contemporary graffiti59/O que as Paredes Têm a Dizer Hoje: Um

Estudo do graffiti Contemporâneo, com análise social do graffiti na região

metropolitana da cidade de LA.

Cada cidade oferece o contexto para a expressão cultural produzida.Nas

décadas de 60 e 70 as graffiti gangs começam a se mover ao longo do sistema

prisional na Filadélfia. A juventude do centro da cidade de começa a espalhar as

inscrições pela metrópole; nos ônibus, nas escolas, casas geminadas, estações

policiais. Surge o estilo philly wicket na década de 80, considerado vandalismo e

crime, feito nos becos, vielas, locais abandonados e bueiros da Filadélfia (Fig 27).

Figura 27 A e B - Estilo Wicket.

Fonte: Tone. Fonte: Naw.

O que faz dos writers e suas inscrições importantes, além da gênese, é o que

hoje vemos nos pixadores (também writers). Como os fora da lei orquestram e

calculam os métodos e as loucuras; começam a planejar o marketing da mídia de

si mesmo. O uso do spray nas escritas urbanas, traz agilidade e rapidez para os

grafismos.

Aqui, têm-se o avanço em direção daquilo que se torna a street art, ou arte

de rua60. Os graffitis - desenhos e escritos, nas laterais e dentro de trens e metrô -

, eram feitos desde o final da década de 1960 por grupos de latinos negros

pauperizados que pixavam, com radicalidade, signos, riscos trabalhados, símbolos

(Fig. 28).

59 Esse é o primeiro registro acadêmico mais antigo por nós encontrado sobre o graffiti contemporâneo LOMAS

H. and WELTMAN G. What the walls say today: a study of contemporary graffiti. Paper presented at the american

psychiatric association, Atlantic City, New Jersey, 1966. 60Helene de Nicolay, na revista francesa L’Art Vivant, de 1973, escreve: “Se você for a NY, evite os museus. Eles

não têm nada a mostrar. Ao contrário a arte está descendo nas ruas, e mesmo mais abaixo nos metrôs”. (FONSECA,

1982, p. 30).

75

Fig 28 (A e B) - trens em Nova York.

Fonte: Imagem de Bruce Davidson.

O embrionário movimento de escrever pela cidade têm nos traçados de

Tracy 168 (Fig. 29) forte referência. Aos 11 anos, ele começa a riscar os trens e se

torna um ícone no estilo wildstyle (Fig 30). A sua tag continha o número 168 por

ele gostar da sonoridade, apesar de morar na 165th.

Fig 29 - Tracy 168 .

76

Figura 30 (A, B, C) - Evolução do traçado wild style iniciado

por Tracy 168.

Fonte: @TRACY "168" WiLD STYLE.

O “vandalismo” em forma de graffiti atingiu o sistema de trânsito de NY,

cobrindo todos os metrôs com tags e grandes murais coloridos. Nem todos

gostaram da conquista do graffiti, nos metrôs. Desde a sua criação, a epidemia de

marcação de NY gerou um círculo de propagandistas da cultura que adotaram o

graffiti não apenas, mas por causa de sua natureza criminosa. “You hit your name

and maybe something in the whole scheme of the system gives a death

rattle"/Você marca seu nome e talvez algo em todo o esquema do sistema dá um

chocalho mortal, escreveu, esperançosamente, Norman Mailer, o publicitário

mais chamativo do graffiti, em 1973.

A segunda geração de traçados e da arte urbana são os graffitis inscritos nas

laterais dos vagões do metrô de NY, que se tornariam os mensageiros por toda a

trama viária urbana. Naquela linda cidade planejada, a cidade da maçã, plena de

cerejeiras e cheia de guetos, o graffiti torna-se um dos pilares do movimento hip-

77

hop, com a dança (break) e a música (rap). Um livro brilhante de fotografias de

metrô, de Henry Chalfant e Martha Cooper, publicado em 1984, tornou-se

conhecido como a “bíblia” do movimento dos graffitis, por ter inspirado jovens e

adultos em todo o mundo a desfigurar propriedades (Fig. 31).

Figura 31 - Vandalismo em forma de graffiti no transporte público de NY.

Fonte: Imagem de Martha Cooper (1984).

Esse foi o cenário até o surgimento de trabalhos, como os de Basquiat61. O

artista, quando colocava nomes na parede, formava poesias concretas; lembrava

de Prometeu e nomes de filósofos; com formas de memória, colocava palavras

no trabalho, como vindas na cabeça, coisas que havia lido e visto na televisão.

Usava a coroa como uma tag de graffiti, como consta no topo do lado direito da

Figura 32. A coroa era símbolo do copyright - direito autoral,, nos graffitis e nas

outras formas artísticas, Basquiat apresenta uma predileção por temas infantis e

tem muitas influências televisivas e da visualidade pop, apresentava uma fusão

gráfica de palavras, cartoons, misturas de conexões e anatomia humana e que

mostravam um humor típico.

Figura 32 - Jean-Michel Basquiat: Quality meat, pure meat (1982).

61Um artista de influência já aos 23 anos; morreu aos 28.

78

Fonte: Reprodução da exposição CCBB-SP (2018).62

A qualidade das inscrições novaiorquinas era tão surpreendente que o seu

valor estético passou a ser notado por apreciadores de arte e a inspirar artigos

elogiosos em diversas revistas de arte. Ali começam a trabalhar a impressão ótica,

por exemplo, fazendo uma porta em uma lateral de um prédio, embaralhando a

impressão de qual seria a entrada para o edifício.

O expoente do cenário da demarcação de territórios com nomes (tags) foi

um garoto de Manhattan, um office-boy de 17 anos, que morava na rua 183, no

Bronx e circulava de metrô pela cidade. Seu nome era Demetrius, mas ele passou

a assinar suas tags como Taki 183 (apelido para Demetrius em Grego) e essa

visibilidade chamou a atenção do jornal New York Times (21 de julho de 1971), que

o entrevistou. Ele não fora o primeiro mas a visibilidade midiática o impulsionou

a tornar-se ídolo e conquistou centenas de seguidores que igualmente queriam

sair do anonimato. Taki 183 foi elevado à condição de “pai” do graffiti nos EUA,

pois alastrou a sua marca por toda NY. Mesmo com o status obtido por Takis 183,

62 Exposição sobre o artista com obras da coleção Mugrabi. Centro Cultural Banco do Brasil (abr./jul. 2018).

79

tudo deveria ser feito com rapidez, ousadia e precisão, na produção do graffiti na

ilegalidade, o senso de perigo, a rapidez, um flash.

Foi em NY, no ano de 1975, a primeira exibição de Graffiti Art no Artists

Space. Os metrôs são pintados desde 1972. “Eu existo, vivo aqui, habito em tal rua.”

Essa foi a revolta da identidade, combater o anonimato. Os graffitis vão mais

longe no anonimato e não põem nomes, mas apresentam pseudônimos, numa

clara reversão de códigos.

A guerrilha contra o racismo, feita por meio da linguagem da dança,

música e das artes plásticas, teve radicalidade máxima nas inscrições feitas em

metrôs. As pixações no metrô apresentavam cores neons ambulantes pela cidade,

um novo tipo de intervenção diferenciado da cultura dominante naquele

momento histórico: artes de galeria e disco music63. Nos graffitis e inscrições

marcados pela cidade, não importava o que estava escrito; o significado das

palavras não apresentava importância semântica, diferentemente dos escritos

franceses do movimento político estudantil, no ano de 1968.

A linguagem fervorosa, com jatos de tinta marcados em vagões ou em toda

a extensão do trem não apresenta elitismo, nem é hippie e não há preço de exibição

para ser instalada nas melhores paredes de uma cidade. São ocupados gigantescos

murais de publicidade ou os luminosos em pontos de ônibus, em que deveria

haver indicação de horários e itinerários, incitando todos a se sentirem

inadequados, a não ser que comprem coisas.

Especialmente no Bronx, o uso de tintas spray inicia-se na mesma época

que a música rap, manipulado para “marcar” o nome em locais públicos seguidos

dos números das casas que moravam - as chamadas tags -, inicialmente nas ruas

de moradia e, depois, como marcas de visibilidade nos trens e metrôs

circundantes. As tags mostram quem é o autor, como escreve e como se expõe na

vida. O spray expressa-se em uma “contracultura” em sua ligação íntima com a

“poesia marginal”64. Em 1971 - 1972 TOPCAT 126, leva a escrita gangster Philly para

63 Gênero de música dançante popular na década de 1970. O estilo era tocado nas discotecas e teve raízes em

clubes de dança voltados para negros, latino-americanos, gays e apreciadores de música psicodélica, além de

outras comunidades na cidade de NY e Filadélfia, durante os anos 1970. 64“Principalmente POESIA MARGINAL mais avançada, porque grande parte dela é bastante conservadora, careta,

essa é a verdade.” “Eu comecei então a prestar um pouco mais de atenção e a perceber o spray como manifestação

válida da CONTRACULTURA na sua ligação íntima com a POESIA MARGINAL, principalmente POESIA

MARGINAL mais avançada, porque grande parte dela é bastante conservadora, careta, essa é a verdade.” (Décio

Pignatari, entrevista em setembro de 1981, apud CRISTINA, 1982, p. 72).

80

O Harlem. O seu estilo conhecido por "Broadway Elegant" ou Manhattan Style,

marca a primeira onda tipográfica da história dos graffitis de Nova York,

particularmente influente nas linhas de metrô da Upper West Side.

Em NY, especialmente no Bronx, as tags com nomes, feitas com spray, eram

para demarcação do local, símbolo de identidade e pertencimento territorial,

realizadas inicialmente nas ruas das próprias pessoas que pixavam: TAKI 183,

STITCH 1, Freddie 173, CAT 187, T-REX 131, SNAKE 1 e RAY-B 954. A

sobreposição de marcas sempre foi evitada. Nomes escritos justapostos,

representando as primeiras escritas feitas com spray, se tornam o primórdio do

graffiti (Fig. 33).

Figura 33 - Primeiras Tags em NY

Fonte: Documentário: Wall Writers: Graffiti in its Innocence.

Verifica-se a obviedade do porquê desde a reprodução excessiva de uma

mesma marca pela cidade, como a de Taki 183 (Fig. 33B) que, à época, podia ser

vista em cada esquina de NY, como mostra o documentário Wall Writers: Graffiti

in its Innocence. O filme mostra as raízes do pioneirismo na arte de rua: os

cadernos dos escritores, as primeiras telas, as propagandas em outdoors na época

e edifícios completamente cobertos por pinturas feita com spray.

Em 1977, Jenny Holzer começou a criar frases curtas e irônicas que não

eram poesia nem cabiam em livros. Por exemplo: “A propriedade privada criou o

crime”; “Quem pensa que é importante é louco”; “Divirta-se, já que você não

consegue mudar nada”. Sem saber bem o que fazer com sua produção, começou

a pregá-las nos muros. Mais tarde, chegou a fazer parceria com a legendária Lady

Pink, uma das raras mulheres a ascender no mundo do graffiti.

Nos graffitis produzidos em NY, as letras tomaram a forma de ilustrações

elaboradas com a inserção de cores e traços ousados, transcendendo assim a grafia

de uma expressão ou nome. Em NY, a guerrilha ocorre por meio da linguagem,

81

em tapumes, guetos, ônibus, elevadores, galerias, monumentos, caminhões e a

radicalidade máxima nos metrôs. O desenvolvimento dessa linguagem radical

caminhou para o que hoje conhecemos por street art, ou arte urbana, quando as

laterais de prédios começam a ser pintadas em maior escala e iniciam-se os

trabalhos de 3D, que são a evolução do animal style - as letras em 2D, tipicamente

americanas (Fig. 32). É a evolução da impressão ótica, visto que, por exemplo,

desenha-se um prédio na lateral de outro, e confunde-se a entrada real do edifício.

Figura 34 - Letra e desenho 3D (2018).

Fonte: Imagem de Odeith.

A intensificação da arte urbana na América Latina teve referência na

pintura de murais em espaços públicos, tradição nas zonas suburbanas e bairros

industriais iniciada com a prática da pintura mural mexicana a partir de 1910, que

trazia consigo forte apelo político e social e impulsionou o aparecimento de

82

diversas formas de arte em espaços públicos. O renascimento do muralismo pós

revolução mexicana cria as bases estilísticas e de inovação para a moderna cultura

do mural; nos Estados Unidos, principalmente pelos murais chicanos. Se hoje

temos a arte de mural como a grande arte das ruas também nas vertentes do

graffiti, pixo e estêncil muito se estende a influência potente do muralismo

mexicano.

Também no Brasil esta tradição influencia a intencionalidade de realizar a

arte para o povo como se nota nas pinturas de Di Cavalcanti e de Cândido

Portinari (Figs. 32 e 33), ambos se dedicavam aos temas da cultura e história

brasileira, na chamada à participação para a construção de um mundo melhor. O

muralismo brasileiro apresenta um sensível reflexo condensado do momento

contemporâneo de desenvolvimento das cidades, além de estar referendado no

movimento histórico mexicano, vincula-se às tradições de comunicação

comunitárias que acontecem nas festas e folguedos populares, folclóricos e

religiosos. O muralismo brasileiro utilizou espaços públicos e esteve atrelado à

expansão urbana, tal qual, hoje os murais ocupam a cena da grande capital do país

e suas linguagens se espraiam mundo afora. O surgimento de propostas

gigantescas, tal qual o mural de azulejos de Cândido Portinari, destinado ao prédio

do Ministério da Educação com colaboração de Le Corbusier, Lúcio Costa e Oscar

Niemeyer, afirma também uma proposta de modernismo na arquitetura.

Figura 35 - Mural projetado por Di Cavalcanti na fachada do prédio localizado no vértice das ruas Martins Fontes e Major Quedinho, na região central

no centro de SP (1954).

83

Fonte: Imagem: @obviousmag. Figura 36 - Descoberta do Ouro (1941) Pintura mural a têmpera. Washington, D.C. Obra executada para decorar a Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso, Washington.

Fonte:@artemuralbrasil.

Os desenhos e grafias de letras e tipologias singulares em espaços públicos

teve também uma importante passagem no contexto político em São Paulo desde

84

o período da autocracia burguesa (a ditadura civil militar) a partir de 1964, como

afirma Abramides (2018, p. 10):

A convicção política e ideológica tomava conta de corações e mentes dos jovens estudantes que se reuniam e saiam às ruas de forma organizada, com panfletos, faixas, pichações e bolinhas de gude para jogar nos pés dos cavalos das tropas policiais, bem como lencinhos com éter para se protegerem das bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral nas passeatas, barricadas e outras mobilizações de rua. As manifestações ocorriam no centro de São Paulo e em bairros com aglomerações populares como em Pinheiros, no Largo da Batata, e em Santo Amaro, no Largo 13, em que juntamente com operários(as) e outros(as) trabalhadores lutavam contra o arrocho salarial e com solicitação às pessoas para que aderissem à luta com palavras de ordem que se sucediam ininterruptamente: “você aí parado também é explorado”, “abaixo a repressão mais arroz e mais feijão”, “vai acabar, vai acabar, a ditadura militar”….

Na luta de resistência à ditadura no Brasil e em toda América Latina, os

movimentos sociais utilizaram os suportes da rua com pichações em estátuas e

muros para divulgação de frases contestatórias e de incitação à luta para derrotar

os golpes militares no continente (Fig 37).

Figura 37 - Pichação feita por estudantes.

Fonte: Acervo Estadão.

O ano de 1968 representou época de muita efervescência e combate, em

que os estudantes de Paris, com barricadas nas ruas, expressaram radicalidade na

luta contra a Guerra do Vietnã impetrada pelo imperialismo norte-americano,

seguidas de grandes mobilizações contra o estado capitalista de exploração e lutas

85

específicas em defesa da educação pública, estatal, livre, gratuita e universal. Esses

acontecimentos tiveram influência marcante para a ação estudantil em nosso país,

manifestadas coletivamente, na particularidade da luta contra a ditadura militar-

empresarial e a superexploração dos trabalhadores, no processo de

desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo entre os países centrais e

periféricos em que a América Latina encontra-se inserida.

Cristina Fonseca65, pioneira na abordagem sobre escritos nas ruas, na

década de 70, aborda as marcas66 de letras na cidade enquanto poesia concreta.

Primeiramente, o que chama a atenção da documentarista e escritora é que,

diferentemente das pichações de protesto comuns na época, como: “Democracia

Já!”, a linguagem era singular, rebelde e muito criativa, que brincava com as letras

integradas ao espaço público67, “se por exemplo os grafiteiros enxergassem na

sombra da árvore, dois olhos, eles completavam com a boca e nariz”.

Figura 38 – Pichação de protesto.

Fonte: Acervo Estadão.

65Cristina Fonseca, escritora e documentarista, fez faculdade de Letras, na USP, e de Jornalismo, na Cásper Líbero.

Mestra e doutora pelo programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, orientada pelo professor Arlindo

Machado. 66As inscrições aqui trabalhadas estão em ambientes externos, acessados por qualquer transeunte, mesmo

reconhecendo que essas expressões ocorrem em banheiros, espaços internos de escolas e universidades e

transportes públicos. 67Entrevista realizada pela pesquisadora com Cristina Fonseca, no dia 11 de abril de 2019.

86

Como era rápida, a linguagem era muito concisa, mas tinha conteúdo; a

linguagem era icônica como a poesia concreta, e para a autora é como se essa nova

forma de inscrições nas ruas tivesse a influência da poesia concreta, como, por

exemplo, o escrito nos muros em 1981: “So, So” (somente sou, só sou, estou na

minha). Na década de 1980, a poesia formada pelo acaso, nos muros de São Paulo,

parecia, aos olhos de Fonseca, um “jogo lúdico de linguagem”; a valorização do

“signo”; a exploração da sonoridade e objetividade das palavras; a busca por uma

semântica extrema; um gosto mudado, a “linguagem da cidade”. A autora chama

de poesia do acaso68 as obras abertas casuais, feitas por estudantes, inscrições que

estavam “à margem”69 nas proximidades da Universidade de São Paulo (USP) e da

Pontifícia Universidade Católica (PUC) e talvez por isso possivelmente uma

influência da poesia concreta (Fig. 39).

Figura 39 - Exemplo atual de poesia nos muros (2019)

Crédito de Imagem: Simone Sapienza.

68 Título do livro-objeto: Intersemiótico com Interação de Mensagens Verbais e Não Verbais (1982), de Cristina

Fonseca. 69 Diferente do que é a poesia marginal, de influência beatnik.

87

No início dos anos 70, as poesias e frases invadiram os muros perto das

universidades, ruas da Vila Madalena, com inscrições anônimas surgidas na

madrugada70:

❖ Ventos estomacais moverão moinhos nos planaltos centrais;

❖ Não basta cuspir, temos que vomitar;

❖ A boca que tanto beijei agora me nega um sorriso;

❖ Mais vale ser um bêbado conhecido do que um alcoólatra anônimo;

❖ Os mortos fora do cemitério, a terra para quem a trabalha.71

Também na mesma época tem outras inscrições com recados e trocadilhos

descontraídos, como:

❖ Fumaça na Cabeça,

❖ Gonha mó breu.

O graffiti e o pixo despontam, em São Paulo, marcadamente, a partir de

1979, e determinados grupos e sujeitos passam a expressar publicamente

inquietações e insatisfações diretamente vinculadas às desigualdades social e

racial. Os graffitis têm sido desde então happenings, teatro urbano escritural

(Décio Pignatari), performances: tem a escolha do local para o ato, o material, o

risco, a fuga da polícia, a adrenalina-emoção.

No desenvolvimento da linguagem gráfica, de desenhos e letras nas ruas,

encontramos alguns desenhos que reproduzem quadrinhos norte-americanos e

desenhos kitsch que trabalham com uma influência de segunda linha das artes

plásticas; existe também o mural meramente decorativo72; e, ainda, alguns

grafiteiros da era pós-graffiti tornam-se institucionalizados ou conhecidos e

referendados, a ponto de terem espaços públicos liberados para as suas

composições, como é o caso do Kobra, mais ligado à arte de mural, e dos Gêmeos,

ligados à linguagem do graffiti. Já as letras, ou são de negação, ou afirmação

política, e poemas e frases de efeito, enquanto as pixações são as grafia que vem

das tags americanas e que, no Brasil, atingem uma peculiaridade própria, ao se

70 Em 1972, o arquiteto Maurício Fridman pinta o muro de sua casa e parte da calçada com cores berrantes e é

processado. Foi a primeira experiência documentada em São Paulo de utilização de muros externos para pintura. 71 Frase retiradas do livro: Alex Vallauri da Gravura ao graffiti (2013), de Beatriz Rota-Rossi. 72 Aqui vamos desconsiderar os rabiscos sem prévia ideação, ou seja, rabiscar o nome ou qualquer outro símbolo

sem preocupação com a linha, o espaço, etc.

88

tornarem escritas singulares de código e guerrilha do signo, como veremos mais

à frente.

A escola de graffiti, em São Paulo, inicia-se com Alex Vallauri73 – o mais

famoso artista de rua na década de 80; John Howard e Maurício Villaça que

estavam afinados com a tradição contestatória do maio de 68. Alex Vallauri inicia

seus trabalhos nas ruas com o uso de desenhos em máscaras a forma da bota, ele

já tinha prática com estêncil e xilogravura e utiliza a forma de máscara positiva

para reproduzir desenhos nas ruas. As figuras (Fig. 41) eram também estampadas

em serigrafia em camisetas, na ideia de completude do graffiti ambulante, dizia

Vallauri: “Quero deixar a cidade mais bonita, soltar a imaginação das pessoas,

diverti-las” (apud ROTA-ROSSI, 2013, p. 159).

Figura 40 – A arte do graffiti é divulgada Figura 41 – A bota (Alex Vallauri, 1979).

em jornais.

1o.4.1982 27.3.1988

Fonte: Acervo Estadão. Fonte: ROSSI, 2013.

73Nascido no norte da África, ainda adolescente, Alex Vallauri começa a desenhar pelas ruas de Buenos

Aires/Argentina, à margem sul do Rio da Prata. “Eram anos de radicalismos, de efervescência cultural e de defesa

de ideias. Os costumes eram colocados de pernas pro ar. Caíam mitos, valores e normas do passado. Discutia-se

sobretudo nas escolas, nos bares, nos sindicatos.” (ROSSI, 2013). Alex convive e expressa seus trabalhos artísticos

na Europa, Argentina, Brasil e EUA; seus graffitis de rua são expostos em Buenos Aires, São Paulo e NY.

89

Na sequência Tupinambá e Rui Amaral que por ser pioneiro do graffiti no

Brasil, um ícone da arte urbana, seu painel, no início do túnel entre a rua da

Consolação e a avenida Paulista, é preservado desde o ano em que foi feito,

enquanto outros graffitis no mesmo trecho são frequentemente alternados (Fig.

42).

Figura 42 - Graffiti feito por Rui Amaral, em 1992, no Buraco da Paulista.

Preservado e conservado ano a ano por ter se tornado patrimônio histórico para os grafiteiros.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides ( 2017).

Segundo Celso Gitahy, artista urbano desde a década de 1980, o graffiti legal é

o mural; o que marca o graffiti é a ilegalidade e não a estética. “[...] o graffiti

verdadeiro, underground nunca vai morrer. O que está acontecendo hoje é uma

outra coisa, o street art” (Entrevista em 2017). Isso está explodindo no mundo.

Celso Gitahy74 é artista paulistano, com formação acadêmica; além de

participar de mostras em galerias e museus, utiliza o espaço público como suporte

74Celso Gitahy: graduado pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo; mestrado em Arte Contemporânea

e Docência no Ensino Superior pela Universidade Camilo Castelo Branco. Inicia sua produção artística na década

de oitenta, participando de salões de arte contemporânea com desenho, pintura, instalação e atuando na cidade de

São Paulo com graffitis. No início dos anos 90 cria, com o apoio da Secretaria Municipal de Educação de São

Paulo, o projeto: O Graffiti é Legal, com o objetivo de transmitir conhecimentos e experiências artísticas a jovens

estudantes da rede pública de ensino, chegando a obter atenção das principais mídias escritas e eletrônicas do país.

Seu universo de imagens é composto por ícones de consumo misturados com o Homem e a natureza, criando

90

para o desenvolvimento de sua obra desde a década de oitenta. Seu universo de

imagens é composto por ícones de consumo misturados com o Homem e a

natureza, criando metáforas visuais com nuances críticas, irônicas e bem

humoradas principalmente a partir do estêncil. Em seu repertório imagético, se

destacam o Tvnauta (astronauta voador com cabeça de televisão) e as Pílulas

coloridas (Fig. 43) denominadas pelo artista como: “Estimulantes visuais".

Figura 43 - Beco do Batman, Vila Madalena.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2019.

O estêncil é uma técnica de pintura utilizada para aplicar um desenho sobre

qualquer superfície, com o uso de tinta, aerossol ou não. Feito com papel, plástico,

metal, ou acetato, tem boa durabilidade e é cortado com facilidade, para fazer a

forma do desenho. Sua aplicação teve início nos países orientais, na China e no

Japão, nos anos 500 a.C., utilizado com elementos naturais, como folhas e rochas,

para fazer máscaras das partes que não podiam ser cobertas por tinta. Durante a

Segunda Guerra Mundial, teve seu uso ampliado, para fazer intervenções urbanas.

A técnica foi muito utilizada para fazer propaganda da guerra.

O estêncil serve de matriz para impressão por mimeógrafo e é a base da

pintura serigráfica. Nos dias atuais, o Stencil Art tornou-se um novo movimento

artístico, urbano, feito na rua e para a rua, com desenhos cada vez mais

metáforas visuais com nuances críticas, irônicas e bem-humoradas. Entre outros artigos e textos importantes sobre

o tema: Autor do livro: O que É Graffiti, da Coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense. Participou de várias

exposições dentro e fora do Brasil, em países como França, Hungria, Austrália, Alemanha, Estados Unidos, entre

outros. Atualmente, além de trabalhar com galerias de arte, continua utilizando o espaço público como suporte

para suas obras. Vive e trabalha em São Paulo, capital.

91

elaborados, com cortes eletrônicos, que possibilitam muito mais criatividade ao

artista. Hoje, as pinturas com estêncil têm várias camadas e cores, tornando as

pinturas realistas de alta qualidade. Por vezes, é difícil saber se a pintura foi feita

com estêncil ou a mão livre.

As máscaras têm seu valor, mas se distinguem da técnica e habilidade

necessárias à realização do graffiti. Ainda no final da década de 70, alguns poetas

se tornam grafiteiros, como Walter da Silveira, um artista intermídia que busca as

relações semânticas e sonoras, unindo palavras distintas da cultura pop. Seu

primeiro poema visual, em 1978, se tornou um icônico graffiti em SP (Fig. 44) e

chegou a fazer parte da capa da revista Veja.

Figura 44 - Foto reprodução de graffiti de Walter da Silveira .

Fonte: Caixa Cultural Brasília, exposição em 2014.

O Beco do Batman (Fig. 45) ganha vida a partir do final dos anos 80, com

pixadores e grafiteiros, época em que ambas as expressões eram transgressoras

por aqui. Um dos primeiros desenhos ali encontrado foi de um homem-morcego

(batman) dos quadrinhos, na sequência influências cubistas e psicodélicas foram

surgindo. Rui Amaral e John Howard começam a grafitar por toda a vila

madalena, ocupam o beco no sentido de deixar mais bonito um local que estava

92

sem visualidade. Naquela época foram diversas vezes presos e o John Howard fez

até um graffiti na delegacia.

Hoje, o Beco é um local com todas as paredes grafitadas, se tornou ponto

turístico com bancas de venda de bijuterias, artesanatos e peças de arte; por ali

encontra-se também restaurantes, cervejarias, locais para shows gratuitos e uma

vitrine dos principais grafiteiros do Brasil. A Vila Madalena é um dos principais

bairros boêmios e de circulação cultural em SP e o Beco é uma galeria a céu

aberto, tal qual o District Art, em LA, com mais habitabilidade e circulação.

Figura 46 - Beco do Batman.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2019.

93

75

O jovem de 20 anos, Khaled Said, foi torturado e morto pela polícia

truculenta do regime ditatorial de Hosni Mubarak (1981 a 2011), na Alexandria, em

6 de junho de 2010. Cinco dias depois, surge a página do Facebook denominada

Somos Todos Khaled Said, que ganha popularidade instantânea e desempenha

um papel decisivo na organização dos protestos de 25 de janeiro, no Egito (Fig.

47).

Figura 47 - Celebração da cidade de mártires (trad. nossa)

Reprodução do livro de Hamdy e Stone (2014).

75 Tunísia, Líbia, Argélia e Síria também estiveram em processo de rebelião por libertação, no mesmo período.

Ressaltamos que essa onda de mobilizações árabes inspirou uma série de outras mobilizações:

- Maio de 2011, uma multidão tomou a Plaza de Madrid de Puerta del Sol;

- 1o de outubro de 2011, Occupy Wall Street;

- 14 de fevereiro de 2011, Ocupação do Capitólio de Madison, Wisconsin/EUA;

- 15 de maio de 2011, ocupação por 44 dias da Praça da Catalunha em Barcelona;

- 15 de junho, mobilização da Praça Syntagma em Atenas.

94

O criador da página é preso e depois solto, fato que também incita as

mobilizações. Após o período de eleições fraudulentas para o parlamento, em

dezembro do mesmo ano, a página do Facebook faz uma chamada para uma

celebração especial no dia da polícia - 25 de janeiro de 2011 -, que, na sequência,

é chamado de dia da revolução. O dia, propositalmente escolhido, marca o início

da revolução de 18 dias contra o governo de Mubarak. A praça Tahrir se torna o

centro de encontro em que ao menos 50 mil protestantes tomaram as ruas do

Cairo, além de milhares em outras cidades. Os ativistas divulgam as formas

específicas para se proteger contra a polícia truculenta.

Milhares de muros, mobiliários públicos e caminhões são ocupados pela

arte de rua, por todo o Egito; a poesia e a música também acompanham as ações

da juventude insurgente. Foi uma explosão nas ruas, com gigantes murais

faraônicos, islâmicos e também com influência da arte moderna. Todo o processo

revolucionário deu-se no âmbito das ruas da cidade do Cairo e da Alexandria,

independentemente da classe política tradicional, da teoria e da academia. A arte

estava sendo suporte para uma crítica e transformação de um tipo de sociedade

marcada por um longo período ditatorial.

Durante 18 dias e noites, quando a angústia, o medo e a revolta insistiam

em acampar no meio de Tahrir, milhares de egípcios buscavam inspiração no

poeta Ahmed Fouad Negm (1929-2013) e recitavam um de seus mais famosos

versos: “Os homens corajosos são corajosos. Os covardes são covardes. Venham

com os corajosos, juntos, até a praça”, clamavam.

Antes do período de rebelião, havia rabiscos e tags pela cidade do Cairo e o

uso majoritário de stickers (adesivos) e estêncil - marcas registradas de campanhas

publicitárias e políticas já familiares para a sociedade. Além de graffitis para

celebridades, ídolos, ou esportistas (Fig. 48).

95

Figura 48 – Reprodução de stickers, marcas e graffitis expostos na cidade do Cairo.

Fonte: Reprodução do livro de Hamdy e Stone (2014).

96

No processo de rebelião, existiam demandas claras que também foram

tomando conta das comunicações visuais:

❖ A queda do regime de Mubarak;

❖ O fim da lei de emergência;

❖ Liberdade;

❖ Justiça;

❖ A formação de um novo governo não militarizado;

❖ O gerenciamento produtivo de todos os recursos egípcios.

Os protestos continuaram diários e, no oitavo dia contínuo de lutas, mais

de um milhão de pessoas estavam nas ruas. A batalha pacífica enfrentava a

truculência do poderio militar com tanques de guerra nas ruas (Fig. 49).

Figura 49 - “Abaixo o tirânico; abaixo o regime” (trad. nossa), slogan escrito em um veículo policial queimado.

Fonte: Reprodução do livro de Hamdy e Stone (2014).

97

Em 11 de fevereiro de 2011, os bravos jovens reunidos na praça central do

Cairo forçaram a renúncia do ditador Hosni Mubarak, após quase três décadas de

governo. A Primavera Árabe parecia florescer a democracia em um país sedento

por liberdades civis. Entre 2011 e 2012, a nação foi controlada pelo comandante

supremo das Forças Armadas, em prosseguimento ao controle militar imposto

em 1952

Em 30 de junho de 2012, o primeiro presidente eleito do Egito, o islamita

Mohamed Morsy, assumiu o poder em 30 de junho de 2012; foi um produto de

acordo do complexo militar com os muçulmanos. Um ano depois, foi derrubado

por uma junta militar articulada por Abdel Fattah Al-Sisi, líder dos golpistas, que

assumiu o comando do país e, em junho de 2014, depois de 10 meses, Al-Sisi

“ganha” a eleição, com 97,6%, dando início a uma ditadura ainda mais repressiva

do que todas as outras na história do Egito moderno.

O sopro de liberdade e as aspirações, perseguidos pelos jovens de Tahrir,

foram iniciados por brutais assassinatos e deram sequência aos mártires que,

infelizmente, com toda a luta pacífica por parte dos civis, deram lugar a um

regime autocrático, com prisão arbitrária, sumiço de jornalistas e opositores, e

pena de morte. Hoje, mais de 61 mil egípcios estão nas prisões, apenas por suas

convicções políticas.

Figura 50 – Arte de rua na revolução egípcia, Grafitti as a Weapon - Flyer feito por

Ganzeer.

Fonte: Reprodução do livro de Hamdy e Stone (2014).

98

Figura 50 - Khaled Said (por Brian T. Edwards, Tahrir outubro de 2011) e a frase: “Fim de circulação” (trad. nossa).

Fonte: Reprodução do livro de Hamdy e Stone (2014).

99

A diversidade de comunicações visuais que usam a rua como suporte -

stencil, sticker, lambe-lambe, letreiro, graffiti, grapixo76 (Fig 51) e pixo -, dificulta o

entendimento gráfico urbano; numa mesma parede, pode-se encontrar uma

miscelânea de formas aleatórias; linhas e colagens sobrepostas, que se relacionam

com o ambiente urbano e por ele são nutridas.

Figura 51 - Grapixo. São Bernardo do Campo- Grande SP, 2018.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2018).

Aquilo que desconhecemos, é um todo caótico. Como compreender uma

frase, nas paredes do Líbano, sem conhecer sequer uma letra do alfabeto árabe, o

segundo mais usado no mundo depois do latino? Ao nos aproximarmos das

expressões gráficas, conhecemos as técnicas, os estilos, traços e, pouco a pouco,

76 O grapixo é uma mescla de graffiti com pichação. Utiliza-se mais de uma cor, no estilo de escrita, ou tag reto,

com contorno e preenchimento.

100

cada tipo de comunicação se diferencia, porém, a sua compreensão pressupõe o

estudo de cada linguagem.

O graffiti, no Brasil, divide-se em duas vertentes: o pixo e o graffiti; o

primeiro é um estilo de graffiti original de São Paulo.77 A principal diferença entre

os dois estilos de arte é que o graffiti está baseado em figuras e multicores,

enquanto a pixação é feita a partir de letras codificadas e em frequentemente em

monocromatismo. No Atlas Mundial de Arte de Rua e graffiti (2014) a pixação é

chamada de brazilian graffiti. Ambas as expressões têm influência do graffiti

estadunidense mas progridem para outros caminhos.

No graffiti mundial, particularmente nos EUA, a forma escrita (write),

expressa nas tags, são também as formas menos respeitadas na categoria graffiti.

As tags/os pixos, são o início do graffiti, a entrada na arte de rua para a grande

maioria mas muitos continuam na vertente da escrita e de maneira disciplinada

desenvolvem uma caligrafia autoral para escrever palavras muitas vezes criadas.

Aqui nos remetemos que a retomada das inscrições grafitadas, que de certa

forma nunca pararam, sempre alguém esteve por escrever os nomes pelas ruas,

árvores ou pedras. Mas enquanto expressão coletiva e marcadamente a partir da

década de 70 do século XX e em todo início do século XXI, essa forma de

comunicação jovem nasce juntamente ao período de crise econômica do

capitalismo. O graffiti e o pixo são uma expressão da classe trabalhadora

empobrecida dos grandes centros urbanos.

77Aqui usamos pixo como expressão de graffiti, a partir de escritas codificadas e que tiveram origem no tag

estadunidense, no desenvolvimento do tag reto paulistano e depois espalhou-se pelo Brasil adquirindo

particularidades na forma e chamamos picho (grafado com ch) às escritas em paredes com tipologia comum de

letra e fácil decifre. Seguimos a comunicação iniciada por Gustavo Lassala, no livro Pichação não É Pixação:

Introdução à Análise de Expressões Gráficas Urbanas (2010). O autor, no intuito de estudar a pichação no campo

das diferenciações da visualidade na cidade de São Paulo, faz uma diferenciação entre pichação e pixação, sendo

a primeira grafia relativa a quaisquer escritos urbanos e a segunda à típica intervenção gráfica paulistana.

101

São Paulo78 tem a maior extensão e concentração de artes plásticas urbanas

no mundo. Na década de 70, encontravam-se inscritas, em algumas partes da

cidade, grafias ordinárias, que aprendemos na escola depois de repeti-las tantas

vezes na aula de caligrafia. Na década de 80, o movimento da pixação delimita

espaço com atuação de indivíduos e grupos grafando tags, símbolos, pseudônimos

e logotipos. É quando começa a surgir a tag reta79, escrita peculiar e característica

da cidade, com letras alongadas e pontiagudas, pintadas com rolo ou spray e que

buscam ocupar o maior espaço possível do suporte. Diferencia-se das letras

desenhadas e o tipo de letra paulistana é único no mundo.

Figura 52 - Escrita peculiar da cidade de SP/SP, Rua Teodoro Sampaio, esquina com a Rua Cunha Gago.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2017).

78 São Paulo! Comoção de minha vida... Os meus amores são flores feitas de original... Arlequinal!... Traje de

losangos... Cinza e ouro... Luz e bruma... Forno e inverno morno... Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...

Perfumes de Paris... Arys! Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!... São Paulo! Comoção de minha vida...

Galicismo a berrar nos desertos da América! (Poema Inspiração, de Mário de Andrade, em Paulicéia Desvairada,

1922). 79O pixo reto, em São Paulo, começa com influência das letras de banda de metal, dos anos 80, e hoje apresenta

um conjunto de códigos e regras singulares.

102

A pixação é uma expressão cultural de comunicação que nasce nas

periferias de São Paulo, nos anos 1980, e se espraia para outras metrópoles

brasileiras. A pixação tem sua trajetória paralela ao movimento punk, e por muitos

anos esteve vinculada à disputa pelo espaço entre gangues80. Grafada com x, tal

qual pixe, antes mencionado, apresenta regras próprias, na visualidade que se

define entre a tipografia, a letragem e a criação de signos. O movimento

tipicamente periférico utiliza a cidade enquanto suporte midiático. Hoje são 10

mil pixadores ativos na cidade de São Paulo. O risco, a criação, a marcação de

território, a forma de se localizar no espaço-tempo (Fig. 53)

Figura 53 - Avenida Senador Queiroz nas proximidades da Avenida Cásper

Líbero - São Paulo.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2017).

A despeito de as tags, graffitis e pichos serem feitos nas grandes cidades em

todo o mundo, este tipo de graffiti (a tag reta ou pixo) é tipicamente paulistano,

uma vez que o traçado, a tipologia, os riscos assumidos para fazer as inscrições na

ilegalidade, como em topo, laterais e por vezes por todo fachada de prédios altos,

nasceram na cultura da metrópole paulistana.

80Devemos salientar que aqui não trataremos das Street Gang ou gangues de rua, por não ser objeto da tese.

103

Figura 54 - O pixo subverte a ordem da propaganda, é a mídia de si mesmo. Centro de SP.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2016).

É um movimento que é criminalizado, que é crime perante a lei. Então é um enfrentamento diário do Estado, isso já é ser, já é uma atitude política, é um ato político, você está afrontando o Estado e a sociedade de uma forma geral. [...] o muro é o maior símbolo da nossa segregação espacial né, cria fronteiras onde reforça diferenças. Então acho que a maior resposta pra segregação espacial que a gente vive na cidade de São Paulo é a pixação. (Djan, pixador e artista plástico, entrevista em 2017)81.

81 Entrevista realizada pela pesquisadora com o pixador e artista plástico Djan, em abril de 2017.

104

Cripta Djan82, brasileiro, jovem, negro, criado na periferia de Osasco, na

grande São Paulo, arquivista de documentos e grande conhecedor da pixação,

compreende que o pixo e o graffiti tratam da mesma coisa, porque a origem do

graffiti é o write (escrever), a primeira forma das tags nos EUA. E até hoje, nos

guetos, eles usam o termo “escrita”. No início, era só a letra, como o pixo aqui

também é, apenas com a diferença de que o graffiti foi absorvendo e

transformando a forma durante os anos 70 e o pixo foi aperfeiçoando a tipologia

e os signos.

Um dos modos de reconhecimento, na pixação, acontece por aquele que

grafar seu nome no maior número de lugares e em locais de destaque, como nos

topos de prédios, pois são os que ganham visibilidade e notoriedade, a isso eles

denominam ibope. É um movimento que tem seus próprios códigos de conduta,

pois criou um mecanismo de reconhecimento, memória, circuito e valorização

próprios. A legitimação acontece dentro do circuito por eles criado.

A quantidade de marcas e a diversidade de locais onde se pixa são fatores

de valorização, o que demonstra uma forma de deslocamento social pela cidade.

Nessa cultura particular de rua, existe um conhecimento geográfico da metrópole

para realizar novos pixos e reconhecer os pixos realizados. Outro valor da cultura

é a não sobreposição de um pixo por outro, algo que acontece também na cultura

do graffiti; os chamados atropelos se caracterizam por ofensa e, no passado, já foi

motivo de brigas que acabaram em mortes.

A busca de visibilidade, a necessidade de atingir fama, reconhecimento e

respeito do grupo social, estão entre as principais motivações dos pixadores e a

ação política pouco aparece enquanto atitude consciente entre os adeptos do rolê.

As modalidades são as formas de atuar na cidade com o pixo. Cada qual

escolhe uma. Existe um agrupamento de modalidades que nós consideramos

aventura: subir nos lugares, escalar, entrar em prédios driblando a segurança,

82Cripta Djan, como é conhecido na pixação (Cripta é o nome da gangue de que faz parte desde os 12 anos),

destaca-se nos cenários nacional e internacional a partir da notabilidade de ter sido bem-sucedido em todas as

modalidades do pixo, por abrangência e dificuldade dos locais acessados por sua escrita e por ter um conteúdo

político. Djan Ivson, além disso é artista plástico, vídeo-documentarista e um dos idealizadores das ações

realizadas na 28ª e na 29ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, que obtiveram grande repercussão e trouxeram

a pixação ao debate da arte e ao centro das atenções; ele pixou a obra do artista Nuno Ramos. Djan é figura

fundamental para esta pesquisa, e realizei, ao longo dos anos de 2016 e 2017, as entrevistas em que me apresentou

dezenas de pixadores/as e artistas; me forneceu material documental; e longas entrevistas, que se tornam base para

a produção textual de nossa pesquisa. Para saber mais sobre Djan Ivson Silva, busque novamente por Gustavo

Lassala: Em Nome do Pixo - A Experiência Social e Estética do Pixador e Artista Djan Ivson (2014).

105

subir ou descer de escadas, rapel, cordinha, etc e na maioria das vezes sem

equipamentos de segurança (Fig. 55).

Figura 55 - Pixadores caminham sem equipamento de segurança.

Fonte: Imagem por Ata.

O pixador vive a cidade, acompanha qualquer transformação cotidiana -

um muro ou poste novo -, isso porque a observação espacial e da arquitetura é

constante, na busca para encontrar espaço. Explora a cidade de outra forma; se

um prédio não foi construído para ser escalado, o pixador ressignifica os espaços:

Cripta Djan reflete sobre a fugacidade da inscrição urbana pixada: “a

propriedade privada é uma intervenção permanente no espaço público, diferentemente do

pixo que é uma intervenção efêmera”. Considerados locais de valoração positivo de

quem marca o alto do edifício, um pontilhão na rodovia; locais de alta visibilidade

e de difícil acesso; locais também que podem depois ser publicados na mídia

quando aparecem em foto de jornal ou na televisão. Quanto mais disseminada

pela cidade e em locais de visibilidade e dificuldade estiverem a sua marca,

melhor.

Uma prática de grupo, é calcular um espaço que possa ser ocupado e dividir

pelo número de presentes, assim se faz uma agenda. Uma agenda também pode

ser composta não no mesmo dia, em que cada pixador/a coloca a sua assinatura

em um espaço, sem justaposição com uma exposição de pixos em um mesmo

quadrante (Fig. 56).

Figura 56 - Agenda na parede com vários pixos justapostos.

106

Fonte: Imagem da Ata. (2019).

Também a ação de vandalizar e vivenciar situações de risco são

componentes dessa prática. Por vezes, parece uma competição esportiva, com os

desafios de escalada, acesso a alturas, quantidade de locais pixados, raciocínios

para entrar nos prédios sem ser pego.

107

O pixo talvez se coloque no âmbito do desprezo que a sociedade tem pela

subalternidade. E somente quem entende sabe o que nos muros está escrito. É a

voz dos sem voz; é o grito mudo dos invisíveis; é a criação de uma escrita cifrada

por quem não teve alfabetização corrente; uma escrita que despreza a sociedade

de uma forma geral, que somente pode entender se estudar a linguagem do pixo;

assim como, ao pegar um texto em libanês, que nunca estudou, você vai ter que

aprender a linguagem, a língua, para começar a compreender.

A composição social dos pixadores, organizados em gangues, outrora, ou

em grupos que realizam as práticas majoritariamente de forma ilegal e não

contratada, se constitui de sujeitos sociais pertencentes à classe trabalhadora,

inseridos ou não no mundo do trabalho, inscritos nos setores mais pauperizados

da população.

Em fins da década de 1980, por volta de 198883, já existia a grife “Os

Melhores”. Os primeiros pixadores surgiam: Bilão e Juneca; logo depois, Marcelo

Xuin, com a tag Ossos, e Tchentcho (Fig. 57), pioneiros e ícones em escrever na

modalidade de ponta-cabeça nos topos de prédios. Nos anos 90, Xuin foi o

primeiro pixador a deixar sua marca no Terraço Itália – um dos edifícios mais

altos do Brasil na época.

Figura 57 - Cartaz do grupo (grife) Os Melhores. Figura 58 - Tag do

Tchentcho.

Fonte: Imagem: Arquivo Cripta Djan

83 Entrevista com Tchentcho (disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0a4dVBWzKbQ. Publicado

em maio de 2015).

108

A tag Causa Maremoto estava por toda a cidade, nos anos 80. Assim como

o Cão Fila, mas aí é outro caso, porque era o dono de um canil que fazia

propaganda do estabelecimento. Mas ele acaba por incentivar mais pessoas a

escreverem nomes pelos muros, porque acreditavam que ele era alguém que

estava promovendo o próprio nome, e que era famoso. O próprio Juneca,

conhecido por todos na pixação foi influenciado pelo Cão Fila. Já na década de

50, os termos pixação e pixadores eram utilizados para referenciar as

propagandas de candidatos a vereador nas ruas.

A apropriação libertária do pixo incomoda porque vivemos numa

sociedade capitalista, totalmente materialista. Então, hoje, o bem material está

acima da vida. Um muro que não tem vida, uma coisa abstrata, é superficialmente

danificado, pois não é inutilizado. Uma porta pixada vai continuar abrindo e

fechando; é ainda uma porta, o que muda é a visualidade. “Há quem diga que

pixador, antes de tudo, é guerrilheiro.” (Cripta Djan). O pixo é uma degradação

simbólica de propriedades privadas, porque, de fato, não destrói, mas incomoda.

A sociedade materialista é a que mata por causa de uma batida no carro, como

segue Djan:

Então hoje a vida não vale nada, o que vale é o bem material então o ódio do pixo vem justamente disso desse apego ao meu, ah, meu muro, meu carro, né, meu prédio, e eles não entendem que todo esse meu deles tá ocupando o espaço que deveria ser público, entendeu? (entrevista em 2017).

Principal nome da década de 1990 na pixação, o #DI# começou a pixar em

1988, foi o primeiro a se arriscar para lançar nos topos de imponentes prédios

corporativos e instituições artísticas, como o Conjunto Nacional. No dia em que

pixou o prédio, ligou para a imprensa como se fosse um morador enfurecido

denunciando uma pixação; seu pixo foi parar nas manchetes de jornal. “O #DI# se

via como um esteta de vanguarda. Para ele, a pixação era a fronteira final do borrão entre

arte e vandalismo” (Djan, pixador e artista, entrevista em 2017).

#DI hoje já é falecido, mas seu pixo continua ali perto do terminal Bandeira,

que leva a população da zona sul para o centro. Um prédio visível da Sé (Fig. 59).

109

Figura 59 - Pixo de #DI em prédio perto do terminal Bandeira, visível da Sé

Fonte: Imagem de arquivo de Cripta Djan.

110

Já é de conhecimento generalizado a existência de estereótipos explícitos

relativos aos grupos de pixadores. A atitude hostil contra a ação de escritas em

locais públicos ou particulares, mas de visibilidade urbana, se investe de

argumentos conservadores, burgueses e de preconceito de cor e classe. Para os

que fazem o rolê, a ação é por protesto ou auto-expressão identitária, uma

maneira criativa de se aventurar na cidade, mesmo que para algumas pessoas seja

vandalismo (Fig. 64).

Tanto o desejo de embelezar um viaduto quanto o desejo de enfeiar a

cidade, e incomodar, são intervenções dirigidas mais ao presente do que à

memória ou ao futuro. Apresenta-se no belo e no feio a estética da contestação ao

real. Djan nos diz: “A pixação é a distopia, a sensação de que tudo vai ficar pior, que é

feio mesmo, afirmação do vandalismo, da ação agressiva. Falta de esperança no mundo.

Supera todos os limites de apropriação” (2017). A falta de esperança aponta para a

ausência de perspectivas reais em se lançar ao futuro. É preciso ser realista. Não

adianta sonhar com o que é feito de fantasia; querer o impossível; mas naturalizar

o horror, pois um prédio pega fogo, e pessoas nascem na rua. O pesadelo pode

ser imaginável, mas não o sonho.

Figura 60 - Pixo protesto Figura 61- Possíveis letras A

111

Fonte: Imagem: Ata.

De que maneira o poder instituído vai colocando as culturas em caixotes e

separando-as entre o que é bom e ruim? Por exemplo, o pixo que nasce colado ao

graffiti é ainda criminalizado e passa por um tratamento repressivo, com negação

da cultura. Ao mesmo tempo, mesmo considerado seu pioneirismo, têm-se uma

distinção moral no sentido da negação do pixo enquanto expressão cultural

genuína.

No Brasil, em São Paulo, a pixação e o graffiti ganham ênfase na década de

90, com inscrições de letras e desenhos em prédios e casas particulares

112

abandonadas. De maneira a transgredir a lei84 de proteção à propriedade privada,

jovens da classe trabalhadora criam marcas e reivindicam a existência e o direito

ao usufruto de qualquer espaço, público ou não.

A pixação e o rap sempre mantiveram uma atitude de claro antagonismo em relação às classes dominantes, uma proximidade ao ilícito e muita ambiguidade em relação ao consumo e à sociedade de massas. Embora a pixação compartilhe elementos essenciais da sociedade de consumo de massas - a produção de signos, a criação de marcas, a reprodução repetitiva de imagens -, ela nunca abandonou uma atitude de transgressão. (CALDEIRA, 2014, p.16, grifos da autora).

O ato de pixar é um crime e a pixação se coloca no local da reivindicação do

uso público da cidade. O pixo só existe porque tem muro e espaços segregados.

São Paulo é a cidade fortaleza. "O pixo é a expressão mais presente da cidade, é o sujeito

periférico gritando em cores. O público consumidor de Romero Britto nunca vai gostar nem

entender a gente." (Cripta Djan). De fato, é comum que quem faça grafitagem tenha

iniciado os caminhos na cultura das ruas na pixação, assim como, quem faz graffiti

fora do Brasil também iniciou com as tags. E ali é um início, e por vezes existem

muitas caligrafias ingênuas, no entanto, há quem migre para o desenho e quem

permanece a evoluir numa caligrafia própria, e isso exige muita dedicação e

disciplina.

Essa dicotomia entre pixo e graffiti, feio e belo é frequente no senso

comum e diversas tentativas de poder público ou atividades comunitárias

buscaram o caminho da “salvação do pixo”. Acontece que as culturas por mais que

tenham raízes semelhantes adquirem contornos distintos como as modalidades,

as formas de organização, o risco, a aventura e a forma. (Fig. 62). O pixador e

artista Cripta Djan reflete sobre esta dicotomia quando diz que:

O graffiti ele serve até como um parâmetro de demonização do pixo né, ele é apontado como uma cura né, parece que a pixação é uma fase primária do graffiti onde o cara realmente vai ta maduro um dia se ele virar grafiteiro, é até o próprio discurso do prefeito Dória85. [...] É a cura né, o graffiti é a cura da pixação. É apontado como a cura a sociedade é

84A prática do graffiti, realizada com o objetivo de valorizar os patrimônios público e privado, mediante

manifestação artística, com autorização do proprietário, foi legalizada em 1998.

85 João Dória, prefeito da cidade São Paulo nos anos de 2017 e 2018, depois abandona o cargo para concorrer ao

Governo do Estado de SP. Dória instaurou o programa "Cidade Linda" logo após sua posse, com o objetivo de

revitalizar áreas degradadas da cidade, teve como uma das ações a retirada de graffitis dos muros e de locais

públicos, inclusive graffitis que haviam sido financiados pela gestão anterior. O então prefeito também sugeriu

punições mais pesadas para quem realiza a arte urbana ilegal, declarando guerra principalmente aos pixadores,

declarando-os como bandidos.

113

muito comum você parar qualquer pessoa na rua perguntar se a pixação é bonita, você não precisa nem falar do graffiti, ela vai falar: não, a pixação é feia. [...] Então, já virou uma cultura (Djan, entrevista em 2017).

Figura 62 - “Não é graffiti. É um mundo propriamente nosso! (trad.).

Fonte: Frame do filme Pixo.86

O pixador que teve grande evolução na caligrafia e tem reconhecimento

entre os pixadores vem se apresentado em galerias com seu trabalho autoral

inspirado no universo da pixação mas sem misturar as doses, já que o pixo é só na

rua (Fig. 63).

Figura 63 - Peça artística de Cripta Djan, que já fez exposições individuais e cria a sua elaboração a partir do traçado da pixação

86 PIXO. Direção: João Wainer e Roberto T. Oliveira. 2010. Disponível em: https://vimeo.com/29691112.

Acesso em: 11 Jan. 2019.

114

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2017).

Djan participou da Bienal de SP em 2010 que resolve convidar 3 pixadores

após a invasão à Bienal em 2008, em que Cripta junto a outros/as 39 pixadores/as

intervém em andar vazio daquela Bienal destinado à participação de artista e que

não contava com a intervenção-pixo (nesta bienal a pixadora Carol foi a única

presa e ficou 53 dias em cárcere por danos ao patrimônio); participou da Bienal

de Berlim em 2012 e foi para a Bienal de Veneza em 2018.

As marcas urbanas afirmam território e sobrepõem os limites do espaço

privado em relação ao espaço público, estabelecendo, doravante, uma postura

entre a vida cotidiana e a política. Uma outra forma de pensar e agir se estabelece

com uma lógica e valores próprios. A produção particular de signos e caligrafias

antes inexistentes impõe uma forma do ser urbano.

O graffiti primitivo é, por definição de quem faz, na gênese, uma arte ilegal.

A necessidade do sujeito que quer tomar conta da cidade, interferir no espaço em

branco e sair dos muros para a cidade, sempre sendo apagados não pararam de

aumentar. E é parte da experiência, na cidade, especialmente em pontes, túneis,

vias expressas, becos, vielas e atalhos. As marcas inscritas na ilegalidade se tornam

referência, status e geografia quando grafiteiros e pixadores indicam uma

localidade geográfica a partir de um graffiti ou pixo; no caso do pixo, o potencial

localizador está na ocupação dos topos de prédios.

Existem duas escolas tradicionais da pixação nacional, o Pixo Reto Paulista

e o Xarpi Carioca (pixar ao contrário) (Fig. 64). Os dois têm o mesmo tempo

115

histórico de tradição, apesar de em São Paulo os adeptos desenvolverem um

modo mais complexo nos estilos, letras e modalidades, pois os pixadores se guiam

por outras inscrições, como forma de localização.

Figura 64 - Xarpi carioca. Letras e símbolos mais arredondados diferenciando-se do pixo reto paulistano.

Fonte: Imagem de Sagi (2017).

Um sistema particular de signos, regras e relações sociais, que se torna uma

linguagem singular de jovens majoritariamente do sexo masculino, de classe

média baixa, e pobres, que vivem nas periferias. Uma produção cultural de alta

potência e visualidade que marca presença na cena paulistana. O pixo apresenta

uma influência da cultura punk do ponto de vista transgressor, na composição dos

letreiros também apresenta influência das tipografias das bandas de metal

copiadas primeiramente de capas e logos de bandas como Iron Maiden e

Metallica, se aprimorando depois (Figs. 65 A e B).

Figura 65 A e B – Reprodução dos logos das bandas de metal do início da década de 80.

116

Fonte: @metalremains

Figura 66– Reprodução de capas de álbuns de bandas punks do final da década de 70.

117

1o Álbum do The Clash, 1977. 1o Álbum dos Ramones, 1976.

8a Edição da Punk Magazine, 1977.

Logo da banda The Exploited, 1979.

Fonte: wiplash.net

Tanto a pixação de São Paulo como o denominado Xarpi, no Rio de Janeiro

em geral, registram o nome de quem pixa, que pode ser uma abreviação ou uma

118

criação com as letras e também muitas vezes se registra o nome do grupo,

chamado de grife ou união, ao qual o pixador está vinculado (Quadro 1). O Xarpi

é originário do RJ, são assinaturas individuais, existem poucos grupos no RJ e se

assemelha mais às Tags pois tem um formato mais arredondado enquanto o pixo

é uma tag reta, originárias do Rio de Janeiro, essas pichações também são

conhecidas como “carioquinhas”. Há esta particularidade ao movimento de

pixação no Rio que se verifica no nome xarpi: os pixadores começam a

pronunciar as palavras de maneira cifrada ao inverter a ordem das letras de trás

para frente; uma maneira de modificação linguística em nome de proteção ao

circuito cultural.

Figura 67 - Caminho para a Avenida 23 de Maio vindo da zona oeste -SP.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2016.

Por que grife? A grife é uma etiqueta, na moda ela é caracterizada em um

produto de luxo com peças exclusivas que levam a assinatura do estilista. Grife

vem da palavra francesa graphie, ou seja grafia, a representação da escrita87. A grife

no pixo é representada também por uma logo (logomarca, logotipo). E significa

87Grifes famosas no mundo da moda: Chanel, Louis Vuitton, Dior, Prada, Valentino e Hermès.

119

uma aliança de pixadores e cada indivíduo que participa da união (outro nome

para grife), espalha pela cidade o seu símbolo (logo) ao lado do pixo. É comum

que os grupos de pixadores façam o ritual de inscrição da pixação (não sendo uma

regra), da seguinte maneira: assinar primeiro a logo da grife, depois o pixo

individual, a assinatura (o nome), o ano que foi feito e a zona dentro da capital ou

da grande São Paulo (exemplo zona oeste).

Quadro 1 - Algumas grifes paulistanas.

Os Melhores Círculo Vicioso

Os + antigos Quartel General

Os porra nenhuma

RGS- registrados no código penal

Turma da mão

Os+temidos União osasco Os Infernais

Os podrão CBR (Camburão)

OS + IM (os mais imundos)

Os + fortes

UDR União Desce o Rolo

Zona oeste pra cima

FOM - Foda-se O Mundo

Os muito loucos

Os sem noção DKD (DKDência)

Os piores Zona oeste Pixo

Donos do Ibope

ILS (Ilusões) Notáveis

Os+antigos Os + errados Os fora da lei Dead Kenedys DK

Turma da janela

Os mal criados

Os nada consta

Os quase nada Turma do Trote

Os diferentes

sociedade alternativa

Fala que é nóis

Os 13 Os simples É o terror

Os iguais Classe A NCL Necrópole

Os + que todos Gang da escalada

Os da hora Adolescência Rebelde

Os 2° MIL GRAUS

Cada 1 por si Os invasores

120

Para entrar na grife é importante que o pixador já tenha notoriedade e que

os organizadores da união aprovem a entrada. É esta uma forma de elevar o

prestígio na cultura da pixação, ao se associar a uma grife. Além de marcar o

símbolo da grife pela cidade, é dever daquele que ingressa numa família,

reverenciar os pixadores daquela grife que já faleceram (e as mortes são bem

frequentes no ato de pixar, seja pelo risco nas alturas sem proteção ou por

assassinato por policiais e civis; e antigamente por brigas entre gangues) (Fig 70).

Por muitos anos, as grifes se organizaram como gangues e havia muita rivalidade

e violência entre grifes, esta realidade já não se faz majoritária no pixo em SP.

Figura 68 - Cemitério de pixos

Fonte: Arquivo MN

Além da grife, existem as alianças em que duas ou mais grifes se unem,

ampliando a rede de relações de pixadores, por exemplo: A grife Círculo Vicioso

se uniu à grife Os + Fortes e se tornaram a aliança: Círculo Forte (família). Pode

também acontecer de um pixo vir acompanhado dos símbolos da aliança, grife, o

pixo autoral, etc.

A pessoa, por vezes, não teve alfabetização, mas inventa códigos de

linguagem e escreve a cidade, sabe ler a cidade. Ela quer se atrelar a algo, as

matrículas simbólicas criadas nos nomes das grifes e tag de pseudos nomes

121

correm inversamente à publicidade, primeiro questionam propagandas nas

linhas dos olhos e nomes de loja no topo da cabeça, depois subvertem esses

códigos com outra cifra. Grosso modo, são indivíduos empobrecidos que se

mobilizam para tornar público descontentamentos sociais através de ações

individuais e coletivas de alto risco mas com caráter simbólico de uma estética

agressiva.

Figura 69 (A, B, C e D) – Exemplos de grife e pixo

Grife: Quartel General. Pixo: MN. Pixo: Os Bambas.

Pixo: Fantasmas.

Fonte: Imagens por Juliana Abramides (2018).

122

Figura 70 - Logo de União (grife) Os + Imundos e convite de festa dos RGS (zona leste).

Fonte: Reprodução da revista Vaidapé de junho e março de 2017, respectivamente88.

Nas conversas informais em momentos de participação nos eventos, points

e rolês, pudemos constatar que os/as pixadores/as são jovens da periferia de todas

as regiões de SP e grande SP, que trabalham com baixos salários como: motoboy,

construção civil, panfletagem de propaganda, frentista de posto, office boy.

E por que, além de marcar a cidade toda, é importante ocupar o centro?

O centro é mídia, é o reflexo condensado e síntese do que acontece nas periferias

e por toda a cidade, pelo centro se cruzam: trabalhadores do comércio, de

empresas públicas e privadas, em serviço público; bancários; profissionais

liberais, do sexo (homens, mulheres e travestis), camelôs, catadores de papel e

papelão, catadores de latinhas, caixeiros viajantes, artesãos, feirantes, panfleteiros,

“homens placa”; trabalhadores infantis; moradores de edifícios clássicos e

simples; moradores em cortiços, pensões, hotéis e rua; turistas nacionais e

88A revista realizou uma série de entrevistas com pixadores. A Vaidapé é um coletivo de mídia fundado em 2012

por jovens comunicadores da cidade de São Paulo, que apresentam direcionamento midiático na defesa dos direitos

humanos, denúncia da violência institucional e valorização das movimentações culturais e artísticas periféricas.

Site: http://vaidape.com.br/

123

estrangeiros; transeuntes em circulação, em divertimento e a passeio;

empresários, banqueiros, comerciantes; representantes dos poderes executivo,

legislativo e judiciário; estudantes; religiosos em pregação; manifestantes em

protestos e reivindicações; músicos, malabaristas, estátuas humanas, cuspidores

de fogo; boêmios e botequeiros.

Na década de 1940, começa a ocupação de muros, topo e laterais de prédios

com as publicidades. O pixo subverte essa ordem da propaganda, nasce a mídia

de si mesmo (Fig. 71).

Figura 71 - Ocupação de muros, topo e laterais de prédios com publicidade, na

década de 1940.

Fonte: Imagem de Alice Brill (1954). Arquivo IMS.

124

Os points reúnem pixadores de toda a grande São Paulo e a prática

recorrente é a troca de folhinhas (Fig. 72), uma forma de contato em que em uma

folha de papel, caderno, ou agenda, cada pixador assina o seu pixo, aquilo que

lança. A folhinha é guardada e colecionada em pastas. Também no point se

divulgam as festas, contam-se as novidades, fala-se dos que se foram, divulgam-

se os pixos feitos e articulam-se novos rolês, de maneira que alguém da região

oeste se articula com o de outra região e assim, numa rede de proteção, podem

pixar em grupos.

Figura 72 - Folhinha.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides

Sua inscrição está na cidade mas ninguém sabe quem você é a não ser os

que fazem parte do núcleo pixação e você tem que ter algum destaque nas ruas

para ser conhecida/o. Ao mesmo tempo, a maior parte dos que pixam está

preocupada em ter sua marca na cidade inteira para promover sua existência.

Instintivamente, pixadores expressam, no âmbito da subjetividade, a negação da

opressão e a negação da propriedade privada. Uma forma peculiar de transitar e

se comunicar. A pixação torna-se uma referência entre os praticantes; a leitura da

cidade tem uma identidade regional de identificação das zonas urbanas por meio

das marcas. Identidades coletivas, individuais e regionais, nessa ordem de

importância.

125

O mapa The Encryption Of Power (Fig. 73) representa o histórico de atuação

do Pixo no centro da cidade de São Paulo. Esse trabalho é o resultado de uma

parceria feita entre a curadoria do pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza de

2018, a Escola da Cidade e o Djan. Contribuição importante para ampliar a

discussão sobre o pixo em outros campos além das ruas89.

Figura 73 - Mapa - The Encryption Of Power - histórico do Pixo no centro da cidade de

SP.

Fonte: Imagem de Cripta Djan (2018).

89“Usando dados coletados de 12.853 postagens no Instagram – também destacando a importância das mídias

sociais na cultura urbana contemporânea – é possível visualizar a distribuição geográfica das menções de "pixo" e

"pixação" através de suas localizações na cidade. Além disso, as multas aplicadas aos ofensores e as notícias dos

últimos trinta anos que mencionam o Pixo são georreferenciadas e exibidas com a data, veículo de mídia e título.

Combinadas, essas informações fornecem uma descrição das formas pelas quais a sociedade vê essa prática e as

lógicas de punição que ela implica. Por fim, o mapa cruza esses dados com mais de 40.000 pontos de preços de

metro do quadrado dos edifícios desse recorte – dados fornecidos pelo DataZap – bem como com informação sobre

as instituições culturais emblemáticas que os pixadores atacaram no passado”. (Cripta Djan, em postagem de sua

página no Facebook: Cripta Djan Ivson. Acesso em dezembro de 2018.)

126

Artistas, escritores ao longo dos tempos muitas vezes ampliaram as

fronteiras das convenções ao longo da história: os costumes moralmente

vinculantes fixos de um determinado grupo foram rompidos frente a injustiça ou

ao julgamento social. Como traduz o poeta concreto, Décio Pignatari: “O graffiti

também é uma arte do precário, uma espécie de manchete lírica que tal como o

jornal pode desaparecer com o tempo [...] Uma forma curiosa de publicação, só

existe enquanto aquela realidade.” (entrevista em setembro de 1981, apud

CRISTINA, 1982, p. 41).

O artista urbano contemporâneo caminha entre a legalidade e a ilegalidade.

Consegue pintar um muro com autorização e o faz com dinheiro do bolso ou por

meio de incentivos, festivais, patrocínios. Seja como for o engajamento político e

social é uma constante: preconceitos diversos; o racismo; o feminismo; as

temáticas ecológicas como poluição e desmatamento também despontam.

Alguns caminham mais para o lúdico e transversalmente para o político.

O espaço público é diverso: pontes, edifícios, fábricas abandonadas. Não há

uma concentração de expressões visuais urbanas na cidade mas está por todos os

lados. As regiões periféricas, áreas desguarnecidas de monumentos foram por

muito tempo regiões desconectadas com o circuito cultural de shows, concertos,

bibliotecas, aliás do ponto de vista das ações do Estado interventor ainda são, mas

cada vez mais a periferia se organiza com saraus, casa de hip-hop e centros culturais.

As interferências plásticas das artes urbanas são periféricas e ocupam as periferias

com cores e identidades simbólicas para jovens e trabalhadores/as. Esta é uma

dimensão pública consciente da ocupação do espaço com arte.

São muitos artistas a serem destacados na história mais recente da arte

urbana em São Paulo, e seria impossível nomear a todos/as. Lembramos de um

importante ícone do graffiti no Brasil e no exterior. Niggaz (Fig.74), nascido no

Grajaú - periferia da Zona Sul de São Paulo, morreu jovem aos 21 anos, e seus

murais continuam colorindo a cidade, o artista entusiasta e influente artista,

apresentava graffitis irreverentes com forte identidade racial e que lembram

histórias em quadrinhos. Para o artista o pincel ou o spray eram uma arma de

127

transformação do mundo. Ele que sofrera por toda a adolescência racismo e

preconceito, encontrou na arte uma forma de reconhecimento por toda cidade

de São Paulo e no mundo90.

Figura 74 - graffiti de Niggaz na Praça que leva seu nome na Vila Madalena.

Fonte: Reprodução do livro Niggaz - Graffiti, Memória e Juventude.

O Grajaú é um exemplo de região periférica da zona sul, situada há quase

30 km do centro da capital paulista, uma área que sofre com a violência e a

segregação ao mesmo tempo um bairro de forte mobilização político-cultural e

de origem de importantes artistas urbanos. O Grajaú abrigar importantes murais

ao longo da região, um dos locais de maior produção de graffitis no mundo. São

realizações individuais e também de projetos sociais organizados por coletivos de

artistas com financiamento empresarial como por exemplo o projeto

“Transformações: Arte Urbana e Cidadania” realizado em 2015 no Jardim das

Gaivotas.

...Eu sou…

90 Veja-se em: Niggaz - Graffiti, Memória e Juventude. Com financiamento da Funarte organizado por Mauro

Neri em 2016.

128

aquele que pega o busão lotado

O grafiteiro que toma um enquadro

O MC de talento mas que não tem nem o da condução

Eu sou, aquele poeta, partideiro nato,

Que das equações do tabuleiro de xadrez é um rato

E o mágico, com as tintas de doação…

Grajaú, se eu errei, merci bocu (CRIOLO)

Em meados da década de 90, também em São Paulo, emergem alguns dos

mundialmente conhecidos grafiteiros: Nunca, Os Gêmeos, Onesto, Kobra, Vitché,

Binho e Zezão. O grafiteiro Nunca (Fig.75) apresenta um viés artístico politizado,

traz à tona assuntos étnicos, históricos e sobre o racismo. O artista tem a

intencionalidade de ressignificar a representação histórica do Brasil e ao mesmo

tempo incentivar a reconexão com as nossas bases hereditárias indígenas.

Francisco Rodrigues- o Nunca, vindo do bairro de Itaquera, inicia seus trabalhos

na rua com a pixação e posteriormente desenvolve um trabalho colorido a partir

da influência de artistas e intelectuais de vanguarda como Lygia Clark e Oswald

de Andrade.

Figura 75- Do lado esquerdo o grafiteiro Nunca. Do lado direito, os irmãos - Os Gêmeos, graffiti na Avenida 23 de Maio-SP.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides

129

Graffiti verdadeiro é o graffiti ilegal, o pixo também o é. E na transversal

da cidade eles se encontram. A arte urbana com tinta ou spray e que é autorizada

é a arte mural que alguns chamam de pós graffiti. O realismo mágico adentra

cenas do cotidiano criando dualidades: Gustavo e Octávio - Os Gêmeos (Fig.75 e

76), estão entre os mais importantes contribuintes para o desenvolvimento da arte

urbana no mundo, são de 1974, nascidos no Cambuci, em São Paulo. A dupla

decide por um trabalho colorido mas com predominância do uso do amarelo nas

personagens, uma constante, trabalham artisticamente com temas que transitam

entre a fantasia e a realidade.

Figura 76 - Os Gêmeos.

Fonte: caixadepandora.com

130

O grafiteiro Alex Hornest, nascido em 1972, no bairro do Tatuapé na zona

leste de São Paulo, mais conhecido como Onesto é também pintor, escultor e

artista multimídia de São Paulo. Desde a década de 90 faz graffitis. A relação entre

a cidade e os moradores é o foco de seus graffitis. Como vemos na imagem de um

personagem andando de bicicleta e levando consigo a placa de proibido, feita no

festival Bike Here em Viena, 2010 (Fig. 77).

Figura 77 - Graffiti por Onesto

Fonte: Imagem do Festival Bike Here

131

O também conhecido Kobra (Fig.78) cuja peculiaridade são os gigantescos

murais que parecem fotografias com sobreposição de miscelâneas coloridas, veio

da periferia da Zona Sul - Jardim Martinica. O muralista também iniciou suas

atividades como pixador.

Figura 78 - Mural de Kobra retrata o arquiteto modernista e comunista Oscar

Niemeyer

Fonte: Imagem de Juliana Abramides. Avenida Paulista, São Paulo, 2018

132

Mesmo nos países de maior desenvolvimento do campo político

democrático, a igualdade completa para as mulheres não foi atingida. Nenhum

Estado burguês reconhece a completa igualdade dos direitos. As mulheres

ganham menos ocupando os mesmos cargos que homens, são interrompidas

incessantemente em suas falas, devem provar mais valor e competência numa

mesma área. Nós vivemos a feminização do mundo do trabalho com piores

condições e o maior de todos os problemas é a opressão e violência sofrida tanto

no seio doméstico quanto nas ruas.

Figura 79 - Clara Leff, 2018.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (Entrevista no dia da finalização do mural).. Rua Gama Cerqueira, 385, Cambuci - São Paulo, 2018.

Quando entrevistei a Clara Leff, ela estava finalizando o graffiti acima (Fig.

79) com seu então companheiro também grafiteiro, Gatuno. Ela me disse que

pintava já a algum tempo, mas que começa a ir para os murais de rua para ocupar

esse espaço público, que até então tinha medo de ocupar, mesmo andando,

principalmente sozinha, nas ruas de São Paulo. Fazendo graffiti, muitas vezes está

133

com alguma parceria, ou pessoas se interessam e param para acompanhar o

trabalho.

O sentimento de serenidade da mulher intercala-se às condições exteriores

do mundo natural. Uma satisfação conquistada, numa alma que comprime o

sensível e o finito, que triunfa nos sentimentos. O triunfo de uma conciliação com

o mundo da natureza. A necessidade de se recolher na paz interior da alma reclusa

em si.

A profundidade da tela transborda conteúdos a serem contemplados; os

objetos animados, colocados por si, provocam um eco na alma, a disposição do

final do dia e a calmaria da água de um lago recolhido. Os elementos reunidos

não são apenas imitação por uma disposição própria e vigor particular espargido,

que causa certa fonte de simpatia, esta, a natureza, “uma fonte inesgotável de

assuntos para a arte” (HEGEL, 1962, p. 81)

A artista começou a fazer graffiti em 2015. Mesmo antes de começar a

pintar, ela diz que tinha muito medo de andar nas ruas sozinha. Então ao ir ocupar

os muros com a lata na mão a artista pode iniciar um processo de vivência segura

nas ruas, já que, quando se pinta, muitas pessoas do bairro ou transeuntes param

para conversar ou mesmo oferecer um prato de comida.

O empoderamento feminino91, se torna então, inspiração e a forma de falar

de Clara Leff, frente à realidade de tantos anos de silenciamento das mulheres.

Em um de seus trabalhos, a série “faces”, ela faz uma crítica aos padrões de beleza

criados para as mulheres, além das personagens serem sempre azuis e

esverdeadas. A maioria de seus graffitis fala sobre a natureza e os seres humanos

em uma esfera mais misteriosa, amorosa e mágica. Clara utiliza sempre as latas

de spray e começou a pintar, praticando em casa por 06 meses para desenvolver

a técnica antes de sair nas ruas:

Eu só uso latas de spray! Um dos meus maiores amores neste mundo é a lata de spray. Eu nunca esquecerei o dia em que usei um pela primeira vez… Sempre digo que me apaixonei inicialmente pela lata de spray e depois com o graffiti. As latas de spray permitem uma “dança” com a parede, usamos todo o corpo para pintar, adoro isso! (entrevista em 2018).

A educação de gênero aprendida na família, escola, mídia, no

posicionamento dos governantes e das políticas de Estado, por meio da

91Para saber mais de mobilizações de mulheres artistas na sociedade ler: Women, art, and Society by Whitney

Chadwick. 2nd ed. Thames and Hudson, NY: 1996.

134

socialização, em que crianças e adolescentes, gradualmente, internalizam normas

sociais, corresponde a produções culturais e não determinações biológicas

prévias. A desigualdade de gêneros resulta, prioritariamente, da diferença de

socialização de papéis entre gêneros. Aprendemos a nos apresentar enquanto

gênero, roupas, estilo de cabelo, linguagem corporal e tom de voz.92

Mag Magrela pinta desde 2007, a artista também tem uma referência em

casa, já que o pai é desenhista e pintor. Mag começa a grafitar após uma oficina

com o pioneiro artista urbano Rui Amaral, e lá conheceu uma galera da quebrada

- onde começou a grafitar. Apesar de ser da Vila Madalena, lá foi o último lugar

a pintar.

O campo da criação não tem que ter regra. Mag cria personagens que caminham

para o lúdico e para o mágico.

Todos os lugares que eu tentei me encaixar de alguma forma tinham regras de ser ou de fazer. Eu já desenhava e quando eu fui pro graffiti, eu me apaixonei, eu podia usar qualquer material e qualquer local. Se abriu um portal da minha personalidade. (...) o graffiti me proporciona conhecer a cidade e lugares de um jeito único (entrevista em 2019).

A artista multimídia e cantora diz que teve algumas fases, a primeira foi a

criação personagem um ser masculino parecido com seu irmão. A segunda e mais

longa fase retrata o feminino. Mag diz que sempre negou muito a feminilidade e

então em 2010 começa a desenhar o sangue e “bucetas”, inicia o trabalho com a

energia do chacra básico. A libido reverberou até 2016. A grafiteira faz uma

reflexão sobre esta necessidade da negação do corpo feminino:

Parece que a sociedade só quer o seu lado gatinho. Então eu negava muito meu corpo. A cultura patriarcal vende o tempo inteiro para que você se encaixe nesse lugar. Muitas mulheres das artes passam por isso e questionam isso. (...) Já ouvi criança falar: - não sabia que mulher pingava.

A última fase da artista é o lugar de cura (Fig.80) pintando plantas e

natureza mas busca entender e questionar o lugar da segregação (o mural de Mag

Magrela sobre a temática aparece no capítulo IV). As mulheres foram excluídas e

ainda são, seus salários são menores, toda a potência da mulher deve ser

duplamente explicada seu valor sempre colocado à prova. E é por isso que as

92 A jornalista Norah Vincent passou 18 meses disfarçada de homem e transformou sua experiência no livro Self-

Made Man: One Woman’s Year Disguised as a Man. Ela passou a frequentar círculos sociais, de esportes, casa de

strip-tease, monastério e grupos de suportes masculinos. Em uma das experiências, ela relata que foi a uma loja

de carros e o vendedor a assediou, quando era mulher, e quando voltou como homem, o vendedor apenas falou de

negócios.

135

mulheres estão se organizando e se reunindo e trabalhando entre si no palco, no

cenário. Mulher chama mulher, negras e negros estão se unindo nos movimentos

sociais e também nas cenas profissionais para conquistarem trabalho e

consideração.

Figura 80 - Patuá da Fisgada, São Paulo, 2016.

Fonte: Mag Magrela

136

Gisele é a Sagi (Fig. 81), a guria é de uma coragem atroz e ficou conhecida

num tipo de pixo que considero “esportivo”. Ela é a maior pixadora e lançou suas

marcas por todo Rio de Janeiro e fez muitos rolês em São Paulo chegando a fazer

parte da grife Os Melhores. A jovem, agora aposentada do pixo, se considerou

viciada com a lata na mão e hoje está há 06 meses sem pixar. Sagi começou em

1999 com 13 anos com amigos de onde morava que pixavam, lançou Sagi que é

gisa, gisele de trás pra frente. Começou a pixar de escada e de pé (uma pessoa

sobe no ombro da outra pra ganhar altura). Em um rolê em Nova Iguaçu - RJ

levou um tiro na perna e parou por um tempo, quando voltou, viveu

intensamente e impulsivamente, numa vontade de adrenalina. Ela lembra:

Passei anos da minha vida pixando compulsivamente todas as semanas, muitas passagens na polícia, perdi as guardas dos meus filhos, meu casamento acabou (entrevista em 2019).

Figura 81 (A e B) - Sagi lança nos viadutos, sua marca registrada.

Fonte: Imagens cedidas pela xarpista.

No RJ são poucas mulheres que tem nome na rua (no sentido de divulgação

mesmo, nomes espalhados pela cidade, que tem caminhada constante). O

movimento da pixação é majoritariamente de composição masculina, segundo

Djan (entrevista em 2017) quando as mulheres entram na pixação elas se destacam

e viram o centro das atenções. Mas a “mina precisa vencer a descrença, criar o

grupo dela e conseguir espaço. “Não é fácil você ser uma mina num movimento

que só tem homem. Primeiro que todo mundo já quer te comer né?’.

137

A xarpista começa a comandar a modalidade de fazer escadinha de ferro,

de corda, em viadutos, descendo de corda de nó, corda de rapel (Fig. 82). Nesta

modalidade, são poucas as pessoas que fazem. Por esse motivo, ela ficou muito

conhecida no universo da pixação e ficou consagrada “no vandalismo da pixação”.

O viaduto é uma modalidade que fica no mínimo 30 anos no mundo, somente

sai quando o tempo desgasta em até 50 anos. E é uma modalidade altamente

arriscada porque não tem equipamentos de segurança, “se eu tivesse uma câimbra

eu poderia cair e morrer”, uma modalidade que você somente segura com as

mãos. Fora isso ela lançou em pedras, janelas, linhas de trem com a versatilidade

de modalidade.

Figura 82 (A e B) - Pixo de rapel.

Fonte: Imagem cedida pela xarpista.

138

Na Califórnia, toda a cultura do graffiti, é obviamente acompanhada da

cultura chicana ou dos mexicanos-estadunidenses. Os writers (escritores) cholo (de

ascendência latino-americana) já tinham um estilo próprio na década de 40 antes

do graffiti contemporâneo emergir. Ao longo do anos os estilos e alfabetos vão se

aprimorando nas ruas e também quando emergem as ondas de encarceramento

crescentes desde a década de 60.

Os murais chicanos em São Francisco são de uma beleza de conteúdo e na

forma. Uma arte que recupera a ancestralidade e dá continuidade a uma arte

mexicana por excelência: o muralismo. Notadamente de cunho político, os

murais tomam conta da região Mission.

Descendo para Los Angeles, vemos pelas linhas de trem de norte a sul em

becos e vielas o estilo bomb de letra, tão famoso nos EUA. São as letras

arredondadas as chamadas bomb, por serem uma “bubble letter” ou letra em

formato de bolha. O uso de tintas e spray nos muros e fachadas transforma a

escritas urbanas tão contaminadas de publicidade, principalmente em LA. O

grafismo selvagem, garranchos e rebarbas; o graffiti Naif (ingênuo e espontâneo)

ou rebuscado se combinam aos preços, letreiros, mostradores de mercados.

139

Los Angeles, como toda cidade grande, tem um ritmo acelerado de

sociabilidade, ao mesmo tempo em que apresenta praias, trilhas e parques, que

podem proporcionar um contraste de vivência. A grande metrópole multicultural

apresenta arsenal de arte do mundo todo, tal qual NY; o entretenimento mundial.

Urbanisticamente, não há tanto interesse em LA, uma cidade espaçada. A não ser

o charme insuportável das áreas de luxo, na Beverly Hills, com enormes áreas

verdes, por exemplo. São diversas vizinhanças, cada uma enquanto um nicho

cultural de identidades e singularidades muito definidas: Westwood, Santa

Mônica, Venice, Brentwood, Ecopark, Silverlake.

O rigor com o graffiti ilegal é maior em LA do que em SP e também a

cultura que aqui vemos de tags, pixos, colagens, murais, etc., por toda a cidade, em

LA a profusão de imagens não compete com as publicitárias. Ali, as imagens

suburbanas estão mais escondidas e as propagandas dominam o cenário de

maneira massiva. Chegamos ao distrito de arte de LA e fizemos um tour em

companhia de A.k.a One, pioneiro no graffiti em LA que explicou um pouco

sobre a história da arte local. Ao longo do trajeto de trem pude observar diversas

tags e graffitis nas linhas de trem e nas beiradas da cidade (FIg. 83), foi de lá que

avistei o Rio Los Angeles.

Figura 83 - Graffitis na beira dos trilhos

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).

140

93

A marca do graffiti em NY é o metrô; em SP, os arranha-céus, em LA é o

rio Los Angeles, na beira da rodovia 101 (Fig. 62). Desde que o Corpo de

Engenheiros do Exército se moveu para canalizar o rio, em 1938, o trecho de 51

quilômetros de concreto cinza do rio e a baixa presença policial ofereceram aos

grafiteiros não apenas uma grande tela para murais coloridos, mas também a

atração da aventura em um lugar aparentemente desprovido de leis.

Figura 84 - Rio Los Angeles Visto do Trem (2018).

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2018).

Para realizar tags, desde o final da década de 1960, é preciso passar por

túneis sob o rio. Nos anos 90, populariza-se o graffiti quando ainda ali era uma

93Subtítulo referenciado em Ulysses (2010).

141

terra de ninguém e o avistamento de um corpo morto, tráfico de drogas, ou

tiroteio, era comum. Os primeiros escritos são do início de 1900, traçando uma

linha do tempo físico da experiência humana ao longo do rio.

Uma tag remonta ao início de 1900 e foi encontrada nas vigas de uma ponte

perto da confluência do Arroyo Seco. Ele leu "Kid Bill 8-3-14" na fonte ocidental.

Acredita-se que a tag e outras semelhantes, muitas vezes com "Kid" precedendo o

nome, foram deixadas por transeuntes que viajaram pelos trens que correm o rio.

O grupo também encontrou pichações deixadas por Pachucos94 no rio, nos anos

1940. Uma peça dizia "Killer de Dog Town 8-9-48" e foi escrita com alcatrão

coletado de um pátio de trens local e pintado nas vigas perto do histórico William

Mead Housing Projects, perto da Main Street, no centro de Los Angeles. Vivendo

nos bairros pobres cercando o rio, os Pachucos marcariam o território de suas

gangues que haviam se formado em face da crescente violência e discriminação

motivada por motivos raciais contra os jovens mexicanos-americanos.

Num local considerado, por anos, um repositório para o escoamento

urbano, os grafiteiros traziam vida e vitalidade ao rio, algo que estava faltando

desde que fora pavimentado. No início dos anos 1990, a cidade vivenciou altos

exemplos de violência de gangues e assassinatos e um aumento nas tensões

raciais, após o espancamento policial de Rodney King e o assassinato de Latasha

Harlins95. O aumento na violência entre gangues e policiais coincidiu com uma

explosão de pichações de gangues e de "tag banging", que foi um período perigoso

para os grafiteiros, pois havia um sinal verde para que membros de gangues

atirassem em qualquer tagger que entrasse no rio. No entanto, a violência do início

dos anos 90 se esgotou lentamente, já que muitos taggers foram presos ou

absorvidos por gangues. Isso deixou o rio aberto para os grafiteiros, em meados

94 Pachucos são Chicanos e mexicanos de cultura noturna e vestes extravagantes. 95Latasha Harlins (14 de julho de 1975 – 16 de março de 1991) uma menina afro-americana de 15 anos, estudante

do Westchester High School, em Los Angeles. A garota entrou na Empire Liquor Market na South Figueroa Street,

pegou o suco de laranja da geladeira e o colocou na bolsa, com 2 dólares em suas mãos para pagar por isso. No

entanto, a dona da loja, a coreana-americana Soon Ja Du, acreditava que Harlins estava roubando o suco. Uma

briga iniciou-se no local quando a senhora tentou puxar a bolsa da menina através do balcão. Enquanto isso,

Harlins lutou de volta, derrubando a mulher de 51 anos. Harlins tirou o suco de laranja da bolsa e o colocou de

volta no balcão e depois virou-se para sair. Logo, Du se levantou e puxou uma arma do balcão e disparou contra

Harlins na parte de trás da cabeça, a três metros de distância. A morte de Harlins ocorreu treze dias depois do

espancamento filmado de Rodney King pela polícia. Algumas fontes citam os dois assassinatos como uma das

causas dos tumultos de Los Angeles, em 1992.

142

da década de 1990 e trouxe uma onda de peças de arte grafitadas coloridas em

grande escala.

Crews (grupos) como MSK "Mad Society Kings" ganharam notoriedade

internacional. O tagger Sabre, do grupo MSK, pintou uma das maiores obras de

graffiti do mundo, ao longo da margem do rio, perto da autoestrada 5, em 1997.

Outro notável escritor da MSK, REVOK, expôs seu trabalho na exposição "Art in

the Streets" da MOCA, a primeira grande exposição de graffiti do museu e arte de

rua nos EUA.

Os grafiteiros da crew MTA - "Metro Transit Assassins" também ganharam

notoriedade internacional, em 2008, por pintarem uma tag MTA na beira do rio

escrita em letras maiúsculas de 700 metros de largura (Fig. 85), nas proximidades

da rua 4. Ambas as marcas históricas foram pintadas com uma camada de tinta

cinza, em 2009, que podia ser avistada de um avião, quando o Corpo de

Engenheiros do Exército usou US$ 837.000 de dinheiro federal para pintar mais

de 45 milhas de rio que caem em sua jurisdição. Para o grupo, o dinheiro poderia

ser gasto pagando artistas para pintar o rio e deixando-o belo, ao invés de parecido

com um presídio. Hoje, os escritores e artistas de ambas as crew estão agora

vendendo seu trabalho em galerias de arte nacionais e internacionais.

Figura 85 - Mural gigante MTA.

143

Fonte: Imagem de Lawrence K.Ho.

A onda de gentrificação, a partir da revitalização feita na região ribeirinha,

desde 2012, em lugares como Elysian Valley (Frogtown), trouxe cafeterias da moda,

boutiques, cervejarias artesanais e empresas para a região. Isso deixou muitos

moradores antigos do local preocupados com o deslocamento e a mudança de sua

comunidade para algo em que não poderão mais se identificar ou viver.

À medida que a população dos bairros muda, trazendo um afluxo de

moradores brancos para a área, os residentes mais novos já tomaram os esforços

de combate aos graffiti em suas próprias mãos. O Conselho de Bairro de Los Feliz

organiza eventos de limpeza, que incluem a limpeza de graffitis uma vez por mês,

e o conselho do bairro Elysian Valley organiza o Dia de Embelezamento de EV,

no qual os moradores limpam o lixo e as pichações. O Corpo de Engenheiros do

Exército também toma medidas pesadas para manter o graffiti fora do rio,

gastando cerca de US $ 250 mil por ano para espalhar pichações ao longo dos 90

quilômetros de aterros que caem em sua jurisdição. Os empreiteiros encarregados

da remoção de pichações inspecionam o rio rotineiramente e tentam encobrir

pichações dentro de 24 a 48 horas, disse Jay Field, porta-voz da Army Corp.

144

Em 1976, Judith Baca inicia a história da pintura monumental, o The Great

Wall of Los Angeles, maior mural no mundo, tem meia milha de longitude, ao

longo do canal no Vale de São Fernando em North Hollywood (Fig. 86). O mural

foi realizado com a colaboração multicultural de mais de 400 jovens e em torno

de cem pessoas na equipe de apoio e 40 artistas assistentes. Cada seção da parede

foi projetada por um artista diferente, sob a supervisão de Baca.

Figura 86 – Mural The Great Wall of Los Angeles

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).

145

Com 4 metros de altura por 840 metros de extensão, o equivalente a seis

quarteirões, em LA, a grande muralha é o maior mural do mundo, oferece 105

murais compondo a narrativa da história da Califórnia, até a década de 1950, pela

ótica das mulheres, minorias e dos povos étnicos (Fig. 87). Judith baca projetou a

“grande muralha” preocupada com as condições estéticas físicas e espaciais mas

também se direciona às questões históricas, sociais, ambientais e culturais que

afetam a cidade. Por exemplo a Figura 87 representa o momento da deportação

de mexicanos antes pertencentes àquela terra e são expulsos e segregados, ainda

hoje os EUA querem limitar a entrada de mexicanos ou mesmo baní-los do país.

Figura 87 – Detalhe do mural que apresenta a narrativa da história da Califórnia até a

década de 1950.

Fonte: Imagem por Juliana Abramides, 2019.

.

146

No antigo bairro de armazéns, do centro de Los Angeles, ainda existem

alguns artistas residentes remanescentes dos anos 80; aqueles dias valentes em

que pintores, escultores e outros, sem nenhum código oficial da cidade nos livros,

começaram a trabalhar e a morar em prédios industriais abandonados.

Em meados dos anos 1970, alguns artistas convertem antigos espaços

industriais e comerciais em estúdios de trabalho, às vezes alugando espaços para

criar e se alojar por preços muito baratos. Somente em 1981, a cidade de Los

Angeles aprovou o decreto Artista em Residência, que permitia o uso residencial

de edifícios anteriormente industriais e comercialmente zonados; os artistas há

muito tempo usavam esses espaços como residências, de forma ilegal, e a lei

procurou levar essa prática à legalidade e regulamentação. Galerias de arte, cafés

e locais de espetáculos abriram-se, à medida que a população ao vivo crescia.

Figura 88 - Art District. “Influência legislativa à venda” (trad.)

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).

147

Venice Beach é onde se unem a street art e a praia mais icônica do sul da

Califórnia. Localizadas no coração do calçadão de Venice Beach, entre o skate park

e as quadras de basquete, as paredes de arte são o marco histórico mais famoso

do graffiti de Los Angeles.

Figura 89 - Um amor à beira mar

Fonte: Juliana Abramides (2018).

148

Ao longo do movimento chicano por direitos civis e justiça social

principiado no início dos anos 1960, os murais, como parte da afirmação

identitária dos mexicanos-americanos, novamente provaram ser importante

ferramenta na reivindicação de sua herança cultural. O muralismo chicano

recupera símbolos do México, histórias, religiosidades e mitologias, em um

movimento de identificação cultural e de resistência sociopolítica.

Figura 90 - Mural de Hailey Gaiser21.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2018.96

O local com acentuada movimentação relativa ao muralismo chicano é

São Francisco (a chamada Bay area), no distrito Mission. Ali, a “meca” dos murais

chicanos apresenta um movimento anti-apartheid e identitário, com murais de

temas políticos e campanhas, como a de 1992, no aniversário da invasão de

Columbus, em que se organizaram os “500 anos de resistência”.

96“Este mural de Hailey Gaiser é inspirado pela cidade de San Juan Citala, Jalisco/México, de onde minha família

provém. É uma pequena cidade de fazendeiros dedicada ao trabalho duro, valores familiares e comunitários. Eu

dedico este mural a eles e à comunidade Mission/SF.” (trad. nossa).

149

Muitos dos murais são produzidos sob o estímulo da organização Precita

Eyes, cuja gênese está diretamente conectada com o surgimento do movimento

chicano (Figs. 91 e 92).

Figura 91 - Distrito Mission, San Francisco (2018). Imagens religiosas e bandeira do Panamá no poste de rua à esquerda.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2018.

Figura 92 - Juana Alícia “La Llorona’s” Sacred Waters (2004).

Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2018.

150

Os Muralistas da Mission apresentam um posicionamento de revoltas

social e espiritual; aqui a arte e a política sempre caminham juntas. A arte pública,

que toma conta da região, revela um centro de militância e ativismo com apoios

diretos e participação em movimentos e protestos por direitos sociais, humanos

e por igualdades étnica e social.

Em São Francisco, vemos as marcas deixadas pelo muralismo de Rivera no

City Club, Golden Gate e San Francisco Art Institute. A sua feroz marca política

inspira o respeito pelos trabalhadores; a reverência à história e a luta contra a

ganância. Na progressista e colorida cidade de San Francisco, temos a certeza de

que o muralismo já não é mais símbolo de uma época mas uma forma artística de

se posicionar no mundo.

O mural reproduzido na Figura 93 é sobre as comunidades reclamando

para si o que lhes pertence, utilizando os recursos naturais que lhes foram

roubados por centenas de anos, o que fez da Europa e da América do Norte

lugares tão ricos enquanto os demais mantiveram-se na pauperidade.

Figura 93 - Naya Bihana (Um Novo Alvorecer), Martin Travers, 2002.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2018).

151

Quando examinamos a história do capitalismo, verificamos que está

situado, em sua fase inicial, na Inglaterra, na segunda metade do século XVI e

início do século XVII, ocasião em que se estabelece mais prontamente a relação

entre capitalistas e assalariados (isto é, antes disso, existiam relações de produção

nessas qualidades, mas não ainda em escala considerável). Ou seja, estamos

levando em conta o modo pelo qual se define a propriedade privada dos meios

de produção e suas relações sociais. A sociedade de produção de mercadorias é

anterior ao estabelecimento da sociedade do capital, relação social de produção

em que também a força de trabalho se torna uma mercadoria.

A partir da propriedade privada dos meios de produção e da divisão social

do trabalho, as relações entre os indivíduos se aplicam na forma de alienação97

onde os homens são limitados devido à existência de classes. O capitalismo, em

sua essência, estabelece a exploração do humano pelo humano, relação social que

se expressa na apropriação privada da produção social e coletiva. A contradição

fundante da sociedade é o domínio do capital sobre a classe trabalhadora.

O capital ainda em germe, não desenvolvido, cindiu os homens de suas

potencialidades. De toda forma, conforme já foi apontado, todo esse processo de

desenvolvimento é fruto da produção humana e reflete o salto qualitativo em

relação à natureza. Isso significa que as diversas formas de propriedades

registradas na história dos homens, tais como, a primitiva, antiguidade, medieval

97A alienação (entfremdung) é uma categoria fundante de toda a elaboração de Marx, existente em todas as formas

de sociabilidade, que se constituem a partir da consolidação da divisão social do trabalho, do Estado,

concomitantemente à política, às classes sociais e à propriedade privada. Nessa direção, a alienação é produto da

sociedade de classes. Na Idade Média, enquanto o estranhamento se efetivou, por meio da religião, na sociedade

capitalista moderna concretiza-se a partir do processo produtivo. Ainda, a produção passa a se consolidar de

maneira alheia aos homens, ao ser concebida como parte integrante da sociedade estranhada. Vale ressaltar que na

forma mais plena da divisão social do trabalho, isto é, do capital, a alienação adquire formas específicas, a partir

da instituição da sociedade salarial, quando as capacidades humanas estão estabelecidas na forma do dinheiro; sua

existência é medida pela venda da força de trabalho.

152

e moderna (sociedade capitalista) devem ser entendidas como afastamento das

barreiras naturais dos homens, ainda que eles mantenham relação com a

natureza.

A existência e organização do comércio, mercado financista, dos bancos, da

moeda de troca, do sistema de empréstimo, ao longo de outros tempos histórico-

econômicos, não são suficientes para constituir uma sociedade capitalista. As

transações monetárias e a produção para o mercado eram comuns, no mundo

medieval, por sua vez, no mundo escravocrata, a compra e venda de pessoas

escravizadas era lucrativo, enquanto na classe mercantil eram os grupos

intermediários entre produtores e consumidores, e diferentes da classe burguesa.

O que se vê como traço de continuidade são duas coisas interligadas, ou

seja, os processos de dominação de povos e divisão de classes, ao longo das

sociedades escravocratas, feudal ou capitalista. Isso se, em termos gerais, falarmos

dos movimentos reais combinados e complexos, com traços peculiares a essas

generalizações.

Nas suas fases de desenvolvimento, o capitalismo passa por transições de

desenvolvimento técnico e divisão de trabalho. O que nos interessa aqui é

concentrar na hipótese de que o Capital, às vezes, tem sido representado sob o

aspecto de uma luta constante pela liberdade econômica, pois, na falta de controle

e regulamentação, pode encontrar condições favoráveis para sua expansão,

portanto o caráter anárquico do capitalismo é inerente à sua lógica.

O capital, para manter sua hegemonia sobre o trabalho, precisa do Estado,

força externa ao homem e instrumento para amenizar os conflitos e garantir

afluência e igualdade entre os detentores dos meios de produção e, também, para

continuar a usurpar as capacidades humanas a fim de garantir a concorrência e a

concentração de riqueza. Logo, o Estado é uma necessidade do capital e a ele está

subordinado, daí as leis, a violência para perpetuar a ordem vigente e a

concorrência que garantem a sobrevivência do capital.

153

As primeiras cidades burguesas não passavam dos limites da muralha e

mantinham até 20 mil habitantes. O crescimento delas com o advento e a

ascensão burguesa espraia-se desde as feiras, enquanto grandes centros de

comércio, e, com esse crescimento, criou-se uma grande malha econômica, que

estimula o início das práticas bancárias. Burguês era, na Idade Média, a pessoa que

morava nos burgos, povoados protegidos por muros. Os burgos são, portanto, as

cidades protegidas por muros98.

Também as primeiras cidades antigas eram cercadas por muros, que

tinham a função de manter a defesa militar e enfatizavam a separação da

comunidade urbana e da rural. Elas apareceram 3.500 anos a.C. nos vales do Rio

Nilo, no Egito, do Tigre e Eufrates - hoje o Iraque, e nos vales do Rio Indo, onde

hoje é o Paquistão.

O pixo da Figura 94 é de 2010, feito embaixo da ponte da Av. Sumaré,SP.

O pixador buscou um nome para lançar que tivesse relação com os muros, as

muralhas e escolheu Burgo.

Figura 94 - Pixo: Burgo. Assinatura: G. Pixa desde 1989.

Fonte: Imagem: Juliana Abramides, 2017.

98Também as primeiras cidades antigas eram cercadas por muros, que tinham a função de manter a defesa militar

e enfatizavam a separação da comunidade urbana e da rural. Elas apareceram 3.500 anos a.C. nos vales do Rio

Nilo, no Egito, do Tigre e Eufrates - hoje o Iraque, e nos vales do Rio Indo, onde hoje é o Paquistão.

154

No filme Eu, Daniel Blake, de Ken Loach, o protagonista picha a parede do

prédio da previdência. Após sofrer um ataque cardíaco, o carpinteiro é

desaconselhado pelos médicos a retornar ao trabalho, e Daniel Blake busca, então,

receber os benefícios de auxílio doença. Entretanto, esbarra na teia da burocracia

governamental, potencializada pelo fato de ser um analfabeto digital. O filme

mostra a luta entre as misérias relativas ao mundo do trabalho, o controle do

Estado burocrático e o poder do Capital (Fig. 95).

Figura 95 - Eu, Daniel Blake (2016).

Fonte: Foto frame do filme.

A mundialização do capital e suas transformações na esfera do

mundo do trabalho, do Estado e da cultura expressam a extrema acumulação e

concentração do capital, ampliação da desigualdade social, agudização da

pobreza, desemprego estrutural, diferentes formas da exploração do

trabalho (subemprego, trabalho precarizados), ampliação do trabalho informal,

diversas expressões de negligência social e de violência, entre outras.

No capitalismo em chamas, o modo de crescimento econômico apresenta

contradições internas que se tornam crises cíclicas, fazem parte do processo de

acumulação e impulsionam a reorganização lógica de sustentação da relação

social - capital. O capital é um processo, uma relação social e não uma coisa

material, é um processo de reprodução da vida social por meio da produção de

155

mercadorias, em que todas as pessoas do mundo capitalista estão totalmente

implicadas e “[…] o processo mascara e fetichiza, alcança crescimento mediante a

destruição criativa, cria novos desejos e necessidades, explora a capacidade do

trabalho e do desejo humanos, transforma espaços e acelera o ritmo da vida”

(HARVEY,1992, p. 307).

A reorganização do capital após a última grande crise estrutural e sistêmica,

com características de queda da taxa de lucro e crise de superprodução, fez

ampliar a exploração e incentivar, no campo estatal, a retração dos serviços e das

políticas públicas. No modo vigente do “regime de acumulação flexível”, o capital,

para voltar a ampliar o lucro, busca implementar a desregulamentação das

relações de trabalho, a partir do desemprego estrutural, da terceirização e

redução dos direitos trabalhistas, no intuito de adotar o trabalho informal, o

trabalho em tempo parcial, intermitente e por período determinado. Essas

transformações precisam ocorrer no âmbito do Estado para que sejam

regulamentadas socialmente, e materializadas nas reformas trabalhista, sindical e

previdenciária fundamentalmente.

A crise estrutural do capital, de 1973, na esfera internacional deu-se na base

do modelo de produção taylorista-fordista, atingindo principalmente as taxas de

lucro das economias mundiais, como a dos EUA, Inglaterra e Alemanha. Nesse

momento, iniciam-se outros processos de organização do capital, que já não é

mais monopolista, mas, como acentua Otília Arantes (1998, p. 139):

Estamos diante de uma rede transnacional que interliga alguns nichos de desenvolvimento espalhados pelo mundo, que por sua vez vão escasseando em virtude do ímpeto destrutivo da competição capitalista atual: essa a fonte da nova marginalidade urbana, muito diversa da que conhecemos no auge do antigo processo de modernização.

Também fazem parte deste contexto histórico o fenômeno da estagflação

que corresponde à estagnação econômica com altas taxas de inflação; a

crise de superprodução e da crise internacional do petróleo como

elementos detonadores da estagnação econômica. O conjunto dessas

determinações impõe novas estratégias de recomposição orgânica

metabólica, do capital (Mészáros).

O perfil do capitalismo contemporâneo, em um todo planetarizado,

apresenta processos inéditos, sua dinâmica transfere a lógica interna do capital

156

para todos os processos da vida cultural e o desenvolvimento da socialização e

reprodução política, cultural e ideológica por meios eletrônicos - celular,

televisão, game, multimídia.

Sob a orientação macroeconômica internacional da financeirização da

economia, realiza-se a centralização do grande capital dos monopólios e das

grandes corporações internacionais, sob o jugo de superpotências

imperialistas que se tornam cada vez mais mundializadas e utilizando os países

periféricos para exploração da força de trabalho a partir das compras das

empresas nacionais privatizadas e das garantias do direito de propriedade dos

estrangeiros.

A base material é organizada de forma que, para reproduzir os seres sociais

- nós precisamos fazer parte desse processo; aliás, a (re)produção refere-se

justamente à produção da vida material e reprodução do modo de vida. E o

sistema econômico-social capitalista atinge altos patamares de desenvolvimento,

em curto período de tempo, ao longo de transformações abrangentes e difusas,

por meio da nova divisão internacional do trabalho; de empresas transnacionais

dinâmicas e rápidas; e intensa movimentação bancária internacional.

A acumulação flexível, como resposta do capital à sua própria crise, no

mundo do trabalho, advinda da reestruturação produtiva, atinge a objetividade e

a subjetividade da classe trabalhadora, ocasionando desemprego estrutural;

precarização do trabalho; diminuição de postos de trabalho; salários variáveis;

contratos flexíveis; ampliação do trabalho informal, precarizado, temporário,

intermitente, e na quebra de direitos sociais e trabalhistas99.

A realidade no mundo do trabalho encontra-se atravessados pela implantação

do neoliberalismo, um projeto político de Estado que redefine as regras, as

relações sociais e as representações coletivas adequadas à realização do capital.100

A Nova gerência liberal quanto às políticas públicas: com a redução de dotação

99Ver: Harvey (1992) e Antunes (1995). 100“O balanço do neoliberalismo é provisório, pois esse é um movimento ainda inacabado. O veredicto, porém

nos países mais ricos do mundo em que seus frutos parecem maduros pode-se dizer: Economicamente, o

neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente,

ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muito de seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais

desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo

alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores jamais sonharam, disseminando a simples ideia de que não

há mais alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se às suas

normas […]. Esse fenômeno chama-se hegemonia, ainda que, naturalmente, milhões de pessoas não acreditem em

suas receitas e resistam a seus regimes” (ANDERSON, 1995, p. 22).

157

orçamentária para políticas sociais universais, como educação e saúde,

privatizações e um conjunto de contrarreformas (do Estado, do ensino superior,

previdenciária, sindical e trabalhista); está na ponta um estado punitivo e

carcerário; atingindo e precarizando ainda mais a classe que só tem a vender a sua

força de trabalho.

A sociedade de classes cria cisões entre os seres e como esse modo operante

de ser no dia a dia está vinculado ao processo de dominação? Vejamos, a maioria

dos/as trabalhadores/as deve acordar cedo; pegar transporte lotado por duas

horas101 ou mais e trabalhar o dia todo, chegar em casa exaustos/as, fazer comida,

cuidar das crianças/adolescentes e no dia seguinte a história repete-se. Sobrando

um dia de folga na semana, o que resta a fazer: o prazer, comer, embriagar-se,

dançar, transar e, se der tempo, pois ainda tem-se as roupas a serem lavadas e

passadas, o cuidado e as brincadeiras com as crianças, arrumar a casa, etc.

Segundo Loicq Wacquant (2012)102, o surgimento de um novo regime de

"marginalidade avançada" é impulsionado pela fragmentação do trabalho

assalariado, o recuo do estado social e a disseminação da estigmatização

territorial. Isso foi confirmado na década de 1990, quando um governo de

esquerda após o outro atravessou a luta contra a criminalidade nas ruas até o posto

de prioridade nacional, nas zonas urbanas, em que a insegurança social se

aprofundava, com a normalização do desemprego e dos empregos precários. A

penalização da pobreza emerge como elemento central da implementação do

projeto neoliberal, o 'punho de ferro' do estado penal, acasalando-se com a 'mão

invisível' do mercado, em conjunção com o desgaste da rede de segurança social.

Mapeando o boom carcerário da América depois de 1973, ficou claro que a retração acelerada do bem-estar social, levando à infame "reforma do bem-estar" de 1996, e a expansão explosiva da justiça criminal eram duas mudanças convergentes e complementares para a regulação punitiva da pobreza racializada; que o "workfare" disciplinar e o "prisonare" castigatório supervisionam as mesmas populações despojadas e desonradas desestabilizadas pela dissolução do pacto fordista-keynesiano e concentradas nos distritos depreciados da cidade polarizada; e que colocar as frações marginalizadas da classe trabalhadora pós-industrial sob rígida tutela guiada pelo behaviorismo moral oferece um estágio teatral privilegiado no qual as elites governantes podem projetar a autoridade do Estado e reforçar o déficit de legitimidade que sofrem sempre que abandonam suas missões estabelecidas. proteção social e econômica. (WACQUANT, 2012, p. 68, grifos do autor).

101 Vídeo: Terminal Grajaú, Humilhação Coletiva, publicado em 28 de agosto de 2013, mostra a precariedade da

mobilidade dos/as trabalhadores/as na cidade de São Paulo, com enfoque no terminal Grajaú (Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=cuXKJvLHUgM&t=2s. Acesso em: mar. 2019). 102O autor chega às ruas do hyper ghetto (hiperghetto); às profundezas do gigantesco sistema carcerário americano,

a partir do trabalho de campo sobre as estratégias de vida de jovens afro-americanos em Chicago.

158

Há um número indefinido de processos nascidos da hibridização contínua

de práticas e ideias neoliberais com as condições e formas locais. Para

salvaguardar as instituições financeiras e reprimir a resistência popular, o

neoliberalismo não é uma ideologia econômica ou um pacote de políticas, mas

uma 'normatividade generalizada’ (WACQUANT, 2012).

A busca antropológica do neoliberalismo como elaboração de Estado,

conforme o mercado, centra-se no mecanismo institucional para estabelecer a

dominação e seu impacto operacional para a adesão social. Loïc defende que o

Estado regula ativamente - em vez de "desregulamentar" - a economia em favor

das corporações transforma o apoio social em um vetor de disciplina; e o direito

ao desenvolvimento pessoal em uma obrigação de trabalhar em empregos

precários. Nesse sentido, o autor estabelece três teses sobre a reconstrução do

Estado (e não redução ou minimização) como uma máquina de estratificação.

Tese 1: O neoliberalismo não é um projeto econômico, mas um projeto

político; o que implica não o desmantelamento, mas a reengenharia do estado.

Em primeiro lugar, os mercados, em toda parte, são e sempre foram criações

políticas: são sistemas de troca baseados em preços que seguem regras que devem

ser estabelecidas e arbitradas por autoridades políticas robustas e apoiadas por

amplos mecanismos legais e administrativos, que, na era moderna, equivale a

instituições estatais. Em segundo, as relações sociais e os construtos culturais

necessariamente sustentam as trocas econômicas e as pessoas normalmente se

irritam com as sanções do mercado: o Estado deve intervir e superar a oposição e

controlar as estratégias de evasão. Em terceiro, o neoliberalismo não tentou

restaurar o liberalismo do final do século XIX, mas superar a falsa concepção de

Estado do último século.

Tal reengenharia institucional pauta-se nos mecanismos do mercado; na

política social disciplinar, com a mudança do bem-estar protetor, concedida

categoricamente como direito, para o trabalho corretivo, sob o qual a assistência

social é condicionada à submissão ao emprego flexível e implica mandatos

comportamentais específicos (treinamento, testes, procura de emprego); a

política espacial expansionista, pela difusão da insegurança social nas zonas

urbanas impactadas pelo trabalho flexível e pela organização da soberania do

Estado controlador; e, por último, a responsabilidade individual como discurso

motivador e fluxo cultural que compõem esses vários componentes da atividade

159

do Estado. Essa concepção vai além da perspectiva da regra de mercado, na

medida em que concede papel dinâmico ao estado nas quatro frentes: econômica,

social, penal e cultural.

Tese 2: O neoliberalismo implica uma inclinação para a direita do campo

burocrático. Aqui o autor recupera Bourdieu, e sugere que o estado

contemporâneo é atravessado por duas batalhas internas que são homólogas aos

confrontos no espaço social: a batalha vertical (entre dominantes e dominados)

opõe a “nobreza de alto estado” dos formuladores de políticas com noções

neoliberais e que desejam fomentar a mercantilização; e a "nobreza do baixo

estado" dos executantes que defendem as missões de proteção da burocracia

pública. A “mão direita” é a ala econômica que pretende impor restrições fiscais e

disciplina de mercado, e a "mão esquerda", o estado, a ala social, que protege e

apoia as categorias desprovidas de capital econômico e cultural. A via da justiça

criminal - a polícia, os tribunais, a prisão e suas extensões: condicional, liberdade

condicional, bases de dados judiciais, responsabilidades civis e burocráticas

ligadas a sanções criminais, são um componente do Estado disciplinador (mão

direita).

It follows that the velocity, magnitude and effects of this institutional torque will vary from country to country, depending on its position in the international order, the makeup of its national field of power and the configuration of its social space and cultural divisions. (WACQUANT, 2012, p. 74).

Segue-se que a velocidade, a magnitude e os efeitos da toada institucional variam de país para país, dependendo de sua posição na ordem internacional, da composição de seu campo nacional de poder e da configuração de seu espaço social e divisões culturais. (WACQUANT, 2012, p. 74).

Tese 3: O crescimento e a glorificação da ala penal do estado são um

componente integral do Leviatã neoliberal. Com poucas e precisas exceções

(Canadá, Alemanha, Áustria e partes da Escandinávia), o encarceramento

aumentou em todas as sociedades pós-industriais do Ocidente; cresceu nas nações

pós-ditaduras da América Latina e explodiu nos estados-nações.

A constituição dos pobres urbanos está fadada ao sistema prisional, à

precarização do trabalho; o que se encontra composto dos imigrantes em situação

de trabalho ilegal e semiescravidão; os pauperizados: pessoas em situação de rua,

com deficiência mental, ou física, e os idosos; a população estagnada:

trabalhadores com condições de vida e trabalho insalubres e mal pagos (BRAGA,

160

2013). Por exemplo, em junho de 2013, os donos e gerentes de 14 lojas Seven

Eleven, nos EUA, foram indiciados e cobrados por fazerem “o sistema de

plantation contemporânea”, forçando imigrantes sem documentos a trabalhar

cem horas por semana, mas pagando-lhes menos do que o mínimo e forçando-

os a viver em habitações lotadas e degradadas.

Existe uma parcela populacional à espera do trabalho que. com a

precarização do trabalho e o corte em políticas sociais, conforma-se nos pobres

urbanos; os mesmos que vivem em condições alarmantes no cotidiano e que

acabam por aceitar o trabalho e salário que tiver em vista a desregulamentação

trabalhista ou mesmo a falta de qualquer regulação prévia.

O aumento implacável da população carcerária é, além disso, apenas uma

manifestação grosseira e superficial da expansão e exaltação do Estado penal na

era do mercado em glória. Outros indicadores incluem o desdobramento agressivo

da polícia nos bairros, com a propaganda midiática do perigo criminal constante

e do combate ao “crime” como prioridade dos governos neoliberais.

Não é por acaso que os EUA ficaram hiper punitivos depois de meados da

década de 1970, assim como o trabalho precarizado, o apoio social foi revertido,

o gueto negro implodiu e a pobreza endureceu, na metrópole dualista. Não é por

acaso que o Chile se tornou o principal encarcerador da América Latina, no início

dos anos 80 e o Reino Unido a locomotiva penal da União Europeia, no final dos

anos 90, quando o Estado se torna neoliberal. Existe profunda conexão estrutural

e funcional entre o domínio do mercado e a punição, após o fim da era

keynesiana-fordista.

Em novembro de 1990, assume a presidência dos EUA Ronald Reagan e,

em 1994, inicia-se a reestruturação produtiva na América, com ondas de milhões

de demissões e aumento da carga de trabalho com o mesmo salário; enquanto

isso, os americanos mais ricos tiveram um corte de metade dos impostos. Com o

congelamento de salários, houve aumento de empréstimos, explosão de falências

pessoais, crescimento do uso de antidepressivos e encarceramento em massa, e

subida dos custos de saúde.

O Estado penal foi implantado nos países que percorreram o caminho

neoliberal porque promete ajudar a resolver os dois dilemas. a mercantilização

criada para a manutenção da ordem social e política: (1) reprime os crescentes

deslocamentos causados pela normalização da insegurança social na base da classe

161

e da estrutura urbana; e (2) restaura a autoridade da elite governante, ao reafirmar

a “lei e ordem”, justamente quando essa autoridade está sendo minada pelos

fluxos acelerados de dinheiro, capital, sinais e pessoas, além das fronteiras

nacionais e pela limitação da ação estatal por parte dos governos, órgãos

supranacionais e capital financeiro. O conceito de campo burocrático ajuda a

capturar essas missões de punição gêmeas na medida em que nos direciona a

prestar igual atenção aos momentos materiais e simbólicos da política pública -

aqui, ao papel instrumental do disciplinamento de classes e à missão

comunicativa de projetar soberania, a justiça assume. Também nos convida a

passar de uma concepção repressiva para produtiva de penalidade, que enfatiza

sua qualidade performativa (WACQUANT, 2008b), de tal forma que podemos

discernir que o aumento de orçamentos, pessoal e precedência dada aos órgãos

policiais e judiciais, em todas as sociedades transformadas pelo neoliberalismo,

como programa econômico, não são uma heresia, uma anomalia ou um

fenômeno transitório, mas componentes integrais do estado neoliberal.

Adentrando o universo carcerário, há algumas décadas, nos EUA, os

encarcerados são os negros e latinos; 13% da população no país é negra e 40% da

população está presa. Além da prisão seletiva e das péssimas condições nas

prisões103, o sistema de encarceramento em massa não funciona, tendo em vista

que 70% dos presos voltam aos sistema prisional em três anos104. Os EUA abriga

5% da população mundial e 25% dos presos no mundo e o Brasil é o 3o país no

mundo em total de população carcerária.

O projeto neoliberal, de caráter conservador e punitivo, expressa a

naturalização da sociedade capitalista e das desigualdades sociais a ele inerentes,

tidas como inevitáveis. Essa forma política realiza ainda o desmonte das

conquistas sociais acumuladas no processo de luta da classe

trabalhadora consubstanciadas na conquista de direitos sociais.

Os EUA, um país que segue o modelo de gestão neoliberal, do Estado

Mínimo; o país dos grandes monopólios, como a Amazon, o Facebook e o Google,

103Em 2013, estima-se que 30 mil presos, nas prisões de toda a Califórnia, tenham participado de uma greve de

fome para protestar contra o confinamento solitário e outras condições de tortura. 104Sobre sistema carcerário: a sociedade escandinava adotou um modelo de suspensão de liberdade com dormitório

privativo, lavanderia e comida feita pelos presos, ajuda coletiva de mentores que são preparados por 3 anos para o

cuidado, conhecimento de psicologia e valores comunitários; Os presos são encorajados a guardar dinheiro de ao

menos 50% do que ganham; o trabalho na prisão tem o mesmo valor-hora médio de fora da prisão e as celas são

quartos com duas trancas, sendo a tranca de fora usada apenas para a pernoite.

162

apresenta uma grande parcela da população em situação de precariedade. A

média de riqueza estadunidense, por raça, no ano de 2016, era de US$ 171 mil da

família branca e US$ 17.600 da família afro-americana. Em muitas comunidades,

o sistema prisional está repleto de pessoas negras, e apenas 30% da população de

americanos negros se forma na universidade.

A desigualdade só aumentou, ao longo dos últimos cem anos. Os afro-

americanos ganham menos, e estão mais suscetíveis ao desemprego, em

decorrência da discriminação racial dos patrões. Por outro lado, 75% de brancos

são proprietários de casas, enquanto menos de 50% de negros e latinos compõem

essa porcentagem.

A desigualdade, em relação à propriedade, acumulou por séculos o valor

da moradia. Durante a grande depressão, quase 50% dos proprietários urbanos

estavam endividados e, então, Franklin Roosevelt deu início ao New Deal, quando

a população passa a ter o direito ao crédito hipotecário; no entanto, a

administração federal não o concedeu em áreas que considerava de risco,

geralmente calculado com base em raça. A mudança de uma família negra era

uma ameaça ao preço dos imóveis. Quando a administração federal de hipotecas

fez o mapa indicador de quais seriam as áreas de risco, pintou de vermelho as

regiões com mais famílias negras. Os frutos do racismo viraram justificativa para

mais racismo, pois a segregação afetou o acesso a empregos; a classificação da

escola como segura; a valorização imobiliária.

Os EUA, a terra das oportunidades? A lacuna entre ricos e pobres, nos

últimos 30 anos, aumentou e os ricos ficaram ainda mais ricos. Os underclass,

novos pobres urbanos, incluem muitos afro-americanos, que estão retidos por

mais de uma geração no ciclo de pobreza. São os mais pobres que vivem em

bairros com tráfico de drogas, gangues e violência, nas grandes metrópoles. E os

negros são as pessoas que mais encontram barreiras para adquirir riquezas.

Figura 96 - Little Tokyo/LA (2018)

163

Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2018.

Em Paulicéia Desvairada (1922), Mário de Andrade insulta o burguês e ataca

as elites retrógradas que atuam no capitalismo105 dos anos 1920 na metrópole

industrializada da cidade de São Paulo. O autor, partícipe do empenho

modernista para destruir um passado literário, político e cultural que mantinha a

sociedade brasileira amarrada a comportamentos que vigoraram em fins do

século XIX, se questiona: Afinal, quem é esse burguês que se encontra plasmado

da herança conservadora do passado? Quem é o burguês em sua ode? É o inimigo

indiferente à modernização estética e social; o ser refugiado na bolha social e

linguística. O asséptico satisfeito de si, diz Mário:

Eu insulto o burguês-funesto! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Fora os que algarismam os amanhãs! Olha a vida dos nossos setembros! Fará Sol? Choverá? Arlequinal! Mas à chuva dos rosais O êxtase fará sempre Sol! (Mário de Andrade, 1922).

Enquanto Oswald de Andrade enfatizava a decadência da burguesia

cafeicultora, Mário de Andrade, ao criticar o burguês urbano, expressava o ritmo

105 Categoria de interpretação histórica.

164

da modernização e restauração da cidade de São Paulo. A metropolização torna-

se objeto do exercício poético desse escritor106. A cidade é tema fundamental de

seu primeiro e último livro de poesia: Paulicéia Desvairada (1922) e Lira Paulistana

(1945).

Do ponto de vista formal, são versos livres, uma linguagem coloquial

marcada pela irreverência e crítica às convenções burguesas, elemento tanto da

estrutura formal quanto do conteúdo crítico e radicalmente contrário à burguesia,

no mais importante momento histórico-cultural do século XX, que dá origem às

expressões artísticas concentradas na Semana de Arte Moderna, no caso

brasileiro, mas, no todo, críticas que já eram feitas no romantismo e que se

agudizam no modernismo; a postura revolucionária no intento de romper com

os velhos padrões na arte e literatura.

Figura 97 - Casarão na Avenida Paulista, 1919, entre as ruas Pd. João Manuel e Alameda Ministro Rocha Azevedo, construído em 1905, foi a residência do Barão do Café,

Joaquim Franco de Mello

Fonte: Imagem por Julio Rocha, 2016 (companheiro da autora).

Os processos de modernização e de modificação urbanas acontecem

inúmeras vezes ao longo da reprodução do capital.

[...] a urbanização do capital pressupõe a capacidade de o poder de classe capitalista dominar o processo urbano. Isso implica a dominação da classe capitalista não apenas sobre os aparelhos de Estado (em particular, as instâncias do poder estatal que administram e governam as condições sociais e infraestruturais nas estruturas territoriais), como também sobre populações inteiras -

106 Em 1922, depois de ter participado da Semana de Arte Moderna, lançou a primeira edição de Paulicéia Desvairada. Sobre a cidade, publicou também outros livros de poemas, como Lira Paulistana (1945).

165

seus estilos de vida, sua capacidade de trabalho, seus valores culturais e políticos, suas visões de mundo. (HARVEY, 2014, p. 133).

O poeta modernista está consciente das modificações modernizantes de

sua cidade natal, no processo de expansão do capital, e busca uma linguagem para

exprimir a metrópole. A cidade explode em setores de comércio e indústria.

Demograficamente e na implantação de equipamentos e serviços, ocorrem a

crescente ebulição e reprodução do espaço urbano destinadas à valorização do

solo urbano. Nesse processo, a metrópole paulistana cria uma identidade própria

com a verticalização do maior centro da América do Sul.

À época de Mário de Andrade, o momento estético parametriza-se por um

modernismo importado da Europa, na “vanguarda brasileira”107. Há uma

independência mental brasileira, mas com claras inclinações para as influências

europeias, ao mesmo tempo em que conseguir uma expressão artística brasileira

era um dos principais objetivos do modernismo.

Em 1942, Mário de Andrade situou os alvos do movimento: o direito

permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e

a estabilização de uma consciência criadora nacional. Essa busca da brasilidade

respondia, no plano cultural, às profundas modificações vividas pela sociedade

brasileira e, especialmente, pelas elites paulistas, nos primeiros 20 anos do século

XX. Anos de intensa ebulição cultural e do nascimento, no Brasil, da cultura

urbana. A abolição da escravatura, a industrialização, os ciclos migratórios,

deslocaram a supremacia da aristocracia rural para uma oligarquia urbana de

sotaque estrangeiro, no intenso crescimento do intercâmbio com a Europa e os

EUA.

No século XXI, a Europa Central perde esse caráter influenciador das

tendências artísticas e culturais, e torna-se inegável o potencial influenciador dos

EUA na cultura mundializada - num mundo em que o imperialismo burguês

apresenta caráter hegemônico. A ética consumista hedonista propõe o modelo

estandardizado, a hiperglobalização, a partir da esfera de mercado global, que têm

na revolução informacional a agilidade para fixar imagens que influenciam, a

partir da cultura do consumismo, culturas do mundo inteiro.

107Tarsila do Amaral, de família rica alicerçada na fortuna do latifúndio e da monocultura cafeeira, estuda na

Europa; Oswald, 10 anos antes da semana de 22 também volta da Europa impressionado com os movimentos

renovadores, como o futurismo de Marinetti, e os versos livres de Paul Fort; Anita Malfatti estuda na Alemanha e

nos EUA no choque de se romper com a tradição predecessora dos objetos e faces delimitadas pelo expressionismo

e as paisagens deformadas; o escultor Victor Brecheret volta de Roma/Itália em 1917.

166

Para Trotsky, do ponto de vista histórico-antropológico, a civilização

aparece com o surgimento da cultura (kultur), isto é, quando agrupamentos

humanos criam e transmitem formas de conhecimento, valores e representações.

Vinculados a um modo específico de produção da vida material de dadas

sociedade e época, trabalho e cultura estão nas raízes do processo de constituição

e desenvolvimento humana/o. É pelo trabalho que o ser se autoproduz e satisfaz

as necessidades de sobrevivência enquanto conservação da existência: alimentos,

proteção, roupas, habitação, comida e bebida. Após satisfeitas as necessidades

básicas, outras aparecem e o atendimento dessas novas necessidades constitui o

primeiro ato histórico.

Por outro lado, em Lukács, a cultura aparece de maneira oposta à

civilização (Zivilisation), compreendendo o conjunto das objetivações dotadas de

valor e supérfluo ao sustento imediato. “Por exemplo, a beleza interna de uma

casa pertence ao conceito de cultura; não sua solidez, nem sua calefação, etc.”

(LUKÁCS, 1978, p. 3]. Em Marcuse (1982), há um conceito de cultura geral que

expressa a implicação do espírito no processo da totalidade da vida social em

determinado momento histórico, tendo em vista que a reprodução de ideias –

nos âmbitos cultural e espiritual – e a reprodução material – a civilização – devem

ser entendidas como unidade indissolúvel. A cultura é articulada às outras esferas

da vida social, e decifrada nas tendências sociais gerais dos fenômenos e pelos

quais seus interesses se realizam.

Nos últimos 40 anos, as mudanças na economia e na política, acentuam as

modificações nas demais esferas da vida social. A condição do capitalismo

mundial alterou-se muito e no âmago desse processo a lógica cultural do

“capitalismo tardio”108(JAMESON,1984) também se modifica. O tempo e o espaço

sociais são constructos culturais que dependem, portanto, do modo distinto de

produção agregado de conceitos sociais de espaço e tempo (HARVEY, 1992).

A apreensão do tempo na atualidade coloca o indivíduo refém do instante

presente por não se abrir ao passado e nem ao futuro, o que permite dizer que a

atuação em projetos, do indivíduo que não apresenta identidade pessoal, a qual

depende da persistência do ‘eu’ através do tempo, será nula, pois, este não se lança

ao futuro. A sociedade industrial dependia de uma identidade persistente a

108 Ou capitalismo transnacional, sociedade da imagem, capitalista midiático. Lembramos que Jameson parte de

Derrida e Guy Debord para as elaborações teóricas às quais temos nos referido.

167

sociedade do esgotamento (Byung-Chul Han) necessita de flexibilidade, multitarefa

para o aumento produtivo.

Assim considerado pela linha do pensamento crítico americano, o pós-

moderno109 caracteriza a dimensão cultural da fase superior do capitalismo

avançado (HARVEY, 1992).

Na pós-modernidade, embora incorpore a razão instrumental

caracterizada na modernidade, expressão cultural do capitalismo em seu período

de expansão econômica, consubstanciado no fordismo e na política de bem-estar

social do Estado keynesiano, acrescentam-se ainda formas irracionalistas de

apreensão, expressão e representação da realidade.

Quando, em 1984, faz o ensaio Mapeando o Pós-moderno, Andreas Huyssen

indica que a trajetória do pós-moderno apresenta uma confusão de códigos, o que

dificulta o entendimento e a demarcação desse período histórico. De toda forma,

o autor identifica que ali, na década de 1980, há uma transformação cultural

sensível em curso, que modifica os parâmetros na estética e nos modos culturais,

no entanto, seu ponto de vista difere do defendido por Fredric Jameson110, pois o

último, identifica o pós-moderno com a lógica de um novo estágio de

desenvolvimento do capital, não nos esqueçamos que, é também na década de 80,

o principal momento em que no complexo de reestruturação produtiva, o

Toyotismo111, alcança poder ideológico na era da mundialização do capital e de

sua forma societal manipulatória.

Nosso entendimento é que, se continuamos no capitalismo em chamas, não

é possível ser outro tempo histórico e a relação de continuidade mantida, ou não,

já que o próprio termo ‘pós-modernismo’ o estabelece enquanto fenômeno

relacional: “O modernismo do qual o pós-modernismo se separa permanece

109 “Para começar, alguns breves comentários sobre a trajetória e as migrações do termo `pós- modernismo`. Em

crítica literária, a expressão remonta ao fim da década de 50, quando o termo foi usado por Irving Howe e Harry

Levin para lamentar a queda de nível do movimento modernista. [...] foi usado enfaticamente pela primeira vez

nos anos 60 por críticos literários como Leslie Fiedler e Ihab Hassan, que sustentaram visões amplamente

divergentes do que fosse literatura pós-moderna. Foi somente no início até meados da década de 70 que o termo

ganhou um curso mais geral, aplicando-se primeiramente à arquitetura e depois à dança, ao teatro, à pintura, ao

cinema e à música.” (HUYSSEN, 1984, p. 24 - self made translation). 110 Jameson foi estimulado pelo estudo de Ernest Mandel - Late Capitalism/O Capitalismo Tardio/ de 1977. 111 “[...] o potencial heurístico do conceito de toyotismo é limitado `a compreensão de uma nova lógica de

produção de mercadorias, novos princípios de administração da produção capitalista, de gestão da força de

trabalho, cujo valor universal é constituir uma nova hegemonia do capital na produção, por meio da captura da

subjetividade operária pela lógica do capital.” (ALVES, 2010, p.31).

168

inscrito na própria palavra com a qual descrevemos nossa distância do

modernismo” (HUYSSEN, 1984, p. 22).

Passados todos esses anos, conseguimos identificar novas formas estéticas

ou reciclagens do modernismo, ou mesmo outros tempos históricos da cultura?

Se o consideramos um tempo histórico, o pós-modernismo ainda está vigente?

Quais as características potencialmente transformadoras, na perspectiva

emancipatória, que se vinculam a um ideário pós-moderno? Em termos de arte,

a vertente crítica deixa de existir? Se levarmos ao campo da arte conceitual

contemporânea, talvez sim. Mas basta olhar para o rap, o teatro e as artes urbanas

para sabermos que há uma busca potencial de crítica social fundante.

Partimos para a análise do pós-moderno enquanto uma ideologia, ou "uma

forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada"

(MÉSZÁROS, 1996, p. 22), donde a cultura se caracteriza como elemento

específico da sociedade de consumo, um processo de culturalização, tal como

vemos em Jameson. A dinâmica ideocultural do pós-moderno contribui para

reverter os avanços políticos da década de 1960 e o avanço ao conservadorismo?

Ou essa dinâmica está imbuída de críticas e rebate exatamente a perda desse

poder de questionamento que o “alto modernismo” atinge ? A cultura vincula-se

aos sujeitos históricos que a produzem e, portanto, se vincula a certas condições

de existência, produção e reprodução social.

até que ponto modernismo e vanguarda, como formas de uma cultura de oposição, estiveram, entretanto, conceitual e praticamente ligadas à modernização capitalista e/ou ao vanguardismo comunista, esse irmão gêmeo da modernização. (HUYSSEN, 1984, p. 24).

Se o modernismo continha, no seu interior, o racionalismo, o movimento

futurista e concretista e o anticapitalismo radical, romântico e utópico, também

continham os posicionamentos modernizantes e os antimodernos. Não podemos

crer que a versão do modernismo tão somente triunfou e, portanto, a nossa

referência para a cultura unicamente pode ser ela e nos esquivar íamos

prontamente do “pós-modernismo”, sendo que, como diz José Paulo Netto (2010,

p. 15): “O que se pode designar como movimento pós-moderno constitui um campo

ídeo-teórico muito heterogêneo e, especialmente no terreno das suas inclinações

políticas, pode-se mesmo distinguir uma teorização pós-moderna de capitulação

e outra de oposição” (grifos do autor).

169

Na década de 1960, nos EUA, nas artes, o estatuto de museu surge como

detentor de seleção da riqueza artística. A fase inicial do pós-modernismo envolve

um ataque iconoclástico à “arte institucional” (BÜRGUER, 2008). O modo como

a arte é socialmente percebida e como é produzida, distribuída, comercializada e

consumida. Na teoria da vanguarda, o autor argumenta que a principal meta das

vanguardas europeias - o movimento Dadá, o início do movimento surrealista e

toda a arte de vanguarda pós-revolução soviética -, foi atacar e minar a arte

institucional burguesa. Ou seja, a separação da “grande arte” da vida cotidiana.

Como vemos nas defesas de Trotski (1981), a fusão entre arte e vida, quer romper

com a tradição da “obra de arte autônoma”.

A arte moderna emancipa-se de instâncias das quais dependia, como o

reino, a aristocracia, o clérigo, a igreja. A/o artista individual ganha notoriedade

pelo desenvolvimento autônomo imputado nas obras de arte.

A principal característica da arte na idade moderna é sem dúvida a autonomia. A ordem burguesa não só liberou a arte de suas tutelas tradicionais (da igreja à corte), como instalou-se num mundo à parte, muito além do domínio material da reprodução da vida. Graças a essa transcendência da dimensão estética, passou para o primeiro plano o livre desenvolvimento da obra segundo sua legalidade interna. [...]. A arte autônoma deve portanto sua emancipação à racionalização capitalista da dimensão cultural. [...] Cumprindo seu destino moderno, a arte verá sua autonomia converter-se em princípio de dissolução. (ARANTES, 1998, p. 22).

Na década de 1960, a politização da cultura, caracterizada como de

contestação, tem, em uma de suas vertentes, o discurso anti-institucional, que se

torna força motriz para os pós-modernistas americanos:

Talvez pela primeira vez na cultura norte-americana fez sentido político uma revolta vanguardista contra uma tradição de grande arte e o que era percebido como seu papel hegemônico. A grande arte havia florescido e se institucionalizado na cultura burguesa dos museus, galerias, concertos, discos e livros de bolsos dos anos 50. (HUYSSEN, 1991, p. 38).

Essa vanguarda anti-institucional é a da contracultura, dos movimentos

pacifistas, das revoltas universitárias, de visão antagônica à “grande arte” dos

museus, identificadas com aquelas vanguardas e que está vivenciando o primeiro

dos diversos momentos de booms tecnológicos. São dessa década o primeiro chip,

a fita cassete, a TV em cores, o braço mecânico automatizado – o robô industrial.

Os formatos de performances, happenings, vídeo-arte, as artes psicodélicas, os

teatros alternativos e de rua abraçam as novas tecnologias pós-industriais (1960,

170

70 e 80) que se tornam parte da estética do pós-moderno, isso mesmo nos dias

atuais quando se convenciona o uso dos microfones sem fio, por exemplo, nas

performances, uma tecnologia surgida na década de 1980.

Os anos 1960 foram de questionamentos políticos e também artísticos

quanto ao papel do artista, a função do público, o sistema artístico de produção e

exposição. O público é repensado em posições ativas, retirando-o de uma situação

contemplativa perante a produção artística. Questiona-se também a ideia de obra

como algo relativo ao divino, eterno e merecedor de contemplação, surgindo a

ideia de difundir a arte no cotidiano e mesmo apresentá-la efemeramente.

Questionavam-se instâncias até então legitimadoras da arte: os museus, as

galerias, os institutos e também o mercado de arte, o que resultou em crescente

negação e insubordinação dos artistas112.

Quando então o pós-moderno passa a ser o tempo de hegemonia do

capital? Justamente o tempo em que o pensamento da oposição não é mais

operante na cultura, do ponto de vista da crítica teleológica, no momento de

radicalidade do fetichismo da mercadoria como a nossa natureza e realidade

únicas e a pulsão de morte, o conformismo, a indiferenciação e o hedonismo

enquanto realização do ser, tomam conta (HANSEN, 2000).Na década de 1970 é

que a noção teleológica começa a ser extinta e se inicia o período “pós-

vanguardas”; as distinções perdem terreno, os movimentos da década anterior

passam a ser questionados. Esse é o momento em que ganha força o fragmento, a

dispersão, o pastiche, o saque do vocabulário, imagens, temas e formas pré-

modernos, não modernos e modernos. Em 1970, as bases de sustentação do

capitalismo mundial começam a mostrar sinais visíveis de exaurimento em suas

formas de produção e reprodução, impulsionando uma das maiores crises do

modo de produção capitalista: a crise de superprodução, a queda tendencial da

taxa de lucro, crise do petróleo, o fim do padrão ouro internacional, e início da

derrocada de um tipo de ideário socialista - com a crise do socialismo real

existente.

Desse momento em diante, passamos a armazenar tudo nos computadores

e a cultura de massas, que incorpora todas as conquistas artísticas no campo da

112 Utilizar-se dos espaços abertos de maneira a assumir novas relações entre o privado e o público, em oposição

à academia, às escolas de artes e às galerias, e nascer enquanto arte de protesto é um dos potenciais das artes de

rua.

171

publicidade, ganha vida. Naquela década, há o advento dos microprocessadores,

e em 1976 o Apple I torna-se o primeiro computador pessoal. Também se

embaralham as noções daquilo que se torna uma lacuna e um borrão, entre a

grande arte e a cultura de massas, em que tudo se torna arte, e se cristaliza em

princípios do século XXI.

A valorização extremada do prazer imediato e individual nasce no mundo

capitalista moderno. Na etapa atual histórica, a cultura é também produto, a partir

da venda dos “estilos de vida”, a cada nova tendência e novo padrão de

comportamento individual e social, surgem novos nichos de mercado: “a

produção estética hoje está integrada à produção das mercadorias em geral: a

urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que cada

vez mais pareçam novidades” (JAMESON, 1991, p. 30).

Será bem-sucedida a tese de que a pós-modernidade é a força motriz de

influência na reprodução cultural na contemporaneidade? E em que medida?

Tudo é arte ou o fim da “obra de arte?” Mas, e as razões de ser dos movimentos

neoconservadores, neofascistas, reacionários, estarão vinculados a esse ideário?

Ou como entender a relação dialética entre alvorecer e decadência, destruição e

novos processos de encadeamentos artísticos?

Para David Harvey (1993), a experiência da temporalidade humana, na

“condição pós-moderna” é esquizofrênica113. O esquizofrênico é aquele que

vive num presente perpétuo sem fazer conexões entre passado, presente e

futuro. A experiência concreta do tempo pode se dar pela linguagem, quando

conectamos fatos da nossa história em frases, mas o esquizofrênico não chega

a articular a linguagem dessa maneira, vivenciando, portanto, como assinala

Frederic Jameson (1984, p. 22), que será “[…] uma experiência da materialidade

significante isolada, desconectada e descontínua que não consegue encadear-

se em uma sequência coerente”.

A apreensão do tempo, na atualidade, coloca o indivíduo refém do instante

presente numa “contemplação virtual hipnótica” por não se abrir ao passado e

nem ao futuro, o que permite dizer que a atuação em projetos é do indivíduo que

não apresenta identidade pessoal, a qual “[…] depende da nossa persistência do ‘eu’

e de ‘mim’ através do tempo” (idem), será nula, pois o homem, como projeto, é

113 A esquizofrenia refere-se aqui a um modo de compreender a realidade; nesse sentido, não se propõe, de

forma alguma, a constituir-se como diagnóstico.

172

aquele que se lança ao futuro. Jameson continua:“O esquizofrênico está sujeito

desse modo a uma visão indiferenciada do mundo no presente, uma experiência

que não é de modo algum agradável” (1984, p. 23).

O presentismo como ideologia dominante da pós-modernidade dá

sustentação a todas as formas de alienação, em que a fuga da realidade anestesiada

na imediaticidade do prazer interfere no modo de vida dos seres sociais. É o que

notamos no bojo de tal conjunto heterogêneo de ideias e valores - a ressonância

cultural cotidiana e não apenas no campo da arte ou no campo estético. E aqui,

novamente, concordamos com Jameson quanto a uma lógica cultural da

sociedade “pós-industrial”, em algo colado ao econômico, por isso ser difícil

examiná-la em separado.

A “cultura de consumo” devora objetos, ideias e ideais “[...] e, nela, a própria

distinção entre realidade e representações é esfumaçada: promove-se uma

semiologização do real, em que os significantes se autonomizam em face dos

referentes materiais e, no limite, se entificam”. (NETTO, 2010, p. 14, grifos do

autor).

Se pensarmos no potencial da comunicação nesse processo como um

elemento importante que se aglutina à fase a-histórica da ideologia, verifica-se a

produção cultural do mundo todo de muitos períodos históricos, o que

complementa a “aflição contemporânea” de que tudo já foi feito. Parece que um

ideário pós-moderno se aproveita justamente da crise do moderno.

O incêndio do prédio do Museu Nacional114, na Quinta da Boa Vista, no Rio

de Janeiro em 2018, é o símbolo da falência da sociedade brasileira e de um tipo

114 Em 10 junho de 2018, o Museu Nacional, localizado no Rio de Janeiro completou 200 anos, pouco menos de

2 meses depois, foi devastado pelas chamas. Em 2010, o incêndio foi no Instituto Butantã; em 2013, no Memorial

da América Latina; em 2014, o Liceu de Artes; em 2015, o Museu da Língua Portuguesa; em 2016, a Cinemateca;

e agora, em 2018, o Museu Nacional. O Museu Nacional continha, entre tantos itens, o maior acervo de peças,

documentos e pesquisas sobre os povos indígenas na América do Sul. Coleções etnográficas, de aracnídeos,

borboletas, insetos e moluscos, fósseis, a biblioteca do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do

museu, um dos acervos mais completos na área, contando com 37 mil volumes, constituído ao longo de mais de

50 anos.

173

de sociedade chamuscada. Vimos no Brasil o adensamento da conduta

reacionária, o descaso a certa história que aconteceu no País, somado aos

etnocídios e extermínios diários, estão marcados no nosso sangue. Que país é esse

que não vê valor na proteção das origens? No irracionalismo, a história não

importa, principalmente nos países que devem ser controlados para não serem

potência, como o Brasil.

Os objetos guardados em formol, mumificados, ou preservados atrás dos

vidros das vitrines, compunham a exposição do passado. No Brasil, a dizimação

de muitos povos, como os Tupinambá, fez com que todo esse material coletado

ao longo dos séculos, somados às pesquisas desenvolvidas especialmente no

século XX, tenha se tornado fonte de conhecimento e retomada de uma história

que – passada oralmente por vários séculos antes e mesmo depois do processo de

colonização – desapareceu com os povos que as alimentavam. Tudo o que

compunha a história dos chamados povos sem história. Além de múmias egípcias,

coleção greco-romana, fósseis de animais pré-históricos, o crânio mais antigo

encontrado em território nacional e nas Américas *Luiza*, objetos de antigas

culturas sul-americanas, bibliotecas doadas por cientistas ligados ao museu,

documentos históricos, relatórios científicos raros ou não, coleções de espécies da

fauna, flora e da geologia, especialmente das brasileiras, coletadas ao longo de

quase dois séculos por pesquisadores de várias procedências.

Boa parte do acervo era também objeto de pesquisas atuais, de arqueólogos,

antropólogos, biólogos, historiadores, que tinham nesses objetos a fonte primária

de seus trabalhos acadêmicos. Tudo o que estava guardado no edifício do Museu

virou cinza.

Ainda perdemos a nossa cultura devastada pela invasão portuguesa, um

massacre de vidas e de saberes que assola até hoje nossa cultura originária. Depois,

ao longo do processo de miscigenação advindo dos colonizadores, fugitivos de

guerra, imigração constante ao longo dos últimos 140 anos vimos compondo uma

outra base de saberes e vivências culturais que mais uma vez vem sendo dizimada.

Ora, esse é um contínuo processo de dominação.

Por outro lado, danificar, destruir e inscrever em esculturas públicas pode

ter um significado de questionar a memória e a história. Afinal, por quê temos

174

figuras gigantescas de colonizadores e assassinos ao longo das cidades, nomes de

ruas de ditadores e não temos explícitas as figuras representativas, saberes e povos

originários ou das classes populares? Quando questionam a postura do

movimento de pixadores que destroem monumentos históricos, o que se

defende? São monumentos feitos por quem, para quê? O Pixo Manifesto Escrito

(PME) foi um exemplo de guerrilha anônima iniciada nas mobilizações com o

movimento passe livre em 2013 na cidade de São Paulo: fizeram atos como pixar

o Monumento à Bandeira, quando da aprovação da Proposta de Emenda à

Constituição (PEC) 215115. Esse foi um dos momentos de participação política mais

efetiva pelos pixadores que vinham no ano de 2013 se engajando nos atos pelo

passe livre. Todos os protestos realizados pelo PME geraram repercussão sem

expor ou creditar os membros do grupo pelos feitos (Fig. 98).

Figura 98 - Monumento às bandeiras, escultura de Victor Brecheret, foi alvo de tintas

como formas de protesto diversas vezes e também com outros intuitos

115A principal medida prevista pela PEC 215 (em tramitação desde 2000) pretende transferir do poder Executivo para o

Legislativo a atribuição de demarcar as terras indígenas. O Congresso brasileiro tem uma bancada ruralista e de apoio ao

agronegócio muito forte. Segundo estudo produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA), esta transferência de competência

“impactaria diretamente os processos de demarcação de 228 Terras Indígenas (TIs) que ainda não foram homologados. Essas

terras representam uma área de 7.807.539 hectares, com uma população de 107.203 indígenas. Outro aspecto relevante é a

abertura das TIs para empreendimentos de alto impacto socioambiental, como estradas e hidrelétricas – o que é proibido na

atualidade e pode afetar todas as 698 TIs do país. […]”. Ainda o texto também analisa as inovações incluídas pelo deputado

Osmar Serraglio (PMDB/PR) no relatório da PEC 215 apresentado no início deste mês. Entre elas, estão a possibilidade de

aplicação retroativa dos efeitos da PEC sobre TIs já demarcadas, homologadas e registradas e a inclusão da tese do “marco

temporal” no texto constitucional – tanto para Terras Indígenas, quanto para Territórios Remanescentes de Quilombo. De

acordo com essa tese, só teriam direito às terras as populações que detivessem sua posse em 5 de outubro de 1988, data de

promulgação da Constituição. Caso a PEC 215 e as propostas agregadas a ela sejam aprovadas, os pesquisadores do ISA

também preveem uma diminuição drástica na criação de Unidades de Conservação (UCs) – como parques e reservas –, uma

vez que a atuação dos parlamentares nesse sentido é inexpressiva: das 310 UCs federais criadas nos últimos 65 anos, apenas

cinco foram iniciativa do Congresso – ou 0,03% da área total das UCs federais. A proposta pode paralisar ainda os processos

de reconhecimento de 1611 Territórios Remanescentes de Quilombo em andamento em diferentes regiões do país. (Disponível

em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/pec-215-pode-paralisar-228-processos-de-demarcacao-

de-terras-indigenas. Acesso em: janeiro de 2017).

175

Fonte: Imagem por Cripta.

O monopólio das influências culturais através de símbolo e poder

apresentam funções sociais, este é um fenômeno criado desde fins do século

passado que destrói organicamente as memórias históricas. Edward Said diz que

a cultura é uma forma de memória contra a aniquilação, uma forma de luta contra

a extinção e a obliteração, para ele a cultura pode ser uma ameaça para o poder,

uma forma de resistência descolonizante, sendo a colonização perda do lugar para

o estrangeiro.

As histórias da formação das colonizações e independências, das

ditaduras e lutas pelas democracias, dos fugidos e libertos, podem ser

recompostas na evocação de lembranças, experiências e histórias de vida

daqueles que ficam para semente - os velhos e velhas guardiões da memória.

Narrativas que, no campo da moral, normatizam vidas, transmitem saberes e

curas, lembram o que deve ser lembrado e assumem identidades na vida

cotidiana. A memória, em nosso cotidiano, liga o presente ao passado; mostra

a diferença e aponta a repetição, o que eu fiz ontem, o que farei hoje; permite-

nos distinguir comportamentos, determinações.

Quem é visto é lembrado, e a rua é uma potente mídia de divulgação de si

mesmo. Quem não quer deixar uma marca na história? Alexandre Barbosa

Pereira, no artigo Quem não É Visto não É Lembrado: sociabilidade, escrita,

visibilidade e memória na São Paulo da Pixação, discute como a pixação

configura-se como um dispositivo de sociabilidade, reconhecimento e memória

para os protagonistas escritores jovens moradores das periferias. É um desejo

permanente de ser lembrado, típico do indivíduo contemporâneo, que tem o

176

risco real de perder-se nas massas. Ser esquecida/o é a impermanência finita, a

luta pela sobrevivência é também a luta por ser imortal. O curioso é que ao

mesmo tempo que se torna memória, a arte urbana pode ser apagada a qualquer

momento sendo algo de temporalidade fugaz.

Em Jean-Pierre Vernant o “passado” aparece como parte do cosmo e a

exploração dele e o canto da Mnemosyne, um deciframento do invisível, do

sobrenatural. A memória evoca o passado que aparece como dimensão do além.

A Deusa Mnemósine é irmã do tempo e mãe das Musas. Narrar é uma forma de

sobreviver a morte e permanecer na memória e na transmissão de uma geração

para outra. (Anita Guimarães). A memória pode ser filha do tempo mas nem

sempre o seu tempo é cronológico. A memória sofre flutuações a depender do

momento que é acionada.

Por exemplo, a memória de indivíduos que viveram uma situação

traumática, difere da memória de meses após o trauma. Nesse caso, memória

triste, a saber, aquela que pode provocar necessidade de esquecimento. Para quem

viveu uma guerra ou outras experiências traumáticas muitas vezes o calar é

frequente. Em face da lembrança traumatizante, o silêncio parece se impor a

todos aqueles que querem evitar culpar as vítimas e quem é vítima prefere o

silêncio. Ainda existem aqueles que sofreram traumas e que se aprisionam ao

passado e que retomam o mesmo ponto quando, por instância, o corpo de algum

ente querido não foi encontrado após anos ou foi brutalmente torturado e

assassinado. Há a necessidade de reparação, encontro com a verdade. Em outra

mão ao lermos na revista Veja "Ditabranda" ou na Folha de S. Paulo "Pra que mexer

no passado?" a ordem do discurso de lembrar ou esquecer o passado se entrelaça

à persuasão para o esquecer. Ou o lembrar se torna mexer em ossos pesados que

podem alterar conjunturas políticas, favorecimentos, situações acomodadas de

quem prefere manter verdades e lembranças esquecidas.

As narrativas dos povos originários Dessanas (Brasil) dizem que não há

cronologias ou datas de quando foi criado o sol, a lua ou as estrelas. Existe uma

memória que recoloca o sentido das coisas e relaciona a origem do mundo com a

vida do modo de viver que informa a arte, a música e os cantos. Na memória da

antiguidade do mundo, montanhas tem sentimentos, igarapés, cachoeiras e

bichos são parentes e cada um compondo grandes famílias no sentido universal

da criação.

177

Platão escreveu que a natureza mortal procura, na medida do possível, ser e ficar

imortal. O lugar da memória é o ser imortal, o que foi deixado de legado e

aprendizado na história, valores, culturas e constante mutação. Em meio a nossa

sempre constante incapacidade de entender a magia da vida, temos no

abafamento estressante do mundo moderno, corpos e mentes atados à

imediaticidade, presos no presente perpétuo, naturalizando a barbárie sem

possibilidade de criar um futuro proibido pois a história acabou e nossas mentes

criadoras estão atadas e cegas. O que lembramos na inversão da criação da

humanidade é que há sempre o caráter de transformação da realidade pelas

objetivações humanas: no trabalho, na arte ou na ciência, o que se faz modificar

as estruturas da tradição para algo novo.

No Brasil, tem sido frequente a tentativa de apagar a história das violências

do passado nas ditaduras latino-americanas e do fascismo e nazismo. Tenta-se

naturalizar as violências para servir de mote às truculências do presente. Uma

forma de “esquecimento organizado” (Rosas, 2010)

No ano de 2019, é empossado o atual presidente do Brasil, e o cenário de

desinformação, des-historicização, à medida que o critério de validade de notícia

e história se torna flutuante e opinativa, crível com uma foto descontextualizada,

um título chamativo e com a narração inventada. É assim que, no quinto maior

país do Mundo, o maior país da América do Sul, aqui, a esquizofrenia está

implantada enquanto ideologia. Chega-se ao absurdo de comemorar, aberta e

oficialmente, o golpe de 1964, antes o revisionismo historiográfico (que durante

mais de duas décadas procurou suavizar o terror da ditadura para as gerações mais

recentes) já havia se instalado na antessala da barbárie para lhes abrir a porta.

Enquanto nosso atual governo proclama a nova política, a mais antiquada,

a escola sem partido, na verdade, a escola sem criticidade, fica cada vez mais

evidente, ou escamoteado, o uso das várias formas de ideologia - discursos de e

sobre a moralidade, a religião, a política e a arte.

Não é a primeira vez que tentam nos convencer disso; lembremo-nos do

período do pós-guerra, em que estudantes foram levados a acreditar no fim da

ideologia. É essa a estratégia de rotular a esquerda como um todo de “ideólogos”

e reivindicar para si - o governo atual, por exemplo - a imunidade relativa à

corrupção e a toda forma de ideologia, colocando-se fora da política, estando

dentro dela de maneira falaciosamente neutral.

178

O desejo por beleza e significados é fundamental na existência humana e

algumas formas artísticas, têm se expressado ao longo de todos os períodos, como

a dança e a grafia em paredes. Antes do desenvolvimento do mercado cultural de

pinturas privativas surgido no Século XVII na Holanda, a maior parte das artes

eram públicas, comissionadas pela realeza, o clérigo ou cidadãos poderosos pela

glória comunitária e enaltecimento de conquistas e assim eram colocadas nos

espaços públicos.

Figura 99 - Graffiti no Brás - SP (2015).

Fonte: Imagem cedida pelo artista Paulo Ito.

179

No entanto, o cenário se modifica após a revolução industrial e do

desenvolvimento do Capitalismo, donde os valores econômicos sobrepõem se aos

valores de sociabilidade. A cidade, enquanto produção de riquezas e multiplicação

das desigualdades, ao segregar os grupos e as classes sociais, é espaço de luta para

a fruição e produção da vida urbana, como espaço coletivo de sociabilidade. O

grafiteiro e o pixador, habitantes da cidade, afirmam o território e transformam

a sua ação pincelada em cenário da cidade; sendo a pincelada, ou a sprayada,

decorativa ou de demarcação identitária.

A desigualdade crônica brasileira é aguda, tal qual a de NY dos anos 70 e a

São Francisco e a Los Angeles dos anos 2000 e a vibrante cultura do graffiti é

exponencial, em ambos os locais. A pixação, enquanto forma de tag tipicamente

brasileira, e mais singular em São Paulo, é originária dos bairros pobres. Uma

caligrafia crua, em preto, normalmente alongada. As tipografias vêm sendo

desenvolvidas por muitas mãos, ao longo do tempo. Uma marca urbana, um

vandalismo sagaz, advindo daqueles totalmente desprovidos de direitos. Em São

Francisco, o muralismo chicano, realizado por artistas de origem ancestral latina,

marcadamente mexicana, é referenciado no muralismo mexicano e apresenta um

viés social e político bem definido. Em Los Angeles, a repressão policial é intensa

e os graffitis estão mais escondidos ou em locais bem demarcados. As metrópoles

amplamente culturais apresentam um urbanidade desenvolvida com

particularidades urbanísticas e uma desigualdade social atroz que no mais se

presentifica no crescimento contínuo da população em situação de rua.

No Brasil e nos EUA são os negros dentre todos os ainda mais perseguidos

e confinados, os que estão mais sujeitos à violência policial, ao preconceito, à

discriminação, ao estigma fortemente presentes em uma sociedade de classes de

exploração e opressão. O subúrbio alastra-se e espalha-se. Os escritores das ruas

têm a chance da fama, de publicar seus nomes do mesmo jeito que veem as

marcas e publicidades estampadas em painéis de ônibus116. Do caos à

experimentação artística, o graffiti é tanto um conjunto de manifestações da

questão social quanto a reação artística a essas expressões. Enquanto parte da

116 Em 2007 foi regulamentada a lei municipal 14.223, a Lei Cidade Limpa visou reduzir a poluição visual na

cidade, principalmente a partir da proibição de propaganda em áreas externas da cidade. Antes da lei Cidade Limpa,

na capital Paulistana, toda a comunicação visual de mídia exterior(outdoors, faixas e anúncios) competiam entre

si, assim como acontece na Time Square, por exemplo. No entanto, esta mesma lei, deixou uma única exceção: a

publicidade em espaços externos só seria possível no mobiliário urbano (ou seja, pontos de ônibus, totens,

banheiros públicos, entre outros, incluindo, portanto, bancas de jornais e revistas).

180

cultura geral, a cultura de rua apresenta a voz sistematicamente negligenciada da

sociedade. Uma possível forma de desenvolver habilidades e alcançar algum tipo

de sucesso.

A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros. A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade. (ANTROPOFAGIA PERIFÉRICA, Sérgio Vaz117).

Os muros fazem parte da arquitetura e da cultura das cidades, são símbolos

da separação e da fragmentação sócio-cultural e do segregacionismo entre classes

e do ponto de vista político, as implicações da realização dessas atividades nascem

imbuídas de rebeldia expressas nas marcas inscritas nos muros, edifícios e

monumentos das cidades. No Brasil, 84,35% das pessoas habitam e/ou vivem em

situação urbana, nos EUA 80,7% da população está no meio urbano.

A arte urbana de rua, marcadamente o graffiti e o pixo é um protesto instintivo

fruto da desigualdade social vivida por jovens das periferias e favelas. Ao increver-

se desenhos e símbolos em um muro, uma lateral de prédio pela cidade é uma

forma de marcar um local a que não tem acesso.

A precariedade de condições de vida, moradia e trabalho a que são submetidas

a maior parte da população jovem, negra; o descaso do Estado mínimo; a muralha

cultural da elite; a segregação territorial; a gentrificação urbanística estão

presentes na vida cotidiana de grande parte daqueles que fazem a guerrilha do

signo por meio da arte urbana. O pixo e o graffiti são as vozes da cidade que

clamam por igualdade de direitos, de condições e acesso. O gueto e a periferia

estão vivos!

O graffiti intervém na paisagem urbana, atinge diretamente a população

transeunte e apresenta uma concepção de mundo que escancara a principal

fronteira da divisão social, a propriedade privada, ao mesmo tempo em que nega

a principal forma da sociedade de classes - a mercadoria. O graffiti não é

institucional e está fora dos limites do mercado de arte. Apesar de que, podem

entrar no circuito de galerias - já não sendo mais graffiti ou fazer parte de

estampar o arsenal mercadológico de objetos, roupas e acessórios.

117 Segundo seu perfil no Facebook:"Vira-lata da literatura, Poeta das ruas, agitador cultural, Cooperifa até os

ossos, vagabundo nato";. ‘

181

Embora a parte do graffiti escrita e ilegal compartilhe elementos essenciais

da sociedade de consumo de massas - a produção de signos, a criação de marcas,

a reprodução repetitiva de imagens -, nessa mesma ilegalidade é que permanece

na atitude de transgressão e ocupa espaços que a publicidade outrora ocupou, ou

em algumas cidades ainda ocupa.

grafiteiros, em geral, são originários de bairros periféricos, e dos que são

moradores de regiões mais centrais, uma ínfima minoria fez curso superior,

principalmente entre os escritores de pixo; o analfabetismo funcional é marcante

e em sua maioria escancara-se a situação de pobreza e escasso acesso às políticas

públicas, à cidade e ao emprego. Como acentua Caldeira (2012, p. 2): “Por meio

das inscrições pintadas nos mais diversos locais, eles transcendem seus locais de

origem e suas condições originais, e penetram em todos os tipos de espaço [...]”.

Figura 100 - “Nina” por Apolo Torres. Avenida da Consolação-SP.

Fonte de Imagem: Juliana Abramides (2017).

182

A urbanização é crucial na história do processo de acumulação do capital,

sendo necessária uma constante readequação da vida urbana. E por mais que as

forças do capital estejam em constante movimento, é impossível o controle total

das populações. É nesse sentido que levantamos a questão política estratégica de

prestar atenção aos movimentos anti-capitalistas urbanos e em como eles podem

ser potencializados.

Fig 101 - Ponte da Avenida Sumaré, São Paulo.

Fonte de Imagem: Juliana Abramides (2016).

É quase impossível conceber a vida fora das cidades, ou ao menos sem ter

a referência do urbano. O urbano é permeado de admiração, sociabilidade,

prazer, produção social de riqueza e apropriação desigual, fruição social e coletiva

de diferenciações que se batem com a questão material. O espaço118 metrópole

relaciona-se com as forças produtivas, com a divisão do trabalho e com as relações

da propriedade privada dos meios de produção.

Para os humanos, na sociedade burguesa, o produto do trabalho aparece

como um objeto estranho que tem poder sobre ele e, simultaneamente, o mundo

118 Henri Lefebvre, no livro A Produção do Espaço, diz que existe uma história do espaço, que está por ser escrita,

o conceito de espaço liga o mental e o cultural, o social e o histórico. Ele divide esse complexo em: Descoberta de

espaço; Organização espacial na produção da sociedade; Criação de obras, paisagem e o cenário.

183

exterior sensível o enfrenta hostilmente. O trabalho produz mercadorias e produz

a si mesmo como mercadoria. Assim, a natureza do trabalho, enquanto práxis

positiva de autocriação, é negada. A alienação torna-se a inversão da natureza

criativa, livre e consciente do trabalho. Vale ressaltar que, na forma mais plena da

divisão social do trabalho, isto é, do capital, a alienação adquire formas específicas

a partir da instituição da sociedade salarial, quando as capacidades humanas estão

sumariadas na forma do dinheiro e sua existência é medida pela venda da força

de trabalho. O espaço é continuamente reestruturado no urbanismo moderno; os

processos são determinados pelo capital financeiro de compra e venda de terras

e edifícios, em que se instalam novas fábricas, indústrias ou escritórios119.

Figura 104 - Pixo escrito Harlem em um bairro mais elitizado, o Soho.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2015).

O sistema capitalista é extremamente dinâmico e adaptável ou tempo

inteiro as criações de comunicação, arte e no trabalho são capturadas e absorvidas

como parte das novas tecnologias, dos processos de capturar os consumidores nos

anúncios e propagandas. O capitalismo em chamas utiliza-se muito da propaganda,

da venda de um modo de ser, de padrões morais. Como parte da acumulação

capitalista, a produção é imediatamente reprodução, circulação, distribuição e

consumo. No seio do processo de circulação de mercadorias, a reprodução de

ideias, práticas e valores tornam-se parte do incentivo à aquisição das

119 Quando uma área apresenta possíveis lucros, é especulada, desocupam-se moradias, por exemplo, das áreas

centrais, para construção de edifícios para escritórios e assim que a área está remodelada investidores buscam um

potencial especulativo para outra área.

184

mercadorias, ao mesmo tempo, em que há o estímulo ao consumo reproduzem-

se ideais e valores burgueses como o consumismo, a ideia de livre mercado, o ter

em detrimento do ser; relações de posse.

O lugar da inovação tecnológica é rápido e dinâmico e ocupa um espaço

crescente desde a industrialização da sociedade pós industrial se comparado a

outros sistemas sociais, em que a imensa maioria vincula-se ao trabalho na terra

e com desenvolvimento tecnológico mais lento. A cidade triunfa na existência de

fábricas, escritórios, lojas e indústrias. O tempo do capital quadricentenário, o

maior desenvolvimento de riquezas e a contradição entre a humanização e

desumanização traduzem-se na vida cotidiana com suas expressões dilaceradas.

A riqueza; o conforto material; o acesso à informação, educação, cultura, ao lazer,

à saúde; de outro lado, a falta de acesso, a pobreza, penúria, miséria, falta de

trabalho e moradia; 8 milhões de pessoas no Brasil não têm onde morar.

A desigualdade é gerada pela apropriação privada da riqueza produzida

coletivamente. Com a divisão do trabalho e com o desenvolvimento das forças

produtivas cria-se a produção excedente que passa a ser apropriada de forma

privada, gerando o fim da propriedade comunal e a necessidade histórica da

propriedade privada. O Estado surge para regular a desigualdade criada pela

propriedade privada, portanto, o fundamento histórico do Estado é a

desigualdade. O fundamento da desigualdade não é a capacidade de produção do

excedente em si, pois o que gera a produção excedente é a divisão do trabalho e

o desenvolvimento das forças produtivas.

Isso supõe dizer que, no modo de produção capitalista, a exploração

econômica (re)produz a desigualdade social, cultural, educacional e territorial que

cria e recria antagonismos de classe, enquanto valores inerentes à criação de valor

e de mais-valia. A desigualdade é intrínseca ao capitalismo para a manutenção da

exploração da força de trabalho, da propriedade privada dos meios de produção,

da existência de classes antagônicas na sociedade.

Por outro lado, o capitalismo é um modo de produção associado a um

sistema de ideias. A noção de propriedade privada é socialmente construída e

legalmente instituída. Na reprodução de valores na sociedade burguesa o direito

tem lócus privilegiado. O direito de propriedade, tal qual o direito à vida e à

liberdade, é defendido como direito natural humano por juristas, filósofos e

economistas políticos. A propriedade do solo e da terra é considerada fonte

185

originária de toda riqueza e é vista como um valor eterno120.

Figura 105 - Um picho (grafia comum) entre a Avenida Francisco Matarazzo e a Rua Cardoso de Almeida. Um direito por favor!

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2015).

A declaração dos direitos humanos coloca o direito à propriedade entre os

direitos naturais. Terra, campos, águas e florestas são propriedades adquiridas e

não inatas. O princípio moral e legal da propriedade privada se sobrepõe aos

direitos de vida e do morar.

O agravamento das precárias condições de habitação dos trabalhadores e a

ausência de moradia relacionam-se à industrialização e à crescente migração para

as grandes cidades no processo de desenvolvimento do capitalismo. A

precariedade, insuficiência e déficit da habitação social têm se configurado como

uma das expressões mais dramáticas da questão social para amplas parcelas da

população. O acesso à moradia definido pelo mercado do solo é de alto custo.

Cortiços, favelas, ocupações irregulares, moradias sem registro, aparecem como

formas mais comuns de reprodução da população empobrecida no capitalismo

contemporâneo. As favelas e as áreas de autoconstrução na periferia urbana

revelam estratégias de sobrevivência em uma metrópole em que a economia de

mercado, aí incluído o preço do solo, impede o acesso da classe trabalhadora de

baixa renda à moradia em áreas centrais da cidade e com infraestrutura.

O acesso à moradia definido pelo mercado do solo é de alto custo. Cortiços

e favelas aparecem como formas mais comuns de reprodução da classe

120 Se a conquista gerou um Direito Natural de poucos, os muitos precisam apenas reunir forças suficientes, para

adquirir o Direito Natural à Reconquista daquilo que lhes foi tomado. No curso da história, os conquistadores

procuram conferir, por meio de leis, por eles mesmos promulgadas, um certo reconhecimento social ao seu Direito

de Posse que emerge originariamente da violência (MARX, 2005, p. 2).

186

trabalhadora no capitalismo contemporâneo. As favelas e as áreas de

autoconstrução na periferia urbana revelam estratégias de sobrevivência em uma

metrópole em que a economia de mercado, aí incluído o preço do solo, impede

o acesso da classe trabalhadora de baixa renda à moradia em áreas centrais da

cidade e com infraestrutura. O custo que existe para morar está embutido em

todas as taxas pagas, no preço do terreno e do imóvel e na localização. Qualquer

terreno apresenta um custo para a cidade que é fruto da infraestrutura que a

cidade oferece. Ruas pavimentadas, esgoto, luz, água, linhas telefônicas,

transporte, enfim uma série de serviços. O custo do terreno varia de acordo com

os serviços vinculados a ele, levando em conta a localização e características da

área. As ocupações em favelas são geralmente realizadas em áreas desvalorizadas

pela localização e qualidade ambiental e geológica, fora dos interesse dos agentes

do mercado da terra.

O movimento socioterritorial de urbanização brasileiro foi intenso e veloz.

Esse desenvolvimento urbano foi acompanhado da privação da população pobre

e trabalhadora do acesso a serviços públicos, a direitos sociais da cidade e à riqueza

social. “Desde 1970, o crescimento das favelas em todo o Hemisfério Sul

ultrapassou a urbanização propriamente dita” (DAVIS, 2006, p. 27). As

construções das cidades têm sido a autoconstrução de moradias populares por

meio da qual os próprios moradores aliados a parceiros, amigos e parentes

constroem suas moradias sem planejamento ou projeto, com materiais

improvisados e, por etapas, de acordo com a entrada de recursos financeiros.

Muitas vezes, começam com barracos feitos de madeiras improvisadas e lonas

que, aos poucos, vão se tornando moradias de alvenaria; sobem-se andares e

algumas casas tornam-se até pequenos prédios.

A prática de autoconstrução insere-se no contexto capitalista como forma

construtiva autônoma em que trabalhadores aos finais de semana, feriados e

férias constroem suas próprias casas: escolhem terreno, fazem projeto e realizam

a obra sem custos com intermediários para o planejamento e a mão de obra. O

surgimento das favela, a moradia de aluguel em casas insalubres, cortiços ou

mesmo o crescente número de pessoas vivendo nas ruas, é a resposta de luta pela

sobrevivência dos setores mais pauperizados no padrão perverso de ocupação

socioespacial.

Em síntese, as periferias das cidades brasileiras são castigadas pelas

187

enchentes, ausência ou escasso acesso aos serviços de saneamento básico,

péssimas condições de habitabilidade, ausência de serviços básicos, como rede de

esgoto, coleta de lixo e água potável – essa é a dura realidade urbana vivida por

milhões de moradores das grandes metrópoles brasileiras.

A sociabilidade, o prazer de estar com o outro é que estabelece a diferença

urbana. A cidade tem mil encantos e movimentação constante. Estamos a

dezenove anos adentro do século 21 e, nesse tempo, tornou-se quase impossível

conceber a vida fora das cidades ou, ao mesmo tempo, sem ter a referência do

urbano, que constitui espaço de admiração, produção social de riqueza e

apropriação desigual, fruição social e coletiva de diferenciações que se imbricam

com a questão material.

O Neon vaga veloz por sobre o asfalto irregular, ignorando ressaltos, lombadas, regos, buracos, saliências, costelas, seixos, negra nesga na noite negra, aprisionada, a música hipnótica, tum-tum tum-tum, rege o tronco que trança, tum-tum tum-tum, sensuais as mãos deslizam no couro do volante, tum-tum tum-tum, o corpo, o carro, avançam, abduzem as luzes que luzem à esquerda à direita [...]. (RUFFATO, L.,2001, p.g 14).

De um lado, a riqueza, o conforto material; acesso à informação, educação,

ao lazer, à saúde, aos espaços culturais, aos excessos. De outro, a pobreza, penúria,

miséria; a falta de moradia, de acesso.

Figura 106 - A grande São Paulo

188

Fonte: Governo do Estado de SP.

Pânico, medo, ansiedade, depressão, jogo de interesses, jogos patológicos,

reificação, desejo, individualismo, vontade de morte, descontentamento,

compulsões. Comportamentos que refletem a angústia inerente à precariedade

da vida humana. A grande patologia social é o medo acrescido das patologias

psíquicas do transtornos de ansiedade e humor.

Figura 107 - Bairros de São Paulo por Zona

189

Fonte: Governo do Estado de SP.

Os murais e graffitis revelam uma dada realidade social e que são também

o conhecimento de um tipo de vida nas grandes cidades que traduzem sua

complexidade policlassista multifacetada. Outrossim, toda cultura deve ser vista

como a maneira possível de humanos se organizarem, se adaptarem e

transformarem o meio em que vivem. As particularidades do cotidiano, nas

grandes cidades, afetam direta e indiretamente as populações participantes desses

grupos sociais.

190

O cotidiano corresponde ao dia a dia, quando satisfazemos as nossas

necessidades primárias de higiene ao acordar, escovar os dentes; buscar e

preparar o alimento; dormir, morar; satisfazer as vontades e os desejos. A vida

cotidiana é a vida plena; ou seja, cada um de nós participa dela com todos os

aspectos da individualidade, personalidade, do jeito de ser. O cotidiano é a esfera

da reprodução do indivíduo nas suas necessidades básicas e na vida social; é no

dia-a-dia que nos colocamos como seres por inteiro com nossas capacidades,

conquanto não possamos vivenciar aguçadamente com toda intensidade todas as

nossas potências todos os dias.

As grandes aglomerações, denominadas hipercidades, onde vivem mais de

10 milhões de habitantes, estão inseridas em estruturas de urbanização

consolidada, nas quais o preço desse processo, denominado de conurbação

urbana, é o agravamento das expressões da questão social, mais precisamente, da

desigualdade social.

As diversas manifestações da questão social interferem nas condições de vida

e trabalho por meio do desemprego, do trabalho informal; da situação de moradia

em cortiços, pensões, favelas, moradias provisórias; do acesso precário à

educação, saúde, ao lazer e à cultura e se reproduzem nas expressões culturais, no

modo como vivem, se relacionam, se comportam, criam e resistem às opressões

da sociedade capitalista em chamas.

As marcas urbanas expõem contradições abarcadas pela questão social e

inseridas na profunda marca da desigualdade intrínseca ao capital e revelam a

necessidade de jovens empobrecidos conquistarem visibilidade e intervirem de

maneira criativa e transgressora na configuração social do urbano. Como diz a

Mag Magrela “a rua é muito incrível pra quebrar barreiras segregacionista” (artista

plástica e grafiteira, entrevista em 2019).

Figura 108 - Mag Magrela, Fortaleza - CE (2018).

191

Fonte: Imagem cedida pela artista, foto tirada pela equipe do 5º Festival Concreto

Um espaço segregador, contraditório, de jovens sem emprego e/ou

192

ocupados com bicos121 rotativos que giram pelas ruas da cidade sem encontrar o

espaço para se ocuparem com trabalho ou sem acesso a escolaridade de qualidade.

Como adentrar os shopping centers envidraçados com preços inacessíveis à

população majoritária ou conviver com opressoras residências com

monumentais fortalezas de defesa, que distanciam os grupos sociais. Vamos ao

cinema, pagar 38 reais, ou 5% do salário mínimo de fome.

A segregação residencial na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) por

classe e etnia é também a segregação da sociabilidade e da apropriação e do uso

dos espaços coletivos da cidade. A separação de locais de brancos e negros, de

pobres e ricos, ou da classe média, demonstra de que modo barreiras étnicas e de

classe estão inscritas na espacialidade e no tempo, moldando relações e

cristalizando desigualdades. 122

São exemplos os espaços segregados, em que grupos sociais e raças não se

misturam, como os concertos pagos da Sala São Paulo. Grupos periféricos terão

menos acesso à seletividade de oportunidades a recursos, ao mercado de trabalho,

a serviços públicos, equipamentos culturais e de consumo. Nessa perspectiva,

grupos com menor diversidade de relações terão menor mobilidade social123. O

mapa racial do Brasil do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

aponta São Paulo como a terceira região de maior segregação.124

Os muros têm a função primordial de separar e delimitar territórios e

determinar os espaços entre o público e o privado, entre o que pode ser mostrado

e o que se pretende ocultar: protegem, definem caminhos, escondem, restringem

o olhar, limitam a passagem, são barreiras entre territórios e espaços. Muros de

pedra-fortaleza, muro de ferro-presídio, o alambrado com arame farpado, muro de vidro-

aquário, pastilhas cerâmicas ou pintadas é muro alvo para inscrição vida longa.

Existem muros que cercam até mesmo pedaços da cidade e o bairro do

Morumbi, por exemplo, traz a nítida lembrança do modelo mastodôntico de

fachadas fortalezas. A forma estética dessa arquitetura identifica-se com a

121 Bicos: trabalho temporário, pontual. 122 A tese de Danilo Sales do Nascimento concentra-se na segregação racial encontrada nas classes média e alta,

e evidencia que negros das classes média e alta têm as residências localizadas mais próximas dos pobres do que

de brancos do mesmo estrato social. Os brancos de classes média e alta vivem nos locais mais privilegiados da

metrópole paulistana. 123O debate está pautado em diversas pesquisas e publicações, a exemplo: Territorialidade Negra e Segregação

na Cidade de São Paulo, de Reinaldo José de Oliveira, Editora Martins Fontes, 2016. 124Avaiable in : https://www.nexojornal.com.br/especial/2015/12/16/O-que-o-mapa-racial-do-Brasil-revela-

sobre-a-segregação-no-país. Dezembro de 2016.

193

segurança contra a violência urbana, com o pressuposto de que quanto mais

muros e grades maior a segurança125.

Os “enclaves fortificados” (CALDEIRA, 2000) são espaços fechados e

monitorados, destinados a residência, lazer, trabalho e consumo; por exemplo,

conjuntos comerciais, shopping centers, condomínios auto suficientes, com

estruturas abrangentes de comércio, e estabelecimentos particulares de saúde,

educação e divertimento. Espaços criados para ampliar a homogeneidade social

e distanciar os pobres, pessoas em situação de rua e negros; espaços fechados com

vigilância e acessos controlados; espaço do abrigo e da solidão. Os muros dividem

o público e o privado e são as telas em branco para as inscrições.

As culturas das expressões gráficas urbanas contêm um caráter político

manifestado na visibilidade transgressora, e tendo em vista a recusa a

comportamentos e leis instituídas, desvinculam-se do fator excludência urbana

de usufruto cultural e moradia, e agridem a propriedade particular na ocupação

de fachadas, paredes e muros de casas e prédios, modificando o cenário de

invisibilidade das produções culturais periféricas.

A dimensão ilegal desse comportamento de grupo torna-se marca

indelével de expressão cultural e resistência à hegemonia burguesa126. O

pressuposto aqui é a transgressão enquanto sinônimo de desobediência civil de

agredir as leis, não se ater a elas; tais ações explicitam as tensões sociais existentes

na metrópole. Certa noite de outono, um sujeito marca uma propriedade alheia

com a sua tag ou símbolo do seu grupo. O que essa existência não violenta traz, à

luz do dia?

Na rua cê me encontra um dia vai entender Sociedade me ignora de manhã todos vão ver Meu protesto é ilegal o gringo filma em agá-dê Mas a real do que acontece é só na hora do rolê. (Cabes Mc, Hd Rolê 2)

125 “A ideia, que parece óbvia, é a de que, ocultando o máximo possível o que se passa intramuros, evita-se a

invasão e o roubo. Entretanto, um prédio murado não deixa de ser assaltado e na visão de assaltantes o muro

protege as ações de arrastão e furtos.” (Raquel Rolnik. Disponível em:

https://raquelrolnik.wordpress.com/2012/08/16/quanto-mais-altos-os-muros-e-grades-mais-protecao-certo-

errado/. Acesso em: agosto de 2015 ). 126 Historicamente estabelecida, a lei penal explicita-se por ser uma das formas de poder do Estado de acordo com

as decisões políticas funcionais em determinada época, se referem-se à esfera da reprodução de valores e

comportamentos disciplinados e vigiados pelo Estado de interesse à manutenção [do status quo] da sociedade

capitalista. (KARAM, 2003).

194

Tais desobediências não têm caráter de manutenção de status quo ou de

preservação de direitos, mas apresentam um impasse que gera incômodos por ser

algo que não pode ser controlado. “É por protesto mesmo, contra o sistema que eu pixo”

(MN, pixador, entrevista em 2017127). MN, hoje, começa a experimentar pernas

robóticas para voltar a andar; perdeu-as enquanto pixava no trem. Há uma

resposta desmedida e altamente opressora em resposta ao ato transgressor, são

sanções, punições, agressões físicas ou até a morte realizada pela força punitiva

do Estado (Fig. 109).

Figura 109 - Com tanta função possível ao Estado por quê a punição truculenta é a normatividade?

Fonte: Arquivo MN

Os grafiteiros ilegais e os pixadores estão entre os poucos grupos sociais

que atacam a base simbólica e material da vida social. O pessoal da pixação é

fanático com a lata na mão, claramente vê o muro enquanto mídia de si mesmo,

com invenção de códigos ou pseudo nomes. Não é prática de modismo e nem se

veem pixadores fazendo apologias para que outros inscrevam em muros. A

pixadora Gisele adverte quanto aos perigos e ao vício de pixar, ela que por anos

fez o xarpi, trata o pixar como uma ação viciante que gera adrenalina, pelos riscos

e desafios que se coloca. Gisele tem seu pixo SAGI marcado por muitos viadutos

no RJ, ela que adorava se pendurar nas pontes hoje parou de pixar após um

episódio de quase morte.

O questionamento de território demarcado por regras leva à ultrapassagem

de limites e obstáculos, o muro; adentrar um prédio; escalar um monumento. O

127 MN que já assinou exorcity, pixa desde o início da adolescência e em um rolê que fazia em um trem, teve um

súbito apagão e foi parar embaixo do trem, perdeu as pernas. MN continua a pixar.

195

gesto, cotidiano, contém risco enquanto o sistema normativo está intacto. Tanto

a pixação quanto o graffiti são atos transgressivos128 e a maior parte dos

entrevistados diz que ambos perdem a legitimidade, se forem legalizados. Eles

escancaram, principalmente em áreas mais ricas, um destoar na cidade que

desestabiliza uma continuidade de modus vivendi, do estado de coisas da

normalidade cadente.

A desobediência civil que se instaura na calada da noite, em ações que

violam a lei e a propriedade privada, demonstra uma série de conflitos e negações

do status quo: inscrever e escrever, com códigos cifrados, a negação da submissão;

questionar a lei e a forma do existir social. Ao pixar uma casa, ou prédio

abandonado, prática bem comum ao pixo, escancara-se mais uma injustiça social,

um local sem usufruto útil se destaca pela distopia do feio. Conquanto os grupos

de pixadores não se caracterizem em organizações ideológicas definidas, têm

originalidade tática, comunicação própria e afirmam valores anti-sistema,

conforme denominação por eles atribuída.

Eu pixo de escada ou então/Eu vou na escalada/Na calada da noite/Eu vou varando a madrugada/Pixando sua parede pintada/Não quero nem saber/O vício é rebelde só pra você não esquecer/Correr o risco de morrer ou de ser preso é normal. (Criadores não domesticados, Rap do Xarpi).

Grupos sociais que buscam e lutam pela sobrevivência na ilegalidade

devem ser entendidos no sentido amplo de penalização da pobreza “elaborada

para administrar os efeitos das políticas neoliberais nos escalões mais baixos da

estrutura de sociedades avançadas” (WACQUANT, 2015, p. 93).

A vida cotidiana apresenta-se afetada por múltiplos códigos no espaço de

reprodução econômica e também cultural. Uma potente forma de suspender o

cotidiano de jovens precarizados, um movimento que tem uma íntima relação

com a metrópole, um movimento que cria a cidade e é influenciado por ela. São

sujeitos subversivos na forma, a cidade é suporte independente de autorizações,

e no conteúdo, na subversão das letras e criação de códigos próprios. O ato é

poético e é político. Processos criativos na vida em sociedade podem contribuir

para ações e escolhas mais livres e autônomas, em face do abafamento criativo

cotidiano. Nem todo processo criativo é artístico, e pode ocorrer em todas as

128A transgressão das regras pode vir ainda pela necessidade de trabalho, como acontece com músicos de rua,

ambulantes, ou artesãos.

196

práxis, no cotidiano, ou no momento de suspensão do cotidiano no trabalho, no

estudo129.

No caso dos países periféricos, o precariado (Fig. 110) é constituído pela

parcela dos trabalhadores que desempenha os trabalhos mais instáveis; jovens,

que desenvolvem suas atividades em trabalhos temporários, parciais,

intermitentes, na informalidade, sem carteira assinada. É a “fração mais mal paga

e explorada do proletariado urbano e dos trabalhadores agrícolas, excluídos a

população pauperizada e o lumpemproletariado, por considerá-la própria à

reprodução do capitalismo periférico” (BRAGA, 2013, p. 19).

Figura 110 - Avenida Consolação nas proximidades da praça Rosavelt.

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2017).

129São elementos disparadores de processos criativos: a fantasia, imaginação, sensibilidade; brincar; a brincadeira

interior, as ideias aparentemente desconexas, emoções, cores, os sons, as formas, os conceitos, a curiosidade, as

imagens, a desconstrução do cotidiano e o inconformismo.

197

Parte desta população é composta por jovens que criam uma cultura

independente, a cultura urbana que traz elementos de sociabilidade em

atividades que aumentam a possibilidade de objetivação de desejos e de inserção

social. Este tipo de cultura pode criar de maneira autônoma oportunidades

financeiras para grupos que realizam atividades de chapéu130, artesãos de ruas, ou

esportistas. Esta realidade se vê atravessada pelo sistema repressor estatal que de

um lado não provê políticas públicas de inserção da juventude ao trabalho e a

cultura e, por outro lado, reprime as práticas criativas e autônomas com

apreensão de mercadorias, artesanatos e expulsão dos locais de trabalho. Ainda

neste contexto há artistas urbanos que se tornam profissionais e começam a

realizar murais e graffitis pagos ou passam a fazer parte do mundo das galerias.

São eles, jovens sobrepujando o esquecimento social frente a um sistema

de educação pública tosco que mais se assemelha a presídios com grades e janelas

de ferro, insuficiência de vagas, professores mal remunerados e merendas

controladas. A ausência de trabalho, individualismo extremado e ausência de

perspectivas de significado social são marcas de suas vidas cotidianas no

capitalismo em chamas. Como ressalta Harvey sobre como identificar as

necessidades de usufruir da vida na cidade:

o direito à cidade surge dos gritos que vem das ruas do papel desenfreado pela sensibilidade que vem das ruas (…) do sombrio desespero, da marginalização e da juventude ociosa perdida no puro tédio do aumento do desemprego e do desleixo nos subúrbios sem alma que termina por se transformar em redutos de ruidosa rebeldia. (HARVEY, 2014, p. 12)

A arte urbana é marginal, não vem da cultura escolar, nem da cultura oficial

e muito menos da cultura erudita. Esta forma de apropriação do espaço urbano,

expresso na cultura de rua é expressão do mundo da imediaticidade131; esta arte

reflete o grau de desagregação da cultura que vem no bojo das crises das relações

sociais do capital, tanto no Brasil quanto nos EUA. O reflexo desta crise de

sociabilidade na construção cultural aparece na miséria e na grandeza de um tipo

de produção periférica- o hip-hop, o rap, o pixo, as poesias marginais, com teor de

130 Atividades de chapéu são aquelas em que uma performance (musical, cômica, teatral, mímica) tem ao lado

um chapéu para que o público transeunte em parques, museus, grandes avenidas, joguem no chapéu um dinheiro,

uma gorjeta de incentivo ao artista. 131“É preciso partir da imediaticidade da vida cotidiana, e ao mesmo tempo ir além dela para poder apreender o

ser como autêntico em-si” (LUKÁCS, 2010, p. 37). Admite-se aqui que a sociedade massificada, racionalista,

logicista, pragmática, individualista e repressiva tende a reduzir, ou, até mesmo, aniquilar essas potencialidades.

198

elaboração e criticidade variável; que no caso do pixo, apresenta uma mediação

menor, por se tratar de uma comunicação endógena, mas ao mesmo tempo tem

alto poder de criação de uma estética própria a partir de novos signos até então

inexistentes.

Enquanto movimentos culturais estas expressões também fazem parte do

mundo da reificação, quando algumas apresentam de um lado uma grande

alienação, estranhamento, em relação a eles mesmo, e de outro lado uma grande

manifestação relativa aos problemas que eles vivem por mais que isto nem

sempre esteja expresso nas representações sígnicas e artísticas em si ou no

discurso sobre a ação.

O mesmo acontece com grandes murais que apresentam uma expressão

mais impactante com maior elaboração artística que podem se referir ou não a

um grau maior de mediação, já que encontramos dentre eles muitos murais

decorativos, por exemplo, sem necessariamente expressar uma criticidade social.

O que se vê é que independentemente do grau de desagregação social que

vivemos, a arte urbana se coloca entre as expressões culturais de peso na

atualidade. São estas, expressões artísticas num momento de crise estrutural. É

uma arte periférica que fala dos problemas sociais e da crise do capital, como

veremos mais detalhadamente no próximo capítulo.

O graffiti é a ruína das cidades. Um bairro que sucumbiu ao graffiti

telegráfico para o mundo que o controle social e parental lá quebrou. De maneira

geral aqueles que agem em insurreição total ao status quo em enfrentamento ao

capitalismo seriam segundo Hobsbawm “certamente revolucionários no sentido

mais literal do termo” (1985, p. 246). No entanto, uma subversão total dependeria

de atacar as forças produtivas, ao invés de propriedades particulares,

propriedades privadas de meio de produção, grandes corporações e bancos. Se

não se questiona a base material ou a “produção da vida” não questiona-se o

Capital se não puramente o status quo que no mais é a forma de viver particular

mas não necessariamente universal.

Vamos exemplificar a partir do grupo de pessoas que se tornam veganas,

deixam de consumir produtos de grandes empresas e passam a plantar o seu

próprio alimento e consumir de produtores pequenos artesanais e locais. Elas

atacam o status quo mas o Capital permanece se reproduzindo. E mais nesse

199

quesito continuamos marxistas não adianta mexer no consumo se o todo é

consumo, circulação e produção. Na contribuição à crítica da economia política

Marx descreve que a produção não se limita a apenas oferecer um objeto material

à necessidade mas oferece uma necessidade ao objeto material, ou seja, quando o

consumo perpassa a camada primitiva do imediato, o consumo-impulso

apresenta o objeto-mediador. E prossegue dizendo que:

O objeto de arte - como qualquer outro produto - cria um público capaz de compreender a arte e fruir a sua beleza. Portanto, a produção não produz somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto (2010, p. 137).

Hoje, as artes plásticas urbanas são modos particulares de manifestação,

criados majoritariamente por jovens de todos os grandes centros do mundo,

originariamente132 setores pauperizados, moradores das periferias dos grandes

centros urbanos, em que a desigualdade, em todos os níveis, se acentua, fruto do

desenvolvimento desigual e combinado da sociabilidade capitalista. O jovem

precariado, em suas lutas, aparentemente mais ‘desorganizado’, quer o fim da

precarização completa que o avassala e sonha com um mundo melhor”

(ANTUNES, 2018, p.59).

Bem e como alguém sem emprego pode abrir um comércio e trabalhar se

não tem capital de giro. Esta pessoa na linha da miséria deverá : trabalhar no

comércio ambulante ou roubar, agora temos uma opção extra que é o trabalho

em serviços tipo Uber. Nesse tipo de serviço de chofer qualquer pessoa com carta

de motorista pode trabalhar e se o indivíduo não tiver carro, uma outra empresa

aluga o carro a ele. Vejamos, a princípio uma empresa estrangeira entra no

mercado nacional e pessoas sem nenhuma experiência anterior de trabalho em

carros passam a ser choferes. A empresa não paga nada de impostos e também

não é penalizada. Uma operação irregular, ilegal e aceita por diversos grupos

sociais que podem ter acesso a um transporte confortável por um preço

anteriormente impraticável. Na mesma via, o profissional, motorista, paga de 20

a 25% para a empresa uber sob cada corrida praticada e as despesas do carro: óleo,

gás, manutenção, balinha e água ou qualquer outra despesa com o carro, incluso

acidentes é ônus do trabalhador.

132 Na gênese do ressurgimento do graffiti, em potencialidade, os realizadores dessa expressão são pessoas

periféricas, jovens pauperizados. Hoje, com a globalização da expressão consolidada na chamada Street Art,

existem outros setores sociais que também o fazem.

200

Figura 110 - Stickers, Tags, graffitis em Downtown LA, 2018.

201

Fonte: Imagem por Juliana Abramides

Na cidade dos commodities, por muito tempo, as laranjas foram o principal

produto; depois, a indústria dos automóveis; houve a época do cigarro; e, hoje, o

entretenimento está em alta por lá. L.A. é provavelmente a cidade mais

diversificada dos EUA. Ao longo de cem anos, vem importando talentosos artistas,

escritores e visionários, agregando um enorme contingente de labour intelectual

202

de imigrantes de todo o mundo.

Yet for even more peculiar reasons- this essentially deracinated city has become the world capital of an immense Culture Industry which since the 1920s has imported myriads of the most talented writers, filmmakers, artists and visionaries. (DAVIS, 1990:17)

Ainda por razões ainda mais peculiares - esta é a cidade desvinculada que se tornou a capital mundial da imensa indústria cultural que desde os anos 20 importou miríades dos mais talentosos escritores, cineastas, artistas e visionários. (DAVIS, 1990, p.17).

Na Califórnia, na região das proximidades da Baía de São Francisco, está o

modelo da nova indústria, o vale do silício. A tecnologia é uma das grandes forças

motrizes da economia californiana. Em L.A. está a já antiga e bem desenvolvida

Hollywood, colônia de economia mundial. Os EUA apresentam as maiores

empresas de mídia e também a maior economia do mundo. Organizações de

larga escala, lobistas, corporações econômicas, agências governamentais exercem

influência direta nos hábitos e nas decisões e com veloz visualidade midiática.

A descoberta de ouro, nas montanhas da Serra Nevada, foi um dos motivos

de os EUA batalharem pela Califórnia, antes pertencente ao México, na nomeada

Guerra Civil: América versus México (1846-1848). Apesar da potencialidade para o

trabalho escravo destinado a cavar atrás do ouro, a prática de escravismo não

ocorreu na Califórnia, pois quando ela foi tornada parte dos EUA já era o

momento de proibição da escravidão133.

Com clima de deserto, banhado pelo Oceano Pacífico, por praias, desde

pouco depois da expansão americana, o Estado da Califórnia é considerado a

lenda presentificada simbolicamente na cidade de Los Angeles, a cidade das

estrelas, das fotos, das palmeiras e do campo de óleos, onde todos teriam seus

carros. Foi a partir de 1870 que começam a criar a venda da “ideia” do Paraíso na

terra, a tão sonhada Califórnia134.

Até 1876, a cidade era inacessível, distante dos centros populacionais; não

apresentava uma baía de fácil acesso, tal qual São Francisco, ou oceano navegável,

133Para saber sobre a Guerra Civil citada: RICHARDS, Leonard L. The California GOld Rush and the Coming of

The Civil War. New York: Alfred A. Knopf, 2007. 134 No livro Paradise Promoted: the Booster Campaign that Created Los Angeles: 1870-1930, Tom Zimmerman

apresenta uma série de coleções de imagens e estórias sobre as estratégias imagéticas que tornaram o sul da

Califórnia a terra prometida, ou seja, como a cidade se promoveu por 60 anos como o local onde os sonhos se

realizam.

203

como Sacramento, mas torna-se acessível com a vinculação à ferrovia

transcontinental do Pacífico Sul. Em 1886, Santa Fé trouxe a segunda linha

transcontinental mais econômica, e a competição intra linhas na emergência do

espírito capitalista. Começa o tráfego de pessoas para trabalhar nas linhas de trem

e permanecer nas terras e tráfego de bens consumo. Aí começam os anúncios, a

Califórnia estava sendo chamada de a “Nossa Itália” e de Céus Ensolarados da

Glória (Sunlit Skies of Glory).

Os esforços impulsionados primeiramente por turistas e fazendeiros

depois se desenvolvem economicamente na forma da Câmara de Comércio, que

se tornou em dois anos a maior organização do tipo no país. Já em 1920, outras

organizações estavam montadas, como a Associação de Manufatureiros e

Comerciantes, o Clube Automobilístico e outros clubes. Primeiramente, os

impulsionadores profissionais de propaganda iniciam as campanhas de

superlativos californianos: a metrópole do sudoeste; a cidade das maravilhas dos

EUA; a capital climática do novo mundo.

A Câmara de Comércio encoraja os anúncios sobre a maravilha de cidade

e estabelece primeiramente os escritórios de agricultura e, posteriormente, os

industriais, para que os recém-chegados tivessem local para trabalhar. A

campanha serve para atrair pessoas para LA e também criar uma cidade funcional

em prover trabalhos. Sempre impulsionando, por meio de panfletos, aa busca de

criação do porto, valorização de recursos naturais, métodos para a agricultura

semi-árida, e irrigação. Se precisavam manter a cidade em emergência, também

precisavam encontrar trabalho para os que vinham para estruturar uma cidade

industrial que estava sendo construída. Curioso ressaltar que quem cria o sistema

de água que muda o curso da história no sul da Califórnia foi o engenheiro

William Mulholland.135

LA, desde então, têm sido a cidade de grandes distâncias, deliberadamente

escolhida para ser configurada na horizontal e não na vertical. O que, naquele

momento, abrandava o acúmulo populacional da cidade emergente, mas

posteriormente se torna uma questão para o transporte de mercadorias e pessoas.

Foi criada a Los Angeles Railway (Lary), ou Carros Amarelos, e a Elétrico Pacífico,

ou os carros vermelhos, que em 1929 rodavam 1.164 milhas (o maior sistema

135 Sobrenome dado a uma rua em LA. Quem não se lembra do icônico filme Mulholland Drive (A CIdade dos

Sonhos) do diretor DAvid Lynch?

204

interurbano à época) e a Lary abrangia 406 milhas. A última linha dessas rodovias

em Long Beach foi fechada em 1963.

Figura 111 - Região Metropolitana de Los Ângeles/Califórnia

Fonte:www. censusreporter.org.

O primeiro estúdio, em LA, foi uma lavanderia no centro da cidade e o

primeiro estúdio de Hollywood era um celeiro. Já nos anos 30, oito grandes

estúdios dominavam o mercado de filmagem e estabeleceram gigantescas e

complexas fábricas de produção. Uma delas, a conhecida Universal Studio, iniciou

a sua própria cidade.

205

[...] Contemporary residential security in Los Angeles - whether in the fortified mansion or ther average suburban bunker - depends upon voracious consumption of private security services. (DAVIS, 2006, p. 248).

[...] A segurança residencial contemporânea em Los Angeles - seja na mansão fortificada ou em outro abrigo médio - depende do consumo voraz de serviços de segurança privada. (DAVIS, 2006, p. 248).

Em LA encontrava-se a eterna primavera - simbolizada majoritariamente

pelas laranjas - e Hollywood, a cidade cenário para filmes. O objetivo da indústria

de filmagens era criar a nova fantasia - o Cinema. Pessoas lindas e belas vivendo

um modo de vida sem limites, em meio ao ar limpo e fresco. A mítica Hollywood,

perto das montanhas e do mar, dos desertos e da vida urbana. O que se torna, anos

depois, a maior máquina de sonhos.

Os efeitos culturais da massificação da mídia e da globalização de mercado

favorecem a disseminação das informações; de produtos e estilos de vida, de

maneira que a reprodução social da vida, ao mesmo tempo mesclada por

diferentes cruzamentos de cultura, em que se acessa a toda a produção que se

veicula e compartilha na rede internacional, também permite questionar se não

se vivia em uma ordem informacional única e singular e não plural.

Hollywood é uma das maiores indústrias de influência, que participa

vividamente na reprodução de valores e condutas no mundo e se constitui no

maior e mais poderoso impulsionador da cultura popular. As culturais locais

adquirem adicionais culturais de outros países e, ao mesmo tempo, se

fragmentam. O interessante é que se criam formas híbridas de ser. No entanto, o

poder da indústria audiovisual abrange muito mais visualidades do que uma

produção local pode alcançar. O alcance do cinema (uma das principais formas

de dominação da ideologia estadunidense) e também da música, ou da cultura pop

USA, apresenta uma abrangência inigualável e é por meio dessa cultura também

que, contraditoriamente, outras culturas se destacam. Por exemplo, quando

Bhangra, uma melodia da região de Punjab, na Índia, é reconhecida na música de

Beyoncé, que utiliza esse ritmo e harmonia próprios.

Segundo Mike Davis, em seu estudo sobre Los Angeles intitulado Cidade de

Quartzo, o processo de intervenção dos intelectuais: literatos, cineastas, músicos e

artistas - isto é, os fabricantes do espetáculo [e não os intelectuais práticos -

planejadores, engenheiros e políticos -] que realmente constroem cidades na

formação cultural de LA e na produção de mitos das cidades, integram o espectro

206

de "Los Angeles", de onde se retira fundamental entendimento sobre o destino do

modernismo e o futuro de uma Europa do pós-guerra dominada pelo fordismo

estadunidense. E onde estão os cientistas, a cultura mais preciosa do sul da

Califórnia, que moldaram sua economia pós-guerra impulsionada por foguetes?

Corporate America prides itself on profit, greed and the overall Disneyite conditioning of its workforce.) call 'imagineering'. Where one might have expected the presence of the world's largest scientific and engineering community to cultivate a regional enlightenment, science has consorted instead with pulp fiction, vulgar psychology, and even satanism to create yet another layer of California cultdom. This ironic double transfiguration of science into science fiction, and science fiction into religion, is considered in a brief account of the Sorcerers. (DAVIS, 1990: 22-23)

A América corporativa orgulha-se do lucro, da ganância e do condicionamento geral da força de trabalho da Disney. Chame "imaginar". Onde se poderia esperar que a presença da maior comunidade científica e de engenharia do mundo cultivasse um esclarecimento regional, a ciência consorcia com a ficção pulp, a psicologia vulgar e até o satanismo para criar mais uma camada da cultura da Califórnia. Essa irônica dupla transfiguração da ciência em ficção científica e ficção científica em religião é considerada em um breve relato dos Feiticeiros. (DAVIS, 1990, p. 22-23, grifo do autor).

Um, em cada cinco californianos, vive na pobreza; o índice mais alto do

país. Além disso, a Califórnia tem 140 mil sem-tetos, fundamentalmente nas

cidades de LA e San Francisco. Representam 25% de pessoas em situação de rua

no país e cerca de 10% estão apenas em LA.

O estado é desigual, a moradia é cara, o preço médio de uma casa é US$

540 mil. Só cerca de 30% dos lares podem se permitir a pagar uma hipoteca assim,

assumindo 20% de entrada. São as facetas mais sombrias da cidade considerada

umas das capitais do mundo, que nos levam ao inferno da classe subalternizada e

pobre trabalhadora. Uma cidade glamourizada e considerada, pela maioria dos

que ali buscam uma vida, como um lugar mítico, onde tudo é possível acontecer.

“O paradoxo da fábrica de sonhos e da manufatura idílica de pesadelos” (Mike

Davis,1990).

Alguns em LA vivem em um potencial set de filmagem; na Hollywood

Street parece ser halloween todos os dias. Cidade louca, uma grande metrópole,

multicultural, super diversificada, com muitos nichos representados por

específica vizinhança, em que cada região tem uma identidade muito singular.

207

Um ritmo super acelerado, ao mesmo tempo em que se pode viver a cidade com

imersão cultural de todas as formas, do entretenimento à diversão e culinária.

Apresenta a internacionalização da formação de classes com enorme quantidade

de trabalhadores manuais latinos e um crescente estrato rentista de investidores

asiáticos. “Ondas de imigrantes chineses, coreanos e armênios de classe média,

aumentados por israelenses, iranianos e outros, fizeram de Los Angeles o centro

mais dinâmico do capitalismo étnico familiar no planeta” (DAVIS, 1990, p. 104).

3.999.742 pessoas vivem na área metropolitana de LA, o maior condado do

país. São muitos imigrantes, vindos de todo o mundo para trabalhar na grande

indústria do entretenimento. Dos moradores de LA, 36,9% são nascidos fora dos

EUA, e, desses, 60% são latino-americanos e 30% asiáticos (Gráfico 2)136.

Gráfico 2 – Dados de estrangeiros residentes em LA – naturalidade.

Os residentes de LA se configuram em metade do gênero masculino e

metade do gênero feminino. A maior porcentagem da população é latino

americana majoritariamente da região central - 39%, sendo declarados 28%

brancos, 11% Asiáticos e 9% negros. (Gráfico 3).

Gráfico 3 – Dados de residentes em LA – Gênero e Etnicidade.

136Todos os dados e gráficos a seguir foram reproduzidos a partir do censo oficial. (Disponível em:

censusreporter.org. Acesso em: 21 maio 2019). A confiabilidade dos dados foram conferidas com o Prof. Dr. Kevin

B. Anderson.

208

59% da população residente em LA têm uma outra língua falada dentro das

moradias, sendo a língua espanhola, a principal segunda língua e 42% dos adultos

falam apenas inglês dentro de casa.

Gráfico 4 – Idioma.

O Glamour e a ilusão de que quem vai para LA tudo alcança pode ser

contraposta pelos dados sociais de que 17,4% pessoas vivem atualmente abaixo da

linha da pobreza. (Gráfico 5).

Gráfico 5 – Pobreza.

Para se locomover em LA é preciso ter carro, o sistema de transporte não é

209

dos mais eficientes e são longas jornadas para se chegar aos destinos, 70% da

população usa carro para trabalhar (Gráfico 5).

Gráfico 6 – Meios de transporte para o trabalho.

O maior ranking de iletrados em todo o país, 33, 5%, está na Califórnia e

apenas 10% da população possui graduação superior (Gráfico 6).

Gráfico 7 – Níveis de escolaridade da população de LA

210

Figura 112 - Axis Valhalla, Art District, Los Angeles

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).

Algumas expressões de artistas engajados apresentam uma forma

contestatória e insurgente a um tipo de sociedade. A produção artística se refere

a um mundo inteiramente nosso e tem um caráter evocador de si mesma que

reflete as contradições da vida social. A arte atua essencialmente na

conscientização dos conflitos histórico-sociais que brotam da realidade. Assim,

selecionamos alguns murais, graffitis, estêncil e pixo por valores simbólicos,

políticos ou por apresentarem um questionamento social no conjunto das

representações.

Selecionamos fotografias sobre artes urbanas e, a partir delas, recolhemos

reflexões da questão redigida em forma de ensaios com os temas que se impõem

211

ao instante do real contemporâneo: ansiedade, depressão, alienação, feminismo,

degradação ambiental, crise do capital. Ao mesmo tempo, tentei escolher não

apenas reproduções representativas de uma dada realidade mas algo que

penetrasse os poros e os sentimentos, não tão somente contemplativos, mas com

inclinações de práticas, críticas ou vislumbramentos de um tipo de sociedade.

Quais serão os teores de verdade que as imagens contém e induzem a quais

efeitos, quais são as origens históricas e quais os destinos políticos da estética

contemporânea mais difundida no mundo? No que as imagens públicas urbanas

concernem ao jeito de ser de indivíduos e das coletividades? Ao resgatar toda

referência cultural e artística do legado da humanidade há que se pensar no

desenvolvimento da própria cultura e de que maneira ela se articula com a

universalidade137.

Em sua obra Estética, o filosofo húngaro György Lukács decifrou que as

respostas humanas emocionais estão vinculadas ao mundo objetivo circundante

que as desencadeiam, os indivíduos reagem no interior de alternativas concretas

nas relações entre liberdade e necessidade. A nossa proposição aqui é a de que a

criação artística é, ao mesmo tempo, descobrimento do núcleo da vida e crítica

da vida sendo parte do processo de autoconsciência da humanidade.

Para além dos interesses práticos imediatos, a arte afeta a humanidade por

inteira, à substância humana dos indivíduos histórico-sociais, contra as tendências

que ferem e envelhecem a integridade humana. Em sua dialética, a arte possibilita

a elevação do indivíduo de sua genericidade em si à sua genericidade para si, à

compreensão do caráter histórico-social da individualidade. Se a criação artística

remete à autocompreensão dos indivíduos em seu vínculo com a história, os

destinos sociais, a estética e a dimensão ética se encontram numa viva unidade.

Aqui propomos que a experiência estética da arte urbana é parte causadora

da transformação qualitativa da subjetividade em relação à coisificação e

fragmentação do indivíduo sob o sociometabolismo do capital. Se a barbárie é o

real, se a arte contemporânea verifica uma crítica social, ética e política ao real,

137 É fundamental que o ser humano genérico se aproprie de todos os bens culturais produzidos pela humanidade.

(...) Uma nova classe não recomeça a criar toda a cultura desde o início, mas se apossa do passado, escolhe-o,

retoca-o, o recompõe e continua a construir daí. Sem o uso do guarda-roupa de “segunda mão” do passado não

haveria progresso no processo histórico (...) Os dias que vivemos ainda não representam a época de uma nova

cultura, mas no máximo seu limiar. Devemos em primeiro lugar nos apossar oficialmente dos elementos mais

importantes da velha cultura, a fim de podermos ao menos abrir caminho à construção de uma cultura nova

(TROTSKY, 2007, p. 143 e 154).

212

ainda podemos voltar a apontar para o futuro. Não é apenas identificar a

catástrofe mas reinventar a cidade ludicamente e criar novas possibilidades de

sociabilidade humana.

As dimensões políticas, embora não sejam obrigatórias, estão presentes na

arte. Se na política existe a organização da vida em sociedade; na arte, temos o

sentido da beleza, felicidade, do prazer, gosto e, possivelmente, da influência

moral, mas a arte mostra, em cada uma das suas linguagens próprias, uma forma

de vivenciar o mundo, e, por vezes, de captura magnética ou aprendizado prévio

para apreciação.

Tais dimensões podem aparecer nos fatos urbanos, na memória privada

que reflete o processo de reprodução do cotidiano urbano, a realidade, enquanto

modo de ver a sociedade, ou, também, de maneira consciente e estrategista e de

proposição moral e de influência de comportamento enquanto arte engajada, de

protesto, marginal, as duas últimas no campo da desobediência civil em forma de

arte.

No filme The Edukators (2004), o diretor e roteirista Hans Weingartner

descreve os últimos dez anos de sua vida, numa tentativa de encontrar um

movimento político que dialogasse com os anos de ativismo político por ele

vivido. A resistência poética baseia-se em um trio que invade mansões de pessoas

milionárias para bagunçar, mover todas as coisas de lugar. Uma ação direta não

violenta que balança individualmente as estruturas mas não está atenta a causar

transformações. O filme alemão narra a insatisfação de três jovens que se tornam

“os educadores” e ao invadirem propriedades alheias sem roubar nada criam uma

sensação de insegurança e de falta de comando. Uma tática de mudança de padrão

de comportamento, de questionamento do status quo. O título original: Die Fetten

Jahre Sind Vorbei/Os Dias de Fartura Estão Contados, consta nas mensagens

deixadas nas casas. Questiona-se o consumismo, o abuso das televisões, a

desigualdade social.

213

Figura 113 - Todo coração é uma célula revolucionária. (trad.).

Fonte: Imagem Frame do Filme Edukators, 2003.

A ação não violenta de bagunçar a casa alheia apresenta-se ali na

desobediência civil contra a supremacia de uma classe social sobre a outra ou de

um grupo social sobre o outro. A emergência de superar o sistema vigente, as leis,

normas e formas de governo apresenta por meio da objetivação do ato, a busca

por mudança, mas qual o imperativo histórico e concreto? A desordem para

acabar com a riqueza?

No desenvolvimento das dimensões antropológica, econômica e política

das forças sociais e da história, a cultura engloba os valores, as normas e regras, as

linguagens, as formas de expressão, as artes, formas de vestir, comer, adornar o

corpo. Uma forma de ilustrar o poder das normas sociais é por meio das reações

às violações das normas. Aqueles que violam as regras são comumente alvo de

críticas dos demais. Algo como ser repreendido por pegar gelo com a mão no

freezer ou ser ridicularizado pela menor falta de etiqueta à mesa; as normas são

poderosas, pois as normas e os valores podem se tornar leis.

As contestações, militâncias e os ativismos nas ruas ora ocorrem por meio

de um discurso crítico, um protesto verbal, palavras de ordem/slogan; de recursos

não verbais, como barricadas com pneus, paralisação de uma via com caminhões

em protestos coletivos; em protestos individuais pode-se atear fogo ao corpo,

214

praticar jejum prolongado, ou suicídio público. O direito de greve, uma

contestação de trabalhadores, por exemplo, está em vias de ser extinto. Ao longo

da história, outras manifestações coletivas que desobedecem à lei em nome de

um ideal, da conquista de direito, transformação societária, notória injustiça são:

a rebeldia, desordem de rua, as insurreições, agitações momentâneas. E, ainda, as

mídias sociais vêm transformando protestos políticos numa nova forma de

comunicação e estratégia de mobilização, diferente das mobilizações da década

de 1960138.

As diversas mobilizações sociais139 expressam um conjunto de ações

coletivas dirigidas tanto às necessidades imediatas de melhores condições de vida

e trabalho, quanto às manifestações históricas na construção de novas

sociabilidades, em que as ações de rua, os bloqueios, as passeatas, paralisações e

pichações são estratégias de agitação e propaganda das lutas sociais. As múltiplas

formas de organização apresentam distintas motivações ou demandas de classe,

gênero, etnia, raça, religião, entre outras, e têm papel fundamental na superação

das formas de exploração e dominação capitalista e na construção de uma nova

sociabilidade.

138Por exemplo, os protestos turcos antigoverno, em 2013, publicaram mais de 10 milhões de tweets. Se a mídia

local não divulga, usar bem essas ferramentas pode ser uma forma eficiente de comunicação. 139Por movimento social se entende que é sempre uma ação coletiva decorrente de uma luta sociocultural,

econômica ou política. São elementos constitutivos dos movimentos sociais: estratégias, identidade e visão de

mundo, lideranças, articulação, redes de mobilização, comunicação, ocupações urbanas. Podem realizar ações

coletivas propositivas as quais resultam em transformações nos valores e instituições da sociedade. Mas também

pode haver mobilização social que abarca outros valores; de conquista de novos direitos, de contestação ao sistema

capitalista ou manutenção do status quo.

215

Figura 114 - Imagem da esquerda, Os Gêmeos; imagem da direita, o italiano Blu. Avenida Fontes Pereira de Melo, prédio vazio, Lisboa/Portugal.

Fonte: Imagem por José Ivanez dos Santos - pai da autora.

O grafiteiro/muralista italiano Blu é um artista engajado, tem sua

identidade escondida e começou a pintar em Bologna/Itália. Nessa mesma

cidade, decidiu apagar todos os seus trabalhos das paredes em protesto contra a

especulação imobiliária; eram murais com mais de 20 anos. Os murais de Blu

podem ser encontrados em cidades como Berlim/Alemanha, Santiago/Chile,

Lisboa/Portugal, Cidade do México, Belgrado/Sérvia e Manágua/Nicarágua. Suas

obras ocupam faces inteiras de edifícios, na indissociabilidade do prédio e mural.

216

O conteúdo político emerge do seu trabalho, por exemplo, no Chile, os murais

cercam o rio Mapocho e retratam o projeto da construção da hidrelétrica de

Hidroaysén e seu impacto ambiental no ecossistema da Patagônia.

A prefeitura de Bolonha inicialmente quis abolir o que chamavam de

“vandalismo gráfico” e passou a oferecer um serviço pago às administradoras de

condomínios para remoção dos graffitis. E depois quando os murais começaram

a ficar famosos propôs fazer tours de arte de rua com a criação de produtos:

estampa de cartões, capas de livros e discos. A cidade começou a usar a estética da

resistência para suas campanhas de marketing140 e para posar de salvadora da arte

de rua. Para evitar que seus murais se tornassem privados e pudessem

impulsionar na alta de preços dos aluguéis e propriedades da região, o muralista

Blu começou a apagar os murais antes da abertura da exposição. Com a ajuda de

coletivos locais e voluntários, Blu cobriu de tinta cinzenta suas obras, algumas

com mais de vinte anos de existência.

O capitalismo está em crise, ao mesmo tempo, contraditoriamente, está

fixado como modo de vida predominante e apresenta uma hegemonia

internacional. Um sistema rígido, que afunila a riqueza para uma pequena elite

burguesa. Desde a década de 1970, nos contam a mentira do gotejamento

econômico: se cortarmos as taxas das grandes riquezas, então, trabalhos serão

gerados e todos se beneficiarão. A classe dominante, detentora dos meios de

produção, que detém a riqueza socialmente produzida, por meio da exploração

da força humana de trabalho, vem destruindo o meio ambiente, expandindo o

complexo industrial prisional, congelando gastos com a educação pública e

programas sociais, e declarando guerra aos sindicatos. Tudo isso sob a alegação

de uma “democracia saudável” que se sustenta a serviço do capital sobre o

trabalho.

Na realidade, bancos, instituições financeiras, empresas e corporações,

acumulam mais poder do que o próprio governo. Suas decisões afetam a todos,

mas ninguém os elegeu e eles não são responsáveis perante ninguém. Suas únicas

140 Se, por um lado, os organizadores da exposição não pediram autorização para o autor, antes de incluir suas

obras no evento, por outro, os murais foram retirados pelo museu de prédios abandonados para serem exibidos no

evento e os envolvidos alegam que pediram permissão aos proprietários dos edifícios. O caso de Blu expõe as

reações contraditórias despertadas por trabalhos não requisitados ou permitidos que oscilam entre rejeitar como

poluição visual indesejada pelos proprietários e pela administração pública, ou promover como atrativos turísticos

e imobiliários.

217

motivações são os resultados finais. Decisões econômicas e políticas que afetam a

vida das pessoas comuns devem estar sob controle popular. À medida que os ricos

ficam mais ricos, as pessoas comuns trabalham mais e lutam para sobreviver.

O capitalismo em chamas limita a democracia, porque a elite econômica pode

comprar o poder, o que deveria estar na soberania exercida pelo povo (democracia)

Esse não é um sistema que promova a aptidão de muitos, e sim de poucos. É um

sistema que desconsidera o bem-estar das pessoas e da maioria da população do

planeta.

O futuro das reservas naturais de água, óleo, pré-sal e o grau de

sustentabilidade e salubridade para habitarmos o planeta Terra têm dependido

dos níveis de expansão do capital. A expansão constante que produz rompantes

destruições de variadas espécies, desmatamento, extorsão de reservas naturais; ou

você acha que basta você reduzir o seu tempo do banho para que as coisas

mudem?141 É evidente a necessidade de ser superada essa ordem metabólica

destrutiva da humanidade e natureza. Qual o desafio maior senão o de destruir o

curso destrutivo do capital? Até que ponto o desenvolvimento econômico, a pós-

industrialização, a pós-colonização e a modernização podem ser considerados

progresso?

O ser humano tem origem na natureza e é ele próprio ser orgânico e

natural; seus atributos de diferenciação com os demais seres naturais aparecem

em sua autoconstrução humana, na materialidade da existência histórica, a partir

da relação com a natureza. O devir do ser humano está para si mesmo, em relação

à natureza e o devir da natureza está para o ser social. A natureza é seu corpo e

sua alma.

Na interatividade do homem com a natureza (mediada pelo trabalho), a fim

de satisfazer suas necessidades, o homem não somente a alterou como também a

si mesmo e se distanciou dela, logo, possibilitou-lhe – também por meio do

trabalho – criar a linguagem, cuja finalidade foi a de se comunicar com os demais

e, concomitantemente, produzir arte, cultura, formas de organização societária e

outros atributos que resultam das relações travadas no mundo humano. É no ato

do trabalho que os homens vão rompendo as barreiras naturais; é a libertação dos

141 A barbárie capitalista é omnilateral e polifacética - e é ubíqua: contém-se no arsenal termo-nuclear que pode

aniquilar repentinamente todas as formas de vida sobre o planeta tanto quanto na lenta e cotidiana

contaminação/destruição dos recursos hídricos, que pode igualmente inviabilizar a vida sobre a terra. (NETTO,

2010, p. 31).

218

limites da natureza. No entanto, na exploração desenfreada desse ato, dessa

relação, é que os limites da natureza se fazem novamente presentes e não se pode

ter controle das forças da energia natural com a incessante expropriação.

O trabalho, para Marx, é condição fundamental para a existência humana;

é atividade universal do ser humano. Escrevendo em 1876, em seu ensaio

intitulado O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem”, Engels

(1976), ao afirmar que não só a riqueza, mas também o homem é o produto do

trabalho, evidencia que o trabalho está contido nos homens, pois foi o trabalho

que os criou. Concordando com o autor, partimos da premissa de que o processo

de desenvolvimento do homem é resultado do trabalho, devido ao homem (por

meio do trabalho) ter dado o salto – ontológico – de ser animal para social. O

trabalho possibilitou ao homem se libertar da natureza e subordiná-la.

Para manter a vida humana, há necessidade eterna de relacionamento com

o mundo da natureza, onde se encontra o necessário para a existência. E até

quando manteremos esse hiato com a natureza, se somos parte dela? A natureza

é o corpo do humano e com ela devemos permanecer em relação, para não

morrermos; o humano é parte da natureza e o trabalho é atividade-meio vital

dessa relação. A economia capitalista nutre a ilusão de que mais capital gera mais

vida, que gera mais capacidade para viver. Enquanto isso, a luta e a histeria

coletiva na preocupação em sobreviver dirige-se ao sustento da mera vida e não

da boa vida. A humanidade não precisa sucumbir à barbárie.

219

Figura - 115. Mural do grafiteiro espanhol Belín na Alemanha.

Fonte: @Belín

220

Miguel Ángel Belinchón Bujes, o Belin, nasceu em 26 de setembro de 1979,

na cidade de Linares/Espanha. Belin apresenta uma arte com uma justaposição

de estilos. Aqui vemos um mural hiper-realista, com a reprodução minuciosa do

rosto de uma senhora, combinado a um corpo e cores, sombra e luz, na roupa,

mais lúdico.

Uma idosa solitária tem nas mãos um cofrinho, depreende-se que ela não

tem apoio da família, do Estado, apenas conta com as moedinhas para sobreviver.

Essa senhora nos faz lembrar de algumas personagens da terceira ou quarta idade

que circulam por São Paulo, algumas estão em situação de rua. Qual é o lugar na

sociedade de uma pessoa após os 75 anos? Ela não está aposentada, ou é

aposentada compulsoriamente; se receber aposentadoria, será, em média, um

salário mínimo por mês, o que hoje, no ano de 2018, é de R$ 954. Uma pessoa

nessa idade tem mais gastos cotidianos do que um adulto de 50 anos, porque tem

que cobrir a compra de medicações. O lugar social da pessoa idosa é ficar para

“escanteio”; a capacidade de raciocínio, em geral, fica mais lenta; não há espaço

de socialização no trabalho, na família, por vezes, os mais novos não têm

paciência e já se mantém o poder de voz e ensinamento de que o respeito foge à

regra, para com os idosos. Se pensarmos nos espaços destinados à socialização dos

grupos que não podem trabalhar, vemos clubes, escola, parques de diversão,

brinquedotecas, para crianças na fase de crescimento, mas e para uma senhora

idosa, o que há?

No filme Réquiem para um Sonho, de Darren Aronofsky, é apresentada

uma visão frenética, perturbada e única, sobre pessoas que vivem em desespero,

mas que tentam caçar seus sonhos. Harry Goldfarb e Marion Silver formam um

casal apaixonado, que tem como sonho montar um pequeno negócio e serem,

assim, felizes; mas ambos são viciados em heroína, o que faz com que,

repetidamente, Harry penhore a televisão de sua mãe, uma idosa que fica o dia

todo em casa, para conseguir dinheiro. Sara, mãe de Harry, é viciada em assistir

programas de TV, e um dia recebe um convite para participar do seu show

favorito, o Tappy Tibbons Show, que é transmitido para todo o país. Sara começa

a tomar pílulas de emagrecimento, receitadas por seu médico, para entrar em seu

vestido predileto. Só que, aos poucos, Sara começa a tomar cada vez mais pílulas,

até se tornar uma viciada no medicamento. A crueza de um tipo de realidade está

221

ali representada, é o lugar a que estão relegados tantos idosos que não tem mais

serviência à sociedade em chamas.

Nas famílias, decai a autoridade de homens e mulheres mais velhos. Na

sociedade industrial, já aposentados, tornam-se mais pobres do que enquanto

compunham a força de trabalho ativa. Já sem função laborativa ou familiar,

muitos idosos apresentam dificuldade em manter uma vida digna. A questão do

isolamento pode ser um estereótipo, se olharmos para as estatísticas de que ainda

continuam a se relacionar com a família e que os filhos adultos cuidam de seus

pais. Mas qual é a qualidade dessas relações sociais?

Figura - 116- Bratislava/Eslováquia.

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2013).

222

Figura 117 - TVNAUTA, por Celso Gitahy

Fonte: Imagem cedida pelo artista.

Uma cabeça de monitor de computador e tigres sedentos de petróleo; ao

fundo, as cores da bandeira brasileira, o verde e o amarelo. Os elementos de

223

composição remetem a uma vivência muito atual. O que seria esse rolê chamado

“Americanização?”. Tal influência não se restringe ao meio financeiro, mas é

considerada como impulso para a difusão de sua cultura, padrão de vida e ideais,

que repercute na substituição de características nacionais por valores dos demais

países, em busca de assemelhar-se (ainda que involuntariamente) com o que é

valorizado.

Seria o povo brasileiro demasiado certinho, educado para ser servo? O país

é mais velho que os EUA, mas não pode se desenvolver jamais. Porque o Brasil é

um dos países mais “paga pau” e americanizado do mundo? No Brasil, vendem-

se as estatais a preços baixos e favorecem a entrada do capital internacional. Por

onde caminha essa síndrome de pequenez? Temos petróleo, água em abundância,

fauna, flora, ervas medicinais. Mas teve o caso da produtividade das refinarias

abaixo da capacidade, em 2018, quando o nosso petróleo foi enviado para ser

refinado fora do país para er (re)comprado com valor atrelado ao dólar,

escancarando a abertura do mercado nacional para o mercado externo.

Semiurgia é a ciência da manipulação da força ideológica do discurso para

efeito de domínio sociopolítico. Fui buscar um biquíni na loja e vi uma calça que

não é mais bailarina, é flare; e o biquíni cintura alta, é cropped; e os outros modelos

todos de calça: pantacourt, cigarrete, boyfriend, legging, skiny, jegging, fitness, wellness

e a loja, em promoção, estava, é claro, On sale e 50% OFF. Não é novidade sermos

colonizados. Se a língua é pátria, estamos americanizados.

Há uma massiva divulgação do modo de vida americano, por meio da

indústria cinematográfica, de onde são transmitidos padrões de comportamento,

jeito de ser e consumir. E o uso cotidiano das palavras: backup, shopping center, jeans,

pen drive, check-in, design, ok, link, show, jeans, pizza, delivery, game, TBT - throwback

thursday.

O homem no estêncil tem cabelo LCD, os tigres com cabeça de motor LCD

encurralam a figura central; o espraiamento da comunicação eletrônica e a mídia

de massas desenvolvem um papel muito potente na reprodução da vida social.

Influenciam a partir dos signos, memes, imagens, fluxos contínuos, das

mensagens cognitivas e subliminares. Essa é a idade da dominação midiática, em

que todo o significado é criado pelo fluxo imagético. Parte significativa de nosso

mundo tornou-se um universo de faz-de-conta, em que respondemos muito mais

224

a imagens nas mídias sociais do que a uma pessoa real. A vida é fragmentada,

dissolvida e descrita na TV; a vida é inventada, falseada por meio dos aplicativos.

Na idade cibernética, tudo é produto cultural baseado em imagem.

Votamos em memes, Facebook é sinônimo de RG, só que com muito mais

informações sobre nossos hábitos e padrões; e ideológico, com “infos” que são

divulgadas para influenciar o nosso consumo, voto, posicionamento frente à vida.

É veículo de informação sem nenhum filtro. O que aqui está, é verídico e ponto,

e assim é a rede de buscas mundiais. Quem é que passa da página 2 do Google

para pesquisar algo? A informação rasa e fácil.

Se Baudrillard, que, em sua juventude, foi influenciado pelo marxismo, diz

que a expansão da comunicação eletrônica e do poderio dos meios midiáticos de

massa revertem a teoria marxista de que as forças econômicas moldam e

influenciam a sociedade. Mas quem rege os meios de comunicação?

Após os períodos revolucionários, de colônia; períodos de governos de

ditadura, agora o capital, que se reestrutura cada vez mais rapidamente, adentrou

profundamente as subjetividades. As novas práticas sociometabólicas da

sociedade neoliberal tendem a fragmentar as subjetividades. Os tipos humanos,

que a sociedade burguesa produz, forma e deforma, têm em si, na mente e no

corpo, a marca do fetichismo da mercadoria. A individualidade de classe, na

medida em que a negação da individualidade pessoal tensiona, no limite de sua

negação, a subjetividade humana.

O capitalismo vai saturando as formas de ser e existir, tanto nas condições

objetivas, materializadas no trabalho e suas formas, quanto nas várias dimensões

da subjetividade (personalidade, reflexo condensado, criatividade, desejos,

pulsões, cognição, em que se relacionam consciente versus inconsciente). O

sociometabolismo do capital é constituído por processo de subjetivação, que

forma os indivíduos e as classes. Nesse sentido, objetividade e subjetividade, se

apresentam em uma unidade. A sociedade imersa no capitalismo em chamas é uma

subjetividade em frustração constante, por não atingir o nível de exigência, uma

subjetividade em desefetivação pelo estresse de longas jornadas de trabalho e

alcances de produtividade também na vida familiar e na social e zumbizada pelas

teias da manipulação social.

As imagens publicitárias com incentivo a práticas e valores, como o

consumismo, individualismo, imediatismo e exibicionismo exacerbados

225

encontram-se nos metrôs, ônibus, banheiros, mensagens de celular, spams,em e-

mails, nas salas de cinema e no teatro, Instagram, snapchat, Facebook. O uso de

instagrans é um exemplo simples da superexposição de imagens e da própria

imagem, em que um perfil pode ser divulgador de marcas apenas em troca de

produtos. Ex.: Postar fotos esportivas sempre usando produtos nike. A televisão é

ainda parte da sociedade do “sim senhor”, “obrigado”, “por favor”. A obediência

servil, passiva e de inconsciente atemporal. O sujeito obediente é o do dever, o

sujeito ativo pós-moderno142 , é o sujeito do prazer, da liberdade, do bel-prazer,

da autoajuda, do ouvido interno. Narcisista, “o eu difunde-se e torna-se difuso”

(HAN, 2018, p. 84).

O estêncil de Celso apresenta uma crítica aos modos de alienação presentes

na sociedade capitalista consumista, a arte pode nos trazer processos reflexivos de

se repensar a realidade social, política, cultural e econômica. Como diz o escritor

espanhol “O modo mais eficaz de tornar os pobres inofensivos é ensiná-los a

querer imitar os riscos. Esse é o veneno com que o capitalismo cega 143.

Figura - 118 - Picho com frase do escritor Carlos Ruiz.

Fonte: Imagem por Juliana Abramides

142O pós–moderno é o tempo de hegemonia do capital: Como explicita James Hansen “(…) pós-moderno é

justamente o tempo em que o pensamento da oposição não é mais operante na cultura […] conforme a crítica

teleológica, […], não mais encontramos a imagem da nossa esperança nos nossos produtos, que passam a existir

de modo alegremente autonomizado, em formas que radicalizam o fetichismo da mercadoria como a nossa natureza

e realidade únicas e em que encontramos, como realização da nossa felicidade, a indiferenciação, a regressão, a

pulsão de morte, em formas hedonistas, conformistas e de má-fé”. (HANSEN, 2000, p. 62-63). 143 A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón. São Paulo: Editora Objetiva, 2015

226

Figura - 119 - Mural na região de casas noturnas entre downtown e chinatown, Los Angeles/CA.

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).

The colonial world is a world cut in two. The dividing line, the frontiers are shown by barracks and police stations. In the colonies it is the policeman and the soldier who are the official, instituted go-betweens, the spokesmen of the settler and his rule of oppression. In capitalist societies the educational system, whether lay or clerical, the structure of moral reflexes handed down from father to son, the exemplary honesty of workers who are given a medal after fifty years of good and loyal service, and the affection which springs from harmonious relations and good behavior--all these aesthetic expressions of respect for the established order serve to create around the exploited person an atmosphere of submission and of inhibition which lightens the task of policing considerably. In the capitalist countries

O mundo colonial é um mundo cortado em dois. A linha divisória, as fronteiras são mostradas por quartéis e delegacias de polícia. Nas colônias é o policial e o soldado que são o oficial, instituíram intermediários, os porta-vozes do colono e sua regra de opressão. Nas sociedades capitalistas, o sistema educacional, leigo ou clerical, a estrutura dos reflexos morais transmitidos de pai para filho, a honestidade exemplar dos trabalhadores que recebem uma medalha após cinquenta anos de serviço bom e leal e a afeição que brota da harmonia relações e bom comportamento - todas essas expressões estéticas de respeito pela ordem estabelecida servem para criar em torno da pessoa explorada uma atmosfera de submissão e de inibição que ilumina consideravelmente a tarefa de policiar. Nos

227

a multitude of moral teachers, counselors and "bewilderers" separate the exploited from those in power. In the colonial countries, on the contrary, the policeman and the soldier, by their immediate presence and their frequent and direct action maintain contact with the native and advise him by means of rifle butts and napalm not to budge. It is obvious here that the agents of government speak the language of pure force. The intermediary does not lighten the oppression, nor seek to hide the domination; he shows them up and puts them into practice with the clear conscience of an upholder of the peace; yet he is the bringer of violence into the home and into the mind of the native. (FRANTZ FANON, 1963, p. 37).

países capitalistas, uma multidão de professores de moral, conselheiros e "perplexos" separa os explorados daqueles que estão no poder. Nos países coloniais, pelo contrário, o policial e o soldado, por sua presença imediata e sua ação frequente e direta, mantêm contato com o nativo e o aconselham por meio de pontas de fuzil e napalm a não ceder. É óbvio aqui que os agentes do governo falam a linguagem da força pura. O intermediário não alivia a opressão nem procura ocultar a dominação; ele os mostra e os põe em prática com a consciência limpa de um defensor da paz; mas ele é o portador da violência para o lar e para a mente do nativo. (FRANTZ FANON, 1963, p. 37).

As diversas formas de racismo adquirem papéis social, ideológico e

político. Em O Racismo como Arma Ideológica de Dominação, Clóvis Moura (1994) analisa

como o racismo se renova enquanto instrumento de dominação tendo sido ao longo da história

a “justificação dos privilégios das elites e dos infortúnios das classes subalternas”. O autor se

refere ao racismo enquanto instrumento de ideologia da dominação “[...] e somente assim

pode-se explicar a sua permanencia como tendencia de pensamento”.

O racismo tem um caráter de dominação ideopolítico, além da dominação

étnica. Nas nações que vivenciaram a dominação colonial escravista, a herança

desses sistemas se reproduz quando mantém um sistema de exploração das

camadas trabalhadoras negras e mestiças. Mantém formas de segregação ou de

não inserção social dos negros e negras.

Desde o século VII, países ocidentais estabeleceram colônias em numerosas

áreas, impondo o poderio e as regras em territórios alheios, com uso militar

superior e força, o que moldou socialmente o mundo como o conhecemos hoje.

O neocolonialismo, ou a fase do imperialismo, multiplica as formas de racismo, em novas

roupagens. O racismo como ideologia neocolonial adquire algumas formas, como de “[...] uma

reciclagem hipocrita do antigo sistema colonial, que se reestrutura no neo-colonialismo

tecnocratico, racista”. (MOURA, 1994, p. 15).

Em Rebeliões da Senzala, Clóvis Moura 2014 destaca o caráter ativo dos

negros na resistência ao escravismo e luta por emancipação. Uma rebeldia

permanente e organizada dirigida pelos escravizados em todo o território

nacional, no Brasil. Moura destaca que o movimento de mudança radical foi uma

228

força importante no desgaste do sistema escravista; dissolveu as bases do modo de

vida em diversos níveis – econômico, social e militar – e influiu poderosamente

para que esse tipo de trabalho entrasse em crise e fosse substituído pelo trabalho

livre.

Em Civilização Americana em Julgamento, Raya Dunayevskaya (1983)

apresenta contundente crítica à sociedade americana donde fala sobre a auto-

atividade do negro desde antes da Guerra Civil até depois da II Guerra Mundial.

Em uma clara alusão à política do governo Kennedy, do posicionamento das

forças armadas do Estado, “os cães” da polícia nos ataques ao negro e o

espraiamento do posicionamento racista “branco do sul uivando aos ventos” para

o norte, através do Ku Klux Klan (KKK). Na atividade de organização pelos direitos

sociais dos negros, principalmente entre as eras da pós I Guerra e da era pós-II

Guerra Mundial, “quando o negro, longe de fugir defensivamente do

linchamento, tomou a ofensiva por seus plenos direitos sobre todos frentes e,

sobretudo, no sul”.

O capitalismo estadunidense, em uma revolução inacabada, expande-se,

depois da Guerra Civil. O capitalismo que fora amarrado às plantações de

algodão. Ainda em 1877, quando o trabalho emerge no norte e iniciam-se as

primeiras greves ferroviárias, toda a mão de obra negra, no sul, se volta para a

agricultura.

Quais as forças de atuação, no sul, para abandonar a segregação social?

Parece que a conclusão, até 1942, era que todo pensamento progressista, no sul,

inexistia. Será que a mentalidade patriótica e mestre de escravos ainda

permanece por lá, dentre os fazendeiros?

A civilização americana é identificada na consciência mundial por três

fases, no desenvolvimento da sua história. A primeira é a Declaração da

Independência e a liberdade das treze colônias americanas do domínio imperial

britânico. A segunda é a Guerra Civil. A terceira é a tecnologia e o poder mundial,

que estão atualmente sendo desafiados pelo país, que quebrou o monopólio

nuclear da América - a Rússia -, e afirma que todo louvor pela emancipação e

pela proclamação da independência não podia branquear o presente ou que a

democracia americana jamais poderia reescrever a história.

Após a guerra civil, que culminou com o fim da escravidão, em 1865, a

discriminação legal (como a segregação obrigatória no sul - hotéis, restaurantes,

229

bares, etc. e escolas separados), ataram os negros aos mais baixos degraus da

escada econômica). A discriminação racial se tornou-se ilegal desde o ato dos

direitos civis, mas, na prática, persiste, apesar de alguns negros terem se tornado

classe média, com melhores trabalhos, a maioria é pobre e tem trabalhos mal

pagos.

A autora marxista defende que há uma nova dimensão humana alcançada

por meio do gênio de um povo oprimido na luta pela liberdade, nacional e

internacionalmente; o papel da vanguarda dos negros torna-se a medida do

homem em ação e pensamento e “[...] nada pode impedi-lo de ser o mais amargo

inimigo da sociedade existente” (DUNAYEVSKAYA, 1983, p. 6). No meio da

guerra, o negro eclodiu em uma série de manifestações, em Chicago, Detroit, NY,

bem como nos acampamentos do exército, com os mineiros, na greve geral do

mesmo ano, foram a primeira instância na história dos EUA, quando ambos os

trabalhadores, branco e negro, recusaram-se a suspender a luta de classes ou a luta

pela igualdade de direitos. Sobre o abolicionismo e a guerra civil, ela fala sobre a

impossibilidade de se ter uma definição sobre esses momentos históricos, desde

que a atividade do negro, na formação da civilização americana, permanece em

branco (até aquele momento) nas mentes dos historiadores acadêmicos. Segue

Raya:

O historiador burguês é cego não só para o papel do negro, mas para o do branco Abolicionistas. Principalmente não registrado por todos os padrões historiadores, e hermeticamente selado de seu poder de compreensão, são três décadas de Luta abolicionista de brancos e negros que precedeu a Guerra Civil e tornou isso irreprimível conflito inevitável. No entanto, estas são as décadas quando o cadinho do qual o primeiro grande expressão independente do gênio americano foi forjado. (...) Apenas historiadores negros como W. E. B. Du Bois, G. Carter Woodson e J. A. Rogers fizeram a pesquisa meticulosa para definir o s limites e revelar o papel criativo dos negros na História americana”. (DUNAYEVSKAYA, 1983, p. 7).

O africano, trazido aqui como escravo contra a sua vontade, desempenhou

um papel decisivo na formação da Civilização Americana144. No início do século

17, havia cerca de 10 mil negros livres nos EUA. Nesse ínterim, o que a autora

ressalta é a importância das revoltas de escravos, primeiro no apelo dos negros

144“Alguns sentem que é errado começar a história do negro na América com sua chegada aqui como um escravo,

em 1619, desde que ele já havia alcançado estas costas muito antes - com a descoberta do mundo novo, na verdade,

principalmente como servos ou, em alguns casos, na comitiva dos próprios exploradores.” (DUNAYEVSKAYA,

1983, p. 8).

230

livres, no escravo fugitivo sendo "conduzido" através da Ferrovia Subterrânea por

ex-escravos fugitivos.

Os anos 1820-1830 marcaram o nascimento do capitalismo industrial, de

modo que o algodão e a economia das plantações movia o comércio e, na Nova

Inglaterra, a indústria têxtil e apolítica em geral.

A manutenção de uma “supremacia branca” nos estados do sul surge a

partir da produção do algodão. Houve um "acordo de cavalheiros" entre os

proprietários das plantações com o capital do norte, bem como com auxílio do

KKK, de que, na indústria do sul - os produtos têxteis - se desenvolveriam sob a

condição de deixar intocado um suprimento de mão de obra negra das

plantações, “quando eles estabelecem o palco desenfreado de violência contra o

trabalho” (DUNAYEVSKAYA, 1983, p. 12). Além de estarem livres da escravidão,

os negros foram libertados também de uma maneira de ganhar a vida: “sem-terra

eram os novos libertos e sem dinheiro” (DUNAYEVSKAYA, 1983, p. 2).

231

Figura 120 - O trabalho abaixo ganhou proporções por conta do ano de 2014, das mobilizações não vai ter copa. Vila Madalena, SP.

Fonte: Imagem cedida por Paulo Ito.

O artista pinta em locais públicos nas redondezas do campus universitário

desde 1997, com atividades junto a um coletivo. Na rua, por conta própria nos

anos 2000, integrou o núcleo do aprendiz do Gilberto DImenstein, na época

pintava com rolo e pincel, pintava muros comerciais e postes. A partir daí inicia

o uso de spray tendo uma atuação mais solitária, e faz com os amigos o que chama

“pintura de domingo”, para pintar, relaxar e curtir no sol mais do que enquanto

carreira. Para ele é uma satisfação pintar dentro de uma ocupação e fortalecer o

movimento de moradia e vê a sua arte e a pintura como uma forma de colaborar

socialmente. Então busca ter essa participação com o movimento social.

232

Qual a profundidade de sentimentos que a figura de uma criança

representa? Uma criança em choro olha para o céu; uma figura que clama por

piedade. Quem negará a necessidade por carinho e alimento de uma tenra face

inocente? Quem são esses seres enervados que ignoram os sofrimentos físicos de

uma criança?

Só nas estações, quando vai parando, lentamente começa a dizer:

- se tem gente com fome, dá de comer; se tem gente com fome dá de comer;

se tem gente com fome dá de comer.

Mas o freio de ar todo autoritário manda o trem calar

Psiuuuuuuuuuuuuu (SOLANO TRINDADE).

Por que mesmo os países ricos também apresentam, dentre a população,

pessoas extremamente pobres? A desigualdade de poder e riqueza pode ser

visualizada na comparação dos dados econômicos de riqueza nacional,

exportação, produto interno bruto e renda per capita e dados sociais de fome,

moradia, expectativa de vida, crescimento populacional, mortalidade infantil.

Países de alta renda contém 18% da população mundial, mas concentram 68% de

riqueza, quase metade da população mundial, 3,4 bilhões de pessoas vivem com

menos de 5,50 dólares. A fome, a má nutrição e a famigeração são as maiores

causas para problemas de saúde, subsistência e desenvolvimento pessoal. Uma em

cada nove pessoas no mundo, ou 795 milhões, não tem comida o suficiente para

ter uma vida ativa e sadia. A vasta maioria das pessoas famintas mora em países

que foram colonizados, explorados pelos ditos países desenvolvido.145

Não falta alimento no mundo, existe um padrão perverso que caminha para

dois sentidos a escassez e o desperdício. Os americanos desperdiçam a cada dia

cerca de 150 mil toneladas de alimentos, em torno de 422 gramas por habitante,

principalmente frutas e verduras.

145As duas tabelas a seguir são de dados coletados do Serviço de Educação Mundial contra a Fome (disponível

em: https://www.worldhunger.org/world-hunger-and-poverty-facts-and-statistics): ⅔ de toda essa população vive

na Ásia, a África Subsaariana apresenta a maior prevalência de famigerados, uma em cada quatro pessoas está

desnutrida.

233

Gráfico 8 - Desperdício de comida diário per capita nos EUA146 .

Não dá para metade da população no mundo estar com fome ou subnutrida

enquanto sustentamos o modelo do consumismo e desperdício de países

imperialistas tal qual os EUA. O desperdício é diário, comida no prato, alimentos

que passam da validade, a compra daquilo que não se necessita, os restaurantes

colocando alimentos na lata do lixo todos os dias. Enquanto tem gente com fome.

Ainda há o problema do desperdício na colheita, na produção, transporte,

armazenamento, comercialização e consumos dos alimentos.

Porcentagem de todas as terras cultivadas colhidas desperdiçadas por

categoria e porcentagem de cada tipo de terra cultivada explorada desperdiçada

(Gráfico 9) . Total de terras cultivadas desperdiçadas = 30,02 milhões de acres (IC

95%: 29,29 a 30,76 milhões de acres), representando 7,7% (7,5-7,9%) do total colhido:

Gráfico 9 - Desperdício de alimentos na colheita.

146 As duas tabelas acima que seguem foram reproduzidas do artigo “Relationship between food waste, diet

quality, and environmental sustainability” (Relação entre desperdício de alimentos, qualidade da dieta e

sustentabilidade ambiental)

https://journals.plos.org/plosone/article/authors?id=10.1371/journal.pone.0195405

234

Será que não existe algo de errado quando se é possível alimentar cada ser

maravilhoso neste mundo e bilhões de pessoas estão desnutridas? Tem alimento

mas é preciso da mediação do dinheiro para comprar o alimento, ou de terra para

plantar o alimento próprio. Então é a pobreza a questão! Se todo mundo puder

ter comida, por quê não estabelecemos urgentemente um parâmetro mínimo de

humanidade em que esteja decretado que amanhã todos tenham moradia e

comida? É o Lucro ou as Pessoas? a tese do Noam Chomsky. É Socialismo ou Barbárie

segundo Rosa Luxemburgo.

Será que tudo precisa visar o lucro? Até mesmo a comida que é algo básico

para a existência humana? Que loucura é essa? Atravessadores na comercialização

de comida? Especuladores que fazem fortuna nos mercados futuros de alimentos?

Deveríamos começar por aí um processo de socialização das riquezas. Por que

não produzir alimento para a vida ao invés de para o lucro? Que tal? Transformar

todas as empresas capitalistas de alimentos em cooperativas sem fins lucrativos

controladas pequenos produtores rurais e pelos trabalhadores?

A pouca nutrição de populações na miséria causa 45% das mortes de

crianças com menos de 5 anos, ou 3,1 milhões todos os anos. Crianças abaixo do

peso, sem forças, substância para sobreviver, para aprender, crianças com atrofia

no cérebro. Se as mulheres agricultoras tivessem o mesmo acesso a recursos que

os homens, o número de famintos no mundo poderia ser reduzido em até 150

milhões. Registra-se que 66 milhões de crianças em idade escolar freqüentam as

aulas estando famintas, em todo o mundo do sul e Ásia, com 23 milhões somente

na África. Em torno de U$ 3,2 bilhões são necessários, por ano, para alcançar todos

os 66 milhões de crianças em idade escolar famintas.

No mundo, 32 milhões de pessoas passam fome, e mais de 65 milhões de

pessoas não ingerem a quantidade mínima diária de calorias, ou seja, se

alimentam de forma precária. Quanto foi gasto na Copa do Mundo de 2014, no

Brasil? De acordo com o relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), foram

R$ 25,5 bilhões. Do total, R$ 7 bilhões foram gastos em mobilidade urbana e R$ 8

bilhões em estádios. As obras relativas a aeroportos custaram R$ 6,2 bilhões e as

obras no entorno dos estádios custaram R$ 996 milhões.

O Brasil apresenta um potencial agrícola potente o suficiente para dominar

o comércio mundial, no entanto a bárbara desigualdade social e a concentração

fundiária impede que as pessoas tenham o suficiente para sua nutrição, apesar de

235

o país ter alimentos em quantidade suficiente para todo mundo. A fome é um

problema social da sociedade cindida em classes, a fome é crônica, é a incerteza

da sobrevivência em países como Brasil, Índia, Nepal, Iêmen e vários outros. Com

o surgimento da divisão social do trabalho associada à apropriação da riqueza

coletiva, rompe-se a condição de acesso à alimentação para parte da população, o

que resulta em fome coletiva.

Apesar do avanço no combate à fome, nos últimos anos, a pesquisa do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2016, mostrou que 13

milhões de brasileiros ainda passam fome, e que 50 milhões de pessoas vivem

abaixo da linha da pobreza. A luta contra a fome, no Brasil, teve atenção especial

durante o governo Lula, quando foram criados programas sociais, como o Fome

Zero, que substitui o Programa implantado por FHC: Comunidade solidária; e o

programa Bolsa Família que amplia e unifica programas anteriores de

transferência de renda . Em 2014, pela primeira vez, o Brasil saiu do mapa da

fome da Organização das Nações Unidas (ONU).

O direito à alimentação deveria ser o primeiro elemento de um tratado

mundial. Mas quem será ingênuo de crer que o capital está interessado em

erradicar a fome? O combate à fome, a promoção da segurança alimentar tem que

ser política de estado mas por quê não é? É importante enfatizar que a miséria é

uma produção humana. Miséria e pobreza são, antes de tudo, uma questão ético-

política.

A situação de penúria é tal que, ou se tem um trabalho mal remunerado,

que não é suficiente para a própria alimentação, o que obriga a todos os membros

da família a trabalhar, inclusive as crianças e os idosos! Será que estamos voltando

aos tempos da revolução industrial? Que parâmetro de vida é esse em que crianças

não estudam e vão pra carvoaria? Em que idosos não podem ter o seu direito ao

descanso depois de uma vida toda árdua sol a sol na batalha pela sobrevivência.

Estamos em guerra, a guerra por se manter vivo.

236

Figura 121 - Drew Merritt, Downtown de Los Angeles, setembro de 2018.

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).

O ser contemporâneo inebriado de sono e potencializado a sentir medo em

seu ócio, é estimulado a trabalhar ou, então, fugir ao real, absorto em imagens que

chegam ao córtex visual primário estimulando a sonolência.

O estresse, a ansiedade, obesidade, o esgotamento, a depressão, são

vivências corpóreo-psíquicas, ou doenças que estão intimamente ligadas a um

modo de vida. Levamos em conta que, por exemplo, a depressão relaciona-se

com produções químicas do corpo e a obesidade também pode estar relacionada

ao metabolismo da pessoa, mais do que a fatores externos. Ainda assim, essas

doenças, além do fator sofrimento, também vinculam-se ao aparecimento de

novas doenças estimuladas por essas.

237

Esses processos de desefetivação ampliam o mundo subterrâneo da alma

ao abafar processos de criatividade e limitar capacidades ontológicas humanas

fundamentais, na redução da criação de alternativas. Somos afetados por

símbolos e sentidos implícitos na reprodução cultural e o consumismo é a

principal forma de fetichismo.

As dimensões corporal, espiritual e mental, que compreendem a

subjetividade, estão estimuladas para a liberação de instintos e desejos, atrelando

o desejo de ser ao desejo de ter (consumir), com hiperssexualização, com

permanência do estímulo à disciplinarização e ao produtivismo, com formas cada

vez mais plurais de realização, ao mesmo tempo em que se exige a ultra

especialização novamente, como forma de consumo e não finalidade, já que o

mais especializado será tão igualmente precarizado, mas com força motriz

inversa, dado o tempo de escolarização. A massiva desesperança e vontade de

morte toma conta manifesta no excesso de estímulos, informações, imagens,

impulsos. A atenção excessiva em uma longa jornada de trabalho ou duas nos

deixa estafados.

Nós enchemos o mundo com objetos e mercadorias com vida útil e validade cada vez menores. essa loja de mercadorias não se distingue muito de um manicômio. Aparentemente, temos tudo; só nos falta o essencial, a saber, o mundo. O mundo perdeu sua alma e sua fala, se tornou desprovido de qualquer som. O alarido da comunicação sufoca o silêncio. A proliferação e massificação das coisas expulsa o vazio. As coisas super povoam céu e terra. Esse universo-mercadoria não é mais apropriado para se morar. (...) Já é hora de transformar essa casa mercantil novamente numa moradia, numa casa de festas, onde valha mesmo a pena viver. (HAN, 2018, p.127-128)

A apreensão do tempo na atualidade coloca o indivíduo refém do instante

presente por não se abrir ao passado e nem ao futuro, o que permite dizer que a

atuação em projetos, do indivíduo que não apresenta identidade pessoal, a qual

depende da persistência do ‘eu’ através do tempo, será nula, pois, este não se lança

ao futuro. A sociedade industrial dependia de uma identidade persistente a

sociedade do esgotamento (Byung-Chul Han) necessita de flexibilidade, multitarefa

para o aumento produtivo. A lógica pós-moderna com ênfase no presentismo, na

valorização do consumo de forma a levar ao extremo o fetichismo da mercadoria,

em que a publicidade e o show business triunfam enquanto dimensão artística,

contribui para a reprodução e ampliação da alienação presente no modo de

produção capitalista. A sociedade do desempenho é a nossa angústia, fracasso,

sentimento de insuficiência transferido para o consumo. O mundo se vê

238

confrontado em ser o si mesmo que se transfere por ter que ter pra ser o si

mesmo.

A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o homem na

sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de um

retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em

estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção indispensável para

sobreviver na vida selvagem. Nesta outra etapa da modernidade, vive-se num

“estado de perpétua emergência” (BAUMAN, 2005, p. 41) e ir contra o caos

estabelece a medida de ir pela norma e lei de uma sociedade em degenerescência

das relações sociais e fragmentação das relações de produção. No tempo

devastado pela objetividade e subjetividade do capital em meio à banalização

cultural generalizada os humanos inseridos nessa sociabilidade aprendem a se

comportar na intensidade fragmentada.

O ser humano tem potencialidades inerentes a si e para sua concretização

busca a projeção para fora de si da sua potencialidade no processo teleológico de

acúmulo de finalidades posto em ação. No processo de consciência é possível

perceber a finalidade contida na ação, no entanto, a prévia ideação pode não

caminhar para a teleologia. Entende-se que as determinações objetivas, por vezes,

dificultam a efetivação de uma vida lúdica e sensibilizadora; ainda assim na

cotidianidade, é possível enxergar além da parede, sempre, em busca das

suspensões147.

O processo de coisificação a valorização das coisas se tornam sombras que

colocam a valorização humana na penumbra do palco. Afirmar a humanidade é

repor as relações diretas entre os seres sociais sem que elas sejam reduzidas e

mediadas pelas coisas, isto é, colocar como central a dissolução dessa sociedade

pautada nas relações coisificadas. O capital, o modo de vida burguês é uma

147 “Elas – que permitem aos indivíduos, via homogeneização, assumirem-se como seres humano- genéricos – não

podem ser contínuas: estabelecem um circuito de retorno à cotidianidade; ao efetuar este retorno, o indivíduo

enquanto tal comporta-se cotidianamente com mais eficácia e, ao mesmo tempo, percebe a cotidianidade

diferencialmente: pode percebê-la como espaço compulsório de humanização (de enriquecimento e ampliação do

ser social). Está contida aqui, nitidamente, uma dialética de tensões: o retorno à cotidianidade após uma suspensão

(seja criativa, seja fruidora) supõe a alternativa de um indivíduo mais refinado, educado (justamente porque se

alçou à consciência humano-genérica) (...) CARVALHO; NETTO, 1996, p. 70). A determinação essencial do

indivíduo está em seu caráter humano genérico e se confirma no processo de elaboração do mundo objetivo, onde

“se relaciona consigo mesmo como um ser universal, e por isso livre”. (MARX, 1992, p. 85) O ser humano é ser

existente conscientemente para si mesmo e além de ser objetivo é um ser genérico, para Marx a objetividade

genérica (Gattungsgegenständlichkeit) expressa a universalidade humana que se objetiva na realidade, a

objetividade está em que cada objeto do seu trabalho que é, portanto a objetivação da vida genérica humana.#

239

existência circundada por coisas ou objetos, a reprodução e força de existência do

capital está nas formas de realização da produção, da circulação e do consumo

desses objetos-mercadorias. A imagem aqui é a forma final do objeto e o extremo

do fetiche, a forma final da reificação da mercadoria.

A sociedade de mercado é movida por esses valores imagéticos em que o

mundo fetichizado com formas-fetiche movem as existências. Como ilustração,

uma trabalhadora poupa 08 meses de salário para comprar um produto com

multi-funcionalidades pouco utilizadas mas por ser uma mercadoria de imagem-

último tipo. Ao comprar este objeto-imagem sente-se mais bonita, mais poderosa

e inserida socialmente. Esta mulher será elogiada por ter esse objeto. Não é o

valor de uso do objeto que fascina mas a generalização do código “atualização”. O

sistema deverá ser atualizado (software, app sistema Os ou etc), estar em

compasso com a moda ou a atualidade dos usos de roupas, o que pressupõe novos

consumos. O código estar atualizado se liga ao presente perpétuo148.

Além da ausência de perspectivas e de projetos, da crise econômica e falta

de empregos há um convencimento, uma compreensão de que buscar uma

outra forma de sociedade e o comprometimento com a vida cotidiana coletiva

é algo utópico. A nós foi ensinado de que não há mais possibilidades, que o

capitalismo venceu. E é esse o cerne da diferenciação entre moderno e pós-

moderno.

A insegurança social gerada na era do assalariado precário e do desemprego

estrutural em massa é gerida pela mão direita do controlador de vidas, o aparato

repressor do Estado. A adesão da classe dominante à ideologia neoliberal resulta

na redução do Estado Social, no aumento do favorecimento econômico das

classes dominantes pelo Estado e no fortalecimento do Estado penal para os

pobres. Esta ênfase prisional se apresenta no encarceramento em massas

majoritariamente de pobres, jovens e negros e do extermínio desta mesma

população. A criminalização da pobreza no Brasil é uma cultura pública inscrita

na estrutura do Estado.

Ora, se determinadas práticas de sobrevivência se tornam recorrentes elas

148“O próprio ato de consumir se apresenta sob a aparência de um gesto cultural legitimador, na forma de bens

simbólicos - como se disse à exaustão: de imagens ou de simulacros. É a forma-mercadoria no seu estágio mais

avançado como forma-mercadoria no seu estágio mais avançado como forma-publicitária. O que se consome é um

estilo de vida e nada escapa a essa imaterialização que tomou conta do social (...) a cultura tornou-se peça central

na máquina reprodutiva do capitalismo, a sua nova mola propulsora”. (ARANTES, 1998, p. 99)

240

se sobrepõe à legalidade e a lei se torna retrógrada. Vejamos se o Estado que deve

promover emprego para a regulação social, prioriza investimentos em bancos ao

perdoar dívidas bilionárias e congela gastos sociais. Esse Estado está reproduzindo

condições de desregulação social que empurra. Aqui lembramos que o

entendimento de uma sociedade em decadência sendo a arte vinculada a este

momento histórico mais relacionada a ele a arte urbana ou street art. A essência

histórica desta realidade conduz a um ciclo autêntico desta compreensão de

mundo ao nos referirmos ao conhecimento imanente.

Este corpo nobre lotado de tudo que precisa, mastiga e devora a sua própria

negação. Byung-Chul Han em seu pequeno e inovador livro a Sociedade do

Cansaço argumenta que hoje já não vivemos na sociedade disciplinar, da

negatividade e proibições, isso primordialmente, já que sempre há uma

combinação de formas de viver. A sociedade do desempenho torna-se a sociedade

do esgotamento através do poder hábil. O sujeito de psique da afirmação. Um

combo transicional de uma sociedade disciplinar, onde entre muros e paredes, a

vida foi apagada. Onde o sujeito obediente e mental ainda não é depressivo; e a

do esgotamento neurológico e informacional de descrença e labirinto quanto ao

futuro, o que nos incapacita para tomar ações.

We shall not be reactives.

241

Figura 122 - Manifestante lança flores.

Fonte: Imagem Reprodução do livro Banksy - wall and piece. Quando a gaúcha Espertina Martins, filha de família anarquista de

Lajeado/RS, armada com um buquê de flores que camuflava dinamites, aos 15

anos, foi a heroína da manifestação de operários que protestavam por melhores

salários, em 1917. A garota lançou as flores contra a tropa de policiais, e, ao mesmo

tempo, possivelmente um tio seu (já que toda a família Martins tinha a marca do

242

ativismo contra opressões e injustiças das condições de trabalho, no início do

século passado), jogou uma bomba, e com a explosão a tropa debandou. Meses

depois, estourava a A Guerra dos Braços Cruzado, que parou Porto Alegre/RS e

da qual Espertina e a família participaram ativamente.

Espertina, já moça, tornou-se feminista e continuou fiel à suas concepções

revolucionárias e anarquistas, até o final da vida, e performou um ato poético

radical que, anos depois, foi figurado por Banksy (Fig. 122), um dos conhecidos

artistas de rua. Mas será que ele sabia dessa história?

They expect to be able to shout their message in your face from every available surface but you’re never allowed to answer back. Well, they started a fight and the wall is the weapon of choice to hit then back (...) Some people become cops because they want to make the world a better place. Some people become vandals because they want to make the world a better looking place. (Banksy, 2006. Banksy - wall and piece. The Random House Group Limited, United Kingdom, 2006).

Eles esperam poder gritar mensagens na tua cara de todas as formas possíveis, mas você nunca tem permissão para responder. Bem, eles começaram uma briga e o muro é a arma de escolha para bater e depois voltar [...] Algumas pessoas se tornam policiais porque querem tornar o mundo um lugar melhor. Algumas pessoas se tornam vândalos porque querem tornar o mundo um lugar mais bonito. (BANKSY, 2006. Banksy - Wall and Piece, 2006).

.

No Cabaret Voltaire, centro de entretenimento artístico, um grupo de

escritores, poetas e artistas plásticos de diversas nacionalidades reuniam-se a fim

de realizar concertos, leitura de poesias e reuniões políticas. Em Zurique, 1916,

no centro da guerra o desencanto vivido nos fins da carnificina - na primeira

guerra mundial, Hugo Ball quase foi listado para a batalha mas por problemas de

saúde não o foi, começou a publicar artigos anti-guerra, foi perseguido em terra

natal na Romênia e migrou para a Suíça, e questionava a necessidade da arte em

meio à barbárie. Um momento de crise de vida e moral impulsionou um grupo

de artistas a recusa ao positivismo, à razão positiva. Os artistas queriam destruir

todas as convenções com respeito a essa forma, criando uma anti-arte. Escândalo,

ruptura, experimentação contra as leis da lógica, as purezas do pensamento,

crônica da intemporalidade, o caos contra a ordem, a perfeição contra a

imperfeição.

A estética dadaísta negava a razão, o sentido, a provocação, a poesia estaria

na ação e as fronteiras entre arte e vida deveriam ser abolidas. Clamava Tristan

Tzara: "Não reconhecemos nenhuma teoria, estamos fartos das academias

cubistas e futuristas: laboratórios de ideias formais. Se faz arte para acariciar aos

243

gentis burgueses?". O movimento criou uma linguagem poética livre, anárquica

e sem limites com mescla de gêneros. E é essa síntese que nos interessa para nossa

argumentação. O principal problema de todas as manifestações artísticas estava,

segundo os dadaístas, em almejar o impossível: explicar o ser humano Tristan

Tzara 149 decreta: "A obra de arte não deve ser a beleza em si mesma, porque a

beleza está morta".

No seu esforço para expressar a negação de todos os valores estéticos e

artísticos correntes, os dadaístas usaram, com frequência, métodos

deliberadamente incompreensíveis. Nas pinturas e esculturas, por exemplo,

tinham por hábito aproveitar pedaços de materiais encontrados pelas ruas ou

objetos que haviam sido jogados fora150.

Para nós um ícone do pixo, Ata, trabalha atualmente como operador de

empilhadeira, cria uma síntese, a palavra que vem de seu nome e que está em toda

a cidade, um pixo comunicável. O maior pixador dos anos 2000. Por 20 anos

narra a sua estória, um esportista mo pixo e outras práticas como patins, escalada,

rapel, etc; aventureiro, planeja meticulosamente seus atos e vai da janela ao topo,

da funicular à linha de trem. Seu material de trabalho: a corda, cadeirinha de

madeira, equipamentos que um trabalhador usaria para limpar as pastilhas de um

prédio, e muitas latas de spray. O objetivo? Alcançar o topo mais alto, esticar as

linhas para um traçado longo e firme, desafiar o perigo. Ousadia define o pixo,

não há limites.

149Tristan Tzara, cujo verdadeiro nome era Samuel Rosenstock, nasceu em Moinesti, na Romênia, em 16 de abril

de 1896. Começou a escrever poesia muito cedo e, aos dezessete anos, já era colaborador de uma das revistas de

vanguarda de seu país: Simbolul. Em 1915 adotou o pseudônimo pelo qual ficou conhecido e que significa “triste

em meu país”. No mesmo ano mudou-se para Zurique, para estudar ciências humanas e filosofia. Ali se converteu

em um dos fundadores do Cabaré Voltaire. Junto a Jean Arp e Hugo Ball, foi um dos criadores e líder do

movimento dadaísta. Em 1918, subscreveu o Manifesto Dadá, a declaração programática mais importante do

movimento que revolucionaria a arte através da sua negação, buscando romper com todos os parâmetros

estabelecidos ao longo da história da arte ocidental. 150Não quero nenhuma palavra que tenha sido descoberta por outrem. Todas as palavras foram descobertas pelos

outros. Quero a minha própria asneira, e vogais e consoantes também que lhe correspondam. Se uma vibração

mede sete centímetros, quero palavras que meçam precisamente sete centímetros. As palavras do senhor Silva só

medem dois centímetros e meio. Assim podemos ver perfeitamente como surge a linguagem articulada. Pura e

simplesmente deixo cair os sons. Surgem palavras, ombros de palavras; pernas, braços, mãos de palavras. Au, oi,

u. Não devemos deixar surgir muitas palavras. Um verso é a oportunidade de dispensarmos palavras e linguagem.

Essa maldita linguagem à qual se cola a porcaria como à mão do traficante que as moedas gastaram. A palavra,

quero-a quando acaba e quando começa. Cada coisa tem a sua palavra; pois a palavra própria transformou-se em

coisa. Porque é que a árvore não há-de chamar-se plupluch e pluplubach depois da chuva? E porque é que raio há-

de chamar-se seja o que for? Havemos de pendurar a boca nisso? A palavra, a palavra, a dor precisamente aí, a

palavra, meus senhores, é uma questão pública de suprema importância.

Zurique, 14 de Julho de 1916 (Primeiro Manifesto Dadá, Hugo Ball)

244

Figura 123 - Ata.

Fonte: Imagem cedida pelo Ata (2018).

245

O núcleo central das nossas indagações se estabelece acerca da arte urbana

enquanto a principal vertente plástica no mundo, uma estética periférica que se

manifesta de forma diferenciada como expressão de resistência e ocupação

urbana, artística, política e cultural. Reafirmamos a atualidade do objeto

pesquisado e a pertinência de dar ouvidos à voz, aos gritos que vem das ruas; dar

à luz a imagens e comunicações enquanto formas de afirmação da existência e

contestação ao mundo normativo, autoritário, destruidor da natureza; da

desigualdade, racismo, preconceito e discriminação. Por mais que o significado

social street art apresente um primado da forma frente ao conteúdo, já que aparece

como uma expressão muito visual, por ser expressão da época da imagem,

encontramos significações sociais e políticas de maneira explícita no

questionamento do status quo visível em desenhos ou contida intrinsecamente ao

ato transgressor. Toda pessoa tem capacidade de ser criativa e cada uma de

maneira diferente expressa sua criatividade e a busca da emancipação é a de criar

outra sociabilidade, libertária e igualitária de indivíduos sociais, com o fim da

sociedade de classes.

A arte de rua com graffitis e pixações se soma ao conjunto de indignações,

transgressões, gritos de negação do status quo opressor, mesmo que de forma

dispersa, sem organização e consciência necessária, mas sem dúvida, sujeitos

sociais históricos, partícipes da classe trabalhadora e portanto, sujeitos aliados de

um processo de transformação social. O spray é sintético, e envolve o ambiente

com economia de palavras e reivindicação ideogrâmica. O graffiti é uma

caligrafia geométrica singular urbana; um pensamento não linear com letras

móveis litigantes que apresenta ramificações: graffiti-protesto, graffiti-curtição,

graffiti-arte.

246

Se as cidades foram construídas a partir de muros, são eles os suportes de

comunicação mais eficientes e visíveis. A inscrição em muros não é novidade,

parte da história na ancestralidade e desenvolvimento de civilizações até mesmo

esquecidas, é expressão humana presente na antiguidade com narrativas

históricas, religiosas e míticas de diversos povos. É uma constante histórica. O

destino político da arte urbana se volta ao questionamento da sociedade

espetacular mercantil. O desenrolar das crises urbanas. Quem são esses sujeitos

ativos nas ruas das grandes cidades? Como a insurgência na esfera urbana se

articula com outras lutas mais gerais? Vimos no desenvolvimento da tese que

os/as insurgentes pixadores/as e grafiteiros/as dos grande centros urbanos

analisados, são jovens, periféricos/as, parte do precariado urbano que se amplia a

cada dia fruto das investidas do capital contra o trabalho. De outro lado, sofrem a

discriminação e opressão de classe, social, e racial, tanto em São Paulo, no Brasil,

como na Califórnia nos Estados Unidos da América. Pelas entrevistas e

depoimentos essas vozes que se expressam nas inscrições vêm de uma negação

econômica, social, cultural, que é estrutural e estruturante da sociedade de classes

do modo de produção capitalista que se amplia a partir da crise metabólica do

capital a partir de meados dos anos 70, em que para recuperar as taxas de lucro o

capitalista estabelece novas estratégias de superexploração no trabalho e retração

de direitos sociais e políticas na esfera do Estado. É o capitalismo em chamas, em

decomposição, posto que há um antagonismo entre forças produtivas e relações

sociais de produção, portanto as reformas democráticas passíveis de serem

desenvolvidas no período do crescimento econômico do capitalismo, nesta fase,

do neoliberalismo, já não mais são passíveis de realização, pelo esgotamento e

crise do antigo Estado de Bem Estar Social, que no Brasil sequer se realizou.

Porém o capitalismo permanece hegemônico e articuladamente estruturado e

dominante no plano internacional.

A quadra histórica contemporânea expressa a barbárie com guerras, fome,

desregulamentação do trabalho, desemprego estrutural, destruição da natureza,

destruição de direitos sociais e trabalhistas historicamente conquistados,

ampliação da discriminação e preconceito, avanço da direita em vários países do

planeta. No caso brasileiro, desde 2016, com o golpe de direita, a regulação do

Estado Neoliberal e as medidas de destruição de direitos se aceleraram,

apresentando um quadro ainda mais barbarizante a partir de 2019 com a eleição

247

de um governo de extrema direita, racista, homofóbico, preconceituoso com

traços fascistas de governar, privatista, subordinado ao imperialismo norte-

americano, em que o projeto civilizatório está fortemente ameaçado.

O governador eleito e ex-prefeito da cidade de São Paulo criminaliza os/as

jovens pixadores/as e grafiteiros/as da cidade, bem como os moradores de rua, e

residentes na Cracolândia, com repressão, prisões e criminalização. Em todo o

Brasil e particularmente em São Paulo, aumentam-se os chamados crimes de ódio

e de racismo. Entre janeiro e maio de 2018, cresceram em 29%, na cidade de São

Paulo, os crimes de racismo e injúria racial. A pesquisa da Rede Nossa São Paulo151

apresenta que 70% dos paulistanos avaliaram que o preconceito e a discriminação

contra a população negra aumentou, nos últimos 10 anos. A sociedade exige de

todas e todos nós vigilância, resistência e unidade nas lutas, reconhecendo todas

as formas de resistência popular, social, cultural e a arte de rua e os artistas de rua,

aliados nesta trajetória de lutas.

Os EUA erguem um muro contra nao brancos, contra pobres, os mexicanos, centro-

americanos, sul americanos. Cerca de 900 incidentes152 (pichações, agressões verbais e

físicas racistas ou xenófobas) foram registrados em 2016, nos dez dias após a posse

do presidente dos EUA, Donald Trump e outros muros vêm sendo erguidos153.

Muitos autores evocaram o nome de Trump, durante os ataques, o que demonstra

uma ligação da onda de ataques ao êxito eleitoral. Para além do fenômeno de um

presidente específico naquele país, por vezes, o nosso co-orientador nos disse da

importância de se estudar e analisar os EUA pois como disse Kevin B. Anderson:

“O racismo aqui é tão profundo que mesmo os “progressistas” dos EUA são às

vezes cegos ou tomados como garantidos, enquanto pessoas de fora, até mesmo

151 13/11/de novembro de 2018. 152 ONG Associação de Monitoramento Southern Poverty Law Center .

❖ 153Em 2018 Donald Trump anuncia que vai construir um muro na fronteira dos EUA com o México, para

evitar que os latino-americanos entrem ilegalmente nos EUA.

❖ Israel vem construindo na Cisjordânia desde 2002. O Muro de Israel possui enormes dimensões, com uma

extensão de 721 km, 8 metros de altura, trincheiras com 2 metros de profundidade, arames farpados e torres

de vigilância a cada 300 metros – tudo isso para ser intransponível. Foram construídos dois muros: um

muro que cercou as fronteiras da cidade de Jerusalém, bloqueando a passagem livre dos palestinos para a

parte ocidental de Jerusalém; e o outro muro foi construído externamente, onde Israel visou cercar e

controlar suas colônias na faixa de Gaza.

❖ Em 2015 a Hungria termina de erguer ps 175 km de barreira com arames farpados na fronteira com Sérvia.

❖ Também em 2015 a Bulgária constrói uma barreira de 32km de arame farpado para bloquear a população

da turquia. em 2011 a Grécia bloqueou em Kastanis a fronteira com a Turquia.

❖ Aqui em São Paulo temos a cidade amuralhada Alphaville, á 30 km do centro da capital paulista com 12

mil residências e segurança própria.

248

liberais como Tocqueville (e muitos desde então) perceberam verdades sobre

profundidade do racismo que aqui intelectuais têm evitado ou minimizado”.

No decorrer da tese, garantidas as situações de particularidades sócio-

históricas das cidades metrópoles em que a arte de rua é uma constante e se

amplia, a situação do modo de produção é o mesmo, ou seja o capitalismo em

chamas. De um lado, o capitalismo de um país central, imperialista, os Estados

Unidos da América, de outro a cidade de São Paulo, o polo mais desenvolvido do

Brasil, com seu processo de industrialização e urbanização desnudando a

desigualdade social, territorial e espacial, em um país de capitalismo periférico,

tardio e dependente. Ou seja a classe trabalhadora é internacional, assim como a

solidariedade de classe. A juventude pobre e negra da periferia de São Paulo e dos

guetos dos EEUU, são filhos/as da classe trabalhadora explorada e oprimida pelo

capital, e o racismo estrutural e estruturante mata lá e mata cá. Como

pesquisadoras, estudiosas, militantes, profissionais da área das ciências humanas

e sociais, da educação, das artes, que partimos das múltiplas expressões da

Questão Social, como matéria-prima do trabalho profissional, que articulamos o

projeto profissional a um projeto societário emancipatório, compreendemos

ainda que a arte de rua como mediação do trabalho profissional, e expressão

contestatória que envolve objetividade e subjetividade, sensações e desejos,

rebeldia e contestação, estratégias e táticas e sobretudo uma forma própria de

linguagem precisa ser conhecida, apreendida como uma de nossas aliadas

libertárias.

249

Agenda - coexistência de vários pixos preenchendo uma mesma superfície de

maneira organizada sem atropelo.

Atropelo/atropelar – escrever por cima de outra inscrição: graffiti, pixo, stêncil,

tag, etc.

Bafo – Pessoa que está iniciando na pixação ou que é a primeira a pixar em um

grupo.

Backjump - graffiti feito com spray feito em trem/ônibus enquanto está parado

durante o percurso (numa estação por exemplo). Segunda tendência

Bite - Cópia, influência directa de um estilo de outro writer.

Bomb ou Bombing - graffiti rápido, associado à ilegalidade, com letras mais

simples e eficazes. O bomb original é feito com contorno mais grosso e

preenchimento das letras em cor diferente.

Bubble Style - Estilo de letras arredondadas, mais simples e "primárias", mas que

é ainda hoje um dos estilos mais presentes no graffiti.

Cap - Cápsula aplicável nas latas para a pulverização do spray. Existem variados

caps, que variam a pressão, originando um traço mais suave ou mais grosso

Characters - Retratos, caricaturas, bonecos pintados a graffiti.

250

Crew - Tradução de da palavra grupo em inglês. Grupos que se reúnem para

pichar e que representam um mesmo nome - a grife. É regra geral no pixo

assinatura do nome/ tag e a respectiva crew.

3D - Estilo tridimensional, baseado na sombra das letras ou letras tridimensionais.

O estilo foi desenvolvido inicialmente nos EUA e em sua evolução os resultados

são pinturas que transbordam as paredes, é bem comum que apareçam animais

pintados.

Degradé - Passagem de uma cor para a outra sem um corte directo. Por exemplo

uma graduação de diferentes tons da mesma cor.

Encaixe –Serve como ‘’tapa buraco”, pixo feito em pequenos espaços brancos.

Escada humana – Quando um pichador utiliza o outro para subir, a fim de pixar.

Escalada - modalidade de pixação na qual o indivíduo escala locais altos, como

prédios, para deixar sua marca.

End to end - Carruagem ou comboio pintado de uma extremidade à outra, sem

atingir a parte superior do mesmo (por ex. as janelas e parte superior do comboio

não são pintadas).

Fill-in - Preenchimento (simples ou elaborado) do interior das letras de um

graffiti.

Folhinha – Uma espécie de autógrafos que são trocados em reuniões.

Grafismo selvagem – escritas, garranchos e rebarbas.

graffiti - Considera-se graffiti uma inscrição caligrafada ou um desenho pintado

ou gravado sobre um suporte que não é normalmente previsto para esta

finalidade. Por muito tempo visto como um assunto irrelevante ou mera

contravenção, atualmente o graffiti já é considerado como forma de expressão

incluída no âmbito das artes visuais, mais especificamente, da street art ou arte

urbana - em que o artista aproveita os espaços públicos, criando uma linguagem

intencional para interferir na cidade. Grafitar em locais públicos ou privados, sem

autorização dos respectivos proprietários, é atividade proibida por lei em vários

países.

251

graffiti Naif – ingênuo – preços, letreiros, mostradores de mercados.

Grife - grupo formado por várias gangues de pixadores. Para mostrar a qual

pertencem, os pichadores assinam o nome ou símbolo da grife junto com sua tag.

Grapixo – O grapixo é uma mescla de graffiti com pichação. Utilização de mais

de uma cor no estilo de escrita ou tag reto, com contorno e preenchimento.

Grife - grupo formado por vários pixadores. Para mostrar a qual pertencem, os

pixadores assinam o nome ou símbolo da grife junto com sua tag.

Hall of Fame - Trabalho geralmente legal, mural mais trabalhado onde

normalmente pinta mais do que um artista na mesma obra, explorando as

técnicas mais evoluídas.

Highline - Contorno geral de todo o graffiti, posterior ao outline.

Hollow - graffiti ou Bomb que não tem fill (preenchimento) algum e, geralmente,

é ilegal

Homenagem - pixo com nomes de pixadores já falecidos.

Ibope - nível de popularidade dentro da pixação. Os mais conhecidos são os que

conseguem deixar mais marcas pelas ruas da cidade ou em lugares de grande

visibilidade, altos e perigosos.

Inline - Contorno das letras, realizado na parte de dentro das letras.

Jet – Tala ( lata ao inverno) – Tatin ( tinta ao inverso) = spray

Kings Writer que adquiriu respeito e admiração dentro da comunidade do

graffiti. Um estatuto que todos procuram e que está inevitavelmente ligado à

qualidade, postura e anos de experiência.

Mídia – Quando um pichador diz: “Alí é mídia” significa que é um lugar bom para

sair em veículos de comunicação com televisão, internet, fotografias entre outros.

Outline - Contorno das letras cuja cor é aplicada igualmente ao volume das

mesmas, dando uma noção de tridimensionalidade.

252

Pichação - Escritos legíveis nas formas de poemas, protestos, indignações, frases

de amor, frases sem sentido, rabiscos de nomes.

Pico - topo do prédio

Pixo – pixação paulista, inscrição com letras em geral em monocromatismo feita

nas modalidades: muros, janelas, viadutos, prédios altos ou baixos, túneis, trens,

locais e casas abandonadas. Para cada região do Brasil a pixação possui

características únicas mas a principal cidade é São Paulo. Também conhecida com

o tag reta.

Point - local onde os pixadores se reúnem para confraternizar, pixar juntos e

trocar folhinhas.

Quebrada – Onde o pixador cresceu

Rodar - ser pego pela polícia.

Rolê - sair para pixar ou grafitar.

Roof-top - graffiti aplicado em telhados, outdoors ou outras superfícies elevadas.

Um estilo associado ao risco e ao difícil acesso mas que é uma das vertentes mais

respeitáveis entre os writers.

Rolê – sair para praticar o pixo

Spot - Denominação dada ao lugar onde é feito um graffiti.

Tag - Nome/Pseudónimo de quem grafita ou pixa. O termo surgiu em Nova

Iorque, com os jovens que denominavam o ato de escrever seus nomes pela

cidade, e principalmente, nos vagões dos trens, como 'writing', 'tagging" ou

'hitting'.

Tag reto - traços retos, com letras alongadas e pontiagudas, estilo caligráfico

desenvolvido em São Paulo. Pode ser realizado com tinta spray ou rolo de tinta.

Topo – Lugar alto para pixar

Throw-up - Estilo situado entre o "tag"/assinatura de rua e o bombing. Letras

rápidas normalmente sem preenchimento de cor (apenas contorno).

253

Top to bottom - Carruagem ou carruagens pintadas de cima a baixo, sem chegar

no entanto às extremidades horizontais.

Toy - O oposto de King.

Writer inexperiente, no começo ou que não consegue atingir um nível de

qualidade e respeito dentro da comunidade.

Train - Denominação de um comboio pintado.

Whole Car - Carruagem inteiramente pintada, de uma ponta à outra e de cima a

baixo.

Whole Train - Um comboio com todas as carruagens inteiramente pintadas, de

uma ponta à outra e de cima a baixo.

Wild Style - Estilo nova iorquino de letras. Um dos primeiros estilos a ser utilizado

no surgimento do graffiti.

Writer - Escritor de graffiti ou no caso brasileiro - pixador.

Xarpi - pixação carioca.

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