INTEGRAÇÃO EUROPEIA E ESGOTAMENTO REGIONAL DA MARCA
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Direito Europeu da Propriedade
Industrial
INTEGRAÇÃO EUROPEIA E ESGOTAMENTO REGIONAL DA MARCA
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
16 de julho de 1998
(processo C-355/96)
Pedro Monteiro1
Sumário: o presente texto tem como propósito por a descoberto a tensão existente entre a marca,
enquanto tipo de direito industrial e o mercado interno. Parte-se de um acórdão emblemático sobre a
matéria, cujos fundamentos ainda hoje são operativos, não obstante, à data da sua prolação, ter sido
motivo de forte contestação. A análise tem em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça que se lhe
seguiu, bem como os interesses que se cruzam na regulamentação dada pela Diretiva 2008/95/CE, de 22
de outubro de 2008. Identifica-se o objeto específico da marca, desenvolve-se o princípio do esgotamento
desse direito, conclui-se pela sua dimensão regional e que a jurisprudência do TJ, enquanto expressão de
um estado de integração, apenas concretiza objetivos fixados nos Tratados. A questão do esgotamento de
um direito industrial na União Europeia mais do que uma questão jurídica é uma questão económica por
se referir ao posicionamento deste espaço de integração regional no comércio internacional.
Palavras-chave: Espaço Económico Europeu (EEE) – Esgotamento do direito de marca – objeto
específico – princípio da territorialidade – Tribunal de Justiça (TJ)
Conteúdo: 1. Introdução e sequência; 2. O litígio; 3. A Diretiva nº 2008/95/CE e a proteção territorial da
marca; 4. Esgotamento da marca e mercado interno: o esgotamento regional; 5. A jurisprudência do TJ
pós “Silhouette”; 5.1 O Acórdão “Sebago”; 5.2 O Acórdão “Levi Strauss”; 6. Conclusões
1 O presente trabalho tem como propósito servir de base ao juízo de avaliação a emitir na sequência da
frequência do Seminário denominado “Direito Europeu da Propriedade Industrial”, que integra o ciclo de
estudos tendente à concessão de grau de mestre em Direito da União Europeia pela Escola de Direito da
Universidade do Minho.
* Aluno n.º 22474
1. Introdução e sequência
O Acórdão do TJ cujo comentário se propõe é uma daquelas landmark decisions
que gerou protestos em toda a Europa, pela forma como desprezou os consumidores em
detrimento dos titulares de um direito de propriedade industrial.2 A esta distância,
conclui-se que as suas conclusões estão bem assentes e tiverem “sequela” em decisões
judiciais ulteriores. A matéria sobre a qual o TJ se pronunciou não tem apenas uma
incidência local ou regional, mas sim internacional e relaciona-se com a tensão existente
entre o comércio de mercadorias e os direitos de propriedade industrial que incidem
sobre as mesmas.3 À questão de saber a qual dos dois interesses dar prevalência, se à
liberdade de circulação de mercadorias, se ao titular do direito de propriedade industrial,
responde-se com o “princípio do esgotamento do direito intelectual”.4 É consabido que
“a ordem jurídica da União Europeia está ao serviço de um processo integrador — e que
a especificidade deste ordenamento radica precisamente nos instrumentos jurídicos que
se articulam com o fim de promover a integração europeia. Toda a principiologia do
2 “The press and political reaction to this case has been extremely hostile to both the ECJ and branded goods
owners. A spokesman for UK supermarket chain Tesco called it “a dark day for consumers”, and a Financial
Times leader condemned the ruling as “bad for consumers, bad for competition and bad for European
economies.”Cfr. “A Pyrrhic victory”, in Business Europe, 7.29.98, Vol. 38, Issue 15, p. 1.
3 Os direitos de propriedade industrial podem ser segmentados em duas categorias: criações utilitárias (ao
contrário da criação estética abrangida pelo Direito de Autor) e sinais distintivos. Nas criações utilitárias
incluem-se as patentes de invenção, o modelo de utilidade, a topografia de produto semicondutor e o desenho
ou modelo; nos sinais distintivos incluem-se a marca, a recompensa, o logótipo, a denominação de origem e a
indicação geográfica. Cfr. LUÍS COUTO GONÇALVES, “Evolução Histórica da Propriedade Industrial”, in António
Campinos e Luis Couto Gonçalves (coord.), Código da Propriedade Industrial, Anotado, Coimbra, Almedina,
2010, p. 15.
4 O principio do esgotamento de um direito de propriedade intelectual está associado ao fenómeno da
importação paralela: “[p]arallel imports are products that, once placed into circulation in one country by the
owner of a trademark, copyright or patent, are sold in a second country without the authorization of the right-
holder in the second market. For example, imagine that an authorized distributor of computer software in
Thailand sells copies locally at a wholesale price below the retail price existing in Japan. If permitted to do so, a
parallel trader could transport the copies to Japan and make a profit net of tariffs and shipping costs. Such
goods are produced legitimately under trademark and are not unauthorized knockoffs or pirated products.
Trade in such goods exists largely to profit from arbitraging against differential prices set by trademark
owners in various markets, once control over their distribution escapes the original rights-holder. The legal
treatment of parallel imports varies widely across countries and stems from each jurisdiction’s choice of
territorial exhaustion of intellectual property rights (IPR). Under international exhaustion, rights to control
distribution expire upon first sale anywhere and parallel imports are permitted. Under national exhaustion,
first sale within a nation exhausts internal distribution rights but IPR holders may legally exclude parallel
imports or exports. Finally, a policy of regional exhaustion permits parallel trade within a group of countries
but not from outside the region […].” Cfr. , KEITH E. MASKUS e YONGMIN CHEN, “Parallel Imports in
a Model of Vertical Distribution: Theory, Evidence, and Policy”, in Pacific Economic Review, June 2002, Vol.. 7,
Issue 2, p. 319.
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direito da União Europeia, os mecanismos jurisdicionais previstos nos tratados
constitutivos, a constitucionalização das liberdades económicas, as especificidades da
protecção multinível dos direitos fundamentais — tudo é filtrado pelos imperativos da
integração europeia, dos quais decorre o “modelo jurídico da integração europeia.”
[…].”5 É precisamente essa função, de integração, que “salta à vista” neste acórdão e
dos que lhe sucederam, pelo que é a partir deste “ângulo” que deverão ser lidas as suas
conclusões, sem prejuízo, claro está, da consciência de que os seus efeitos não são
benéficos para o consumidor. Segue-se a descrição do litígio julgado pelo TJ, dando-se
conta da jurisprudência que lhe sucedeu a par da estrutura normativa, de Direito
derivado, relacionada.
2. O litígio
O litígio teve origem num diferendo entre a Silhouette e a Hartlauer. A Silhouette
produzia óculos de grande qualidade e distribuía-os, sob a marca “Silhouette”, a nível
mundial. Se na Áustria os fornecia diretamente a oculistas, nos outros Estados tinha
filiais e distribuidores. A Hartlauer vendia óculos a baixo preço e não se enquadrava nos
requisitos para ser distribuidor da Silhouette. Esta empresa realizou um fornecimento de
óculos a uma sociedade búlgara com instruções expressas para venderem os mesmos
apenas nos mercados búlgaro ou nos países da antiga União Soviética, com proibição de
os exportarem para outros países. A Hartlauer conseguiu adquirir esses óculos e
colocou-os à venda no mercado austríaco. Na sequência, a Silhouette pediu a inibição
da venda dos óculos por parte da Hartlauer, na medida em que os produtos não tinham
sido comercializados no EEE e, por isso, o seu direito de marca não se tinha esgotado.
Pelo contrário, defendeu a Hartlauer, que os óculos tinham sido vendidos sem a
5 Cfr. ALESSANDRA SILVEIRA, “Autonomia institucional/processual dos Estados-Membros e efectividade do
direito da União Europeia na jurisprudência do TJUE (ou do baile de Pierre-Auguste Renoir),” in Marcelo Rebelo
de Sousa et al. (coord.), Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Miranda, Vol. V, Coimbra, Coimbra
Editora, 2012, p. 12.
condição de não reimportação no território da outrora Comunidade Europeia. Julgada a
ação improcedente na primeira instância, a Silhouette recorreu para o tribunal superior
que suspendeu a instância e formulou as seguintes questões:
“O n.° 1 do artigo 7.° da Primeira Directiva do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que
harmoniza as legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas [Diretiva 89/104/CEE],
deve ser interpretado no sentido de a marca conceder ao seu titular o direito de proibir a um
terceiro o uso da marca em mercadorias com ela comercializadas num Estado que não é parte
contratante?”
“O titular da marca pode, com base apenas no n.° 1 do artigo 7.° da Directiva 89/104, pedir que
o terceiro deixe de usar a marca para produtos comercializadas num Estado que não é parte
contratante?”
Em resposta à primeira questão, ou seja, saber se o direito do titular da marca se
esgota quando este comercializa as suas mercadorias, marcando-as com um
determinado sinal, fora do EEE,6 o TJ respondeu que não. Para tanto e depois de afirmar
que a Diretiva contém uma disciplina referente às disposições de fundo essenciais em
matéria de marcas, concluiu que esta “não pode ser interpretada no sentido de deixar aos
Estados-Membros a possibilidade de prever na sua legislação nacional o esgotamento
dos direitos conferidos pela marca para produtos comercializados em países terceiros.7
Esta interpretação é além do mais a única que é susceptível de realizar cabalmente a
finalidade da directiva, ou seja, salvaguardar o funcionamento do mercado interno. Com
efeito, entraves inelutáveis à livre circulação de mercadorias e à livre prestação de
serviços decorreriam de uma situação na qual alguns Estados-Membros pudessem
prever o esgotamento internacional enquanto outros só preveriam o esgotamento
comunitário […].”8 Em relação à segunda questão e porque relacionada com o efeito
horizontal das disposições das diretivas, afirmou que uma ação de inibição do uso de
uma marca por um terceiro não pode ter como fundamento a invocação de uma norma
6 O EEE concretizou-se num acordo assinado no Porto, que entrou em vigor a 1 de janeiro de 1994. Este espaço
integra no território da União Europeia os territórios dos países pertencentes à EFTA (Islândia, Liechtenstein e
Noruega), destinado a facilitar a adesão destes países à União. Cfr. FAUSTO DE QUADROS, Direito da União
Europeia, 3.º edição, Coimbra, Almedina, 2013, p 53.
7 Considerando 26.
8 Considerando 27.
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da diretiva, precisamente porque esta não cria, por si só, obrigações para os particulares,
devendo a tutela do titular da marca ser aferida através da interpretação do direito
nacional em conformidade com o Direito Europeu.9
3. Diretiva nº 2008/95/CE10
e a proteção territorial da marca
A Diretiva 89/104/CEE foi revogada pela DIRETIVA 2008/95/CE DO
PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, de 22 de outubro de 2008, que
aproxima as legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas. Esta diretiva
constata que [n]ão se afigura necessário proceder a uma aproximação total das
legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas. Basta limitar a aproximação às
disposições nacionais que tenham uma incidência mais direta sobre o funcionamento do
mercado interno. Nessa conformidade, o titular da marca tem um direito exclusivo. O
titular fica habilitado a proibir que um terceiro, sem o seu consentimento, faça uso na
vida comercial: a) de qualquer sinal idêntico à marca para produtos ou serviços
idênticos àqueles para os quais a marca foi registada; b) de um sinal relativamente ao
qual, devido à sua identidade ou semelhança com a marca e devido à identidade ou
semelhança dos produtos ou serviços a que a marca e o sinal se destinam, exista um
risco de confusão, no espírito do público; o risco de confusão compreende o risco de
9 As diretivas têm um efeito direto vertical, na medida em que podem ser invocadas pelos particulares contra o
Estados, não têm, contudo, um efeito direto horizontal, ou seja, não podem ser invocadas entre particulares,
precisamente porque os destinatários das diretivas são os Estados-membros. Esta tese pode considerar-se em
“erosão” devido ao efeito direto horizontal de que gozam muitos dos direitos consagrados na Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia. Estes direitos são densificados em diretivas, pelo que é legítima a
conclusão de que se tais direitos gozam de efeito direito horizontal, as diretivas que os concretizam também.
Sobre o problema, cfr. ALESSANDRA SILVEIRA, “União Europeia: Da Unidade Jurídico-política do Ordenamento
Composto (ou da Estaca em Brasa no Olho do Ciclope Polifemo)”, in Alessandra Silveira (coord.), Direito da
União Europeia e Transnacionalidade, Lisboa, Quid Iuris, 2010, p. 32 e ss.
10 As remissões para a diretiva revogada devem entender-se como sendo feitas para a presente diretiva e
devem ler-se nos termos do quadro de correspondência constante do anexo II, tal como resulta do seu artigo
17.º.
associação entre o sinal e a marca.11 Pode, nomeadamente, ser proibido: a) apor o sinal
nos produtos ou na respetiva embalagem; b) oferecer os produtos para venda ou colocá-
los no mercado ou armazená-los para esse fim, ou oferecer ou fornecer serviços sob o
sinal; c) importar ou exportar produtos com esse sinal; d) utilizar o sinal nos
documentos comerciais e na publicidade.12
O direito conferido pela marca não permite
ao seu titular proibir o uso desta para produtos comercializados na Comunidade sob essa
marca pelo titular ou com o seu consentimento. Não obstante, sempre que existam
motivos legítimos que justifiquem que o titular se oponha à comercialização posterior
dos produtos, nomeadamente, sempre que o estado desses produtos seja modificado ou
alterado após a sua colocação no mercado, aquela proibição pode operar.13
O direito
conferido pela marca é um direito limitado ao território onde é registado.14
E assim é,
porque os Tratados em nada prejudicam o regime da propriedade dos Estados-
membros.15
Por ser assim e para manter distintas as competências da União e dos
Estados-membros, surge a noção de “objeto específico”, trabalhada pelo TJ em matéria
de propriedade intelectual de forma a traçar o limite até onde a restrição à titularidade
dos direitos de propriedade industrial pode operar.16
Por esta noção afirma-se um núcleo
essencial de poderes conferidos ao titular de um direito intelectual e por que razão a sua
proteção está garantida, não sendo licito aos órgãos da União limitá-los.17
Com
11 Artigo 5.º n.º 1.
12 Artigo 5.º n.º 3.
13 Artigo 7.º.
14 Sem prejuízo da marca comunitária. Cfr. Regulamento (CE) n.º 207/2009, de 26 de fevereiro de 2009.
15 Com efeito, o artigo 345.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia impõe a neutralidade da União
em matéria da atribuição de direitos de propriedade, devendo para cada objeto ser definido, pelos Estados-
membros, o respetivo regime. Cfr. SANDRA PASSINHAS, Dimensions of Property under European Law,
Fundamental Rights, Consumer Protection, and Intellectual Property: bridging concept?, Florence, March, 2012,
p. 301, in http://bookshop.europa.eu/en/dimensions-of-property-under-european-law-pbQMTA10011/
[consultado em 20.07.2013].
16 SANDRA PASSINHAS Dimensions of Property under European Law…, cit, p. 295.
17 É neste contexto que deverá ser compreendido o Considerando 6 da Diretiva: [o]s Estados-Membros
deverão continuar igualmente a ter toda a liberdade para fixar as disposições processuais relativas ao registo,
à caducidade ou à declaração de nulidade das marcas adquiridas por registo. Cabe aos Estados-Membros, por
exemplo, determinar a forma dos processos de registo e de declaração de nulidade, decidir se os direitos
anteriores devem ser invocados no processo de registo ou no processo de declaração de nulidade, ou em
ambos os casos, ou ainda, no caso de os direitos anteriores poderem ser invocados no processo de registo,
prever um processo de oposição, ou uma análise oficiosa, ou ambos. Os Estados-Membros deverão manter a
faculdade de determinar os efeitos da caducidade ou da nulidade das marcas.
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referência à marca, o objeto específico foi delimitado no caso Centrafarm c. Winthrop,
nos seguintes termos: “[e]m matéria de marcas, o objecto específico da propriedade
industrial é, designadamente, o de assegurar ao titular o direito exclusivo de utilizar a
marca, quando o produto é colocado no mercado pela primeira vez, e de assim o
proteger contra os concorrentes que quisessem abusar da posição e reputação da marca
vendendo produtos que indevidamente usassem essa mesma marca […].”18
Será por via
deste objeto específico que se compreende o esgotamento do direito da marca.
4. Esgotamento da marca e mercado interno: o esgotamento regional
A perceção do que é o esgotamento da marca pressupõe a pré-compreensão de
“importação paralela”. São três os “pressupostos constitutivos” de uma importação
paralela: a) os produtos são importados de um mercado estrangeiro para o mercado onde
esses produtos tiveram origem; b) tais produtos são importados sem autorização do
titular da marca; c) os produtos importados devem ser genuínos tais como os produtos
do mercado onde tiveram origem.19
Tais requisitos são de verificação cumulativa. No
caso decidido pelo TJ todos eles se verificam, pois os óculos foram importados para a
Áustria sem a autorização da Silhouette, a partir de um território fora do EEE, sendo
idênticos aos produtos que este comercializava sobre o mesmo sinal no mesmo
mercado. A conclusão do TJ foi no sentido de afirmar o direito do titular da marca
poder controlar a revenda dos seus produtos nestes termos. Ou seja, o seu direito não se
tinha esgotado.
18 Acórdão do TJ, de 31 de outubro de 1974 (proc. C- 16/74), citado por SANDRA PASSINHAS, Dimensions of
Property under European Law…, cit, p. 297.
19 Cfr. CHUNG-LUN SHEN , “Intellectual Property Rights and International Free Trade: New Jurisprudence of
International Exhaustion Doctrine under the Traditional Legal System”, in Journal of International Commercial
Law & Technology, Vol. 7, Issue 3, Jul 2012, p. 182.
São concebidos três modelos de esgotamento de direitos propriedade industrial:
internacional, regional e nacional. No esgotamento internacional, um produto
comercializado em qualquer território esgota o direito do titular da marca de se opor à
importação do mesmo produto para o território de origem;20
no esgotamento nacional, o
direito apenas se esgota no território de origem do produto onde foi comercializado,
podendo o titular da marca opor-se à importação do mesmo produto, marcado com o
sinal de que é titular;21
o esgotamento regional, enquanto forma de esgotamento
internacional, impede que o titular de uma marca se oponha à importação de produtos
marcados com o seu sinal desde que comercializados, por si ou com o seu
consentimento, num mercado interno,22
pelo contrário, se tais produtos forem
comercializados, pela primeira vez, em mercados que não o mercado interno, não
podem ser reintroduzidos nesse mercado por via de uma importação paralela, podendo o
titular da marca opor-se à sua comercialização.23
É precisamente o esgotamento regional
objeto do Acórdão do TJ, cujo princípio foi reiterado em jurisprudência ulterior.
5. A jurisprudência do TJ pós “Silhouette”
5.1 O Acórdão “Sebago”24
A questão suscitada no presente caso respeita à noção de consentimento exigido
para que uma comercialização de produtos marcados possa esgotar o direito do titular
da marca25
. Com efeito, pretende-se saber se o consentimento deve ser exigido para os
produtos cujo esgotamento se invoca ou se, pelo contrário, admite-se o esgotamento do
direito se o titular deste anuiu na comercialização de produtos similares dentro do EEE.
20 Cfr. CHUNG-LUN SHEN , “Intellectual Property Rights and International Free Trade:…”, cit., p. 189/190.
21 Cfr. CHUNG-LUN SHEN , “Intellectual Property Rights and International Free Trade:…”, cit., p. 190.
22 A expressão “mercado interno” não é consensual entre autores. Manuel Lopes Porto refere-se a mercado
único, “na medida em que dá melhor a ideia, correcta e desejável, de que não se visa um mercado fechado em
relação ao exterior”. Cfr. MANUEL LOPES PORTO, Teoria da Integração e Políticas Comunitárias: Face aos
Desafios da Globalização, 4.ª edição - ampliada e actualizada, Coimbra, Almedina, 2009, p. 220, nota 8
23 Cfr. CHUNG-LUN SHEN , “Intellectual Property Rights and International Free Trade:…”, cit., p. 191/192.
24 Ac. do TJ, de 1.07.1999, proferido no processo C-173/98.
25 As demais questões relacionavam-se com o tipo de esgotamento a que se referia a Diretiva 89/104/CEE,
pelo que TJ remeteu a resposta a esta questão para o Ac. “Silhouette”.
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Com efeito, a Sebago tinha registadas duas marcas com o nome “Docksides” e três
marcas com o nome “Sebago”. Ambas referiam-se a sapatos. A distribuição era
assegurada, no EEE, pela Maison Dubois. A empresa G-B colocou à venda nos seus
hipermercados sapatos marcados com o nome “Docksides Sebago”, depois de os ter
adquirido a um importador que os obteve de um fabricante de sapatos de Salvador. Em
momento algum foi posta em causa a genuinidade do produto, tendo a empresa G-B,
alegando que produtos similares já tinha sido comercializados no EEE com o
consentimento do titular da marca e que o seu licenciado em Salvador não estava
proibido de exportar os sapatos para aquele espaço, pelo que havia consentimento tácito
na sua comercialização no EEE. O TJ respondeu que o direito do titular da marca só se
esgota para os exemplares do produto que foram comercializados no seu território com
o seu consentimento. Com efeito, se o esgotamento do direito não opera, nos termos da
Diretiva, em relação aos produtos comercializados fora do EEE, “esta protecção seria
esvaziada de substância caso bastasse, para se verificar o esgotamento na acepção do
artigo 7.°, que o titular da marca tivesse consentido na comercialização nesse território
de produtos idênticos ou similares àqueles para os quais se invoca o esgotamento […]”.
5.2 O Acórdão “Levi Strauss”26
Neste caso que opôs a Levis à Tesco e à Costco, estava em causa a questão de saber
se o consentimento do titular de uma marca, na comercialização de produtos no EEE,
podia ser implícito. Tanto a Tesco como a Costco, impossibilitadas pela Levis de serem
seus distribuidores autorizados, adquiriram produtos marcados com o seu sinal (jeans
Levis 501), a fornecedores que os adquiriram, por sua vez, a revendedores autorizados
pelo titular da marca nos Estados Unidos, Canadá ou México. Estes revendedores não
estavam autorizados, no Canadá e nos Estados Unidos, à venda por grosso, mas apenas
a consumidores finais ou à sua exportação, no caso dos grossistas mexicanos. O TJ
26 Ac. do TJ, de 20.11.2001, proferido nos processos apensos C-414/99 e 416/99.
reafirmou a jurisprudência anterior, quando concluiu que “[o] efeito da directiva é
[limitar] o esgotamento do direito conferido ao titular da marca aos casos em que os
produtos são comercializados no EEE e permitir ao titular comercializar os seus
produtos fora desta zona sem que essa comercialização esgote os seus direitos no
interior do EEE. Ao precisar que a comercialização fora do EEE não esgota o direito de
o titular se opor à importação destes produtos feita sem o seu consentimento, o
legislador comunitário permitiu assim ao titular da marca controlar a primeira
comercialização no EEE dos produtos que ostentam a marca […].”27
O conceito de
consentimento deve ser definido de forma homogénea para toda a União e deve ser
expresso, sem prejuízo de “em certos casos, esse consentimento possa resultar
implicitamente de elementos e de circunstâncias anteriores, contemporâneas ou
posteriores à comercialização fora do EEE, que, apreciadas pelo juiz nacional, traduzam
igualmente, de forma inequívoca, uma renúncia do titular ao seu direito [exclusivo de
colocar os produtos em circulação no EEE].”28
6. Conclusões
Da jurisprudência anterior pode concluir-se que o consentimento a que se refere o
artigo 5.º n.º 1 da Diretiva 2008/95/CE deve ser expresso para cada produto e não para
produtos similares, considerando que este consentimento equivale a uma renúncia a um
direito exclusivo, podendo o seu titular da marca opor-se à importação de produtos
genuínos de territórios fora do EEE, sem o seu consentimento, já que o esgotamento do
seu direito de controlar a revenda tem natureza regional, nos termos do artigo 7.º n.º 1
daquela diretiva. Não pode, contudo, opor-se, à circulação no território de origem dos
bens, de produtos colocados em circulação no EEE, por si ou com o seu consentimento
e reintroduzidos naquele território por operadores dedicados à importação paralela.
Aqui há liberdade de circulação de mercadorias e entre esta e a proteção titular de uma
marca pode haver um conflito: se por este se confere um exclusivo à sua exploração
económica,29
por aquela impedem-se as restrições quantitativas à exportação e
27 Considerando 33.
28 Considerando 46.
29 Exploração económica nos limites do objeto específico da marca.
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importação e medidas de efeito equivalente.30
É natural que o titular de um direito
industrial impeça a importação de produtos que ele próprio colocou em circulação
noutro Estado-membro, em função da proteção territorial de que goza no seu Estado,
por ser titular de um direito industrial, afigurando-se, esta conduta, como de efeito
equivalente a uma restrição quantitativa.31
Por isso há encontrar um equilíbrio entre a
liberdade de circulação, enquanto expressão do mercado interno e a defesa do direito
industrial, de forma a remunerar adequadamente o seu titular do investimento que fez na
sua criação.32
Quando o direito industrial se extingue com a comercialização de um
concreto produto no mercado interno, reconhece-se, por um lado, o direito ao
monopólio dessa comercialização e, por outro, que esse direito apenas pode ser exercido
uma vez, por cada produto marcado, de forma a favorecer a liberdade de circulação de
mercadorias.33
Com isto reconhecem-se os limites do objeto especifico do direito de
marca e, consequentemente, da repartição das competências da União e dos Estados-
membros nesta matéria. A jurisprudência do TJ, nesta matéria, é coerente com a sua
função jurisdicional de integração, dando assim expressão à União de Direito
característica a União Europeia,34
pelo que a correta dimensão do problema deverá ser
dada pela via económica e política. Ao transformar a Europa numa fortaleza35
a União
Europeia enfraquece os consumidores que teriam, por efeito da arbitragem, acesso a
30 Cfr. Artigos 34.º e 35.º do TFUE.
31 Cfr. SANDRA PASSINHAS, Dimensions of Property under European Law,…, cit, p. 302/303
32 Onde se inclui a publicidade da marca, a constituição de uma rede de distribuição, estudos de mercado, entre
outros fatores.
33 Cfr. SANDRA PASSINHAS, Dimensions of Property under European Law…, cit., p. 308.
34 Não sendo um Estado, a União Europeia “cria direito como se fosse”, daí que esta “funciona como uma União
de direito (por alusão à expressão Estado de direito).” Cfr. ALESSANDRA SILVEIRA, Princípios de Direito da
União Europeia, Doutrina e Jurisprudência, 2.ª edição (atuaclizada e ampliada), Lisboa, Quid Iuris, p. 28.
35 TUOMAS MYLLY, “Silhouette of Fortress Europe - International Exhaustion of Trade Mark Rights in the EU”,
in Maastricht Journal of European and Comparative Law, Vol. 7, Issue 1, 2000, pp. 51-80.
produtos mais baratos.36
Este não é um problema para o TJ, que se limita a realizar a sua
função, mas antes para os Estados-membros decidirem se a integração regional a que se
obrigaram, força, nesta matéria, uma separação internacional, quando outros Estados já
deram o seu contributo para um verdadeiro comércio internacional.37
22.07.2013
*escrito de acordo com a nova ortografia, salvo em citações, onde foi mantido o original.
36 A arbitragem é um fenómeno económico. Os operadores de mercado compram onde o produto é mais barato
e vendem-no onde é mais caro. Um caso interessante pode ser observado no comércio paralelo de produtos
farmacêuticos no mercado interno. Aproveitando-se da regulação do mercado deste tipo de produtos, os
operadores adquirem-nos em países onde os preços são baixos, como a Grécia e revendem-nos onde são mais
caros, como o Reino Unido. Quem ganha com esta prática são distribuidores… Cfr. PANOS KANAVOS e JOAN
COSTA-FONT, “Pharmaceutical parallel trade in Europe: stakeholder and competition effects”, Economic Policy,
Volume 20, Issue 44, October 2005, pp. 751–798.
37 Veja-se a decisão do Supremo Tribunal Federal dos EUA, ao afirmar o esgotamento internacional do direito
intelectual no caso Kirtsaeng v. John Wiley & Sons, Inc., quando admitiu a legitimidade da importação de livros
colocados em circulação noutro Estado, sem o consentimento do seu autor. Esta decisão pode ser alargada a
outros bens de consumo abrangidos, também, por direitos industriais, como é o caso de produtos marcados
com um determinado sinal. Cfr. LOTHAR DETERMANN, “Importing Software and Copyright Law”, in The
Computer & Internet Lawyer, Volume 30, Number 5, May 2013, p. 33.
Direito Europeu da Propriedade
Industrial
Referências
DETERMANN, LOTHAR, “Importing Software and Copyright Law”, in The Computer & Internet Lawyer, Volume
30, Number 5, May 2013
GONÇALVES, LUÍS COUTO, “Evolução Histórica da Propriedade Industrial”, in António Campinos e Luis Couto
Gonçalves (coord.), Código da Propriedade Industrial, Anotado, Coimbra, Almedina, 2010
KANAVOS, PANOS e COSTA-FONT, JOAN, “Pharmaceutical parallel trade in Europe: stakeholder and
competition effects”, Economic Policy, Volume 20, Issue 44, October 2005
MASKUS , KEITH E. e CHEN, YONGMIN, “Parallel Imports in a Model of Vertical Distribution: Theory, Evidence,
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