INTEGRAÇÃO EUROPEIA E ESGOTAMENTO REGIONAL DA MARCA

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Direito Europeu da Propriedade Industrial INTEGRAÇÃO EUROPEIA E ESGOTAMENTO REGIONAL DA MARCA ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 16 de julho de 1998 (processo C-355/96) Pedro Monteiro 1 Sumário: o presente texto tem como propósito por a descoberto a tensão existente entre a marca, enquanto tipo de direito industrial e o mercado interno. Parte-se de um acórdão emblemático sobre a matéria, cujos fundamentos ainda hoje são operativos, não obstante, à data da sua prolação, ter sido motivo de forte contestação. A análise tem em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça que se lhe seguiu, bem como os interesses que se cruzam na regulamentação dada pela Diretiva 2008/95/CE, de 22 de outubro de 2008. Identifica-se o objeto específico da marca, desenvolve-se o princípio do esgotamento desse direito, conclui-se pela sua dimensão regional e que a jurisprudência do TJ, enquanto expressão de um estado de integração, apenas concretiza objetivos fixados nos Tratados. A questão do esgotamento de um direito industrial na União Europeia mais do que uma questão jurídica é uma questão económica por se referir ao posicionamento deste espaço de integração regional no comércio internacional. Palavras-chave: Espaço Económico Europeu (EEE) Esgotamento do direito de marca objeto específico princípio da territorialidade Tribunal de Justiça (TJ) Conteúdo: 1. Introdução e sequência; 2. O litígio; 3. A Diretiva nº 2008/95/CE e a proteção territorial da marca; 4. Esgotamento da marca e mercado interno: o esgotamento regional; 5. A jurisprudência do TJ pós “Silhouette”; 5.1 O Acórdão “Sebago”; 5.2 O Acórdão “Levi Strauss; 6. Conclusões 1 O presente trabalho tem como propósito servir de base ao juízo de avaliação a emitir na sequência da frequência do Seminário denominado “Direito Europeu da Propriedade Industrial”, que integra o ciclo de estudos tendente à concessão de grau de mestre em Direito da União Europeia pela Escola de Direito da Universidade do Minho. * Aluno n.º 22474

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Direito Europeu da Propriedade

Industrial

INTEGRAÇÃO EUROPEIA E ESGOTAMENTO REGIONAL DA MARCA

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

16 de julho de 1998

(processo C-355/96)

Pedro Monteiro1

Sumário: o presente texto tem como propósito por a descoberto a tensão existente entre a marca,

enquanto tipo de direito industrial e o mercado interno. Parte-se de um acórdão emblemático sobre a

matéria, cujos fundamentos ainda hoje são operativos, não obstante, à data da sua prolação, ter sido

motivo de forte contestação. A análise tem em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça que se lhe

seguiu, bem como os interesses que se cruzam na regulamentação dada pela Diretiva 2008/95/CE, de 22

de outubro de 2008. Identifica-se o objeto específico da marca, desenvolve-se o princípio do esgotamento

desse direito, conclui-se pela sua dimensão regional e que a jurisprudência do TJ, enquanto expressão de

um estado de integração, apenas concretiza objetivos fixados nos Tratados. A questão do esgotamento de

um direito industrial na União Europeia mais do que uma questão jurídica é uma questão económica por

se referir ao posicionamento deste espaço de integração regional no comércio internacional.

Palavras-chave: Espaço Económico Europeu (EEE) – Esgotamento do direito de marca – objeto

específico – princípio da territorialidade – Tribunal de Justiça (TJ)

Conteúdo: 1. Introdução e sequência; 2. O litígio; 3. A Diretiva nº 2008/95/CE e a proteção territorial da

marca; 4. Esgotamento da marca e mercado interno: o esgotamento regional; 5. A jurisprudência do TJ

pós “Silhouette”; 5.1 O Acórdão “Sebago”; 5.2 O Acórdão “Levi Strauss”; 6. Conclusões

1 O presente trabalho tem como propósito servir de base ao juízo de avaliação a emitir na sequência da

frequência do Seminário denominado “Direito Europeu da Propriedade Industrial”, que integra o ciclo de

estudos tendente à concessão de grau de mestre em Direito da União Europeia pela Escola de Direito da

Universidade do Minho.

* Aluno n.º 22474

1. Introdução e sequência

O Acórdão do TJ cujo comentário se propõe é uma daquelas landmark decisions

que gerou protestos em toda a Europa, pela forma como desprezou os consumidores em

detrimento dos titulares de um direito de propriedade industrial.2 A esta distância,

conclui-se que as suas conclusões estão bem assentes e tiverem “sequela” em decisões

judiciais ulteriores. A matéria sobre a qual o TJ se pronunciou não tem apenas uma

incidência local ou regional, mas sim internacional e relaciona-se com a tensão existente

entre o comércio de mercadorias e os direitos de propriedade industrial que incidem

sobre as mesmas.3 À questão de saber a qual dos dois interesses dar prevalência, se à

liberdade de circulação de mercadorias, se ao titular do direito de propriedade industrial,

responde-se com o “princípio do esgotamento do direito intelectual”.4 É consabido que

“a ordem jurídica da União Europeia está ao serviço de um processo integrador — e que

a especificidade deste ordenamento radica precisamente nos instrumentos jurídicos que

se articulam com o fim de promover a integração europeia. Toda a principiologia do

2 “The press and political reaction to this case has been extremely hostile to both the ECJ and branded goods

owners. A spokesman for UK supermarket chain Tesco called it “a dark day for consumers”, and a Financial

Times leader condemned the ruling as “bad for consumers, bad for competition and bad for European

economies.”Cfr. “A Pyrrhic victory”, in Business Europe, 7.29.98, Vol. 38, Issue 15, p. 1.

3 Os direitos de propriedade industrial podem ser segmentados em duas categorias: criações utilitárias (ao

contrário da criação estética abrangida pelo Direito de Autor) e sinais distintivos. Nas criações utilitárias

incluem-se as patentes de invenção, o modelo de utilidade, a topografia de produto semicondutor e o desenho

ou modelo; nos sinais distintivos incluem-se a marca, a recompensa, o logótipo, a denominação de origem e a

indicação geográfica. Cfr. LUÍS COUTO GONÇALVES, “Evolução Histórica da Propriedade Industrial”, in António

Campinos e Luis Couto Gonçalves (coord.), Código da Propriedade Industrial, Anotado, Coimbra, Almedina,

2010, p. 15.

4 O principio do esgotamento de um direito de propriedade intelectual está associado ao fenómeno da

importação paralela: “[p]arallel imports are products that, once placed into circulation in one country by the

owner of a trademark, copyright or patent, are sold in a second country without the authorization of the right-

holder in the second market. For example, imagine that an authorized distributor of computer software in

Thailand sells copies locally at a wholesale price below the retail price existing in Japan. If permitted to do so, a

parallel trader could transport the copies to Japan and make a profit net of tariffs and shipping costs. Such

goods are produced legitimately under trademark and are not unauthorized knockoffs or pirated products.

Trade in such goods exists largely to profit from arbitraging against differential prices set by trademark

owners in various markets, once control over their distribution escapes the original rights-holder. The legal

treatment of parallel imports varies widely across countries and stems from each jurisdiction’s choice of

territorial exhaustion of intellectual property rights (IPR). Under international exhaustion, rights to control

distribution expire upon first sale anywhere and parallel imports are permitted. Under national exhaustion,

first sale within a nation exhausts internal distribution rights but IPR holders may legally exclude parallel

imports or exports. Finally, a policy of regional exhaustion permits parallel trade within a group of countries

but not from outside the region […].” Cfr. , KEITH E. MASKUS e YONGMIN CHEN, “Parallel Imports in

a Model of Vertical Distribution: Theory, Evidence, and Policy”, in Pacific Economic Review, June 2002, Vol.. 7,

Issue 2, p. 319.

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direito da União Europeia, os mecanismos jurisdicionais previstos nos tratados

constitutivos, a constitucionalização das liberdades económicas, as especificidades da

protecção multinível dos direitos fundamentais — tudo é filtrado pelos imperativos da

integração europeia, dos quais decorre o “modelo jurídico da integração europeia.”

[…].”5 É precisamente essa função, de integração, que “salta à vista” neste acórdão e

dos que lhe sucederam, pelo que é a partir deste “ângulo” que deverão ser lidas as suas

conclusões, sem prejuízo, claro está, da consciência de que os seus efeitos não são

benéficos para o consumidor. Segue-se a descrição do litígio julgado pelo TJ, dando-se

conta da jurisprudência que lhe sucedeu a par da estrutura normativa, de Direito

derivado, relacionada.

2. O litígio

O litígio teve origem num diferendo entre a Silhouette e a Hartlauer. A Silhouette

produzia óculos de grande qualidade e distribuía-os, sob a marca “Silhouette”, a nível

mundial. Se na Áustria os fornecia diretamente a oculistas, nos outros Estados tinha

filiais e distribuidores. A Hartlauer vendia óculos a baixo preço e não se enquadrava nos

requisitos para ser distribuidor da Silhouette. Esta empresa realizou um fornecimento de

óculos a uma sociedade búlgara com instruções expressas para venderem os mesmos

apenas nos mercados búlgaro ou nos países da antiga União Soviética, com proibição de

os exportarem para outros países. A Hartlauer conseguiu adquirir esses óculos e

colocou-os à venda no mercado austríaco. Na sequência, a Silhouette pediu a inibição

da venda dos óculos por parte da Hartlauer, na medida em que os produtos não tinham

sido comercializados no EEE e, por isso, o seu direito de marca não se tinha esgotado.

Pelo contrário, defendeu a Hartlauer, que os óculos tinham sido vendidos sem a

5 Cfr. ALESSANDRA SILVEIRA, “Autonomia institucional/processual dos Estados-Membros e efectividade do

direito da União Europeia na jurisprudência do TJUE (ou do baile de Pierre-Auguste Renoir),” in Marcelo Rebelo

de Sousa et al. (coord.), Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Miranda, Vol. V, Coimbra, Coimbra

Editora, 2012, p. 12.

condição de não reimportação no território da outrora Comunidade Europeia. Julgada a

ação improcedente na primeira instância, a Silhouette recorreu para o tribunal superior

que suspendeu a instância e formulou as seguintes questões:

“O n.° 1 do artigo 7.° da Primeira Directiva do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que

harmoniza as legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas [Diretiva 89/104/CEE],

deve ser interpretado no sentido de a marca conceder ao seu titular o direito de proibir a um

terceiro o uso da marca em mercadorias com ela comercializadas num Estado que não é parte

contratante?”

“O titular da marca pode, com base apenas no n.° 1 do artigo 7.° da Directiva 89/104, pedir que

o terceiro deixe de usar a marca para produtos comercializadas num Estado que não é parte

contratante?”

Em resposta à primeira questão, ou seja, saber se o direito do titular da marca se

esgota quando este comercializa as suas mercadorias, marcando-as com um

determinado sinal, fora do EEE,6 o TJ respondeu que não. Para tanto e depois de afirmar

que a Diretiva contém uma disciplina referente às disposições de fundo essenciais em

matéria de marcas, concluiu que esta “não pode ser interpretada no sentido de deixar aos

Estados-Membros a possibilidade de prever na sua legislação nacional o esgotamento

dos direitos conferidos pela marca para produtos comercializados em países terceiros.7

Esta interpretação é além do mais a única que é susceptível de realizar cabalmente a

finalidade da directiva, ou seja, salvaguardar o funcionamento do mercado interno. Com

efeito, entraves inelutáveis à livre circulação de mercadorias e à livre prestação de

serviços decorreriam de uma situação na qual alguns Estados-Membros pudessem

prever o esgotamento internacional enquanto outros só preveriam o esgotamento

comunitário […].”8 Em relação à segunda questão e porque relacionada com o efeito

horizontal das disposições das diretivas, afirmou que uma ação de inibição do uso de

uma marca por um terceiro não pode ter como fundamento a invocação de uma norma

6 O EEE concretizou-se num acordo assinado no Porto, que entrou em vigor a 1 de janeiro de 1994. Este espaço

integra no território da União Europeia os territórios dos países pertencentes à EFTA (Islândia, Liechtenstein e

Noruega), destinado a facilitar a adesão destes países à União. Cfr. FAUSTO DE QUADROS, Direito da União

Europeia, 3.º edição, Coimbra, Almedina, 2013, p 53.

7 Considerando 26.

8 Considerando 27.

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da diretiva, precisamente porque esta não cria, por si só, obrigações para os particulares,

devendo a tutela do titular da marca ser aferida através da interpretação do direito

nacional em conformidade com o Direito Europeu.9

3. Diretiva nº 2008/95/CE10

e a proteção territorial da marca

A Diretiva 89/104/CEE foi revogada pela DIRETIVA 2008/95/CE DO

PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, de 22 de outubro de 2008, que

aproxima as legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas. Esta diretiva

constata que [n]ão se afigura necessário proceder a uma aproximação total das

legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas. Basta limitar a aproximação às

disposições nacionais que tenham uma incidência mais direta sobre o funcionamento do

mercado interno. Nessa conformidade, o titular da marca tem um direito exclusivo. O

titular fica habilitado a proibir que um terceiro, sem o seu consentimento, faça uso na

vida comercial: a) de qualquer sinal idêntico à marca para produtos ou serviços

idênticos àqueles para os quais a marca foi registada; b) de um sinal relativamente ao

qual, devido à sua identidade ou semelhança com a marca e devido à identidade ou

semelhança dos produtos ou serviços a que a marca e o sinal se destinam, exista um

risco de confusão, no espírito do público; o risco de confusão compreende o risco de

9 As diretivas têm um efeito direto vertical, na medida em que podem ser invocadas pelos particulares contra o

Estados, não têm, contudo, um efeito direto horizontal, ou seja, não podem ser invocadas entre particulares,

precisamente porque os destinatários das diretivas são os Estados-membros. Esta tese pode considerar-se em

“erosão” devido ao efeito direto horizontal de que gozam muitos dos direitos consagrados na Carta dos

Direitos Fundamentais da União Europeia. Estes direitos são densificados em diretivas, pelo que é legítima a

conclusão de que se tais direitos gozam de efeito direito horizontal, as diretivas que os concretizam também.

Sobre o problema, cfr. ALESSANDRA SILVEIRA, “União Europeia: Da Unidade Jurídico-política do Ordenamento

Composto (ou da Estaca em Brasa no Olho do Ciclope Polifemo)”, in Alessandra Silveira (coord.), Direito da

União Europeia e Transnacionalidade, Lisboa, Quid Iuris, 2010, p. 32 e ss.

10 As remissões para a diretiva revogada devem entender-se como sendo feitas para a presente diretiva e

devem ler-se nos termos do quadro de correspondência constante do anexo II, tal como resulta do seu artigo

17.º.

associação entre o sinal e a marca.11 Pode, nomeadamente, ser proibido: a) apor o sinal

nos produtos ou na respetiva embalagem; b) oferecer os produtos para venda ou colocá-

los no mercado ou armazená-los para esse fim, ou oferecer ou fornecer serviços sob o

sinal; c) importar ou exportar produtos com esse sinal; d) utilizar o sinal nos

documentos comerciais e na publicidade.12

O direito conferido pela marca não permite

ao seu titular proibir o uso desta para produtos comercializados na Comunidade sob essa

marca pelo titular ou com o seu consentimento. Não obstante, sempre que existam

motivos legítimos que justifiquem que o titular se oponha à comercialização posterior

dos produtos, nomeadamente, sempre que o estado desses produtos seja modificado ou

alterado após a sua colocação no mercado, aquela proibição pode operar.13

O direito

conferido pela marca é um direito limitado ao território onde é registado.14

E assim é,

porque os Tratados em nada prejudicam o regime da propriedade dos Estados-

membros.15

Por ser assim e para manter distintas as competências da União e dos

Estados-membros, surge a noção de “objeto específico”, trabalhada pelo TJ em matéria

de propriedade intelectual de forma a traçar o limite até onde a restrição à titularidade

dos direitos de propriedade industrial pode operar.16

Por esta noção afirma-se um núcleo

essencial de poderes conferidos ao titular de um direito intelectual e por que razão a sua

proteção está garantida, não sendo licito aos órgãos da União limitá-los.17

Com

11 Artigo 5.º n.º 1.

12 Artigo 5.º n.º 3.

13 Artigo 7.º.

14 Sem prejuízo da marca comunitária. Cfr. Regulamento (CE) n.º 207/2009, de 26 de fevereiro de 2009.

15 Com efeito, o artigo 345.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia impõe a neutralidade da União

em matéria da atribuição de direitos de propriedade, devendo para cada objeto ser definido, pelos Estados-

membros, o respetivo regime. Cfr. SANDRA PASSINHAS, Dimensions of Property under European Law,

Fundamental Rights, Consumer Protection, and Intellectual Property: bridging concept?, Florence, March, 2012,

p. 301, in http://bookshop.europa.eu/en/dimensions-of-property-under-european-law-pbQMTA10011/

[consultado em 20.07.2013].

16 SANDRA PASSINHAS Dimensions of Property under European Law…, cit, p. 295.

17 É neste contexto que deverá ser compreendido o Considerando 6 da Diretiva: [o]s Estados-Membros

deverão continuar igualmente a ter toda a liberdade para fixar as disposições processuais relativas ao registo,

à caducidade ou à declaração de nulidade das marcas adquiridas por registo. Cabe aos Estados-Membros, por

exemplo, determinar a forma dos processos de registo e de declaração de nulidade, decidir se os direitos

anteriores devem ser invocados no processo de registo ou no processo de declaração de nulidade, ou em

ambos os casos, ou ainda, no caso de os direitos anteriores poderem ser invocados no processo de registo,

prever um processo de oposição, ou uma análise oficiosa, ou ambos. Os Estados-Membros deverão manter a

faculdade de determinar os efeitos da caducidade ou da nulidade das marcas.

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referência à marca, o objeto específico foi delimitado no caso Centrafarm c. Winthrop,

nos seguintes termos: “[e]m matéria de marcas, o objecto específico da propriedade

industrial é, designadamente, o de assegurar ao titular o direito exclusivo de utilizar a

marca, quando o produto é colocado no mercado pela primeira vez, e de assim o

proteger contra os concorrentes que quisessem abusar da posição e reputação da marca

vendendo produtos que indevidamente usassem essa mesma marca […].”18

Será por via

deste objeto específico que se compreende o esgotamento do direito da marca.

4. Esgotamento da marca e mercado interno: o esgotamento regional

A perceção do que é o esgotamento da marca pressupõe a pré-compreensão de

“importação paralela”. São três os “pressupostos constitutivos” de uma importação

paralela: a) os produtos são importados de um mercado estrangeiro para o mercado onde

esses produtos tiveram origem; b) tais produtos são importados sem autorização do

titular da marca; c) os produtos importados devem ser genuínos tais como os produtos

do mercado onde tiveram origem.19

Tais requisitos são de verificação cumulativa. No

caso decidido pelo TJ todos eles se verificam, pois os óculos foram importados para a

Áustria sem a autorização da Silhouette, a partir de um território fora do EEE, sendo

idênticos aos produtos que este comercializava sobre o mesmo sinal no mesmo

mercado. A conclusão do TJ foi no sentido de afirmar o direito do titular da marca

poder controlar a revenda dos seus produtos nestes termos. Ou seja, o seu direito não se

tinha esgotado.

18 Acórdão do TJ, de 31 de outubro de 1974 (proc. C- 16/74), citado por SANDRA PASSINHAS, Dimensions of

Property under European Law…, cit, p. 297.

19 Cfr. CHUNG-LUN SHEN , “Intellectual Property Rights and International Free Trade: New Jurisprudence of

International Exhaustion Doctrine under the Traditional Legal System”, in Journal of International Commercial

Law & Technology, Vol. 7, Issue 3, Jul 2012, p. 182.

São concebidos três modelos de esgotamento de direitos propriedade industrial:

internacional, regional e nacional. No esgotamento internacional, um produto

comercializado em qualquer território esgota o direito do titular da marca de se opor à

importação do mesmo produto para o território de origem;20

no esgotamento nacional, o

direito apenas se esgota no território de origem do produto onde foi comercializado,

podendo o titular da marca opor-se à importação do mesmo produto, marcado com o

sinal de que é titular;21

o esgotamento regional, enquanto forma de esgotamento

internacional, impede que o titular de uma marca se oponha à importação de produtos

marcados com o seu sinal desde que comercializados, por si ou com o seu

consentimento, num mercado interno,22

pelo contrário, se tais produtos forem

comercializados, pela primeira vez, em mercados que não o mercado interno, não

podem ser reintroduzidos nesse mercado por via de uma importação paralela, podendo o

titular da marca opor-se à sua comercialização.23

É precisamente o esgotamento regional

objeto do Acórdão do TJ, cujo princípio foi reiterado em jurisprudência ulterior.

5. A jurisprudência do TJ pós “Silhouette”

5.1 O Acórdão “Sebago”24

A questão suscitada no presente caso respeita à noção de consentimento exigido

para que uma comercialização de produtos marcados possa esgotar o direito do titular

da marca25

. Com efeito, pretende-se saber se o consentimento deve ser exigido para os

produtos cujo esgotamento se invoca ou se, pelo contrário, admite-se o esgotamento do

direito se o titular deste anuiu na comercialização de produtos similares dentro do EEE.

20 Cfr. CHUNG-LUN SHEN , “Intellectual Property Rights and International Free Trade:…”, cit., p. 189/190.

21 Cfr. CHUNG-LUN SHEN , “Intellectual Property Rights and International Free Trade:…”, cit., p. 190.

22 A expressão “mercado interno” não é consensual entre autores. Manuel Lopes Porto refere-se a mercado

único, “na medida em que dá melhor a ideia, correcta e desejável, de que não se visa um mercado fechado em

relação ao exterior”. Cfr. MANUEL LOPES PORTO, Teoria da Integração e Políticas Comunitárias: Face aos

Desafios da Globalização, 4.ª edição - ampliada e actualizada, Coimbra, Almedina, 2009, p. 220, nota 8

23 Cfr. CHUNG-LUN SHEN , “Intellectual Property Rights and International Free Trade:…”, cit., p. 191/192.

24 Ac. do TJ, de 1.07.1999, proferido no processo C-173/98.

25 As demais questões relacionavam-se com o tipo de esgotamento a que se referia a Diretiva 89/104/CEE,

pelo que TJ remeteu a resposta a esta questão para o Ac. “Silhouette”.

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Com efeito, a Sebago tinha registadas duas marcas com o nome “Docksides” e três

marcas com o nome “Sebago”. Ambas referiam-se a sapatos. A distribuição era

assegurada, no EEE, pela Maison Dubois. A empresa G-B colocou à venda nos seus

hipermercados sapatos marcados com o nome “Docksides Sebago”, depois de os ter

adquirido a um importador que os obteve de um fabricante de sapatos de Salvador. Em

momento algum foi posta em causa a genuinidade do produto, tendo a empresa G-B,

alegando que produtos similares já tinha sido comercializados no EEE com o

consentimento do titular da marca e que o seu licenciado em Salvador não estava

proibido de exportar os sapatos para aquele espaço, pelo que havia consentimento tácito

na sua comercialização no EEE. O TJ respondeu que o direito do titular da marca só se

esgota para os exemplares do produto que foram comercializados no seu território com

o seu consentimento. Com efeito, se o esgotamento do direito não opera, nos termos da

Diretiva, em relação aos produtos comercializados fora do EEE, “esta protecção seria

esvaziada de substância caso bastasse, para se verificar o esgotamento na acepção do

artigo 7.°, que o titular da marca tivesse consentido na comercialização nesse território

de produtos idênticos ou similares àqueles para os quais se invoca o esgotamento […]”.

5.2 O Acórdão “Levi Strauss”26

Neste caso que opôs a Levis à Tesco e à Costco, estava em causa a questão de saber

se o consentimento do titular de uma marca, na comercialização de produtos no EEE,

podia ser implícito. Tanto a Tesco como a Costco, impossibilitadas pela Levis de serem

seus distribuidores autorizados, adquiriram produtos marcados com o seu sinal (jeans

Levis 501), a fornecedores que os adquiriram, por sua vez, a revendedores autorizados

pelo titular da marca nos Estados Unidos, Canadá ou México. Estes revendedores não

estavam autorizados, no Canadá e nos Estados Unidos, à venda por grosso, mas apenas

a consumidores finais ou à sua exportação, no caso dos grossistas mexicanos. O TJ

26 Ac. do TJ, de 20.11.2001, proferido nos processos apensos C-414/99 e 416/99.

reafirmou a jurisprudência anterior, quando concluiu que “[o] efeito da directiva é

[limitar] o esgotamento do direito conferido ao titular da marca aos casos em que os

produtos são comercializados no EEE e permitir ao titular comercializar os seus

produtos fora desta zona sem que essa comercialização esgote os seus direitos no

interior do EEE. Ao precisar que a comercialização fora do EEE não esgota o direito de

o titular se opor à importação destes produtos feita sem o seu consentimento, o

legislador comunitário permitiu assim ao titular da marca controlar a primeira

comercialização no EEE dos produtos que ostentam a marca […].”27

O conceito de

consentimento deve ser definido de forma homogénea para toda a União e deve ser

expresso, sem prejuízo de “em certos casos, esse consentimento possa resultar

implicitamente de elementos e de circunstâncias anteriores, contemporâneas ou

posteriores à comercialização fora do EEE, que, apreciadas pelo juiz nacional, traduzam

igualmente, de forma inequívoca, uma renúncia do titular ao seu direito [exclusivo de

colocar os produtos em circulação no EEE].”28

6. Conclusões

Da jurisprudência anterior pode concluir-se que o consentimento a que se refere o

artigo 5.º n.º 1 da Diretiva 2008/95/CE deve ser expresso para cada produto e não para

produtos similares, considerando que este consentimento equivale a uma renúncia a um

direito exclusivo, podendo o seu titular da marca opor-se à importação de produtos

genuínos de territórios fora do EEE, sem o seu consentimento, já que o esgotamento do

seu direito de controlar a revenda tem natureza regional, nos termos do artigo 7.º n.º 1

daquela diretiva. Não pode, contudo, opor-se, à circulação no território de origem dos

bens, de produtos colocados em circulação no EEE, por si ou com o seu consentimento

e reintroduzidos naquele território por operadores dedicados à importação paralela.

Aqui há liberdade de circulação de mercadorias e entre esta e a proteção titular de uma

marca pode haver um conflito: se por este se confere um exclusivo à sua exploração

económica,29

por aquela impedem-se as restrições quantitativas à exportação e

27 Considerando 33.

28 Considerando 46.

29 Exploração económica nos limites do objeto específico da marca.

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Industrial

importação e medidas de efeito equivalente.30

É natural que o titular de um direito

industrial impeça a importação de produtos que ele próprio colocou em circulação

noutro Estado-membro, em função da proteção territorial de que goza no seu Estado,

por ser titular de um direito industrial, afigurando-se, esta conduta, como de efeito

equivalente a uma restrição quantitativa.31

Por isso há encontrar um equilíbrio entre a

liberdade de circulação, enquanto expressão do mercado interno e a defesa do direito

industrial, de forma a remunerar adequadamente o seu titular do investimento que fez na

sua criação.32

Quando o direito industrial se extingue com a comercialização de um

concreto produto no mercado interno, reconhece-se, por um lado, o direito ao

monopólio dessa comercialização e, por outro, que esse direito apenas pode ser exercido

uma vez, por cada produto marcado, de forma a favorecer a liberdade de circulação de

mercadorias.33

Com isto reconhecem-se os limites do objeto especifico do direito de

marca e, consequentemente, da repartição das competências da União e dos Estados-

membros nesta matéria. A jurisprudência do TJ, nesta matéria, é coerente com a sua

função jurisdicional de integração, dando assim expressão à União de Direito

característica a União Europeia,34

pelo que a correta dimensão do problema deverá ser

dada pela via económica e política. Ao transformar a Europa numa fortaleza35

a União

Europeia enfraquece os consumidores que teriam, por efeito da arbitragem, acesso a

30 Cfr. Artigos 34.º e 35.º do TFUE.

31 Cfr. SANDRA PASSINHAS, Dimensions of Property under European Law,…, cit, p. 302/303

32 Onde se inclui a publicidade da marca, a constituição de uma rede de distribuição, estudos de mercado, entre

outros fatores.

33 Cfr. SANDRA PASSINHAS, Dimensions of Property under European Law…, cit., p. 308.

34 Não sendo um Estado, a União Europeia “cria direito como se fosse”, daí que esta “funciona como uma União

de direito (por alusão à expressão Estado de direito).” Cfr. ALESSANDRA SILVEIRA, Princípios de Direito da

União Europeia, Doutrina e Jurisprudência, 2.ª edição (atuaclizada e ampliada), Lisboa, Quid Iuris, p. 28.

35 TUOMAS MYLLY, “Silhouette of Fortress Europe - International Exhaustion of Trade Mark Rights in the EU”,

in Maastricht Journal of European and Comparative Law, Vol. 7, Issue 1, 2000, pp. 51-80.

produtos mais baratos.36

Este não é um problema para o TJ, que se limita a realizar a sua

função, mas antes para os Estados-membros decidirem se a integração regional a que se

obrigaram, força, nesta matéria, uma separação internacional, quando outros Estados já

deram o seu contributo para um verdadeiro comércio internacional.37

22.07.2013

*escrito de acordo com a nova ortografia, salvo em citações, onde foi mantido o original.

36 A arbitragem é um fenómeno económico. Os operadores de mercado compram onde o produto é mais barato

e vendem-no onde é mais caro. Um caso interessante pode ser observado no comércio paralelo de produtos

farmacêuticos no mercado interno. Aproveitando-se da regulação do mercado deste tipo de produtos, os

operadores adquirem-nos em países onde os preços são baixos, como a Grécia e revendem-nos onde são mais

caros, como o Reino Unido. Quem ganha com esta prática são distribuidores… Cfr. PANOS KANAVOS e JOAN

COSTA-FONT, “Pharmaceutical parallel trade in Europe: stakeholder and competition effects”, Economic Policy,

Volume 20, Issue 44, October 2005, pp. 751–798.

37 Veja-se a decisão do Supremo Tribunal Federal dos EUA, ao afirmar o esgotamento internacional do direito

intelectual no caso Kirtsaeng v. John Wiley & Sons, Inc., quando admitiu a legitimidade da importação de livros

colocados em circulação noutro Estado, sem o consentimento do seu autor. Esta decisão pode ser alargada a

outros bens de consumo abrangidos, também, por direitos industriais, como é o caso de produtos marcados

com um determinado sinal. Cfr. LOTHAR DETERMANN, “Importing Software and Copyright Law”, in The

Computer & Internet Lawyer, Volume 30, Number 5, May 2013, p. 33.

Direito Europeu da Propriedade

Industrial

Referências

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