Investigações Filosóficas-Sophia Umuarama: Filosofia, Educação e Autonomia - 2012
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Investigações
Φilosóficas-SOPHIA UMUARAMA
FILOSOFIA, EDUCAÇÃO E AUTONOMIA 2012
1ª EDIÇÃO
ALAN RODRIGO PADILHA
RAFAEL EGÍDIO LEAL E SILVA
&
JOSÉ PROVETTI JUNIOR
(Orgs.)
ASSIS CHATEAUBRIAND
JPJ Editor
2015
IF-SOPHIA – UMUARAMA: FILOSOFIA, EDUCAÇÃO E AUTONOMIA 2012
ORGANIZADORES
ALAN RODRIGO PADILHA
Mestrando em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Estadual
do Oeste do Paraná - UNIOESTE, Especialista em Educação Especial pela
UNIVALE, graduado em Filosofia pela Faculdade Bagozzi, Coordenador de
Pesquisa e Pesquisador-efetivo do Grupo de Pesquisas Filosofia, Ciência e
Tecnologias – IFPR, na Linha de Pesquisa Filosofia, Co-proponente,
Coordenador do Projeto de Extensão IF-Sophia. É docente efetivo da
disciplina de Filosofia do Instituto Federal do Paraná – IFPR, na cidade
de Umuarama.
RAFAEL EGÍDIO LEAL E SILVA
Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá – UEM,
Especialista em Teoria Histórico-Cultural e em História das Religiões
pela mesma universidade, graduado em Direito e em Ciências Sociais, sendo
nesta licenciado. É pesquisador-efetivo do Grupo de Pesquisas Filosofia,
Ciência e Tecnologias – IFPR, na Linha de Pesquisa Educação, Cognição e
Linguagem, participante como estudante-pesquisador do Grupo de Pesquisas
Psicologia Histórico-cultural e Educação, Linha de Pesquisa Psicologia do
Ensino e da Aprendizagem. Participa como estudante´pesquisador do Grupo
de Pesquisa Laboratório de estudos e pesquisas sobre a interação humana e
contemporaneidade. Co-proponente e Coordenador do Projeto de Extensão IF-
Sophia. É docente efetivo da disciplina de Sociologia do Instituto
Federal do Paraná – IFPR, na cidade de Umuarama.
JOSÉ PROVETTI JUNIOR
Mestre em Cognição e Linguagem, com ênfase em Filosofia da Mente e
Processos Cognitivos pela Universidade Estadual do Norte-Fluminense Prof.
Darcy Ribeiro – UENF, mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea, com
ênfase em Metafísica e Teoria do Conhecimento pela Universidade Estadual
do Oeste do Paraná – UNIOESTE – Toledo, especialista em Saúde para
Professores dos Ensinos Fundamental e Médio pela Universidade Federal do
Paraná – UFPR – Cruzeiro do Oeste, especialista em História, Arte e
Cultura pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – Umuarama, graduado
e licenciado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
– UERJ – RJ, graduando em Pedagogia pela Universidade Estadual de
Maringá – UEM – Umuarama, professor e pesquisador voluntário do Núcleo
de Estudos da Antiguidade – NEA – UERJ, pesquisador do Grupo de Estudos
Karl R. Popper – UNIOESTE – Toledo, pesquisador-efetivo e Coordenador
Geral do Grupo de Pesquisas Filosofia, Ciência e Tecnologias – IFPR,
autor dos livros “A alma na Hélade: a origem da subjetividade
Ocidental” (2011) e “Dualismo em Platão” (2014), servidor público
federal, docente de Sociologia no Instituto Federal do Paraná – IFPR –
Assis Chateaubriand, atuando nos Cursos Técnicos de Informática,
Eletromecânica, Agroecologia e Orientação Comunitária.
AUTORES
ROSALVO SCHUTZ
Doutor em Filosofia pela Universidade Kassel, mestre em Filosofia pela
Pontifícia Universidade Católica – PUC-RS, graduação em Filosofia pela
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul –
UNIJUÍ. É líder do Grupo de Pesquisa Ética e Política da UNIOESTE –
Toledo, na Linha de Pesquisa Autonomia e heteronomia em ética e Poder,
política e legitimidade. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Filosofia,
Educação e Práxis Social, na linha de Pesquisa de mesmo nome. É servidor
público estadual, docente atuante na graduação em Filosofia na
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, na cidade de
Toledo, docente do programa de pós-graduação stricto sensu, no nível de
mestrado, em Filosofia Moderna e Contemporânea na UNIOESTE – Toledo. É
membro do corpo editorial dos periódicos Humanidades em Revista, Editora
e Distribuidora Tykhe, Revista Espaço Acadêmico (UEM) e Argumentos:
revista de filosofia. Autor dos livros “Die abstrahierende Dynamik der
modernen Gesellschaft - Konsequenzen für die Beziehung der Menschen
untereinander und mit der Natur” (2007) e “Capitalismo e religião: uma
reflexão a partir de Feuerbach e Marx” (2001). É co-autor da obra
“Práxis filosófica e movimentos sociais em questão” (2012) e
organizador dos livros “Crítica e utopia: perspectivas brasileira e
alemãs” (2012) e “Economia popular solidária: pesquisa/ação” (2000).
JOSÉ MATEUS BIDO
É mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Estadual
do Oeste do Paraná – UNIOESTE – Toledo, especialista em Docência em
Educação Profissional pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial –
SENAC – PR, especialista em Gestão Educacional pelo Centro Nacional de
Educação a Distância, especialista em Filosofia Clínica pela faculdade
Padre João Bagozzi, especialista em Filosofia e os valores fundantes da
civilização ocidental pela Faculdade de Filosofia pela Universidade
Estadual do Paraná – FECILCAM – Campo Mourão , é graduado e licenciado
em Filosofia pela Faculdade de Ciências Humanas Arnaldo Busato – Toledo.
É servidor público federal, docente das disciplinas de Filosofia e
Sociologia do Instituto Federal do Paraná, campus da cidade de Ivaiporã-
PR e autor do livro “A problemática da pós-modernidade” (2001).
MARCOS ANTÔNIO DE SOUZA BRITO
Graduado em Filosofia pela Universidade Metodista de São Paulo.
Desenvolve estudos em torno do pensamento de Arthur Schopenhauer.
ALAN RODRIGO PADILHA
Mestrando em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Estadual
do Oeste do Paraná - UNIOESTE/ Toledo, especialista em Educação Especial
pelo Centro de Estudos Avançados e Pós-graduação das Faculdades
Integradas do Vale do Ivaí – UNIVALE, graduado e licenciado em Filosofia
pela Faculdade Padre João Bagozzi, é pesquisador-efetivo e Coordenador de
Pesquisa do Grupo de Pesquisa Filosofia, Ciência e Tecnologias – IFPR e
servidor público federal, docente de Filosofia do Instituto Federal do
Paraná – IFPR – Umuarama.
HERNESTINA DA SILVA FIAUX MENDES
Mestranda em Educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná -
UNIOESTE, especialista em Educação e Saúde, com ênfase em Pedagogia
Hospitalar pelo Centro Técnico Educacional Superior do Oeste do Paraná,
especialista em Educação Especial pelas Faculdades Integradas do Vale do
Ivaí – UNIVALI, especialista em Orientação Educacional pela Universidade
Paranaense – UNIPAR, especialista Psicopedagogia pela Universidade
Paranaense – UNIPAR, graduação em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Umuarama, docente do Instituto São Francisco de
Assis – ISFACES, da Faculdade Global de Umuarama, servidora pública
estadual, no Núcleo Regional de Educação – Umuarama – SEED – PR,
servidora pública federal, Pedagoga do Instituto Federal do Paraná –
IFPR – Umuarama e membro do Comitê da Secretaria Estadual de Saúde, 12ª
Regional de Saúde – Umuarama.
AMÍLCAR MACHADO PROFETA FILHO
Mestre em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB,
especialista em História Econômica pela Universidade Estadual de Maringá
– UEM, graduado em História pela Universidade Estadual de Maringá – UEM
e é servidor público federal, docente de História no Instituto Federal do
Paraná – IFPR – Assis Chateaubriand.
DANIEL SALÉSIO VANDRESEN
Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná –
UNIOESTE – Toledo, especialista em História do Brasil pela Universidade
Paranaense – UNIPAR, graduado em Filosofia pelo Centro Universitário de
Brusque, pesquisador-efetivo e Coordenador Financeiro do Grupo de
Pesquisas Filosofia, Ciência e Tecnologias – IFPR, servidor público
federal, docente de Filosofia no Instituto Federal do Paraná – IFPR –
Assis Chateaubriand e Coordenador do Curso Técnico em Orientação
Comunitária.
SÍLVIA ELIANE DE OLIVEIRA BASSO
Mestra em Educação pela Universidade Estadual de Maringá – UEM,
especialista em História do Mundo Contemporâneo pela Universidade
Paranaense – UNIPAR – Umuarama, graduada em Pedagogia pela Universidade
Estadual de Maringá – UEM, graduado em Estudos Sociais pela Universidade
Paranaense – UNIPAR – Umuarama, servidora pública federal, docente no
Instituto Federal do Paraná – IFPR – Umuarama.
1ª EDIÇÃO
ASSIS CHATEAUBRIAND/ PR
2015
JPJ Editor
Coordenação editorial: Claudia Dell'Agnolo Petry
Edição de texto: José Provetti Junior
Preparação do texto: José Provetti Junior
Projeto gráfico: José Provetti Junior
Capa: José Provetti Junior.
Coordenação de produção gráfica: Lidiane Cardoso Remde Provetti
Coordenação de revisão: José Provetti Junior
Revisão: Michelli Cristina Galli
Edição de arte: José Provetti Junior
Assistência de produção: José Provetti Junior
Coordenação de produção: José Provetti Junior
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Bibliotecária: Cler Rosane Coldebella Muraro CRB 9/ 1430
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Todos os direitos reservados
JPJ Editor
Av. dos Pioneiros, 225 – Jardim Europa
Assis Chateaubriand/ PR – Brasil – CEP.: 85.935-000
Tel.: (44) 8813-1127
www.grupodepesquisafilosofiacienciaetecnologiasifpr.com/#!jpj-editor/c1qjf
2015
Impresso em Assis Chateaubriand/ PR – Brasil.
123 ΙΦ-SOPHIA UMUARAMA: filosofia, educação e autonomia 2012./
Organizado por Alan Rodrigo Padilha; Rafael Egídio Leal
e Silva, José Provetti Junior. – 1. ed. – Assis
Chateaubriand : JPJ Editor, 2015. 168 p.; 21 x 29,7 cm.
ISBN 978-85-912927-3-8
1. Filosofia. 2. Educação. I. Padilha, Alan Rodrigo,
Org. II. Leal e Silva, Rafael Egídeo, Org. III.
Provetti Jr., José Org.
CDD: (22.ed.) 100
Dedicamos essa obra a todos os trabalhadores e trabalhadoras
em educação do Estado do Paraná, principalmente aos nossos
mestres que corajosamente enfrentaram o furor do aparelho de
estado naquele funesto dia 30 de agosto de 1988, em que a
passeata pacífica tornou-se um palco de violência pela força
policial do estado do Paraná. É importante não apagar da
memória aquele ato de violência real, que se tornou simbólico
e que ainda hoje faz ressonância nas novas gerações de
professores. A luta pela educação pública, gratuita e de
qualidade continua em todas as esferas, Municipal, Estadual e
Federal. Existem muitas coisas a serem conquistadas. Por isso
o tema da primeira edição do projeto IF-Sophia foi FILOSOFIA,
EDUCAÇÃO E AUTONOMIA 2012.
Que é que fiz, não fiz, de mim?
Insciente, perplexo, inexplicado.
Só cheio de saudades de mim.
De tantos eus que fui. Sidos. Idos.
Somos descartáveis, sei, mas dói.
(Darcy Ribeiro)
No fim das contas, o conhecimento serve e só adquire sentido
para a humanidade à medida que contribui para melhorar sua
capacidade de fruir a vida e para diminuir o sofrimento
humano (…) Podemos, então, ver o conhecimento como fator de
liberdade, como elemento para a felicidade.” Gildo Magalhães
. Introdução à metodologia da ciência: caminhos da ciência e
da tecnologia, 2005.
ÍNDICE
Apresentação …......................................................... 11
Introdução …........................................................... 13
“Antigas” concepções de Homem: o Positivismo e o materialismo-
histórico. Por que o século XIX ainda nos explica? …...................
16
As bases epistemológicas para pensar a metodologia da pesquisa …....... 34
Educação para “produção da consciência verdadeira”: uma abertura de
diálogo educacional com a perspectiva crítica …........................
46
Iluminismo, Kant e Filosofia da História: uma reflexão para o IF-Sophia
como projeto educativo …...............................................
67
A razão instrumental e a razão crítica em Horkheimer …................. 77
Crítica ao sujeito e a razão governamental no domínio da biopolítica de
Michel Foucault …......................................................
97
O Homem desumanizado como limite do Esclarecimento …................... 125
Filosofia e Crítica Social …........................................... 148
APRESENTAÇÃO
O Grupo de Pesquisas Filosofia, Ciência e Tecnologias – IFPR tem a
satisfação de oferecer aos públicos acadêmico e geral o resultado primeiro da
iniciativa dos professores e pesquisadores-efetivos Alan Rodrigo Padilha e
Rafael Egídio Leal e Silva, servidores do Instituto Federal do Paraná, lotados
no campus da cidade de Umuarama, desde 2012, em parceria com filósofos e outros
profissionais da educação da Secretaria de Estado da Educação do Paraná – SEED/
PR, no Núcleo Regional de Educação – NRE – Umuarama, do SESC/ PR da APP –
Sindicato e de outras instituições que possibilitaram o lançamento das
atividades do IF-Sophia – Umuarama, no ano de 2012.
Essa importante ação veio ao encontro de uma necessidade dos
profissionais de educação como um todo, em especial dos campos dos saberes
filosófico e sociológico, devido à constante demande por atualização e
aperfeiçoamento profissional.
Nesse particular, o Instituto Federal do Paraná, com base na legislação
que lhe deu vida institucional, isto é, a Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de
2008, que fixa a demanda dos Institutos se esforçarem por se tornar referências
regionais em Ciência e Tecnologia, principalmente para as Redes de Ensino
municipais, estaduais e privadas, possibilitando, assim, ações que ofertem o
estímulo aos profissionais de educação a se tornarem pesquisadores e agentes de
transformação social, em atendimento às demandas locais.
Foi nesse sentido que o IF-Sophia – Umuarama impulsionou a reunião de
professores, estudantes, cidadãos e representantes de instituições da sociedade
civil organizada em torno de temáticas filosóficas contemporâneas, provocando o
desafio da aprendizagem continuada, do debate crítico e a reflexão sobre o papel
dos saberes filosóficos na sociedade brasileira do século XXI.
Portanto, apresento ao leitor amigo o produto dessa primeira experiência
em solo umuaramense, de maneira a convidá-lo à reflexão e ao engajamento nos
debates sobre as temáticas aqui apresentadas, de modo que possamos atingir a
maturidade filosófica do “a cada dia que passa, apenas sabemos que nada
INTRODUÇÃO
Filosofia, Educação e Autonomia.
O título da primeira edição da Coletânea Filosófica IF-Sophia é
sugestivo, pois estabelece um vínculo entre a autonomia, a educação e o
filosofar.
Não é um vínculo natural, pois nenhum dos três conceitos são naturais,
mas fruto de um processo social histórico e cultural específico, a saber: o
helênico, a partir do século VIII a. C. nas cidades-estado gregas da região da
Jônia, atual Turquia.
O fundador dessa tradição, o pensador Tales, da polis de Mileto, que era
a sede de uma liga informal de cidades helênicas com predominância étnica ática
e eólia, se tornou próspera a partir do século VI a. C., congregando em suas
ruas, elementos de diversas nacionalidades que traziam aos cidadãos, o resumo
das vivências culturais de seus povos.
É em Mileto que Tales, em parceria com seu genro e concidadão,
Anaximandro, iniciou uma inovação pedagógica nas relações ensino-aprendizagem
existentes à época.
O que se verifica na História de países como o Egito, Israel e Índia,
dentre outros, é que a sabedoria era patrimônio de indivíduos especiais, que
além de vivê-la a ensinavam em escolas, em geral vinculadas a alguma tradição
religiosa e/ ou mítica senão até mesmo revelada por alguma deidade.
Nessas escolas se observa que a relação mestre-iniciado se estabelece
como uma via de mão única, em que o neófito recebe a bênção do mestre através de
seu conhecimento excepcional, se esforça por compreendê-lo, vivê-lo e,
sobretudo, preservá-lo, transmitindo-o de geração em geração, da melhor maneira
possível.
Quando essas escolas estavam ligadas a algum tipo de sacerdócio
organizado, verifica-se que os registros feitos sobre essa sabedoria,
normalmente privilégio desse grupo, registra, por meio de livros sagrados,
revelados ou redigidos por esses mestres da Verdade, de maneira a estratificar
os ensinamentos do mestre como dogmas aos quais qualquer melhoria dos saberes ai
expressos, normalmente levados a efeito por algum avançado discípulo, não é
atribuído a este, mas a uma espécie de revelação interpretativa do texto
divinizado do mestre que até ao momento não havia sido percebido.
Isso se verifica com a tradição homérica na Grécia e, ainda, com a
tradição médica, tanto na Hélade quanto nos demais países orientais ou africanos
com os quais os helênicos travaram conhecimento.
Tales, ao contrário de seguir essa metodologia pedagógica, estabeleceu ao
genro e demais estudantes de seu grupo, a saber: Anaxímenes de Mileto e
Heráclito de Éfeso, as seguintes regras:
a) A única certeza inquestionável é a que o acesso irrestrito à realidade
é privilégio dos deuses;
b) Portanto, ao homem apenas é possível tecer teias de conjecturas sobre
a realidade;
c) Assim, faz-se necessária a constante revisão crítica dessas
conjecturas, para que se alcance algum conhecimento verossímil sobre a
realidade;
d) Se houver uma nova conjectura sobre qualquer fenômeno que seja
diferente da que propus, exponha-a e a discutamos, a fim de melhor
aperfeiçoarmos nossa compreensão sobre a realidade, o conhecimento e o mundo.
A postura inovadora de Tales rompeu com a tradição da sabedoria oriental
acima mencionada. Ao mesmo tempo, inaugurou o racionalismo crítico e
revisionista que iniciou a delimitar o campo e método de atuação do que no
futuro, após a conceituação de Pitágoras de Samos, veio a ser denominado de
“filósofo”, desenvolvendo uma análise crítica sistemática à tradição mítica,
teogônica e cosmogônica helênica.
Com essa atitude, Tales deu autonomia a seus discípulos e na posse delas,
os discípulos deram mérito ao mestre de impulsioná-los a propagarem a nova
didática que revolucionou a educação grega arcaica, atingindo a tradição
educacional Ocidental filosófica e científica de tal maneira que hoje se depara
com o desafio de vencer mais de mil anos em que o pensar filosófico esteve a
serviços da religião, se remitificando e retomando a visão inovadora e
desafiadora de ver a totalidade da vida e de suas relações cosmologicamente, à
maneira dos primeiros pensadores racionalistas, críticos e revisionistas.
Eis o novo e inquietante desafio da educação. Demover-nos da zona de
conforto da tradição filosófica e científica inducionista e reconectar-mos a uma
visão cosmológica da realidade. Romper com a perspectiva da exclusividade do
método indutivo como ferramenta de trabalho investigativo e as incomunicáveis
compartimentalizações positivistas ou neopositivistas da vida e dos saberes
sobre esta que a ciência e a sociedade implantaram e mantém por meio do processo
de escolarização formal, em qualquer nível.
Como reatar tal visão, abandonando o tradicional modelo de docente
“dador de aulas” que não foram totalmente elaboradas pelo profissional de
educação, estandartizados pelos medalhões das academias e de maneira
transdisciplinar se tornar um professor-investigador, criada não apenas de aulas
interessantes e motivadoras, mas dos conteúdos que nelas serão apresentados?
Eis os desafios que são ofertados a todos os profissionais da educação de
nossa época. Um inquietante questionamento que se dirige a cada um que cruza os
umbrais de uma instituição de ensino e de sua sala de aula: ao entrar e encarar
seus concidadãos, de maneira a bem orientá-los sobre os conteúdos de sua área,
tanto quanto realizar a ação pedagógica; ao sair, ficar tranquilo com sua
consciência, ao identificar nos noticiários diários, aqueles que passaram horas
a fio diante de nós, a escutar-nos e, talvez, nos questionar sobre a pertinência
ou não do que se tratava e felicitar-se ou não, conforme a qualidade do
interesse que didicara a eles.
O que temos feito para efetivamente transformar a realidade em que
estamos inseridos por meio de nossa área de atuação?
É disso que trata a coleção IF-Sophia, com o volume “Filosofia, educação
e autonomia”.
José Provetti Junior
Assis Chateaubriand, 22 de janeiro de 2015.
“Antigas” concepções de Homem: o Positivismo e o materialismo-histórico. Por
que o século XIX ainda nos explica?
Rafael Egidio Leal e Silva1
RESUMO
A discussão que será desenvolvida neste capítulo refere-se à
importância de dois pensadores do século XIX, cujas obras ainda
são alvo de debates por parte das Ciências Humanas. Transcendendo
a filosofia e a ciência, o Positivismo e o Materialismo-histórico
espraiam-se pela política, arte e chegam a ser considerados (em
tom depreciativo) como religiões, pelo comportamento demasiado
acentuado de alguns de seus adeptos, que acabam por tentar
vivenciar tais concepções, gerando uma espécie de modo de vida
capaz de transformar a dura realidade cotidiana.
Palavras chaves: Positivismo; Materialismo histórico; Homem;
Augusto Comte; Karl Marx.
Sendo assim, podemos considerar as obras de Augusto Comte (1798-1857) e
Karl Marx (1818-1883) como fundamentais para a compreensão do homem
contemporâneo? O que esses dois pensadores observaram (e refletiram) que faz de
seus pensamentos tão duradouros e tão debatidos? O objetivo deste capítulo é
investigar alguns aspectos de seus pensamentos a fim de compreendermos sua
historicidade, e o papel que o homem ocupa em suas concepções.
Tal discussão insere-se tanto como introdução à Sociologia Clássica, como
também nas histórias das ideias filosóficas do século XIX. Pretendemos não
apenas contribuir com um debate necessário sobre a influência de tais teorias,
como também colaborar com a formação de professores dessas disciplinas no ensino
1 Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá – UEM, Especialista em Teoria
Histórico-Cultural e em História das Religiões pela mesma universidade, graduado em Direito e em
Ciências Sociais, sendo nesta licenciado. É pesquisador-efetivo do Grupo de Pesquisas Filosofia,
Ciência e Tecnologias – IFPR, na Linha de Pesquisa Educação, Cognição e Linguagem, participante
como estudante-pesquisador do Grupo de Pesquisas Psicologia Histórico-cultural e Educação, Linha
de Pesquisa Psicologia do Ensino e da Aprendizagem. Participa como estudante pesquisador do
Grupo de Pesquisa Laboratório de estudos e pesquisas sobre a interação humana e
contemporaneidade. Co-proponente e Coordenador do Projeto de Extensão IF-Sophia. É docente
efetivo da disciplina de Sociologia do Instituto Federal do Paraná – IFPR, na cidade de
Umuarama.
básico, que precisam expor de modo didático tais teorias.
É importante lembrarmos que a Europa viveu o século XIX estremecida por
graves crises políticas e sociais, com diversos golpes de Estado, tendo por
início a própria Revolução Francesa de 1789-1799. Esta revolução alterou de
forma radical e definitiva as bases da sociedade: se antes, a nobreza e o Clero
detinham o poder político, com a revolução esse poder passou às mãos da
burguesia, que já detinha o controle da economia e da produção de riquezas. Com
essa revolução a escolástica foi definitivamente substituída pela ciência como
modo de produzir conhecimentos para a nova sociedade (comandada pela burguesia).
A própria burguesia fundamentava-se no pensamento moderno e liberal, que
colocava no indivíduo (e não mais em Deus) a responsabilidade por seu próprio
destino. Esse indivíduo liberto, proprietário e natural, estaria destinado a
governar a sociedade, tendo o pensamento científico (e único racional) como seu
guia para bem exercer esse governo. Claro que por mais universalista que possa
parecer esse discurso, ele estava destinado a uma única classe: a própria
burguesia.
Se de um lado assistimos, durante o século XIX, que a Europa realizando
suas revoluções liberal-burguesas, de outro observamos um sem número de revoltas
populares, como, por exemplo, a já citada Revolução de 1848, na França e as
comunas instauradas (em 1848 e em 1870) além do movimento operário e comunista
que se espalhou, como um fantasma, por todo o Velho Continente. Entretanto, a
idéia de ciência permeou todos esses movimentos. Desde a ciência liberal, que
resultou na formulação de um método positivista, até a formulação, por parte de
Marx e Engels, de um socialismo científico, com metodologia e análise da
realidade destinadas a fundamentar a revolução proletária. Diante disso, a
Ciência e a indústria são, desta forma, palavras chaves para a compreensão do
século XIX. Como o homem foi retratado pelas lentes da filosofia desse século?
Comte, do método Positivista à Religião da Humanidade.
Comte nasceu em Montpellier, França, no dia 19 de Janeiro de 1798, e
faleceu em 1857. Estudou na Escola Politécnica e cursou medicina em sua cidade
natal, mas não concluiu nenhum desses cursos. Em 1817 tornou-se secretário do
pensador francês Saint-Simon (pensador socialista) e, tornou-se seu discípulo e
colaborador. Assim, Comte foi orientado para o estudo das ciências sociais com a
idéia de que tanto os fenômenos sociais, como os físicos poderiam ser reduzidos
e submetidos às leis naturais, e que todo o conhecimento científico deveria ter
por finalidade o aperfeiçoamento moral e político da humanidade. Entretanto,
Comte e Saint-Simon romperam em 1824, quando Comte passou a formular os
primórdios de seu sistema positivista, ao publicar o texto Plano de trabalhos
científicos necessários à reorganização da sociedade sob o título de Sistema de
política positiva. Simon, partidário do socialismo utópico, não concordou com os
pensamentos progressistas de Comte.
A partir daí, Comte passou a formular pensamento próprio e original. Em
1826 iniciou um curso em sua própria casa, que marcou o início do Positivismo: o
Curso de Filosofia Positiva, resultou em obra homônima, composta de 06 volumes,
iniciado em 1830, com a publicação do primeiro volume e terminado em 1842, com a
publicação do último volume. Dois fatos foram especialmente marcantes em sua
vida pessoal: ainda na terceira aula do curso de filosofia, teve uma grave crise
mental, que o levou a ficar internado por dois anos em estabelecimento
psiquiátrico. Recuperado, trabalhou intensamente na sistematização da filosofia
positiva. Dessa época, além de textos e fragmentos (não reconhecidos) publicou,
além dos volumes do Curso de filosofia positiva, o Tratado de Geometria
analítica (1843), Tratado de astronomia popular (1844) e Discurso sobre o
espírito positivo (1844). O segundo fato marcante em sua produção, foi também o
início de uma nova fase do pensamento e até mesmo de sua vida; em 1845-46,
segundo suas palavras, opera-se em seu espírito uma conversão, ressurreição,
regeneração sentimental: a relação platônica com Clotilde de Vaux. Após a morte
precoce de Clotilde, Comte mudou o foco de seu pensamento, e assim começa a
aparecer em seus textos a afirmação da supremacia na vida humana, do sentimento,
da subjetividade, do ponto de vista feminino e artístico, identificados com a
moralidade como fator de coesão social. Desse período, publicou, o Catecismo
Positivista ou exposição sumária da Religião Universal em 1852 e Sistema de
política positiva ou Tratado de Sociologia instituindo a Religião da Humanidade
iniciado em 1851 e finalizado em 1854. Na primeira fase de sua vida ele elaborou
o POSITIVISMO, a partir deste momento, surge o COMTISMO. Enquanto o primeiro
(que corresponde ao Curso de filosofia positiva) foi mais um movimento acadêmico
e político, o segundo momento corresponde à uma religião e reforma completa da
sociedade (a Igreja Positivista), onde cultua-se a Deusa Humanidade (culto ao
feminino), conforme passaremos a expor.
O pensamento de Comte, coadunou-se perfeitamente com sua época, não
obstante ele pretendesse desenvolver um método neutro e progressista, conforme
pode-se observar:
Comte, indubitavelmente, toma o partido da parcela mais
conservadora da burguesia, que, no seu caso, significa não apenas
conservadorismo (manter o poder), com sua defesa de um regime
ditatorial e não parlamentarista, mas, significa também, criar as
condições para fortalecer este poder e impedir quaisquer ameaças,
identificadas com todas as tentativas democratizantes ou
revolucionárias. Neste sentido, sua proposta de uma filosofia e de
reforma das ciências tem como objetivo sustentar esta ideologia.
(...). (Andery & Sério, 1988, p. 379).
Comte elaborou uma fórmula que sintetizasse sua proposta filosófica:
“saber para prever, prever para prover”. O conhecimento, assim, está voltado
para o aspecto prático, ou seja, a resolução dos problemas da sociedade, através
da elaboração de fórmulas que sintetizassem os fenômenos, para daí explicar e
antevê-los, “combinando a estabilidade e a atividade, às necessidades
simultâneas da ordem e progresso” (Quintaneiro et ali, 2003, p. 19). Podemos
notar que é uma concepção que nitidamente tem uma vinculação com os problemas
sociais de seu tempo, mas sob a ótica burguesa. “A chamada ‘filosofia
positiva’, segundo Comte, é fundamentalmente um sistema geral do conhecimento
humano que se antepõe à ‘filosofia negativa’ com a pretensão de organizar, e
não de destruir a sociedade” (Quintaneiro et ali, 2003, p. 19). Essa
“filosofia negativa” refere-se às tentativas de restaurações ao Antigo Regime
monárquico e absolutista na França, e a manutenção do poder da Igreja, e daí a
luta ferrenha de Comte aos sistemas metafísicos e teológicos, ou seja, tudo o
que se vinculasse ao passado feudal. Podemos observar que o próprio Comte, em
relação ao seu pensamento é um visionário:
O positivismo se compõe essencialmente duma filosofia e duma
política, necessariamente inseparáveis, uma constituindo a base, a
outra a meta dum mesmo sistema universal, onde inteligência e
sociabilidade se encontram intimamente combinados. (...) na medida
que o curso natural dos acontecimentos caracteriza a grande crise
moderna, a reorganização política se apresenta cada vez mais como
necessariamente impossível, sem a reconstrução prévia das opiniões
e dos costumes. Uma sistematização real de todos os pensamentos
humanos constitui pois nossa primeira necessidade social,
igualmente quanto a ordem e ao progresso. (Comte, 1983A, p: 97).
Comte, tinha um plano para a sociedade de sua época. Contudo, ele mesmo
prevê que o positivismo necessita de indivíduos diferenciados, muito embora em
sua própria filosofia a sociedade deva se manter hierarquizada, entre aqueles
que mandam e os que obedecem. A preocupação educacional é assim, muito presente
em sua obra, pois acreditava que “somente através do processo educacional é que
ele conseguia vislumbrar alguma mudança substancial na sociedade, pois,
educados, os homens teriam os instrumentos necessários para conduzir suas
próprias vidas” (Rodrigues, 1997, p. 2). A educação positiva tem por finalidade
demonstrar a todos os homens as leis naturais que regem cada uma das ciências2.
Educar não objetiva a reflexão, ou uma visão mais crítica do mundo. A educação é
uma espécie de convencimento das massas, que o mundo (tanto natural, quanto o
humano e social) é regido por leis inflexíveis, cabendo ao homem adaptar-se a
elas, por uma simples questão de evolução. O homem civilizado é o homem que
conhece e vive de acordo com as leis da ciência. No entanto, a crise em sua
sociedade impede que a ordem ocorra. A filosofia deve, intervir para formar
esse novo homem:
A verdadeira filosofia se propõe a sistematizar, tanto quanto
possível, toda a existência humana, individual e sobretudo
coletiva, contemplada ao mesmo tempo nas três ordens de fenômenos
que a caracterizam, pensamentos, sentimentos e atos. Sob todos os
aspectos, a evolução fundamental da humanidade é necessariamente
2 As ciências também estão ordenadas de acordo com a complexidade do objeto. Segundo Comte,
trata-se de uma “classificação natural em seis categorias elementares: matemática, astronômica,
física, química, biológica e, enfim, sociológica; cada uma sofrendo antes da seguinte os
diferentes graus essenciais da evolução total” (Comte, 1983A, p: 113), sendo incompreensíveis
se tomadas fora desta classificação, segundo ele.
espontânea, e a exata apreciação de sua marcha natural é a única a
nos fornecer a base geral duma sábia intervenção. (Comte, 1983A,
p: 101).
No entanto, para Comte o progresso da sociedade significa a “incessante
especialização das funções, como todo desenvolvimento orgânico, para maior
aperfeiçoamento na evolução dos órgãos particulares” (Ribeiro Jr., 2003, p:
24). Embora Comte fale da necessidade da transformação do homem, é a
transformação para a adequação em uma sociedade progressista (em termos
científicos) e burguesa que ele objetiva. Essa transformação nada tem de
revolucionária e muito menos reformista, uma vez que ela já deverá estar
prevista no progressismo cientificista que ele preconizava: “Para Comte,
sociologia é a ciência abstrata que estuda os fenômenos dos agrupamentos
sociais. A ciência política é a aplicação prática da sociologia, estudando casos
particulares, tendo porém sempre em mira o ponto de vista moral” (Ribeiro Jr.,
2003, p: 25). A sociedade era vista, ainda, como um todo único, distinto do
indivíduo. Diferente da concepção liberal, que ele combateu, “Comte rejeitava a
concepção contratualista de que a sociedade é formada de indivíduos, afirmando
que tudo que é humano além do nível meramente fisiológico deriva da vida
social” (Quintaneiro et ali, 2003, p: 19), tese essa de grande importância
para a construção da ciência social, ainda no século XIX. Assim, se Comte, por
um lado, rejeita a teoria liberal, por outro sustenta que o positivismo é
corolário da modernidade de Descartes: “Esse novo princípio filosófico, depois
de ter por muito modificado cada vez mais o princípio teológico e metafísico3,
esforça-se evidentemente, desde Descartes e Bacon, por substituí-lo
irrevogavelmente” (Comte, 1983A, p: 102). No entanto, se o pensamento
cartesiano concentrava-se na Razão como forma de conferir certeza perante nossas
percepções do mundo, em Comte a função do espírito é o de servir às nossas
emoções: “o espírito só deve essencialmente tratar as questões propostas pelo
3 A história, para ele, passa a ser uma visão apropriada do mundo burguês, pois significa uma
evolução constante, materializada na lei dos três estados. Segundo esta lei, as ciências e o
espírito humano como um todo se desenvolvem por fases: o estado teológico, o metafísico e o
positivo.
coração para a justa satisfação final de nossas diversas necessidades” (Comte,
1983A, p: 106). Comte, vê o homem da mesma forma que o pensamento cartesiano,
como um ser dividido, e naturalmente propenso para uma determinada forma de
humanidade, positiva. Mas ao contrário de Descartes que sustentava que o método
deveria guiar a Razão para o conhecimento certo, afastando a emoção e os
sentimentos (as paixões da alma), Comte coloca em preponderância a emotividade,
o que pode ser sintetizada em sua fórmula: “Enfastia-se de pensar e até de
agir, mas nunca de amar” (Comte, 1983A, p: 97).
O pensamento de Comte, representante do mundo burguês do século XIX, ao
procurar organizá-lo socialmente, acabou por não ir contra os mandamentos de
organização livre baseada no mercado. Talvez em suas reformas ele pretendesse
uma nova visão do mundo, mas não uma realidade social que não fosse a aspiração
da burguesia de seu tempo. Devemos atentar que a burguesia francesa do século
XVIII foi aquela com a incumbência de estabelecer uma organização política nova
e, “aos ‘espíritos revolucionários’ do século XIX coube consolidar e
conservar essas mesmas instituições. A classe burguesa de revolucionária no
passado passa a ser a conservadora, e a classe operária, recolhendo a bandeira
abandonada pela burguesia, surge como a nova classe revolucionária” (Carrosi &
Toledo, 2002, p: 51). O proletariado transforma-se cada vez mais em um problema
a ser resolvido, não apenas com a violência, mas com uma nova educação, que não
mais ensinasse valores revolucionários, mas sim a estabilidade e a cidadania.
Seu pensamento subdividiu-se entre seus seguidores, em uma visão acadêmica que
reflete o mundo burguês, o positivismo, e na Religião Positivista, conforme
veremos.
Em determinado período de sua vida, Comte desviou-se de sua teoria
cientificista inicial e criou a Religião Positivista, conforme já nos referimos.
No entanto, muito embora pareça um rompimento com o positivismo, em que pese as
suas críticas à teologia e à metafísica conforme vimos, Comte manteve a
coerência de seu pensamento, o que demonstra que seu projeto inicial já continha
a abertura para a elaboração teológica e metafísica, assim como o projeto
liberal, sendo, portanto, uma tendência das teses que pregam o ideal capitalista
de desembocarem em uma espécie de religião, justamente por não serem
emancipatórias da humanidade. Dessa forma, em 1852 Comte publicou o Catecismo
positivista, texto “em que a Humanidade vem a substituir Deus, e o altruísmo
ocupa o lugar do egoísmo” (Quintaneiro et ali, 2003, p: 20). Desta forma,
Comte radicaliza o movimento que ele iniciou. O Catecismo é um diálogo entre um
Sacerdote da Humanidade e uma mulher. Para ele, tanto a religião quanto a mulher
tem o significado de que se há a necessidade de mudanças na humanidade, essa
mudança deve primeiro ocorrer nos corações dos homens, pelo apelo sentimental
para depois modificar-lhes as mentes. Vejamos, por exemplo, como ele define o
termo religião:
Ele é construído de maneira a caracterizar uma dupla ligação, cuja
noção exata basta para resumir toda a teoria abstrata de nossa
unidade. Com efeito, a fim de constituir uma harmonia completa e
duradoura, é preciso ligar o interior pelo amor e religar ao
exterior pela fé. Tais são, em geral, as participações necessárias
do coração e do espírito nesse estado sintético, individual ou
coletivo. (Comte, 1983, p: 141).
O positivismo pretendia ser um método, uma análise da realidade
extremamente cientificista que se apóia na descrição exata dos fatos, o comtismo
constitui um discurso que vai se apoiar nos sentimentos para formar o indivíduo,
sendo, entretanto, coerente com a teoria que ele desenvolveu, como vimos. A
mulher, considerada por ele como essencialmente sentimental, ganha papel central
em sua religião. A iniciar pela figura divina, a Deusa Humanidade. O homem, ser
racional, deve ficar submetido sentimentalmente à mulher. O homem, no entanto,
deve manter o seu papel de provedor e de racionalidade, porém, sentimentalmente
reformado, o que ele considera uma verdadeira revolução, da seguinte forma:
A revolução feminina deve agora completar a revolução proletária,
como esta consolidou a revolução burguesa, dimanada a principio da
revolução filosófica.
(...) O melhor resumo prático de todo o programa moderno breve
constituirá neste principio incontestável: O homem deve sustentar
a mulher, a fim de que ela possa preencher convenientemente seu
santo destino social.
(...) O conjunto desta construção episódica caracteriza, por sua
própria forma e marcha, todos os grandes atributos, intelectuais e
morais, da nova fé. Sempre há de sentir-se aqui uma digna
subordinação da razão masculina ao sentimento feminino, a fim de
que o coração aplique todas as forças do espírito ao ensino
difícil e importante. (Comte, 1983, p: 131-132).
A revolução que ele nos apresenta é um rearranjo da realidade. É a
purificação do ideal burguês, ao livrar a sociedade do ranço do Antigo Regime
(a restauração, a nobreza e a Igreja). Ele abre espaço para uma teologia dentro
do positivismo, e quem sabe, uma metafísica positivista. Comte faz um retorno
cíclico no seu pensamento, assumindo que a sua proposta sempre fora, no fundo,
teológica e metafísica, já que seu ideal de mudança ocorre apenas na cabeça dos
homens, e não na realidade em si. É interessante notarmos que Comte desenvolveu
às últimas consequências o pensamento moderno, mostrando que a revolução
cartesiana é, ainda, uma metafísica da natureza.
A base necessária para uma transformação social desse porte não se
encontraria em nenhuma vontade sobrenatural, em nenhum ente
divino, em nenhuma promessa de milagres, como outrora, mas na
própria Humanidade, a deusa da nova religião proposta por Comte: a
Religião Positivista. Para tanto, impõe-se aos homens a
necessidade de se render ao que existe, ao demonstrável, ao
comprovável, não mais se pode acreditar naquilo que não é passível
de comprovação. (Rodrigues, 1997, p: 2).
A proposta de Comte é revolucionária enquanto pensarmos na burguesia e
sua revolução. A teoria do positivismo pregava, portanto, uma hierarquia
social, e um governo da Ciência, e isso no estado máximo de evolução social, o
positivo, que coincide com a modernidade burguesa. O homem, em um estágio já
evoluído – o positivo –, tem por escopo a busca (já predeterminada) das leis
que regem a natureza, e a posterior internalização dessas leis. No entanto, a
racionalidade nesse momento é dispensável: o guia do homem, para o positivismo
comteano é o coração. Esse paradoxo resolve-se historicamente, pois Comte não
vislumbrava a emancipação humana da hierarquia imposta pela ordem burguesa. Não
havia a necessidade de transformar o mundo, mas de senti-lo e adaptar-se a ele,
naturalmente e socialmente.
Karl Marx e o materialismo histórico
O filósofo alemão Karl Marx viveu entre os anos de 1818 e 1883. Em 1835
iniciou seus estudos superiores em Bonn e os prossegue em Berlim, onde passa a
fazer parte do Circulo dos Jovens hegelianos. Em 1841, com uma tese sobre os
atomistas gregos Demócrito e Epicuro, doutorou-se em filosofia, e, no ano
seguinte, tornou-se jornalista de um jornal da burguesia liberal renana, no qual
passa a escrever em forte tom de esquerda. Em 1843 vai para Paris, tendo sido
expulso da França em 1845, devido às suas atividades como comunista. Refugiou-se
em Bruxelas, até 1848, quando foi para Londres. Produziu uma extensa obra,
situada entre a economia, a história, as ciências sociais e a filosofia. Entre
as principais obras, estão A ideologia alemã (1845) e Manifesto do partido
comunista (1848) (ambos com F. Engels), Miséria da filosofia (1847), O 18 de
Brumário de Luis Bonaparte (1852) e O capital (1867).
Marx foi um pensador que analisou e criticou a fundo a sociedade
burguesa, além de estabelecer um método de análise da realidade: o materialismo
histórico. Enquanto os idealistas de seu tempo, amparados na teoria de Hegel
faziam “história das idéias”, Marx tomou como ponto de partida a vida material
dos homens. O que isso significa?
Vimos anteriormente que Comte foi um visionário de uma revolução sem
precedentes na história. Segundo ele, o positivismo estaria destinado a mudar o
mundo, mas as relações sociais não seriam alteradas. Mudariam apenas a cabeça
dos homens. O idealismo alemão, a partir das teses de Hegel fazia algo parecido
com a realidade alemã. No entanto, os idealistas justificavam o Estado burguês
prussiano a partir da derivação dialética das leis do Espírito hegelianas.
Contudo, assim como Comte, os idealistas alemães consideravam-se partidários de
uma revolução, assim como Marx ironiza na “Ideologia alemã” ao opor as visões
idealista e materialista:
Foi uma Revolução diante da qual a Revolução Francesa não passou
de uma brincadeira de criança, foi uma luta mundial que faz
parecerem mesquinhos os combates dos Diádocos. Os valores foram
substituídos, os heróis do pensamento derrubaram-se uns aos outros
com um rapidez inaudita e, em três anos, de 1842 a 1845, arrasaram
a Alemanha mais do que se faria em qualquer outro lugar em três
séculos.
E tudo isso teria acontecido no domínio do pensamento puro (Marx,
2002a, p: 5)
A crítica que Marx faz ao idealismo inicia-se pela própria crítica ao
Espírito, ou melhor, à religião. Para ele, e os materialistas de sua época, o
idealismo derivado de Hegel não passava de uma teologia que não se assumia como
tal. A crítica do sistema de pensamento foi iniciada por ele pela crítica à
religião, conforme se observa na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de
Hegel publicado em 1844, o texto que consta a célebre frase “A religião é o
ópio do povo” (Marx, 2005, p: 145). Vejamos este trecho:
A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para
que o homem os suporte sem fantasias ou consolo, mas para que
lance fora os grilhões e a flor viva brote. A crítica da religião
liberta o homem da ilusão, de modo que pense, atue e configure a
sua realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a
razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo, e, assim, em
volta do seu verdadeiro sol. A religião é o sol ilusório que gira
em volta do homem enquanto ele não circula em torno de si mesmo.
(Marx, 2005, p: 146).
Desse modo, se o projeto comteano teve como ponto de chegada a doutrina
religiosa, o ponto de partida de Marx foi a crítica à ela. A crítica à
propriedade e as relações burguesas, próximo passo de seu pensamento:
Na consciência burguesa, a maior parte dos problemas tende a ser
equacionada a partir do principio da mercantilização universal das
relações, pessoas e coisas. Por isso, a liberdade religiosa surge
de par com a constituição do mercado de trabalho, que supõe
direito de livre circulação das pessoas e mercadorias. (Ianni,
1984, p: 25)
A obra de Marx assume essa característica: uma crítica aos fundamentos da
sociedade burguesa e ao capitalismo:
Desde a crítica da dialética hegeliana à análise da dominação
inglesa na Índia, todos os trabalhos de Marx são,
fundamentalmente, de interpretação de como o modo capitalista de
produção mercantiliza as relações, as pessoas e as coisas, em
âmbito nacional e mundial, ao mesmo tempo que desenvolve as suas
contradições. (Ianni, 1984, p: 8).
Entretanto, a crítica ao mundo burguês, para ser radical, não deveria
basear-se nas categorias científicas da ciência burguesa, desenvolvida até
então. Isso implicaria no retorno às conclusões que Marx estava disposto a
criticar. Dessa forma, Marx deveria fugir da concepção de homem livre,
proprietário e racional da filosofia moderna. Assim, como ele apreenderia o
homem? O homem não poderia mais ser um modelo, mas sim apreendido
historicamente, em sua realidade humana. O homem passa a ser visto a partir de
sua produção material, ou seja a produção dos meios necessários para sua
manutenção no mundo, e não mais como o produto do mundo.
A maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete
exatamente o que eles são. O que eles são coincide, pois, com sua
produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a
maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto,
das condições materiais de sua produção. (Marx, 2002A, p: 11)
O pensamento marxiano conclui que cada época resulta na configuração de
um determinado tipo de homem. No entanto, a história é dinâmica, refletida nas
necessidades dos homens, que produzem os meios de satisfazê-las, e na formação
de classes sociais, que, pela divergência de interesses e pela oposição na forma
de produzir a realidade, estão em verdadeira luta – a luta de classes. Marx, no
Prefácio que escreveu ao seu texto Crítica da economia política, fez uma
espécie de resumo acerca de sua visão social:
Na produção social da própria existência, os homens, entram em
relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade;
estas relações de produção correspondem a um grau determinado de
desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade
dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura
jurídica e política e à qual correspondem formas sociais
determinadas de consciência. O modo de produção da vida material
condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não
é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário,
é o seu ser social que determina a sua consciência (Marx, 1984, p:
233)
Em um processo dinâmico e histórico, em determinado momento, a estrutura
econômica desenvolvendo-se em outro sentido (por exemplo, a transformação do
modo feudal para o capitalista) passa a conflitar com a superestrutura jurídica
e política, comprometida com a manutenção da antiga ordem. Desses entraves,
surgem um momento de revolução social, de renovação da superestrutura, onde ela
passará a se adequar à nova realidade. Nesse sentido, ele caracteriza a
burguesia:
As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do
processo de produção social, antagônica não no sentido de um
antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das
condições de existência sociais dos indivíduos; as forças
produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam,
ao mesmo tempo, as condições materiais para resolver este
antagonismo. (Marx, 1984, p: 233).
A burguesia moderna é fruto de um longo processo de transformações e
desenvolvimento no modo de produção e de intercâmbio. A burguesia, com o
estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, tendo conquistado a
hegemonia econômica, tornou-se também detentora do mando político. Marx e Engels
afirmam que a ascensão social da burguesia destruiu todas as relações de poder
existentes, laços feudais que ligavam os homens, não tendo deixado nenhum outro
vínculo a não ser o dinheiro. Se os objetos eram pautados pelo seu valor de uso,
a burguesia introduziu o valor de troca da mercadoria no mercado, e a liberdade
única e natural, a do comércio, de vender e de comprar. A liberdade também ganha
seu valor, regida pelas leis do mercado. No entanto, a própria burguesia planta
a semente de sua destruição enquanto classe, assim como ocorreu com as relações
feudais, destruídas pelos burgueses, ao criar e manter o proletariado, conforme
podemos observar nesses trechos do Manifesto do partido comunista:
A moderna sociedade burguesa, surgida das ruínas da sociedade
feudal, não eliminou os antagonismos entre as classes. Apenas
estabeleceu novas classes, novas condições de opressão, novas
formas de luta em lugar das antigas.
A nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se, entretanto,
por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade
inteira vai-se dividindo cada vez mais em dois grandes campos
inimigos, em duas classes diretamente opostas entre si: burgueses
e proletariado. (Marx, 2002, p: 46).
(...)
A burguesia vive em luta contínua; no início, contra a
aristocracia; depois, contra as partes da própria burguesia cujos
interesses entram em conflito com os progressos da indústria; e
sempre conta a burguesia dos países estrangeiro. Em todas essas
lutas, vê-se obrigada a apelar para o proletariado, a solicitar
seu auxílio e arrastá-lo assim para o movimento político. A
burguesia mesma, portanto, fornece ao proletariado os elementos de
sua própria educação, isto é, armas contra si mesma. (Marx, 2002,
p: 55).
Notamos que Marx vê a história da burguesia como um processo
contraditório de superação dos antagonismos da sociedade feudal, e que implicam,
dialeticamente, na criação de novos antagonismos. A burguesia não é mais vista
como resultante da racionalidade natural do homem, mas como resultante da
historicidade, da construção social a partir de uma base material, base esta que
é a forma de produção e manutenção da vida humana.
A passagem para a modernidade, por ser uma alteração radical na base
material produtiva da sociedade foi, muitas vezes, um processo de grande
violência e exclusão das classes pobres, não tendo, portanto, vinculação com a
racionalidade e a liberdade pregada por esses pensadores. Na citação acima, Marx
faz referência à educação, há também um interessante excerto nas Teses sobre
Feuerbach, precisamente na terceira tese, onde Marx diz:
A teoria materialista que pretende que os homens sejam produtos
das circunstâncias e da educação, e que, consequentemente, homens
transformados sejam produtos de outras circunstâncias e de uma
educação modificada, esquece que são precisamente os homens que
transformam as circunstâncias e que o próprio educador precisa ser
educado (...)
A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana
ou auto mudança só pode ser considerada e compreendida
racionalmente como práxis revolucionária. (Marx, 2002A, p: 100).
Se a educação em Comte insere-se como forma de manter a ordem e o
progresso do capitalismo, em Marx ela é tomada em seu movimento dialético,
sendo, inclusive, uma forma do antagonismo próprio da divisão em classes da
sociedade, a partir da divisão social do trabalho, e também como arma ao
proletariado em sua luta para substituir a própria burguesia. A educação tem uma
perspectiva transformadora, mas que somente será assim quando o proletariado
passar a tomar consciência de si enquanto classe social inserida nessa divisão
social e puder, assim, compreender o real significado das teses que sustentam a
burguesia. Vimos em Comte que a burguesia do século XIX abandonou seu viés
revolucionário para se tornar uma classe altamente conservadora, ficando para a
classe operária o caminho revolucionário. No entanto, o operariado encampou para
si o discurso universalista burguês, que, como vimos, tem apenas um
destinatário: a própria classe burguesa. O proletariado deveria, compreender-se
como classe não a partir dos velhos pressupostos, mas a partir da crítica de sua
constituição material, e a partir de suas características de classe, que os
distinguem do burguês.
A filosofia marxiana é uma filosofia da transformação do mundo e das
relações sociais, e por isso foi violentamente rechaçada pelos pensadores
comprometidos com o ideário liberal-burguês. Assim, de acordo com Berman a
burguesia está fadada ao desaparecimento:
A vida e a energia interiores do desenvolvimento burguês acabarão
por alijar do processo a classe que pioneiramente os trouxe à
vida. Podemos ver esse movimento dialético tanto na esfera do
desenvolvimento pessoal como na do econômico: em um sistema no
qual todas as relações são voláteis, como podem as formas
capitalistas de vida – propriedade privada, trabalho assalariado,
valor de troca, a insaciável busca de lucro – subsistir isolada?
(...) Quanto mais furiosamente a sociedade burguesa exortar seus
membros a crescer ou perecer de modo desmesurado, mais
furiosamente se voltarão contra ela como uma draga impetuosa, mais
implacavelmente lutarão contra ela, em nome de uma nova vida que
ela própria os forçou a buscar. (Berman, 1986, p: 95)
Marx critica, ainda, que o burguês afirmou que sua liberdade e sua forma
de ver o mundo é a “natural”. Claro, acompanhando o raciocínio de Berman, é
justamente para se assegurar que as formas essenciais da vida capitalista sejam
plenamente mantidas e defendidas pelos homens – justamente por serem
“naturais”. Se considerarmos a teoria lockiana do estado de natureza (cf.
Arnaut & Leal e Silva, 2003), o liberalismo nasceu de uma utopia ao contrário,
uma vez seu ponto de partida é a teoria do “homem natural” que Marx critica: o
homem é produto de sua época. A vida material determina a visão do espírito, e
não o contrário.
O pressuposto defendido por Marx e Engels, então, é que os homens devem
viver para produzir história e para viver é necessário suprir as suas
necessidades mais básicas, como comer, beber, morar, etc. Além dos aspectos das
relações naturais e sociais, o homem possui consciência. Até aqui falamos da
formação da classe burguesa e de sua consciência na modernidade, em Marx, no
entanto, o materialismo é dialético, o que significa que há a negação vigente e
concomitante dos aspectos da realidade. Conforme vimos, o homem produz a base
material de sua existência, mas também produz historicamente a negação dela,
assim como o capitalismo foi gerido nas entranhas do feudalismo. Dessa forma,
dialeticamente à consciência do homem, está a sua alienação. Vejamos o que nos
diz Fromm:
O conceito de homem ativo e produtivo, que compreende e controla o
mundo objetivo com suas próprias faculdades, não pode ser
plenamente entendido sem o conceito de negação da produtividade: a
alienação. Para Marx, a história do gênero humano é uma história
do crescente desenvolvimento do homem e, concomitantemente, da
crescente alienação. Seu conceito do socialismo é a emancipação da
alienação, a volta do homem para si mesmo, a realização de si
próprio.
A alienação (ou “alheamento”) significa, para Marx, que o homem
não se vivencia como agente ativo de seu controle sobre o mundo,
mas que o mundo (a natureza, os outros, e ele mesmo) permanece
alheio ou estranho a ele. Eles ficam acima e contra ele como
objetos, malgrado possam ser objetos por ele mesmo criados.
(Fromm, 1979, p: 50)
A realidade social compõe-se do movimento histórico e dialético em torno
do trabalho humano: “O motor da dialética materialista é a forma determinada
das condições de trabalho, isto é, das condições de produção e reprodução da
existência social dos homens, forma que é sempre determinada por uma contradição
interna” (Chauí, 2004, p: 53), que é a luta de classes. A produção de
mercadorias no capitalismo, que são produzidas e tem seu valor baseado no
trabalho humano, é uma produção alienada, pois o proletário não consegue ver que
na mercadoria está algo que é seu. A mercadoria passa a ser mera coisa no
comércio, quando, na verdade, é “trabalho humano concentrado e não pago”
(Chauí, 2004, p: 54). Marx coloca que a mercadoria, por ser fruto do trabalho
alienado, transforma-se em fetiche:
O primeiro momento do fetichismo é este: a mercadoria é um fetiche
(no sentido religioso da palavra), uma coisa que existe em si e
por si.
O segundo momento do fetichismo, mais importante, é o seguinte:
assim como o fetiche religioso (deuses, objetos, símbolos, gestos)
tem poder sobre seus crentes ou adoradores, domina-os como uma
força estranha, assim também age a mercadoria. O mundo transforma-
se numa imensa fantasmagoria. (Chauí, 2004, p: 55).
Podemos assim observar que Marx conseguiu identificar o sentido
metafísico, praticamente religioso que a modernidade assumiu como verdade.
Vemos, portanto, que se a modernidade nasceu como a negação da religiosidade
ínsita ao mundo feudal, ela pouco a pouco passa a assumir seu aspecto de
religiosidade, através do culto aos objetos e às mercadorias.
As obras de Augusto Comte e Karl Marx são, portanto, fundamentais para
compreendermos a contemporaneidade. Seus pensamentos tão díspares, produzidos no
século XIX captaram as engrenagens do motor da sociedade capitalista que o
século XX e XXI acabam por confirmar em suas monumentais façanhas. No entanto,
que diferenças o nosso homem tem do homem deles? E como um espaço de debate
filosófico pode nos auxiliar a desvendar tão intrigante mistério?
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Primeiros Passos.
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positivista. CADERNOS DE METODOLOGIA E TÉCNICA DE PESQUISA – Suplemento
Especial de Ciências Sociais. Maringá: Universidade Estadual de Maringá
(CCH/DCS), ano 9, n. 8, p. 01 a 27, 1997
AS BASES EPISTEMOLÓGICAS PARA PENSAR A METODOLOGIA DA PESQUISA
Alan Rodrigo Padilha4
IFPR/ UNIOESTE/ESCRILEITURAS/CAPES/INEP
Hernestina da Silvia Fiaux Mendes5
SEED-PR/ IFPR/ UNIOESTE
RESUMO
Este trabalho busca apresentar noções sobre as bases
epistemológicas elementares da teoria científica, tais, como o
Positivismo, a Fenomenologia e o Materialismo Histórico Dialético,
sendo elas as três principais correntes epistemológicas
ocidentais. Partindo do pressuposto de que o método científico e
orienta a pesquisa para seu fim, entretanto, mesmo sendo evidente
tal proposição, encontramos problemas ao desenvolver um projeto de
pesquisa, seja ela de cunho estritamente teórico ou de campo,
isto, porque não conhecemos as bases teóricas que fundamentam a
pesquisa, considerando essa necessidade, julgamos ser pertinente
aprestar algumas bases epistemológicas para orientar o caminho da
pesquisa em relação à necessidade do método que melhor contribua a
análise do objeto a ser pesquisado. Neste presente artigo não
temos a pretensão de esgotar o assunto devido a sua complexidade e
extensão, mas apenas fazer uma breve apresentação com fim de
realmente provocar quanto à necessidade de conhecer e eleger um
método efetivo para a pesquisa.
Palavras chaves: Epistemologia; Metodologia de pesquisa;
Positivismo; Fenomenologia; Materialismo histórico
INTRODUÇÃO
O presente trabalho objetiva discorrer sobre as três grandes matrizes
4 Professor do Ensino Básico Técnico e Tecnológico do Instituto Federal do Paraná, IFPR,Câmpus
Umuarama,Pesquisador do Observatório Nacional de Educação/Projeto Escrileituras/CAPES/INEP.
Mestrado em andamento em filosofia Moderna e Contemporânea Universidade Estadual do Oeste do
Paraná, UNIOESTE, Brasil e pesquisador efetivo do Grupo de pesquisas Filosofia, Ciência e
Tecnologias – IFPR, Linha de Pesquisa Filosofia.5 Professora do Ensino Superior e Pedagoga do Ensino Básico Técnico e Tecnológico do Instituto
Federal do Paraná, IFPR, Campus Umuarama. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa do Ensino de
Astronomia para Pessoas Cegas e com Baixa Visão e A Inclusão da Pessoa com Deficiência na
Educação Superior: Acesso, Permanência e Aprendizagem, IFPR/ UNIOESTE/. Mestranda em Educação.
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE, Brasil.
epistemológicas ocidentais, destacando: contexto histórico; concepção de
sociedade; concepção de conhecimento; concepção de sujeito (relação sujeito X
objeto) e características do método de pesquisa de cada uma dessas correntes.
Vale ressaltar, como ponto de partida para esta discussão, alguns
conceitos epistemológicos. Uma filosofia preocupada com os problemas da própria
filosofia ao analisar os fundamentos dos conhecimentos científicos. Segundo
Borges (2005, p.:2), “o termo vem do grego, episteme que significa ciência,
conhecimento e logia, estudo.” ; refere-se ao estudo da natureza e dos
fundamentos do saber, particularmente, de seus limites e de suas condições de
produção.
Isso posto, abordaremos o Positivismo, a Fenomenologia e o Materialismo
Histórico Dialético, sendo elas as três principais correntes epistemológicas
ocidentais.
Segundo estudos, apud Staub et al ( 2012 ), no século XVIII, o grande
desenvolvimento da ciência e da tecnologia resultou na Revolução Industrial e
capitalista, criando um ambiente propício para o surgimento do movimento
positivista no século XIX, pois, segundo Xavier (2009, p. 02), esse movimento
acreditava que a industrialização, associada à técnica e à ciência, traria
benefícios para a sociedade da época.
POSITIVISMO
O positivismo, portanto, surge na segunda metade do século XIX, tendo
como principal referência o Filósofo Augusto Comte, que se propõe a pesquisar
sobre a inteligência humana desde os antepassados, para propor um norte no
comportamento do homem diante do então progresso das ciências.
Para Triviños (1987), Comte acreditava que a pregação moral levaria os
capitalistas a serem mais humanizados, eliminando o conflito de classes com
vistas a uma nova sociedade. Abrindo, assim, horizonte para uma nova cultura e
nova visão, cujo lema é o de ordem e progresso, de maneira que um não existe sem
o outro. Em outras palavras, apenas há progresso, onde existe ordem e vice-
versa.
Com relação ao conhecimento científico, o Positivismo acredita que ele
proporciona tanto a mudança na realidade quanto o domínio do homem sobre a
natureza. Na perspectiva positivista, não pode haver qualquer tipo de
conhecimento a priori. Ou seja, ele não admite outra realidade que não se refira
a fatos que possam ser observados. Dessa forma, o positivismo aceita, como
legítimos, apenas dois tipos de conhecimentos: o empírico e o lógico. Aquele
reconhecido pelas ciências naturais é considerado o mais importante; este
constituído pela lógica e pela matemática.
Em relação à concepção de sujeito, o Positivismo o vê, simplesmente, como
um coletor de informações, que registra e analisa minuciosamente fatos presentes
em documentos, sem apreciação crítica ou julgamentos. Nesse sentido, em uma
pesquisa positivista, na relação sujeito e objeto, prima-se pela realidade,
exige-se a separação dos fatos (propriedades do mundo empírico) e de seus
significados (propriedade do observador); mantém-se um distanciamento objetivo
em que o observador apresenta os fatos através de linguagem descritiva,
objetiva.
O positivismo assume que existe, no mundo, uma verdade objetiva. Ele
[...] apresenta três pontos: 1) Todo conhecimento do mundo
material decorre dos dados ‘positivos’ da experiência, e é
somente a eles que o investigador deve ater-se; 2) existe um
âmbito puramente formal, no qual se relacionam as ideias, que é o
da lógica pura e o da matemática; e, 3) todo conhecimento dito
‘transcendente’ – metafísica, teologia e especulação acrítica
– que se situa além de qualquer possibilidade de verificação
prática, deve ser descartado. (BORGES, 2005:3)
Dessa forma, seu método visa à investigação das leis gerais que regem os
fenômenos naturais. Tal método se baseia, portanto, na observação,
experimentação e mensuração sistemática e estatística de relacionamentos entre
variáveis; procura testar teorias; formular e testar hipóteses; comprovar
proposições formais, medidas quantificáveis de variáveis. Enfim, o método
científico baseia-se nos dados e recusa qualquer discussão metafísica.
FENOMENOLOGIA
A Fenomenologia teve grande representatividade na segunda metade do
século XIX e início do século XX. Seu representante é Edmund Husserl, o qual
sofreu influências de grandes nomes como Platão, Descartes e Brentano e também
influenciou, na Europa, pensadores como Heidegger, Schutz, Sartre, Merleau-
Ponty. Além disso, teve repercussão nos Estados Unidos e, atualmente, existe em
todos os continentes.
Edmund Husserl opôs-se ao psicologismo, procurou introduzir uma visão
lógica às ciências humanas, dedicou-se à investigação do “mundo vivido” pelos
sujeitos, considerados isoladamente. A ideia base dessa corrente filosófica é a
noção de Intencionalidade. A qual se refere à consciência ligada a um objeto. Em
outras palavras, acredita-se no princípio de que não há objeto sem sujeito e que
só há possibilidade de conhecer o homem e o mundo a partir de suas ações.
Segundo Triviños (1987, p.43),
[...] A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os
problemas, segundo ela, tornam a definir essências: a essência da
percepção, a essência da consciência, por exemplo. Mas também a
fenomenologia é uma filosofia que substitui as essências nas
existências e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo
de outra forma senão a partir de sua “facticidade”. É uma
filosofia transcendental que coloca em “suspensa”, para
compreendê-las, as afirmações da atitude natural, mas também uma
filosofia segundo a qual o mundo está “aí”, antes da reflexão,
como uma presença inalienável, e cujo esforço está em reencontrar
esse contato ingênuo com o mundo para lhe dar enfim um status
filosófico. É ambição de uma filosofia que pretende ser uma
“ciência exata”, mas também uma exposição do espaço, do tempo e
do “ mundo vivido”.
Em outras palavras, Triviños (1987, p.43) define que a fenomenologia “é
o estudo das essências, buscando-se no mundo aquilo que está sempre, aí, antes
da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço repousa em encontrar
este, contato ingênuo com o mundo.” Portanto, podemos perceber que, ao promover
o isolamento do fenômeno em questão, no seu contexto, permite-se ao estudo do
fenômeno realizar questionamentos e discutir as hipóteses consideradas naturais,
evidentes, da intencionalidade do sujeito diante da realidade de sua ação.
Objetivo principal da fenomenologia é a compreensão do fenômeno, para
explicar como funciona e não para dizer seus motivos últimos e políticos. Assim,
apresenta como alvo a compreensão do mundo, do fenômeno por inteiro, ou seja,
como ele aparece para o pesquisador nas suas diversas formas. Seu ponto de
partida é a compreensão do viver. E essa compreensão está voltada para o
significado do perceber e, segundo Masini (1989, p.62), para o significado da
“[...] volta ao mundo da vida, no confronto com o mundo dos
valores, crenças, ações conjuntas, no qual o ser humano se
reconhece como aquele que pensa a partir desse fundo anônimo que
aí está e aí se visualiza como protagonista nesse mundo.”
O método toma como objeto de estudo de investigação e como principal
instrumento do conhecimento os fenômenos em si mesmos, ou melhor, sem levar em
conta fatores exteriores a eles. Esse método emprega a intuição, pela qual as
essências se consolidam. O objeto percebido, o fenômeno, é considerado tema, ao
qual o indivíduo atribui significado ao apresentar uma visão intelectual a ele.
Nas ideias de Husserl, pode-se perceber a volta às coisas mesmas, isto é, a
volta às essências (eidós), pelo enfoque fenomenológico, que possibilita surgir
a essência como construção decorrente de ação intencional da consciência. Pode-
se considerar que Husserl parte primeiramente do eu e depois das relações entre
as pessoas.
Para Guimarães (s. d.) In STAUB, T. et al,(2012, p. 7),
O método fenomenológico de Husserl consistiria em fazer reduções
das partes questionáveis ou sujeitas a deduções e contradições
(GUIMARÃES, s.d). Segundo Guimarães (s.d), desenvolve-se
gradualmente, submetendo-se a várias “epochés” (a "contemplação
desinteressada" de quaisquer interesses naturais na existência).
Haveriam três reduções fenomenológicas (ou epochés): 1) redução do
objeto à consciência - de um lado a realidade transcendente, que
corresponde às coisas enquanto existentes fora, ou para além da
consciência e, de outro lado a realidade transcendental, que se
aplica às coisas enquanto reduzidas à consciência. Ambos os mundos
são reais, porque nenhum deles é ilusório, porém, o primeiro é
real num sentido natural e meramente prático. O segundo é real num
sentido primordial; 2) redução psicológica do objeto -
“suspendemos” o juízo relativo à existência de tudo o que é
exterior ao sujeito. Considera-se apenas o próprio sujeito
cognoscente com seus atos conscientes; 3) redução transcendental
do objeto -através da redução transcendental, para atingir a
consciência transcendental, chamada de consciência pura.
De acordo com Triviños (1987 p. 46), Husserl aborda o conhecimento “como
uma realidade à margem do sujeito e não como um conhecimento próprio do
sujeito”. Sendo assim, entende-se que o pesquisador deixa em suspenso as
hipóteses do mundo natural, feitas por meio de uma consciência intencional
frente ao objeto. Suspende as suas concepções conceituais sobre o fenômeno,
esvaziando-se dos preconceitos particulares e inerentes ao ser humano. Significa
redução a suspensão ou a retirada de toda e qualquer crença, teoria ou
explicações existentes sobre o fenômeno; significa deixar de lado os pré-
conceitos estabelecidos a priori a fim de permitir o encontro do pesquisador com
o fenômeno.
Cabe destacar resumidamente as principais características da
fenomenologia hesserliana de acordo com Guimarães (s.d.) In STAUB, T. et al,
( 2012, p. 8):
a) o “a priori” (epoché) - temos de proceder com plena ausência
de pressupostos e com inteira liberdade, “reduzindo” (epoché)
todas as influências de opiniões científicas ou filosóficas, para
podermos nos orientar exclusivamente pelas coisas em si,
aprioristicamente; b) a evidência - os fatos devem excluir as
dúvidas de modo absoluto e imediato, tal como um reflexo, uma
auto-reflexão, plenamente esclarecedora do sentido da coisa; c) a
intencionalidade - a intencionalidade parte do eu e invade
temporariamente os dados materiais, unificando-os em ordem à
constituição e designação do objeto enquanto consciente e
significado; d) a lógica da contradição - é o ato que depende das
leis do conteúdo, para estar em conformidade com a matemática; e)
a intersubjetividade - quando a objetividade se fundamenta pela
relação a um objeto exterior, basta provar esta imposição como
necessária, para garantir sua validade. Mas se o objeto é
considerado como meramente significado, o único modo absolutamente
válido de garantir o seu caráter de existência é esclarecer que o
conhecimento dele não é meramente subjetivo, mas intersubjetivo.
Dessa forma, percebe-se que Husserl tentou mudar as ideias subjetivas em
ideias que pudessem ser cabíveis a todos, atribuindo o termo Intersubjetividade,
pois a Fenomenologia estuda o que pode ter validade a todos sem se preocupar ou
se interessar com a historicidade dos fenômenos. Busca entender os fenômenos,
sem querer aplicar transformações.
MATERIALISMO HISTÓRICO E DIALÉTICO
Em se tratando do Materialismo Histórico Dialético, vale ressaltar que
iniciou na primeira metade do século XIX, na Europa, em meio ao processo de
industrialização e de consolidação do capitalismo, um período em que se
estruturava uma sociedade com diferentes classes e consequentemente com
diferentes espaços de relações sociais. Segundo Triviños (1987), Karl Marx6 foi
quem fundou essa doutrina, revolucionando o pensamento filosófico da época. De
acordo com o mesmo autor, essa corrente contou com algumas fases. A primeira
representada por Marx , fundada em 1940; a segunda em que Marx e Engels
trabalharam juntos, com o objetivo de buscar a igualdade de classes; a terceira,
na qual ocorre, contribuições de Lênin e, por fim, a quarta, considerada
contemporânea e que se subdivide em várias tendências, sendo as principais: a
Chinesa e a Soviética, as quais retomam as ideias originais de Marx.
Triviños acentua que Marx tem uma visão materialista do mundo, para o
filósofo, a matéria é
o princípio primordial e que o espírito seria o aspecto
secundário. A consciência, que é um produto da matéria, permite
que o mundo se reflita nela, o que assegura a possibilidade que
tem o homem de conhecer o universo. A idéia materialista todo
mundo reconhece que a realidade existe independentemente da
consciência. (TRIVINOS, 1987, p. 49)
Ainda, conforme o autor, “o Marxismo compreende, precisamente, três
aspectos principais: o materialismo dialético, o materialismo histórico e a
economia política.” (TRIVIÑOS, 1987, p. 49), sendo o materialismo dialético a
base filosófica do marxismo. Esse materialismo associa em seus princípios à
matéria, à dialética e à prática social; objetiva também discussões teóricas
6 Karl Marx, de origem alemã, filósofo, economista, jornalista e militante político, foi
considerado um dos pensadores que mais exerceu influência em relação a filosofia contemporânea.
Considerado amigo inseparável de Engels, os dois promoveram os ideais do marxismo, procurou
inteirar-se e compreender a história dos seres humanos a partir das condições materiais nas
quais eles vivem (COTRIM, 2010). Marx buscava meios epistemológicos, uma direção que
fundamentasse o conhecimento para pudesse fazer a interpretação das origens históricas e
sociais que o provocava, superou as posições de Hegel no que dizia respeito à dialética e
conferiu-lhe um caráter materialista e histórico (PIRES, 1997). (STAUB, T. et al, 2012, p. 6)
capazes de orientar ações de revolução da classe proletária.
O Materialismo Dialético é a base filosófica do Marxismo e procura
encontrar respostas coerentes para explicar não só a sociedade como também os
fenômenos da natureza e do pensamento. Conforme Triviños (1987, p. 51)
[...] o materialismo dialético tem uma longa tradição na filosofia
materialista e, por outro, que é também antiga concepção na
evolução das ideias, baseia-se numa interpretação dialética do
mundo. Ambas as raízes do pensar humano se unem para construir, o
materialismo dialético, uma concepção científica da realidade,
enriquecida com a prática social da humanidade.
O materialismo histórico é a ciência filosófica do Marxismo, que estuda
as leis sociológicas. Ele reflete sobre as leis que regem essa sociedade, sua
história e como a prática dos homens interfere no desenvolvimento da humanidade.
Antes do materialismo histórico, o homem possuía uma visão idealista sobre a
formação social. Nesse sentido, Marx criticava jovens, que, influenciados por
Hegel e por Ludwig Feuerbach, acreditavam que a sociedade era determinada por
“heróis”. A partir das contribuições de Marx, a constituição da sociedade
passou a ser vista como resultado das formações socioeconômicas e das relações
de produção.
Para Marx os seres humanos não podem ser pensados de forma
abstrata, nem de forma isolada. Marx defende que não existe o
indivíduo formado fora das relações sociais. Isso significa que as
formas como os indivíduos se comportam, agem, sentem e pensam,
vinculam-se a forma como se dão as relações sociais. Essas
relações sociais, por seu lado, são determinadas pela forma de
produção da vida material, ou seja, pela maneira como os seres
humanos trabalham e produzem os meios necessários para a
sustentação material das sociedades. (STAUB et al, 2012, p. 6)
Na perspectiva do Materialismo histórico dialético, só é possível
construir conhecimento científico a partir da distinção do que é primário e do
que é secundário. Além disso, para que o processo de conhecimento seja
dialético, é necessário considerar a historicidade, por isso, durante a
investigação, teorias devem ser revisitadas e categorias reconstituídas.
A teoria materialista histórica sustenta que o conhecimento
efetivamente se dá na e pela práxis. A práxis expressa,
justamente, a unidade indissolúvel de duas dimensões distintas,
diversas do processo de conhecimento: a teoria e a ação. A
reflexão teórica sobre a realidade não é uma reflexão diletante,
mas uma reflexão em função da ação para transformar. (FRIGOTTO,
2001, 81)
Na visão Marxista, o sujeito é constituído historicamente. Assim, como
ser histórico, é necessário que conheça a realidade, principalmente da classe
proletária, a fim de poder transformá-la. É igualmente necessário que tenha
consciência ampla da sociedade e da dialética que a movimenta. O Materialismo
Histórico Dialético não separa sujeito e objeto, visto que, ao mesmo tempo em
que o sujeito transforma esse objeto, é também transformado por ele. Essa e uma
relação dialética, dinâmica que define a ciência como um produto social e
histórico.
O método, no Materialismo Histórico Dialético, revela o desenvolvimento,
a estruturação e as transformações sociais. A principal condição para se
estabelecer um método de investigação nessa perspectiva, é romper com os
pensamentos e a ideologia dominante (FRIGOTO, 2001, 76).
Chasin (1995) pontua que se entende método como um conjunto de
procedimentos de base científica, com o qual o pesquisador deve operar seus
procedimentos para efetuar seu trabalho, sua pesquisa. Entretanto, para Marx,
método possui outra característica:
[...] é de outra natureza, de núcleo absolutamente original, se
considerarmos que em seu entender o método de interpretação
histórica apenas se resolve no fim da pesquisa. A pesquisa tem que
captar detalhadamente a matéria e analisar suas formas de
evolução, apensas posteriormente nos é facultado expor o movimento
real e indicar os caminhos ainda não tracejados. (PICOLLO; MENDES,
2013, p. 75)
Tal método consiste em um instrumento de mediação, embasado por
princípios científicos, entre o pesquisador e o objeto. É necessário entender
que o pesquisador não pode ir ao objeto imbuído de pré-conceitos, pois
[...] um dos fundamentos básicos de uma ontologia materialista
toma como pressuposto a existência do objeto/fenômeno de forma
independente ao processo de conhecimento, embora esse
indelevelmente influencie a relação e a forma como percebemos o
mesmo. (PICOLLO; MENDES, 2013, p. 75).
Entende-se que, para Marx, o que importa como ponto de partida, não são
as idéias, mas sim os fenômenos.
A natureza dos métodos e das técnicas para o estudo depende,
principalmente, das características do conteúdo do mesmo. No
enfoque marxista, diferentes tipos de teoria podem orientar a
atividade do investigador. Todas elas, porém, serão baseadas na
pesquisa social, no materialismo histórico. (TRIVINOS, 1987, p.
74)
Uma pesquisa na linha do Materialismo Histórico Dialético só é possível a
partir de uma ampla visão de mundo, ou melhor, é necessário que o pesquisador
conheça a realidade social e a materialidade dos fenômenos. Além disso, é
necessário entender que há uma realidade objetiva exterior à consciência, a qual
é um produto, um resultado do material.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste presente trabalho apresentamos um breve relato das principais
idéias epistemológicas ocidentais. Sendo elas de grande representatividade para
as pesquisas. É de fundamental importância para o pesquisador, ter conhecimento
da produção científica de um determinado período histórico, como também saber
qual a importância e o significado das produções para o desenvolvimento social.
Por meio de análise dessas matrizes, percebe-se para que os resultados
das pesquisas sejam de qualidade, é preciso que se tenha conhecimento da
realidade, para fazer uso de uma metodologia adequada ao objeto de estudo,
escolher a matriz epistemológica coerente à pesquisa científica. É importante
também, conhecer as diferentes correntes filosóficas que servem de bases para as
pesquisas, para garantir o aumento da eficácia da qualidade das investigações,
bem como garantir maior rigor e cientificidade. A escolha certa da matriz
epistemológica, contribui para justificar a necessidade da pesquisa, dá clareza
aos conceitos de homem, de educação, da história e elucida também os conceitos
de causalidade na explicação científica.
Este trabalho contribuiu para o entendimento das características das
matrizes epistemológicas, possibilitando a escolha da matriz mais conveniente
para ser aplicada na pesquisa. Para Triviños, a pesquisa de enfoque positivista
tem uma visão artificial e limitada do contexto, enquanto que, para as pesquisas
de concepção marxista assim como fenomenológica, elas estabelecem estruturas ao
assunto que se investiga. O que diferencia estas matrizes, é que a fenomenologia
é a-histórica e idealista e o marxismo dá importância à busca das relações dos
contextos, no desenvolvimento do fenômeno, vinculada a sua história com base em
uma visão materialista. Uma pesquisa de cunho fenomenológico, “analisa as
percepções dentro de uma realidade imediata, buscando o significado e os
pressupostos dos fenômenos sem avançar em suas raízes históricas para explicar
os significados”, (TRIVIÑOS, 1987, p. 92), enquanto que a pesquisa positivista
isola os problemas do pesquisador, os denuncia, os quantifica e os analisa, mas
esquece as bases teóricas e os significados.
Tais correntes epistemológicas são importantíssimas, para o auxílio do
pesquisador objetivando definir com clareza as dimensões e perspectivas que
apresenta o problema.
REFERÊNCIAS
BORGES, M. C., As correntes filosóficas que orientam as pesquisas em educação:
uma análise reflexiva, São Paulo, 2005. Disponível-
ttp://pt.scribd.com/doc/7320750/AS-Correntes-Filosoficas-Que-Orientam-as-
Pesquisas-Em-Educacao. Acesso: 24/07/2013
CHASIN, j. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. In: TEIXEIRA, F.
Pensando com Marx, São Paulo: Ensaio, 1995.
FRIGOTTO, G. O enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa
educacional. In: Metodologia da pesquisa educacional. – 6 ed. – São Paulo:
Cortez, 2000, p. 69-90.
MANSINI, Elsie F. S, O enfoque fenomenológico de pesquisa em educação. In:
FAZENDA, Ivani (organizador) Metodologia da pesquisa educacional. São
Paulo: Cortez, 1989, 1ª edição.
PICCOLI, G. M.; MENDES, E. G. Sobre o método de Marx. São Paulo, 1013.
Disponível em:
STAUB, T. et al, ( 2012, p. 8): Discutindo As Três Grandes Matrizes
Epistemológicas Ocidentais E A Formação Docente. Disponível em: http://cac-
php.unioeste.br/eventos/encontroletras/docs/anais/ensino_aprendizagem_de_lingua_
portuguesa_novo.pdf. Acesso: 31/07/2013
TRIVINOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciência social: a pesquisa
qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.
EDUCAÇÃO PARA “PRODUÇÃO DA CONSCIÊNCIA VERDADEIRA”7:
Uma abertura de diálogo educacional com a perspectiva crítica.
José Mateus Bido8
Introdução
Os educadores têm a missão pessoal e profissional de pensar e instituir
um processo formador que garanta aos educandos, de diferentes classes sociais e
de distintas condições culturais, uma formação humana, social e profissional,
integradas a partir de um conjunto de saberes historicamente constituído. Essa
formação deve ser dada aos educandos, de sorte que cada um tenha condições de
desenvolver a consciência sobre o processo educacional em que está inserido.
Processo esse que propiciado aos educandos o despertar e o desenvolver de seu
potencial crítico e criativo em meio à volatilidade das convicções do mundo
contemporâneo. Como agentes do processo educativo, os docentes, discentes e
demais profissionais da educação devem lutar pela formação da autonomia
intelectual e da emancipação política da pessoa humana. Devem proporcionar
espaços formadores que orientem a comunidade educacional para o esclarecimento
constante de seu papel, enquanto sujeitos sociais e históricos.
A presente reflexão busca apresentar rapidamente uma proposta dialógica
entre a realidade formativa, vivida nos espaços educacionais, com a perspectiva
da reflexão da teoria crítica, especificamente defendida pela noção de
esclarecimento em Theodor W. Adorno e Max Horkheimer.
Nessa linha de pensamento, a compreensão do conceito de Esclarecimento em
7 A proposta do texto se inspira na definição dada por Theodor W. Adorno sobre educação no texto
“Educação para quê?” (In. ADORNO, Educação e Emancipação. 4ª Ed. São Paulo: Editora Paz e
Terra, 2006. P 141).8 É mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná –
UNIOESTE – Toledo, especialista em Docência em Educação Profissional pelo Serviço Nacional de
Aprendizagem Comercial – SENAC – PR, especialista em Gestão Educacional pelo Centro Nacional
de Educação a Distância, especialista em Filosofia Clínica pela faculdade Padre João Bagozzi,
especialista em Filosofia e os valores fundantes da civilização ocidental pela Faculdade de
Filosofia pela Universidade Estadual do Paraná – FECILCAM – Campo Mourão , é graduado e
licenciado em Filosofia pela Faculdade de Ciências Humanas Arnaldo Busato – Toledo. É servidor
público federal, docente das disciplinas de Filosofia e Sociologia do Instituto Federal do
Paraná, campus da cidade de Ivaiporã-PR e autor do livro “A problemática da pós-modernidade”
(2001).
Theodor W. Adorno9 está intimamente ligada ao conceito de formação do sujeito
para uma subjetividade mais segura de si, frente ao processo massificador do
sistema capitalista. A subjetividade, que nasce da disposição filosófica moderna
de conceder ao homem a condição de autoridade racional10, garante a instituição
da noção de sujeito a partir da legitimação de um eu11 centralizado no domínio
lógico, inspirado pela ciência positiva12. Essa concepção de sujeito se
apresenta como uma expressão de universalidade categórica, afastando-se de sua
condição histórica de contingência. A reflexão, nesse cenário, prioriza a
condição transcendente e transcendental, em detrimento da avaliação da realidade
imanente e contingente.
Um olhar crítico sobre esse modelo de raciocinar da cultura europeia
permite conceber outra vertente investigativa13. Esta racionalidade, concebida a
partir da leitura da tradição marxista, e, inspirada pelo pensamento de Adorno e
Horkheimer, garante um retorno ao sujeito histórico e, por isso, existente e
responsável pelo seu fazer-se no e do mundo. Garante também um pensamento a
partir do imanente, que está em processo de construção. A situação e a condição
humana, que se faz e se refaz na realidade histórica, passam a ser concebida
como a perspectiva material para a reflexão crítica.
Pensar o contingente passou a ser um foco da filosofia da teoria crítica,
exatamente para descrever a realidade que impera sobre a ação e a vontade do
homem, no sistema capitalista. Decorre, deste contexto, a necessidade de se
pensar a condição de ser e de formar um sujeito crítico. A concepção de sujeito
crítico está, neste cenário, necessariamente vinculada à materialidade de sua
existência, pois é com ela que este sujeito precisa manter diálogo de percepção,
de entendimento e de proposta de mudança, por sua postura reflexiva no meio
9 ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
198510 BIDO, José Mateus. A Problemática da Pós-modernidade. Uma leitura sobre o viver do homem na
modernidade. Londrina, Ed. UEL, 2001. P. 61-72.11 Uma obra muito importante pode nos ajudar a refletir sobre subjetividade moderna. TOURAINE,
Alain. Crítica da Modernidade. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.12 HORKHEIMER, M. & ADORNO, T. W. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In. Textos Escolhidos. 5ª
ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 31-68.13 Idem. ibidem.
social. Agir pensando e pensar agindo são elementos de um novo olhar
educacional.
Para conceber, na ótica da teoria crítica de Adorno, um sujeito histórico
e contingente, que tenha uma postura crítica frente à realidade em que está
imerso, faz-se necessário entendê-lo a partir do papel deste sujeito na
sociedade. A condição de ser um agente efetivamente envolvido, reflexivo e
ativamente no seu meio, é que inspira a base da formação da postura crítica. Não
há verdadeira crítica sem a efetiva concepção e ação política, presentes no
processo formador do cidadão pensante e produtivo. Se lida na perspectiva da
Dialética Negativa14, essa postura se desenvolve através do exercício da
liberdade do sujeito, por meio de um processo educacional que o introduza em
discussões eminentemente críticas acerca do seu papel em meio à dinâmica da
Indústria Cultural.
Neste horizonte de discussão, o propósito do texto é apresentar um breve
diagnóstico situacional e, a partir da perspectiva da teoria crítica, avaliar
possibilidades de encaminhamento filosófico para o entendimento de um processo
ensino-aprendizagem, com base na inspiração adorniana, que seja efetivamente
concreto. O texto será dividido em três momentos.
O primeiro se apresenta como um rápido diagnóstico da realidade
educacional e seus referenciais históricos e comerciais. O segundo passa a ser
uma apresentação da perspectiva de leitura que orienta-se nas ações educativas
em favor da formação de uma individualidade subjetiva de significado humano e
produtivo. O terceiro momento busca apresentar a prospectiva formadora, por meio
da compreensão do papel essencial da educação crítica, da educação para a
autonomia e para o empreender, referenciada nos horizontes do currículo do
Instituto Federal do Paraná.
Diagnóstico
Pensar um processo de educação com foco na autonomia racional do
educando, isto é, a capacidade de pensar por si, para que este adquira uma
14 ADORNO, T. W. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
identidade própria em ler, interpretar e posicionar-se social e politicamente
frente aos eventos que terá que enfrentar, é pensar nos meios educacionais ou
formadores que são constituídos na contemporaneidade brasileira e que devem
contemplar todos os cidadãos. Contemplar em igualdade de direito e igualdade
condição.
Estabelecer um parâmetro de entendimento sobre a igualdade de direito nos
remete propriamente ao que está estabelecido na Constituição da República
Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. A Carta Maior assegura, ao falar
dos Direitos e Deveres Fundamentais, especificamente no Capítulo Primeiro, do
Título que trata dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, no Artigo 5º15,
que:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Aprofundando e evidenciando as condições dos Direitos Sociais, dados
legalmente a todos os cidadãos brasileiros, o Artigo 20516 estabelece:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da
família, será promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Já o Artigo 20617 ressalta:
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes
princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
Essa referência à Constituição permite focar a noção de igualdade legal,
ou igualdade de direito, razão óbvia pela qual foi citada. Essa noção deve ser
pensada pela perspectiva da realidade nacional, precisamente para referenciar a
noção de igualdade de fato, ou das condições reais de igualdade, asseguradas
pela Lei. A igualdade de direito deve ser perseguida constantemente para que se
instaure nas diferentes esferas em que os poderes Executivo, Legislativo e
15 SENADO FEDERAL. Constituição de República Federativa do Brasil. Brasília: Editoração Senado,
2010. p. 05.16 Op. cit. p. 34.17 Op. cit. p. 34.
Judiciário se manifestam. Entretanto não deve estar desassociada das condições
reais. A lei deve inspirar e assegurar a realidade a que se refere. Municípios,
Estados e a Federação devem contribuir para que este direito constitucional não
seja ferido ou esteja legado a um mero discurso situacional.
Ao observar a dinâmica da história da sociedade brasileira é possível
perceber nela a condição em que o processo educacional se encontra, assim como o
grau de importância que a ela foi dado. É na manifestação ou na estruturação do
processo educativo que a educação pode se manifestar de maneira objetivamente
desigual. As circunstâncias materiais, humanas e geográficas têm enfatizado a
difícil tarefa de construir a igualdade de condição, presente na Lei Maior. A
igualdade de condição de acesso e permanência de muitos cidadãos no processo
educacional é o desafio a ser vencido.
Vivenciando o processo educativo, especificamente no ambiente da escola,
algumas considerações precisam ser postas diante da reflexão e da ação, a partir
da perspectiva dos educadores. Como compreender o papel da escola em face do
processo da construção da identidade social da subjetividade contemporânea? Como
repensar o papel do educador e do educando frente às exigências do mundo
contemporâneo?
Considerações dessa natureza são feitas por muitos educadores anônimos,
as quais precisam ser refletidas constante e profundamente. Mas as propostas ou
possibilidades de respostas não se encerram em si mesmas. Ou seja, não devem ser
fechadas. Estas devem desafiar os educadores e profissionais da educação à
abertura de mente para que possam ser pensadas dinamicamente na compreensão do
processo educativo, em diálogo com a sociedade concreta e próxima, na análise
dos meios e nos resultados das ações educacionais.
Para melhor ajudar na abertura de diálogo educacional com a perspectiva
crítica e melhor compreender a leitura diagnóstica da realidade, tomamos por
base uma obra da antropóloga argentina Paula Sibilia18. A obra: “Redes ou
Paredes - A Escola em tempos de dispersão”, lançada no dia oito de outubro de
18 SIBILIA, Paula. Redes ou Paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2012.
2012, no Rio de Janeiro, pela Editora Contraponto, nos desafia na análise da
reinterpretação do papel da escola na sociedade do consumo. Partindo de uma
leitura antropológica do processo formativo, a obra centra sua reflexão na noção
de subjetividade que a sociedade capitalista estabelece e na noção que
necessariamente precisa ser formada para os desafios de ser no mundo. A leitura
do texto nos coloca, de início, frente aos limites históricos da instituição
escola, construído pela dinâmica de uma sociedade distinta da organização social
que lhe deu origem. Nascida num contexto moderno, a escola se apresenta
contemporaneamente em processo de necessária reestruturação em seus fundamentos,
em seus processos e em seu significado. Esses limites são reforçados ainda mais,
seja pela estrutura física, seja pela dinâmica no processo ou pela resposta dada
efetivamente à organização produtiva.
Para a autora, a escola sempre foi pensada e repensada, nos diferentes
momentos históricos, para responder aos interesses do modelo produtivo e de
Estado vigente19. Por esse mesmo motivo é que ela passou a ser questionada, em
sua intencionalidade e em seus resultados, pelos próprios resultados produzidos.
Em outras palavras, a escola forma a pessoa de acordo com a necessidade
instituída pelo seu contexto. A escola, contemporaneamente a nós, devido ao
surgimento de novas frentes de informações, como as apregoadas pelas redes
sociais virtuais e outros meios tecnologicamente pensados para a oferta da
instantaneidade, está sendo questionada tanto em sua eficiência, quanto em sua
eficácia.
Questões que se dirigem à sua estrutura, à sua dinâmica, à sua
organização e ao seu próprio conceito. O centro desta referência reflexiva, a
partir da postura antropológica, está no conceito e na formação da subjetividade
contemporânea. Este é o foco que a autora persegue na obra: identificar os meios
que formam a nova subjetividade, face aos desafios culturais e produtivos do
mundo contemporâneo.
A pergunta central feita pela antropóloga é dirigida para entendimento de
quais são os meios encontrados ou produzidos pela sociedade contemporânea para a
19 Op. Cit., p. 11.
formação da subjetividade humana. A realidade histórica, refletida por ela, dá a
evidência de que são muitos e variados estes meios formadores da subjetividade
humana na contemporaneidade20. Contudo, há algo de comum percebido no processo
de formação desta subjetividade: a plasticidade e a volatilidade com que o ser
humano encara o seu processo formativo. Para a pesquisadora, essa característica
assim se manifesta porque houve uma substituição ou inversão de focos na criação
e construção dos referidos meios. A insistente pressão mantida pelo processo
produtivo capitalista sobre cada subjetividade provocou, social e
historicamente, a passagem do cuidado da escola, que antes era regido pelo
modelo de Estado (especificamente do modelo de Estado moderno fomentado pelo
iluminismo), para o cuidado regido pelo modelo empresarial, que é modelo do
Estado contemporâneo21. A busca pela formação de um ser humano para os
conhecimentos gerais e a formação do caráter para a cidadania passa a ser
reorganizada e dirigida para formar um ser humano que responda ao processo
produtivo, com conhecimentos e habilidades técnicos.
Para Paula Sibilia, os meios formadores e educativos, mesmo assistidos
pelo modelo de Estado tradicional, vão sendo adaptados às necessidades ou
demandas empresariais. O conceito de formação para a emancipação, pensada pelo
modelo kantiano22 e pela perspectiva crítica de Adorno23, é redefinido pela
necessidade da formação para a produção. Os saberes se orientam para responder
aos desafios do mundo produtivo. Formam-se operadores para um processo
produtivo.
A lógica produtiva, instituída a partir da dinâmica do consumo, cria a
necessidade de novos sujeitos históricos, com atitudes que venham responder ao
modelo de pessoa procurado pelas empresas. Nesta lógica, o modelo de homem
buscado, que é formado pela ingerência direta das forças legais e
organizacionais do Estado, da família e das relações sociais, sofre uma
estagnação na reflexão e na postura críticas e na ação política. Enquanto o
20 Op. Cit. P. 97.21 Op. Cit. P. 17.22 Op. Cit. P. 18.23 ADORNO, Educação e Emancipação. 4ª Ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2006. p. 169-185.
Estado moderno pensava um processo formativo para disciplinar, civilizar,
adestrar e moralizar24, o modelo de Estado contemporâneo exige resultados, no
menor prazo de tempo e com o menor custo possível, usando-se das mesmas pessoas.
Quem não se adapta, está fora do processo, sofrendo as mesmas condições de um
produto que pode ser substituído a qualquer momento. A pressão por resultados,
estimulada pela cadeia produtiva e pela criação de inúmeras ferramentas
informativas e de consumo, desencadeia uma espécie de desinteresse pelos meios
educacionais ou formadores tradicionais, responsáveis pela formação da
subjetividade das gerações anteriores. Destes meios, a escola é quem mais tem
sofrido com o “desapoderamento”25 de sua finalidade. O poder específico da
escola é questionado. Com ela, todas as subjetividades que a mantém para formar
outras subjetividades também padecem do desalento de significarem-se a si
mesmas. O papel dos educadores são postos em questionamento, mensurados a partir
da capacidade de respostas aos resultados esperados pelo meio produtivo.
Segundo a antropóloga, os meios formadores são constituídos para
estabelecer laços sociais e culturais das mais variadas espécies. Entretanto,
outros espaços e meios são apresentados a estes sujeitos contemporâneos em
formação, os quais são mais atrativos que os tradicionais26. As tecnologias,
postas a serviço do processo produtivo para o consumo, criam maior atratividade.
Celulares smartphone, tablete e outros aparelhos estabelecem conexões variadas e
diversas, dando informações em tempo real e permitindo que o sujeito selecione,
ao seu gosto, o que e com quem pretende manter conexão. Neste sentido, a
subjetividade contemporânea não constrói laços. Ela busca conectar-se não com a
subjetividade do outro, mas com o que a outra subjetividade pode despertar
interesse ou se interessar. O interesse pelo aparente é que estimula a relação.
Esta dinâmica está se inculturando de tal maneira nas novas gerações que tem
exigido do Estado ou de organizações educacionais um reposicionamento sobre a
concepção do processo formativo, seja em seus fundamentos, ou a partir dos seus
resultados estatisticamente comprovados. Ambientes que deveriam ser expressão de
24 Cf. KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. 3.ª Ed. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2002.25 SIBILIA, op. cit. p. 105.26 Op. Cit. P. 93-94.
“processo civilizatório” tornam-se espaços de barbárie. A escola, em muitos
ambientes geográficos, torna-se um espaço de desconstrução do eu subjetivo para
a construção do eu midiático.
A situação pode ser percebida por dois focos. De um lado, é possível ver
um programa educacional instituído, que recebe investimentos físicos e humanos.
Por outro, temos a visão de um contexto que impulsiona, pela inovação
tecnológica, as relações sociais e o consumo humano para a busca crescente e
constante pela novidade. Essa tendência pode conduzir ao obsoletismo as
estruturas e métodos educacionais, assim como pode também fazer com os agentes.
Temos, então, duas realidades que se chocam na dinâmica pela formação da
subjetividade contemporânea. O fato é que a subjetividade em formação se
apresenta como subjetividade midiática, ao passo que a proposta pela formação do
letramento ou do esclarecimento é ofuscada pela condição do interesse.
O entusiasmo (a excitação da subjetividade) está mais no princípio do
prazer do que no princípio do dever. A formação moderna orientava para o dever
do homem em relação às suas atitudes e ao convívio social. Já a contemporânea se
orienta pela satisfação pelo e no fazer. Neste aspecto, o que prende a atenção
desses sujeitos digitais é mais um mundo virtual que o mundo real. Por isto
mesmo é que esses novos sujeitos se entusiasmam mais pelo divertimento e se
desinteressam pelo processo que exige deles o esforço mental para compor os
caminhos de uma lógica racional, ainda apresentada e validada com verdade pelos
meios formadores. Para contrapor esta realidade inúmeras tendências pedagógicas
foram desenvolvidas para fazer com que o aluno aprenda se divertindo.
O fato é que a dinâmica de mercado foi obrigando, aos poucos, as
instituições geridas para a formação do cidadão a criarem uma identidade
peculiar. Especificamente no caso da escola, assiste-se a passagem da busca pela
formação do cidadão para a capacitação do cliente27. Isto significa dizer que os
encaminhamentos didáticos e pedagógicos da escola (fornecedor) vão sendo
centralizados mais no interesse dos alunos (clientes), como consumidor de
propostas de um processo formativo. Se a escola se torna atrativa, os educando
27 REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. I. São Paulo: Loyola, 1993. p. 63-71.
consomem. Sendo desinteressante, recusam.
Perspectiva
Há uma tendência cultural, quase que naturalmente constituída na
concepção contemporânea, de projetar as análises ou avaliações (juízos de
valores) numa oscilação latente entre os contrários. Vivemos quase que imersos
na luta entre os opostos: bem ou mal, certo ou errado, direita ou esquerda, o
que atrai ou o que repele etc. Herdamos esta tendência formativa da clássica
tradição filosófica, composta exatamente para pensar a dinâmica das coisas. Tal
dinâmica é estruturada mais propriamente a partir de Heráclito28, na qual seu
propósito era o de apresentar que no mundo tudo segue um fluxo permanente e que
envolve todas as coisas. Nesse fluir, os opostos se apresentam num processo
permanente de confronto, no qual a oposição está para conciliar as diferenças
numa novidade que, pela divergência, faz brotar a unidade de uma nova realidade.
Essa realidade se compreende por um constante “devir” (vir-a-ser) exatamente
para superar a concepção da inércia que paira na compreensão do ser,
profundamente pensado pela filosofia da natureza clássica.
O estudo desta perspectiva dialética de Heráclito, que envolve a noção de
ser, ganha vulto e significância em diferentes momentos da reflexão filosófica.
Por isso mesmo é que a dinâmica de ser das coisas passa a ser retomada por
Hegel, na análise do movimento do “Espírito”29, no conhecer das coisas e no
caminho do próprio “Espírito”. Tudo faz parte de uma universalidade. Marx, ao
retomar a discussão sobre a dialética hegeliana, aproxima a sua leitura da
realidade histórica, concretamente vivida por uma humanidade que realiza a sua
condição pelo seu fazer no mundo.
A postura idealista hegeliana é realinhada pela postura materialista em
Marx. A perspectiva de Marx está em compreender uma dinâmica transformadora, não
somente na maneira de conceber, mas na condição existencial do ser. Não somente
quanto ao saber, mas quanto ao fazer. O homem que vive os problemas de uma
28 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Partes I e II. Petrópolis: Vozes, 1992.29 MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. Vol. I a VI. 26ª. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008.
sociedade que explora a sua condição de ser, pelo produzir, precisa responder
contrariamente, por meio de sua ação, com outra realidade30, que seja
significativamente expressão da condição do homem no mundo.
A perspectiva dialética também é retomada, a partir da tradição marxiana,
pelos teóricos da Escola de Frankfurt, na contemporaneidade31. Assumida pelo
viés negativo, a dialética se coloca como um esforço de compreensão e ação para
realizar, na realidade, aquilo que ainda não é, mas traz em si a possibilidade
de ser, a potencialidade que se coloca em construção.
Se aplicada esta condição de análise também no processo educativo, a
leitura dialética é de grande relevância e necessária. Assim se mostra como
relevante e necessária por migrar entre os opostos formativos que envolvem o
indivíduo concreto. A luta entre os divergentes, que deve projetar o novo, passa
a ter uma prerrogativa impar na compreensão da formação do sujeito para a
autonomia intelectual e emancipação política. Nesse processo, o que deve ser
evitado é a deficiência situacional e intelectual que criam ou forçam a condição
dos opostos para o rebatimento ou nulidade recíproca, tanto no planejamento,
quanto na implementação dos espaços formativos.
Avaliada historicamente a dimensão educacional brasileira é comum
perceber nela a constante busca da nulidade entre opostos. Como os espaços
educacionais nascem, fundamentam-se e são organizados a partir da intenção e do
planejamento de uma força superior à vontade particular, socialmente instituída
(Estado), a escola, como um desses espaços formadores, está sempre vinculada ao
propósito da organização social vigente. Ao mudar a perspectiva sócio-política,
pela tomada de poder pelos agentes do Estado, vê-se a necessidade de mudar
também a postura formadora dos cidadãos.
A instituição escola, submetida ao poder real e intencional do Estado
Moderno, desenvolveu um modelo de homem preocupado com um saber mais clássico e
30 HORKHEIMER, M. & ADORNO, T. W. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In. Textos Escolhidos. 5ª
ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 31-68. Conferir também: ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M.
Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. Conferir ainda: ADORNO, T.
W. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.31 ADORNO, T.W. Mínima Moralia. Reflexão a partir da vida lesada. Rio de Janeiro: Azougue, 2008.
p. 150, aforismo, 99.
geral. Neste sentido, a escola do Estado Moderno, a partir do seu programa
formador, visa construir um saber voltado para a compreensão cultural do sujeito
formado. A escola contemporânea, por sua vez, segue a mesma lógica
organizacional. Mas como o Estado contemporâneo sofre a interferência
administrativa a partir do modelo empresarial herdado, o projeto formador desse
espaço cultural contempla um sujeito especializado, que dê respostas
operacionais com foco nos resultados. Um sujeito definido pela técnica. Neste
aspecto, a escola passa a ter por objetivo central a formação de um indivíduo
produtivo.
Este cenário pode levar a uma reflexão que se limita à avaliação do
processo formativo oscilante entre os dois polos: sujeito de formação geral e
sujeito de formação especializada. A coerência crítica deve fundamentar a
reflexão filosófica para dialogar significativamente com as duas esferas e, a
partir delas, criar novas possibilidades, principalmente pelo diálogo entre
estes dois focos. A organização de espaços formadores, que educam o sujeito para
uma visão de mundo, a fim de que compreenda o seu papel histórico e a sua
participação no processo produtivo, simultaneamente, passa a ser uma exigência
de uma nova formação humana na contemporaneidade. Entretanto, mesmo sendo
necessária, essa proposta educacional não pode encerrar-se em si mesma, como uma
vertente conciliadora em programas pedagógicos que visam formar ou para pensar
ou para produzir. Exatamente por ser necessária, essa proposta deve estimular
outras possibilidades de organização do processo educacional, tendo como
referência a busca pela autonomia e emancipação do sujeito frente ao processo
massificador do setor produtivo. Portanto, deve formar o educando para tornar-se
um ser que compreende o mundo em que se encontra e nele agir como agente que
pensa, sente, se relaciona e trabalha.
Se o processo educacional se volta para o aspecto da produtividade, isto
é, formar indivíduos para produzir, o risco de educar pessoas sem identidade
crítica é evidente. Carece, assim, esse processo educativo, de uma formação para
a compreensão do todo, na qual ressalta-se o papel do indivíduo como um ser de
significado. Em outras palavras, o sentido da realidade deve chocar ou afetar
cada sujeito sobre sua condição de ser e de fazer no mundo. É na descoberta da
identidade pessoal e da sua comunidade social que o sujeito adquire a noção de
pertença e se organiza histórica e politicamente em favor de mudanças que sejam
significativas para significar a sua existência, não somente como visão
ideológica, mas como condição real da contingência de ser.
Por outro lado, pensar um processo educativo que privilegie a formação
integral de um indivíduo, sem dar as habilidades necessárias ao processo
produtivo, também não é pertinente. Nesse aspecto, conhecer para ser e conhecer
para produzir são dois polos que se apresentam com a possibilidade necessária de
diálogo. Sentir-se parte do processo formativo, de maneira consciente, e
participar da construção de sua identidade cultural e produtiva é que dará
fundamento à subjetividade significativa de cada indivíduo em meio à sociedade
de consumo.
Frente à perspectiva contemporânea da formação da individualidade humana
chamamos ao diálogo o pensador da teoria crítica da escola de Frankfurt, Theodor
W. Adorno, para inspirar uma reflexão sobre a noção de individualidade do
sujeito com ser de significado.
Para Adorno (1985, p. 198),
[...] Atualmente, o declínio da individualidade não ensina
simplesmente a compreender sua categoria como algo de histórico,
mas também desperta dúvidas quanto à sua essência positiva. A
injustiça que sofre o indivíduo era o princípio de sua própria
existência na fase da concorrência. Mas isso não se aplica apenas
à função do indivíduo e de seus interesses particulares na
sociedade, mas também à complexidade interna da própria
individualidade. Foi sob o seu signo que se colocou a tendência à
emancipação do homem, mas ela é, ao mesmo tempo, o resultado
justamente dos mecanismos dos quais é preciso emancipar a
humanidade. É na autonomia e na incomparabilidade do indivíduo que
se cristaliza a resistência contra o poder cego e opressor do todo
racional. Mas essa resistência só foi possível historicamente
através da cegueira e irracionalidade daquele indivíduo autônomo e
incomparável.
Esse foco filosófico sobre o sujeito é determinante para dar-lhe uma
outra condição na contemporaneidade, distinta da apresentada pela mentalidade
burguesa. Esta condição é a da reflexibilidade. Segundo Adorno, “[...] No
trajeto da mitologia à logística, o pensamento perdeu o elemento da reflexão
sobre si mesmo, e hoje a maquinaria mutila os homens, mesmo quando os alimenta”
(idem., p.42).
Um processo educacional que fortaleça a dimensão da individualidade
provoca uma consciência da e para a diferença. Para a diversidade, consciência
para o não idêntico, ou seja, o distinto. Isto significa dizer que o indivíduo
possui uma “incomparabilidade”. Esta “incomparabilidade” deve ser pensada
como uma referência pela qual se busca a suplantação do processo massificador
imposto pela indústria cultural. Isto é, reduzir os diversos em iguais. Por
outro lado, ela deve ser pensada como um ponto central, pelo qual cada indivíduo
pensador e produtor possui uma identidade constitutiva em sua maneira de pensar,
ser e produzir. A maneira com que cada educando é preparado para enfrentar o
processo produtivo no sistema capitalista deve dar a ele a consciência para
fugir da reificação32 (coisificação), ou objeto da vontade produtiva
institucionalizada.
Adorno aborda especificamente um referencial significativo para a
formação do homem contemporâneo: a relação com o outro. A relação com a
diversidade. É preciso que o indivíduo esteja em relacionamento com outros
indivíduos de forma consciente e integrada. É essa relação que prepara o eu
objetivo na esfera social e política para superar a massificação do Eu
subjetivo, imposta pela sociedade do consumo. Segundo Adorno (2009, p.188),
[...] A introspecção não descobre em si nem a liberdade, nem a
não-liberdade como algo positivo. Ela concebe as duas coisas em
relação com algo extramental: a liberdade como a contraimagem
polêmica do sofrimento sob a compulsão social, a não-liberdade
como a própria imagem desse sofrimento. Assim como o sujeito não é
a “esfera das origens absolutas” pela qual ele se faz passar na
filosofia, as determinações graças às quais ele se atribui a seu
caráter soberano não pode jamais prescindir daquilo que, segundo a
sua própria autocompreensão, não pode existir sem elas. Só se pode
julgar aquilo que é decisivo no eu, sua independência e sua
autonomia, em relação à sua alteridade, em relação ao seu não-eu.
Parece evidente que esse argumento de Adorno está pontuando o fato de que
32 Estatuto do IFPR – missão institucional. In: http://reitoria.ifpr.edu.br/wp-
content/uploads/2012/07/estatuto.pdf
a subjetividade moderna se compreende a partir da conceituação que efetivamente
faz de si mesma. É a racionalidade moderna, utilizando-se dos seus argumentos,
para instituir uma subjetividade superior, para a qual se convergem as respostas
aos problemas por ela mesma formulados. Implícita a esta reflexão está o desejo
da sociedade burguesia de tornar-se a autêntica detentora de si mesma, por meio
da concepção de um eu autodeterminado a ser determinante. A crítica de Adorno se
dirige a esta postura, a postura de uma razão autoritária perante a condição do
saber e da perspectiva da noção de verdade.
Ao dar à subjetividade a real condição a que o sujeito se submete, o
pensador recoloca o problema filosófico. A condição de sujeito se realiza na sua
ligação com as condições históricas, as quais dão a ele a noção de existência e
permanência no mundo. Condições estas que o colocam como um ser contingente e
necessário à formação de si mesmo. A característica exclusiva do exercício do
pensamento não o torna sujeito de si mesmo. Isto apenas o descreve como tal. Ele
se torna sujeito na medida em que sua percepção, ação e reflexão se fazem pela
existência do “não-idêntico”33 a si, que se dá na sua relação com o outro que
é também indivíduo existente e contingente.
É na reflexão sobre suas condições históricas que o homem descobre-se a
si mesmo como possibilidade de dialogar com os elementos da sua cultura e
contribuir realmente para o desenvolvimento e para a mudança. Mas não o faz
isoladamente. Também não o faz por meio de um processo educacional que
privilegia a formação individualista, do eu, para o eu. Ela se faz na descoberta
recíproca do eu na relação com o não-eu. É na relação entre a diversidade de
sujeitos, distintos e significativos, que se instaura uma formação para a
autonomia intelectual e para a emancipação político-social. Caso contrário, como
absoluto o indivíduo não passa de forma de reflexão das relações de
propriedades.
Prospectiva
A realidade presente deve inspirar-nos por um esforço conjunto de
33 Cf. http://www.nre.seed.pr.gov.br/umuarama/modules/noticias/article.php?storyid=507.
construção do futuro, distinto significativamente do presente. Uma prospectiva
desse ideal educacional se instaura pelo viés didático, pedagógico e filosófico
presentes no currículo do Instituto Federal do Paraná, como projeto formador do
educando. Criado legalmente com o propósito de promover e valorizar a educação
profissional e tecnológica, com base na indissociabilidade do ensino, pesquisa e
extensão, contribuindo para a formação do cidadão e da sustentabilidade da
sociedade paranaense e brasileira, com amparo nos princípios da ética e da
responsabilidade social, o Instituto, especificamente no Estado do Paraná, nos
seus diversos campi, se coloca como um referencial para a formação humano-
profissional, tecnologicamente preparados para os desafios do mundo do trabalho.
Através de suas políticas para o ensino, pesquisa e extensão, o Instituto
Federal do Paraná se coloca como um espaço para a formação de uma pessoa para a
consciência cidadã voltada para a compreensão da realidade social em que vivem e
a importância da participação no processo de transformação dessa realidade, para
que se possa construir uma sociedade mais livre, igualitária, justa, fraterna,
solidária e soberana. Com a possibilidade de construir um caminho formativo para
o indivíduo, a partir da formação inicial e continuada, passando pela
capacitação técnica de nível médio, chegando à formação superior, o IFPR coloca-
se em um cenário significativo para visão sistêmica e dinâmica do processo
produtivo. A formação complementar pelos programas de especialização humana e
profissional, através da pesquisa lato sensu, fomenta o desenvolvimento de
tecnologias específicas para as demandas especializadas dos setores produtivos e
da formação de formadores.
Pela proposta do mestrado e doutorado, o IFPR visa a implantação de um
programa de pesquisa continuada que contribua para o estímulo, geração e
desenvolvimento da inovação tecnológica, e da compreensão de um ser humano
consciente de seu meio. Esta pesquisa Stricto Sensu, embasada em uma concepção
de educação, de ciência e de tecnologia, extrapola os horizontes meramente da
técnica pela técnica e visa contribuir para uma formação diferenciada e
integradora. A novidade institucional é combater a formação tecnicista,
apregoada pelo modelo de produção, presente na sociedade brasileira
contemporânea e estimulada por muitos centros e instituições formadores. Seu
referencial de educação crítica, visa possibilitar nos educandos um entendimento
do seu papel, enquanto cidadão pertencente a um meio social concreto. É a
condição crítica que permite ao aluno romper com os laços ideológicos que o
subjugam como massa produtiva. Pela proposta de uma formação para a autonomia, o
teor pedagógico e filosófico do IFPR prima pela condição política, histórica e
social do sujeito. A formação do sujeito para a autonomia e a emancipação é
aquela que garante a condição de liberdade da dependência de outra vontade que
não a sua.
Contudo, para que essa proposta curricular seja filosoficamente
fundamentada, os professores e demais profissionais da educação também precisam
se sentir sujeitos do processo. Por essa razão, o corpo docente, após passar por
um rigoroso processo de seleção institucional, deve ser assumido
institucionalmente, para que os docentes sejam integrados num processo de
formação educacional constante, contínua e permanentemente. Por propor uma
formação com foco na autonomia intelectual e na emancipação política dos
educandos, os docentes também devem receber estímulos para a produção
continuada, por meio da pesquisa. Por aproximar os alunos como sujeitos de sua
própria história de outros sujeitos, os docentes devem ser integrados e
estimulados aos projetos de extensão, pelos quais aproximam a academia da
sociedade e traz para a academia os problemas da sociedade (humanos e
produtivos) a fim de pensarem possibilidades de respostas.
Como espaço formador, o Instituto Federal do Paraná, pensado
especificamente sobre a formação de seus discentes, deve esforçar-se
continuadamente em seus métodos e em seus projetos pela formação de uma nova
subjetividade para o mundo contemporâneo. Ele tem a convicção, pelos seus
trabalhos desenvolvidos, de que é preciso que este sujeito dê respostas também
para os seus próprios anseios produtivos. Esta capacidade de ir em busca da
superação de suas dificuldades, por suas próprias condições, se dá por meio de
uma educação para o empreender. Empreender é constituir uma visão proativa, com
maior condição de assertividade. Empreender é ousar conhecer e produzir por meio
do domínio de tecnologias, que inovam a visão e a produção do sujeito numa
sociedade concreta.
As possibilidades formativas do Instituto Federal do Paraná se estendem
às diferentes esferas do setor produtivo. As especialidades do campo, da
indústria, do comércio, da prestação de serviços e da inovação tecnológica são
conjugadas para superar as carências de uma formação dissociada da cadeia
produtiva e impregnada pela ausência de um pensamento e atitudes críticos. Por
outro lado, conjuga também esforços didáticos, pedagógicos e técnicos para
convergir elementos de um processo formativo integrativo, não
departamentalizado, ou positivista.
Prospectar um processo educacional diferenciado é vislumbrar no IFPR uma
proposta educacional que garanta o diálogo do educando consigo mesmo, com os
outros, com a cultura construída, com o conhecimento científico desenvolvido e
com a sociedade produtiva. No diálogo consigo mesmo, a proposta está em
descobrir-se como sujeito histórico e responsável por seu meio. Na sua relação
com os outros, o foco é descobrir e construir o seu papel de agente, de um ser
político responsável pelo ideal comunitário. Na sua relação com a sociedade
produtiva, o que se espera desse humano em formação é a consciência e as
habilidades bem desenvolvidas para a competitividade profissional, pois produzir
é característica do ser humano. Portanto, trata-se de uma consciência da
importância de sua profissão e habilidades, as quais o tornam um profissional
diferenciado, mediante o domínio de tecnologias para a produção, com foco na
sustentabilidade e na responsabilidade socioambiental. Além disso, é estimulado
para se realizar pessoalmente na descoberta de si mesmo, pelo fazer-se crítico e
criativo, realizando a sua dimensão de diálogo com a cultura e o saber
científico.
O ideal de uma educação para a “produção da consciência verdadeira” não
se realiza apenas pela criação de uma escola. Sem dúvida que a instituição de um
espaço formativo é relevante para esse propósito. Entretanto, é na finalidade
pela qual essa escola é criada que se percebe realmente a sua condição. É obvio
que uma escola está sujeita aos desafios de seu contexto. Até os erros devem ser
vistos como um processo pedagógico. Contudo, a ousadia deve estimular seus
agentes formadores para o novo. Estes, não podem se reclusarem nas orientações
estritamente administrativas, bem características de uma sociedade administrada,
como a única medida da ação pedagógica e dos métodos de ensino. A dinâmica
formativa deve ter diante de si os sujeitos, pelos quais e para os quais a
escola existe, a sociedade em transformação e a postura reflexiva desse
contexto.
Uma escola, comprometida com seus agentes, aberta a métodos inovadores,
que motiva e valoriza a pesquisa, que vai até a comunidade e permite que a
comunidade seja inserida na produção do seu saber, dá um passo enorme para a
“produção de uma consciência verdadeira”. Este feito pode ser percebido em
diferentes projetos de extensão do IFPR, os quais se mostram como uma abertura
de diálogo educacional com a perspectiva crítica. Ressaltamos aqui, dentre
muitos já implantados nos diferentes campi, o projeto “IF-SOPHIA”, planejado e
executado pelo IFPR, Campus de Umuarama. Segundo seus idealizadores, o IF SOPHIA
é um projeto de pesquisa e extensão do Instituto Federal do Paraná - IFPR –
Campus Umuarama, que tem por finalidade promover formação continuada para
professores na área de Filosofia.
O objetivo do projeto prima pela aproximação entre diferentes agentes
formadores e estimula a reflexão crítica, ao enfocar a compreensão das questões:
ética, estética, política, trabalho, ciência e a tecnologia, mediante ciclo de
estudos, palestras e seminários. A sua primeira versão, realizada no ano de
2012, comprova a maturidade administrativa, didática e pedagógica do Instituto
Federal do Paraná.
Conclusão
Participar de um processo educacional, na qualidade de professor, é um
desafio enorme nos dias de hoje. É desafiador porque é um estímulo contínuo para
o diálogo com os diferentes, com a diversidade. É na percepção e formação dos
diferentes, para serem diferentes no meio social, que se ampliam
consideravelmente os horizontes de um projeto educacional. Ser diferente na
compreensão de mundo. Ser diferente no mundo do trabalho. Ser diferente na
participação política. Ser diferente na postura ética. Ser diferente nas
atitudes produtivas. Mas faz parte também desse projeto educacional o estímulo
permanente para que essas diferenças se convirjam para o sentido de pertença a
uma mesma sociedade.
A compreensão da condição de pertença é reveladora de uma “consciência
verdadeira”. Assim, a verdadeira consciência não se constrói instantaneamente,
ou exclusivamente dentro de horários pré-determinados de um espaço educacional.
É claro que estes momentos definidos são importantes no processo. Contudo,
trata-se de um processo que deve ser estimulado pela busca de uma vida toda. É
por isto que empregamos a expressão “construção”, elaborada pelo próprio
Adorno.
A “consciência verdadeira” se faz em meio ao movimento da história, na
aproximação dos opostos, no confronto promotor entre os gêneros, na criação do
novo, no processo produtivo, na busca pela reformulação desse processo, na busca
pelo significado do ser humano no mundo pelo que é e faz. Como o homem não é um
ser acabado, mas em constante fazer-se, a sua leitura de mundo também não pode
se fechar circunstancialmente. Ela deve ser formada para estar aberta
historicamente, para entender que o movimento do ser e do seu contexto no tempo
é produto do próprio homem. Estamos na história e fazemos a história, sendo
parte ativa e consciente dela.
Referências
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XVII, dezembro de 1996, pág. 388-411. In:
http://adorno.planetaclix.pt/tadorno.htm. Último acesso em 28/09/2013.
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1992.
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Escolhidos. 5ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
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Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
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SENADO FEDERAL. Constituição de República Federativa do Brasil. Brasília:
Editoração Senado, 2010.
SIBILIA, Paula. Redes ou Paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2012.
TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
ILUMINISMO, KANT E FILOSOFIA DA HISTÓRIA – UMA REFLEXÃO PARA O IF-SOPHIA COMO
PROJETO EDUCATIVO
Silvia Eliane de Oliveira Basso34
Introdução
Na academia deve-se dar a discussão e preocupação com o ser humano no
século XXI e seu lugar, refletindo profundamente sobre os modelos que temos
adotado para viver.
Assim discutir o meio ambiente, por exemplo, tornou-se vital, e então nos
voltamos a ecologia e nela descobrimos a necessidade de cuidar da casa, oikos, e
descobrimos mais, a necessidade de cuidar desse oikos que é o próprio ser
humano.
Estudos indicam que há um princípio de integração, que devemos buscar,
presente desde a Grécia Antiga com Heráclito, passando por Francisco de Assis e
Dante Alighieri e chegando a Spinosa e Heidegger. Sem encontrar eco nas
prioridades de consumo, conforto, liberdade e educação que propalamos, tais
conceitos ficaram restritos às concepções privativas e secretas de cada um,
manifestando-se, quase que exclusivamente nas religiões.
Enxergamos o IF SOPHIA35 como uma das oportunidades de nos voltarmos a
nós mesmos, de nos reencontrarmos nesse processo de reintegração de nossa posse.
Percebam que essa fala em que usamos termos íntimos da política, da ecologia, da
história, só é possível por meio da filosofia – que ela esteja, portanto, na
nossa cultura acadêmica, nas escolas e em nossa jornada diária permitindo-nos
não nos perdermos de nós mesmos.
34 Professora de História no Instituto Federal do Paraná, campus Umuarama. Graduada em História,
Especialista em História do Mundo Contemporâneo, Mestre em Educação.
35 O IF Sophia é um projeto de pesquisa e extensão do Instituto Federal do Paraná - IFPR –
campus Umuarama, que tem por finalidade promover formação continuada para professores na área de
filosofia. E também abre seu espaço à comunidade interessada em participar dos ciclos de estudos
e dos seminários. Tem por objetivo aproximar a Filosofia do público por meio de ciclo de estudos
e dos seminários. Enfocando a compreensão das seguintes questões: ética, estética, política,
trabalho, ciência e a tecnologia. (ciclo de estudos, palestras e seminários). Este artigo é
resultado de nossa co-participação com o Professor Vicente Estevãm Sandeski no terceiro ciclo do
IF Sophia em sua edição de 2012.
Iluminismo - contexto
O objetivo deste texto é o de apresentação do Iluminismo e de um de seus
mais produtivos personagens, Immanuel Kant, o filósofo. No entanto, dadas as
aproximações de nossos objetos de estudo, nos propomos a apresentação não do
movimento filosófico em si, mas de seu contexto, e não do filósofo e suas
elucubrações, mas sim do personagem histórico e suas contribuições teóricas na
explicação de nossas formas ou possibilidade de viver e organizar a vida.
De acordo com Eric Hobsbawn36 o mundo no século XVIII, e ele o descreve a
partir da década de 1780, na ebulição das ideias e debates iluministas e às
vésperas da Revolução, “era menor e maior que o nosso”. As distâncias eram
longas e mais difíceis de se percorrer no interior dos territórios do que de um
continente a outro, já que as navegações e os portos encurtavam caminhos.
A maioria da Europa ainda vivia em regime de servidão – 4 em cada 5
habitantes eram camponeses. As poucas cidades provincianas mantinham o monopólio
do mercado local, e o domínio da terra por nobres, ainda mantinha privilégios
políticos e sociais.
Havia poucos jornais em circulação e a população era majoritariamente
analfabeta.
Apesar do avanço galopante do comércio nas cidades portuárias e das
riquezas possibilitadas pelo grande produção e trabalho escravo nas Américas, o
industrial era apenas um gerente de trabalho especializado nas mãos do mercador
que detinha o poder sobre a matéria-prima.
É no seio dessas categorias de homens enriquecidos, enriquecendo-se ou
buscando soluções para os entraves sobre a produção e o comércio, que as ideias
de pensadores como Adam Smith, John Locke, Voltaire, Montesquieu e Kant, entre
outros ganham repercussão. Em todos esses pensadores, com ênfase maior na
economia, na política ou na ética, há o consenso de crítica ao Antigo Regime em
36 A Era das Revoluções (1789-1848). Neste livro Hobsbawn mostra como a Revolução Francesa e a
Revolução Industrial inglesa abriram o caminho para a renascença das ciências, da filosofia, da
religião e das artes; mas não conseguiram resolver os impasses criados pelas fortes contradições
sociais, que transformaram este período numa conturbada fase de movimentos revolucionários
(apresentação da editora ).
todas as suas acepções. Ou seja, a forma de governo, relações sociais,
organização da sociedade e mentalidade, eram questionadas por restringirem o
desenvolvimento do homem em sua capacidade e liberdade.
De maneira geral as práticas mercantilistas e absolutistas, o poder e as
verdades estabelecidas pela Igreja eram objetos de estudos e dissertações de
todos esses pensadores.
[...] o "iluminismo", a convicção no progresso do conhecimento
humano, na racionalidade, na riqueza e no controle sobre a
natureza - de que estava profundamente imbuído o século XVIII -
derivou sua força primordialmente do evidente progresso da
produção, do comércio e da racionalidade econômica e científica
que se acreditava estar associada a ambos. E seus maiores campeões
eram as classes economicamente mais progressistas, as que mais
diretamente se envolviam nos avanços tangíveis da época: os
círculos mercantis e os financistas e proprietários economicamente
iluminados, os administradores sociais e econômicos de espírito
científico, a classe média instruída, os fabricantes e os
empresários (HOBSBAWN, 1996,p.36-37).
As ideias propagam-se, mas a História nos mostra que isso não é o
suficiente para o estabelecimento de uma revolução. Para além dos discursos,
desejo, e debates, a concreta realidade é essa a que cria as condições e o
estopim que deflagram a mudança. Embora muitos governantes, os chamados Déspotas
Esclarecidos, reconhecessem e estabelecessem em seus programas “iluminados” a
necessidade da abolição da servidão, por exemplo, nenhum deles efetivamente
passou do papel, das intenções e do discurso para a efetivação. Seria preciso
esperar que os reais interessados, os intimamente afetados pela mudança,
tivessem nela presença determinante.
O cenário seria a França, a mais poderosa monarquia da Europa, modelo de
absolutismo sob as mãos da Família dos Bourbons desde o século XVII, tendo tido
seu auge com Luís XIV, o Rei Sol. As constantes diferenças entre receita e
despesas foram fazendo dos cofres públicos franceses um buraco sem fundo que
carregava o histórico, desde de Luís XVI, de abrigar e manter centenas de nobres
no Palácio de Versalhes, regando-os a bebidas e requintes caros. Acrescida tal
situação, de guerras externas expansionistas desde meados do século XVIII, como
a Guerra dos Sete Anos e Independência dos EUA.
Iluminismo - significância
A sociedade, construindo sua capacidade de governar a si própria, por
meio da razão, sem a mediação de qualquer instituição ou poder estabelecido,
como era o caso da Igreja Católica, onde se verificou que a razão, preconizada
pelos renascentistas, é tornada lei pelos iluministas.
No processo histórico como no educacional a negação é uma forma de
construção. Ao negar a forma de organização medieval, a modernidade pode ser
construída, como o filho nega o pai, o aluno nega o professor. Embora ele negue,
ele se constrói daquela negação. Isso é necessário para reconhecer que as novas
formas de organização política e social surgem a partir de uma existente. Nada
surge do nada. É preciso fazer a negação do passado para a construção do novo,
mas a construção do novo pressupõe a existência de algo.
Assim a modernidade nasce da medievalidade e bebe de toda a sua produção,
o que desmistifica a Idade Média como Idade das Trevas, ou mil anos de escuridão
na Europa. Talvez isso se deva ao fato que o conhecimento produzido durante a
medievalidade não era disseminado, ou seja, não se acreditava, como se acredita
no iluminismo, que o conhecimento devesse chegar a todos.
Não é possível separar as várias áreas do conhecimento em que o
iluminismo vai demonstrando a eminência de uma nova forma de organização. Todo
assunto, todo tema, todas as áreas de atuação do ser humano são objetos de
estudo que precisam ser iluminados, esclarecidos, explicados a fim de que os
homens guiados pela razão sejam capazes de realizar suas potencialidades.
Se olharmos do ponto de vista da economia, é possível dizer que é nas
alterações do modo de produzir, nas relações sociais de produção e no choque das
classes antagônicas que as compõem, que se deram as modificações, que
refletiram-se então em mudanças na forma de governar e das relações sociais, e
esse é o viés marxista.
É possível ampliar essa abordagem e dizer que as transformações se dão
concomitantemente em várias áreas e que como humanos somos o emaranhado dessas
informações. Não somos o tempo todo política, ou economia, ou religião.
Dependendo da região e do contexto sócio-histórico apresentado, o
iluminismo ganhava caráter especial. As transformações na Inglaterra, por
exemplo, estão ligadas ao renascimento comercial e urbano, que ao lado do
renascimento científico e cultural, trazem junto com as mercadorias, ideias e
valores. O comércio, incipiente do período medieval, torna-se internacional na
conquista dos mares e das terras - África, Ásia e América, e a Inglaterra, que
acumula, inclusive pela atividade corsária, terá um Iluminismo econômico.
Os homens enriquecidos por esse comércio internacional, financiadores da
marinha britânica, exigirão voz no parlamento, embora não tenham nobreza de
berço. É o poderio econômico que abriria espaço para outras ideias e formas de
organização. E a Inglaterra pioneiramente reforma sua monarquia permitindo a
participação e a representatividade dessa nova categoria – a burguesia.
É dessa forma, que temos na Inglaterra o filósofo Adam Smith, que pensa
no valor das coisas, como elas valem, como as valoramos e valorizamos e como
isso muda a nossa forma de viver. Ao dizer, por exemplo, que o padeiro produz o
pão todos os dias pensando não em nós, mas em seu próprio benefício, e assim
estende o benefício até nós e provoca o progresso geral37, Smith enuncia uma
“crença” iluminista que se aplica também ao conhecimento, de que aquilo que é
pensado, defendido e propalado por uma determinada categoria, espalhará
benefícios a todos.
Se na Inglaterra o cunho é econômico, a França – referencial de
monarquia na Europa, como modelo absolutista imortalizado em Luís XVI – “O
estado sou eu”, o movimento iluminista, o pensar uma nova sociedade, terá um
cunho político. O questionamento da validade do poder acumulado na mão de um
monarca e de seu séquito. Se diante de um novo mundo, que não é mais retangular,
que conhece outras civilizações, que acresce outras culturas que disputa espaço
com outros mercados, a forma de governo que centraliza decisões é ou não a mais
adequada.
Nós sabemos que não é, mas nós somos os homens do mundo contemporâneo
gerado pela revolução, mas para os homens que viviam aquele contexto, isso
precisava ser pensado, discutido. Não é natural, é histórico. Daí a figura de
37 Esta passagem está no texto Investigação Sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações
em seu livro I, capítulo I.
Montesquieu, ele não é burguês, é nobre, mas ao pensar a sociedade e as
transformações do mundo, ele diz que é preciso que o poder esteja dividido. É
preciso que existam aqueles que vão legislar, aqueles que executem a partir
dessa legislação e aqueles que julguem os problemas que vão surgir, também a
partir dessa legislação, dividindo o poder em legislativo, executivo e
judiciário.
Da França, esse movimento de pensar a política, chega à América e se
efetiva lá antes do que na Europa. Para os colonos o iluminismo é filosofia
libertária por conta do contexto vivido pelos americanos. Seu problema maior era
libertar-se do opressor e o opressor é a metrópole europeia.
Colonos ingleses radicados na América do Norte fazem a revolução e
escrevem sua Declaração de Independência pautados nessas ideias de divisão dos
poderes e de participação das pessoas, independente de sua condição de
nascimento, sendo o primeiro documento dessa nossa forma contemporânea de nos
organizarmos.
São documentos que representam a certidão de nascimento do Estado
Contemporâneo, pautado na ideia do progresso para todas as pessoas, entendido
esse como o esclarecimento, o uso da razão, o conforto, o progresso econômico. E
a promessa desse período será de que todos vão progredir e viver numa sociedade
em que o homem liberte-se, das amarras do trabalho forçado por exemplo, daí a
luta contra a escravidão ter origem nos mesmos movimentos do esclarecimento.
Na Alemanha, donde sai um outro grande expoente do movimento iluminista,
objeto de estudo neste ciclo (IF Sophia), a discussão, embora como já foi dito,
não possa separar-se das várias áreas, não está centralizada nem no campo da
economia como na Inglaterra, nem no campo da política como na França. Mas,
obedecendo ao contexto na Alemanha, a discussão está centralizada no campo da
moral, procurando fazer uma nova revolução, que já havia se iniciado também no
século XVI com a Reforma Protestante encabeçada por Martinho Lutero, a partir da
premissa de que os homens pudessem desenvolver sua fé por meio dos estudos, da
análise direta dos textos bíblicos traduzidos do latim para o alemão.
Immanuel Kant vai propor que a libertação tem que dar um passo além: que
não haja, no estabelecimento da moralidade humana, o viés da interpretação
religiosa. É preciso ir além da interpretação religiosa no contexto político da
Alemanha, que ainda não é Alemanha, é Prússia, dirigida por Frederico II38.
Embora o iluminismo seja esse amplo processo de discussão nas nossas
várias formas de atuação, nas relações econômicas, políticas, e sociais, Kant
foi proibido de escrever sobre religião, pelo próprio Frederico II da Prússia. O
monarca tentava separar a religião do Estado. Kant obedece o imperador e só
divulga seus textos sobre religião após sua morte. Apesar de defender a
liberdade, Kant, como outros filósofos não estão para a derrubada da monarquia.
Defendendo governos que sejam iluminados pela razão, eles entendem que o
governante deve-se deixar iluminar e o povo deve respeitar e obedecer o
governante. Kant, como a maioria dos iluministas, é um libertário, mas não um
revolucionário.
Não é propriamente correto chamarmos o "iluminismo" de uma
ideologia da classe média*, embora houvesse muitos iluministas - e
foram eles os politicamente decisivos – que assumiram como
verdadeira a proposição de que a sociedade livre seria uma
sociedade capitalista. Em teoria seu objetivo era libertar todos
os seres humanos. Todas as ideologias humanistas, racionalistas e
progressistas estão implícitas nele, e de fato surgiram dele.
Embora na prática os líderes da emancipação exigida pelo
iluminismo fossem provavelmente membros dos escalões médios da
sociedade, embora os novos homens racionais o fossem por
habilidade e mérito e não por nascimento, e embora a ordem social
que surgiria de suas atividades tenha sido uma ordem capitalista e
"burguesa". É mais correto chamarmos o "iluminismo" de ideologia
revolucionária, apesar da cautela e moderação política de muitos
de seus expoentes continentais, a maioria dos quais - até a década
de 1780 - depositava sua fé no despotismo esclarecido (HOBSBAWN,
1996, p.38).
Esclarecimento e fio da história
Em meio à tempestade de ideias, debates, transformações epistemológicas
nos vários campos do pensamento, um jornal alemão lança em uma edição de
dezembro de 1783 uma pergunta ao público: Was ist Aufklärung? - Que é
38 Déspota Esclarecido, como reflexo do movimento iluminista dentro da política, Frederico II era um desses monarcas que apreciam a discussão filosófica, que procuram trazer para dentro de
sua atuação política algumas das ideias iluministas. Frederico II trocava cartas com o
iluminista Voltaire, uma das almas dos conceitos políticas iluministas, acerca de todos os
assuntos, até que Voltaire rompeu as discussões por conta do expansionismo prussiano.
esclarecimento?
Das várias respostas recebidas uma nos é especialmente importante. É a
resposta dada por ninguém menos que Immanuel Kant. O jornal a publica no mesmo
dezembro e inicia-se assim:
Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade,
da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de
fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O
homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se
encontra na falta de entendimento, mas na falta de coragem de
servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem a
coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do
esclarecimento [Aufklärung] (KANT, 1985, p.100).
Esclarecimento nos remete imediatamente à responsabilidade, talvez mais
marcante que Iluminação, termo que pode estar ligado a uma benesse espiritual.
Aquele que se esclarece tomou alguma atitude para isto, e é essa a conclamação
feita por Kant. Podemos dizer, portanto, que em Kant temos a responsabilidade de
aprender, o que nos remete à escola e a nossa identidade acadêmica.
Esclarecer leva à autonomia, à liberdade, ao fim da tutela e da
dependência, tarefas que cotidianamente tem sido imputadas à escola e seus
profissionais, que contraditoriamente (e não por acaso) carecem de condições
concretas e de acesso real ao esclarecimento para esclarecer-se e colaborar no
esclarecimento do outro.
Se na Alemanha Iluminismo é esclarecimento, e se para Kant, este
esclarecimento é autonomia, fim da tutela, por que ele defende o Estado? Por que
diz que é preciso que se obedeça ao monarca? Kant e muitos outros iluministas
escrevem aos governantes na expectativa de que os mesmos se esclareçam e assim
governem.
Ao buscar um fio condutor para a história Kant apresenta um plano oculto
em que as sociedades são levadas ao estabelecimento de uma perfeita constituição
política. Diz-nos que ainda não é possível enxergar-se esse fio condutor do
ponto onde se está, já que faltaria ainda muito para se completar esse ciclo,
mas que é possível saber que esse ciclo existe.
Kant aponta indícios desse plano, tais como: a fragilidade das relações
entre os Estados - o que os leva a respeitar a cultura interna de seus povos, o
constante avanço do respeito à liberdade civil - principalmente nas atividades
comerciais, que se não levada a efeito pode enfraquecer os Estados, e o próprio
Iluminismo (Aufklarüng) - que se bem entendido deverá ter influência sobre os
princípios de governo. Crê, que destarte a falta de investimentos dos governos
em ensino público, que as iniciativas particulares pelo mesmo, ajudarão e que
embora invistam em guerra, os abalos que a destruição de um país pode provocar
na indústria de todos os outros gera entre eles a necessidade de arbitrar,
evitando conflitos, e que isso levará, futuramente a um Estado cosmopolita
universal.
Pode-se considerar a história da espécie humana, em seu conjunto,
como a realização de um plano oculto da natureza para estabelecer
uma constituição política (Staatsverfassung) perfeita
interiormente e, quanto a este fim, também exteriormente perfeita,
como o único estado no qual a natureza pode desenvolver plenamente
na humanidade, todas as suas disposições (KANT, 2001, p.17).
Vivendo no contexto dos estados germânicos, liderados pela Prússia que só
se tornariam a Alemanha no século XIX, com marcas bastante fortes da organização
feudalista no campo, com o modelo do estado francês absolutista estabelecido no
século XV, portanto há pouco mais de 200 anos antes de sua época, Kant talvez
enxergue um Estado que não realizou ainda sua culminância, mas ainda pode
realizar. O Estado moderno é recente e sob os auspícios das ideias
esclarecedoras e da razão, pode tornar-se o governo ideal, a concretização do
plano oculto.
Assim, a preocupação de Kant é libertar as pessoas principalmente do
domínio da religião, que as mantém na menoridade.
Equivocava-se Kant? Provavelmente, como se equivoca qualquer um que tente
vê-lo como um profeta da modernidade. Não lhe era possível prever os
acontecimentos, e talvez ele tenha sido tentado a isso quando buscou descobrir o
fio condutor da história.
Está no indivíduo a mudança, a melhora, o progresso, a realização, toda a
responsabilidade enfim. Mas e a sociedade? E as condições para que este
indivíduo que quer, que faz, mas que se vê limitado por amarras que por vezes
nem podem ser vistas e identificadas para serem abolidas, os poderes com os
quais terá que lutar? Kant não fala sobre isso. Há limites em suas elucubrações.
O sistema filosófico de Kant pertence à tradição racionalista da
burguesia alemã, que enfatiza a liberdade e o individualismo
(valores de pensamento burguês) e enfatiza a possibilidade de
existirem condições a priori do pensamento humano e da ação moral
(valores da filosofia alemã) uma tradição cujos limites a obra de
Kant começa a indicar (ANDERY,2007, p. 342).
Cremos que suas maiores contribuições não estão aí, mas em sua
insistência de que assumamos corajosamente nossa responsabilidade por sairmos da
minoridade e entrarmos na maioridade. Não imputemos a ele a responsabilidade de
conhecer nosso contexto, de enxergarmos e prepararmos nossa realidade concreta.
Se precisamos como educadores ouvir dele alguma coisa, e cremos que sim, basta
apurar um pouco os ouvidos e escutar: Iluminem-se! Esclareçam-se! Sapere aude!
REFERÊNCIAS
ANDERY, Maria Amália P. et al. Para compreender a ciência: uma perspectiva
histórica. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
HOBSBAWN. Eric J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. São Paulo: Paz e
Terra, 1996.
NODARI, Paulo Cesar; SAUGO, Fernando. Esclarecimento, educação e autonomia em
Kant. Disponível em
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/viewFile/892/615.
Acesso em: 11 out 2012.
KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento? In: Textos Seletos.
Petrópolis: Vozes, 1985.
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Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
SMITH, Adam. Investigação Sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações.
São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores).
A razão instrumental e a razão crítica em Horkheimer
Por: José Provetti Junior39
Max Horkheimer nasceu na cidade de Estugarda, na Alemanha, em quatorze de
fevereiro de 1895. Descendente de judeus alemães que viviam da indústria teve
uma educação que objetivava dar continuidade aos negócios paternos; no entanto,
mostrou-se propenso aos estudos acadêmicos e graduou-se em filosofia e mais
tarde em sociologia.
Afirma-se que dentre sua formação eclética destaca-se a influência da
filosofia de Arthur Schopenhauer cuja admiração de Horkheimer o levava a ter um
retrato de Schopenhauer em seu escritório.
Outra importante influência, embora considerada de maneira diagonal, é a
proveniente do pensamento de Karl Marx, em especial do marxismo, embora pouco se
veja em suas obras, referência a Marx.
Em 1923 através da influência de Friedrich Pollock, sociólogo e
economista alemão especializado em marxismo, na época diretor do Instituto de
Pesquisa Social em Frankfurt, na Alemanha, Horkheimer associou-se à instituição,
sendo mais tarde seu diretor, em torno de 1931 (REALE & ANTISERI, 2003, p. 837).
Com a ascensão do nazismo na Alemanha, ideologia de fundamentação
política nacional-socialista, assimilada pelo então Partido Nazista, formulada
por Adolf Hitler e adotada pelo governo alemão a partir de 1933, é que
39 Mestre em Cognição e Linguagem pela UENF, mestrando em Filosofia Moderna e Contemporânea pela
UNIOESTE, especialista em História, Arte e Cultura pela UEPG, especialista em Saúde para
Professores dos Ensinos Fundamental e Médio pela UFPR, graduado e licenciado em Filosofia pela
UERJ, graduando em Pedagogia pela UEM, professor e pesquisador do Núcleo de Estudos da
Antiguidade – NEA – UERJ, pesquisador do Grupo de Estudos Karl Popper – UNIOESTE, membro da
Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos – SBEC, parecerista da Revista Espaço Acadêmico –
UEM e Acta Scientiorum – Ciências Humanas e Sociais - UEM, autor de artigos em periódicos
nacionais, autor do livro “A alma na Hélade: a origem da subjetividade Ocidental” (2011), atua
como professor de Filosofia no Instituto Federal do Paraná – IFPR, campus de Assis
Chateaubriand, lecionando as disciplinas de Sociologia, Prática Profissional Orientada e Oficina
de Planejamento, Execução e Avaliação de Projetos para os cursos técnicos em Orientação
Comunitária e Informática, é membro da Comissão Permanente de Projetos – CPP, vinculado a Pró-
reitoria de Extensão, Pesquisa e Inovação – PROEPI, vice-coordenador do curso técnico de
Orientação Comunitária, no eixo tecnológico de Desenvolvimento Educacional e Social e Presidente
do Comitê de Pesquisa e Extensão – COPE – IFPR – Assis Chateaubriand. Contato através do e-
mail [email protected] ou sítio: http://pensamento.mentalidades.zip.net/
Hormkheimer toma uma perspectiva revolucionária e crítica. Segundo Reale &
Antiseri (Idem, p. 846), a partir de 1939 Horkheimer inicia sua atividade
reflexiva em torno da identificação do fascismo com o capitalismo.
Tão logo eclodiram as hostilidades entre a Alemanha e a Polônia em seis
de outubro de 1939, Horkheimer e os demais membros da Escola de Frankfurt
iniciaram uma emigração, inicialmente para Genebra, na Suíça, em seguida para
Paris, na França e finalmente para a cidade de Nova York, nos Estados Unidos da
América, de onde levaram a efeito as atividades durante o conflito.
Nesse texto tratar-se-á da questão da razão instrumental e da razão
crítica em Horkheimer, contudo, antes de mais nada, enquanto texto filosófico
desenvolver-se-á junto ao leitor o exercício reflexivo para que não se caia na
superficialidade jornalística em torno do tema.
Portando, a pergunta para que se inicie a discussão e se venha a
compreender exatamente do que trata Horkheimer é: que é a razão?
Ora, em um rápido apanhado, dado o supetão da proposta, pensa-se no uso
cotidiano concedido ao termo, a saber: “fulano ou beltrano está (ou tem)
razão!” Isto é, nesse sentido, quer-se dizer que a pessoa tem sobre alguma
coisa a verdade ou que está correta.
Outra aplicação do senso comum quanto ao termo “razão” diz respeito a
sua aplicação matemática, ou seja, quando alguém se preocupa em investigar a
“razão entre certos números” querendo através deste processo descobrir a
relação existente entre duas ou mais grandezas matemáticas.
No entanto, já que se trata de uma questão filosófica, faz-se necessária
uma investigação no campo e, portanto, segundo Japiassu & Marcondes (1993, p.
209-210) existem seis sentidos nos quais se pode compreender o termo “razão”.
Esclarecem que a palavra, isto é, “razão” não nos remete à cultura helênica,
criadora da razão enquanto λογοσ (logos) e que neste sentido, segundo Isidro
Pereira (1990, p. 350) significa:
(...) palavra, dito, revelação divina, resposta de um oráculo,
máxima, sentença, exemplo, decisão, resolução, condição, promessa,
pretexto, argumento, ordem, menção, notícia que corre,
conversação, relato, matéria de estudo ou de conversação, razão,
inteligência, senso, motivo, juízo, opinião, estima, valor que se
dá a alguma coisa, justificação, explicação, a razão divina
Como atestam Japiassu & Marcondes (1993, p. 209-210) a termo razão
utilizado por nós, contemporaneamente é de origem latina, isto é, vem do termo
ratio que por sua vez, em Latim, segundo Faria (1967, p. 843) significa:
(...) Sentido próprio: Cálculo, conta, objeto de cálculo, livro de
contas, registro (…) (César, Bellum Gallicum, 7, 71, 4); (Cícero,
Verrinas, 5, 71; 5, 147). Sentido figurado: cálculo, consideração,
interesse, empenho, causa, partido (Cícero, Verrinas, 5, 38). Dai:
faculdade de calcular, razão, inteligência, juízo, bom senso
(Cícero, De Finibus, 1, 32). Método, plano, disposição, sistema,
regra, ordem, doutrina, opinião, pensamento, ponto de vista
(Cícero, Pompei, 1). Argumentação, razão determinante, causa,
motivo, prova, (em sentido filosófico) (Cícero, De Natura Deorum,
2, 22). Modo, maneira, gênero, espécie, natureza (César, Bellum
Gallicum, 2, 19, 1). Relação, trato, comércio, negócios (sentido
genérico) (Cícero, Epistolae ad Atticum, 2, 5, 2).
Nos seis sentidos mencionados acima por Japiassu & Marcondes, vê-se: 1)
segundo Descartes; 2) formalismo lógico; 3) segundo Leibniz; 4) segundo o
determinismo; 5) segundo Kant, dividindo-se em razão teórica e 6) razão prática.
Antes, porém, de adentrar-se às alusões estabelecidas por Japiassu &
Marcondes, deve-se retornar às definições de Isidro Pereira (1990) e Faria
(1967) e refletir-se sobre elas, pois sugerem algumas considerações que de
futuro serão melhor exploradas neste texto.
Em se considerando as definições, pretende-se chamar a atenção do leitor
para a contextualização histórica e cultural relativas às sociedades helênica e
latina, pois os usos que o termo razão recebe são reveladores para os intentos
de Horkheimer em suas considerações.
Dado que os gregos são os criadores da filosofia cujos registros remontam
ao término do século VII, início do século VI a. C. (PROVETTI JR, 2011), em
especial com as reflexões de Tales de Mileto, na Jônia (KIRK; RAVEN & SCHOFIELD,
1994, p. 73-98; POPPER, 2002, p. 7-32), sobre a cosmologia e as bases de
funcionamento da phýsis (natureza) (Cornford, 1989), percebe-se que a razão teve
sua origem em processos sociais e culturais decorrentes da criação da polis
(cidade-estado), a partir do século VIII a. C. (VERNANT, 1998) e acentuadas,
mais tarde, com a reintrodução da escrita e as mudanças mentais decorrentes
dessa tecnologia (HAVELOCK, 1996; PROVETTI JR, 2011), de maneira que o
pensamento racional emerge dessas mudanças sobre a maneira tradicional dos
helênicos se expressarem, a saber: a oralidade, base do exercício poético
inspirado, levado a efeito pelos rapsodos, como se vê na Ilíada (2008) e
Odisseia (2006) de Homero.
Nesse sentido, os gregos se exercitaram na razão a partir de uma
experiência muito distinta da atual, passados mais de dois mil e quatrocentos
anos que em si, se relacionava, conforme se vê na definição do termo por Isidro
Pereira (1990, p. 350) numa relação significante muito próxima a do mito,
enquanto palavra de expressão sacralizada, indicando a relação cultural que era
vivenciada pelos helênicos na criação da razão, a saber: uma palavra eficiente,
sacralizada, instituída em práticas mentais decorrentes das tecnologias da
oralidade, isto é, fundadas na imagética reforçada pelo canto e dança poéticos e
no poder da Memória (Mnemosýne), a deusa mãe das Musas (Musai), divindades que
inspiravam os poetas a passarem e reeditarem as estórias da tribo, importantes a
sua sobrevivência. (PROVETTI JR, 2009).
O grego comum, o homem do povo tinha uma experiência de phýsis que se
distinguia da nossa por se tratar de uma vivência exclusivamente objetivista,
isto é, não possuíam o conhecimento nem a consciência de que neles havia algo
que mais tarde seria chamado de “subjetividade” ou “interioridade” (PROVETTI
JR, 2011; MONDOLFO, 1970) e, portanto, sua relação com a natureza era a de um
Eu aberto, um ser que tem a possibilidade de ser possuído pelas forças naturais
que em si e por si são divinas, pois os deuses gregos são forças naturais e
políticas simultaneamente.
Nesse sentido, a razão não era um atributo do homem, compreendida como
alguma espécie de instrumento, mas ao contrário, ela nem ao homem cabia, pois o
helênico não se via como um algo que pensa a si, seus estados mentais,
emocionais e alguma coisa como os outros e a natureza, enquanto instâncias
diferenciadas, individualizadas, quiçá personalizadas inexistiam.
Tanto é que o famoso dito de Sócrates: - “Homem, conhece-te a ti mesmo”
segundo Mondolfo (Ibidem) não se remetia a um processo de autoconhecimento,
enquanto exame de consciência e emoções inerentes às vivências experienciadas
pelo sujeito do conhecimento. Tudo isso era inexistente para os helênicos.
Portanto, quando se remetiam ao uso do (logos) falavam de algo que era inerente
à natureza e enquanto tal, a eles próprios, pois os homens eram seres
profundamente integrados aos movimentos da phýsis em sua ordem (kosmos).
Logo, a razão, na cultura helênica denunciava a necessidade de
“leitura” da natureza, por parte do homem, por sua vez, ser tão natural quanto
à natureza e enquanto tal, mesmo sem desconfiar de que em si essa natureza
abria-se de maneira infinitamente profunda e particularizante, pode-se afirmar
que a filosofia, nos inícios da criação e experimentação racional tinha como
finalidade apropriar-se do logos para em entendê-lo, compreender a necessidade
de seguir-lhes os divinos impulsos naturais.
Já em Faria (1967, p. 843), percebe-se uma mudança significativa do
sentido próprio do termo ratio em relação a logos, pois se trata de outra
cultura, de outra vivência, a saber, da romana, que através de suas
movimentações políticas, militares e sociais se apropriou da filosofia helênica
e de sua racionalidade de maneira particularmente distinta das motivações que
levaram os gregos a criarem e viverem a razão como acima descrita.
É interessante observar que Faria (Ibidem) inicia sua conceituação
citando César e Cícero, enquanto “sentido próprio” do termo ratio como “(...)
cálculo, conta, objeto de cálculo, livro de contas, registro (...)”.
Apenas nos sentidos figurado e genérico é que surge a razão conceituada
como “(...) consideração, interesse, faculdade de calcular, inteligência,
juízo, bom senso, opinião, argumentação (...)” dentre outros correlatos.
Ora, é notória a distinção de sentidos da ideia de razão, matéria e modo
operacional da filosofia e, após os séculos XIV-XV d. C. e, acentuadamente após
o século XIX d. C., o modo através do qual a Ciência viria a se estabelecer
enquanto projeto não apenas gnosiológico, mas psicológico, educacional, social e
político, em especial, no Ocidente.
Não é curioso tal direcionamento distinto do original grego, embora se
afirme uma linha de continuidade do exercício racional filosófico dos gregos aos
romanos, a despeito de algumas adaptações? Por enquanto fiquemos com esta
questão decorrente da análise lexical da razão e voltemos às definições
filosóficas do conceito.
Para Japiassu & Marcondes (1993, p. 209-210) a primeira acepção
filosófica aplicada ao termo remete-nos ao pensador francês René Descartes, que
afirmava que a razão é: “(...) Faculdade de julgar que caracteriza o ser
humano. 'A capacidade de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é o
que propriamente se denomina de bom senso ou razão, é naturalmente igual em
todos os homens' (Discurso do Método, 1)”.
Percebe-se que Descartes atribui à razão o status de “faculdade humana
natural”, isto é, inerente a qualquer humano e relaciona-se ao exercício do
juízo, isto é, à capacidade de distinguir o verdadeiro do falso; em outras
palavras, a razão cartesiana, parte integrante do processo científico iluminista
do século XVII d. C., que integrou o método científico utilizado até o presente,
vincula-se necessariamente a um afastamento do homem da visão original dos
helênicos e, interessante observar, embora se fundamentasse em parte sobre a
visão romana nela encontra-se duas diferenciações radicais sobre o projeto de
racionalidade grega original: a) a visão de relacionamento do homem com a
natureza e b) a predominância de uma auto percepção cognitiva em que se assinala
a existência de uma interioridade que em si consolida-se enquanto “substância
pensante” res cogitans em oposição à própria corporeidade humana e a partir
deste, do mundo exterior à alma, a saber, a res extensa.
Note-se que a questão do posicionamento do homem em relação à natureza
constitui influências culturais decorrentes ainda da Antiguidade, no período
romano, a saber, as influências judaico-cristã (GILSON, 1995, p. 1-203, 423-453
e 454-494; MANN, 2012; BÍBLIA, 2001) e, posteriormente, já na Idade Média, da
cultura muçulmana (MOHAMED, 2001) que em se apropriando da Filosofia helênica
por diversas fontes adaptou-a à fundamentação de suas tradições religiosas e
segundo essas, o homem é a imagem e semelhança de Jeová (Deus ou Halah) e
enquanto elas, toda a criação foi-lhe posta à disposição enquanto “coroa da
criação” para seu usufruto. Portanto, é em especial com o cristianismo em seus
inícios, que se instaura a percepção parcial da interioridade, na medida em que
os evangelhos apregoavam a existência do Reino de Deus no coração de cada crente
e nessa medida, indiferentemente de sua posição social, status financeiro, etc.,
a salvação se torna pessoal, individual conforme atesta Mondolfo (1970) e nesse
sentido, posteriormente, já Santo Agostinho (“Confissões”, 1980) instaura o
auto inquérito enquanto meio de conhecer-se e modificar-se para a glória do
Altíssimo.
Logo, o conceito de razão para Descartes enunciado por Japiassu &
Marcondes (1993, p. 209) parte de uma visão totalmente distinta da grega e mesmo
da romana, em certa medida, uma visão subjetivista e em oposição à natureza já
instaurado o afastamento entre o chamado “sujeito e objeto de conhecimento”.
Na segunda acepção, que Japiassu & Marcondes (Ibidem) assinalam como
“formal”, vê-se:
(...) a razão é a capacidade de, partindo de certos princípios a
priori, isto é, estabelecidos independentemente da experiência,
estabelecer determinadas relações constantes entre as coisas,
permitindo assim chegar à verdade, ou demonstrar, justificar, uma
hipótese ou uma afirmação qualquer. Nesse sentido, a razão é
discursiva, ou seja, articula conceitos e proposições para deles
extrair conclusões de acordo com princípios lógicos. (...).
Nessa conceituação de razão, observa-se novamente a razão no sentido de
instrumento linguístico humano que parte da análise lógico-conceitual das
essências apreensíveis pelo pensamento e logicamente avaliadas de maneira
indutiva, mesmo a despeito da experiência e tendo como consequência operacional
a elaboração de certa descrição conceitual que em si, nada mais é do que a
influência da noção aristotélico-baconiana sobre o método de se fazer Ciência, a
saber, através do método indutivo, conforme assinala Popper (2002, p. 1-5).
Portanto, mais uma vez, se demonstra o afastamento radical da vivência original
da razão tal qual fora projetada e vivenciada pelos helênicos, embora
Aristóteles fosse um participante do mundo grego, na verdade pelos atenienses
pelo menos era considerado “bárbaro helenizado” e enquanto tal, tinha uma
vivência já distinta da original, embora tenha vivido em imersão cultural em
Atenas durante muitos anos. Sua lógica trata de um projeto enciclopedista e
dicionarista através do qual imaginou através do método indutivo frenar os
problemas decorrentes da catástrofe da linguagem gerada pelos sofistas.
(PROVETTI JR, 2009).
A terceira acepção de razão para Japiassu & Marcondes (1993, p. 209)
remete-nos ao filósofo Leibniz em sua Teodicéia:
(...) identifica-se ainda com a luz natural, ou o conhecimento de
que o homem é capaz de naturalmente, por oposição à fé e à
revelação. 'A razão é o encadeamento de verdades; mais
particularmente, ao ser comparado com a fé, das verdades que podem
ser atingidas pelo espírito humano naturalmente sem o auxílio das
luzes da fé'.
Novamente se percebe nessa definição as questões já indicadas na
definição de Descartes, porém ressalta-se na definição de Leibniz a razão no
papel de “luz natural” numa evidente menção às teses Iluministas que apostaram
na razão enquanto capacidade inerente à Humanidade e que através de seu cultivo
afastar-se-iam as sombras da fé enquanto considerada superstição que travava o
avanço do homem, tornando-o sempre um projeto para a vida do além e não para o
fulgor da existência humana, demasiadamente humana do homem enquanto algo
natural.
Note-se que em Leibniz sob o aspecto filosófico do Iluminismo, atrelado a
este está o Humanismo, tão caro aos séculos XVI e XVII d. C. e que pela época
das Luzes instituiu-se enquanto processo liberador do homem das teias
supersticiosas da religião e seus conflitos pelas almas humanas no pós-morte,
assinalando ainda, o aspecto do ceticismo inerente ao período.
Portanto, à razão humana, através da luz natural, pode-se atingir o
conhecimento possível ao homem e enquanto tal, faz-se mister desprender-se das
luzes da fé para que se amadureça o entendimento. A razão, nesse caso, mantém-se
como instrumento inerente ao homem (alma humana) já então considerada
explicitamente como um elemento à parte da natureza e, sobretudo, que deve se
utilizar da razão para conhecê-la e dominá-la, seguindo o princípio judaico-
cirstão-muçulmano.
Outra definição de Japiassu & Marcondes (Ibidem) arrolada a Leibniz é a
que segue:
Razão suficiente. (…) o princípio da razão suficiente estabelece
que para todo o fato que ocorre há uma razão pela qual esse fato
ocorre, e ocorre de determinada maneira e não de outra. (...).
Ora, partindo-se das explicações acima descritas sobre a razão em Leibniz
acrescenta-se a questão da chamada “razão suficiente”, isto é, em última
análise, o princípio de funcionamento da razão.
Segundo tal princípio, qualquer coisa que ocorra está de certa forma
regido por alguma razão, no sentido de “motivo” e essa motivação é necessária,
isto é, não haveria de ser outra além da que foi. Portanto, segundo essa
definição a razão seria a descrição da causa inerente ao fenômeno dado de tal
maneira que seria sua causa motriz, possibilitando assim, por dedução, remontar
as particularidades dos efeitos para se identificar sua(s) causa(s). Vê-se nisso
uma forte influência do pensamento empirista e experimental da Ciência, pois se
infere que um fenômeno seja da ordem do empírico e não do mental ou lógico.
As duas últimas definições de razão citadas por Japiassu & Marcondes
(Idem, p. 209-210) se relacionam à filosofia de Kant, a saber:
Razão teórica ou especulativa: (…) trata-se da faculdade dos
princípios a priori, que em sua função crítica tem o papel de
estabelecer as condições de possibilidade do conhecimento.
'Distinguimos a razão do entendimento, definindo-a como a
faculdade dos princípios (…). Se o entendimento pode ser definido
como a faculdade de dar aos fenômenos unidade por meio de regras,
a razão é a faculdade de dar unidade às regras do entendimento sob
forma de princípios'. (Crítica da razão pura).
Razão prática: a razão tal qual aplicada no campo da ação humana,
permitindo que o homem tome suas decisões ao agir baseado em
princípios, para Kant, é a razão prática que responde à pergunta
'que devo fazer?', estabelecendo os princípios morais que regem a
ação humana. (...).
Para Kant, filósofo dos séculos XVIII-XIX d. C., se verifica que em sua
epistemologia, a razão assume a total formalidade no que se refere à razão
teórica ou especulativa, tornando-se uma função da mente humana com o objetivo
de estabelecer as relações e condições de possibilidade para o conhecimento.
Note-se ainda, que Kant distingue a razão teórica do entendimento, isto é, do
intelecto e de sua capacidade de compreender e pensar ideias gerais.
Nesse sentido, portanto, para Kant a razão teórica se constitui na
capacidade humana de “dar unidade às regras do entendimento sob a forma de
princípios” (JAPIASSU & MARCONTES, 1993, p. 209), ou seja, seria alguma espécie
de instrumento mental inerente ao ser humano através do qual, dado a existência
do entendimento enquanto capacidade mental de compreender e pensar ideias,
destas a razão teórica organizaria através da elaboração de princípios racionais
a realidade.
No outro sentido alegado por Kant, isto é, da razão prática, a razão se
caracteriza como uma “ação humana” vinculada, então, à capacidade de juízo
diante de situações, decisões em que o valor moral destas implica uma tomada de
decisão que segundo Kant necessita estar condizente com a moral que orienta as
ações dos homens segundo os princípios racionais, isto é, estabelecidos pela
razão teórica a priori, mas que encontram nos hábitos e costumes sociais certa
fundamentação que por dever orienta as práticas humanas em sociedade. Portanto,
a razão nesse sentido tornar-se uma capacidade de apreender as ideias inerentes
aos hábitos sociais considerados morais e a despeito da vontade do indivíduo,
por respeito ao princípio da razão teórica tornado um dever na razão prática, o
sujeito do conhecimento toma ações éticas com base nesses princípios da
moralidade aos quais a razão prática o conduz.
Nesse momento de reflexão em torno do significado do termo “razão”
chamo a atenção dos leitores para as seguintes características históricas em
torno desse conceito, a saber: a) A razão é criação grega decorrente do processo
de criação da polis grega e da reintrodução da escrita na sociedade helênica. Os
gregos não tinham conhecimento de qualquer menção de alguma interioridade e não
desconfiavam da existência em si de alguma subjetividade e suas consequências,
encarando a natureza enquanto Eu aberto às forças naturais, considerando-se,
eles próprios elementos inerentes à natureza dela um pouco distanciados devido à
vida políade, mas profundamente integrados nas dinâmicas cósmicas da natureza.
Portanto a natureza era considerada provida de um logos e enquanto tal, cabia ao
homem através de seu próprio logos compreender a phýsis de maneira a intuir as
motivações do comportamento da natureza do micro ao macro.
b) Na sociedade romana, após os contatos efetivados com os helênicos e,
em especial após o período alexandrino com a apropriação de traços culturais
gregos, dentre eles a apreciação pela filosofia e suas tecnologias, o espírito
latino adaptou o pensamento especulativo helênico e redirecionou-o a condições
culturais mais próprias aos romanos e nesse sentido, a razão ao invés de manter-
se como ponto de acesso ao conhecimento possível ao homem enquanto inerentemente
vinculado à natureza, tornou-se um elemento de cálculo, de quantificação na
natureza e, por assim dizer, a razão mutou de uma função interpretativa da
realidade natural para uma função quantificadora, calculadora para fins
pragmáticos, voltados às realizações grandiosas levadas a efeito pelos romanos.
c) Ainda no período romano, sob a influência das permutas culturais
levadas a efeito no mare nostrum (nosso mar), da comunidade judaica de
Alexandria, importante centro cultural e agrícola para o mundo romano, a
tradição judaica de Jeová compõe o fantástico mosaico religioso da grande
metrópole helênico-egípcia sob administração romana a ponto de a Torah ser
compilada pela primeira vez ainda sob a administração de Ptolomeu II entre 309-
246 a. C. e tornar-se acessível aos investigadores da Biblioteca. Séculos mais
tarde, após o fenômeno Jesus em Israel, percebe-se em Alexandria como em
diversos povoamentos de cunho judaico, o surgimento de núcleos comunitários
cristãos, ora integrados às sinagogas hebraicas, ora delas distintas, mas
perceba-se que nestes o estudo sistematizado mais ou menos intenso da Torah
fazia-se eivado de reflexões filosóficas de diversa procedência, a ponto de
surgir à época, a teoria de que a filosofia grega teve inspiração nos profetas
judeus, tanto quanto em outros núcleos mais ortodoxos, estabeleceu-se o conflito
entre a razão e a fé com a gradual expulsão das heresias helênico-romanas.
No entanto, conforme atesta Gilson (1998, p. 2-203), o pensamento
filosófico helênico e romano foi aos poucos sendo conjugado com as tradições da
Torah e dos evangelhos, à época em processo de constituição tradicional, sendo
posteriormente exportados para a sede imperial, em Roma, tornando-se objeto de
sincretismo por filósofos como Teodoreto, João Damasceno, Ambrósio, Boécio,
Gregório e Agostinho, pensadores cristãos que se preocuparam em fundir
conceitualmente a filosofia com a tradição judaico-cristã. Foi nesse momento que
ocorreu gradualmente certa mudança de paradigma da razão enquanto algo natural,
inerente aos elementos da natureza e por conseguinte, ao próprio homem para uma
função, que já era compreendida em certa medida, em especial pelo mundo latino,
como uma espécie de função do homem para quantificar a natureza de maneira
pragmática, isto é, objetivando atingir certos fins e não interagir de maneira
harmônica e equilibrada, como asseveravam as filosofias helênicas.
d) Dado a mudança de paradigma natural, uma vez que o homem passou de
elemento da e na natureza para filho de Jeová-Deus, dotado da razão enquanto
função da alma que desde que encarada com a humildade do filho em relação ao Pai
possibilitar-lhe-ia o conhecimento sobre a natureza, toda usufruto dedicado por
Jeová-Deus-Halah ao homem, por graça divina, o crente a teria iluminada a razão
para dela usufruir-lhe enquanto “coroa da criação”, imagem e semelhança de
Deus.
Da razão já cristianizada através de vários séculos, viu-se em Descartes
o reconhecimento da tese cristã da autonomia da vontade do Eu rumo à glória do
Altíssimo durante a sua existência, na interioridade de seu coração, de sua
consciência ser fundada pela clara oposição de fundamentação platônica entre a
res cogitas e a res extensa e, dessa maneira, a razão definitivamente tornar-se
uma propriedade dessa “coisa pensante”, capaz de conduzi-la à verdade a partir
de seu próprio conhecimento elementar, isto é, de que sabe que existe. Ainda
nessa vertente, porém de inspiração aristotélico-formal, percebe-se que a razão
é um atributo da alma para a emissão de juízos sobre proposições e essenciais e
não necessariamente sobre objetos do mundo natural.
e) Em Leibniz vê-se a razão conseguindo opor-se à fé enquanto “luz
natural” e como “razão suficiente” em nada se distinguindo da concepção
instrumentalista dela em relação ao homem como “sujeito do conhecimento”
diante do “objeto do conhecimento”, a saber, a natureza.
f) Com Kant, nota-se a percepção da razão enquanto justificação formal de
princípios inerentes à natureza enquanto objeto do conhecimento e na vida
social, ética, a razão se apresenta como uma função da alma para intuir as
ideias próprias aos costumes e estratificá-las em princípios universais e
necessários sobre os quais o homem deve pautar seu comportamento a despeito de
sua vontade.
Ora, de tudo isso se depreende que a razão tornou-se algo muito estranha
a seus criadores, os helênicos! Pois além de ser interiorizada, subjetivada,
regulada por leis linguísticas, instrumentalizada enquanto meio do homem, ser
oposto por sua dignidade religiosa aos demais elementos da natureza e devido a
isso, esta se tornou um outro diferente do homem e enquanto tal, um desafio a
ser esquadrinhado pela mente humana e sua luz natural, de maneira que possa ser
compreendida e como tal, submetida à vontade de poder do homem através de sua
nova ferramenta de trabalho, a saber, a Ciência, criando pela observação e
experiência indutivo-racionais a tecnologia com os fins claros e objetivos de
facilitar a vida humana, libertando-o do bruto trato para com a vida,
melhorando-lhe a qualidade de vida e libertando-o da ignorância inerente à fé e
aos conflitos político-religiosos em busca da Verdade.
Esses foram os princípios Iluministas que em busca de tornarem efetivos
os ideais Humanistas dos séculos XIV-XV d. C. proporcionaram aos europeus dos
séculos vindouros o arroubo cientificista e tecnológico instrumental capaz de
estudar, compreender, quantificar, dominar e subverter diversos aspectos
naturais para o usufruto da coroa da criação, isto é, o homem.
Para Horkheimer, no século XX d. C. observa-se o ápice do desenvolvimento
do que nomeia como “a civilização industrial”. Fruto do mercantilismo europeu
dos séculos XV-XVIII d. C., o capitalismo proporcionou aos estados europeus, a
partir do século XVI d. C. um sistema econômico baseado no comércio e acúmulo de
capitais que derivou e subverteu o antigo sistema, o feudalismo após a
reabertura das atividades comerciais continentais e intercontinentais por terra
e, posteriormente por mar, após as descobertas e sendo capitaneada inicialmente
por Portugal e Espanha, esses países rapidamente abriram espaço para que a
Inglaterra e França, mais tarde a Holanda e muito tardiamente a Alemanha
ingressassem na era industrial.
Em um pouco mais de quinhentos anos a civilização ocidental e,
posteriormente, o fenômeno se alastrou por todo o planeta, embora algumas
diferenciações, tornando-se um parâmetro existencial com características de
produção, racionalização, tecnologização mercadorização de todas as instâncias
da existência alterando o modo de vida do homem e sua relação com a natureza.
Muito criticado por filósofos e sociólogos como Henri de Saint Simon,
Robert Owen, Karl Marx, Friedrich Engels, dentre outros, por ser um sistema
econômico, ideológico, político e comportamental que tende a provocar êxodo
rural, inchamento das cidades, capitalização por parte dos proprietários dos
meios de produção, exacerbação do consumo e competitividade, individualismo,
alienação pessoal, política, educacional e financeira, e outros fenômenos
sociais que coisificam o homem em torno de uma lógica de mercado, o capitalismo
em si para Horkheimer não é o vilão exclusivo que caracteriza a civilização
industrial.
Segundo Horkheimer apud Reale e Antiseri (2003, p. 846), os problemas
inerentes ao “lucro” e ao “planejamento” como geradores de repressão não são
particularidades específicas do capitalismo, mas ao contrário, afirma que o
verdadeiro problema é “(...) o fascismo é a verdade da sociedade moderna (…)
quem não quer falar do capitalismo deve também calar sobre o fascismo”. Isso se
daria devido à crença de Horkheimer de que o fascismo é inerente às leis do
capitalismo, o que o filósofo chamou de “pura lei econômica” que segundo as
tradições liberais e neoliberais chama-se “lei do mercado e do lucro”, para
Horkheimer chama-se “pura lei do poder”.
Para o entendimento de todos faz-se necessário verificar do que se trata
quando Horkheimer indica o fascismo como inerente às leis do sistema econômico
capitalista. O fascismo foi uma doutrina totalitária, isto é, um sistema
político no qual o Estado se encontra normalmente sob o controle de uma pessoa,
sistema político, facção social ou classe social que não reconhece limites à sua
autoridade e que busca regulamentar todos os aspectos da vida pública e privada.
Além dessas características, o fascismo é uma doutrina radical de extrema
direita, desenvolvida na Itália por Benito Mussolini a partir de 1919, sendo o
nome da doutrina política decorrente do partido a que o criador estava vinculado
no final do século XIX início do século XX.
Portanto, para Horkheimer, o sistema econômico predominante na
civilização industrial, o capitalismo, mascara a realidade funcional de suas
teses através da ideia de “harmonia social” gerada pelas chamadas “leis do
mercado” de cunho liberal, na medida em que se consolida enquanto poder de uma
minoria que detém a propriedade privada das forças de produção.
Ainda sob a influência do que os economistas chamam de “segunda
revolução industrial”, Horkheimer analisa a civilização industrial desde o
início da influenciação do liberalismo clássico, que se baseia na concorrência
de mercado, até o capitalismo monopolista que tem como princípio a destruição da
economia de mercado para num momento posterior, progredir para uma abordagem
totalitária e excludente de uma de suas falácias iniciais, a saber: a livre
concorrência; já que a tendência da disputa mercadológica é suprimir os
oponentes através do aperfeiçoamento tecnológico a ponto de ser predominante ou
totalitário no nicho mercadológico em que se estabelece.
No âmbito da gestão do Estado sob o fascismo capitalista, Horkheimer
observa a necessidade de crescimento da burocracia em todos os setores da vida,
uma vez que se faz necessária a institucionalização do poder enquanto mediador
mais ou menos ativo no mercado para que seja manipulado pelos donos do capital,
na medida de seus interesses, embora com a desculpa de que sua função precípua é
a de representar o povo, o Estado acaba por se tornar inacessível aos
representantes populares e veicula-se em mais uma instância de apropriação
pública da iniciativa privada, defendendo-lhe os interesses e quando
conveniente, socorrendo-se dos recursos públicos em prejuízo ao Estado.
Por outro lado e curiosamente a despeito dos indícios que nossa
argumentação pode dar ao leitor, Horkheimer pouco se atém à defesa do comunismo,
enquanto sistema ideológico, político e econômico teoricamente assinalado por
Marx, Engels e os vários marxismos posteriores aos filósofos opostos ao
capitalismo-liberalismo.
Para Horkheimer o comunismo é “capitalismo de estado, constitui uma
variante do estado totalitário” e por conseguinte, fascista tanto quanto o
capitalismo. Isso se dá devido às organizações proletárias se tornarem
burocráticas, isto é, uma proposta organizacional que se caracteriza por regras
e procedimentos explícitos e regularizados cuja divisão das responsabilidades e
especialização do trabalho prioriza a hierarquização funcional e impessoaliza as
relações humanas. Como se percebe, ao burocratizarem-se as organizações
proletárias submetem-se a um dos princípios operacionais do capitalismo, a
saber, a divisão e especialização do trabalho que efetivam a alienação dos que
não são proprietários dos meios de produção. Portanto, o comunismo também é um
capitalismo de estado e enquanto tal, um regime fascista.
É nesse sentido que Horkheimer em sua Crítica da razão instrumental
(1973) leva a efeito o exame do conceito de racionalidade implícito a cultura
industrial e tenta identificar algum vício essencial.
Em a Crítica da razão instrumental (1973) Horkheimer conceitua razão
instrumental como sendo a operacionalização dos processos racionais, entendendo
estes no sentido investigado no início deste artigo, isto é, no sentido de algo
que não se relaciona mais com a natureza enquanto o humano é a própria parte
constitutiva da natureza e portanto, capaz de apreendê-la e nela e por ela
interagir de maneira harmoniosa e equilibrada; ao contrário, razão aqui se
entende nos desdobramentos que são decorrentes dos usos instituídos desde o
período romano, em franca oposição à vivência helênica. A razão instrumental é
uma “operacionalização” da razão que em si e por si já é instrumento do homem
coroa da criação, subjetivo, mas objetivamente tendo que lidar com a natureza
para dominá-la e submetê-la a seus interesses.
Nesse sentido, Horkheimer (1973, p. 184) afiança que a civilização
industrial está de início, podre, podendo-se inclusive, falar em “doença da
razão”, isto é:
(...) essa doença deveria ser entendida não como o mal que atacou
a razão em dado momento histórico, e sim como algo inseparável da
natureza da razão na civilização, assim como a conhecemos até
aqui. A doença da razão está no fato de que ela nasceu da
necessidade humana de dominar a natureza.
Nesse particular, discordo parcialmente de Horkheimer, na medida em que
sua fala abrange a totalidade do fenômeno razão, pois conforme visto
anteriormente, é a partir da civilização romana, após a apropriação do logos
helênico com a consequente adaptação a sua peculiar maneira de ver a natureza
que se iniciou certa deturpação do sentido de “razão”, passando de um elemento
natural cujo homem faz parte e por isso pode interpretá-la para certa faculdade
humana que após a judaico-cristianismo-islamização ocidental contrapôs homem-
natureza e privilegiou o homem e sua razão como usufrutuários incondicionais da
natureza.
Por outro lado, concordo com Horkheimer quanto ao adoecimento da razão em
nível genético, desde que se leva em consideração a História Psicológica
implícita a sua história da mentalidade racional.
Para Horkheimer essa ânsia de dominação da natureza por parte do homem só
se deu devido a uma organização burocrática e impessoal que possibilitou a auto
visão humana enquanto “instrumento”, isto é, para que o homem pudesse
racionalmente operar sobre a natureza e estudando-a dominá-la. A civilização
industrial necessitou coisificar o homem, torná-la desprovido de pessoalidade,
vê-lo enquanto número tão quantificável indistintamente quanto qualquer elemento
natural, embora na raiz de sua existencialidade, no âmbito da moral, da ética e
da política, a dignidade humana é tida como o que nos torna humanos, distintos
dos animais por naturalização decorrente de nossa filiação divina com Jeová-
Deus-Halah; nos âmbitos econômico e industrial, o homem é um número, um
consumidor, capaz de gerar certo número de bens, serviços e de consumi-los a
troco de certo valor atribuído a sua existencialidade e, até certo nível,
dispensável quando se opõe aos processos burocraticamente instituídos como
essenciais à produção industrial.
A partir disso, procede que a instrumentalização da razão contradiz
exatamente ao que a Ciência, a tecnologia e a industrialização se propuseram
fazer com a humanidade nos idos do Iluminismo, enquanto processo que:
(…) identifica-se ainda com a luz natural, ou o conhecimento de
que o homem é capaz de naturalmente, por oposição à fé e à
revelação. 'A razão é o encadeamento de verdades; mais
particularmente, ao ser comparada com a fé, das verdades que podem
ser atingidas pelo espírito humano naturalmente sem o auxílio das
luzes da fé'. (Leibniz apud JAPIASSU & MARCONDES, 1993, p. 209).
Dado as corrupções as quais a noção helênica original de razão e
racionalidade foram expostas ao longo da História da Filosofia e da Ciência, a
doença a qual Horkheimer indica enquanto “inseparável” da ideia de razão, se
caracteriza pela atitude do homem ver-se distinto da natureza e no direito e
poder de tomar uma decisão, de conhecê-la objetivando exercer domínio sobre ela,
coisificando-se e, como contrapartida, uma vez que desconhece as bases
históricas da razão, ao coisificar a natureza intentando dominá-la coisifica-se,
desumaniza-se, despersonaliza-se crendo ilusoriamente reforçar seu ato decisório
individual e personalisticamente na sociedade através da tecnologia, implicando
com isso a sua total, brutal e drástica desumanização.
A razão, elemento que no Iluminismo foi tomado como libertador das
supersticiosas clausuras da fé religiosa e da ignorância generalizada
consolidou-se através da Ciência e da Tecnologia, de heroína a vilã, pois dado o
descompromisso ético dos cientistas e industriais para com a humanidade,
incitados pelo aumento constante de poder por eliminação da concorrência a
tecnologia acabrunha o homem ao invés de torná-lo livre e feliz; nos dizeres de
Horkeimer (1973, p. 10): “(...) pesa sobre todos a sensação de medo, e
desilusão: hoje, as esperanças da humanidade parecem mais longe de se
concretizarem do que eram nas épocas bem mais obscuras em que foram formuladas
pela primeira vez”.
Isso se deu devido ao deslocamento do centro de gravidade da razão
helênica enquanto paradigma inicial na criação dessa linguagem adotada e
deturpada pela Filosofia, Ciência e Tecnologia contemporâneas como conjunto de
estratégias (meios) para se atingir um fim (pragmatismo). Portanto, a razão
instrumental tende a se engessar nos meios, não realizando a reflexão objetiva
dos fins e nesse sentido, a Filosofia, a Ciência e a Tecnologia deixam de se
preocupar com o conhecimento verdadeiro para deter-se e se tornar em instrumento
de dominação, poder e exploração do homem coisificado, desumanizado e tratado
como “sujeito” ou “consumidor” ao invés de “homem”, “pessoa” “Eu”.
A razão crítica a qual Horkheimer contrapõe à razão instrumental se
caracteriza por ser uma reflexão objetiva dos fins cujos meios são analisados
levando-se em consideração a ideia de “homem”, isto é, a emancipação que este
possui diante da sociedade, do respeito a seu poder de crítica e de criatividade
que estão em constante ameaça na civilização industrial, seja de cunho
capitalista ou comunista.
Na medida em que a civilização industrial valoriza os fins em detrimento
dos meios no paradigma de oposição entre homem e natureza, a razão tende a não
saber nada, o indivíduo repete unicamente que apenas existe um caminho no mundo,
a saber: o de renunciar a si mesmo, isto é, o de se coisificar, intensificando o
processo que o sistema econômico já prioriza, tornando-se assim, predeterminado
a cumprir o seu papel na engrenagem do sistema.
Apenas a não renúncia da razão ao exercício crítico que tende a observar
os meios para não supervalorizar os fins, descoisificando o homem e incentivando
seu desenvolvimento racional crítico é que a razão pode furtar-se à sua
aplicação pragmatista e irresponsável, tirando o homem à prateleira e
entregando-lhe o destino para que através de uma razão não calculadora, mas
integrada entre o homem e a natureza resgate-se a possibilidade ecológica de
interação complementar e não dominadora e destruidora, atenuando-se os efeitos
de uma lógica produtiva perversa, consumista, irresponsável, não sustentável,
criada e mantida ainda hoje pelos usuários da razão instrumental que
possibilitaram, por exemplo, o cúmulo da coisificação humana em prol de fins sem
consideração sobre os meios, com a pulverização, carbonização e múltiplas lesões
causadas a centenas de milhares de civis inocentes no desenvolvimento e término
da Segunda Guerra Mundial, em 1945, com o ataque-experimento das bombas
nucleares de Hiroshima e Nagasaki.
Instrumentalmente pragmático, racional, isto é, finalizar a guerra sem
mais custos humanos e materiais; ao mesmo tempo porém, brutal, irresponsável,
desumano e acrítico racionalmente, portanto, uma pérola da razão instrumental.
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CRÍTICA AO SUJEITO E A RAZÃO GOVERNAMENTAL NO DOMÍNIO DA BIOPOLÍTICA DE MICHEL
FOUCAULT
Amílcar Machado Profeta Filho
e
Daniel Salésio Vandresen
INTRODUÇÃO
O empreendimento filosófico de Michel Foucault pode ser situado na
tradição kantiana da filosofia crítica, embora não como a proposta de Kant de
uma crítica dos limites da razão ou na dimensão da política moderna de vigiar os
excessos do poder inerente a racionalidade política. Isso significa que não
adianta colocar a razão em um tribunal para ser julgada, porque não se trata de
analisar o processo de racionalização de uma sociedade como um todo. A
perspectiva adotada por Foucault visa investigar as racionalidades especificas
presentes nas relações de poderes locais, como: a forma de poder disciplinar
presente nas prisões, escolas, fábricas, hospitais e demais instituições, bem
como a forma de poder que preserva a vida (biopoder), inerente as políticas que
administram as populações.
Outra unidade na obra de Foucault pode ser situada no enfoque dado ao
sujeito. Em todo o seu pensamento o sujeito aparece como uma construção
histórica. Defende que ele se constitui a partir dos modos de subjetivação, ou
seja, a partir de um jogo de verdade e de poder que o submetem ao controle do
outro e, também, de si mesmo. No entanto, com enfoques diferentes na trajetória
de seu pensamento40, a saber: primeiro a abordagem da década de 60, uma análise
da produção dos saberes (descrição arqueológica do que pode ser dito e aceito
como verdadeiro, uma investigação do processo de objetivação do sujeito pelas
ciências humanas); segundo, a partir da década de 70, uma análise do poder
(descrição genealógica dos poderes disciplinares que produzem individuação e das
40 A produção intelectual de Michel Foucault (1926-1984) é frequentemente caracterizada pela
seguinte divisão: período arqueológico, período genealógico e, o período da ética e estética de
si. Adotou-se essa classificação unicamente por conveniência, a fim de situar o leitor nesta
proposta de trabalho. Deste modo, este estudo não pretende problematizar as polêmicas que
envolvem tal classificação.
estratégias de governamentalidade pela biopolítica) e, terceiro, década de 80,
uma estética da existência (por meio das técnicas de si ou cuidado de si,
resgata a construção de uma subjetividade emancipatória, em que o indivíduo
através de práticas que o relacionam a si mesmo, se produz e se transforma).
Nesta última fase, o autor encaminha seu trabalho em busca de uma solução ético-
política para o processo de sujeição.
Este trabalho prioriza a análise do sujeito e da razão governamental na
biopolítica de Foucault. Com isso, utilizou-se dos outras fases apenas para
situar o leitor na trajetória do seu pensamento. Desse modo, esta exposição
inicia-se com a sua concepção de sujeito e como ela aparece na análise do
discurso. Em seguida, apresenta-se sua abordagem do poder e biopoder, mostrando
como estes conceitos foram incorporados pela razão governamental moderna. Por
fim, analisa-se como a educação aparece como um instrumento que coloca em
movimento as forças da razão governamental, mas que, também, por meio dela é
possível produzir resistência.
O SUJEITO HISTÓRICO
Foucault declara (1995, 232) que o tema principal de seus estudos é o
sujeito e não o poder, sendo que o seu trabalho atual (última fase) visa
entender “[...] o modo pelo qual um ser humano torna-se um sujeito”.
(FOUCAULT, 1995, 232). Portanto, sua investigação trata principalmente da
constituição da subjetividade. Seu interesse em problematizar o discurso é o de
entender a forma como nos constituímos enquanto sujeitos do nosso saber e como
os indivíduos exercem e sofrem relações de poder. Daí sua preocupação, a partir
dos anos 80, gira em torno da “estética de si”, ou seja, os mecanismos que os
indivíduos utilizam na construção de si mesmos, tema da subjetividade.
A subjetividade, para Foucault, se refere às práticas por meio das quais
o indivíduo constrói uma verdade sobre si. Em suas palavras, define
subjetividade como: “a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si
mesmo num jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo”. (FOUCAULT,
1984 apud REVEL, 2005, 85). Abordar o tema da produção histórica da
subjetividade na perspectiva foucaultiana significa tratar dos modos de
subjetivação, ou seja, os modos – as práticas, as técnicas, os exercícios –
colocados em ação em um determinado espaço institucionalizado, no qual o sujeito
se constrói nas relações de saber-poder e na produção de uma verdade. O problema
da subjetividade em Foucault pode ser caracterizado por dois tipos de análise
dos modos de subjetivação (REVEL, 2005, p. 82): como processo de sujeição do
indivíduo, seja por meio dos saberes que o objetivam, seja por meio dos poderes
que o submetem a um governo e, de outro modo, por meio de técnicas de si, que
fazem com que o sujeito constitua sua própria existência.
No texto Subjetividade e Verdade (1980/81), Foucault descreve o que
pretende com o estudo deste tema:
O fio condutor que parece ser o mais útil, nesse caso, é
constituído por aquilo que poderia ser chamar de “técnicas de
si”, isto é, os procedimentos, que, sem dúvida, existem em toda
civilização, pressupostos ou prescritos aos indivíduos para fixar
sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de
determinados fins, e isso graças a relações de domínio de si sobre
si ou de conhecimento de si por si. (FOUCUALT, 1997, p. 109).
Para o pensador francês, o indivíduo se constrói por meio de práticas que
impõe uma verdade sobre si e que devemos reconhecer como tal. É o poder que
produz o sujeito e não o contrário. “É uma forma de poder que faz dos
indivíduos sujeitos” (FOUCAULT, 1995, p. 135). A formação do sujeito consiste
em um processo de sujeição que o faz estar preso a uma identidade construída. Em
cada momento histórico, existem práticas de si que visam a construção de
identidades para atender a determinados fins, segundo as relações de saber-poder
vigentes. Assim, quando trata do poder, o autor quer investigar as estratégias
utilizadas em uma sociedade para a subjetivação do indivíduo e como seria
possível através de forças de resistência buscar a libertação ou
desassujeitamento.
O SUJEITO DISCURSIVO: UM DEBATE EM CONSTRUÇÃO
O “sujeito” é dotado de contradições das quais esta breve apresentação
não pode dar conta de abordar sua amplitude. Concentram-se as energias em
analisar o sujeito em alguns aspectos filosóficos, interligando-o à análise do
discurso (AD), ao “sujeito discursivo”. O conceito de “sujeito”, por
exemplo, em Foucault é muito complexo de ser compreendido. Esse autor foi
considerado historiador, linguista, pensador, filósofo. Daí se observa seu grau
de erudição. Em seu ciclo de aulas entre 1981-1982, Foucault (1997)41 trouxe
indícios para responder: quem é este “sujeito”? O que são “cuidado de si”,
“técnicas de si”? Essas questões fizeram parte das preocupações do pensador.
Para respondê-las, ele retornou a Antiguidade.
Foucault afirma que, desde tempos antigos, o homem preocupou-se com o
“cuidado de si” com o objetivo de conhecer a si mesmo. O autor trouxe uma
abordagem filosófica do “sujeito”, porém essencial, porque partindo do
pressuposto de que o “sujeito” é fruto de um contexto social e histórico,
compreendendo-o, entende-se seu discurso.
Ao estudar Sócrates, Foucault afirma que o filósofo grego foi condenado a
tomar cicuta42 porque seu objetivo durante a vida foi reconhecer que a divindade
está sempre perto do homem até seu último suspiro. Sócrates também ajudou a
formar a juventude ateniense. Segundo Foucault, o filósofo grego se considerava
um “mestre” do cuidado de si mesmo. Interpelava as pessoas dizendo: “vos
ocupais de vossas riquezas, e de vossa reputação e de vossas honras, mas não vos
ocupais com vossa virtude e vossa alma”. (FOUCAULT, 1997, p. 119). Com essa
tarefa de autorreflexão, Sócrates as ensinava, desinteressadamente, não pedia
retribuição, não almejava condecoração, mas realizava por benevolência. O autor
salienta que os juízes de Sócrates não deveriam condená-lo, mas recompensá-lo
“por ter ensinado aos outros a cuidarem de si mesmos”. (FOUCAULT, 1997, p.
120). Com essa postura, Sócrates colaborou para a emancipação, para a busca da
consciência, da juventude ateniense, mas essa atitude ocasionou sua própria
morte.
Em Atenas, havia uma estrutura de poder em que apenas uma parcela da
população era beneficiada. Essa pequena parcela, composta por cidadãos
41 Em Foucault (1997), estudamos, especificamente, o curso intitulado A hermenêutica do sujeito.42 Planta venenosa que era encontrada na Antiguidade em regiões como o Oriente Médio e a Europa.
Foi utilizada para envenenar o filósofo grego Sócrates.
atenienses, era formada pela elite. A escravidão e as guerras traziam
enriquecimento para a cidade. Quem não fosse nascido em Atenas não poderia ser
cidadão, ou seja, não tinha voz na praça pública, na Ágora. Sócrates deveria
observar o privilégio desses poucos cidadãos, os abusos de poder, a corrupção
latente, por isso era seu dever, enquanto filósofo e preceptor, despertar a
juventude para a reflexão de seus próprios atos, para o cuidado de si, de seu
nível moral, de sua ética. Entretanto, no decorrer do processo histórico, sabe-
se qual é o desfecho daqueles que buscam o resgate da consciência. Sócrates
incomodava muitos “poderosos” e não restou alternativa senão a de silenciar
seu discurso. Aqui, tem-se uma prova de que o sujeito discursivo pode ser
silenciado.
Foucault leva a indagar questões contraditórias que podem ser
consideradas exemplos atuais. O problema da seleção e da “interdição” do
discurso (FOUCAULT, 2006a, p. 9) existente hoje nas instituições, na sociedade,
na família, vem de séculos. Comprova que o “sujeito” pode ser influenciado
pelo contexto que se insere e que, ao buscar um entendimento maior sobre os
discursos que o cerca, sobre a economia, a política, a ciência, as instituições
jurídicas, a sociedade, corre-se o risco de sua fala ser “excluída”, ser
“desqualificada”, ser considerada “louca”, porque pode abalar estruturas de
poder consolidadas, organizadas por indivíduos que não querem perder seus
privilégios econômicos, seu status social.
Retomando Sócrates, Gregório de Nícia e outros filósofos da Antiguidade,
Foucault (1997, p. 121-122) diz que o
[...] cuidado de si constituiu não somente um princípio, mas uma
prática constante. [...] Será preciso, então, compreender quando
os filósofos e moralistas recomendarão o cuidado de si
(epimeleïsthai heautô), não aconselhando simplesmente prestar
atenção em si mesmo, evitar as faltas ou os perigos ou se
proteger. Referem-se a um campo de atividades complexas e
reguladas. Pode-se dizer que, em toda filosofia antiga, o cuidado
de si foi considerado, ao mesmo tempo, como um dever e como uma
técnica, uma obrigação fundamental e um conjunto de procedimentos
cuidadosamente elaborados. (grifo nosso).
O sujeito tem a função de cuidar mais de seu “interior”, de suas ideias
e representações sobre o mundo, de sua alma, do que de sua
exterioridade/materialidade. Para atingir tal estado de introspecção, de
reflexão interior, de postura ética em ações diárias, o sujeito deve utilizar-se
de técnicas: “meditatio”, “exercitatio” (FOUCAULT, 1997, p. 132). Na
meditação, na reflexão profunda, na atenção aos pensamentos, nas representações
que a mente produz, devem-se observar esses pensamentos como um soldado em
estado de guerra, meditar sobre as atitudes. Isso leva à autorreflexão e à busca
de ações corretas. O sujeito não se deve deixar influenciar por acontecimentos
“exteriores”. Mas deve aprender a não se deixar afetar por problemas materiais
e emocionais, por acontecimentos que ocorrem no dia a dia, buscando transcendê-
los. Mas como conseguir atingir esse estágio de plenitude individual?
Foucault (1997, p. 127), na tentativa de entender os filósofos antigos,
conclui que “Precisamos de ‘discurso’: de logoï, entendidos como discursos
verdadeiros. [...] São eles que permitem afrontar o real”. Decifrar o que
Foucault entende como “discurso verdadeiro” não é tarefa para iniciantes.
Arriscamos a dizer que esses discursos poderiam ser a retomada íntima e profunda
da consciência humana, consciência que se perdeu devido um emaranhado de
teorias, de explicações sobre a vida e o mundo, entretidos em um ego
robustecido, cacarejado de autoimportância e autosapiência, de querer
transformar o mundo tendo como mola secreta da ação humana a inveja e a cobiça.
Mas Foucault (1997, p. 130) diz que esses “discursos verdadeiros” não ajudam a
decifrar os desejos e as representações: “Trata-se, ao contrário, de armar o
sujeito de uma verdade que não conhecia e que não residia nele; trata-se de
fazer dessa verdade aprendida, memorizada, progressivamente aplicada, um quase-
sujeito que reina soberano em nós mesmos”.
Como o texto A hermenêutica do sujeito é um dos mais difíceis que o
pensador francês escreveu, é relevante reportar-se à análise de Revel (2005).
Segundo a autora, o que Foucault intentava era um resgate a um “ideal ético”
do sujeito, por isso estudava a Antiguidade (REVEL, 2005, p. 33). Ou seja, ao
retomar a Antiguidade Clássica, Foucault relaciona o “cuidado de si” com o
cuidado dos outros. O “sujeito” deve saber se autogovernar primeiro para
depois governar a comunidade. O homem deve se preparar para governar sua casa,
sua mulher, seus filhos e, para uma “boa conduta” em sociedade, uma conduta
ética, buscar princípios que colaborem para o seu desenvolvimento pessoal e da
sociedade. A autora expõe que o “cuidado de si” é “igualmente uma arte de
governar os outros” (REVEL, 2005, p. 34).
Avançando em suas análises, salienta que, para Foucault, “se o sujeito
se constitui, não é sobre o fundo de uma identidade psicológica, mas por meio de
práticas que podem ser de poder ou de conhecimento, ou ainda por técnicas de
si”. (REVEL, 2005, p. 85). E conclui que o “sujeito” não é um indivíduo
livre, autoconstituído:
O pensamento de Foucault apresenta-se, desde o início, como uma
crítica radical do sujeito tal como ele é entendido pela filosofia
‘de Descartes a Sartre’, isto é, como consciência solipsista e
a-histórica, autoconstituída e absolutamente livre. [...] Trata-
se, portanto, de pensar o sujeito como um objeto historicamente
constituído sobre a base de determinações que lhe são exteriores.
(REVEL, 2005, p. 84, grifo nosso).
O sujeito é fruto de um processo histórico que o influencia, que o
constitui, que o determina. Esse debate fez com que surgissem inúmeras
polêmicas. Como não é o foco do presente estudo aprofundar somente os aspectos
filosóficos do “sujeito”, conduzir-se-á este debate para o “sujeito
discursivo”, que vai além do sujeito individual, único, do “indivíduo livre”
citado.
Segundo Fernandes (2008, p. 34-35), o “sujeito discursivo” é plural,
heterogêneo, fruto de um contexto sócio-histórico e ideológico formado por
diferentes vozes sociais. Os aspectos ideológicos influenciam diretamente na
formação do discurso e do sujeito, sendo a ideologia inerente ao “sujeito
discursivo”.
Em toda e qualquer formação discursiva, as contradições
representam uma coerência visto que desvelam elementos exteriores
à materialidade linguística, mas inerentes à constutividade dos
discursos e dos sujeitos. Os sujeitos são marcados por inscrições
ideológicas e são atravessados por discursos de outros sujeitos,
com os quais se unem, e dos quais se diferenciam. (FERNANDES,
2008, p. 56)
Neste momento, talvez se possa estabelecer uma convergência entre o
pensador Bakhtin43 e Michel Foucault. No primeiro, observa-se que o “sujeito”
se constitui em decorrência do dialogismo (o sujeito é constituído socialmente).
No segundo, observa-se a importância da história (o sujeito é formado por
determinações históricas). Parece que, para os dois pensadores, o sujeito sofre
a influência da “exterioridade”, onde é gerado o discurso. Nesse sentido, o
“sujeito discursivo” é influenciado por um contexto ideológico e social,
interligado às formações discursivas e aos discursos de outros sujeitos em um
processo de criação, recriação, deslocamento, aproximação, articulação e
desarticulação do discurso.
Eni Orlandi (2007) afirma que o sujeito é atravessado pela história e
pela língua. A autora analisa o “sujeito discursivo” e o considera um sujeito
assujeitado.
Devemos ainda lembrar que o sujeito discursivo é pensado como
‘posição’ entre outras. Não é uma forma de subjetividade, mas um
‘lugar’ que ocupa para ser sujeito do que diz (M.Foucault,
1969): é a posição que deve e pode ocupar todo indivíduo para ser
sujeito do que diz. O modo como o sujeito ocupa seu lugar,
enquanto posição, não lhe é acessível, ele não tem acesso direto a
exterioridade (interdiscurso) que o constitui. Da mesma maneira, a
língua também não é transparente nem o mundo diretamente
apreensível quando se trata da significação pois o vivido dos
sujeitos é informado, constituído pela estrutura da ideologia (M.
Pêcheux, 1975). (ORLANDI, 2007, p.49, grifo nosso).
Entretanto, Possenti (2009) traz problemáticas em relação ao “sujeito”
que, em abordagem fundamentada e crítica à Análise de Discurso (AD), observa
questões das quais uma parte dos analistas parecem não considerar:
A leitura de O uso dos prazeres (Foucault 1984) me mostrou que
Foucault também abandonara seu posto antigo, e visava agora a um
sujeito das práticas do cotidiano, cercado de circunstâncias que
certamente não o deixam livre, mas que não o subjugam. O sistema é
frouxo, digamos assim, e obriga a escolhas, a uma estética – um
estilo, por que não? – da existência. Estamos longe do sujeito
assujeitado. (POSSENTI, 2009, p. 87, grifo nosso).
43 BAKHTIN, Mikhail. (Voloshinov). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do
método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979.
Essa colocação traz a dificuldade não só em conceituar o “sujeito”
(sujeito discursivo), mas também de relacioná-lo a outros conceitos, como o de
“ideologia”. Pode-se afirmar que esse movimento realizado pela AD, o de
relacionar sujeito/ideologia, dá base e fundamentação para suas pesquisas, no
entanto também poderia ser considerado um procedimento metodológico de cunho
ideológico.
Possenti concorda, em alguns aspectos, com a AD, com a importância da
história, da psicanálise e da linguística para os estudos e dentre essas três
áreas do conhecimento, parece tender mais para a última.
Em relação às problematizações que envolvem o “sujeito”, o autor
salienta que
A questão do sujeito é uma questão aberta. Para analistas do
discurso afetados de alguma forma pelo ‘ar do tempo’ da época
heroica da fundação da disciplina, só há um consenso absoluto: o
fim do sujeito cartesiano. [...] trata-se fundamentalmente de
aceitar que o sujeito é segundo em relação a seu entorno –
social, linguageiro, ideológico, cultural, até mesmo biológico. Ou
seja, nos termos mais ou menos correntes da AD: o sujeito é efeito
[...]. Dito de outra forma, também corrente, o sujeito não é
origem (do sentido, da história etc.). [...] Assinalaria, por
isso, que, se, em seguida, passei a não aceitar a tese corrente em
AD segundo a qual o sujeito é assujeitado, não foi por desconhecê-
la. Foi exatamente porque eu a conhecia bastante bem e a tinha
anteriormente aceito. (POSSENTI, 2009, p. 82-83, grifo nosso).
O autor primeiro critica o sujeito “uno e consciente” para, em seguida,
dizer que o sujeito é “efeito” e que não é a origem do sentido, da história
etc. Finaliza criticando a ideia de que o sujeito é assujeitado e que acreditava
nessa última, porém justifica que mudou de opinião por razões empíricas e
teóricas (POSSENTI, 2009, p. 83).
Diante de tantas polêmicas, interpretações e debates sobre o
sujeito/sujeito discursivo realizados nesta breve análise, não se arrisca fazer
definições. Há autores que entendem o sujeito discursivo como fruto de um
processo de determinações históricas. Outros pensadores afirmam que o sujeito é
uma construção ideológica e, por isso, tudo que diz é ideológico, constituindo-
se dialogicamente no contexto social. E outros ainda afirmam que o sujeito não
pode ser assujeitado, ou seja, o que o sujeito diz, suas atitudes, extrapola
talvez esse “assujeitamento”. Enfim, são polêmicas longe de serem resolvidas.
O DOMÍNIO DA BIOPOLÍTICA
O pensamento de Foucault busca analisar a constituição do sujeito em meio
a produção de verdade, de discursos, de saberes e de poderes. Neste tópico, será
abordado como o poder e o biopoder tornam-se forças que na razão governamental
permitem o governo do outro, a construção de um eu, uma subjetividade.
O PODER E O BIOPODER
Foucault faz duas abordagens em relação ao poder que se exerce na
sociedade moderna a partir do séc. XVIII: primeiro, uma sociedade disciplinar
(principalmente na obra Vigiar e Punir - 1975), onde analisa as instituições e
revela que o poder que se exerce sobre o corpo do indivíduo através de
dispositivos de vigilância e coerção, visa objetivar o indivíduo, para
normalizá-lo e adestrá-lo, tornando-o frágil e dócil aos interesses de uma
sociedade industrial. Segundo, uma sociedade governada pela biopolítica (Cursos
do Collège de France - 1975-1980), onde o poder através de dispositivos de
segurança age sobre a vida para preservá-la.
A noção de poder e a compreensão de como esse conceito evolui no
pensamento de Foucault é indispensável para compreender sua obra. Embora declare
que o tema principal de suas investigações seja a constituição do sujeito, a
compreensão do poder, além de provocar um novo olhar sobre o modo como o poder
funciona, também é essencial e está presente em suas obras a partir da década de
70. Essa investigação é caracterizada pelo autor como genealógica, para designar
o sentido de sua análise das condições do funcionamento do poder e, também, para
diferenciar de sua investigação anterior, da década de 60, em que privilegiou a
análise da epistemé ou constituição dos saberes, fase denominada de
arqueológica.
Foucault admite (2005c, p. 03 e 06), na obra Microfísica do Poder, que o
evento de maio de 1968 foi decisivo para que ele começasse abordar a questão do
poder. Esse evento diz respeito a uma série de greves estudantis que irrompem em
algumas universidades e escolas de ensino secundário em Paris e que rapidamente
assumiu um significado de proporção revolucionária (houve mobilizações operárias
na França e em outros países). Foi a partir desse momento que as questões
adquiriram para si uma significação política. Para o autor, ninguém nesse
momento (tanto da direita como da esquerda) se preocupava com a questão
de como o poder se exercia; foi a partir das lutas cotidianas realizadas com
aqueles que tinham que se debater, “[...] nas malhas mais finas da rede do
poder” (FOUCAULT, 2005c, p. 7), que apareceu a necessidade de se refletir sobre
o exercício do poder.
Foucault não teve a intenção de elaborar uma teoria do poder, antes
realizou uma analítica do poder, ou seja, seu objetivo era analisar como o poder
funcionava, operava e governava. “O poder não é uma substância. [...] O poder
não é senão um tipo particular de relações entre os indivíduos”. (FOUCAULT,
2006b, p. 384). No seu modo de ver, o poder não tem essência, o qual poderia ser
conquistado, nem pode ser reduzido a uma substância unitária (Estado, por
exemplo), onde pudesse ser localizado. Com isso, não quer negar o poder que o
Estado possui, antes quer deslocar a análise para os micro-poderes que estão em
jogo na constituição do sujeito. Sua principal ênfase é na compreensão do
sujeito assujeitado, ou seja, analisar os mecanismos de poder que estão em jogo
quando obedecemos. Que forças são ativadas quando obedecemos?
Além disso, seu problema não é o puro poder, mas as relações entre saber-
poder presente nos discursos que nos constitui. Seu objetivo é analisar os
efeitos positivos que o poder exerce sobre os indivíduos, ou seja, entender como
estes aceitam o seu exercício sem reagir. Sua hipótese é de que o poder se
exerce justamente porque constitui uma positividade (ligação com o saber).
Tratar o poder pela positividade significa não investigar em sua
instância negativa, como algo que reprime e diz não, mas como poder produtivo,
produz coisas, forma saberes, produz discurso e verdade. Pretende analisar seus
efeitos positivos sobre o indivíduo. Para Foucault, o poder é sempre uma ação
sobre ação (FOUCAULT, 1995, p. 243), isto é, o poder é uma ação que age sobre
corpos em ação. O poder constitui uma força que está em relação. Nesse sentido,
segundo Deleuze (2005, p.78): “[...] o poder é uma relação de forças, ou
melhor, toda relação de forças já é uma ‘relação de poder’”.
O autor francês trata da relação saber-poder principalmente na obra
Vigiar e Punir, de 1975. Em sua leitura, para entender esse liame é preciso
superar uma tradição que pensa esses dois conceitos separadamente. Desse modo
afirma:
Seria talvez preciso também renunciar a toda uma tradição que
deixa imaginar que só pode haver saber onde as relações de poder
estão suspensas e que o saber só pode desenvolver-se fora de suas
injunções, suas exigências e seus interesses. [...] Temos antes
que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente
favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que
poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de
poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber
que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder.
(FOUCAULT, 2005d, p. 27).
Foucault defende a tese de que esse grande mito de que a verdade nunca
pertence ao poder se iniciou com a cultura grega. Ruptura que precisa ser
eliminada. Nietzsche deu o primeiro passo ao afirmar que o conhecimento não
passa de um jogo de forças, uma luta de e pelo poder. O caminho de Foucault se
dá pelo restabelecimento do liame entre saber e o poder. “E é somente nessas
relações de luta e de poder – na maneira como as coisas entre si, os homens
entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns
sobre os outros, relações de poder – que compreendemos em que consiste o
conhecimento”. (FOUCAULT, 2005a, p. 23). Declara ainda, que para realizar essa
tarefa é preciso se aproximar dos políticos e não dos filósofos.
Enfim, o poder e o saber não existem separadamente; embora cada um tenha
suas especificidades, ambos só podem ser compreendidos em relação. “O exercício
do poder cria perpetuamente saber e, inversamente, o saber acarreta efeitos de
poder. [...] Não é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que
o saber não engendre poder”. (FOUCAULT, 2005c, p. 142). Saber não é poder, tem
efeitos de poder. O poder legitimado só se exerce positivamente por meio de um
saber e este, por sua vez, é uma forma de exercício de poder.
Toda essa análise do poder se realiza através da investigação do conceito
de disciplina colocada em ação pelas instituições modernas. Na obra de 1975,
Foucault define disciplina como: “Esses métodos que permitem o controle
minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas
forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade”. (FOUCAULT, 2005d, p.
118). Para exemplificar o exercício da disciplina, Foucault analisa o
Panóptico44 de Bentham como modelo do funcionamento do poder que coloca em ação
o disciplinamento dos corpos através controle do tempo, da organização do
espaço, do mecanismo da vigília constante e invisível e, dos registros como
produção de saberes. Ao descrever sobre o panoptismo o autor quer mostrar que
toda a sociedade é dominada por uma vigilância constante. “Uma forma de
arquitetura que permite um tipo de poder do espírito sobre o espírito”, diz
Foucault (2005d, p. 179). Ainda, segundo Foucault (2005d, p. 103), as relações
de poder em nossa sociedade se assemelham à tríplice característica do
panoptismo: ser vigilante, controlador e coercitivo.
Para Foucault, as instituições da nossa sociedade se organizam sob um
mesmo modelo, funcionam conforme a estrutura do panoptismo. Com isso, não se
quer dizer que existe analogia entre escolas, hospitais, fábricas, prisões,
etc., mas que há identidade morfológica do sistema de poder (FOUCAULT, 2006b, p.
75). Isso significa que é o mesmo tipo de poder que nelas se coloca em
exercício, com o objetivo de tornar o homem disciplinado, mas não como tipo
ideal de moralidade, antes como exercício de normalização dos corpos, para
atender a interesses locais: seja a aprendizagem escolar ou a produtividade de
um operário. Dentro do modelo do panoptismo pode ser colocado qualquer indivíduo
44 O Panóptico é um modelo de penitenciaria proposto por Bentham que Foucault se utiliza para
mostrar como modelo de funcionamento de toda a nossa sociedade disciplinar. O modo como Foucault
descreve o Panóptico é o seguinte: “na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre;
esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção
periférica é divida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm
duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o
exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na
torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um
escolar. Pelo efeito de contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a
claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos
teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente
visível”. (FOUCAULT, 2005d, p. 165-166).
que se queira vigiado. “Em cada uma dessas pequenas celas, havia segundo o
objetivo da instituição, uma criança aprendendo a escrever, um operário
trabalhando, um prisioneiro se corrigindo, um louco atualizando sua loucura,
etc.”. (FOUCAULT, 2005a, p. 87).
Para o filósofo francês, a partir do fim do século XVIII e início do
século XIX, começa a se formar o que chama de sociedade disciplinar (2005d, p.
179), ou seja, uma sociedade em que o corpo torna-se objeto e algo do poder.
Esse poder não é um poder violento ou repressor, porque se o fosse as pessoas de
um modo ou de outro se revoltariam e procurariam meios de resistência. Antes,
este poder ligado ao saber age como agregador, pois as pessoas que se deixam
conduzir por um determinado saber o fazem porque esse os convence. “O poder,
longe de impedir o saber, o produz”, afirma Foucault (2005c, p. 148).
Segundo Deleuze (2005, p. 90) o poder não é violento por duas
características: por um lado, o poder exprime relações de forças (como incitar,
induzir, produz um afeto útil, etc.); por outro lado, está relacionado com o
saber, que produz verdade enquanto faz ver e falar. Ou ainda, nas palavras de
Foucault (2006b, p. 219-220): “como o poder seria leve e fácil, sem dúvida, de
desmantelar, se ele não fizesse senão vigiar, espreitar, surpreender, interditar
e punir; mas ele incita, suscita, produz; [...] ele faz agir e falar”.
Já a noção de biopoder, como um poder que se exerce sobre a vida dos
indivíduos e, de biopolítica, como forma de governo que age sobre a população,
constituem outro enfoque de análise de Foucault e estão presentes nos textos do
curso do Collège de France de 1975 a 1980, dentre alguns, destacam-se:
“Segurança, Território, População” (1977-78), “Nascimento da Biopolítica”
(1978-79) e “Do Governo dos Vivos” (1979-80). Obras que publicadas
recentemente estão possibilitando um novo olhar para as análises de Foucault.
Contudo, ainda que esses conceitos não apareçam, esse enfoque de análise já está
presente em sua obra já publicada: História da Sexualidade I: vontade de saber
(1984). Nesta obra, o sexo aparece como problema político e econômico que
precisa ser administrado. Ao estudar a sexualidade, Foucault revela um poder que
a produz, são vários os procedimentos que são colocados em ação para “gerir a
vida” (FOUCAULT, 1988, p. 128) dos indivíduos na sociedade moderna: é preciso
analisar a taxa de natalidade, a idade do casamento, as relações sexuais, a
incidência das práticas contraceptivas, entre outras. “O homem, durante
milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso,
capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua
vida de ser vivo está em questão”. (FOUCAULT, 1988, p. 134).
Com o texto “O que é a crítica?” [Crítica e Aufklärung] (1978), Foucault
resgata o desenvolvimento histórico do conceito de biopolítica no que ele chama
de “arte de governar” (FOUCAULT, 2010, p. 2). Sendo que entende por governo
uma: “[...] prática social de sujeitar os indivíduos por mecanismos de poder
que reclamam de uma verdade [...]”. (FOUCAULT, 2010, p. 5). Nesse texto,
defende que a origem da arte de governar remonta a pastoral cristã. Durante a
Idade Média desenvolveu-se uma forma de governo sobre os homens que tinham como
objetivo a direção de sua consciência para conduzi-los para a salvação, isto
implicava todo um jogo de saber e técnicas de poder.
Já no texto Omnes et singulatim: para uma crítica da razão política
(1979), publicado em Ditos & Escritos IV, Foucault aborda o poder
individualizante que o poder pastoral exerce sobre a vida dos indivíduos e,
também, como esta atitude foi incorporada pela arte de governar moderna. Este
segundo aspecto será abordado mais a diante. Segundo Foucault (2006b, p. 368) o
cristianismo está baseado em uma pastoral que se exerce por um conhecimento
particular de suas ovelhas, prática que se realizava pelas práticas da
confissão, do exame e da direção da consciência. Tais práticas permitem ao
pastor conhecer a necessidade de cada um, suas angústias, pecados, desejos,
segredos, etc. Fazendo com que o indivíduo mesmo professe a verdade sobre si.
Verdade que tem como parâmetro a obediência às regras e dogmas estabelecidos.
Retomando o texto de 1978, Foucault afirma (2010, p. 2) que a partir do
sec. XV houve uma verdadeira explosão da arte de governar os homens, ou seja, há
uma laicização de uma atitude que estava restrita à prática religiosa.
[...] multiplicação dessa arte de governar em domínios variados:
como governar as crianças, como governar os pobres e os mendigos,
como governar uma família, uma casa, como governar os exércitos,
como governar os diferentes grupos, as cidades, os Estados, como
governar seu próprio corpo, como governar seu próprio espírito.
Como governar, acredito que esta foi uma das questões fundamentais
do que se passou no século XV ou no XVI. (FOUCAULT, 2010, p. 2).
Como governar? Como se governar? Como governar os outros? Essas são
questões que estão em jogo na arte de governar que se multiplica. Dentre todas
essas formas de governo, o interesse de Foucault se direcionará para a análise
do governo político. Com o conceito de biopolítica, Foucault volta suas análises
para o Estado enquanto prática de governo baseada em uma racionalidade que visa
certas estratégias políticas com pretensões de administrar a vida e o corpo da
população.
Na obra “Segurança, Território, População” (1977-78), Foucault mostra
que a partir do séc. XVIII a questão do governo irá se desenvolver sob um novo
enfoque: a vida dos indivíduos considerados na dimensão da população. Esse poder
está presente nos diferentes meios e instrumentos que o Estado utiliza para con-
trolar os problemas que surgem em torno da cidade, tais como: as doenças epidê-
micas (como a varíola), a fome (escassez alimentar), a guerra (com feridos e
mortos), a distribuição demográfica, o controle da natalidade, entre outros.
Para Foucault o problema político moderno gira em torno da população. Assim,
afirma:
[...] noção capital do século XVIII, é a população considerada do
ponto de vista das suas opiniões, das suas maneiras de fazer,
comportamentos, dos seus hábitos, dos seus temores, dos seus
preconceitos, das suas exigências, é aquilo sobre o que se age por
meio da educação, das campanhas, dos convencimentos. (FOUCAULT,
2008b, p. 118).
Nesse sentido, trata-se de governar populações, educar, controlar sua mo-
bilidade territorial, medicalizar, favorecer o seu crescimento e bem-estar. A
população torna-se um objeto que importa conhecer para poder controlar. Somente
é possível agir sobre ela, quando se conhece seus desejos, comportamentos, an-
gústias, enfim, tudo que envolve a vida de um indivíduo em grupo. Para Foucault
(2008b, p. 17s), aparece neste momento a preocupação com a cidade ligada ao de-
senvolvimento de um Estado administrativo. A cidade é o espaço onde surge novos
saberes (estatística, economia e demografia e, em seguida, a preocupação com a
saúde pública e as ciências humanas da psicologia, psiquiatria e psicanálise)
indispensáveis para o governo biopolítico. Quanto mais conhecido, melhor para
modificá-lo, transformá-lo, manejá-lo. A produção de saberes é imprescindível ao
exercício do biopoder.
É a partir do séc. XVIII que diferentes questões que envolvem a vida da
população tomam a dimensão de um problema político.
É então que vemos as coisas aparecem, problemas como habitat, as
condições de vida em uma cidade, higiene pública, a mudança da
relação entre fecundidade e da mortalidade. Isso levanta a questão
de como fazer para que as pessoas tenham mais filhos, em qualquer
caso, como podemos regular o fluxo de pessoas, como também podemos
controlar a taxa de crescimento da população e da migração. E a
partir daí uma série de técnicas observacionais entre os quais
está, evidentemente, a estatística, mas também todos os grandes
organismos administrativos, econômicos e políticos, que são
responsáveis pela regulação da população (FOUCAULT, 2012, p. 246,
tradução nossa).
Embora não haja contradição entre as análises do poder disciplinar e da
biopolítica, pois ambas se complementam com o propósito de analisar o processo
de normalização, deve-se notar a relevância da mudança na pesquisa genealógica
para dar conta de explicar porque o biológico tornou-se algo de lutas políticas.
A diferença nas análises é evidente, pois enquanto o poder disciplinar busca
revelar como o indivíduo torna-se um sujeito dócil e útil, o biopoder pretende
mostrar que o indivíduo enquanto espécie humana (enquanto população) tornou-se
algo da gestão calculada da vida.
Nesse sentido, o trabalho de Michael Hardt e Antonio Negri, na obra
“Império”, expõe no mesmo horizonte da biopolítica de Foucault e do conceito
de Sociedade de Controle de Gilles Deleuze, como a gestão da vida tornou-se alvo
do governo político. Nessa obra, defendem que o “Império”, diferente do
Imperialismo cujo poder estava centralizado na força do soberano: o Estado
moderno, antes se constitui como um biopoder, que intensificado pelo processo de
globalização da informação e comunicação, governa o fluxo da vida por meio das
relações de produção. “As grandes potências industriais e financeiras produzem,
desse modo, não apenas mercadorias mas também subjetividades. Produzem
subjetividades agenciais dentro do contexto biopolítico: produzem necessidades,
relações sociais, corpos e mentes – ou seja, produzem produtores”. (HART;
NEGRI, 2002, p. 51). Para os autores, a vida tornou-se mercantilizada, somos
produzidos como produtores, nossa subjetividade precisa guiar-se pela
criatividade.
PARA UMA CRÍTICA DA RAZÃO GOVERNAMENTAL
No texto Omnes et singulatim: para uma crítica da razão política (1979),
Foucault associa a arte de governar o Estado com o poder individualizador do
governo pastoral da tradição cristã. O interesse de Foucault é resgatar a
evolução do pastorado como uma tecnologia de poder e o problema do poder
individualizante. “Aparentemente, essa evolução é oposta à evolução para um
Estado centralizado. Penso, de fato, no desenvolvimento das técnicas de poder
voltadas para os indivíduos e destinadas a dirigi-los de maneira contínua e
permanente”. (FOUCAULT, 2006b, p. 357).
Seu objetivo (FOUCAULT, 2006b, p. 372) não visa discutir sobre a formação
do Estado moderno, nem quer resgatar os processos econômicos, sociais e
políticos que possibilitaram sua origem. Antes, sua investigação pretende
analisar a organização política estatal como prática de uma racionalidade
presente no exercício do poder do Estado e que se constitui como um “[...]
governo dos indivíduos por sua própria verdade” (FOUCAULT, 2006b, p. 370).
O propósito de Foucault ao analisar o Estado é o de investigar, como o
próprio título da obra indica, uma crítica a racionalidade presente na forma de
governo, isto é, analisar a racionalidade que está em jogo no exercício do poder
do Estado. O autor mesmo admite que é um título pretencioso (FOUCAULT, 2006b, p.
355). Tal empreendimento será realizado através da investigação de “[...] dois
corpos de doutrina: a razão de Estado e a teoria da polícia”. (FOUCAULT, 2006b,
p. 372, grifo do autor).
A razão de Estado deve ser entendida como “[...] uma racionalidade
própria à arte de governar os Estados”. (FOUCAULT, 2006b, p. 374). E é
justamente nesta racionalidade que o governo do Estado tem sua especificidade em
relação às outras formas de governo. Em que consiste essa racionalidade?
Foucault diz ser algo “[...] simples: a arte de governar é racional se a
reflexão a conduz a observar a natureza daquilo que é governado – no caso, o
Estado”. (FOUCAULT, 2006b, p. 374, grifo do autor). Essa razão de Estado busca
constituir um governo autônomo, tendo uma identidade enquanto instituição e uma
forma de organização capaz de reger-se a si mesmo.
Para conquistar essa autonomia, essa razão de Estado precisa conhecer a
própria natureza daquilo que pretende governar: o Estado. Aí reside a
especificidade dessa racionalidade: precisa estar alicerçado em certo saber
capaz de aumentar e reforçar sua potência. Nisto consiste a razão de Estado:
“[...] um governo racional capaz de aumentar a potência do Estado de acordo com
ele próprio, passa pela constituição prévia de um certo tipo de saber”.
(FOUCAULT, 2006b, p. 376).
Essa razão de Estado se opõe a duas tradições. Primeiro, a tradição
cristã, para a qual o governo era justo em sua natureza porque tem como
referência todo um sistema de leis: humanas, natural e divina. Tal concepção não
se interessa pelo que é o Estado, mas pelo que ele deve ser. Segunda ruptura com
a tradição política de Maquiavel, para o qual o modelo de governo do príncipe
(Soberano) era critério para manter o Estado. A razão, ao contrário, a razão de
Estado busca justamente reforçar o Estado e não o Soberano.
A teoria da polícia diz respeito “[...] à doutrina da polícia, ela
define a natureza dos objetivos da atividade racional do Estado; ela definiu a
natureza dos objetivos que ele persegue, a forma geral dos instrumentos que ele
emprega”. (FOUCAULT, 2006b, p. 373). Assim, não se deve associar “polícia”
com a instituição que conhecemos, mas o que os autores do séc. XVII e XVIII se
referem com este termo é a uma técnica de governo própria ao Estado. Com esse
conceito Foucault quer se referir ao Estado enquanto governo que tem o homem em
todo o domínio de sua existência como alvo de sua administração.
A polícia engloba tudo, mas de um ponto de vista extremamente
particular. Homens e coisas são consideradas em suas relações: a
coexistência dos homens sobre um território; as relações de
propriedade; o que eles produzem; o que se troca no mercado. Ela
se interessa também pela maneira como eles vivem, pelas doenças e
pelos acidentes aos quais estão expostos. É o homem vivo, ativo e
produtivo que a polícia vigia. (FOUCAULT, 2006b, p. 378-379, grifo
nosso).
Para fundamentar essa ideia da ação da polícia sobre a vida do indivíduo,
Foucault (2006b, p. 377-382) resgata alguns teóricos da época, como: Turquet de
Mayerne, que em 1961 elaborou para a Holanda uma das “primeiras utopias-progra-
mas de Estado policiado”; O administrador De Lamare, que no início do séc. XVI-
II apresenta sua “compilação dos regulamentos de polícia” para o reino Fran-
cês. Para De Lamare, aponta Foucault, a polícia “vela por tudo o que diz res-
peito à felicidade dos homens” e “tudo o que regulamenta a sociedade (as rela-
ções sociais)”; já Von Justi, autor alemão, é para Foucault o melhor que refle-
te a evolução do problema da polícia como arte de governar os homens. Segundo
Foucault, Von Justi consegue expressar com maior clareza alguns elementos funda-
mentais na doutrina da polícia. Um primeiro, a finalidade da arte de governar é
fazer a associação entre a vida do indivíduo e a fortalecimento do Estado:
“[...] o objetivo da arte moderna de governar, ou da racionalidade estatal: de-
senvolver esses elementos constitutivos da vida dos indivíduos de tal forma que
seu desenvolvimento reforce também a potência do Estado”. (FOUCAULT, 2006b, p.
383). Outro elemento, se refere a população como objeto da polícia: “Ao longo
do século XVIII, e sobretudo na Alemanha, é a população – isto é, um grupo de
indivíduos vivendo em uma área dada – que é definida como o objeto da
polícia”. (FOUCAULT, 2006b, p. 383). Enfim, um terceiro elemento, diz respeito
a associação do saber da estatística (enquanto descrição do Estado) com a arte
de governar: o que permite, “[...] ao mesmo tempo, uma arte de governar e méto-
do para analisar uma população vivendo sobre um território. (FOUCAULT, 2006b, p.
384).
Segundo Rabinow e Dreyfus (1995, p. 154), Foucault mostra que a tarefa da
polícia é o controle do indivíduo e da população enquanto conquista de um Estado
administrativo de bem-estar. “A polícia cuida para que o homem esteja vivo,
ativo e produtivo”. (RABINOW; DREYFUS, 1995, p. 154). As necessidades humanas
tornam-se algo da polícia, da intervenção do Estado, para assegurar a força e a
vitalidade do mesmo.
O que Foucault quis mostrar, com a descrição dos autores acima, foi a
descrição do desenvolvimento de certa racionalidade política que tem como alvo a
gestão do corpo social: a população. Daí pode-se entender melhor o propósito
deste texto, como já exposto no início deste tópico, que o próprio título reve-
la: ser uma crítica do papel da razão na arte de governar.
O governo dos homens pelos homens [...] supõe uma certa forma de
racionalidade, e não uma violência instrumental. [...] Não basta
fazer o processo da razão em geral. O que é preciso recolocar em
questão é a forma de racionalidade com que se depara. [...] A
questão é: como são racionalizadas as relações de poder? Apresen-
tá-la é a única maneira de evitar que outras instituições, com os
mesmos objetivos e os mesmos efeitos, tomem seu lugar. (FOUCAULT,
2006b, p. 385, grifo nosso).
Nisto consiste a importância do termo “crítica” no título deste texto:
vigiar os abusos dos mecanismos de poder presente nas formas de racionalidade
política.
O texto acima mencionado O que é a crítica? [Crítica e Aufklärung] (1978)
também contribui para compreender o que Foucault entende pela noção de crítica. Nes-
se texto, o autor francês buscará em Kant um fundamento para a filosofia como
uma história crítica do pensamento em sua atualidade. Para Foucault, quando Kant
em 1784 publica um texto como resposta a questão “Was ist Aufklärung?” (FOU-
CAULT, 2005b, p. 335)45, surge o primeiro passo para fazer da filosofia uma
constante problematização do presente, postura esta que faz parte do mais íntimo
que procurou praticar em sua filosofia.
A simpatia de Foucault pelo escrito de Kant sobre a Aufklärung se deve ao
modo como este relaciona sua filosofia com a atualidade: uma análise das
condições do exercício da razão. A referência ao modelo kantiano não se deve ao
fato do que pretende Kant, ao exaltar a razão, mas, pelo contrário, refere-se à
postura crítica em relação ao presente. O que diferencia os projetos de Foucault
45 Para entender o contexto histórico do texto de Kant conferir Ditos & Escritos II (2005b, p.
335). Em relação ao conteúdo do escrito: para Foucault o pensador alemão ao tratar da
Aufklärung está discutindo a questão do Iluminismo (movimento pelo esclarecimento), sobre o
papel da razão na luta contra a “minoridade” (incapacidade dos homens se utilizarem de seu
próprio entendimento). Segundo Foucault (2005b, p. 340), Kant “[...] descreve de fato a
Aufklärung como o momento em que a humanidade fará uso de sua própria razão, sem se submeter a
nenhuma autoridade”. Portanto, a atitude de Kant busca libertar a razão no que a aprisiona em
sua atualidade.
e Kant, entre outras questões, é que enquanto este faz uma crítica do presente
procurando libertar a razão das formas de aprisionamento, aquele quer questionar
a própria forma como nos guiamos pela racionalidade. É isso que defende Michel
Senellart, em “A crítica da razão governamental em Michel Foucault” (1995),
onde afirma: “A atitude crítica consiste pois em repensar a Aufklärung, não
como a aurora do reino luminoso da razão, mas como esforço permanente para
interrogar as racionalidades, tagarelas ou mudas, que nos conduzem”.
(SENELLART, 1995, p. 5).
Enquanto, Kant desloca a crítica para as condições do saber (condições de
possibilidade do conhecimento), neutralizando seus efeitos políticos; Foucault
irá fazer da crítica uma atitude política. Essa atitude crítica é interpretada
como vontade de não ser governado, nas palavras de Foucault:
[...] uma sorte de forma cultural geral, ao mesmo tempo atitude
moral e política, maneira de pensar etc. e que eu chamaria
simplesmente arte de não ser governado ou ainda arte de não ser
governado assim e a esse preço. E eu proporia então, como uma
primeira definição da crítica, esta caracterização geral: a arte
de não ser de tal forma governado (FOUCAULT, 2010, p. 3-4).
A atitude de não ser governado, não no sentido de um desgoverno em
absoluto ou de um anarquismo fundamental, mas como vontade de “não ser
governado assim”, ou seja, não aceitar esse tipo de governo específico que age
com poder sobre mim. “Como não ser governado assim, por isso, em nome desses
princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não
dessa forma, não para isso, não por eles”. (FOUCAULT, 2010, p.3, grifo do
autor).
Na atitude kantiana, Foucault vê nascer uma maneira de filosofar que pro-
blematiza a atualidade. Uma ontologia do presente, de nós mesmos. “’O que
acontece atualmente e o que somos nós, nós que talvez não sejamos nada mais e
nada além daquilo que acontece atualmente?’ A questão da filosofia é a questão
deste presente que é o que somos”. (FOUCAULT, 2005b, p. 239, grifo do autor).
Essa atitude visa fazer uma inquirição do presente, não apenas para fazer uma
descrição do que se passa, mas, porque só é sabendo como se formou o que nós so-
mos que é possível libertar-se do que nos constituiu.
Diante de um poder que produz indivíduos assujeitados, como pensar a li-
berdade? A liberdade constitui, em Foucault, uma atitude de resistência. “Não
há poder sem recusa ou revolta em potência”. (FOUCAULT, 2006b, p. 384). Onde
existe poder, existe também a possibilidade de resistência. Segundo Foucault
(2005c, p. 241) a resistência é coextensiva e contemporânea ao poder. “[...] a
partir do momento em que há relação de poder, há uma possibilidade de resistên-
cia. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua domina-
ção em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa”. (2005c, p.
241). Contudo, não se trata de produzir uma luta contra o poder, antes, deve-se
localizar seus pontos de apoio, as forças onde atua. “O que se pode é recusar o
tipo de saber e as práticas que excluem o diferente, que não deixam opção para o
que ele chamou de atos concretos de liberdade”. (ARAÚJO, 2009, p. 226).
A atitude crítica contribui para a construção da resistência, pois como
diz Foucault, ela se realiza como a “arte da inservidão voluntária” (FOUCAULT,
2010, p. 3), mas não no sentido de uma insubmissão anárquica, antes deve ser
compreendida como um desassujeitamento, nisso reside a função essencial da crí-
tica. A crítica é um ato criativo, pois o indivíduo livre das amarras que o
constitui, busca a construção de si. Postura que coloca em ação o “princípio de
uma crítica e de uma criação permanente de nós mesmos em nossa autonomia”.
(2005b, p. 346).
Nas obras dos anos 80, Foucault pensará a construção da liberdade através
do que chama estética da existência, ou seja, em oposição as práticas de
subjetivação, o indivíduo através da prática de si constrói sua subjetividade,
sua própria existência e das práticas sociais. O governo de si, como superação
ao governo dos outros (biopolítica), constitui uma solução ético-política, em
que a conquista da liberdade e da autonomia se dá pela recriação e reinvenção de
novas formas de existência. Uma ética do cuidado de si como prática da
liberdade.
EDUCAÇÃO E SUBJETIVIDADE
Embora Foucault não tenha construído nenhuma teoria sobre a educação,
suas análises do poder disciplinar e do biopoder permitem investigar como ela é
utilizada e para que fins. Seu interesse pela educação está em perceber como uma
sociedade utiliza dela para colocar em ação os poderes que nela agem. “Todo
sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a
apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem
consigo”. (FOUCAULT, 2006a, p. 44).
Desse modo, a escola/educação no modelo disciplinar aparece como um
dispositivo estratégico para formar um indivíduo disciplinado. A organização do
tempo e a disposição do espaço, que nasce na modernidade com o processo de
industrialização, visam o controle das ações humanas com o objetivo de otimizar
seus movimentos para atender a demanda da produção burguesa. O poder disciplinar
age sobre o corpo do indivíduo, anulando sua capacidade intelectual, tornando-o
frágil e dócil ao modelo capitalista.
A disciplina é, em essência, o mecanismo de poder pelo qual
chegamos a controlar no corpo social até os elementos mais tênues
pelos quais chegamos a atingir os próprios átomos sociais, ou
seja, os indivíduos. Técnicas de individualização do poder. Como
cuidar de alguém, como controlar sua conduta, comportamento,
habilidades, como intensificar seu desempenho, como multiplicar
suas capacidades, como colocá-lo no lugar onde ele será mais útil,
isto é, do meu ponto de vista, a disciplina. (FOUCAULT, 2012, p.
243, tradução nossa).
O que Foucault entende por disciplina está diretamente ligado com certa
prática de domínio sobre si, dentro os quais a educação cumpre um papel
fundamental.
A partir da abordagem do biopoder, pode-se perceber a educação como um
mecanismo que intensifica seus poderes sobre o indivíduo, isto porque, além de
agir sobre o corpo através dos saberes médicos que visam preservar a vida e suas
energias, também exerce um poder sobre a mente, pois o que a sociedade espera
formar é um sujeito flexível e criativo. Essa ideia, Foucault defende na obra
Nascimento da Biopolítica (1978-1979), onde mostra como na sociedade neoliberal
o trabalho passa a ser analisado a partir das estratégias de conduta de quem
trabalha, ou seja, o trabalho será relacionado ao próprio comportamento humano.
“O que é trabalhar para quem trabalha?”, pergunta Foucault. O trabalhador
deixa de ser um objeto no processo do capital e passa a ser sujeito na
construção de si, contudo esse processo ainda constitui uma sujeição, pois sua
identidade é formada a partir de uma verdade que está fora de si.
Nessa obra, Foucault desenvolve o conceito de “capital humano”
(FOUCAULT, 2008a, p. 311)46, o qual diz respeito as competências que o
trabalhador possui e desenvolve no decorrer de sua vida. Assim, afirma:
[...] um capital humano no curso da vida dos indivíduos, que se
colocam todos os problemas e que novos tipos de análise são
apresentados pelos neoliberais. Formar capital humano, formar
portanto essas espécies de competência-máquina que vão produzir
renda, ou melhor, que vão ser remuneradas por renda, quer dizer o
quê? Quer dizer, é claro, fazer o que se chama de investimentos
educacionais. (FOUCAULT, 2008a, p. 315, grifo nosso).
Aqui defende a tese de que a economia neoliberal visa investir e formar
no indivíduo um capital humano para o mercado de trabalho. Ainda, segundo
Foucault (2008a, p. 315), os investimentos educacionais que produzem o capital
humano na economia neoliberal, vai além da prática do aprendizado escolar e
profissional. Ele passa também pelo tempo que os pais dedicam na formação dos
filhos, que não depende apenas do nível cultural dos pais, mas de suas condições
econômicas, famílias mais abastadas dedicam mais qualidade no cuidado e
vigilância para com seus filhos. Passa ainda, pelos problemas de higiene pública
e proteção à saúde. O cuidado médico com a saúde do indivíduo constitui um
investimento no capital humano, conservando e utilizando-o pelo maior tempo
possível. A educação, na governamentalidade neoliberal, passa a ser valorizada e
investida pelo indivíduo, por empresas e Estado, com vista a melhorar o capital
humano. A formação educacional aparece na racionalidade do governo neoliberal
como elemento estratégico para seu funcionamento.
Para se referir a biopolítica de Foucault, Gilles Deleuze usa o termo
“sociedade de controle” (texto “Post-Scriptum sobre as Sociedades de
Controle”). Nesse texto, a educação em uma sociedade de controle aparece sob o
modelo da empresa, ou seja, nessa realidade cria-se um ambiente de competição,
46 No curso Nascimento da Biopolítica (2008a, p. 312-314) Foucault aborda elementos inatos e
adquiridos que podem compor o capital humano. Os elementos inatos dizem respeito a utilização da
genética para a melhoria do capital humano. Já os elementos adquiridos é a constituição
voluntária de sua competência no curso de sua vida, sendo esse o alvo da razão neoliberal.
tendo como princípio o salário por mérito e a ênfase na formação permanente. O
autor aponta que na sociedade disciplinar era preciso sempre recomeçar, seja na
escola, na fábrica, etc., já na sociedade de controle nunca se termina nada. No
texto a seguir, Deleuze descreve o que marca a escola nessa sociedade de
controle: “No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação
contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono
correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da ‘empresa’
em todos os níveis de escolaridade” (DELEUZE, 1992, p. 226).
Nesse sentido, a ideia de formação permanente/continuada além de
constituir na sociedade de controle uma ferramenta capaz de instigar o indivíduo
a estar sempre investindo em seu capital humano, também funciona como um
poderoso elemento de construção de subjetividade, ou seja, um instrumento
político para direcionar as condutas individuais e coletivas sob o modelo das
competências e da criatividade. A educação permanente é uma exigência nestes
novos tempos do governo neoliberal. Embora seja ilusório pensar que por meio
dela haja transformação social, ao contrário, sua prática mantém os indivíduos
ocupados consigo e, por consequência, fechados aos problemas éticos e políticos.
Apesar de Foucault mostrar um olhar da educação enredado aos poderes vi-
gentes, torna-se imprescindível pensá-la como instrumento de libertação. É pre-
ciso superar a educação moderna como prática de poder sobre os outros e conduzir
a educação como no sentido grego do cuidado de si, ou seja, a educação deve le-
var o indivíduo a uma prática de si, que ao escolher a si mesmo, busca sua eman-
cipação. Para Foucault, os gregos inventaram a relação consigo, a subjetividade,
mas, sobretudo, a ideia de que primeiro é preciso governar-se a si mesmo para
depois cuidar dos outros.
Além disso, governar a si próprio também é um ato de resistência aos po-
deres dos outros. Daí, a necessidade de se fazer da educação um instrumento po-
lítico, isso significa, que por meio dela é possível opor resistência aos pode-
res constituídos. Segundo Deleuze e Guattari (1992, p. 140): “Falta-nos resis-
tência ao presente. [...] A europeização não constitui um devir, constitui so-
mente a história do capitalismo que impede o devir dos povos sujeitados”. É
preciso pensar a educação como resistência, como exercício da diferença, que
promove a transformação do presente, dos territórios estabelecidos.
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O Homem desumanizado como limite do Esclarecimento
Marcos Antonio de Souza Brito47
RESUMO
O Esclarecimento, como processo de autoconhecimento e conhecimento
da natureza, contou com apologistas (a maioria dos pensadores) e
com apontamentos dos seus limites, feitos primeiramente por Jean
Jacques Rousseau; também Kant,apesar de ser grande entusiasta do
processo,admitiu limites à sua efetivação;o anti-semitismo foi
abordado como demonstração de limite para a razão, em sua tarefa
de proporcionar a tão exaltada emancipação humana.No século XX a
escola de Frankfurt retomou à crítica a idéia central deste
processo: a idéia de que o esclarecimento representa um grande
progresso para a humanidade, na medida em que permite ao homem
conhecer a verdade sobre a natureza, fator fundamental para sua
crescente conquista de autonomia.
Palavras-chave: Esclarecimento; Razão; Emancipação.
O chamado movimento iluminista, registrado na história do pensamento
enquanto um conjunto de idéias produzidas por diversos pensadores da época,
contava com uma característica básica: a idéia relativa ao desenvolvimento da
razão e da ciência, através do qual a humanidade seria esclarecida e com isso a
vida em sociedade seria melhor. Ninguém mais apropriado para ilustrar esse
posicionamento que o filósofo alemão Imanuel Kant; em toda sua obra o predomínio
da razão sobre qualquer outro móvel da ação humana é notório, sobretudo ao que
diz respeito aos instintos naturais. A questão central da obra kantiana é
estabelecer quais são os limites da razão pura, quando discorre sobre as
possibilidades do conhecimento teórico e da abstração, e da razão prática quando
trata da ação humana. Há uma aparente contradição se considerarmos, sem nenhum
cuidado, que o grande representante do esclarecimento foi quem, ele próprio,
apontou os limites da razão e o descuido está justamente em não perceber que
este limite não se deve a nenhum fator intrínseco a razão e sim, as condições
47 Graduado em filosofia pela Universidade Metodista de São Paulo, com ênfase na
obra de Arthur [email protected]
com as quais podemos conhecer. É na perspectiva de “movimento”, ou seja, algo
em processo de realização,que Kant concebe o estágio da ciência de sua
época,marcada por crescente autonomia em relação aos fundamentos epistemológicos
da antiguidade e da era medieval. Sendo movimento, deve partir de um ponto em
direção a outro;equivale dizer que para o homem o Iluminismo possui percurso pré
definido e se apresenta como processo de auto-conhecimento e conhecimento do
mundo, capaz de tirá-lo da minoridade rumo à maioridade. É processo na medida em
que, contando com princípios pré-estabelecidos, parte em direção àquilo sobre o
que pretende se realizar. Ao referir-se ao homem moderno devemos levar em
consideração sua inserção neste movimento de esclarecimento,não sendo mais que
um processo contínuo de conquista de autonomia. Falamos apenas em “processo”
quando nos referimos a este movimento.
Em definitivo, os limites da razão assumidos por Kant coincidem com os
limites da experiência possível. Conhecemos pelo tato até onde nossas mãos
alcançam, nossa visão nos apresentam apenas o que os olhos podem ver...
Alcançamos pela razão até onde pode ir o sujeito do conhecimento através da
experiência; além disso, é perfeitamente possível que haja opiniões, crenças,
hipóteses, mas não conhecimento, pois para isso é necessário conjugar as formas
a priori da intuição sensível, as categorias do entendimento de um lado, somados
aos dados da experiência. A vinculação de Kant à modernidade está,
principalmente, no fato de centralizar para o conhecimento, o foco na razão
enquanto propriedade do sujeito cognoscente e não tanto no objeto; essa
valorização da razão é uma das maiores características que se manifestam nas
ciências quando entramos na modernidade e, de certa forma, este é o critério que
se utiliza, com frequência, quando se quer referir a essa época. A forma como
Kant opera esta centralidade da razão é bastante peculiar,representando para a
História da filosofia uma “revolução copernicana”.
É no sujeito que se encontram as condições a priori da experiência; a
razão aparece como uma propriedade do sujeito que percebe o mundo através das
condições a priori de todas as experiências possíveis. As condições, a priori
concentradas no sujeito, são tão importantes quanto “os dados da
observação”,ou seja, sem a experiência essas condições permanecem vazias e não
podem sintetizar nenhum conhecimento. As citadas condições a priori na filosofia
de Kant, são pelo menos em número de dezessete: as doze categorias do
entendimento,exclusivamente pelas quais todas as formas de experiências do mundo
são possíveis, somam-se às duas intuições sensíveis (tempo e espaço) e mais, às
três ideias inatas de eu,mundo e liberdade.
Se o objeto presente, percebido pelo nosso aparelho sensorial, representa
o limite do que podemos conhecer é certo que nele, falando de termos
cognoscíveis, só há aquilo que lhe doamos. Após quadricular o mundo, dizemos que
cada parte é um quadrado; sendo assim, é conveniente para tal artifício a devida
ridicularização promovida por Nietzsche, no século XIX, ressalvando que longe de
se apresentar como prática enganosa, há um abismo infinito entre a mera
aparência das coisas e como de fato ela é. Sua realidade, conforme pode nos
proporcionar seu exame crítico,vale dizer,mesmo não estando de posse da coisa-
em-si a distância entre aquilo que a crítica da razão pode nos oferecer e a mera
aparência é muito grande.
Quando alguém esconde uma coisa atrás de um arbusto, vai procurá-
la ali mesmo e a encontra, não há muito que gabar nesse procurar e
encontrar: e é assim que passa com o procurar e encontrar da
“verdade” no interior do distrito da razão.
(Nietzsche,1974,p.50)
É nesse sentido que Kant faz “crítica”, não agregando ao objeto nenhum
elemento que não faça parte de sua constituição e teoricamente isso se expressa
em não dizer dele mais do que realmente se sabe.
É preciso retomar que sob certo parâmetro, o de contemporaneidade, toda
pessoa da época deve ser considerada Iluminista, porém há outro sentido e mais
importante qual deve ser tomado como predominante: Iluminista é toda pessoa que
incorporou seus princípios fundamentais, entre os quais, além daquele exposto
acima, destacamos a crença na emergência de um homem cada vez melhor
proporcionada pelo desenvolvimento da razão e da ciência.O homem cada vez mais
esclarecido, proporcionalmente, estaria cada vez mais próximo da perfeição.
O selo da contemporaneidade com o qual se pode atribuir a designação de
Iluminista a toda pessoa da época de seu surgimento e consolidação, tem o mesmo
rigor (melhor, falta deste) comparado à atribuição de nazista a toda pessoa
simplesmente por ter sido testemunha deste fenômeno político do século XX . Tão
frágil critério resulta em descrédito justamente por não dizer nada mais que o
fator cronológico prevaleceu. A identificação de Iluminista àquele que, talvez
de forma inconsciente, incorporou seus princípios e refletiu isso em sua vida e
obra contem notadamente um critério mais responsável;acatamos este
expediente,mais ainda por sermos compelidos a tratar da obra de um
pensador,referência a esta distinção,quando nos propomos a tornar claro quais
são realmente os limites do esclarecimento. Historicamente, seu início,apesar de
se tratar de um processo teórico,foi marcado por uma certa euforia cada vez mais
contagiosa à medida que se consolidava o método científico e novos conhecimentos
acerca dos fenômenos naturais eram anunciados. A postura teórica típica era
acreditar que a humanidade havia dado início a um acelerado processo de
desvencilhamento dos produtos da mitologia, do misticismo e, brevemente, as
nuvens que nos envolviam num mundo fantástico seriam dissipadas, não restando
nada mais que fenômenos físicos regidos por leis físicas. Esse processo entrou
para a História do pensamento como um corpo de ideias otimistas em relação ao
homem,um movimento intelectual basicamente,fato que não gerou nenhum
impedimento de sua assimilação e execução prática por parte de muitos
governantes da Europa. De certa forma, o conjunto de ideias trazidas à luz pelos
pensadores iluministas formavam, para estes “Déspotas Esclarecidos”, uma
teoria da administração pública, fazendo da incorporação dessas ideias no
interior do Estado a origem da introdução do racionalismo no negócios políticos.
A práxis do processo, ao promover a observação de suas ideias e sua
aplicação prática por estes governantes, demonstra desde o início o seu caráter
inexorável; mais tarde observou-se que o alto grau de racionalidade, ao ser
introduzido nos assuntos políticos, foi progressivamente envolvendo o Estado com
as amarras da burocracia.
O conjunto das três críticas kantianas (da razão prática, da razão pura e
do juízo), em comparação com esse clima, de nenhuma forma deve ser concebida
como contenção ao processo de esclarecimento, nessa época já estabelecido
teórica e praticamente. Contrariamente, a obra kantiana demonstra o vigor
irresistível,a força incalculável de um processo que transforma as iniciativas
de sua contestação em fontes eficientes de sua afirmação. A reforma religiosa
ocorrida no século XVI, poderia ser interpretada como demonstração de fraqueza e
princípio de falência do catolicismo; porém, a manutenção de sua estrutura nos
faz acreditar que serviu para mostrar o vigor dessa doutrina e principalmente da
instituição que a protege.A princípio sendo uma crítica, a reforma religiosa
logo se configurou em componente necessário a uma reestruturação e
fortalecimento daquilo que atacava; papel que, em época mais próxima, foi
relegada à indústria cultural cuja disseminação da ideologia do progresso
converte as manifestações da contracultura em significativa contribuição ao
status quo.
No século XVIII, em pleno auge do movimento Iluminista, encontramos um
pensador distinto devido a marca de sua subversão à grande onda otimista de sua
época;na obra de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) pode ser encontrada com
facilidade afirmações que o colocam do lado oposto a quase totalidade dos seus
pares,apologistas do processo. O referencial bibliográfico, nesse caso é,
principalmente, a obra Discurso sobre as Ciências e as Artes, na qual Rousseau
demonstra evidente desconfiança quanto à conclusão da promessa feita pelo
processo de esclarecimento. Em muitos momentos dessa obra (em outras também é
possível tal verificação) uma suspeita é lançada e, por vezes, declarações são
feitas no sentido de mostrar que o caminho do progresso, via original do
esclarecimento, responsável por fazer do homem um ser cada vez mais próximo da
perfeição, é inviável;uma ilusão para a qual tempo suficiente ainda não havia
transcorrido para demonstrá-la.
Onde não existe nenhum efeito, não há causa a procurar; mas aqui o
efeito é certo, a depravação real; e nossas almas se foram
corrompendo à medida que nossas ciências e nossas artes avançaram
para a perfeição. (Rousseau,1974, p.213)
Declaração como essa, e mais outras tantas que são feitas, não podem
conferir a seu autor a insígnia de partidário do esclarecimento; há aí uma clara
afirmação de pelo menos uma limitação e esta diz respeito ao efeito prometido de
emancipação pelo progressivo processo de esclarecimento. O processo comprometeu-
se muito mais do que de fato pode executar; as promessa são bem maiores
comparadas à capacidade de realização inerente ao processo,isto é, o que está na
base da contestação Rousseauniana sobre um exaltado poder ilimitado da Razão.
Melhor que apontar as debilidades de um processo e tentar antecipar sua
frustração a partir da Crítica do seu fundamento original, é fazê-lo partindo
dos resultados produzidos. Compromete-se, demasiada e gratuitamente, aquele que
propõe: desta causa tal efeito é necessário,sendo o contrário disso,o
pressuposto: os efeitos negativos presentes têm origem numa causa até então
insuspeita;um método muito mais seguro e difícil de se contestar.
Objetivamente podemos dizer, com base na concepção precedente, que o
progresso nas ciências e nas artes, portanto o progresso atribuído ao
esclarecimento, não está alinhado ao aprimoramento de caráter do homem, não
contribui para seu melhoramento e sim para sua corrupção tanto mais completa
quanto mais esclarecida a humanidade. Na moral situa-se o limite preocupante e
mais evidente do esclarecimento e a humanidade quando pensa estar usufruindo dos
benefícios gerados por sua habilidade distintiva, a razão, no fundo padece
vítima dos seus efeitos colaterais. A felicidade do homem pressupõe relação
consequente, mais com o sentimento,base da concepção da bondade natural
concernente a todo ser,em oposição ao propalado discurso da razão,instrumento de
emancipação humana,da forma como os contemporâneos de Rousseau faziam. À razão
deve-se o aperfeiçoamento dos vícios humanos e da infelicidade característica da
sociedade civil, formada pelos signatários de um “contrato social”,cujo
sentido está em cada um alienar todos os seus direitos pessoais, aderir a
coletividade e, desta forma, ampliar suas possibilidades.
Enfim,cada qual,dando-se a todos,não se dá a ninguém,e,como não
existe um associado sobre quem não se adquira o mesmo direito que
lhe foi cedido,ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e
maior força para conservar o que se tem. (Rousseau pp31)
Assim comentou Rousseau acerca da perpetuação do “conhecimento” tornada
possível pelo surgimento da imprensa e sua relação com as gerações futuras
Deus todo poderoso! Tu, que tens nas mãos os espíritos, livra-nos
das luzes e das artes funestas de nossos pais, e dai-nos a
ignorância,a inocência e a pobreza,os únicos bens que nos trarão a
felicidade e que serão preciosos a teus olhos! (Rousseau, p. 229).
Rousseau nunca se mostrou convencido desses benefícios; em todo campo
investigativo por ele explorado, o pessimismo lançado ao processo civilizatório
era patente. Na obra “Emílio”, dedicada à educação, está estabelecida a causa
da corrupção moral do homem no contato social, mais precisamente na civilização
originada por aquele modelo de sociedade germinada no solo fértil e promissor do
esclarecimento. Em suma, importa-nos inserir Rousseau entre aqueles pensadores
não contaminados pela onda otimista em relação ao futuro esclarecido do homem, à
parte ao contingente dotado de forte crença romântica no progresso,
especialmente no progresso caracterizado pela passagem do homem de uma situação
rude e primitiva à posição de homem esclarecido, cujos mistérios da natureza aos
poucos vão sendo desvendados e doravante ele pode pôr-se na condição de senhor
do mundo e de si mesmo.
De forma geral, este foi o ponto mais alto e comprometido do
esclarecimento: o domínio da natureza, com tudo o que isso significa, enquanto
categoria totalizante, logo foi percebida como a pretensão mais significativa;
um novo homem nascia, à medida que este princípio fundamental seguia seu
cumprimento e o homem, ao realizá-lo, é inegável que ia se refazendo. A
humanidade deve, obrigatoriamente, assumir como critério de sobrevivência a
exploração da natureza; nesse contato aparece a máxima da condição humana:
relacionar-se com a natureza no sentido de retirar-lhe o necessário para a
manutenção da vida, essa é a forma da exploração referida,em nada se
assemelhando à atividade predatória e altamente destrutiva praticada pelos
modernos esclarecidos. A irracionalidade desta violência auto infligida,na
medida que se volta contra a natureza, vai desde a atitude de poluir as águas
para depois despender enormes recursos com sua purificação, até o sério
comprometimento de todas as espécies de vida pelo esgotamento dos recursos
naturais. Não resta dúvida, quanto a essa relação, que ao fazê-la seu autor já
não é mais o mesmo:ao transformar a natureza o homem transforma-se, como
qualquer processo natural para o qual, neste caso,concorre apenas essa relação
dialética. Um novo modelo de homem é instaurado no instante em que deixa de
enxergar na natureza algo a ser contemplado,algo dotado de um mistério
divino,devendo por isso ser apenas vislumbrado, e quando muito apreciado, nas
formas artísticas e passa a enxergá-la como algo que deve ser dominado,como
objeto de conhecimento possível a partir do qual será racionalmente explorado.
Vai aí uma diferença muito grande entre estes antípodas (…) Mesmo com
exagero podemos falar em duas espécies,aquela que via na natureza simplesmente a
fonte dos recursos necessários a sua sobrevivência, cujo domínio total sobre a
natureza declara consolidado e se lança com mais audácia e cabeça mais
esclarecida ao espaço em busca de matéria viva. Sob o pretexto de que o
padecimento da espécie (o insistente problema da fome,por exemplo) sobre a Terra
deve-se a incipiência do processo está o objetivo de oferecer a cada um a
seguinte conclusão lógica: tão logo todo obscurantismo esteja ultrapassado,todo
desconhecido seja conquistado estaremos em condições de sanar todo infortúnio. O
fato é que há muito já reunimos as condições necessárias à supressão das
carências humanas e se, atualmente, ainda somos acompanhados de perto por velhas
“maldições”, sua razão deve ser buscada na segmentação social em classes com
interesses diametralmente opostos,cuja plenitude de uma implica no fim dos
privilégios infundados da outra. Domínio e exploração da natureza não se
traduzem exclusivamente em pesquisas científicas sobre as florestas,os
rios,espécies animais,etc. Da nova mentalidade que via na natureza algo possível
de ser conhecido, com vistas a exploração predatória, para uma postura que,
semelhantemente, concebia o homem também como algo a ser explorado friamente, a
distância é bem pouca. Auschwitz nos proporcionou uma demonstração da verdade
contida na sentença: “ciência neutra”. Da mesma forma, fez com que acordassem
do sono dogmático, os últimos perseverantes,com seus sonhos vívidos de alívio e
emancipação humana pela ciência.
Faz muito sentido pensar em uma “Educação após Auschwitz”,como também
seria apropriado pensar em Arte após Auschwitz, política, ciência, religião,etc.
Não restam dúvidas de que a existência desse campo obrigou a serem repensadas
todas as esferas de convívio social; obriga, ainda hoje, a que sejam repensados
os limites das crenças presentes na (in)consciência social. Um grande divisor de
águas,assim pode ser designado sem problema e não seria nada de mais depositar
as memórias dessa barbárie na fase pré-histórica da humanidade. Quando forem
definitivamente superadas as lacunas que um dia possibilitaram Auschwitz,
quando,inclusive, sua lembrança desaparecer por completo do imaginário popular e
não houver nenhum rastro, estaremos em condições de inscrever para a eternidade
a História do homem.
A busca pelas raízes promotoras de Auschwitz continha, em todo caso, este
pressuposto: impedir, a qualquer tempo, seu reaparecimento. As pesquisas de
maior sucesso buscaram na psicologia o fundamento para a formação da
personalidade autoritária,fonte política do totalitarismo; Theodor W. Adorno,
filósofo alemão do século XX, ligado à escola de Frankfurt e pesquisar da
formação desta personalidade,admitindo com propriedade a impossibilidade de
transformação dos pressupostos objetivos causadores daqueles eventos
funestos,depositou grande esperança em se trabalhar com os fatores
subjetivos,imprescindíveis a torná-los,na origem, frustrados. Vem daí sua
valorização da educação, cuja atribuição maior está em tornar inviável uma
reedição das desgraças havidas naquele campo, ou seja, anular qualquer chance de
reaparecimento dos horrores causados pelo homem contra sua própria espécie.
A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para
a educação. (Adorno-Educação após Auschwitz ).
Depois de um longo período de ruído estridente causado pelo
esclarecimento, tantos discursos exaltados, a emergência de um clima romântico
altamente otimista, defesas apaixonadas proferidas a toda altura, enfim caímos
no grande silêncio de Auschwitz...Silêncio profundo sob o qual paramos para
refletir sobre o sentido do Ser,o que é o homem e qual seu papel no mundo. Desde
os gregos clássicos nos isentamos arbitrariamente desta introspecção tão
importante;abandonamos a questão do Ser considerando tratar-se de problema já
resolvido mediante a entrada em cena do personagem divino, ou, lidamos com ela
como algo carente de razão e, portanto, sem ao menos necessidade de colocação.
Retornamos à questão da Ontologia como a mais premente de nossa época. O devido
tratamento teórico e prático referente às guerras mundiais e ao nazismo
principalmente, assumiu tal delicadeza que qualquer relativização insere
automaticamente seu proponente entre os defensores da barbárie;no auge dos
acontecimentos, o desconhecimento fazia da pessoa ignorante responsável por
aquilo em decurso: ou se é contra ou se é favorável ao nazismo,tal é o sentido
de lhe conferirmos a insígnia incontestável de divisor de águas e, igualmente, o
sentido dos versos de Brecht48 na poesia “aos que virão depois de nós”.
(...) Que tempos são esses, quando
Falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Se alguma esperança ainda era possível de ser atribuída ao processo,
Auschwitz dissipou violentamente todas elas: as do passado, nostalgicamente
vistas como produto de uma felicidade inocente, e aquelas depositadas às
gerações sucessoras. O esclarecimento, sutilmente, leva a acreditar que a
idiossincrasia é uma questão de decodificação; cada gesto, cada detalhe da
manifestação de vida, cada iniciativa, por mais insondável, é passível de
reprodução em laboratório... Auschwitz, até o presente momento, foi nosso maior
laboratório. Entretanto, se algo ali pôde ser verificado foi apenas o quanto
podemos ser repugnantes e nocivos uns para os outros. Auschwitz é a Verdade
teleológica do processo.
Da impotência do processo inicialmente identificada com os limites da
razão em decorrência da finitude das experiências possíveis, passando pela
observação de aumento dos vícios humanos em proporção a autonomia da razão,
chegamos ao século XX, na escola de Frankfurt com Adorno e Horkheimer apontando
o anti-semitismo como símbolo maior dos limites do esclarecimento. Desta vez a
razão não será tratada como estrutura única e neutra, operando apenas com base
em sua aparelhagem, a priori somadas aos objetos como nos são dados; seu aspecto
48 Eugen Berthold Friedrich Brecht (1898-1956), Poeta, romancista, dramaturgo alemão, teórico
renovador do teatro moderno.
dual é posto à mostra, uma parte esforça-se de fato pela emancipação humana, a
outra, se encarrega dos infortúnios a que a humanidade é acometida. Independente
da verdadeira causa ser ou não identificada, é incontestável a falência do
processo em meados do século XX, especialmente ao que diz respeito às promessas
de liberdade, felicidade, fim da miséria, da corrupção moral. A alegação da
natureza dualística da razão tem como origem o apelo desesperado à identificação
de uma causa, de algo que pudesse preencher o grande vazio na mente de quem
procurava entender o porquê da barbárie representada pelas guerras mundiais e
pelo nazismo. É espontânea a reação da busca por respostas quando nos deparamos
em meio a uma situação de calamidade a qual julgamos não merecer; como também é
natural,quando não encontramos respostas cabíveis,criarmos nossas próprias
respostas ou, por fim,quando disso não somos capazes,creditar tudo a uma força
mágica, divina, provinda do além-mundo. Platão quando viu serem esgotadas todas
as respostas para a questão sobre a origem das virtudes nos homens, não hesitou
em declará-las provenientes de um ser divino
Sócrates: Assim, pois, meu excelente Mênon,segundo nosso
raciocínio,a virtude nos pareceu resultar,naqueles em que se
encontra,de um exclusivo favor divino. (Platão,1962,p.112)
Se, por ventura, ao inconsciente freudiano lhe falta uma demonstração
empírica irrefutável, é inegável que dá conta com eficiência de uma soma de
fenômenos para os quais até seu aparecimento eram incógnitas insolúveis.
Reconhecer a falência do processo implica na aceitação do claro paradoxo
tornado explícito pela dialética do esclarecimento entre o sucesso alcançado nas
pesquisas da física quântica no interior da matéria e o inatingível conhecimento
necessário à erradicação dos males como a miséria, a fome, doenças, etc.
Dialética nesse caso não significa apenas a conversão de uma potência –a razão-
inicialmente com seu discurso emancipador ao seu contrário, representado pelos
graves episódios históricos do século XX; está presente quando reclamamos mais
dos seus poderes para entender o que ela própria causou. É como situarmo-nos
num ponto e almejar obter, por nossos próprios olhos, a vista distante desse
ponto. O esclarecimento abriu espaço à metrificação do mundo, sua consolidação
produziu um tipo de homem sempre acompanhado por régua e esquadro,com os quais
mede,quantifica,classifica, tudo a sua volta,lançando descrédito a tudo que não
se reduza a meras equações. E mais: fez desse homem o modelo a ser seguido,
espécie autorizada a existir.
O que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade
torna-se suspeito para o esclarecimento.(Adorno,2006,p.19)
Por ironia e para nosso prejuízo, seguimos avançando apressadamente rumo
à realização plena da milenar tese pitagórica concernente a transformação de
todas as experiências de vida em números; reduzimos a símbolos numéricos desde
as coisas mais convenientes àquilo que em nenhuma outra época suspeitamos da
possibilidade de seu cálculo. Transformamos todo procedimento científico em
método de quantificação, a partir do qual o discurso da ciência edificou sua
identidade como pretensa fonte de verdades ao mesmo tempo que fez de todo
elemento dessa numerologia um signo sagrado digno de culto. O aspecto místico,
característico da escola fundada por Pitágoras, em consequência da atribuição de
poderes mágicos aos números e fórmulas matemáticas, tomou forma sob o
esclarecimento na medida em que a falta de clareza sobre a relação entre teoria
e prática faz pensar que os fenômenos da natureza, assim como os da sociedade,
seguem pressupostos teóricos rigorosamente. O moderno homem de ciência não
procura proceder de forma a extrair das experiências práticas o conteúdo de sua
teoria; contrariamente, em tudo vê submissão a leis naturais perfeitamente
cognoscíveis, o que lhe permite agregar em cada coisa um caráter de
previsibilidade. Ao prever o comportamento do tempo, os movimentos da economia,
o futuro da política, etc, o homem de ciência desfila, na passarela em que só a
razão importa, a moda do esclarecimento com os mesmos trajes de “mago dos
números” dos pitagóricos. Caso não seja verificado alinhamento do previsto com
sua teoria precedente, os fatos da natureza é que devem ser revistos; afinal o
mundo da prática,nesta perspectiva, caminha a reboque da teoria com suas
verdades cheias de luzes.
Ao tomar conhecimento das máximas regentes da escola
pitagórica,principalmente aquela referente ao governo do mundo,o homem
esclarecido tratou imediatamente de dominá-los; então chegamos ao ponto em que,
para cada coisa ou fenômeno existente, há invariavelmente um gráfico para sua
representação. Se não é possível assumir diretamente a direção da embarcação
resta conquistar seu condutor: comandar o comandante, além da eficiência, nos
isenta de incômodos.
As relações que os homens promovem entre si, ao serem todas elas
esquadrinhadas, classificadas, perderam seu elemento espontâneo, cada gesto está
previamente calculado, e toda graça que poderíamos sentir com a presença do
outro perdeu-se em meio a previsibilidade de tudo. Em relação à obra de Arte,
Walter Benjamim49, aludia, com base nos mesmos pressupostos, ao fim daquilo que
chamou de aura; com a técnica propiciada pela luzes cada obra tornou-se passível
de ser reproduzida: na verdade cada aparição sua está destinada a esse fim.
A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma
obra de arte criada para ser reproduzida. (Benjamim, 1985, p. 171)
No caso da arte foi possível encontrar um conceito que concentra a soma
de tudo o que se perdeu com a reprodução técnica, tudo o que é esvaziado de
valor, mesmo sob a cópia mais perfeita; e no caso da existência humana,haveria
algo capaz de concentrar tudo o que se perdeu com a técnica decorrente do
processo? O Existencialismo como movimento intelectual de idéias poderia ter
surgido em qualquer fase da História da filosofia, porém não se deve creditar ao
acaso seu aparecimento mediante as mesmas condições que permitiram falar em
“perda da aura” e com isso, fim da arte.
O encanto percebido na natureza, em seus fenômenos, na companhia dos
semelhantes e, consequentemente, a alegria de viver disso derivada, tudo isso
foi asfixiado com a chegada da maioridade kantiana. O total descrédito lançado à
arte pré-socrática, sua condenação a forma de conhecimento incapaz de acessar a
verdade e, por isso, incapaz de produzir algo de valor, ganhou impulso decisivo
com o processo: agora,toda a palavra emitida à margem da ciência pretendente a
49 Walter Benjamim nasceu em Berlim em 1892; com a ascensão do nazismo na Alemanha refugiou-se na
Dinamarca,onde escreveu A OBRA DE ARTE NA ÉPOCA DE SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA. Em 1940 quando
as tropas alemãs entram na cidade, Benjamim foge,mas quando descobre que é impossível atravessa
a fronteira franco-espanhola, suicida-se a 27 de Setembro em Port Bou na Catalunia.
ser conhecimento cai invariavelmente no ridículo e se houver insistência sua
cassação pode contar com métodos violentos. O que um dia foi destinado a arte,
doravante voltou-se contra tudo o que não se submete ao selo “testado
cientificamente”. Há dois sentidos para desencanto, ambos são interdependentes
e em todo o caso desanimadores para a vida ocidental cheia de luzes, porém sem
nenhum brilho. Falamos de desencanto para traduzir o fim dos segredos da
natureza, para aludir ao conjunto de conhecimento das leis físicas regentes do
universo, acessíveis a nós por meio do qual passamos a saber que os sons fortes
ouvidos num dia chuvoso, os raios intermitentes, não têm nada a ver com o estado
de humor dos deuses, tratando-se tão somente de fenômenos físicos perfeitamente
calculáveis, classificáveis, previsíveis, etc. Neste instante, é obvio que a
chuva já perdeu sua magia, perdeu a beleza que existe naquilo que nos agrada
tanto e, porém, não sabemos discorrer sobre nosso suposto merecimento, dado o
desconhecimento dos mecanismos que a provoca. Encantar-se com as gotas d’água
caindo gratuitamente passa a caracterizar o ignorante, aquele que devemos
ridicularizar, a fazer parte do típico comportamento da loucura, clara
manifestação de quem ainda não saiu da minoridade. Desencantar pode ser
traduzido por aquele procedimento de retirada do “véu de Maia”50, atitude
ousada que nos permite acessar as coisas diretamente e desta forma conhecer a
Verdade; também pode ser apontado como consequência do método cientifico, com o
qual passamos a conhecer a verdade acerca do mundo e do homem; típico
comportamento marcado pela aceitação destas verdades,tornando a vida destituída
de beleza, de arte, de magia;são estas as razões para desencantamento e, como
adiantado, ambas fomentam grande desestímulo à percepção do prazer de viver, a
contagiar-se mesmo com as banalidades a nossa volta, enfim a ser feliz num mundo
transbordante de razão e carente de emoção. Em face disso, compete-nos sentir
prazer com a presença do outro apenas pelo breve instante de duração da surpresa
de sua chegada, mais exatamente: nosso entusiasmo só dura enquanto nosso cérebro
não fez os “devidos cálculos”; tanto o prazer alcançado com a contemplação
estética quanto a alegria experimentada com a súbita percepção de alguém,
50 A expressão "Véu de Maia" ou "véu da ilusão" vem da filosofia indiana e significa esconder a
realidade das coisas em sua essência.
esvaem-se ao primeiro contato nos trazendo à ”realidade”, pois neste instante
(num curtíssimo espaço de tempo) fazemos toda contabilidade,as memórias mais
vantajosas são ativadas,destruindo aquele estado de graça e nos deixando apenas
na presença de um dos elos de uma cadeia utilitária.
Com permanente olhar calculador o homem esclarecido põe sob gráficos o
tamanho de nossos sonhos, o quanto de amor somos capazes de compartilhar, a
intensidade da saudade sentida, toma posse do que somos e sentimos agora e
igualmente daquilo que ainda não consumamos; diz saber mais sobre cada um de nós
comparado ao que nós mesmos sabemos. Quanta ousadia, quanta prepotência em
declarar antecipadamente conhecida e quantificada nossas pretensões, nossas
intenções de escolha, nossas sensações futuras, etc. Estampando seu selo em todo
objeto, cuja inscrição contem “decodificado” na face, passamos a procurar
pelos artifícios absolutamente humanos, pelas iniciativas notáveis por sua
exclusividade e fuga do previsível. Nosso espaço de atuação autônoma fica
esvaziado se para tudo que podemos há um cálculo precedente, dando-nos a certeza
sobre as possibilidades de sua execução e de seus efeitos.
O grande êxito do esclarecimento implicaria no fim dos fenômenos
exclusivamente humanos, a ninguém caberia imprimir no planeta uma marca de nossa
espécie e enfim assistiríamos a real conversão do mundo dos homens para o
mundo das máquinas. Se a massificação tornou-se um fenômeno moderno a isto não
se deve outra coisa a não ser a conclusão sobre a possibilidade de conhecimento
integral a cada singularidade, por mais diversos que sejamos. Por mais distintos
que possam ser os desejos algo de comum está presente em todos eles, fazendo da
contemplação de um a satisfação de todos. O esclarecimento, personificado na
figura do capitalista, sabe muito bem qual é este elemento comum: os homens
desejam mais o ato de desejar comparado ao próprio objeto desejado. Ao tomar
conhecimento deste aspecto da existência humana o capitalista, típico modelo das
luzes, entende que basta proceder alimentando a ilusão de satisfação definitiva
dos desejos alheios para ter sucesso. Cada objeto oferecido deve ser apresentado
como algo renovado, destinado a satisfação plena.
Aos ouvidos alienados, diariamente massacrados pela indústria cultural,
assume status de verdade indubitável a manchete: Amanhã irá chover tantos
milímetros, o frio será de tantos graus, mas as pessoas terão uma sensação
térmica de apenas tantos graus. Até chegar ao ponto de antecipar a intensidade
daquilo que sentiremos amanhã, o homem esclarecido contou com certo grau de
passividade dos ouvintes;agora, investido de tamanha autoridade,a verdade de
seu discurso parece depender dele exclusivamente,tornando a aprovação social
algo dispensável. Entre as atuais pregações deste homem está a superabundância
de alimentos para todos, em decorrência das pesquisas cientificas fornecedoras
de sementes transgênicas;sem dúvida a transgenia é o campo em que aparece mais
claramente o entrelaçamento do desenvolvimento da ciência (o processo) e a
indústria cultural. Os responsáveis pelas pesquisas com transgênicos,vestidos
com trajes de defensores do bem comum, exaltam na ciência a possibilidade da
produção de alimentos em dada magnitude capaz de sanar definitivamente o
problema da fome pelo mundo, e em consequência, pelo automático barateamento
dos produtos devido a alta quantidade, o alívio do fardo do trabalho. Como se
fosse um problema de produção e não de distribuição a indústria cultural se
encarrega de estampar os números que apontam uma produção maior a cada ano e
simultaneamente cala-se quanto aos mecanismos de distribuição de renda. É com a
tarefa de quebrar a resistência da sociedade e da comunidade cientifica sobre as
pesquisas com transgênicos que a indústria cultural assume seu papel,anunciando
para cada nova semente geneticamente modificada que se trata de “um pequeno
passo para o homem e um grande salto para a humanidade”. Este campo de
pesquisas, talvez o mais emblemático para mostrar a que e a quem de fato servem
o processo, caracteriza-se pela investida da ciência sobre a natureza na busca
por seus mecanismos de reprodução, com os quais a maximização da produção
agrícola seria alcançada. O homem do esclarecimento se porta diante da natureza
com os mesmos olhos que vê seus semelhantes: um olho para a eficiência, outro
para o utilitarismo; em seu vocabulário as palavras chaves são otimização,
maximização, exploração, utilidade.
As experiências atuais com o material genético das plantas e animais,
juntamente com o fundamento que as precedem, têm paralelo no auge do nazismo,
com as pesquisas diretamente feitas sobre o corpo de seres humanos em Auschwitz.
Buscar uma “raça pura” é idêntico a desenvolver novas espécies de plantas e
animais pela modificação genética. A pregação sobre os grandes benefícios da
transgenia encaminham-se para o mesmo arquivo aonde irá se juntar às promessas
do processo mais antigas; seus profetas autorizados, amparados pela indústria
cultural, em cada manifestação dão vida a máxima de que os discursos dominantes
de uma época são sempre os discursos da classe dominante. O grau de nocividade
para a saúde humana com o consumo de alimentos geneticamente modificados se não
são bem conhecidos, ao menos o são claramente as vantagens economicamente
percebidas pela venda destes alimentos. Quantas técnicas, invenções,
descobertas, não permaneceram ocultas até que se verificassem a existência de
condições que as tornassem economicamente viáveis? Faz pensar que para os males
em que a sociedade se envolve há sempre algo à espera de condições “ótimas”.
Pensamos em modificação genética com vistas a produzir mais com uma quantidade
fixa de insumos: sementes trabalhadas em laboratório podem reduzir os custos com
inseticidas, gerar plantas mais resistentes às intempéries da natureza e,
portanto produzir mais e melhores alimentos. Acontece que nada disso está ligado
a algum objetivo humanitário de socialização dos seus resultados, apesar dos
meios que compõem a indústria cultural insinuarem o contrário. Produz-se mais
para obter maior apropriação privada, ficando explicado, desta forma, o fato de
haver uma classe pequena com consumo acima do necessário, tornando este excesso
de consumo tão grande a ponto de se tornar motivo de preocupação para a saúde
pública, devido aos problemas da obesidade; e uma grande massa que mal consegue
o básico para sobreviver. Poderíamos pensar que mesmo sendo egoísta o móvel da
produtividade, importante é que seja alcançado para todos uma situação de
abundância de alimentos: não é o caso.
Quando se diz que o conhecimento é irresistível, pode-se estar fazendo
referência tanto a sua sedução quanto a natureza totalitária do processo;
irresistível, nesse caso, pode assumir a forma de sensação agradável quando
temos grandes enigmas decifrados (agrada-nos a simples contemplação da
curiosidade),ao mesmo tempo indica a impotência de qualquer barreira que se
possa levantar para conter o processo. A sociedade,abastecida pela ideologia
propagada pela indústria cultural sobre a dependência do progresso da humanidade
com o desenvolvimento da ciência, não repudia com a devida força as pesquisas
para modificação genética em plantas e animais,cujas razões não se tem bem ao
certo;com comportamento similar encara o andamento das pesquisas regidas pelos
mesmos fundamentos voltadas à exploração genética de sua própria espécie.
O projeto genoma humano teve início em 1990,não registrando, desde seu
início, nenhuma perturbação no sentido da contestação social; sua elaboração foi
consequência de um esforço de pelo menos quinze países com o objetivo de fazer o
mapeamento do código genético de plantas e animais, em sua previsão inicial isso
demandaria cerca de quinze anos.
À parte seu sentido mais amplo, anteriormente exposto, cujo risco maior
está na inserção da sociedade numa fase em que as formas da sensibilidade seriam
negadas, com todas as relações humanas sendo equacionadas pela numerologia e,
portanto tornadas frias e mecânicas, a dialética do esclarecimento desenvolve
seu aspecto mais restrito: o caso do racismo. Com relação a “sentido amplo”
designamos um estado de desumanização em decorrência do império dos elementos da
razão como única mediação autorizada das relações humanas. O que mais nos causa
dano é a cultura edificada em torno da existência da Verdade e seu acesso
exclusivo pelos processos racionais. Descartes partiu em busca do seu método
infalível, de um fundamento sólido para sua ciência revolucionária, situando o
homem num mar de incertezas, com as dúvidas cobrindo-lhe que mal conseguia tocar
os pés no chão tão envolto estava; mas agora a situação é quase inversa,porém
não tão confortável. Inventamos a Verdade! E ao fazê-lo reclamamos sua patente
exclusiva, mais ainda ao mecanismo de sua conquista, a razão. De posse destes
bens, entre os mais caros para nossa civilização ocidental, julgamos sermos
capazes de abrir caminho direto para a felicidade; para nossa grande lamentação
o feitiço virou: sentimo-nos cada vez mais longe de nossas mais altas aspirações
de felicidade, liberdade, e seguimos resignando-nos com as evidências de um
futuro incerto, da certeza de nossa capacidade de auto-destruição, das ilusões
que criamos a nós mesmos. Chegamos a maturidade kantiana com a sensação de uma
dolorida nostalgia nas memórias de nossa infância,nem tanto ingênua,mas
certamente feliz. Depois de muito tempo correndo apressadamente, alcançamos o
ponto de chegada; neste instante, subitamente, percebemos que já não sabemos
mais por que queríamos tanto chegar,muito menos que fazer dessa conquista. O
racismo,na versão específica do anti-semitismo, apareceu como a demonstração
pontual do limite do esclarecimento;para sua emergência concorreram fatores
objetivos,ligados a situação econômica dos judeus na Alemanha e fatores
subjetivos,na expressão de uma contrapartida à dominação e humilhação impostas
aos alemães após a II guerra, sobre um grupo eleito para isso.
O anti-semitismo, como símbolo de falência do processo, cumpre o papel de
declaração envergonhada de impotência de tudo aquilo que um dia se apresentou a
humanidade como seu apanágio. Fomos incapazes de notar, apesar da quantidade de
luzes, no semelhante algo distinto daquilo que na origem foi declarado passível
de domínio e exploração: a natureza. Enquanto determinado grupo era mantido onde
as luzes não alcançavam, vivendo seus dias mais escuros, simultaneamente
produzimos as condições para o extermínio de todas as formas de vida do planeta.
O anti-semitismo é um esquema profundamente arraigado, um ritual
da civilização, e os pogroms são os verdadeiros assassinatos
rituais. Neles fica demonstrada a impotência daquilo que poderia
refreá-los, a impotência da reflexão, da significação e, por fim,
da verdade.( Adorno,2006, p.141)
O esclarecimento é totalitário, fato que nos aparece mais evidente quando
analisamos dois aspectos principais: O tratamento do outro ( o não-idêntico de
Adorno) e a indústria cultural. Todas as manifestações artísticas por mais que
isso não transpareça claramente ou insinue algum grau de contestação já estão
desde a origem incluídas como mais um produto da indústria cultural; o
tratamento dado a diversidade (de métodos,estilos,ritmos,etc.) fortalece o poder
da ideologia contida em cada produto ao prolongar seu alcance,incluindo na mesma
seara desde os “ouvidos mais regredidos” aos apreciadores de música erudita. O
sucesso supostamente alcançado pelos novos métodos e produtos da contracultura
tem sempre destino certo: a vitrine onde são expostas as vitórias da indústria
cultural.
A natureza totalitária do esclarecimento torna-se explícita quando
percebemos que ao seu domínio só podemos escapar adaptando-se, o que se dá
depois das resistências serem todas vencidas. As formas de lazer possíveis são
um prolongamento do trabalho alienado, para cada uma de suas formas a indústria
cultural disponibiliza um produto especifico para nosso entretenimento,
deixando-nos em condições de continuar sua realização. Longe da fábrica nos
divertimos com os produtos de nosso próprio trabalho de forma a estarmos, a todo
momento, ou diretamente envolvidos na produção ou fazendo dos bens produzidos
fontes de relaxamento com vistas a uma produção futura. Na fábrica, o processo
de trabalho com sua linha de produção, segmentação hierárquica, ritmos
controlados e tantos outros mecanismos de perpetuação da alienação, é
continuamente abastecido por indivíduos sobre os quais esta indústria, com seu
efeito de resignação, dar-lhes o tratamento adequando.
Um novo grande sucesso é produzido cada vez que um grande contingente
compra os produtos de um artista iniciante e paga por suas apresentações;
falamos em “é produzido” e nada há de mais apropriado, pois sob o estopim de
um marketing calculado todos pagam pelas apresentações do principiante,
realizando seu sucesso a partir do qual, agora, dizem estar adquirindo os
produtos de um grande e genuíno mestre. No fundo a idolatria não é pelo artista
com seus talentos natos, mas por uma mercadoria enigmática ( o dinheiro) dotada
da capacidade de “descobrir” novos talentos. O fetiche se caracteriza pela
concessão de poderes mágicos aos produtos de nossas mãos: damos forma a uma
matéria para depois adorá-la e admiti-la como possuidora de poderes
transcendentes capazes, inclusive, de nos determinar o comportamento.
À industria cultural cabe a tarefa de manutenção das massas em
permanente estado de ignorância; é bastante comum a afirmação, em referência aos
produtos por ela oferecidos, de que se se tratam de cultura baixa é por que as
massas assim a querem;portanto,a excelência da indústria cultural está em
entregar ao grande público tão somente os conteúdos a ela reclamados e se, para
um observador externo, tudo não passa de quinta categoria é nas massas que se
deve procurar o culpado. Quando aparece um novo fenômeno artístico e fica
evidente sua desqualificação,inclusive para quem não tem a menor condição para a
elaboração de uma critica de arte coerente, diz-se: é isto o que o povo quer.
Este discurso faz da indústria cultural o mecanismo mais democrático presente na
sociedade, na medida em que efetiva os desejos das massas, entregando-lhes
numa bandeja seu pedido exatamente da forma como havia sido requerido;sendo
democrática precisa ser exaltada,aprimorada e nunca criticada. A homogeneidade
das aspirações e, com isso, daquilo que as satisfazem aparece como um
facilitador para o qual a indústria cultural nada tem a ver;quando a
massificação já estava posta,fato explícito pela igual satisfação proporcionada
pelos produtos da cultura em meio a indivíduos tão desiguais apareceu uma
indústria com a incumbência de gerar estes produtos. Nada disso condiz com os
fatos ao serem vistos mais detidamente por um observador isento,segundo as
análises de Adorno e Horkheimer sobre o tema. O crescente espaço conquistado
pela depravação cultural é consequência prevista do sucesso desta indústria,vale
dizer: o gosto cultural medíocre é uma decorrência do sistema encarregado da
manutenção de constante estado de obscuridade.
A atitude do público que, pretensamente e de fato, favorece o
sistema da indústria cultural é uma parte do sistema, não sua
desculpa. (Adorno, 2006, p.101)
Primeiramente promove-se, entre as massas, o gosto pelo desprezível
depois, colhe-se o fruto disso com a venda de supostos antídotos para o
desprezo. Não é pela força e sim pelo convencimento que as pessoas adquirem a
preferência por aquilo que não satisfaz suas reais necessidades, ou mesmo
tratam-lhes com explícito desrespeito; veja-se, por exemplo, o gosto por músicas
que denigrem o gênero humano,com maior evidencia a figura feminina. Derivado de
convencimento, este gosto pressupõe certa ideologia,à base da qual aceita-se
que isto é o máximo que a arte pode oferecer e no fundo as pessoas atingidas são
realmente baixas como a musica expõe.
Criar o problema pra vender a solução, tal é o procedimento planejado do
capitalista típico e do empresário encarregado do patrocínio de um “novo grande
sucesso”,ambos filhos legítimos das luzes, em cujos cálculos o que menos
interessa é o esclarecimento das massas. A indústria cultural,enquanto reduto do
ideal democrático e liberal, deixa cair sua máscara àqueles que perceberam no
estado de ignorância das massas um pressuposto necessário à manutenção
operacional da “roda do capitalismo”;enquanto ela estiver girando não faltarão
produtos disponíveis para a alienação e embrutecimento de quem os procuram.
Seguindo ao que já foi expresso, os homens preferem mais o desejo à coisa
desejada; ao que nos interessa, implica reconhecer que mesmo se mostrando
claramente como ilusão,para a humanidade, apegar-se ao processo é melhor que
nada ter a que se apegar. Quanto mais claro se torna a falência do
processo,quanto mais as promessas de emancipação transformam-se em ilusão
consciente,com mais força os homens se apegam a razão em busca da fuga deste
estado de coisas. À primeira vista a atitude natural seria abandonar o
processo,ao menos relativizar a razão como fonte infalível e única de acesso a
verdade;contrariamente naquilo que nos oprime buscamos liberdade. A civilização
ocidental, erigida ao som da máxima bíblica “conhecereis a Verdade...” não
demonstra preocupação sobre o método com o qual a ela se chega e com
razão,afinal não importa o caminho escolhido desde que se chegue ao destino
certo. Queremos a Verdade a todo custo,era o que estava inscrito em nosso
destino desde a época clássica;para consegui-la travamos luta com a mitologia e
todas as formas de crendices,porém atualmente sentimos que para isso há limites:
a superstição aparece para o homem como uma espécie de segunda natureza,de
forma a preferirmos nossa extinção a ter que conviver com sua superação pelos
conhecimentos conquistados nas questões tocantes ao sentido da vida humana.
Acontece que descendemos de uma tradição levantada sobre os pilares da lógica e
da razão: depois de milênios de predomínio desta via,é compreensível aceitarmos
passivamente seu império com sua concepção de Verdade. Comportamo-nos como seus
escravos pois para isso fomos educados. A certeza no caminho desta via reside em
que (no limite de nossa existência) iremos preferir o nada,a destruição total,a
nada ter a preferir. Quando esta via, a vitoriosa entre outras, estiver
absolutamente desacreditada e os demais caminhos de esperança forem
obstruídos,neste momento optaremos por não ter mais que depositar esperança em
nada,seguiremos à barbárie generalizada. A questão premente de nossa época
aponta neste sentido: podemos conviver admitindo a falência de qualquer
fundamento para a Verdade? Será possível haver humanidade quando todas as
crenças forem extintas, inclusive a mais decisiva delas, a crença na existência
da Verdade?
Referências
ADORNO,T.W; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos
filosóficos .Tradução: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
ADORNO, T.W. Prismas: crítica cultural e sociedade. Tradução de Augustin Wernet,
Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: editora ática, 1998.
______.Educação após Auschwits. Disponível em
http://adorno.planetaclix.pt/tadorno10.htm. Acesso em julho/2012.
BENJAMIM,Walter.Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. 4.ed. São
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BRECTH, B. Aos que virão depois de nós. Tradução de Manuel Bandeira. Disponível
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PLATÃO. Mênon. Trad. de Maura Iglésias. Rio de Janeiro: PUC - Rio, Loyola, 2001.
NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São
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Nova Cultural, 1996. (Os pensadores)
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens, in O contrato social e outros escritos, tradução
de Rolando Roque da Silva, São Paulo: Editora Cultrix.
Filosofia e Crítica Social
Rosalvo Schütz51
Introdução
Nosso propósito neste texto é explicitar um potencial crítico da
filosofia. Da mesma forma pretendemos evidenciar que o pensamento crítico é
importante para o fortalecimento de uma cultura democrática. A crítica social
viabilizada pela filosofia é condição fundamental para resistirmos a pretensões
totalitárias, como foi o caso do stalinismo e do nazismo, mas também da atual
sociedade administrada na qual, como veremos, nossa liberdade geralmente não
passa de aparência. Para tanto, faremos primeiramente uma distinção entre Teoria
Crítica e Teoria Tradicional e em seguida iremos nos deter em dois exemplos de
pensamentos/questões em que filosofia e crítica social se encontram. Os
pensadores da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Herbert Marcuse, que contam
entre os principais expoentes da chamada Teoria Crítica, serão nossas principais
referências teóricas.
Teoria Tradicional e Teoria Crítica
A expressão “teoria crítica” é geralmente atribuída às teorias
desenvolvidas no contexto da Escola de Frankfurt. De fato foi aí que a questão
do que seja teoria crítica foi tematizada de forma mais explícita. Paradigmático
nesse sentido é o texto de Max Horkheimer intitulado “Teoria Tradicional e
Teoria Crítica”. Nesse texto, além de buscar definir a diferença entre ambas as
possibilidades de teorias, traçou-se uma espécie de perspectiva investigativa
assumida pela maioria dos autores dessa escola. Ao mesmo tempo, nesse trabalho o
autor faz questão de enfatizar que a perspectiva crítica aí explicitada teria
sido inaugurada por Karl Marx, de forma que a teoria que estava sendo
desenvolvida no momento era apenas uma expressão desse posicionamento teórico-
crítico. Vejamos, resumidamente, alguns aspectos do que viria a caracterizar uma
51 Professor dos Cursos de Graduação e Pós-graduação (mestrado) em filosofia da (UNIOESTE)
Universidade Estadual do Oeste do Paraná e bolsista de produtividade do CNPq.
teoria crítica, na forma como ela teria sido desenvolvida por Marx, segundo
Horkheimer.
Em primeiro lugar, a teoria tradicional não é desprezada pela teoria
crítica. Ela não está errada! Marx, por exemplo, não costumava afirmar que as
teorias de A. Smith, D. Ricardo ou mesmo de Hegel estivessem erradas. Pelo
contrário, fazia a eles elogios no que diz respeito ao seu poder de descrição.
Sem os avanços feitos por esses autores Marx certamente teria tido dificuldades
enormes para desenvolver a sua teoria crítica. O reconhecimento da legitimidade
e do potencial da teoria tradicional na forma de diagnósticos de uma época (na
forma de autoconsciência de sua época, como diria Hegel), portanto, é um
ingrediente fundamental de uma teoria crítica. Sem esse diálogo com as diversas
áreas do conhecimento em suas expressões mais avançadas, a teoria crítica corre
o risco de simplesmente balbuciar intenções moralizantes na forma de críticas
externas. Isto, no entanto, não quer dizer que a teoria tradicional deva ser
aceita enquanto expressão mais adequada da realidade: ela é insuficiente na
medida em que quer domesticar o futuro determinando-o de forma prévia. A sua
insuficiência, e não o erro, portanto, é que constitui o seu caráter
tradicional. Segundo Horkheimer, o caráter tradicional de uma teoria pode ser
detectado na medida em que “naturaliza” a realidade descrita; em que busca
reduzir a realidade ao seu esquematismo supostamente a-histórico; na medida em
que tem pretensões de explicação absoluta, bloqueando as possibilidades de
transformação efetivamente existentes, “tal como seria possível em virtude dos
meios técnicos existentes” (1975, p. 145). A teoria tradicional seria,
portanto, duplamente insuficiente (apesar de não poder ser acusada de errada!):
ela não possibilita o evidenciamento da realidade como uma realidade
contraditória e, portanto, portadora de novas possibilidades; ao mesmo tempo ela
acomoda os sujeitos ao existente uma vez que o naturaliza. Essas insuficiências,
portanto, têm caráter ideologicamente conservador, pois, ao não evidenciar as
possibilidades objetivas imanentes à realidade (não redutíveis à sua teoria),
bloqueia a efetivação das mesmas. A insuficiência, portanto, não é de caráter
simplesmente quantitativo. É uma forma de teoria conivente com o existente e
esta é sua característica e função, função esta que os teóricos exercem de uma
ou outra forma, pois, inequivocamente, “[...] estão atrelados ao aparelho
social, suas realizações constituem um momento da autoprodução e da reprodução
contínua do existente, independentemente daquilo que imaginam a respeito disto”
(Idem, p. 131). O fato, por exemplo, de A. Smith não ter desenvolvido uma teoria
crítica ao estilo de Marx não deve ser atribuído a um déficit teórico, mas, sim,
ao comprometimento de A. Smith com a sociedade em questão. Nesse sentido, não se
pode afirmar que Marx foi apenas um economista melhorado. Os teóricos da
economia política da época jamais desenvolveriam tal teoria, simplesmente porque
aquele não era seu objetivo, pois o lugar social que ocupavam e “desde onde”
construíram suas teorias não os permitia. Ao mesmo tempo esse exemplo demonstra
que a teoria crítica pode e até mesmo deve apropriar-se de elementos da teoria
tradicional a fim de elaborar suas próprias teorias e diagnósticos da realidade.
A teoria crítica, portanto, apoiada nos mais diversos diagnósticos
fornecidos pela teoria tradicional, evidencia os limites dela ao apontar para as
possibilidades objetivas imanentes, mas bloqueadas, na realidade em questão. A
teoria crítica, portanto, não pode ser reduzida a uma “fabulação abstrata do
pensamento” (Nobre, 2008, p.12), mas também não pode se acomodar aos
diagnósticos da realidade apresentados pela teoria tradicional, uma vez que são
sempre insuficientes por não apontarem as possibilidades de libertação. Ou, como
afirma Horkheimer (1975, p. 143), a “simples descrição da consciência burguesa
não é suficiente para mostrar a verdade sobre sua classe” e, por isso, a teoria
crítica não pode estar “[...] nem ‘enraizada’ como a propaganda totalitária
nem é ‘livre-flutuante’ como a intelligentsia liberal” (Idem, p. 149).
Ocorre, no entanto, que a teoria crítica também apresenta e sugere um
diagnóstico do presente: este, porém, “tem de ser produzido em razão das
possibilidades de libertação da dominação do capital, à luz da emancipação
possível que o capitalismo carrega dentro de si” (Nobre, 2008, p. 13). Ao
apontar para a contradição existente entre promessa (descrita pela teoria
tradicional) e a realidade, a teoria crítica evidencia o que poderia ser e que
ainda não é por estar sendo bloqueado em vista da manutenção de um status quo. O
teórico crítico, portanto, deveria ter consciência de que sua teoria não é
apenas “[...] uma expressão da situação histórica concreta, mas também um fator
que estimula e que transforma” (Horkheimer, 1975, p. 144). É nesse sentido que
Adorno e Horkheimer puderam afirmar que a “[...] filosofia acredita na divisão
do trabalho e que ela exista para os homens, acredita no progresso e que ele
leva à liberdade. É por isso que entra facilmente em conflito com a divisão do
trabalho e com o progresso. Ela dá expressão à contradição entre crença e
realidade” (2006, p. 200).
As aparências e as promessas de uma realidade justa e livre, da sociedade
moderna, por exemplo, são desmascarados por Marx na medida em que evidencia a
exploração e a opressão como elementos constitutivos da sociedade capitalista.
Ao mesmo tempo, ao demonstrar o caráter histórico e social dessa sociedade, Marx
desconstrói a sua pretensa justificação natural, evidenciando, assim, que outra
realidade seria objetivamente possível, caso não estivesse bloqueada. Disso se
pode concluir com Horkheimer (1975, p. 140) que “[...] não existe teoria da
sociedade (...) que não inclua interesses políticos, e por cuja verdade, ao
invés de manter-se numa reflexão aparentemente neutra não tenha que se decidir
ao agir e pensar, ou seja, na própria atividade histórica concreta”. A teoria
passa, assim, a ser compreendida dentro de uma processualidade prática de
transformação.
Vejamos agora, exemplarmente, dois temas específicos a partir do olhar de
dois dos principais pensadores vinculados à Escola de Frankfurt, de como a
filosofia, numa perspectiva marcadamente crítica contribui para a crítica
social.
(Exemplo 01) Adorno: Pensamento Filosófico enquanto Crítica.
A clareza e a precisão dos conceitos é uma exigência que assola a
filosofia. Essa exigência é legítima e a filosofia não pode abrir mão do zelo
constante pela precisão e clareza conceitual. Esta, no entanto, é uma tarefa
ingrata: uma definição absoluta dos conceitos e do seu uso linguístico seria, de
certo modo, o fim da própria condição de possibilidade do filosofar. Quem
espera, em filosofia, chegar a conceitos absolutamente claros, precisos e
evidentes já está, de antemão, condenado a decepcionar-se. A redução do
pensamento filosófico a constructos lógico-causais de conceitos previamente
definidos certamente seria o próprio fim da filosofia. Alguém, com um olhar não
filosófico, tende, no entanto, a fazer a pergunta: “[...] por que vocês
simplesmente não definem os conceitos fundamentais?” (ADORNO, 1973, p. 09).
Ora, esta tentativa pode ser empreendida, porém, qualquer conceito que queiramos
definir precisa, necessariamente, ser explicado por outros conceitos, que não
ele mesmo (por vezes, inclusive, recorrendo ao seu contrário). O que nos leva a
evidenciar e aceitar o fato de que “[...] os conceitos somente podem ser
determinados por conceitos” (Idem, p. 11). Como cada conceito precisa,
evidentemente, ser esclarecido por outros, o propósito de trabalhar sempre com
conceitos claros e distintos não é uma tarefa fácil e, provavelmente,
interminável. Ou seja, uma determinação completa, definitiva e final de coisas
e pessoas não é possível. Isso seria o fim da possibilidade de pensamento.
Em último caso somos obrigados a apontar para algo (uma cor, por exemplo)
para poder indicar o que exatamente dizemos com determinados conceitos. Ou seja,
os conceitos mostram sua insuficiência. Adorno chega mesmo a afirmar, de forma
polêmica, que, embora seja um momento importante da filosofia, a questão da
definição dos conceitos individuais não é tarefa essencial da filosofia.
Entender os conceitos filosóficos nos remete, de certa forma, a toda a história
da filosofia, a entender o seu significado e função ou funções específicas que
assumiram em determinadas filosofias. Além disso, existem conceitos em filosofia
(espaço, tempo e ser, por exemplo) que simplesmente não podem ser definidos por
completo. É ilusão, portanto, pensar que o procedimento de definição possa ser
suficiente para adentrar progressivamente no pensamento filosófico.
Acrescente-se a isso que a definição diferenciada dos conceitos em
momentos diferenciados da história da filosofia aponta para as mudanças
subjacentes às construções filosóficas (que trazem à tona, inclusive, dimensões
sociais nas quais foram gestadas) sem que seu valor de verdade seja diminuído.
Mesmo que alguns conceitos se mantenham constantes na história da filosofia,
eles não podem se tornar imunes aos aspectos “qualitativamente novos” (Idem,
p. 16) que se manifestam e são gerados a partir dos novos usos que deles se
fazem. Essa vivacidade do pensamento não deixa que ele seja aprisionado por
qualquer forma de esquematismo prévio. Segundo Türcke (2004, p. 48), Adorno
estava convencido de que o “sistema é a prisão do espírito”. Conclui-se que,
em filosofia, esclarecimentos “[...] isolados de palavras não podem ser dados;
os esclarecimentos de palavras são apenas uma entrada e podem apenas ser
possibilitados pela relação explícita com a conexão em que estão” (ADORNO,
1973, p. 17). É justamente nessa “vida dos conceitos” que se dá a filosofia e
o pensamento filosófico52: “[...] que a vida dos conceitos [...] no fundo é o
mesmo que a filosofia [...] enquanto é uma filosofia e não apenas uma técnica
científica, é caracterizada sobremaneira por comportar-se de forma crítica
diante deste conceito da definição” (Idem, p 18). Pode-se afirmar (SEEL, 2006,
p. 77), que Adorno buscou superar a hipostasia dos conceitos sem, no entanto,
enfraquecer a força do pensamento conceitual: ele é vitalizado.
Mesmo assim, permanece um momento unificador na concepção defendida pelo
autor, mas este “[...] sobrevive sem a negação da negação e mesmo sem entregar-
se à abstração enquanto princípio supremo, de modo que não se progride a partir
de conceitos e por etapas até o conceito superior mais universal, mas esses
conceitos entram em uma constelação” (ADORNO, 2009, p. 140). Por isso, para
Adorno, pensar de forma filosófica significa configurar constelações
(conceituais) de tal forma que elas se esclareçam mutuamente, mas também e,
principalmente, para que, mesmo sendo produto da subjetividade humana, em seu
conjunto iluminem o objeto, mesmo que este objeto seja o próprio pensamento. Ao
mesmo tempo, dessa forma o próprio processo de vir-a-ser desses conceitos fica
preservado, não permitindo o seu enrijecimento ou a sua fetichização.
Constelação conceitual alguma pode, no entanto, se autoatribuir a pretensão de
ter iluminado por completo o objeto, mesmo porque as constelações não são algo
52 Segundo Souza (2004, p. 95), todas as obras de Adorno podem ser compreendidas dessa forma, ou
seja, elas mesmas significariam uma negação de uma discursividade linear, constituindo-se
antes em “[...] constelações de categorias e articulações de sentido extremamente sutis que
espelham também por sua estrutura [...] aquilo a que fazem referência”.
estático, mas estão em constante transformação. Adorno estabelece, inclusive,
uma analogia com as composições musicais: “Produzidas subjetivamente, essas
composições só dão bom resultado quando a produção subjetiva desaparece nelas. A
conexão que ela instaura – precisamente esta de 'constelação' – torna-se
legível como signo de verdade: do teor espiritual” (Idem, p. 143). Não se trata
de uma definição isolada de conceitos, mas sempre de um combinar dinâmico. A
metáfora é interessante: “Enquanto constelação, o pensamento teórico
circunscreve o conceito que ele gostaria de abrir, esperando que ele salte, mais
ou menos como os cadeados de cofres-fortes bem guardados: não apenas por meio de
uma única chave ou de um único número, mas de uma combinação numérica” (Idem,
p. 142).
Isso poderia nos levar a supor que Adorno abre mão da noção de verdade.
De fato ele próprio (1970, p.14) afirma que a contradição que resulta da
renúncia do absoluto e de, ao mesmo tempo, não abrir mão de um conceito de
verdade é o próprio elemento da filosofia, é nesse ínterim que ela se constitui.
Para Adorno, a própria verdade pode ser tida como constelação, no entanto, como
pode ser concluído do que foi dito acima, não uma constelação fixa e imutável,
mas uma constelação em devir: “Verdade é constelação em devir, não algo que se
percorre automaticamente, onde o sujeito seria talvez aliviado, mas
dispensável” (ADORNO, 1995b, p. 21). É no esforço subjetivo que as constelações
são reconstruídas, e isso acontece a cada vez que ao menos uma unidade dela se
transforma, pois assim “[...] a constelação de todas as categorias se altera,
e, com isso, uma vez mais cada uma delas” (ADORNO, 2009, p. 144). Sempre que
refletimos, ultrapassamos o pré-pensado e podemos implodir a realidade que se
sustenta nesses pressupostos, e o esforço subjetivo (a capacidade de fazer
experiências) para tal é indispensável. Ou, como sugere Türcke (2004, p. 51)
interpretando a questão: “O tema não existe sem variações. São elas que
revelam, por suas voltas e viradas grandiosas, cada vez mais o tema. Mas a
sequência das variações não obedece a uma lógica estrita; não está conduzida
pelos conceitos de fundamento e de consequência, pois o próprio tema questiona a
validade incondicional dos termos”. A concepção de verdade, portanto, deixa de
ser algo com contornos fixados, mas, pelo contrário, para poder continuar sendo
verdadeiro, o pensamento filosófico tem de se renovar constantemente, a partir
daquilo que ele não é, daquilo que lhe devolve a vivacidade: a experiência. Tal
experiência, só o sujeito pode realizar: “O pensar não deve reduzir-se ao
método, a verdade não é o resto que permanece após a eliminação do sujeito”
(1995b, p. 19). O pensamento que se enquadrar de forma a priori a regras tende a
se atrofiar. Ele precisa, por seu compromisso com a verdade, nutrir-se pela
admiração daquilo que ele ainda não é. Donde Adorno conclui que o “[...] pensar
filosófico só começa quando não se contenta com conhecimentos que se deixam
abstrair e dos quais nada mais se retira além daquilo que se colocou neles”
(Idem, p. 16). Evidentemente isso não deve levar ao menosprezo da tradição e dos
textos filosóficos: “Textos para interpretar e para criticar apoiam a
objetividade do pensamento” (Idem, p. 23). Pensar, portanto, significa estar em
constante construção de constelações buscando ‘iluminar’ mais, melhor e de
forma diferenciada alguma realidade (mesmo que sejam outras estrelas/conceitos).
O pensamento não pode permanecer ao que é dado: ao sugerir outras constelações
sugere também outras configurações da realidade. Conforme afirma Adorno em sua
Terminologia Filosófica I (1973, p.44), um caminho muito frutuoso na filosofia é
aquele que liga conceitos às terminologias recebidas/herdados pela história da
filosofia de modo a constituir com eles constelações de forma que estes termos,
pelas relações estabelecidas, se apresentem de maneira totalmente outra. Um dos
principais objetivos da filosofia seria, pois, fazer com que os conceitos percam
o seu “endurecimento” (Idem, p.55), quebrando o seu engessamento e situando-os
em outras constelações. O paralelo com configurações da realidade é evidente.
Também nela não percebemos certos aspectos se nosso pensamento for
demasiadamente estreitado, reduzido ao seu caráter classificatório em relação ao
“ser assim” do mundo. O pensamento assim concebido pode viabilizar o vir à
tona de coisas que a ideologia oculta.
Esse potencial crítico do pensamento filosófico seria, pois, uma
propriedade inerente e constitutiva do mesmo pensamento. Sem isso, a filosofia
tenderia a se degradar em sistema. Em vez de ser caracterizada pelo seu
potencial descritivo (a coruja de Minerva hegeliana), ela teria de estar, para
permanecer viva, em constante choque com o outro dela mesma: resistindo ao que é
apresentado como real. É uma concepção diretamente oposta àquela que sugere a
capacidade de domínio absoluto da razão, sem, no entanto, abrir mão do trabalho
do conceito e de uma noção de verdade.
Se, por um lado, pensar não é dominar, por outro lado, não existe
pensamento sem uma relação com o objeto. Sem uma relação produtiva que “resulta
do longo e paciente olhar” sobre ele. Ao tornar evidente o caráter constitutivo
do não-racional para a filosofia, Adorno questiona toda uma tradição filosófica
que simplesmente procurava negar essa dimensão e, ao mesmo tempo, reabilita o
thaumatzein grego como condição do filosofar. O amor implícito na noção de amor
à sabedoria (filosofia) não pode ser confundido com o domínio violento. Amor
requer a aproximação não violenta e que reconhece a alteridade enquanto legítima
não-identidade. Adorno insiste em afirmar que pensar é mais do que fazer uso da
racionalidade formal53 (apenas uma das capacidades da inteligência), chegando
mesmo a afirmar que pensar se aproxima antes da capacidade de fazer
experiências. Na Dialética do Esclarecimento, as consequências dessa redução já
haviam sido intuídas: “Reduzindo o objeto a uma lei ou a um número perde-se a
vida deste objeto” (ADORNO e HORKHEIMER, 2006, p. 16). Ou seja, pensar implica
fazer referência à realidade, a algum conteúdo sem deixar que a capacidade
autônoma e a espontaneidade do sujeito se atrofiem. Por isso também, para nosso
autor (1975, p.105 e ss.), a luta contra a indiferença é um dos principais
desafios de qualquer processo educativo que queira, de fato, evitar que
Auschwitz e seus pressupostos se repitam. É a superação da indiferença que
possibilita a experiência, que é a base para o pensamento autônomo que pode
gerar “[...] a força para a reflexão, para a autodeterminação, para o não-
participar” (ADORNO, 1975, p. 93).
A autonomia do pensamento, que já não mais é identificada com o domínio
53 A denúncia de uma racionalidade estreita é uma temática que pode ser tomada como um elemento
comum nos diversos integrantes da Escola de Frankfurt. Horkheimer (1974), por exemplo, em seu
texto Meios e Fins, alerta que uma razão reduzida à capacidade de classificar, deduzir e
inferir seria uma razão subjetiva, servil e incapaz de pensar sobre fins. Por estar reduzida
ao seu caráter instrumental, ela também é denominada de razão instrumental.
do eu e do pensar sobre o ser, passa a ser concebida enquanto capacidade de
pensar a contrapelo e em “nadar contra a correnteza” sem, no entanto, perder
de vista o objeto ou o problema em questão. Ou seja: “Pensar filosoficamente é,
assim, como que pensar intermitências, ser perturbado por aquilo que o
pensamento não é. [...] A força do pensamento de não nadar a favor da própria
corrente é a de resistir contra o previamente pensado. O pensamento enfático
exige coragem civil” (1995b, p. 21). Por isso, de certa forma,se pode dizer que
também a ingenuidade pertence à filosofia, pois o relacionar-se diretamente com
as coisas é, embora nunca uma verdade última, uma condição “[...] para que não
nos deixemos desencorajar, de ver num fenômeno, aquilo que ele nos sugere”.
Para Adorno (1973, p. 17), quando se deixa definhar a capacidade de perceber
algo nas coisas, então “[...] não se pode alcançar uma reflexão filosófica
efetiva”. Por outro lado, mesmo sem ser possível sem essa referência, o pensar
também é impossível de ser imaginado sem a ação de alguém que pensa: “Onde o
pensar é realmente produtivo, onde é criador, ali é sempre também um reagir. A
passividade está no âmago do ativo, é um constituir-se do Eu a partir do não-
Eu” (1995b, p. 18).
A proposta de Adorno, porém, não pode ser confundida com uma recaída no
irracionalismo. Como afirma acertadamente Perius (2008, p. 105): “Adorno fala
da insuficiência do conceito ou então do além-do-conceito, portanto, não fala de
uma filosofia não-conceitual”. O esforço do conceito é imprescindível, ele é o
esforço de, através dos conceitos, ir além dos próprios conceitos, mas também
precisa revelar as suas próprias condições e, por isso, exige concentração: “A
concentração do pensamento confere ao pensar produtivo uma propriedade que o
clichê lhe nega. Ele se deixa comandar, nisso não deixando de assemelhar-se à
assim chamada inspiração artística, na medida em que nada o distrai da coisa.
Ela se abre à paciência, virtude do pensamento” (ADORNO, 1995b, p. 18-19). Para
evitar mal-entendidos, Adorno sempre faz questão de enfatizar que, apesar dessa
explícita proximidade da filosofia com a arte – que não dever ser confundida
com a paródia do “sábio que contempla o próprio umbigo”! (Idem, p. 20) –, ela
também se diferencia dela: “Em contraposição à arte, a filosofia defende o não
conceitual sempre e apenas través do conceito, ou então ela representa aquilo
que não pode ser pensado através do pensamento” (1973, p. 87). O pensamento
filosófico, portanto, de certa forma, se constitui em meio a um campo tenso:
“Subjetivamente o pensamento filosófico é incessantemente confrontado com a
exigência de conduzir-se em si mesmo de acordo com as regras da lógica e de, não
obstante, receber em si aquilo que não é ele mesmo e que não se submete mais a
‘priori’ à sua própria lógica” (1995b, p. 18). Daí que a verdade não pode ser
posta, segundo Adorno, nem exclusivamente na conta do sujeito nem do objeto:
“Os pensamentos que são verdadeiros devem renovar-se incessantemente pela
experiência da coisa, a qual, não obstante, só neles recebe sua determinação”
(Idem, p. 21).
Pode-se afirmar que pensar para além da racionalidade estreita
(denominada também de a ratio burguesa e razão instrumental) significa renunciar
ao próprio impulso organizador do pensamento. O impulso organizador é expressão,
como vimos, da pretensão de domínio, e domínio que pretende se perpetuar. Na
medida em que isso é feito através de instrumentos conceituais, são os próprios
conceitos que são petrificados e apresentados como se traduzissem a própria
realidade. Eles escondem, portanto, a sua origem social e histórica. A
fetichização desses conceitos é, ela própria, um instrumento ideológico. Dessa
falta da capacidade de pensar, a filosofia pode ser afetada de diversas formas.
Segundo Adorno, isso não acontece apenas na filosofia da identidade, que teve
sua expressão máxima na tese da equivalência entre ser e pensar em Hegel. Também
em tendências positivistas, na fenomenologia e mesmo na filosofia marxista (a
versão que lhe foi impressa pelo materialismo dialético do Leste), essa
tendência pode ser verificada. Ambas seriam formas disfarçadas de idealismo,
reafirmações da primazia do sujeito. Quando, por exemplo, 1) em aproximação com
tendências positivistas da ciência, a filosofia absolutiza o método, que se
torna então uma instância de controle do próprio pensar, não aprovando mais nada
a não ser aquilo que o procedimento do método prescrito aceita. A absolutização
da objetividade dos conceitos camufla a função imprescindível da subjetividade
na constituição de todo e qualquer conceito. Ou quando, 2) numa perspectiva
fenomenológica, por uma espécie de “golpe de mágica [se] supõe alcançar o olhar
essencial” (1970, p. 22-23) das coisas mesmas na sua autenticidade fundamental,
ocorre uma absolutização de conceitos como se eles não estivessem sempre
mediados social e historicamente e constituídos por sujeitos. Essa pretensão de
verdade, segundo Adorno, não passa de sofisticada ideologia que também se serve
do fetiche dos conceitos, agourando-se de uma suposta profundidade e
autenticidade primordial para se justificar. Em ambas as posições, o que
acontece é a “[...] apresentação de fetiches, de conceitos propriamente
construídos” (Idem, p. 23), como se eles existissem sem a ação da subjetividade
humana. Mas também a 3) filosofia marxista do Leste, segundo Adorno, teria sido
convertida em um dogma estático (em contraposição ao próprio conteúdo do
pensamento de Marx) e se degradado em uma ideologia, em idealismo disfarçado. Na
medida em que, por exemplo, o desenvolvimento do capitalismo depois de Marx é
ignorado (com a integração do proletariado ao sistema) por essa visão, a própria
teoria de Marx é degradada a um fetiche: “Marx teria sido o último a cindir o
pensamento do andar real da história” (ADORNO, 1970, p. 24). A postura de Marx
teria sido testemunho de que à filosofia cabe “[...] pensar aquilo que é
diverso do pensamento e que o transforma pela primeira vez em pensamento”
(ADORNO, 2009, p. 165). A essas tendências, Adorno (1995b, p. 22) se contrapõe
afirmando que compreender “[...] filosoficamente significa certificar-se
daquela experiência na qual se reflete automaticamente54 (sic!) e, contudo, em
estreito contato com o problema traçado a cada vez”.
Diante desse horizonte filosófico, Adorno acredita que um dos grandes
desafios da filosofia é romper, através da força do pensamento, com o fetiche
dos conceitos, evidenciando seu caráter social, histórico, constelativo e
provisório e mesmo o que lhes é anterior. Quem pensa não sucumbe ao fetiche dos
conceitos (e sua função!) e subverte as referências ideológicas do status quo
estabelecido, podendo, assim, “revelar um vestígio de esperança de que não
liberdade, opressão e o mal [...] não têm a última palavra” (ADORNO, 1970, p.
18).
54 Há aqui um equivoco na tradução: “in der manautonom [...] reflektiert” deveria ser traduzido
por“na qual se reflete autonomamente” e não “na qual se reflete automaticamente”.
(Exemplo 02) Marcuse: em busca de novos sujeitos sociais emancipatórios
A suspeita, levantada por H. Marcuse em sua época é de que o horizonte de
transformação tradicional, baseado em uma perspectiva puramente imanente, acaba
aprisionando a práxis social (mesmo de muitas das assim chamadas esquerdas) ao
interior dos sistemas, ao dogma idealista do inevitável progresso da razão e da
história. Ações desenvolvidas dentro desse horizonte seriam facilmente
neutralizadas e catalisadas pela própria totalidade existente. Nesse sentido,
portanto, o autor busca apontar sempre para a necessidade de se compreender
possibilidades emancipatórias para além das contradições internas de uma
totalidade. Para tanto, seria necessário atentar para necessidades objetivas
simplesmente reprimidas pela totalidade antagônica existente. Essas necessidades
estariam baseadas em forças e em movimentos que ainda não teriam sido manietados
ou que já teriam se libertado do horizonte da produtividade agressiva e
repressiva da sociedade moderna: “O poder de negação surge fora dessa
totalidade repressiva, a partir de forças e movimentos que ainda não estão
manietados pela produtividade agressiva e repressiva da chamada ‘sociedade de
abundância’, ou que já se libertaram desse desenvolvimento” (1972, p. 165).
Devido à integração progressiva da tradicional classe trabalhadora
industrial ao sistema, para Marcuse, “[...] os catalizadores da mudança se
tornam atuantes ‘desde fora’” (1969, p. 84). Isso ocorre porque, numa “[...]
sociedade baseada no trabalho alienado [...] os homens só percebem as coisas nas
formas e funções em que lhes são dadas, feitas, usadas pela sociedade existente;
só percebem as possibilidades de transformação tal como são definidas e
limitadas na sociedade existente” (Marcuse, 1973, p. 74). A superação a ser
buscada não é do trabalho em si, uma vez que este é constitutivo do ser humano
na sua relação tanto com a natureza quanto com a sociedade e consigo mesmo.
Marcuse sugere uma nova forma de satisfação “[...] sem labuta – isto é, sem o
domínio do trabalho alienado sobre a existência humana” (1999, p. 141). A
superação das formas de trabalho alienado e, portanto, do indivíduo burguês e
suas exigências de desempenho, no entanto, não pode se dar de forma apenas
individual. A libertação individual só pode acontecer de fato na medida em que
vem acompanhada da libertação da sociedade e vice-versa. O grande desafio é
conseguir fazer a contraposição a uma sociedade funcional e crescente, o que
pode inclusive criar certo conflito com a “maioria trabalhadora bem integrada”
(1969, p. 81). A tendência seria a de que as práticas políticas mais radicais se
concentrem em grupos minoritários55. Marcuse, no entanto, está bem lúcido quanto
aos limites e às dificuldades a serem enfrentadas: “O que acontece é a formação
de grupos relativamente ainda pequenos muitas vezes com uma organização fraca
(muitas vezes desorganizada), mas que, devido à força de sua consciência e de
suas necessidades, atuam como catalizadores da rebelião em meio à maioria, à
qual pertencem conforme sua origem de classe” (1969, p. 80).
Percebe-se, portanto, que Marcuse busca superar uma ontologização dos
sujeitos revolucionários, atribuindo-lhes um caráter histórico e dinâmico: “As
forças revolucionárias surgem no próprio processo de transformação; a tradução
do potencial em atualidade é o trabalho da práxis política” (1969, p. 117). A
práxis política, portanto, não pode ser confinada a esquematismos e fabricações
prévias. Ela não pode mais se orientar em uma concepção de revolução formulada
no final do século XIX e início do século XX. Essa concepção está já determinada
no passado por um horizonte marcado pela “tomada do poder” por um levante das
massas dirigida por um partido revolucionário que pressupunha uma vanguarda da
classe revolucionária a qual iria introduzir as mudanças fundamentais da
sociedade. No atual capitalismo avançado, onde as massas foram integradas e se
tornaram, elas próprias, forças de conservação e estabilização, não se pode mais
esperar que efetivem essa sua função idealmente concebida. Por isso “[...] os
grupos minoritários de hoje, sobre os quais recairá a tarefa de organização,
serão muito diferentes da vanguarda leninista” (1973, p. 47). O seu potencial
estaria (coerente com a formulação original das condições de constituição do
lugar social da negação!) na sua consciência e objetivos que os tornam “[...]
55 Ao apontar esse potencial, Marcuse não nega objetivamente o proletariado enquanto potencial
classe revolucionária: “Evidentemente é algo sem sentido afirmar que a oposição civil
substitui o proletariado enquanto classe revolucionária e de que o lumpemproletariado adquire
uma força política radical” (1969, p. 80).
verdadeiros representantes dos interesses gerais dos oprimidos. [...] É a luta
pela vida – por uma vida não de senhores nem de servos, mas de homens e
mulheres” (1969, p. 81).
Essas posturas teóricas e políticas de Marcuse o levam a formular também
uma crítica à democracia liberal-parlamentar: “Nas novas esquerdas disseminou-
se uma significativa não aceitação das práticas políticas tradicionais [...] o
que aponta para uma nova reconsideração da democracia [...] e de sua função rumo
a uma sociedade livre” (1969, p. 97). Em vez de deixar que as aspirações da
chamada nova esquerda se diluam ou sejam represadas na esfera da legalidade
constituída, o que precisa ser evidenciado, segundo Marcuse, é uma contradição
entre promessa e realidade da democracia existente, de forma que, se “[...]
democracia significa o autogoverno de seres humanos livres e justiça para todos,
então a realização da democracia pressuporia a superação da pseudo-democracia
atualmente existente” (1969, p. 99). É evidente que uma luta contra essa
pseudodemocracia, do ponto de vista dela mesma, provavelmente será considerada
não democrática. O que teria de estar claro nesse caso, como afirma Marcuse no
calor dos debates dos protestos estudantis do final dos anos 1960, é que a
“[...] linguagem dominante de lei e ordem, que é declarada como válida pelos
tribunais e pela polícia, não é apenas a voz mas a própria ação de opressão”
(1969, p. 110). Nesse sentido se poderia dizer que a luta de classes se dá, de
fato, a partir dos “malditos desta terra” na medida em que estes se contrapõem
ao status estabelecido. Por isso é que a “[...] análise crítica desta sociedade
precisa de novas categorias: morais, políticas e estéticas” (Marcuse, 1969, p.
21).
Segundo Marcuse, a oposição pode se evidenciar em diversas formas e
organizações. Cita, como exemplos, as rebeliões difusas entre os jovens e as dos
intelectuais, bem como a luta cotidiana das minorias perseguidas: “O movimento
estudantil não é, apesar de revolucionário em sua teoria, revolucionário em suas
necessidades impulsivas e últimos objetivos [...] no entanto, ele é o fermento
da esperança nas sufocantes super-poderosas metrópoles: ela testemunha a verdade
da alternativa – a real necessidade e real possibilidade de uma sociedade
livre” (1969, p. 92). O movimento de mulheres representa o potencial de negação
de uma sociedade erigida a partir do princípio da produtividade destrutiva
própria da forma mental e física da dominação masculina, que gera uma estrutura
na qual “[...] nem homens nem mulheres são livres” (1973, p. 78). Por isto
“[...] uma sociedade livre seria a ‘negação definitiva’ desse princípio –
seria uma sociedade fêmea” (Idem, p. 77) e por isso a luta do movimento
feminino encontra sua radicalidade não na afirmação de uma sociedade matriarcal,
transformando valores biológicos em éticos e culturais, mas na possibilidade
“[...] ascendente de Eros sobre a agressão, em homens e mulheres; e isto
significa, numa civilização dominada pelo homem, a ‘feminilização’ do macho
[...] não só a igualdade dentro do emprego e da estrutura de valores da
sociedade estabelecida (o que seria uma igualdade de desumanização), mas, antes,
uma mudança na própria estrutura" (1973, p. 77). A superação da mais-agressão
masculina se daria simultaneamente com a superação da mais-passividade feminina:
“É da natureza das relações sexuais que ambos, macho e fêmea, sejam objeto e
sujeito ao mesmo tempo; a energia erótica e agressiva fundem-se em ambos. A
mais-agressão do macho está socialmente condicionada – assim como a mais-
passividade da fêmea” (1973, p. 79). As mulheres, no entanto, provavelmente
teriam um potencial de contribuição maior do que os homens nesse processo, uma
vez que o relativo “[...] isolamento (separação) do mundo do trabalho alienado
do capitalismo habilitou a mulher a permanecer menos brutalizada pelo Princípio
de Desempenho, a ficar mais fiel à sua sensibilidade: mais humana do que o
homem” (1973, p. 80).
Como consequência política mais ampla dessas suas observações aqui
apenas sintética e exemplarmente indicadas por meio do movimento estudantil e de
mulheres , Marcuse busca visualizar uma concepção política onde essas diversas
formas de manifestação política seriam possíveis. Seria preciso, para tanto,
reabilitar dimensões que, no processo de consolidação/instrumentalização da
democracia, foram reprimidos. Um desses desafios indicados é recuperação de
“[...] uma facunda realização da tradição revolucionária, os ‘conselhos’
(‘sovietes’, Räte) como organização de autodeterminação e autogoverno (ou,
melhor, de preparação para o autogoverno) nas assembleias populares locais”
(1973, p. 50). Embora consciente da ambivalência e fragilidade dessa concepção
(já que a “expressão imediata da opinião e vontade dos trabalhadores [...] não
é, per se, progressiva nem uma força de mudança social; pode ser o oposto”),
Marcuse insiste: “A democracia direta, a sujeição de toda a delegação de
autoridade ao controle efetivo ‘por baixo’, é uma exigência essencial da
estratégia da Esquerda” (Idem, p. 51). Ou seja, a nova sociedade não pode ser
resultado exclusivo de alguma teoria: deve antes acontecer enquanto obra livre
de homens libertos ou em processo de libertação. Trata-se de um processo que,
apesar de não ser a realização de ideais impostos de fora, é marcado, desde o
início, pelos seus objetivos.
Conclusão
Pelo que pudemos ver acima, a dimensão crítica pode ser
consideradaconstitutiva de um pensamento filosófico. Afinal, para que o
pensamento possa se manter vivo ele não pode nem se reduzir a uma simples
descrição da realidade nem se deixar reduzir a fantasia. É a partir da
interação, da capacidade de se deixar afetar pela realidade social e histórica
concreta que o pensamento filosófico adquire sua vigorosidade e atualidade. Se
visualizar e superar as armadilhas ideológicas das teorias tradicionais; se
subverter realidades opressoras apontando para novas possibilidades; se
democracia é mais do que um puro formalismo; se buscar visualizar e fundamentar
novas referências sociais emancipatórias são temas importantes na atualidade,
então a atualidade da filosofia enquanto crítica social também fica evidente.
Apesar de filosofia alguma poder oferecer receitas de como as coisas devem ser,
as críticas sociais certamente também requerem muito mais do que ativismo cego:
exigem o esforço do conceito.
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FOLHA DE APONTAMENTOS PARA DISCUTIR COM OS AUTORES
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- – : , IF SOPHIA UMUARAMA FILOSOFIA EDUCAÇÃO E AUTONOMIA é a
transcrição dos seminários realizados durante o primeiro ano de
- , realização do Projeto de extensão IF Sophia na cidade de
, Umuarama versando sobre questões relacionadas a Filosofia
enquanto processo de promoção da educação e autonomia
.humana
JPJ Editor
INFORMAÇÕES COMERCIAIS
Pedidos devem ser encaminhados pelo endereço eletrônico
Tel.: 44-8813-1127
É DISSO QUE TRATA esta obra: da análise crítica, por vários filósofos
brasileiros, do papel dos saberes filosóficos na promoção da autonomia cidadã,
através da educação, tendo como referência alguns dos importantes pensadores
contemporâneos da atualidade.