IL NARCISISMO E L'ARTE CONTEMPORANEA. IL CONTRIBUTO DELLA PSICOLOGIA DELL'ARTE
Imperialismo e ressurgimento nacional. o contributo dos monárquicos africanistas.
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1
[in Estudos do Século XX, CEIS-20, Universidade de Coimbra, n.º 3, 2003, pp. 83-112]
Miguel Dias Santos1
Imperialismo e ressurgimento nacional. O contributo dos
monárquicos africanistas
Resumo
A sobrevivência da ideia imperial entre o final do século XIX e uma grande parte
do século XX encontrou entre os monárquicos africanistas agentes ideológicos
empenhados numa política colonial que significasse o engrandecimento de Portugal.
A sua produção teórica revela a importância dos argumentos étnicos e históricos com
vista a demonstrar e fundamentar alguns dos mitos elaborados neste período, em
particular os mitos da “herança histórica” e da “vocação colonial” dos portugueses.
Por outro lado, procura-se sustentar a ideia de que o reforço de uma política
imperial só podia fazer-se dentro de uma concepção nacionalista, única base política
e ideológica de construção de uma unidade nacional. Os monárquicos africanistas
terão assim contribuído para a edificação de um imperialismo nacionalista e místico
responsável pela ilusão de grandeza que atravessou largos sectores ideológicos em
Portugal durante boa parte do século XX.
1 CEIS-20, Universidade de Coimbra.
2
Os ideólogos do Estado Novo empreenderam um significativo processo de
heroicização dos militares que participaram nas campanhas de ocupação levadas a
cabo nos territórios de Angola e Moçambique no final do século XIX. Este processo
de reconhecimento oficial da geração africanista, não pode dissociar-se do seu
inegável contributo para a afirmação da ideia imperial durante o Estado Novo. A sua
heroicização corresponde a uma complexa elaboração ideológica com vista a
apresentar a geração africanista como portadora simbólica do espírito de regeneração
da raça dos antigos construtores de impérios e envolvê-la no reforço da unidade
nacional. A idealização da sua obra colonial aspirava a reanimar a consciência
imperial dos portugueses, particularmente das elites, impregnando essa consciência
do fogo patriótico em que se expressava o culto da nação. Compreensivelmente, a
geração africanista acabaria transformada em “memória do Estado Novo”2. Eis como
um contemporâneo expressou o significado desta geração:
“Os heróis da Ocupação constituem no quadro da vida militar portuguesa de todos os tempos um
bloco de energias pessoais dominados por uma ideia, ardoroso sentimento de patriotismo, absoluta
decisão de esforço, perfeita noção de dignidade, alto conceito da honra de servir a nação – condições
verdadeiramente comuns a quantos, em todas as circunstâncias e lugares, tiveram nessas campanhas
ensejo de juntar ao livro de ouro da nossa história militar o novo e glorioso capítulo das mais
destemidas acções de guerra empreendidas fora das nossas fronteiras continentais”3.
O presente estudo tem como objectivo analisar o contributo dos monárquicos
africanistas – e entre eles encontravam-se alguns dos nomes mais significativos,
como Paiva Couceiro, João de Almeida, Aires de Ornelas e João de Azevedo
Coutinho – para a formulação do sonho imperialista. Conhecidos pelo seu apego aos
ideais monárquicos, a sua acção política ao serviço da causa real foi acompanhada
por uma fecunda actividade doutrinária, plasmada em livros, conferências, opúsculos
e discursos oficiais. As reflexões teórica-doutrinárias e o discurso ideológico que
emprestaram ao ideal imperialista resultariam, afinal, das experiências colonialistas
levadas a cabo nos territórios de Angola e Moçambique, onde harmonizaram a acção
2 Cfr. Jorge Seabra, “O Império e as Memórias do Estado Novo. Os Heróis de Chaimite”,
Separata da Revista de História das Ideias, vol. 17, Coimbra, Faculdade de Letras, 1995, p. 37. 3 Luís Teixeira, Heróis da Ocupação, Lisboa, Editorial Ática, 1943, p. 41.
3
militar com importante componente administrativa. Além de contribuírem para o
alargamento da soberania portuguesa no continente africano, ocupação que só ficaria
completa na década de vinte do século XX, a sua acção como administradores
despertaria neles um forte sentimento imperial e nacionalista, que os conquistaria
para um empolgante esforço de teorização e definição conceptual sobre o tão
desejado “Portugal Maior” 4
.
Congeminado no quadro mais vasto da partilha de África, durante a década de
1880, de que resultaria o famoso projecto do mapa cor-de-rosa, o sonho imperial
encontrou o seu ambiente político-social e cultural mais expressivo depois da
humilhação imposta pela Inglaterra no célebre ultimato de 1890. Após um curto
período de histeria colectiva antibritânica, a humilhação inglesa favoreceu o reforço
dos ideais patrióticos, levando o imperialismo português a vestir-se com uma
roupagem nacionalista. Em Portugal, como na Europa – onde a superioridade das
virtudes nacionais conduziu ao mito da “nação imperial” imbuída de uma missão
civilizadora5 - o imperialismo estabelecia um anelo com a ideologia nacionalista, ao
mesmo tempo que se elaboravam os mitos da “herança sagrada” e da “vocação
colonial” portuguesa6.
Mas enquanto na Europa o imperialismo radicava na acção das elites intelectual,
política e económica7, em Portugal a demanda imperial seria, com poucas excepções,
como António Enes, obra quase exclusiva de oficiais do exército. Muitos militares,
como Paiva Couceiro e João de Almeida, manifestavam um certo desprezo pela
política partidária em que muitos dos seus colegas passeavam a ociosidade e as suas
ambições, sonhando trocar uma carreira burocrática na metrópole pela aventura e
pela acção que só poderiam conquistar em África como “construtores de impérios”8.
4 Veja-se os seus relatórios em Henrique de Paiva Couceiro, Angola (Dois anos de governo Junho
1907-Julho 1909), 2ª ed., Lisboa, Tipografia Portuguesa, 1948 e João de Almeida, Sul de Angola,
Lisboa, 1912. 5 Cfr. Jean-Louis Miège, Expansión Europea y Descolonización de 1870 a nuestros dias, 2ª ed.,
Barcelona, Editorial Labor, 1980, p. 195. 6 Cfr. Valentim Alexandre, Velho Brasil Novas Áfricas. Portugal e o Império (1808-1975), Porto,
Edições Afrontamento, 2000, p. 220 e Maria Manuela Lucas, “Do Brasil à África: a expansão
oitocentista portuguesa na corrente das ideias modernas”, separata da Revista da Universidade de
Coimbra, vol. XXXVI, 1991, p. 474. 7 Cfr. Heinz Gollwitzer, O Imperialismo Europeu 1880-1914, Lisboa, Editorial Verbo, 1969, p.
46. 8 Cfr. Vasco Pulido Valente, “Henrique Paiva Couceiro – um colonialista e um conservador”, in
Análise Social, vol. XXXVI (160), 2001, p. 770; Albino Fernandes de Sá, João de Almeida
Governador da Huíla, Sá da Bandeira, Gráfica da Huíla, 1963, pp. 12-14.
4
Eram homens de fibra rija que, como João de Almeida, não se “saciavam com os
exercícios de pólvora seca e que em si traziam sonhos inquietos duma ancestralidade
imperiosa”9. A definição deste fervoroso espírito colonialista seria décadas mais
tarde fixada pelo tenente-coronel Almeida Teixeira, outro dos heróis africanistas, que
viria a integrar o levantamento monárquico de Monsanto, em 1919:
“Os homens que se revelaram na campanha de 1895, em Moçambique, dominados pela ideia de
defender o grande Império de África, criaram uma verdadeira mística em que punham uma actividade
e uma exaltação que levava a todas as renúncias e inspirava todos os sacrifícios.
Essa mística fez escola; e nós, os jovens oficiais dessa época, éramos dominados por ela e assim
atraídos por essa África, ainda por esse tempo cheia de mistérios e exuberante de ameaças, onde todos
queríamos cravar a nossa lança”10
.
A instauração da república conduziu estes oficiais do exército português para a
oposição política, carregados de um prestígio contagiante conquistado nas
campanhas de África, onde se bateram pelo ideal de um “Portugal Maior”. Nas
palavras de Aires de Ornelas, em conferência proferida na Sociedade de Geografia de
Lisboa, em 1901, ao exército estaria confiada a missão de zelar pela “obrigação de
olhar para o futuro da nossa pátria e da nossa raça, temos obrigação de trabalhar pelo
Portugal Maior, temos a obrigação de preparar ao mundo o advento de novos
Estados”11
. Muitos anos depois, Henrique Galvão, um dos próceres do imperialismo
salazarista, e grande admirador de João de Almeida, afirmará em livro laudatório,
empenhado em revelar a obra colonizadora do governador do Sul de Angola, que “o
exército era então [...] o depositário do pensamento colonial português”12
.
Apesar de abatidos ao efectivo das forças armadas, após o 5 de Outubro, os
monárquicos africanistas, a par de uma intensa actividade política e ideológica ao
serviço da causa monárquica, não deixarão de contribuir no plano doutrinário para a
consolidação da ideia imperial como via privilegiada para o ressurgimento de uma
nação que se pretendia engrandecer pelo esforço da sua missão civilizadora.
9 Henrique Galvão, História do Nosso Tempo (Acção e Obra de João de Almeida 1904-1910),
Lisboa, s/e., 1931, p. 34. 10
Alberto de Almeida Teixeira, Angola Intangível (Notas e Comentários), Porto, s/e., 1934,
prefácio. 11
Aires de Ornelas, A nossa administração colonial. O que é, o que deve ser, Conferência
realizada na Sociedade de Geografia em a noite de 30 de Novembro de 1901, Lisboa, 1903, p. 19. 12
Henrique Galvão, ob. cit., p. 32.
5
1. Imperialismo e Etnicidade
O seu maior contributo reside, pensamos nós, na elaboração de um coerente
corpo doutrinário, uma teoria do império, intentada com vista a fundamentar alguns
dos mitos coloniais formulados na época, em especial o mito da “vocação colonial”
dos portugueses e da sua “missão histórica”. A maioria dos textos que compulsámos,
constituída por livros, pequenos opúsculos e em grande parte conferências
publicadas, combina assim uma intencionalidade doutrinária com uma forte
componente cívica.
Não se estranhe, por isso, que os textos lidos revelem a importância da história
como campo do saber mais adequado à teorização imperial, num discurso
impregnado das concepções da filosofia da história, em busca do “espírito da raça”, e
em que a verdade dos factos é muitas vezes substituída por interpretações subjectivas
que radicam no seu carácter moralizante. Afinal, a utilização do discurso histórico e
da memória, quer ao nível da simples divulgação como da prática profissional,
enquanto elementos estruturantes da consciência nacional, havia sido cultivada com
abundância por uma certa historiografia muito em voga em Portugal durante o século
XIX13
.
No caso dos monárquicos africanistas, muitos dos textos de pendor
historiográfico escritos na década de trinta não escondem a influência da
historiografia emergente durante a república sob o signo nacionalista14
. São textos
nem sempre empenhados em aferir o rigor exegético das suas explicações, ignorando
a cientificidade do conhecimento histórico. Perfilavam-se, antes de mais, como
instrumentos conscientes de ideologização, apostados em fazer do culto da memória
nacional um “magistério cívico”15
. Nessa perspectiva, emergirão muitas vezes como
história moralizante, como escola da vida inçada de “exemplos” que visavam educar
para a cidadania: “Exemplos dos velhos. Educação histórica para os novos. Que
outra não há melhor, principalmente para quem tem a História do Povo Lusíada”16
.
13
Veja-se Sérgio Campos Matos, Historiografia e Memória Nacional, Lisboa, Edições Colibri,
1998. 14
Sobre o assunto ver Luís Reis Torgal, “Sob o Signo da «Reconstrução Nacional»”, in História
da História em Portugal Séculos XIX – XX, vol. 1, Lisboa, Temas e Debates, 1998, pp. 249-271. 15
Cfr. Sérgio Campos Matos, ob. cit., pp. 240-241. 16
Henrique de Paiva Couceiro, Profissão de Fé, Lisboa, Edições Gama, 1944.
6
João de Almeida recorrerá com frequência às explicações históricas e
antropológicas para elaborar uma concepção etnológica que fundamentará toda a sua
teoria do império, investida da procura de um fundo étnico para a vocação imperial
da raça portuguesa. Com efeito, este defenderá que a actividade expansionista dos
portugueses decorria de um precoce determinismo étnico que haveria de condicionar
a sua actividade futura como nação colectiva17
. Para o antigo governador da Huíla, a
vocação expansionista dos portugueses fora concebida numa época ancestral e
anterior à formação da nacionalidade, forjada na idiossincrasia dos autóctones que
habitavam a mítica “Atlântida” e que por sua vez se encontravam na linha evolutiva
dos lusitanos. Entre os “atlânticos”, a concepção de império permaneceria já
enraizada no “espírito da raça”18
. Daqui resulta que o temperamento expansionista
original, na sua irreversível natureza étnica, constituía uma espécie de determinismo
histórico de que derivava o carácter imorredoiro da vocação colonialista de Portugal:
“O espírito de expansão [...] e o tacto na ocupação são rácicos – estão na massa, no
sangue, na substância dos portugueses de todos os tempos. [...] É o espírito de
expansão – modalidade romântica de um carácter eterno – que domina e orienta, que
segue e comanda toda a obra colonial dos portugueses – e esse espírito é o espírito da
própria nação como o nosso sangue, os nossos nervos e a nossa substância”19
.
A vocação expansionista dos “atlantes” seria mais tarde transmitida aos lusitanos
que Paiva Couceiro enaltecia pelo seu “sentimento de independência altiva”20
. Para o
paladino da monarquia que, na esteira de uma certa historiografia oitocentista, com
origem em Herculano21
, atribuía à época medieval a Idade de Ouro de Portugal, a
valorização do “espírito da raça lusitana” significava a conexão do presente com o
passado, consumando assim a tradição histórica22
. Ambos formulam, como se vê,
17
Veja-se João de Almeida, O espírito da raça portuguesa na sua expansão além-mar, Lisboa,
Parceria António Maria Pereira, 1931 e Idem, O Ressurgimento Ultramarino. Grandeza e
Romantismo duma geração, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1933. 18
O mito da Atlântida “tem para o nosso ponto de vista este interesse: o de reconhecer-se o
espírito expansionista num povo pré-histórico onde se presume que os lusitanos enraízam”. Cfr. O
Ressurgimento Ultramarino, p. 7. A teoria da originalidade do território e da raça portuguesa, que este
faz remontar aos habitantes da mítica “Atlântida”, foi apresentada pelo autor em 1901, na sua tese de
formatura em filosofia natural com o título O Fundo Atlântico da Raça Portuguesa. A teoria seria
desenvolvida no livro Visão do Crente, Lisboa, 1917 (2ª edição de 1937) e mais tarde em O Fundo
Atlante da Raça Portuguesa e a sua Evolução Histórica, Lisboa, 1950. 19
O Ressurgimento Ultramarino, cit. pp. 9-18. 20
Cfr. Henrique de Paiva Couceiro, O Soldado Prático, Lisboa, s/e., 1936, p. 19. 21
Cfr. Sérgio Campos Matos, ob. cit., pp. 240-241. 22
Cfr. Henrique de Paiva Couceiro, ob. cit., p. 11.
7
uma explicação que parte de uma concepção linear e cumulativa do tempo histórico.
Isto é, a vocação expansionista, radicando no fundo étnico dos “atlânticos” e depois
dos lusitanos, encontrava uma continuidade temporal na actividade expansionista dos
cristãos da reconquista. Esta será encarada numa dupla asserção: como sanção do
espírito expansionista da “raça” e como confirmação da propensão independentista
dos lusitanos.
Com efeito, para os africanistas a história da colonização portuguesa começou
com a conquista dos territórios metropolitanos a Sul do rio Tejo. João de Almeida
atribuiu ao monarca D. Sancho I a génese e concepção de um modelo de colonização
que, resultante do “nosso génio” e do nosso “espírito de expansão”, seria depois
praticado em Ceuta e em todas as regiões do hemisfério que receberam o contacto
dos portugueses. Os séculos da fundação da nacionalidade, que Ornelas e Couceiro
também valorizaram – para Ornelas a conquista do Algarve “é a primeira afirmação
da força expansiva da Nação e também a primeira façanha da marinha nacional”23
-
correspondiam a uma etapa fundamental na assunção da plena vocação expansionista
de Portugal, pois seria nesta altura que se incorporava na nação “o elemento novo,
espiritual, que iria temperar a expansão imperialista nos períodos dos grandes
descobrimentos – quando os portugueses se dispuseram a difundir pelo mundo, na
expressiva e inconfundível frase de Camões, - A Fé e o Império”24
.
Para o “herói dos Dembos”, a criação do meio português, isto é, a nacionalização
dos territórios conquistados, através das instituições, do direito, da língua, da cultura
e dos costumes nacionais, constituía a maior originalidade do imperialismo
português25
: “Desde a primeira ocupação de Marrocos que a Fé e o Império, a Cruz e
a Espada, o sentimento terrenho e a ideia de prolongar Portugal além-mar teve
realizações nítidas e indestrutíveis pelo próprio tempo. Em volta da fortaleza, que
assegurava o domínio e consagrava a conquista e fixação do português à terra,
23
Aires de Ornelas, O Ultramar Português. O que foi e o que é perante o conflito actual, Porto,
Companhia Portuguesa Editora, 1919, p.10; veja-se igualmente Henrique de Paiva Couceiro, ob. cit.,
pp. 22-23. 24
João de Almeida, A Cooperação dos Nativos na Expansão e na Defesa do Império, Lisboa,
Edições da 1ª Exposição Colonial Portuguesa, 1934, pp. 8-9; veja-se ainda, Idem, O Estado Novo,
Lisboa, Parceria A. Maria Pereira, 1932, p. XIII. 25
Ibidem, pp. 5-7; veja-se ainda O Espírito da Raça Portuguesa na sua Expansão Além-Mar, pp.
18 e ss.
8
formava-se em todo o Mundo o meio português”26
. A teoria do “meio português”
será o mais importante contributo de Almeida para a definição do carácter
nacionalista do imperialismo luso. Muitos teóricos da ideia imperial, entre a
Monarquia Constitucional e o Estado Novo, reivindicarão a nacionalização dos
territórios ultramarinos em moldes muitos semelhantes ao modelo que João de
Almeida reputava como um traço identitário da actividade colonialista dos
portugueses27
.
Na história dos descobrimentos, genericamente assumida como a Idade de Ouro
da história de Portugal, encontravam os portugueses a comprovação da sua missão
histórica de civilizar novos mundos, abordagem que coincidia com outras teorias que
sustentavam constituir Portugal um todo orgânico, de raiz étnica, e portador de um
espírito ou “génio” proveniente do fundo dos tempos28
:
“A acção dos portugueses na constituição de um grande império e na marcha de uma missão
civilizadora que teve, porventura mais do que nenhuma outra, um reflexo universal de fulgor decisivo
para a civilização do Mundo, resulta pois de um carácter próprio, que se mantém desde as origens em
todas as circunstâncias de tempo e de lugar [...]. Conduzido à descoberta do Mundo por motivos que
enraízam no próprio fundo autóctone da raça e que constituem uma fatalidade étnica de efeitos
insuperáveis, o povo português realiza na colonização [...] uma forma superior da sua missão histórica
cuja concepção é de princípio, e essencialmente, aquela em que todos os países coloniais do presente
se encontram”29
.
Em certa medida, este determinismo étnico, associado ao “espírito” de expansão,
ia ao encontro duma concepção providencialista da história, muito em voga na
historiografia do século XIX e XX30
. Não se tratava de um providencialismo
teológico, concebendo Portugal como povo eleito, mas de uma ideia subjectiva
acerca de um destino histórico sobredeterminado pelas qualidades inatas da “raça”.
Conduzia-se assim à aceitação de que o povo português estaria predestinado para
uma missão histórica que resultava de uma “fatalidade” étnica. Na mesma linha de
pensamento, Paiva Couceiro afirmava que “somos por nascença, e por obras, uma
26
Cfr. João de Almeida, A Ocupação Portuguesa em África na Época Contemporânea, Lisboa,
Agência Geral das Colónias, 1936, pp. 9-10. 27
Veja-se Henrique Paiva Couceiro, Profissão de Fé, Edições Gama, 1944, p. 135; Idem, Angola
(Dois anos de governo Junho 1907-Julho 1909), 2ª ed., Lisboa, Tipografia Portuguesa, 1948. 28
Cfr. Valentim Alexandre, “Nação e Império”, in Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri,
História da Expansão Portuguesa, vol. 4, s/l., Círculo de Leitores, 1998, p. 133. 29
João de Almeida, O Espírito da Raça Portuguesa na sua Expansão Além-Mar, Lisboa, Parceria
A. Maria Pereira, 1931, p. 23. 30
Cfr. Sérgio Campos Matos, ob. cit., pp. 230-232.
9
Nação criadora de Impérios, quer dizer, uma Nação Imperial; que tivemos, e temos,
uma missão histórica no Mar e no Ultramar”31
. O imperialismo como actividade
essencial da “raça”, constituía uma forma natural de cumprir os desígnios de uma
força misteriosa, “uma ideia nacional sempre igual a si própria”32
e imanente à
história lusa, da qual Portugal não se poderia demarcar sem colocar em perigo a sua
própria existência nacional.
Existia nesta ideia providencial, como se vê, uma margem importante para a
actividade colectiva e individual dos portugueses. Mas o caminho estaria já traçado
pela herança étnica e histórica, e qualquer desvio conduziria uma morte fatal da
nacionalidade: “Nesta missão ultramarina se contêm os destinos de Portugal. Ou ela
se cumpre ou os destinos se apagam, e a Nação Portuguesa passa ao Museu da
História. Portugal-Império é o objectivo nacional”33
.
Em suma, o império cumpria assim um desígnio providencialista que envolvia a
história dos portugueses, providos de um “génio especial”: “Portugal é uma Pátria
eterna [...]; um Povo e uma História, que vem de longe, e que tem de continuar-se,
dentro do génio da raça [...]. Somos enfim, um idealismo em marcha, e uma bandeira
de altos destinos, que tem de cumprir-se”34
. Os feitos civilizadores dos portugueses,
“trazendo para a evolução da cultura e da actividade modernas, toda a periferia do
Globo” - e assim inauguravam uma importante etapa da história da humanidade -
constituíam elemento estruturante na construção da identidade colectiva, pelo que só
a sua continuidade poderia assegurar a permanência de Portugal como nação
independente. Citando Renan, Couceiro considerava que “ ter feito grandes coisas
reunidas [...], estar no propósito, ainda, de fazer outras semelhantes, eis as condições
essenciais para se ser um povo”35
.
31
Henrique de Paiva Couceiro, Profissão de Fé, cit., p. 111. 32
Cfr. Aires de Ornelas, O Ultramar Português. O que foi e o que é perante o conflito actual,
Porto, Companhia Portuguesa Editora, 1919, p. 8. 33
Henrique de Paiva Couceiro, O Soldado Prático, cit., p. 362. 34
Idem, Profissão de Fé, cit., pp. 119-120. 35
Idem, A Democracia Nacional, Coimbra, Edição do Autor, 1917, pp. 101-102.
10
Confirma-se assim a existência de uma autêntica simbiose entre a posse de um
império colonial, a missão histórica de civilizar e a identidade nacional que outros
historiadores haviam já identificado36
.
Mas ao contrário do nacionalismo imperialista das grandes potências europeias,
gerado numa convicção progressista da civilização ocidental, e embebido de uma
“visão optimista do processo histórico como a marcha progressiva para a supremacia
da razão”37
, o discurso historicista de Couceiro e Almeida evidenciará toda a carga
decadentista que brotava da consciência cultural das elites finisseculares, e que tinha
as suas raízes mais longínquas no definhamento da consciência imperial do país, que
eles conotavam com a independência do Brasil em 1822.
Em 1936, Paiva Couceiro, o paladino do revolucionarismo monárquico, o
arquétipo atávico das virtudes da cavalaria medieval, o guerreiro carregado de uma
obstinada “fé e patriotismo” que muitos colocavam fora de época, perguntava antes
de partir para mais um exílio: “Pode, acaso, um povo que tem no seu Passado a
história dos séculos XV e metade do XVI, conformar-se com a ideia de completar os
seus destinos na miséria desta lamentável decadência?”38
. Esta “consciência
deprimida” face ao presente, resultava de uma comparação histórica com a época de
Ouro da história de Portugal39
. Significava igualmente um juízo de valor sobre o
presente muito marcado pelo ambiente cultural do final do século XIX, dominado
pelo paradigma cultural cientista que contribuiu para a generalização da analogia
entre a sociedade e os organismos sociais. Daqui resultava a convicção, filiada numa
concepção evolutiva do tempo histórico, de que Portugal, quando comparado com as
prósperas nações europeias em expansão, embocara num processo de
degenerescência colectiva e caminhava para a morte40
.
O conceito de decadência, como conceito dinâmico, parte da ideia de uma
degradação progressiva em direcção a um estádio final de desenvolvimento colectivo
36
Veja-se Yves Leonard, “A Ideia Colonial, Olhares Cruzados (1890 - 1930)”, in Francisco
Bethencourt, Kirti Chaudhuri, História da Expansão Portuguesa, vol. 4, s/l., Círculo de Leitores,
1998, p. 549. 37
Maria Manuela Lucas, art. cit., p. 463. 38
Henrique de Paiva Couceiro, O Soldado Prático, cit., p. 337. 39
Sobre o assunto veja-se Sérgio Campos Matos, ob. cit., pp. 351-352. 40
Cfr., entres outros, Sérgio Campos Matos, “História e Ficção em Oliveira Martins. Imagens de
Degenerescência”, in Revista de História das Ideias, Coimbra, Faculdade de Letras, 2000, pp. 159-
192.
11
que antecede a aniquilação41
. Impregnando as diferentes manifestações culturais das
elites da época, da história e filosofia à literatura42
, o decadentismo estava associado
à aceitação da degenerescência e aniquilamento de Portugal enquanto realidade
histórico-cultural. A “decadência” de Portugal contrastava, assim, com o progresso
das potências europeias, envolvidas em febris manifestações de imperialismo rácico,
numa Europa hierarquizada em nações “viventes” e nações “moribundas”43
. As
ameaças externas ao património colonial consumavam o sentimento colectivo de
agonia e “ruína”, numa pátria em tudo resignada aos argumentos do direito histórico
para legitimar a sua soberania colonial.
Citando Oliveira Martins e Eça de Queirós, que haviam sujeitado o país a um
amplo e profundo diagnóstico decadentista, Paiva Couceiro imprecava contra o
“exército execrável dos politicantes profissionais” e a insanável “corrupção”, que ele
responsabilizava pela ausência de uma verdadeira “consciência nacional”44
. Couceiro
e Almeida integravam-se assim num certo reformismo liberal muito em voga no final
do século XIX, mas que nestes evoluirá para uma assumida animosidade, chegando
mesmo a atribuir às ideias liberais a responsabilidade pelas enfermidades coloniais
de que padecia a nação desde o início do século XIX: “Em 1820 começa a noite
negra da nossa história colonial. [...] À paixão pela acção grandiosa e
engrandecedora, sucede a paixão torpe pelas palavras inflamadas, pelos tropos da
política e pelas quimeras da revolução. Ao homem de acção sucede o orador – e ao
guerreiro sucede o escriba”45
.
Apesar do diagnóstico decadentista, os monárquicos africanistas exibem um claro
optimismo quanto à possibilidade de um movimento de ressurgimento nacional,
desde que comprometido com o reatamento da política imperialista do passado. O
“herói de Chaimite” suspirará, como João de Almeida, pelo incremento de uma
acção colonial que significasse o reatar da tradição histórica, da missão civilizadora
de Portugal, dando ao mundo “novos países”, construindo em Angola “um novo
41
Sobre o conceito de “decadência” veja-se António Machado Pires, A Ideia de Decadência na
Geração de 70, 2ª ed., Lisboa, Vega, 1992, p. 29. 42
Cfr. Vítor Neto, “Abel Botelho. Quadros de Patologia Social”, in Revista de História das
Ideias, Coimbra, Faculdade de Letras, 2000, pp. 261-306. 43
Cfr. Joaquim António Fernandes dos Santos, Do Império da Raça à «Raça do Império»
(Etnicidade e Colonialismo, 1870-1914), Dissertação de Mestrado em História Contemporânea,
Coimbra, Faculdade de Letras, 2002, p. XX. 44
Cfr. Henrique de Paiva Couceiro, ob. cit., p. 343. 45
João de Almeida, A Ocupação Portuguesa em África na Época Contemporânea, cit., pp. 16-17.
12
Brasil” e assim “provar que as gerações modernas não desmentem o sangue
herdado”46
. Com efeito, o Brasil provava aos olhos do mundo as irrefutáveis virtudes
colonizadoras dos portugueses47
.
Ganha assim especial relevância esta utilização consciente da história como
instrumento ideológico capaz de corroborar a individualidade e as qualidades da raça
portuguesa, procurando atrair “as forças da nação para as suas realizações,
revestindo-se de uma forte componente nacionalista”48
. O discurso histórico, tal
como as comemorações, era assim chamado a comprovar a vocação civilizadora de
Portugal, evocando-se o passado numa perspectiva evolutiva com vista ao seu
funcionamento como guia para as gerações do presente. O futuro devia surgir como
resultado cumulativo do desenvolvimento das potencialidades do passado, visto
como “força disciplinada e dinâmica”49
. Aires de Ornelas formulará de forma
inequívoca a importância do discurso historicista para a concretização dos objectivos
nacionais: “Procurar esta ideia criadora da nação é portanto o verdadeiro critério da
história; indicar qual foi o seu esforço em prol da humanidade, qual a energia com
que contribuiu para o seu progresso, para o alargamento da sua esfera de acção,
numa palavra, mostrar o que foi a sua força de expansão e como ela se traduziu em
aquisição de imortalidade, tal é ainda o elevado conceito que deve apresentar a
filosofia da história”50
.
Por tudo o que fica dito, compreende-se melhor o processo de heroicização
levado a cabo pelo Estado Novo em relação à geração africanista, glorificada por
actos de bravura protagonizados no seio da natureza agreste do solo africano, e por
isso portadora do “génio” e do “espírito da raça”. São os próprios africanistas quem,
com o seu testemunho pessoal, evoca o espírito e a importância da geração
africanista de 1895 e subsequentes. Para o “herói dos Dembos”, o espírito da tradição
expansionista de quinhentos reatava-se na acção de António Enes, Mouzinho de
Albuquerque, Aires de Ornelas e Paiva Couceiro, responsáveis pelo reacender da
“mística” imperialista:
46
Henrique de Paiva Couceiro, “Projecto de Fomento Geral d’Angola”, separata da revista
Portugal Colonial, Lisboa, 1931, p. 10. 47
Cfr. João de Almeida, Visão do Crente, 2ª ed., Porto, Livraria Tavares Martins, 1937, p. 195. 48
Cfr. Joaquim António Fernandes dos Santos, ob. cit., p. 49. 49
João de Almeida, O Espírito da Raça Portuguesa na sua Expansão Além-Mar, cit., p. 28. 50
Aires de Ornelas, O Ultramar Português. O que foi e o que é perante o conflito actual, cit., p. 8.
13
“Para compreender o espírito e a índole da geração que, ocupando, pacificando, administrando e
reconstituindo um Império Português, iniciou o ressurgimento ultramarino contemporâneo, é
necessário compreender o espírito e a índole da raça na sua marcha histórica, na sua característica
expansionista e no seu génio colonizador.
É que a grandeza e o galhardo romantismo dessa geração não foram a faísca que por acaso ateou
o lume dum sentimento novo [...]. Chama sim, mas chama que rompeu por entre as cinzas e que
provinha dum fogo antigo, milenário – o mesmo fogo que sempre aqueceu e iluminou uma raça
original cujos caracteres têm a eternidade do génio”51
.
Em certa medida, aplicava-se a toda uma geração a interpretação e o significado
com que se celebrava a conduta heróica dos “Grandes Homens”. A geração de 1895
emergia “investida de uma exemplaridade típica” e de uma “capacidade profética”
que se impunha seguir, enquanto os seus actos concitavam a admiração geral e eram
objecto de um processo de idealização52
. O heroísmo estaria assim conotado com as
noções de glória e de grandeza. Personalidades como Mouzinho, Ornelas ou
Azevedo Coutinho eram celebradas enquanto legítimas continuadoras da obra dos
“construtores de império” - como D. Henrique, D. João II ou Afonso de Albuquerque
- em quem irromperam modernamente as atávicas virtudes da raça53
, e eram
instituídas como “modelos” a seguir: “Esses Portugueses, doutrora, crentes, e com a
alma dos sacrifícios últimos, que aí se pintam e glorificam, manda-nos o brio
nacionalista que os tomemos por modelos preferidos, copiando-os na íntegra, com a
sua mesma religião de Deus e da Pátria”54
.
Com tais afirmações, o “herói de Chaimite” reconhece implicitamente que o
processo de heroicização da geração de militares que pacificou o território africano a
arrasta para fora do seu tempo, colocando-a acima das condições sociais e culturais
da sua época e em contraste mesmo com ela. Paiva Couceiro enaltece-lhe as
“virtudes da Idade Média” com que souberam salvar o império africano das garras
europeias55
.
51
João de Almeida, O Ressurgimento Ultramarino, cit., pp. 5-6. Noutro texto escreve: “É essa
gente a primeira que, depois do século XVIII, traz em si o sentimento e o ideal da grandeza pátria [...],
a grandeza que se vislumbra na própria definição dos objectivos nacionais e nos dá o prazer, o orgulho
e a honra de servir”, [A Ocupação Portuguesa em África na Época Contemporânea, cit.,, p. 24]. 52
Cfr. Fernando Catroga, “Ritualizações da História”, in História da História em Portugal
séculos XIX-XX, vol. 2, Lisboa, Temas e Debates, p. 222. 53
Cfr. Aires de Ornelas, ob. cit., pp. 19-27. 54
Henrique Paiva Couceiro, O Soldado Prático, cit., p. 421. 55
Cfr. Ibidem, p. 353.
14
Já João de Almeida viu o seu prestígio de militar e colonialista ser integrado na
hagiografia memorialista de algumas facções militares da ditadura militar e do
Estado Novo. Para Henrique Galvão, este “era bem o representante duma raça em
que a ânsia de expansão constitui um dos traços mais originais”56
. Num discurso de
homenagem que lhe foi feito em 1930, onde se fizeram representar a oficialidade e o
poder político, a exemplaridade heróica dos seus actos, sintetizada no epíteto
“construtor de império”, e das suas qualidade personalísticas, era louvada num
discurso laudatório vibrante de adjectivação: “Realmente, há na obra e na vida de V.
Exa todas aquelas virtudes raras do soldado, do patriota, do chefe, do administrador,
do intelectual, que fizeram a glória de tantos portugueses ilustres, e que fazendo da
figura de V. Exa a mais poderosa síntese das altas qualidades da Raça, que a História
dos últimos ano tem dado”57
.
Idolatrado como ser de excepção, em confronto e acima do seu meio social, o
“herói dos Dembos” era apresentado, mesmo no seio dos republicanos do Estado
Novo, como um símbolo vivo da história de Portugal, “o maior colonialista
português dos últimos tempos”58
, superior em grandeza ao próprio Mouzinho de
Albuquerque59
. De João de Azevedo Coutinho, antigo governador de Moçambique,
reintegrado na Armada em 1942, diria Marcelo Caetano, então ministro das colónias,
apresentando-o como “Exemplo para a Mocidade”: “João Coutinho não temeu:
encarou os perigos de frente, fez a sua escolha e sem olhar a mais nada – avançou.
Vida, honras, comodidades – não tiveram para ele significado quando se tratava de
servir como soldado. Preferiu tudo à infâmia: e assim encontrou a glória!”60
.
Assim se compreende que os africanistas vivos, apesar do seu monarquismo –
Azevedo Coutinho era então o lugar-tenente de D. Duarte - tenham contribuído com
o seu prestígio para o reconhecimento das ínsitas qualidades da “raça” lusitana e
comprovado a vocação colonialista do povo português, em particular das forças
56
Ob. Cit., pp. 34-35. 57
Coronel João de Almeida. Sessão de Homenagem realizada na Sociedade de Geografia em
Fevereiro de 1930, Lisboa, Publicação de Iniciativa de um Grupo de Companheiros Coloniais e
Amigos, 1930, p. VIII. 58
Cfr. Gomes Filipe, João de Almeida. Sua Acção Colonial, Angra do Heroísmo, Tipografia
Insular, 1937, p. 8. 59
Cfr. O Coronel João de Almeida. Sua acção militar e administrativa em Angola (1906-1911),
Publicação de iniciativa dum grupo de companheiros e amigos coloniais, Lisboa, 1927, pp. III-X. 60
Citado por António M. Martinó, João de Azevedo Coutinho. Marinheiro e Soldado de
Portugal, Lisboa, Edições Colibri, 2002, p. 277.
15
armadas. O reconhecimento público dos seus feitos devia constituir um exemplo para
as gerações mais novas da força do ideal patriótico, da abnegação individual e das
virtudes guerreiras necessárias à construção do “Portugal Maior”, devendo contribuir
igualmente para o reforço dos laços colectivos e da definição de um ideal nacional
com vista ao ressurgimento de Portugal e da sua grandeza.
2. Imperialismo e Nacionalismo
O sentimento de grandeza haveria de fecundar na consciência nacional dos países
industrializados do século XIX, por isso o engrandecimento era concebido como lei
natural dos povos, servindo-se de um nacionalismo imperialista que
instrumentalizava a ideologia como vontade de poder61
. A unidade nacional foi, por
isso, a semente a partir da qual se definiram as bases do expansionismo imperialista
do século XIX.
Em Portugal a questão colonial equacionava-se numa perspectiva distinta.
Expansionista desde o século XV, o país viu-se forçado a defender em conferências
internacionais os seus direitos históricos de que as nações mais poderosas o
pretendiam esbulhar. A humilhação inglesa de 1890 emprestaria ao sonho imperial
um cunho nacionalista que o acompanharia até ao século XX. Os monárquicos
africanistas cresceram por isso num ambiente político marcado pela ameaça externa
ao património colonial e por um nacionalismo cultural eivado de sonhos de uma
grandeza que rompesse com a imagem de decadência cultivada entre as elites. Não
por acaso, o ressurgimento dos mitos sebástico e messiânico, cultivados pelas elites
culturais e políticas do fim do século, envolvia uma atmosfera social desejosa de uma
nova era de engrandecimento para Portugal. No plano político-ideológico, largos
sectores da sociedade ansiavam por reformar o liberalismo monárquico e construir
uma “vida Nova”; semelhante aspiração regeneradora evidenciavam os “vencidos da
vida”, para o que contavam com o reforço do poder do monarca. Este impulso
reformista, iniciado com Oliveira Martins e o movimento da “vida nova”, irromperá
com redobrado ímpeto com o advento do intervencionismo militarista protagonizado
61
Cfr. Raymond Aron, Dimensiones de la Consciencia Historica, Madrid, Editorial Tecnos,
1962, p. 124.
16
pelos heróis africanos Mouzinho de Albuquerque e Aires de Ornelas, empenhados
em “endireitar” a nação por via de um musculado governo militar62
.
João de Almeida, Paiva Couceiro e Aires de Ornelas integravam esta corrente
nacionalista do exército ligada aos projectos africanistas. Obra quase exclusiva de
militares, a sua acção colonial via-se confrontada com a tibieza da política partidária
no que concerne ao património ultramarino, fazendo aumentar a animosidade de
largos sectores castrenses para com o Terreiro do Paço e a política liberal.
Exceptuando Ornelas, que todavia integrará o governo ditatorial de inspiração
reformista de João Franco, tanto Almeida como Couceiro viriam a causar enorme
esfacelo no doutrinarismo liberal. Ambos afirmaram que as ideias liberais
constituíam “ideias estrangeiras”, “mitos depressores e desorganizadores” que
minaram a unidade nacional e com isso provocaram a ruptura da sua actividade
colonial, pelo abandono das “realidades nacionais” em detrimento das facções
democráticas e do “politiquismo sem escrúpulos”63
. As diatribes lançadas ao
liberalismo expunham a convicção de que só por via nacionalista se poderia
assegurar a reconstrução da unidade nacional, indispensável para a concretização do
tão desejado “Portugal Maior”64
.
A exaltação nacionalista, acompanhada de viçoso sentimento patriótico, surge
como um dos traços mais consistentes revelados pelas fontes biográficas no que
concerne à personalidade e à psicologia individual de muitos dos oficiais
africanistas65
. Sonhadores de impérios e da grandeza de Portugal, a sua acção política
desde cedo revelou uma veemente acrimónia contra a política liberal, branda talvez
durante a monarquia e já estrepitosa depois em plena república, na sua fase de
predisposição revolucionária. Paiva Couceiro, muito crítico da governação
monárquica66
, defenderá em 1910 uma “ditadura plebiscitária”67
para reformar a
62
Sobre as intenções de Mouzinho veja-se o testemunho de Aires de Ornelas em Costa Gomes,
Memórias, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1930, pp. XVII-XVIII. 63
Cfr. João de Almeida, O Estado Novo, Lisboa, 1932, pp. IX-XI. Veja-se igualmente Paiva
Couceiro, O Soldado Prático, cit., pp. 341-353. 64
Cfr. João de Almeida, Visão do Crente, cit., p. 218. 65
Veja-se, entre outros, Eduardo Lupi, Aires de Ornelas, Lisboa, Agência Geral das Colónias,
1936; Francisco Manso Preto Cruz, Paiva Couceiro - Biografia Política e In Memoriam, Lisboa,
1946; Henrique Galvão, História do Nosso Tempo (Acção e Obra de João de Almeida 1904-1910),
Lisboa, 1931. 66
Já depois do 5 de Outubro perguntava a Luís de Magalhães: “Mas que havia a esperar depois
do trabalho sistemático de corrupção e de rebaixamento que os governos da monarquia se não
17
Carta Constitucional e impor ao país uma “constituição autoritária e organicista”68
.
Defensor exaltado do regime monárquico em 5 de Outubro, mais por dever de
disciplina do que por amor a D. Manuel, chegará a propor ao governo provisório
republicano um plebiscito sobre a forma de regime. Já em Espanha, a primeira
incursão monárquica surgirá nas matas de Vinhais acompanhada de uma bandeira
neutra, levada pelas negaças de um levantamento nacional e da concretização do
ansiado plebiscito69
. A sua intransigente defesa da monarquia explica-se mais por ver
na realeza a via tradicionalista de reatar os “destinos históricos da nação” e menos
por simpatia para com as dinastias reinantes70
.
João de Almeida, entre 1906 e 1911, fez a sua comissão em África, lutando pelo
alargamento das fronteiras no Sul de Angola, o seu “Infante Sagres”71
, onde se
debatia com os obstáculos políticos criados pelo Terreiro do Paço ou pelo Quartel-
general, em Luanda, que lhe recusavam todos os meios necessários para levar a cabo
com sucesso a sua obra de ocupação. A África constituía para Almeida, como para a
geração militar africanista da época, o palco de afirmação do seu ideal patriótico72
.
Veio a república e este oficial do exército pediria a demissão do seu cargo por força
dos laços de amizade que o ligavam à família real. A insistentes pedidos de colonos e
funcionários de Angola, que enviarão um telegrama para o governo provisório da
república, aceita continuar no seu posto. Deixará a colónia no início de 1911 para ser
substituído pelo republicano Moura Braz, num processo de substituição política
marcado por indisfarçável clientelismo73
. Tal como Paiva Couceiro e Aires de
Ornelas, partiria para um longo exílio.
cansavam de prosseguir?” [Biblioteca Nacional – Arquivo da Cultura Portuguesa Contemporânea,
Espólio de Luís de Magalhães, E2, cx. 3, doc. 705]. 67
Cfr. Correio da Manhã, ano I, n.º 163, 21/09/1910, p. 2. 68
Cfr. Vasco Pulido Valente, “Henrique Paiva Couceiro – um colonialista e um conservador”, in
Análise Social, vol. XXXVI (160), 2001, pp. 801-802. 69
Cfr. Carlos Malheiro Dias, O Estado Actual da Causa Monárquica, Lisboa, 1912, pp. 105 e ss. 70
Cfr. Henrique de Paiva Couceiro, A Democracia Nacional, cit., p. 92. 71
Cfr. Albino Fernandes de Sá, João de Almeida Governador da Huíla, cit., p. 156. 72
“João de Almeida foi um apaixonado. Foi a paixão a mola impulsionadora da sua acção. Amou
apaixonadamente, íamos a dizer raivosamente, a sua Pátria. Deu-lhe tudo. Estava como que incrustado
no solo de Portugal. [...] Por amor da Pátria era capaz de todas as loucuras, de todos os sacrifícios, de
todas as privações”, [Albino Fernandes de Sá, ob. cit., pp. 11-12]. 73
Cfr. Henrique Galvão, ob. cit., pp. 358-363.
18
2.1. O Imperialismo no contexto da I Guerra Mundial
Tendo despontado na conjuntura que precedeu o ultimato inglês, o interesse das
grandes potências no património colonial português continuou a ser uma realidade
nas décadas posteriores. É de todos conhecido o acordo anglo-germânico de 1898
que visava a partilha das colónias nacionais e que foi entretanto ressuscitado em
1912-191374
. Nesta época, a Alemanha viria a desrespeitar as fronteiras portuguesas
do Sul de Angola, região que se integrava na zona geoestratégica onde funcionavam
os seus apetites coloniais, e onde conduziu uma política de sublevação das
populações nativas contra a soberania de Portugal. Já depois de iniciado o conflito,
procurará evitar a entrada de Portugal na Guerra75
.
A entrada do país no conflito mundial aconteceu, entre outras razões, para
salvaguardar o património colonial dos interesses e apetites estrangeiros e sentar
Portugal na mesa das negociações em futura conferência de paz, que não deixaria de
discutir a situação das colónias76
. Apesar da divisão do país entre intervencionistas e
não intervencionistas, a salvaguarda do património colonial português constituía uma
bandeira consensual entre os diferentes agrupamentos político-sociais. A imagem de
“Nação Imperial” transformava-se, em tempo de guerra, num dos mais importantes
conteúdos políticos do nacionalismo luso77
. A outra imagem que ganhou contornos
mais evidentes entre a direita monárquica, com especial relevo para João de
Almeida78
e os intelectuais do integralismo79
, foi o chamado “perigo espanhol”,
definido pela ameaça à independência de Portugal levada a cabo pela Espanha de
Afonso XIII.
74
Cfr. Nuno Severiano Teixeira, O Poder e a Guerra 1914-1918. Objectivos Nacionais e
Estratégias Políticas na Entrada de Portugal na Grande Guerra Lisboa, Editorial Estampa, 1996, pp.
112-136. 75
Cfr. Nuno Severiano Teixeira, “Colónias e Colonização na Cena Internacional (1885 – 1930) ”,
in Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri, História da Expansão Portuguesa, vol. 4, s/l., Círculo de
Leitores, 1998, pp. 504-514. 76
Sobre as razões que conduziram Portugal à I Guerra Mundial veja-se Nuno Severiano Teixeira,
O Poder e a Guerra 1914-1918., Lisboa, Editorial Estampa, 1996. 77
Cfr. Ernesto Castro Leal, Nação e Nacionalismos. A Cruzada D. Nuno Álvares Pereira e as
Origens do Estado Novo (1918-1938), Lisboa, Edições Cosmos, 1999, p. 46. 78
Cfr. João de Almeida, Visão do Crente, 2ª ed., Porto, 1937 [1.ª edição de 1917]. 79
Cfr. A Questão Ibérica, Lisboa, 1916.
19
A grei monárquica, por sua vez, encontrava-se dividida entre anglófilos e
germanófilos, uns poucos por convicção filosófica, como Alfredo Pimenta80
, a
maioria por mero oportunismo político, vislumbrando na vitória alemã a
possibilidade de ver restaurado o trono em Portugal. Uma posição que chocava
frontalmente com as instruções de D. Manuel para que se auxiliasse o governo
durante o conflito81
. Para consubstanciar esta política patriótica, o rei exilado
escolherá Aires de Ornelas para assumir a direcção política da Causa Monárquica,
em substituição do irrequieto Azevedo Coutinho82
.
O antigo chefe de estado-maior de Mouzinho defenderá a intervenção de Portugal
ao lado da sua aliada visando não só a integridade imperial como acautelando a
existência da nação: “O heroísmo dos nossos soldados nos combates formidáveis da
Flandres veio garantir a permanência da nossa pátria entre as nações em luta pela
própria existência com a integridade daquele império colonial, criação, soberba, da
raça. É obrigação de todos fazer um todo compacto em torno desta afirmação”83
.
O império constituía uma “herança sagrada” em nome do qual se justificava o
sacrifício da participação portuguesa na guerra. Em conferência pronunciada na Liga
Naval Portuguesa, em 26 de Novembro de 1917, Aires de Ornelas legitima a
presença nacional no conflito afirmando a “grandeza imperial portuguesa”, pelo que
constituía uma justa obrigação nacional unir esforços para defender um património
ultramarino que, afinal, constituía parte integrante do território português: “E até hoje
[…] o sentimento e a opinião nacional tem considerado o domínio português além-
mar como integrado no próprio corpo da nação”84
.
A defesa da “coesão nacional” parte de uma concepção nacionalista do império
que se vislumbrava com mais arrojo nos textos de João de Almeida. Exilado em
Marrocos após a revolução democrática de 14 de Maio, o brio militar e o apego à
80
Cfr. Alfredo Pimenta, A Significação Filosófica da Guerra Europeia. O Imperialismo
Contemporâneo, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1915, p. 15. 81
Cfr. Alfredo Pimenta, Cartas Políticas de Sua Majestade El-Rei o senhor D. Manuel, Lisboa,
Portugália, 1922. 82
Cfr. Miguel António Dias Santos, “Os monárquicos e o sidonismo”, in História, n.º 32, Lisboa,
Janeiro de 2001, pp. 13-14. 83
Aires de Ornelas, O Ultramar Português. O que foi e o que é perante o conflito actual, cit., p.
117. 84
Aires de Ornelas, O Império Colonial Português perante a Guerra Actual, Lisboa, Tipografia
do Anuário Comercial, 1917, p. 10. Posição semelhante perfilhava Paiva Couceiro: “Menos se trata
agora para nós de «forças de expansão» do que «forças de coesão» e de levantamento de espíritos”
(ob. cit., p. 238).
20
pátria desesperavam-no pela impossibilidade de contribuir para o esforço de guerra.
Chegou a apresentar-se no consulado português de Casablanca sem nunca almejar a
tão ansiada mobilização. Face à impossibilidade de pelejar em campo de batalha, o
soldado empunhará a pena para um combate ideológico, concentrando energias num
projecto de doutrinação imperialista de que resultaria o livro Visão do Crente. Escrito
em 1915 e publicado em 1917, seria considerado por Henrique Galvão como um dos
mais importantes evangelhos da ideologia imperialista-nacionalista, insinuando-o
como “o primeiro catecismo do nacionalismo português”85
. Uma opinião que seria
partilhada pelo professor coimbrão Bento Caldas, que em discurso proferido na
referida homenagem a João de Almeida, de 1930, veria no livro “uma maravilhosa
cartilha do nacionalismo” empregue na “notabilíssima cruzada a que Afonso Lopes
Vieira justamente chama o reaportuguesamento de Portugal”86
.
A afirmação da pureza ideológica do nacionalismo de Almeida não poderia
esquecer, porém, que em Visão do Crente o autor, fiel ao seu monarquismo,
afirmaria que “a monarquia era a instituição indissociavelmente ligada à
nacionalidade que lhe deu origem, feita à sua imagem e semelhança, que com ela tem
evolucionado, e da qual se não pode separar sem a fazer perecer”87
. Mas exceptuando
esta frase, o livro vive de uma áspera e encarniçada crítica aos pressupostos
ideológicos do liberalismo, geradores de antagonismos e sectarismos, e pela
sublimação inequívoca da ideia imperial, colocando o “nacionalismo” numa
categoria histórica concebida como realidade orgânica, única capaz de gerar o
engrandecimento de Portugal:
“E, para evitar a repetição destas perturbações colectivas, para que o espírito nacional não se
torne a transviar na violência das paixões políticas, tão nefastas e impróprias do nosso temperamento
impressionista e irreflectido, façam-se reviver os perdidos objectivos nacionais, reatem-se os fins
históricos da nossa tradição, o nacionalismo, onde se prendam as atenções e os interesses de todos, e
na satisfação sucessiva deles todos vejam a sua grandeza e bem-estar futuro, como integrante da
felicidade, do prestígio e da grandeza colectiva, do Portugal Maior”88
.
Para João de Almeida, a guerra constituía uma oportunidade para Portugal firmar
as suas pretensões imperialistas, entendendo o imperialismo como uma “força
85
Ob. Cit., pp. 365-366. 86
Coronel João de Almeida. Sessão de Homenagem realizada na Sociedade de Geografia em
Fevereiro de 1930, cit., p. 76. 87
Visão do Crente, cit., pp. 214-215. 88
Ibidem, p. 218.
21
criadora” que poderia reatar a tradição quebrada, isto é, a vocação expansionista e
civilizadora do país89
. Zurzindo mais uma vez o liberalismo como responsável pela
decadência imperial de Portugal, o antigo governador da Huíla considerava que este
quebrara a unidade nacional e fizera os portugueses perder a fé nas suas capacidades
e desviar-se dos caminhos que “engrandecem”90
. Este sentimento de “crise e
abatimento” encontrava na guerra, enquanto palco de afirmação de valores e
exaltação patriótica, um claro prelúdio regenerador pela afirmação das excelsas
“virtudes da raça", pois “é na guerra que o sentimento de honra, o sacrifício no que
pode ter de mais elevado e sublime, o desinteresse, a abnegação e os seus
sentimentos de colectividade, o patriotismo, tudo quanto há de mais digno e nobre
para a humanidade, se exerce ao mais alto grau”91
.
O coronel Almeida interpretava o belicismo coetâneo como uma fatal
consequência do imperialismo moderno, gerado na competição pela hegemonia
geopolítica entre as principais potências mundiais e que resultava da crença dos
povos na sua superioridade e na existência de uma missão civilizadora. Assim, para
países pequenos, como Portugal, a perspectiva de independência ou de
“engrandecimento” exigia uma clara política de “imperialismo”, o mesmo que é
dizer, belicista. Com efeito, João de Almeida aplicava ao imperialismo as teses do
darwinismo social, considerando que este se assumia como a “manifestação do mais
forte” enquanto a guerra não seria mais do que um jogo de forças implacáveis em
luta pela sobrevivência92
.
Portugal estava assim obrigado a envolver-se no conflito europeu, ao abrigo da
aliança com a Inglaterra, se aspirava a garantir a concretização de um duplo
objectivo: a independência nacional, ameaçada pelo nosso vizinho espanhol, e a
afirmação do sonho imperialista, “no cumprimento da missão histórica da nossa
raça”. Para os portugueses, a entrada na guerra significava “manter a sua integridade
territorial, a sua situação de país livre e altivo entre as demais nações, como tem mais
ainda o dever indeclinável de, pela sua acção, procurar realizar a parte ainda
89
“Portugal tem também os seus objectivos a tingir, tem também o seu imperialismo. Importa que
saiba aproveitar as conjunturas, e, numa conveniente preparação e orientação, instituir essa força
criadora, pela congregação das energias e dos esforços consentidos, proporcional aos fins e em
harmonia com os recursos da nação (Ibidem, p. 116). 90
Ibidem, p. 117. 91
Ibidem, p. 105. 92
Ibidem, pp. 115-116.
22
exequível do seu velho sonho de engrandecimento territorial, do rejuvenescimento da
sua raça, do poderio e grandeza de outrora, do verdadeiro Portugal Maior”93
.
Mas em que condições se realizaria essa intervenção? Indo ao encontro de uma
parte considerável da opinião pública da época, em particular de muitos realistas94
, o
ideólogo afirmava que o país devia concentrar o seu esforço bélico em África porque
aí se afirmavam claramente os interesses coloniais do país. Importava não só
proceder à defesa das colónias, face à ameaça alemã, mas igualmente intentar a
expansão das fronteiras, recuperando territórios de que Portugal tivesse sido
despojado.
Para além dos objectivos, a natureza dos conflitos coloniais aconselhava esta
solução como a mais adequada ao exército português. O autor da Visão do Crente
conhecia bem as limitações das forças militares, asseverando a sua falta de
preparação para uma guerra moderna determinada pelos fracos recursos bélicos e
financeiros. Mas tais limitações não significavam qualquer inferioridade militar.
Acontecia que “a índole das tropas nacionais estaria mais em harmonia com as
campanhas coloniais”, numa guerra que se revelava, afinal, “mais penosa” pelos
rigores da natureza95
.
Ao orientar a sua política belicista para o continente africano, Portugal não se
limitaria à defesa da sua soberania colonial. João de Almeida via no conflito a
possibilidade de engrandecimento de Portugal através de uma política
inequivocamente expansionista. Mas em vez de uma expansão que resultasse de uma
política de conquista, impossível para um país periférico e de fracos recursos como
Portugal, o “herói dos Dembos” pensava numa forte política diplomática que
permitisse ao país estabelecer exigências nas conferências do pós-guerra, não
esquecendo talvez que o destino colonial de muitas regiões do globo havia sido
definido em conferências internacionais. Fora o caso mais recente da ocupação do
norte de África, partilhado pela França, Espanha e Itália no âmbito da conferência de
Algecira de 1906. Já em 1904 um tratado bilateral entre a Inglaterra e a França abria
93
Ibidem, p. 110. 94
Cfr. “Portugal na Guerra”, in O Dia, 12 de Dezembro de 1917, p. 1. 95
Cfr. ob. cit., pp. 126-129.
23
a esta última as portas de Marrocos, que manteria um conflito aberto com a Espanha
pela posse do território até à década de vinte96
.
Marrocos ocupou um papel central no pensamento imperialista de João de
Almeida. Ceuta dera início à actividade expansionista dos portugueses, tendo sido
inclusive objecto de rememoração solene em 1915, e ressurgia na pena do ideólogo
imperialista através de uma nova “visão” de engrandecimento. Com efeito, Almeida,
então a residir em Marrocos, afirmava os direitos históricos de Portugal sobre a
região, caldeando argumentos étnicos, como a mesma filiação racial dos antigos
invasores da Península Ibérica e do Norte de África, com outros igualmente espúrios
e inofensivos, como sejam os vestígios da presença portuguesa no protectorado:
“Se Marrocos não pode viver nem civilizar-se só por si, se a sua nacionalidade precisa de
protecção de outras nações para a governarem e administrarem, entregue-se essa missão a quem mais
direitos possuía, pela raça, pela semelhança do meio, pela prioridade de acção e mais competência
tenha mostrado pelas obras passadas e garantias no futuro. Esse direito compete a Portugal”97
.
Tal pretensão dirimia-se no âmbito dos interesses geoestratégicos gizados em
torno da soberania do Estreito de Gibraltar, considerando o autor que o acordo entre
a Espanha, Inglaterra e Portugal garantiria a “neutralidade do estreito”. Definida a
zona como “protectorado”, iniciar-se-ia o processo de colonização efectiva, segundo
o modelo histórico e orgânico de nacionalização dos novos territórios: pela
emigração de portugueses, que em dezenas de anos “seria mais do que suficiente
para transformar os territórios da sua zona numa perfeita continuidade do Portugal
europeu”98
.
A ocupação de Marrocos por Portugal inscrevia-se assim no quadro da
tradicional aliança com a Inglaterra, que este supunha a principal interessada no
“engrandecimento de Portugal”, reforçando por esta via a sua posição no Atlântico.
Mas significa que o ex-governador de Huíla não admitia a intervenção no conflito
armado, em nome da mesma aliança, com todos os “perigos e sacrifícios da guerra”
96
Cfr. Témime, É., Broder, A., Chastagnaret, G., Historia de la España contemporánea. Desde
1808 hasta nuestros días, Barcelona, Editorial Ariel, 1985, p. 178; [João de Almeida], Marrocos
Terra Irredenta de Portugal, Memorial apresentado ao Governo Português por um grupo de nacionais
residentes em Marrocos, 1917, pp. 27-33. 97
Ibidem, pp. 98-99. 98
João de Almeida, Visão do Crente, cit., p. 145.
24
sem que Portugal viesse a colher benefícios políticos, em termos de uma clara
expansão territorial99
.
É também sob a égide da aliança anglo-portuguesa que Aires de Ornelas, chefe
político do partido monárquico, postula a participação portuguesa no conflito
mundial.
Para o lugar-tenente de D. Manuel II a “ideia imperial tem sido a inspiradora da
imaginação humana nos seus ideais de grandeza” desde a antiguidade. Mas Portugal
teria contribuído para a evolução do conceito de imperialismo, pois as descobertas
“ampliaram o horizonte do espírito humano”100
. Idade de heróis, a renascença
portuguesa alargou o conceito de império a toda a humanidade: “Assim temos a
génese da formidável concepção imperialista que surgiu no cérebro poderoso dum
dos homens típicos dessa Renascença, o Príncipe Perfeito: a união das duas coroas
peninsulares numa só cabeça, e vergados a esse poder, as duas Índias, ocidentais e
orientais, a Ásia e a América, o mundo velho e o mundo novo. A visão é na realidade
colossal” 101
.
A concepção imperialista do século XIX, associada ao desenvolvimento
capitalista, implicava uma luta e uma concorrência por novos mercados e pela
influência económica no mundo. Ornelas considerava que a nova roupagem
imperialista, motivada por razões económicas e comerciais, não apontava para a
conquista e ocupação de novos territórios, como pretendiam os seus companheiros
João de Almeida e Paiva Couceiro, que viam no imperialismo colonial a política de
construção de países iguais à metrópole. Pelo contrário, o expansionismo moderno
aspirava a anexar vastos territórios, com soberania decidida em Congressos, com
vista ao seu desenvolvimento comercial e industrial. No plano político e ideológico,
esta concepção, que Ornelas associava à política colonial da Inglaterra102
, vinculava a
ideia da criação de novas sociedades unidas à “pátria-mãe” pelos mesmos interesses
e pela solidariedade da raça:
99
Ibidem. 100
Aires de Ornelas, O Ultramar Português. O que foi e o que é perante o conflito actual, cit.,, p.
20. Veja-se ainda Aires de Ornelas, O Império Colonial Português perante a Guerra Actual, cit., p.
14. 101
Aires de Ornelas, O Ultramar Português, cit., p. 20. 102
Cfr. Heinz Gollwitzer, ob. cit., p. 54.
25
“Tal é a concepção da ideia imperialista ao findar o século XIX; dela se deduz todo o sistema
colonial moderno: o aumento constante da força viva da mãe pátria, pela associação de sociedades
novas, as colónias de antigas eras, ligadas pela troca de interesses, apertadas pelo laço misterioso, mas
tão forte, da unidade da raça”103
.
A grande questão nacional era, pois, a de saber como podia Portugal adaptar-se a
esta nova concepção imperial, considerando a sua situação periférica e o seu atraso
industrial. Para Ornelas, o país teria de modificar o seu modelo tradicional de
colonização ou seria incapaz de resistir à concorrência mundial104
. A sua visão das
relações entre Estados e do funcionamento do sistema político internacional, talvez
mais realista, levava-o a defender o fortalecimento de Portugal com base no reforço
da velha aliança com a Inglaterra, com vista à manutenção do império colonial e à
construção do sonho de D. Carlos: o “atlântico português”. Consciente das
debilidades materiais do país e da importância estratégica do Atlântico na rivalidade
entre a Inglaterra e a Alemanha105
, o chefe monárquico propugna a “união das
potências atlânticas” contra o expansionismo alemão. A Portugal, pelo seu domínio
de pontos-chave no atlântico insular e na costa ocidental africana, ficava reservado
um papel nevrálgico na nova ordem geopolítica, que incluiria o Brasil, nação ligada a
Portugal pelos laços da raça106
.
A consecução de tais objectivos justificava assim plenamente a entrada de
Portugal na guerra, vista igualmente como única via de sobrevivência do país e da
integridade do seu império colonial107
.
Em suma, a teorização imperialista desenvolvida pelos monárquicos neste
período reforça claramente o seu elemento nacionalista entendido numa dupla
perspectiva: a afirmação de uma concepção grandiosa do papel da nação e o reforço
dos valores patrióticos que esta encarna. No primeiro caso trata-se de uma vontade
de poder que se “dilata numa vontade de expansão”; no outro, do patriotismo sem o
103
Aires de Ornelas, ob. cit., pp. 91-92. 104
Ibidem. 105
Cfr. Nuno Severiano Teixeira, ob. cit., p. 80. 106
Aires de Ornelas, O Ultramar Português. O que foi e o que é perante o conflito actual, cit., pp.
116-117. Também João de Almeida defende uma “associação entre o Brasil e Portugal, considerados
os laços étnicos que unem os dois países, para a “formação de um grande Império Lusitano”, símbolo
de unidade da mesma raça. Cfr. João de Almeida, Visão do Crente, cit., pp. 189-193. 107
Ibidem.
26
qual o Estado permaneceria enfraquecido108
. Vejamos como no Estado Novo se
articulam estas facetas da teoria imperial proposta pelos monárquicos africanistas.
2.2. O Imperialismo da Ditadura Militar ao Estado Novo
A doutrinação da ideia imperial como conteúdo político-ideológico irromperá
com redobrada e vibrante alacridade no início da década de trinta, consumada pela
inevitável articulação das dinâmicas da política interna, os jogos de poder no seio da
ditadura militar, com as dinâmicas da política externa, marcadas pelo renovado
interesse das grandes potências estrangeiras pelas possessões ultramarinas
portuguesas. Circunstância não menos agravada com a divulgação, em 1925, do
relatório do sociólogo americano Edward Ross, que acusava Portugal de práticas
coloniais próximas da escravatura. Por outro lado, a conjuntura externa revela-se
favorável à afirmação do sonho imperial, pois potências europeias como a Inglaterra
e a França exaltavam a sua situação colonial, celebrando o nascimento da
Comonwealth e “da maior França” dos seus “110 milhões de Habitantes”109
.
A recuperação da ideia de Portugal como “nação imperial” resultou do empenho
nacionalista do monárquico João Belo, também ele africanista, que sobraçou a pasta
das colónias entre 1926 e 1928. A sua acção colonial ficaria marcada por uma
política centralizadora intentada com vista a minorar os efeitos do fracasso da
política de fomento levada a cabo pelos altos comissário Norton de Matos e Brito
Camacho. João Belo faria entrar para o direito nacional a expressão “Império
Colonial Português”, através do decreto n.º 12 421, de 2 de Outubro de 1926, que
estabelecia as “Bases Orgânicas da Administração Colonial”. Esta institucionalização
do “Império” seria depois consagrada por Salazar no Acto Colonial, que estabelecia
no seu artigo 3º que “os domínios ultramarinos de Portugal denominam-se Colónias e
constituem o Império Colonial Português”, concepção que seria depois incluída na
constituição de 1933.
108
Cfr. Raymond Aron, ob. cit., p. 124. 109
Cfr. Yves Leonard, “O Império Colonial Salazarista”, in Francisco Bethencourt, Kirti
Chaudhuri, História da Expansão Portuguesa, vol. 5, s/l., Círculo de Leitores, 1999, p. 21.
27
Com a institucionalização da ideia imperial, Oliveira Salazar reforçava a sua
estratégia de poder ao conferir centralidade à questão colonial, tradicionalmente
consensual, afirmando-a vital para o interesse nacional. Em conformidade, levará a
cabo uma intensa e dinâmica campanha ideológica com vista a desenvolver em torno
do império uma forte consciência nacional, que conduzirá a uma acrisolada “mística
imperial”, carregada de retórica e protagonizada, entre outros, por Armindo
Monteiro.
A ideia imperial acabaria por se transformar numa plataforma coalizadora de
diferentes sensibilidades político-ideológicas que integrarão o regime salazarista,
entre as quais se contavam muitos adeptos do trono. Apesar da resolução da questão
dinástica, pela assinatura do Pacto de Paris em 1922, as tradicionais querelas
doutrinárias e as deficiências organizativas levaram muitos realistas a arrefecer o seu
sentimento monárquico e a empenhar-se na vivificação da ideia nacionalista.
Militares e civis dos diferentes sectores das direitas monárquica, católica e
republicana virão a “acasalar” em movimentos como a Cruzada Nacional D. Nuno
Álvares Pereira110
e o “Movimento de Defesa das Colónias ”, onde o nacionalismo se
cruza com a ideia de sacralização do império, entendidos como garantia exclusiva da
sobrevivência de Portugal como nação independente111
. Um dos monárquicos mais
activos na consolidação de um vincado “nacionalismo português” foi João de
Almeida, a braços com a organização de uma estrutura nacionalista que ilaqueasse
monárquicos e republicanos112
.
A ditadura de 28 de Maio será assim o resultado de um crescente espírito
revolucionário, formulado em torno de conteúdos nacionalistas e associado à própria
crise colonial, que envolverá os militares de vários matizes políticos. João de
Almeida surgirá conotado com o projecto revolucionário e de “nacionalização da
república” protagonizado por Gomes da Costa, sendo nomeado para ministro das
colónias na remodelação de 7 de Junho, na companhia de Martinho Nobre de Melo
110
Cfr. Ernesto Castro Leal, ob. cit., pp. 167 e ss. 111
Cfr. Valentim Alexandre, ob. cit., p. 187. 112
“Com um grupo de amigos estamos tratando da organização do “Nacionalismo Português”,
[...] sob a qual pretendemos ligar e agremiar todos os portugueses de boa vontade e dispostos a reagir
contra as quadrilhas que nos escravizam.” [carta de João de Almeida a Luís de Magalhães, in
Biblioteca Nacional – Arquivo da Cultura Portuguesa Contemporânea, Espólio de Luís de Magalhães,
E2, Cx. 8, doc. 2404].
28
(Estrangeiros)113
. No decorrer desse mesmo mês conceberá o Programa da Ditadura
Nacional que, salvaguardando o carácter republicano do regime, instituía a “Ditadura
Nacional” como “processo de governo de carácter transitório e urgente”. Entre as
diferentes medidas a adoptar, o programa elaborado por Almeida consignava uma
política ultramarina assente na centralização administrativa, na nacionalização das
províncias e no seu desenvolvimento económico em articulação e unidade com a
metrópole114
.
A aproximação política de João de Almeida, acompanhado de outros
monárquicos africanistas, da ditadura militar e depois, ainda que parcialmente, do
Estado Novo115
, deve entender-se no quadro de uma sobrevalorização dos conteúdos
político-ideológicos do nacionalismo em detrimento da questão de regime. João de
Almeida, como aliás o próprio Couceiro, acreditava que a monarquia era o regime
que melhor se coadunava com a sua concepção histórica de Portugal como um todo
orgânico e na posse de uma missão civilizadora. Mas a questão do regime acabaria
subalternizada face à premência dos conteúdos político-ideológicos associados ao
patriotismo e à necessidade de encontrar uma solução nacional:
“Chegámos porém a um momento em que a questão do regime tem de ser relegada a um plano
secundário. As questões sociais que agitam a consciência contemporânea [...], os problemas de ordem
puramente nacional reclamando urgente solução impõem o sacrifício, ao menos temporário, de todas
as ideologias capazes de apartarem os homens de boa vontade [...]. Que fazer pois? pôr a política de
momento acima do dilema e olhar em frente, com boa alma e bom espírito português, os grandes
objectivos nacionais. Não há para nós hoje uma questão de regime. Há uma realidade política com
vinte anos de idade, de essência secundária e de forma que é aproveitável”116
.
O seu contributo institucional para a afirmação de uma política imperialista
passará pela participação activa no “Congresso Colonial Nacional”, que teve lugar
113
Cfr. Manuel Braga da Cruz, “A Revolução Nacional de 1926: da Ditadura Militar à Formação
do Estado Novo”, in Revista de História das Ideias, n.º 7, Coimbra, Faculdade de Letras, 1985, pp.
347-349. 114
Cfr. João de Almeida, Em Prol do Comum, Lisboa, Parceria A. Maria Pereira, 1931, pp. 11-12. 115
Com efeito, tanto Couceiro como Almeida participarão em 1937 em conluios conspirativos
contra Salazar, que acusavam de uma aproximação à Alemanha, descontentes com a política colonial
do regime. Paiva Couceiro seria expulso para a Espanha e João de Almeida, já com a patente de
General, seria preso mas negaria a participação na conjura militar. Cfr. Telmo Faria, Debaixo de
Fogo! Salazar e as Forças Armadas (1935-1941), Lisboa, Edições Cosmos e Instituto de Defesa
Nacional, 2000, pp. 195-199. 116
Cfr. Ibidem, pp. XVI-XVII. Almeida e Azevedo Coutinho, entre outros “grandes nomes” das
Forças Armadas, participaram na cerimónia política em que se celebrou o quarto aniversário da
ditadura representando a oficialidade numa cerimónia que teve lugar na Sala do Risco, ao Arsenal da
Marinha. Cfr. Franco Nogueira, Salazar. Vol. II, Coimbra, Atlântida Editora, p. 68.
29
em Lisboa entre 8 e 15 de Maio de 1930, como apoiará publicamente o “Acto
Colonial” e Oliveira Salazar na sua intenção de dar prioridade à questão colonial117
.
Mas é ao nível da ideação imperialista que o contributo dos monárquicos
africanistas mais se evidencia. Nos textos da época, o fervor imperialista, cultivado
na memória das campanhas africanistas em que participaram, ganha uma nova ênfase
que não pode ser desvalorizada. O nacionalismo imperialista do Estado Novo
correspondeu, afinal, a uma antiga ambição, entre outros, dos monárquicos
africanistas, que agora encontram o ambiente cultural e político favorável à sua
realização concreta. Um dos apaniguados do regime e da sua política imperialista,
Henrique Galvão, foi um dos mais ardentes admiradores de João de Almeida.
Para Paiva Couceiro havia que “pôr em movimento concertado, uma Nação
inteira, como se fôra um homem só. E para isto infundir-lhe consciência nacional de
altos objectivos, e vontade nacional de realizá-los”118
. Apesar de irrealizável, a
crença nas possibilidades de construção de um império moderno jazia inabalável no
espírito dos monárquicos africanistas, que acreditavam que Portugal era ainda uma
nação com uma missão histórica: “O mundo não o sabe – e parece às vezes não o
querer saber - mas Portugal está hoje apetrechado a cumprir a sua missão histórica
nesta etapa do presente, com uma mocidade conquistada para a causa da expansão
além-mar sempre viva na alma portuguesa”119
.
Para concretizar a sua “missão histórica” havia que projectar e irrigar o ambiente
cultural que propiciasse a vivificação da ideia imperial enquanto aspiração colectiva.
Tarefa que exigia uma educação dos espíritos. Segundo Couceiro, “tais são as vias
imperiais. Império nas almas primeiro que tudo”120
. João de Almeida exporá
claramente as intenções nacionalistas do conteúdo ideológico da sua acção
doutrinária: “O que se pretende é criar um espírito de larga concepção nacionalista,
que abarque num sentimento imperial toda a actividade de governação [...]. Devia
ter-se a toda a hora presente o marco definidor da unidade nacional – unidade no
tempo e no espaço – para que nunca se esqueça de novo”121
.
117
Cfr. Ibidem, pp. 107-126. 118
Henrique de Paiva Couceiro, O Soldado Prático, cit., p. 358. 119
João de Almeida, Em Prol do Comum, cit., p. 28. 120
Henrique de Paiva Couceiro, Profissão de Fé, cit., pp. 122-123. 121
João de Almeida, O Estado Novo, Lisboa, Parceria A. Maria Pereira, 1932, p. 362.
30
Mas a concretização do “Portugal-Império” enquanto “objectivo nacional” exigia
muito mais do que esta assunção de uma consciência colectiva empenhada na
demanda imperial enquanto projecto de ressurreição nacional. Exigia uma profunda
reorganização do Estado-nação tendo como pano de fundo a sua “herança histórica”.
Com efeito, apesar de Paiva Couceiro defender a construção de uma “Sociedade
Nova” e João de Almeida pugnar pela edificação de um “Estado Novo”, ambos
exigem fidelidade à natureza e objectivos históricos de Portugal, no fundo, àquilo
que eles chamavam o “espírito da raça”. Para Paiva Couceiro só a recuperação
tradicionalista do “espírito de quinhentos” poderia reacender o instinto imperial que
flamejava no “coração do povo”: “Este era o próprio espírito do Império, que então
construímos, e agora nos cumpre conservar. E, ou nos identificamos com ele, ou
morto o espírito, o Império, como um corpo humano, morrerá também. [...] A
Sociedade Nova, complemento ou origem do Estado Novo, envolve seguramente um
Espírito Novo, uma consciência Nacional, assente em princípios, de acordo com os
fins de melhorar os destinos”122
.
Esta “Sociedade Nova” exigia afinal um espírito velho, gerado no seio de uma
mística antiga, que agora se reactualizava em torno dos ideais de “fé e império”. O
misticismo de Paiva Couceiro revela-se de modo exemplar na sua pretensão de
transformar cada português num “missionário” imbuído da missão de civilizar o solo
africano, vestindo-o com os valores da cavalaria medieval, transformado numa
“aristocracia do trabalho, do valor e da audácia”, numa nobreza do “Dever” e da
“Honra”123
. Este imperialismo místico, fruto de uma fé inabalável nas qualidades
ancestrais da “raça”, e por isso impregnado de um discurso historicista, só admitia
chefes e governadores que no ultramar exibissem os atributos e insígnias de um
Afonso de Albuquerque, o “construtor de impérios” que o comemoracionismo
nacionalista exaltara em 1915 como magno exemplo das qualidades da “raça”124
.
122
Henrique Paiva Couceiro, O Soldado Prático, cit., pp. 420 e 428. 123
Ibidem, p. 120. 124
“Afonso de Albuquerque, e outros grandes artífices do nosso Império da Índia, e os cavaleiros
seus seguidores, quando chegava a hora de construir as fortalezas da ocupação, carregavam eles
mesmos, nos seus próprios ombros, as pedras, e manejavam o cimento como se fossem pedreiros e
serventes. [...] Ardia neles o fogo sagrado – matéria-prima por excelência, com que se fabricam as
coisas grandes. Fogo sagrado nos corações! Ou não teremos Império!” [Henrique de Paiva Couceiro,
Profissão de Fé, cit., p. 123].
31
Este apego aos valores da tradição histórica manchava, afinal, a ideação imperial
dos monárquicos de um sentimento velho e caduco a que correspondia um modelo de
colonização desactualizado, pois que desvalorizava o progresso económico e o
regime de autonomia das colónias em detrimento de um modelo centralizador e
arraigadamente nacionalista125
. Mas aos que atacavam o atavismo dos valores que
propugnava, Couceiro respondia com sua adequação ao século XX, educando as
juventudes pela educação militar e histórica e pelos valores morais sem os quais se
revelaria infrutífera qualquer tentativa de fazer regressar o país à sua “autêntica
personalidade colectiva”126
.
Nos textos de João de Almeida encontramos igualmente a valorização do
“espírito da raça” demonstrado na aventura expansionista e já suficientemente
abordado na análise a que submetemos a sua concepção etnológica. Mas ao contrário
de Couceiro, o autor da Visão do Crente revela um excessivo apego ao estatismo
como meio para a concretização do projecto imperial. Na sua obra, já citada, O
Estado Novo, defende uma profunda reorganização nacionalista do Estado que em
muitos aspectos vai ao encontro das ideias perfilhadas por Salazar na sua concepção
de um “Estado Novo”. Defendendo que o Estado devia definir-se como o principal
“promotor do Bem Comum”, o antigo governador da Huíla aspirava a estender a
intervenção estatal a todos os sectores da vida privada, procurando pela sua acção
consistente e persistente construir um “ideal nacional”127
. Um Estado totalitário que,
não por acaso, era concebido dentro da tradicional roupagem doutrinária muito em
voga na época: anti-individualista, antiliberal, autoritário e orgânico128
.
Este Estado Imperial, constituído por províncias – segundo João de Almeida o
termo “colónias” estava “deslocado” da realidade portuguesa129
- pretendia-se uno e
125
Apesar de Couceiro ter produzido um “Projecto de Fomento Geral d’Angola”, [ob. cit.] em
que demonstra evidentes preocupações economicistas, o que afirmamos é que no seu pensamento
teórico formulado na década de trinta os progressos materiais acabam secundarizados face aos
propósitos doutrinários e ideológicos. 126
Henrique de Paiva Couceiro, Profissão de Fé, Lisboa, cit., pp. 156-160; veja-se ainda Augusto
da Costa, Portugal Vasto Império. Um Inquérito Nacional, Lisboa, Imprensa Nacional, 1934, pp. 87 e
ss. 127
Cfr. João de Almeida, Nacionalismo e Estado Novo, Lisboa, 1932, p. 37. 128
Cfr. João de Almeida, O Estado Novo, cit., pp. 33-34. 129
“Numa concepção rigorosa de unidade imperial o termo colónia está deslocado. Portugal não
tem colónias – no sentido em que se toma o termo na legislação internacional – mas sim províncias
ultramarinas, parcelas de si próprio, tão indissociáveis na ordem política, moral e económica perante o
conjunto metropolitano, como as províncias da Europa ou insulares” [João de Almeida, Nacionalismo
e Estado Novo, Lisboa, 1932, p. 46].
32
indivisível, realidade consubstanciada numa concepção de Estado multicontinental e
multirracial, que radicava numa unidade temporal e espacial: “Constituído por
províncias – que vão do...Minho, Trás-os-Montes, Beiras,...Madeira,
Açores...Angola, Moçambique...Timor, - o Império é um só conglomerado em que a
variedade é riqueza, mas não nunca dispersão”130
. À cabeça do Império surgia
Lisboa, que ele imaginava alcandorada à posição de “entreposto económico e
espiritual formidável” envolvendo todas as parcelas do Império131
, todas elas
nacionalizadas por uma política de assimilação assente na tradicional propensão dos
portugueses para a edificação de “um meio português”: “Condiciona-se a ideia de
Metrópole (cabeça mãe) e suas parcelas, unidas todas e todas com os mesmos
objectivos superiores, visando a constituição de um meio português, idêntico na
essência e nas suas aspirações, quaisquer que sejam as circunstâncias de tempo, de
lugar, de clima e de raça”132
.
Assim sendo, cabia à “Ditadura Nacional”, organizadora do “Estado Novo”,
encontrar os instrumentos institucionais que plasmassem esta visão de uma unidade
da raça em todo o império, por via da criação de uma legislação uniformizadora e
homogénea. Tal desiderato exigia a adequação jurídico-constitucional dos meios aos
fins imperiais, congruentes com a necessidade de salvaguardar a unidade do Império,
não estabelecendo qualquer distinção entre portugueses, “civilizados” e “indígenas”.
No fundo, o “herói dos Dembos” defendia uma verdadeira constituição imperial:
“A constituição tem de ser a mesma para toda a Nação, sem fazer qualquer destrinça entre os
portugueses de lá e os de cá seja qual for a província em que nasceram e seja qual for a cor de pele
[...]. A única diferença dá-la-á o grau de civilização e não a cor. Essa destrinça não existe nem existiu
nunca. Fazê-la na constituição seria mostrar aos outros povos uma separação que não existe. [...]
Toda a legislação deve ter como ideia madre [...] a convicção da Unidade do Império Português.
Portugal é um bloco. [...] Todas as províncias do Império são animadas pelo mesmo alento
nacionalista”133
.
Apesar do irrealista e exacerbado nacionalismo que se evidencia na tese do “meio
português” e na sua componente de assimilação, manifestamente desligado da
130
João de Almeida, O Estado Novo, cit., p. 12. Veja-se igualmente Em Prol do Comum, cit., p.
113. 131
Ibidem, p. 22. 132
O Estado Novo, cit., p. 7. 133
João de Almeida, Em Prol do Comum, cit., p. 112.
33
realidade dos territórios africanos sob administração portuguesa134
, esta ideia de uma
soberania a estender-se por vários continentes, povoada de cidadãos nacionais,
transformava os mitos da “herança sagrada” e da “missão histórica” na utopia do
“Portugal-Maior”, que Salazar e alguns dos ideólogos do regime saberão aproveitar
no pós-guerra, quando se virem forçados a enfrentar a ONU e todo o ambiente
internacional favorável à descolonização135
.
Conclusão
Da deriva da ideia imperial ao longo do final do século XIX e de uma boa parte
do século XX algumas conclusões podem retirar-se. Em primeiro lugar que coube ao
exército manter bem aceso o facho do sonho imperial, transmitido pela geração de
africanistas aos jovens quadros de oficiais que ao longo da I República e do Estado
Novo receberam como legado ideológico este imperialismo nacionalista. As
campanhas de ocupação e a mística imperial poderão explicar, em parte, a
capacidade de intervenção no espaço colonial que permitiu às forças armadas
portuguesas sustentar três longas guerras de independência, em Angola, Moçambique
e Guiné-Bissau136
. A política do “orgulhosamente sós” não poderá, talvez, dissociar-
se da pujança revelada pelo mito da “herança histórica”, transformado em mito
identitário gerado na convicção nacionalista do Portugal multicontinental como um
todo orgânico.
O nacionalismo imperialista do Estado Novo pode assim conceber-se como um
ponto de chegada de uma concepção político-ideológica concebida na humilhação
colectiva do ultimato inglês e que manteve o viço pela acção e pelo pensamento dos
134
Tal nunca se viria a aplicar no plano do direito e das realidades sociais do império africano,
acabando a política de assimilação por gerar situações de discriminação social. Cfr. Isabel Castro
Henriques, “A Sociedade Colonial em África. Ideologias, Hierarquias, Quotidianos”, in Francisco
Bethencourt e Kirti Chaudhuri, História da Expansão Portuguesa, vol. 5, s/l., Círculo de Leitores,
1999, pp. 216-274. 135
“Percorram-se as nossas colónias: estão inteiramente ocupadas não só nas posições
estratégico-económicas mas em toda a sua extensão. Pergunte-se ao negro de Moçambique ou de
Angola, ao índio, ao macaísta, ao timorense, homens de todas as raças, de todas as religiões diferentes
na antropologia, na psicologia e na organização social, qual é a sua pátria. Nenhum vos dirá senão o
que vos digo, [...] falando de mim próprio: Somos Portugueses!” [Em Prol do Comum, Lisboa, 1931,
p. 29]. 136
Conclusão semelhante apresentada em artigo recente por Álvaro Fernandes, “Uma guerra de
baixa intensidade e longa duração”, in História, Ano XXV (III série), n.º 51, Dezembro de 2002, p.
49.
34
oficiais do exército. Aos monárquicos africanistas estaria reservado um papel central
na firmação da ideia imperial-nacionalista, pela impetuosidade do seu magistério
cívico e doutrinário, acompanhada de uma idolatria oficial impregnada de vis
patriótica. Não se estranhe por isso que a doutrinação imperialista tenha relegado
para lugar secundário a doutrinação monárquica nos textos de Paiva Couceiro ou
João de Almeida, tocados de um fervor patriótico e nacionalista que subsumia toda a
realidade política.
João de Almeida, depois de construir a sua “visão” de um Estado Novo que
correspondesse aos seus desejos de retomar a vocação civilizadora da “raça lusitana”
e garantisse a unidade nacional-imperial, chegará mesmo a descrever um
“Monumento Nacional, como o Padrão da Raça, que consubstanciasse a alma do
Império. Como um grande escrínio nele seriam arquivados e guardados todos os
actos e todos os feitos que constituem a História nacional, nele se continuará a
inscrever a dos nossos dias e a dos vindouros”137
. A inauguração do monumento
deveria coincidir com uma “Grande Exposição Internacional”, ideia que o
salazarismo aproveitou em 1940 com a “Exposição Histórica do Mundo Português”.
Na iniciativa comemorativa da grandeza imperial participou activamente o seu
prosélito Henrique Galvão, autor do famoso mapa a provar que “Portugal não é um
país pequeno”, e que coordenou a realização do “Cortejo Imperial do Mundo
Português”138
. João de Almeida e todos os monárquicos africanistas contribuíram, de
forma consciente, para esta ilusão de grandeza que se apoderou dos ideólogos do
Estado Novo e de grandes repercussões no século XX português.
137
Veja-se a descrição pormenorizada do monumento em João de Almeida, O Estado Novo, cit.,
pp. 362-367. 138
Sobre o significado das comemorações veja-se Fernando Catroga, ob. cit., pp. 268 e ss.
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