IMERSÃO E INTERACTIVIDADE NA FICÇÃO DIGITAL

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Daniela Côrtes Maduro IMERSÃO E INTERACTIVIDADE NA FICÇÃO DIGITAL Tese de doutoramento em Materialidades da Literatura, orientada por Doutor Manuel José de Freitas Portela, apresentada ao Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Setembro de 2014 Universidade de Coimbra Universidade de Coimbra Daniela Côrtes Maduro IMERSÃO E INTERACTIVIDADE NA FICÇÃO DIGITAL

Transcript of IMERSÃO E INTERACTIVIDADE NA FICÇÃO DIGITAL

Daniela Côrtes Maduro

IMERSÃO E INTERACTIVIDADE NA FICÇÃO DIGITAL

Tese de doutoramento em Materialidades da Literatura, orientada por Doutor Manuel José de Freitas Portela,apresentada ao Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Setembro de 2014

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Daniela Côrtes Maduro

IMERSÃO E INTERACTIVIDADE NA FICÇÃO DIGITAL

Setembro de 2014

Tese de doutoramento em Materialidades da Literatura na especialidade de Teoria da Literatura,orientada pelo Doutor Manuel José de Freitas Portela, apresentada ao Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Faculdade de Letras

Imersão e Interactividade na ficção

digital

Daniela Côrtes Maduro

Ficha Técn ica

T ipo de tr aba lho :

T í tu lo :

Autor :

Or ientador :

Ident i f icação do curso :

Ano de apresentação :

Tese de Doutoramento

Imersão e in teract iv idade na f ic ção d ig i ta l

Dan ie la Côr tes Maduro

Manue l José de Fre i t as Porte l a

Doutoramento em

Mater ia l idades da L i teratu ra

2014

Imersão e interactividade na ficção digital

Referência: MADURO, Daniela Côrtes (2014). Imersão e interactividade na ficção digital (tese

de doutoramento). Coimbra: Universidade de Coimbra.

Imagem da capa: Patente do “Gun Helmet”, Albert B. Pratt, Maio de 1916.

Grafismo: de acordo com as “Normas de Identidade Visual da Universidade de Coimbra”.

Contacto: [email protected]

Tese de doutoramento financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

Instituição de acolhimento: Centro de Literatura Portuguesa.

Bolsa de Investigação com a referência SFRH/BD/79458/2011, financiada pelo POPH - QREN -

Tipologia 4.1 - Formação Avançada, comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais

do MEC.

iii

Agradecimentos

Este conjunto de páginas tem muitas dimensões. Reservei este espaço para comprová-lo. Nesta página passo

a descrever um abraço que é dedicado aos meus pais e ao João. Este abraço abarca a família que dista de

mim muitos quilómetros mas que histórias em comum não deixam esquecer. Engloba também os pais do

João e toda a minha família de Coimbra. O meu abraço alcança o único avô que a minha memória permitiu

guardar, o meu avô contador de histórias, Manuel Côrtes. Alcança ainda os familiares que deixaram espaços

para sempre vazios.

Para além dos livros, obras e artigos consultados, esta tese tem a marca indelével dos docentes do

Doutoramento em Materialidades da Literatura. O abraço acima iniciado é também dedicado ao meu

professor e orientador Doutor Manuel José de Freitas Portela. Aqui manifesto a minha enorme gratidão

pelo seu apoio, não só na redacção desta tese, mas também em diferentes etapas desta viagem. O impacto

da sua generosidade e sapiência nesta investigação imersiva e interactiva, bem como no meu percurso

académico, é imensurável.

O meu abraço estende-se também ao Professor Doutor António Sousa Ribeiro e ao Doutor Osvaldo

Manuel Alves Pereira Silvestre. Os seus gestos e a sua presença estão, de diversas formas, inscritos nestas

páginas. Ao Doutor Paulo Jorge da Silva Pereira e ao Doutor Pedro Serra, por incluírem ficção científica no

nosso programa, os meus entusiásticos agradecimentos.

Ao Professor Joseph Tabbi, que marcou os momentos finais da redacção desta tese, os meus sinceros

agradecimentos.

Dedico também aos meus colegas, aqueles que como eu fizeram parte da primeira edição do nosso programa

doutoral e aqueles que tenho conhecido nestes últimos três anos, um espaço neste abraço. Ao John Mock e

à Eunice Gonçalves Duarte, obrigada pela vossa amizade e apoio.

Nunca poderei esquecer a Sra. Idalina Cunha e a Sra. Dina Almeida. Estou grata pelas vezes que abriram as

portas daquelas estantes para colocar livros nas minhas mãos.

Os amigos, familiares e professores que aguardaram, e que de diferentes formas contribuíram para que eu

regressasse com este volume, englobo a todos neste abraço sem medida.

Como se um agradecimento bastasse.

iv

Gostaria de agradecer ao Centro de Literatura Portuguesa, por ter acolhido este projecto, e ao Professor

Doutor José Augusto Cardoso Bernardes e Professor Doutor Carlos Reis, directores desta Unidade de

Investigação.

Este projecto foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Os meus agradecimentos

vão também para esta instituição. Graças à Bolsa Individual de Doutoramento concedida pela FCT, pude

dedicar-me exclusivamente ao trabalho de investigação que deu origem a estas páginas.

v

Sumário

A presente tese de doutoramento é dedicada a uma forma de contar histórias com cerca de três

décadas de existência. Recém-chegada ao horizonte literário, a ficção digital começou por definir-

se através de uma contraposição face ao livro impresso. A transgressão da linearidade e a tentativa

de reduzir a presença autoral no texto, foram tornadas em características fundamentais desta forma

literária. As primeiras obras de ficção digital eram descritas como objectos fragmentados que

continham lexias interligadas através de hiperligações. Esta estrutura tinha como objectivo oferecer

liberdade de escolha ao leitor e uma maior participação na construção do texto. No entanto, a

expansão da World Wide Web e a emergência de novo software e de novos dispositivos permitiram

a criação de experiências adicionais de leitura e de escrita. A tecnologia possibilitava a introdução

de novas formas de contar histórias, mas também novos paradigmas. A hiperligação acabaria por

ser substituída por novas ferramentas de navegação e a divisão em lexias acabaria por dar lugar a

novos tipos de organização textual. Por seu turno, o computador apresentava-se como um

instrumento multimédia e como um território onde diferentes formas de representação poderiam

prosperar. A ficção digital acabaria por adquirir uma componente multimodal, pelo que a palavra

viria a dividir o ecrã com a imagem, vídeo ou ícones. O som acabaria por fazer igualmente parte da

ficção digital.

A ficção digital é aqui tratada como parte de um processo de auto-geração e introspecção catalisado

pela literatura. Os textos ergódicos são considerados como parte desse processo. Sendo assim, eles

surgem em resposta às expectativas criadas pela literatura. Na literatura electrónica, a emergência

de novo software e novos dispositivos é normalmente acompanhada pela criação de novos tipos

de texto. A realidade virtual, a realidade aumentada, head-mounted displays e dispositivos de

localização são actualmente usados para produzir novas respostas textuais. O movimento corporal

é usado como o catalisador dessas respostas textuais, pelo que o leitor é visto como o criador de

uma narrativa escrita em tempo-real. Isto significa que a tentativa de oferecer ao leitor um papel

participativo continua a ser acalentada pela literatura electrónica.

Enquanto a interactividade é frequentemente descrita como um conjunto de actividades físicas que

comprometem a atenção do leitor, a imersão está ligada a uma resposta acrítica e passiva por parte

deste. Ao passo que a interactividade era usada para proporcionar ao leitor uma maior liberdade de

escolha e para oferecer a este a possibilidade de co-criar o texto, a imersão era vista como o

resultado de uma experiência de leitura constrangida pela intenção autoral. Assim descrita, a

interactividade seria o antídoto da imersão do leitor no texto. Porém, a interactividade será aqui

associada a um conjunto de acções físicas e cognitivas levadas a cabo pelo leitor. Já a imersão será

vista como resultado e origem dessas acções. Nesta tese, o conflito entre imersão e interactividade

vi

dará lugar a uma cooperação. A análise da relação entre ambas terá em conta multimodalidade e

transiência do texto, bem como o trabalho ergódico e cognitivo levado a cabo pelo leitor.

Palavras-chave: imersão, interactividade, interpretação, close reading, literatura electrónica, ficção

digital, imaginação, narratologia, ludologia, cibertexto, realidade virtual, cognição.

Abstract

This doctoral thesis is dedicated to a form of storytelling which was added to the literary horizon

almost three decades ago. Digital fiction began by defining itself against the printed book. The

transgression of linearity and the attempts to reduce authorial presence in the text, were soon

turned into defining characteristics of this literary form. These works were first described as

fragmented objects comprised of “text chunks” interconnected by hyperlinks, which offered the

reader freedom of choice and a participative role in the construction of the text. This text was read

by selecting several links and by assembling its lexias. However, the expansion of the World Wide

Web and the emergence of new software and new devices, suggested new reading and writing

experiences. Technology offered new ways to tell a story, and with it, additional paradigms.

Hyperlinks were replaced with new navigation tools and lexias gave way to new types of textual

organization. The computer became a multimedia environment where several media could thrive

and prosper. As digital fiction became multimodal, words began to share the screen with image,

video, music or icons. Sound was also included as part of digital fiction.

In electronic literature, the emergence of new software and new devices is often followed by the

creation of new texts. Virtual reality, augmented reality, head-mounted displays and tracking

devices are presently being used to produce new textual responses. Bodily movement is often

treated as the catalyser of these textual responses and the reader is considered as the creator of a

narrative written in real-time. This means that the attempt to offer the reader a participating role

continues to be fostered by electronic literature. In this thesis, digital fiction is described as part of

an introspection and self-generating process catalysed by literature. Consequently, these new kind

of texts will be defined as part of the ever-evolving field of literature and as a response to its

expectations.

While interactivity is often described as a set of physical activities that can interfere with attention,

immersion is frequently seen as an uncritical and passive response to the text. Interactivity was

used to offer freedom of choice to the reader and to give the reader the opportunity of co-authoring

vii

the text. Immersion was, by contrast, considered as the result of a reading experience constrained

by authorial intention. In so doing, interactivity was mostly regarded as an antidote of reader’s

immersion in the text. However, in this thesis, I will focus on a cooperation rather than a conflict

between both. By describing interactivity as a set of cognitive and physical actions on the part of

the reader and by defining immersion as a result and origin of these actions, I will demonstrate that

immersion and interactivity cannot survive separately. This thesis aims at addressing the relation

between immersion and interactivity by taking into account the text’s multimodality and transiency,

as well as the ergodic and cognitive work done by the reader.

Keywords: immersion, interactivity, interpretation, close reading, electronic literature, digital

fiction, imagination, narratology, ludology, cybertext, virtual reality, cognition.

viii

Índice

Agradecimentos iii

Sumário/Abstract v

Introdução 1

Capítulo I – Formas de contar o que (não) aconteceu 7

Uma longa história – o conceito “narrativa” 8

“Remembrance of songs sung” 26

Quem conta um conto acrescenta um ponto 34

Characters don’t need closure: a aventura impressa e digital 48

Capítulo II – O ícone e a palavra: o texto como enigma 57

Words as occurrences: a (i)materialidade digital 58

Histórias à superfície: a ligação entre média 74

Desenhos num tapete persa: interpretações 84

Capítulo III – Win-win game: como conciliar imersão e interactividade 105

O jogo da ficção e os seus desafios 107

A narrativa projectada: o caso de Stanley 118

O quarto nível de interactividade 132

Era uma vez um mundo possível: o ficcional e o virtual 157

Leitura deambulatória – a frustrar expectativas desde 1987 185

Conclusões 203

Referências Bibliográficas 207

1

Introdução

What are the equivalent strategies of figuration and estrangement

when literature is digitally born? (…) How can we identify the

“unusual” in a realm of expression not yet old enough (and growing

too fast) to have established the “common”? (…) How do we look

at experimental writing in new media that (…) are trying to create

new conventions rather than to break the established ones?

R. Simanowski, J. Schäfer, P. Gendolla, Reading Moving Letters

No seu livro sobre a literatura electrónica e o horizonte literário N. Katherine Hayles recordou o

seguinte: “Nothing comes of nothing (…) and electronic literature was not born ex nihilo” (Hayles,

2008: 60). A literatura electrónica não pode ser dissociada do seu passado impresso, oral ou

pictórico. Contudo, a experimentação com vários tipos de software resultou na emergência novos

tipos de textos, com características muito particulares1. Os textos digitais podem ser reactivos e

dinâmicos. Despertados pelo leitor/utilizador, em conjunto com o computador, eles tornam-se em

máquinas textuais divididas entre a sua auto-geração e o processo de se tornarem manifestos no

ecrã. Situados no limbo entre jogos de computador, literatura e arte digital, estes textos exigem

novas abordagens mas, como aqui será explicitado, uma cesura em relação a outras formas de arte

não pode ser concretizada. Existe também a noção de que eles nasceram da literatura impressa e

que reactivaram muitos dos seus paradigmas. Por este motivo, os argumentos em favor da sua

originalidade ou inovação permanecem improfícuos.

A literatura electrónica evolui ao ritmo da tecnologia disponibilizada, o que potencia o seu carácter

experimental. Segundo Raine Koskimaa, esta é uma característica fundamental da literatura

electrónica:

All digital works are in a very concrete sense experimental writing. First of all, the authors

are experimenting with the new media, trying to find out what is possible in digital

textuality, what the limits are of literary expression in programmable media. (…) authors

1 Hayles refere que, inicialmente, a literatura electrónica assemelhava-se à literatura impressa. Só mais tarde foi possível identificar características do meio digital. Porém, o conhecimento produzido pela literatura em formato impresso não foi esquecido: “the accumulated knowledge of previous literary experiments has not been lost but continues to inform performances in the new medium. For two thousand years or more, literature has explored the nature of consciousness, perception, and emergent complexity, and it would be surprising indeed if it did not have significant insights to contribute to ongoing explorations of dynamic heterarchies” (Hayles, 2008: 59).

2

have to learn to write anew, from a novel set of premises (…) readers also have to learn to

read in a new way not governed by the conventions of printed literature. This double

challenge is a factor slowing down the development of the cibertextual field, but at the

same time it creates a peculiar kind of close connection between authors and readers of

cibertextual literature as they experiment together with the possibilities offered by this new

field of textuality. (Koskimaa, 2010: 130)

Se este atributo impulsiona a criação de novos objectos, ele dificulta a formação de um corpus de

análise coeso. Um retrato aproximado desta forma de expressão fica assim constantemente adiado.

Por seu turno, a auto-reflexividade e intensa teorização ocupa um espaço lato neste tipo de

literatura. A literatura electrónica está ainda dedicada a uma introspecção, o que a torna num

objecto singular e cativante dentro do meio académico mas que limita a sua popularização. Apesar

de haver um número crescente de títulos publicados em linha, ela é desconhecida para a grande

parte dos leitores. A pergunta “Literatura electrónica: o que é?” permanece colocada no sítio da

Electronic Literature Organization2 e na mente de todos aqueles que dedicam o seu trabalho de

investigação a esta área. Esquiva a uma definição derradeira, a literatura electrónica riposta com

outras perguntas: “o que é a literatura?”; “o que é o texto?” ou “o que é o significado?”. Sabemos

que ela se distingue pelo uso do computador na sua produção e recepção mas sabemos igualmente

que ela não se resume a esta característica. Em Electronic Literature: New Horizons for the Literary (2008)

Hayles sugeriu a seguinte definição de literatura electrónica: “Electronic literature, generally

considered to exclude print literature that has been digitized, is by contrast “digital born”, a first-

generation digital object created on a computer and (usually) meant to be read on a computer”

(Hayles, 2008: 3). A cautelosa definição avançada por Hayles (note-se o uso dos advérbios

‘generally’ e ‘usually’) foi adoptada como a que mais se aproxima de uma definição geral de literatura

electrónica. Contrariamente a Hayles, John Cayley rejeita o adjectivo “electrónico”. Para este autor,

os média em rede/programáveis permitiram ver para além das convenções produzidas pela era

tipográfica. Ao frisar o suporte utilizado, Cayley acredita que o mesmo erro estará a ser cometido,

ou seja, um formato estará a ser privilegiado em relação a outro (Cayley, 2012: 28). Para Cayley, os

suportes materiais emergem para a seguir serem substituídos por outros. Ao criar um nome baseado

no suporte utilizado é como ditar um tipo de literatura ao seu declínio.

Embora não seja um termo menos problemático, existem muitos autores que optam pelo adjectivo

“digital” como o que melhor define este tipo de literatura. Noah Wardrip-Fruin define a literatura

digital da seguinte forma:

2 A Electronic Literature Organization tenta responder a esta pergunta em: http://eliterature.org/pad/elp.html.

3

A phrase like "digital literature" could refer to finger-oriented literature (fingers are "digits')

or numerically-displayed literature (numbers are "digits") - but I mean "digital" in relation

to computers, specifically as it appears in computer engineering phrases such as "stored

program electronic digital computer." I mean literary work that requires the digital

computation performed by laptops, desktops, servers, cellphones, game consoles,

interactive environment controllers, or any of the other computers that surround us.

(Wardrip-Fruin, 2010: 29)

Já Roberto Simanowsky, Jörgen Schäfer e Peter Gendolla afirmam que este termo aponta para

qualquer tipo de texto “nascido digitalmente” e salientam a necessidade de decifrar o termo

“literatura”. Segundo estes autores, por causa da sua multimodalidade, a literatura

electrónica/digital torna o uso desta palavra, amplamente ligada a “texto”, numa decisão

problemática. Para eles, a literatura electrónica tem de ir além do texto e tem de efectuar um uso

“estético” das características dos média digitais. Ao proceder desta forma, a preponderância do

“texto” enquanto símbolo máximo da literatura é, para estes autores, reduzida. Porém, quando a

atenção é centrada no “estético”, a literatura digital acaba por confundir-se com arte digital.

Simanowsky, Schäfer e Gendolla acrescentam uma distinção: “If the piece still requires reading as

a central activity, we may call it digital literature. If it allows playing with the letters as mere visual

objects (…) we may consider it digital art” (Simanowsky, Schäfer e Gendolla, 2010: 17). Os autores

referem-se aqui à leitura de textos no sentido tradicional, ou seja, à leitura de um texto composto

maioritariamente por letras. Contudo, existem obras de literatura electrónica que são baseadas

precisamente nessa manipulação lúdica das letras. A obra Screen (2003-2007) é exemplo desta forma

de recepção de um texto. Para Simanowsky, Schäfer e Gendolla, apenas a audiência ou a perspectiva

do crítico poderá decidir entre as duas formas: arte ou literatura. Em parte, o que irei aqui defender

está de acordo com esta perspectiva. Para analisar uma obra de literatura electrónica, é necessário

ter em conta as expectativas, a experiência proporcionada por esta e a perspectiva do leitor. É

igualmente necessário ter em mente que não é possível explicar uma obra por inteiro nem submetê-

la a uma única interpretação. Diferentes perspectivas suscitam frequentemente diferentes

interpretações de uma obra. Dada a variedade de fontes citadas nesta tese (e as diferentes

perspectivas sobre uma definição do termo “litearatura electrónica/ digital”) acrescentarei

alternadamente os adjectivos “electrónica/o” e “digital” aos termos “literatura”, “texto” e “obra”.

O computador abriu novas possibilidades de criação artística e sem ele seria impossível a

emergência de um conjunto ou tipo de textos intitulado “literatura electrónica”. Contudo, algumas

das suas características não são um produto exclusivo do ambiente digital proporcionado pelo

4

computador. Como demonstrarei, ela é um objecto familiar que ilumina aspectos frequentemente

ignorados na história da literatura, desafiando as nossas convicções e devolvendo-nos

permanentemente às suas origens. Aqui defino ficção digital como um conjunto de histórias criadas

através de computadores e por computadores e lidas através de uma interface (seja ela representada

por sensores de movimento, programa ou o teclado). Elas podem ser igualmente apelidadas de

cibertextos, um termo cunhado por Espen Aarseth (Aarseth, 1997: 21).

A imersão e a interactividade são frequentemente descritas como irreconciliáveis. Ryan, referindo-

se à “narrativa clássica e ao hipertexto”, defende que isto se deve à dependência em relação à

linguagem verbal (Ryan, 1994: 133). A autora defende que a linguagem seja transformada em gesto:

“a solution of the conflict between immersion and interactivity: turn language into gesture (…),

into a corporeal mode of being in the world” (idem). A imersão e interactividade são

permanentemente vistas como o resultado de um conjunto de acções físicas. Porém, como será

demonstrado, elas são antes de mais o produto de processos cognitivos que se estendem desde a

resposta sensorial à imaginação.

É comum pensar-se que, se o leitor tem de permanecer concentrado na configuração ou montagem

do texto, a sua imersão na narrativa é interrompida. O que pretendo aqui efectuar é uma revisão

desta ideia. Antes de tratar ambas as partes como irreconciliáveis, existem inúmeros factores que

deveriam ser observados. Entre os dois polos existem graus de interactividade e imersão, existe

também a noção de que estes conceitos não têm uma definição específica e que ambos pretendem

responder a diversas expectativas e ambições (nem sempre conciliáveis) criadas em torno do

computador enquanto instrumento expressivo. Este factor, bem como a sua dependência de uma

noção frágil de narrativa (um termo que também não tem uma definição consensual) nem sempre

são observados. Dada a dificuldade de encontrar uma noção satisfatória de narrativa e visto que a

proposta de uma definição deste conceito não caberia nesta tese, esta palavra tomará aqui diversos

sentidos, conforme a perspectiva adoptada pelos textos e a ideia de narrativa suscitada pelas obras

discutidas nesta tese.

Para além da interactividade (que tem vindo a ser associada ao facto de o leitor poder interagir

fisicamente com o texto ou contribuir para a sua construção) existe a hibridez do texto digital que

ofusca ou dificulta a percepção de uma história. A componente auto-reflexiva, que se traduz na

veiculação de várias questões teóricas ao leitor será outra das componentes que deverão ser

tomadas em conta na análise da relação entre imersão e interactividade.

É necessário advertir também o leitor que esta tese não pretende efectuar uma comparação entre

o livro e a literatura electrónica através da dicotomia entre o formato impresso e o formato digital.

A ficção digital não surge aqui em representação do formato digital mas como uma forma literária

5

que implica o uso do computador enquanto ferramenta expressiva. Interessa estudar o impacto

desta ferramenta na relação entre interactividade e imersão, não listar as especificidades do meio

digital ou do meio impresso. No entanto, é fundamental para esta tese auscultar o diálogo entre

várias formas de expressão que são parte integrante do que considero ser um longo processo de

metamorfose e auto-geração da literatura.

Central nesta tese é a proposta de revisão da narratologia efectuada por Markku Eskelinen; o

trabalho de Walter Ong sobre literacia e oralidade; a pesquisa efectuada por Marie-Laure Ryan no

âmbito da relação entre interactividade e imersão bem como na área da narratologia e storytelling e

os estudos de Johanna Drucker e Lev Manovich sobre os novos média. Nesta tese, serão analisadas

várias obras maioritariamente extraídas da ELO Collection, volume I e II.

Algumas secções desta dissertação foram publicadas em outros locais. As mesmas serão

devidamente assinaladas. Durante o trabalho de redacção desta tese foram publicadas no ELD

(Electronic Literature Directory) um conjunto de entradas sobre algumas obras seleccionadas por

mim de um directório sediado no Canadá, o NT2 (Le laboratoire de recherches sur les oeuvres

hypermédiatiques). Essas obras surgem identificadas em notas-de-rodapé.

Síntese

Na primeira secção do primeiro capítulo pretendo demonstrar que o conceito de narrativa tem um

carácter mutável. Para tal centrarei a minha atenção no romance, uma das suas formas

representativas, e na hiperficção. A hibridez manifestada por estas duas formas literárias,

amplamente influenciadas por outras formas de arte, deixa entrever que a literatura não está fechada

sobre si mesma e está, tal como a literatura electrónica, em permanente mutação.

“The remembrance of songs sung” é uma frase de Berkley Peabody citada por Walter Ong que

reflecte a natureza volátil das palavras na tradição oral. Para os poetas orais, não existia um registo

físico para as suas composições. A memória seria o seu material de trabalho. Na ficção digital,

surgem reminiscências dessa era. A relação entre poesia oral, tipografia e literatura digital será aqui

evidenciada.

O poeta oral seria como um bricoleur que construía as suas composições através de materiais pré-

existentes. Questões sobre a noção de originalidade e escrita colaborativa são tratadas no

subcapítulo “Quem conta um conto acrescenta um ponto”.

“Characters don’t need closure: a aventura impressa e digital” é um subcapítulo que se refere à

transferência das personagens entre diferentes média, particularmente entre o meio impresso e o

digital. A sobrevivência de personagens em diferentes média comprova que o desfecho de um livro

não é determinado pelas suas páginas. Esta situação é exacerbada dentro da literatura electrónica

6

porque o computador permite a criação de personagens dinâmicas que podem inclusive trocar de

papéis com o leitor. A noção de desfecho é explorada na secção final deste capítulo.

A colaboração entre linguagem verbal e linguagem visual é abordada no segundo capítulo desta

tese. Em “Words as occurrences: a (i)materialidade digital” pretendo analisar a temporalidade e a

(i)materialidade da literatura electrónica como elementos que influenciam a leitura de uma obra

digital. Em “Histórias à superfície: a ligação entre média”, os limites entre diferentes formas de

representação são descritos como colapsados, evidenciando assim o carácter intermedial do texto

electrónico. No final do segundo capítulo, é demonstrado que, dada a sua hibridez e dada a

problematização de aspectos ligados à teoria da literatura e estudos literários, a literatura electrónica

não desencoraja, mas antes exacerba, a necessidade de recorrer a técnicas de close reading.

No último capítulo desta tese, analisarei em detalhe a relação entre imersão e interactividade. No

subcapítulo, “O jogo da ficção e os seus desafios”, reflectirei sobre a componente interactiva da

ficção digital, referindo-me à forma como esta propriedade de um texto tem vindo a ser analisada.

Já no subcapítulo “Era uma vez um mundo possível: o ficcional e o virtual”, será analisado o papel

da imaginação no acesso a qualquer obra. No último subcapítulo, através da referência à retórica

de frustração, passarei a referir-me a uma leitura deambulatória efectuada sob diferentes níveis de

atenção.

7

- Capítulo I –

Formas de contar o que (não) aconteceu

O presente capítulo é dedicado ao acto de contar histórias. Com este gesto não tenho como

objectivo tecer uma cronologia da narrativa, nem um estudo sobre ficção, mas demonstrar que a

literatura electrónica não pode ser vista como um fenómeno autónomo da literatura impressa.

Neste capítulo, pretendo identificar aspectos ligados ao acto de narrar, desde a tradição oral até às

formas pós-modernistas, tendo em atenção diferentes linhas de teoria literária centradas no autor,

texto ou personagem e a sua relevância para as práticas narrativas da ficção digital. Como tal, farei

referência a um momento anterior à introdução da escrita referindo-me pontualmente ao estudo

de Walter Ong, Orality and Literacy (1982). Com este movimento retrospectivo pretendo demonstrar

que a literatura electrónica não é apenas fruto da generalização do computador pessoal. Ao

auscultar diversos momentos da história do acto de storytelling e da narrativa, é meu objectivo

demonstrar que muitas das características atribuídas à literatura electrónica, nomeadamente à ficção

digital, já haviam sido geradas por outras formas de expressão. Este gesto tem como objectivo

descrever a literatura electrónica como parte de um processo que remonta aos primórdios da

comunicação verbal. Central ao meu argumento é que a literatura electrónica, em particular a ficção

digital, é uma forma de contar histórias que força os limites da literatura. Porém, como será

demonstrado, a literatura sempre executou uma luta contra os seus próprios limites.

8

Uma longa história – o conceito “narrativa”

Unlike traditional forms whose excessive regularity is not only

subjected to prescriptions and proscriptions but is actually

created by them, the novel knows neither rule nor restraint.

Open to every possibility, its boundaries fluctuate in all

directions.

Marthe Robert, “From Origins of the Novel”

For who would have us believe that we, we two, for example,

would form a genre or belong to one? Thus, as soon as genre

announces itself, one must respect a norm, one must not cross

a line of demarcation, one must not risk impurity, anomaly, or

monstrosity.

Jacques Derrida, “Law of genre”

Umberto Eco definiu a tradição literária como um poder intangível ou uma rede de textos que a

humanidade produziu, não com uma finalidade em vista, mas para “si própria, para que possa ser

disfrutada pela humanidade”. Para Eco, esses textos são lidos da seguinte forma: “for pleasure,

spiritual edification, broadening of knowledge, or maybe just to pass the time” (Eco, 2005: i). De

acordo com as palavras de Eco, a literatura é um corpus de textos destinado à fruição ou ao

conhecimento. Contudo, como sabemos, esta também pode ser definida como a arte de escrever

um texto em prosa ou em verso ou como o conjunto de textos interligados através de uma temática.

Vítor Aguiar e Silva considera que a palavra literatura não tem apenas um significado: “o lexema

[literatura] é fortemente polissémico; o conceito de literatura é relativamente moderno e constitui-

se após mais de dois milénios de produção literária, em função de um determinado

circunstancialismo histórico-cultural” (Aguiar e Silva, 1997: 14). O mesmo autor observa que a

urgência em encontrar uma definição para este conceito (ou o que Aguiar e Silva intitula de

“definição referencial de literatura”) surgiu em reacção à corrente positivista que, partindo da

etimologia da palavra, definia todos os textos como literatura. Earl Miner, citado por Aguiar e Silva,

afirmou que a procura de uma definição unificada para o conceito de literatura é na verdade uma

“falácia objectiva” (19). Para Aguiar e Silva, a tentativa de definir “literatura” não tem em conta

duas vertentes da mesma: “a literatura como sistema semiótico de significação e de comunicação”

e “a literatura como conjunto ou soma de todas as obras ou textos literários” (30). De acordo com

o autor, o conceito de literatura é sujeito a um “relativismo histórico” e é graças a esta característica

9

que a literatura pode ser definida como um sistema em aberto. Para além de uma heterogeneidade

ao nível diacrónico, Aguiar e Silva refere-se também a uma inconsistência deste termo ao nível

sincrónico, o que impede que toda a literatura produzida no mesmo período seja classificada através

dos mesmos pressupostos (30-31). Para Noah Wardrip-Fruin a literatura está ligada à linguagem:

(…) “digital literature” could be used in the sense of “the literature” (the body of scholarly

work on a topic) or it could mean particularly high-status writing - but I mean “literature”

(and “literary”) as a way of referring to those arts we sometimes call fiction, poetry, and

drama (as well as their close cousins). I mean the arts that call our attention to language,

present us with characters, unfold stories, and make us reflect on the structures and

common practices of such activities. I should probably also say that I don't view the literary

arts as a citadel, separate (and perhaps in need of defence) from, say, visual or performing

arts. Much of the best drama, for example, brings together the literary, performing, and

visual arts. (Wardrip-Fruin, 2010: 29)

No entanto, o que faz com que um texto seja apelidado de “literário”? John Cayley defende que

um texto não deveria ser caracterizado como “literário” mas como possuidor de uma “viabilidade

estética”. Contudo, tal como a noção de texto literário (ou de literatura), o conceito de estética é

também variável. Se na poética aristotélica a noção de estética depende do efeito catártico e de uma

lógica coerente entre início, meio e fim, no romance pós-modernista, o qual tem um carácter

multilinear, essa noção é contrariada. A própria ideia de estética esteve relacionada com a produção

do belo e do sublime mas também do feio e do ridículo3. Como sabemos, para além de conceitos

interdependentes, estes são também conceitos mutáveis.

A categorização de um texto como texto literário também não poderá depender da ausência ou

presença de uma componente ficcional. Embora classificada como uma obra ficcional, a descrição

diarística do romance Robinson Crusoe (1719) assemelha-se a um relato verídico transmitido pelo

próprio náufrago4. Contada ao leitor através de um tom confessional, a história de Robinson

Crusoe terá levado muitos dos seus primeiros leitores a considerá-lo como um testemunho na

primeira pessoa. Sobre a natureza ficcional deste género literário intitulado “romance”5, Marthe

Robert teceu um argumento que importa aqui destacar:

3 As obras History of Beauty (2010) e On Ugliness (2011), de Umberto Eco, ilustram essa ambivalência da noção de estética. 4 O título original desta obra oferecia dados específicos sobre o protagonista, como por exemplo a sua profissão ou o local onde permaneceu durante 28 anos: “The Life and Strange Surprizing Adventures of Robinson Crusoe, of York,

Mariner: Who lived Eight and Twenty Years, all alone in an un‐inhabited Island on the Coast of America, near the Mouth of the Great River of Oroonoque; Having been cast on Shore by Shipwreck, wherein all the Men perished but himself. With An Account how he was at last as strangely deliver’d by Pyrates” (Defoe, 2007). 5 Derrida refere que o género do romance, ao contrário de outros géneros, não é geralmente contestado (Derrida, 1978: 63).

10

Whether the subject is based on reality or is purely fictional is not what makes a novel. Still

less can it be expected to clarify the relation between “true” and “fictional” which is

infinitely more complex than the dictionaries’ peremptory opposition would lead us to

believe. Indeed strictly speaking anything is “fiction” in a world created for the sole purpose

of writing about it: however it is treated and in whatever way it is conveyed the novel’s

reality is fictive or, more precisely, it is always the reality of fiction, where fictional

characters are fictionally born, fictionally die and have fictional adventures. (Robert, 2000:

60)

A ficcionalidade é uma característica intrínseca do romance6 mas também de outras formas de

representação, como o cinema ou o teatro. Se a ficção (como sabemos, este termo não tem um

definição una) pode ser um elemento distintivo de uma obra literária, a definição baseada na teoria

dos géneros (épico, dramático e lírico) é igualmente problemática. Esta forma de classificação tem

sido considerada, particularmente desde o pós-estruturalismo, como um método prescritivo e

elitista de descrição de obras literárias. Roland Barthes, um dos nomes mais influentes para o

movimento pós-estruturalista, afirmou o seguinte: “o Texto não acaba em (boa) literatura; não

pode ser fechado numa hierarquia, mesmo que seja uma simples divisão de géneros. O que constitui

o Texto é, pelo contrário (ou precisamente), a sua força subversiva face às classificações

tradicionais7” (Barthes, 1977: 157). Gérard Genette, por seu turno, frisou que a divisão tradicional

tripartida entre lírico, dramático e épico, havia sido erroneamente atribuída a Aristóteles e Platão:

(…) by usurping that remote ancestry, the relatively recent theory of the ‘three major

genres’ not only lays claim to ancientness, and thus to an appearance or presumption of

being eternal and therefore self-evident; it also misappropriates for the benefit of its three

generic institutions a natural foundation that Aristotle, and Plato before him, had

established. (Genette, 1979: 2-3)

A ausência do género lírico da Poética de Aristóteles8 e a naturalização acrítica desta classificação

levou Genette a descrever o sistema de géneros como uma “ilusão retrospectiva” que estaria

“consciente ou inconscientemente, enraizada nas nossas mentes literárias” (2). De forma a desafiar

6 Segundo Ian Watt, o romance só surgirá, na forma que hoje exibe, no final do séc. XVIII. A partir do Renascimento, as histórias baseadas numa tradição colectiva foram gradualmente substituídas pela experiência individual. De acordo com Watt, esta transição está na base da emergência do romance (Watt, 1957: 10). 7 Todas as traduções são da responsabilidade da autora desta tese. 8 A atribuição desta categoria a Aristóteles partiu da convicção que o ditirambo representava o género lírico (Genette, 1979: 6).

11

este sistema e as suas “certezas taxonómicas” ele sublinhou, por intermédio de uma dupla negação,

que “um texto não pode pertencer a nenhum género”. Para Derrida, não existe um “texto sem

género” e todos os textos podem participar em um ou mais géneros (Derrida, 1980: 65).

Em Cybertext Poetics: the critical landscape of new media literary theory (2012), Markku Eskelinen mantém

uma posição semelhante. A teoria dos géneros literários é descrita da seguinte forma: “Genre is a

hopelessly contested and historically fluctuating concept within which multiple theoretical and

practical interests are in a permanently unresolved conflict” (Eskelinen, 2012: 91). Para este autor

os géneros são fabricados por diferentes grupos de interesse e, por este motivo, têm um carácter

pouco consensual. Referindo-se aos jogos digitais, Eskelinen acrescenta que o crítico que opte por

um sistema de géneros terá de limitar-se aos já criados dentro do cinema, literatura impressa ou

teatro correndo assim o risco de ignorar algumas das características fundamentais do seu objecto

de estudo. Para Eskelinen, o sistema de géneros, embora ineficaz, ainda domina os estudos

literários9.

Aguiar e Silva refere que no início do séc. XVIII a poesia ficou circunscrita “a um domínio bem

particularizado da produção literária, ou alargado a um âmbito, quer relativo ao belo artístico, quer

relativo ao belo natural, que transcende a esfera da literatura” (Aguiar e Silva, 1997: 11). Por sua

vez, a prosa sofre uma crescente valorização, em parte por causa da emergência do romance, do

ensaio e da sátira ideológico-política ou graças ao aumento do público leitor (11). A separação entre

práticas literárias artísticas e escritos científicos viria a exigir a adopção de um vocábulo uno, capaz

de abranger a poesia e a prosa. É aqui que a palavra “literatura” assume o seu papel agregador.

Porém, a história da literatura está repleta de textos escritos com recurso a uma linguagem abstracta

e metafórica (normalmente associada à poesia) e que não apresentam o formato de um poema, ou

seja, que não são inscritos em verso. Por sua vez, existem textos que fornecem uma narração de

eventos - uma função vulgarmente atribuída à ficção em prosa - mas que são apresentados em

verso10. Na verdade, dada a propagação de formas, é hoje difícil encontrar textos que correspondam

inequivocamente à ideia tradicional de prosa (texto dividido em parágrafos, que não obedecem a

uma métrica ou ritmo, e que efectua uma narração e descrição de eventos) ou poesia (texto

segmentado em versos que tem como particularidade a expressão de um mundo interior com

recurso a linguagem abstracta). Porém, existe uma tendência que parece manter-se até aos nossos

dias: o conceito de literatura encontra-se poderosamente ligado ao conceito de narrativa. Esta é,

9 Na verdade, Eskelinen não rejeita totalmente a utilização deste sistema. Considerado como “a rule of thumb device connecting the expectations of audiences and artists” (273), os sistemas de géneros são, para este autor, simultaneamente “necessários e impossíveis”, pelo que devem ser utilizados apenas como referência na abordagem e recepção de uma obra. 10 Na discussão sobre os termos narratividade e narrativização, propostos por Monica Fludernik, Eskelinen recorda que a poesia também pode surgir como narrativizada (Eskelinen, 2012: 115).

12

por sua vez, frequentemente associada à forma do romance. Scholes e Kellogg salientam que a

narrativa nasceu da tradição oral e do épico11. Estas formas são normalmente identificadas como

predecessoras da literatura. No entanto, antes do épico, existia toda uma tradição cuja essência

estará para sempre perdida. Esta tradição era constituída pelo mito sagrado, as lendas e os contos.

Com a introdução da escrita, o género épico veio a distanciar-se dos temas tradicionais acabando

por bifurcar-se em dois tipos de narrativa: a empírica e a ficcional. Scholes e Kellogg salientam que

estes dois tipos de narrativa nasceram com o objectivo de “evitar a tirania do tradicional” (Scholes

e Kellogg, 1966: 13). A narrativa empírica partia, não do mítico, mas da própria realidade, acabando

por subdividir-se em dois tipos: a “histórica”, que se centra em factos e num passado liberto da

tradição; a “mimética”, que se preocupa fundamentalmente em conferir sensações genuínas,

centrando-se por isso no presente. Quanto à “narrativa ficcional”, esta afasta-se do mito e centra-

se na procura de um “ideal”. O escritor da narrativa ficcional, livre do empiricismo da tradição oral,

centra o seu trabalho, não no mundo exterior, mas na audiência, a quem pretende “deleitar e

instruir” (14). Se a narrativa empírica pretende chegar à verdade, a narrativa ficcional tem como

principal objectivo a “bondade ou a beleza”. No entanto, segundo Scholles e Kellogg, a narrativa

sofre uma nova metamorfose no período do pós-Renascimento. De acordo com os autores,

quando Cervantes escreveu Don Quijote de la Mancha (1607) tentava encontrar um equilíbrio entre

“impulsos empíricos e ficcionais”. Scholles e Kellogg afirmam que este conflito esteve na base da

criação do romance enquanto forma literária e por isso frisam que o romance é uma fusão entre

dois mundos, o empírico e o ficcional: “Poised between the direct speaker or singer of lyric and

the direct presentation of action in drama; between allegiance to reality and to the ideal; it is capable

of greater extremes than other forms of literary art” (16).

Para além de ser frequentemente tratado como o representante da literatura, o romance impresso

é muitas vezes confundido com o livro, ou seja, com o medium que o suporta. Considerado como

um produto da cultura tipográfica, o romance foi o alvo principal dos primeiros teóricos dedicados

a legitimar a literatura electrónica, que até aí assumia a forma de hipertexto electrónico. Muitas

11 A relação de parentesco entre o romance e o épico tem vindo a ser discutida por diversos autores. Ian Watt, por exemplo, considera que o épico tem características muito diferentes do romance e que ambos devem ser analisados separadamente. Para Watt o épico não é o antepassado do romance mas o seu antípoda: “It is evident that since the epic was the first example of a narrative form on a large scale and of a serious kind, it is reasonable that it should give its name to the general category which contains all such works: and in this sense of the term the novel may be said to be of the epic kind. (…) Nevertheless, it is surely evident that the actual similarities are of such a theoretical and abstract nature that one cannot make much of them without neglecting most of the literary characteristics of the two forms: the epic is, after all, an oral and poetic genre dealing with the public and usually remarkable deeds of historical or legendary persons engaged in a collective rather than an individual enterprise; and none of these things can be said of the novel.” (Watt, 1957: 238-239). José Ortega y Gasset mantém uma posição semelhante: “The novel and the epic are precisely poles apart. The theme of the epic is the past as such: it speaks to us about a world which was and which is no longer, of a mythical age whose antiquity is not a past in the same sense as any remote historical time” (Gasset, 2000: 274).

13

vezes este processo era efectuado mediante uma comparação entre “o velho e o novo” 12. O

romance seria um formato decadente. Já o hipertexto electrónico representaria a chegada de uma

nova era. Na presente citação, onde Shelley Jackson compara o romance ao hipertexto, é possível

constatar esta perspectiva:

I would like to introduce a different kind of novel, the patchwork girl, a creature who’s

entirely content to be the turn of a kaleidoscope, an exquisite corpse, a field on which

copulas copulate, the chance encounter of an umbrella and a sewing machine on an

operating table. The hypertext.13

Porém, a decadência do romance não foi um tema inaugurado pela teoria do hipertexto. Partindo

da noção que um género literário pode desaparecer, José Ortega y Gasset referiu-se à

impossibilidade de sobrevivência do romance recorrendo apenas ao génio e à originalidade do

autor. Para Ortega y Gasset o romance havia esgotado todos os temas possíveis (Gasset, 2000: 295)

e havia entrado em declínio antes de atingir a sua maturidade (313). Também Marthe Robert em

Origins of the Novel (1980) havia descrito o romance como uma forma que, embora dominante, ainda

se encontrava num estado embrionário:

The novel (…) notwithstanding the distinguished and historically acknowledged ancestry

it claims, is a newcomer to the literary scene, a commoner made good who will always stand

out as something of an upstart, even a bit of a swindler, among the established genres it is

gradually supplanting. (Robert, 2000: 57).

Para Robert, o romance encontra-se em permanente transformação porque se alimenta de (e

contamina) outras formas literárias. Isto faz com que este género assuma uma posição

12 A ordem da ficção hipertextual era definida como inexistente ou aleatória e rizomática pelo que se pensava que não existia coerência narrativa. No entanto, Eskelinen sublinha o seguinte: “hypertext sequences are usually not totally random (very rarely if ever nodes are linked to every other node in a fully rhizomatic fashion), and the wide variety of possible presentation orders (of static chunks of text) would be less of a challenge to readers familiar with narrative and anti-narrative experiments and postmodernist tricks of mid- and late 20th century fiction” (142). Para Eskelinen, o factor que é frequentemente citado para diferenciar a literatura impressa da ficção hipertextual é inválido. Através de um processo de reconstrução é possível obter uma história, ainda que não se chegue a uma ordem cronológica de eventos. Sob este aspecto, as formas experimentais de romance do século XX desenvolveram estruturas de organização multicursal similares às que seriam construídas no hipertexto electrónico. Aarseth também refere que o hipertexto não é radicalmente diferente do “mundo da tipografia, caneta e papel” (78). 13 Esta citação pode ser encontrada no texto “Stitch Bitch: the patchwork girl” (1996) publicado no sítio MIT Communication Forum em http://web.mit.edu/comm-forum/papers/jackson.html. A frase “the chance encounter of an umbrella and a sewing machine on an operating table”, usada igualmente pelo movimento Surrealista, foi criada pelo poeta Isidore Lucien Ducasse, mais conhecido pelo pseudónimo Comte de Lautréaumont (1846 – 1870). O uso desta frase reflecte o carácter fragmentário e experimental das primeiras hiperficções e torna manifesta a sua ligação a um passado impresso.

14

transgressiva14 recusando-se a ser formatado e delimitado por normas e categorizações. Esta

caracterização do romance, como um género em contínua renovação e por isso incompatível com

normas e categorizações, entra em contraste com a imagem do romance projectada durante os

primeiros anos da literatura electrónica. Neste período, o romance era representado como um texto

linear e fechado; dividido em compartimentos estanque início/meio/fim e constrangido pela

intenção do autor. Contudo, também o romance moderno surgiu do desafio aos pressupostos

formalizados pelo seu antecessor (o romance renascentista ou o épico clássico) contribuindo para

a corrente de paradigmas que reformula a literatura. Se o épico tinha como referência toda uma

tradição colectiva, o romance viria a centrar-se na vivência daquele que tecia o texto. De acordo

com Ian Watt, o romance revolucionou a literatura: “the plots of classical and renaissance epic (…)

were based on past history or fable, and the merits of the author's treatment were judged largely

according to a view of literary decorum (…). This was first and most fully challenged by the novel,

whose primary criterion was truth to individual experience (…) which is always unique and

therefore new” (13).

O domínio do romance15 sobre outras formas de conceber ou apresentar uma narrativa foi

igualmente um tema explorado antes da existência de hiperficções electrónicas. Joseph Tabbi

refere-se a este facto na seguinte citação:

Robert Musil’s The Man Without Qualities (1930–1942), the procedural and

computational narratives of Italo Calvino, Harry Mathews, and the Oulipo group,

Lynne Tillman’s American Genius (2006), and David Markson’s late work from

14 Frank Kermode refere-se à história do romance da seguinte forma: “the history of the novel is the history of forms rejected or modified, by parody, manifesto, neglect, as absurd. Nowhere else, perhaps, are we so conscious of the dissidence between inherited forms and our own reality” (Kermode, 2000: 129-130). Kermode intitula a história do romance “história de anti-romances” (131). 15 De facto, o romance parece estar a ter um ressurgimento. Veja-se o caso de A Game of Thrones (1997) ou Da Vinci Code (2003). Para além da entusiástica recepção a estes romances, ambos suscitaram o lançamento de filmes ou séries de televisão. Contudo, como é possível verificar no artigo de Will Self publicado no The Guardian, o tema do fim do romance continua a ser explorado. Neste artigo, Will Self sublinha uma série de noções de literatura que estão aliadas ao romance e ao livro, bem como à noção do que é literário. Na introdução ao seu artigo Self declara o seguinte: “in the digital age, not only is the physical book in decline, but the very idea of 'difficult' reading is being challenged” (Self, 2014). Self associa aqui a forma do romance ao livro. Este cronista pretende enaltecer que, sujeito a uma série de distracções catalisadas pela condição de permanente conectividade, o público leitor de romances poderá vir a cingir-se a um público especializado: “I believe the serious novel will continue to be written and read, but it will be an art form on a par with easel painting or classical music: confined to a defined social and demographic group, requiring a degree of subsidy, a subject for historical scholarship rather than public discourse”. A referência a um romance “sério” recorda o slogan da Eastgate, uma editora de hiperficções construídas através do programa Storyspace: “Eastgate: serious hypertext”. Para este autor, o romance seria a verdadeira “Gesamtkunstwerk Wagneriana” mas ele sofre agora uma nova derrocada. Para Self, a decadência do romance terá começado da seguinte forma: “The use of montage for transition; the telescoping of fictional characters into their streams of consciousness; the abandonment of the omniscient narrator; the inability to suspend disbelief in the artificialities of plot – these were always latent in the problematic of the novel form, but in the early 20th century, under pressure from other, juvenescent, narrative forms, the novel began to founder” (idem.).

15

Reader’s Block (1996) to The Last Novel (2007). While these works are surely a minor

strain in terms of the number of readers they attract, they nonetheless are the strain

that most clearly anticipates hypertextual and multi-mediated literature in new

media—suggesting that the long narrative of the rise of the realist novel is itself no

longer the most obvious way of grouping fictions together even as we move out of

the age of print. (Tabbi, 2010: 3)

Michael McKeon, na introdução à colectânea Theory of the novel: a historical approach (2000), referia

que o romance exerce um domínio sobre a narrativa ficcional o que faz com que ambas as formas

literárias surjam como indistintas: “the novel has become so dominant that its popularity has tended

to obscure the importance, and the ongoingness, of other forms of fictional narrative. To speak of

the novel, it came to appear, was to speak of narrative as such” (McKeon, 2000: xiii-xiv). McKeon

considera que o estruturalismo e pós-estruturalismo tentaram quebrar esta hegemonia do romance

e descrevê-lo como uma das inúmeras formas de criar uma narrativa. Contudo, ao desafiarem os

pressupostos defendidos pelos seus antecessores, estes dois movimentos acabaram por reforçar a

fusão entre romance e narrativa ficcional:

Broadly construing “theory” as an exercise in questioning the categories by which cultures

uncritically understand themselves, structuralism and poststructuralism looked (to be sure,

with very different emphases) to the operation of language for rules by which to challenge

the authority of what it saw as unselfcritical historical practice— not just local and

temporary literary usages, but the categories of “genre” and “literature” themselves. (…)

Treated as a local instance of a more universal activity, the novel has been subsumed within

narrative in such a way as to obscure or ignore its special, “generic” and “literary”,

properties. (McKeon, 2000: xiv)

Ao equiparar o romance e a narrativa, todas as outras formas de veicular uma narrativa são

secundarizadas. Por seu turno, as características específicas deste género são ignoradas. Marthe

Robert refere que a posição privilegiada do romance em relação a outras formas literárias depende

desta capacidade de apropriação:

All things considered, its victories were mainly due to its encroachments on the

neighboring territories it surreptitiously infiltrated, gradually colonizing almost all of

literature. (…) the novel has abolished every literary caste and traditional form and

appropriates all modes of expression, exploiting unchallenged whichever method it

16

chooses. (…) it can exploit to its own ends description, narrative, drama, the essay,

commentary, monologue and conversation; it can be, either in turn or at once, fable,

history, parable, romance, chronicle, story and epic. (…) The only prohibition it generally

observes, because it defines its “prosaic” nature, is not even compulsory for it can include

poetry at will or simply be ‘poetical’.” (Robert, 2000: 58).

Tal como a literatura electrónica, o romance é igualmente capaz de englobar várias formas de

expressão, desde o drama até à poesia, tornando-se igualmente num género híbrido (segundo Will

Self, citado acima, uma Gesamtkunstwerk). No entanto, a hibridez apresentada pela literatura

electrónica e o seu comportamento parasítico face a outras formas de contar histórias deve-se à

capacidade de o computador simular várias superfícies de representação, desde o livro até à tela do

cinema. Embora o romance abarque várias formas de expressão, estas são fundamentalmente

verbais. Já a literatura electrónica abrange um número considerável de formas de expressão que,

embora não-verbais, também têm a capacidade de veicular uma história. É isto que a colecção de

obras reunida pela Electronic Literature Organization ao longo de dois volumes permite verificar. A

selecção realizada por N. Katherine Hayles, Nick Montfort, Scott Rettberg, Stephanie Strickland

(Volume I) e Laura Borràs, Talan Memmott, Rita Raley, Brian Stefans (Volume II) apresenta ao

leitor um vasto leque de obras representativas16. Esta colecção está organizada, não só através de

títulos e autores, mas também por palavras-chave. A maior parte destas palavras-chave foram

mantidas entre o Volume I e o Volume II da ELO Collection17. Contudo, existem algumas categorias

que são suprimidas, outras que são assimiladas por categorias semelhantes e outras ainda que são

inauguradas. As categorias a sombreado surgem apenas em um dos volumes. O volume está

indicado entre parênteses na tabela abaixo.

16 A ELO tem reunido esforços para garantir a preservação de obras de literatura electrónica. Dependentes do software e dos sistemas operativos em que são publicadas, estas podem tornar-se rapidamente obsoletas. Na página da ELO existe um espaço destinado a promover formatos de publicação que maximizam o tempo de vida de uma obra electrónica. Um conjunto de sugestões para a preservação de obras electrónicas pode ser encontrado em “Acid-Free Bits: Recommendations for Long-Lasting Electronic Literature” (http://eliterature.org/pad/afb.html). Dispersas pela rede, as obras electrónicas encontram nesta colecção um ponto de reunião. 17 O terceiro volume desta colecção encontra-se em preparação.

17

Palavras-chave, ELO (volume I e II)

1. 3d 2. Ambient 3. Animation/kinetic 4. Appropriated texts 5. Audio 6. Augmented reality (2) 7. Authors from outside North-America (1) 8. Cave

9. Chatterbot/conversational character 10. Children's literature (1) 11. Codework 12. Collaboration 13. Combinatorial 14. Conceptual 15. Constraint-based/procedural 16. Critical/political/philosophical 17. Database 18. Documentary

19. Ergodic/interactivity/participation (2) 20. Essay/creative nonfiction 21. Fiction (1) 22. Flash 23. Games 24. Gender/race/sexuality (2) 25. Generative 26. Hacktivist 27. HTML/DHTML (1) 28. Hypertext

29. INFORM (1) 30. Installation 31. Interactive fiction 32. Java 33. Javascript 34. Locative 35. Mash-up (2) 36. Memoir

37. Multilingual or non-English 38. Music (1) 39. Narrative (2) 40. Network forms 41. Non-interactive 42. Parody/satire 43. Performance/performative 44. Place 45. Poetry 46. Processing

47. Quicktime (1) 48. Retro (2) 49. Shockwave 50. Squeak (1) 51. Storyspace (1) 52. Stretchtext 53. TADS (1) 54. Text movie 55. Textual instrument 56. Time-based (1)

57. Translation (1) 58. Video (2) 59. Viral (1) 60. Virtual environment( 2) 61. Visual poetry or narrative 62. VRML (1) 63. Women authors (1) 64. Wordtoy

Tabela 1 – Lista geral de keywords do Volume I e II da ELO Collection

Ao analisarmos as diferenças entre ambos os volumes, verificamos que a categoria “Authors from

outside North-America” foi provavelmente assimilada pela categoria Multilingual or non-English, já

existente no volume I. As categorias Storyspace, Quicktime, HTML/DHTML, VRML, TADS e

Inform foram descontinuadas no Volume II. No entanto, surgiram as categorias Augmented Reality,

Ergodic/Interactivity/Participation, Virtual Environment ou Retro. A categoria Music é abandonada no

segundo volume. Em vez desta parece ter surgido a categoria Video. A categoria Women Authors

poderá ter sido integrada na nova categoria intitulada Gender/race/sexuality. Quanto à categoria

Fiction foi possivelmente assimilada pela categoria Narrative. Na entrada dedicada à palavra-chave

Narrative, apenas presente no Volume II da colecção, o leitor encontra a seguinte definição:

18

The representation of an event or series of events in a range of genres, including prose

works, static and moving images, and gestures. The nature and defining features of

narrative are subjects of ongoing academic debates, with some scholars suggesting that

narrative needs to show cause and effect. In this collection, narrative does not necessarily

designate works that contain a causal sequence; rather, narrative is understood more

generally as a technique for ordering both time and space.18

Para os autores desta entrada, a narrativa é a representação de um evento ou de uma série de

eventos. Os mesmos autores sublinham que é possível identificar uma narrativa num vasto número

de formas de expressão que podem incluir imagens em movimento ou gestos. Na definição de

poesia (que surge inalterada no segundo volume desta colecção), a literatura electrónica é descrita

como uma forma de arte que não atingiu um estado definitivo. A sua hibridez e o seu passado

tipográfico são aqui enaltecidos:

Writing native to the electronic environment is under continual construction (poiesis) by

its creators and receivers. Works of electronic literature are "poietic," in this sense, and are

often constructed by strategies analogous to those found in experimental print poetry, or

cinema, as well as by strategies native to the digital environment.19

Quando o leitor consulta a lista de obras inserida dentro das categorias Narrative e Poetry observa

que, das sessenta e quatro obras listadas no Volume II, apenas quinze pertencem à categoria

Narrative e treze à categoria Poetry. Para além disso, a obra Chroma surge em ambas as categorias.

Na tabela II é possível constatar que cada uma das obras contempladas nesta colecção está

integrada em outras categorias.

Narrative Poetry

Book and Volume Codework Ergodic/Interactivity/Participation Interactive Fiction

Chroma Audio Games Gender/Race/Sexuality Narrative Shockwave

18 Esta citação poderá ser encontrada no volume II da colecção criada pela Electronic Literature Organization em http://collection.eliterature.org/2/extra/keywords.html. 19 Esta citação poderá ser encontrada nos volumes 1 e 2 da colecção criada pela Electronic Literature Organization em http://collection.eliterature.org/1/aux/keywords.html ou http://collection.eliterature.org/2/extra/keywords.html.

19

Chroma

Audio

Games

Gender/Race/Sexuality

Poetry

Shockwave

Endemic Battle Collage Animation/Kinetic Non-Interactive Retro Text Movie Visual Poetry or Narrative

Deep Surface Audio Flash Hypertext Textual Instrument

Entre Ville Audio Locative Multilingual or Non-English Place

Façade 3D Chatterbot/Conversational Character Collaboration Database Ergodic/Interactivity/Participation Games Generative Interactive Fiction

Basho's Frogger & Jabber Conceptual Games Generative Java Parody/Satire

Flight Paths Collaboration Critical/Political/Philosophical Flash Network Forms

Poemas no meio do caminho 3D Animation/Kinetic Codework Combinatorial Database Flash Javascript Multilingual or Non-English Network Forms

Golpe de Gracia Audio Critical/Political/Philosophical Flash Games Hypertext Multilingual or Non-English

ppg256 Codework Constraint-Based/Procedural Generative

in absentia Critical/Political/Philosophical, Locative Memoir Multilingual or Non-English Place

Slippingglimpse Appropriated Texts Collaboration Flash Generative Text Movie Video Visual Poetry or Narrative

Inanimate Alice (Episode 4) Audio Collaboration Games Visual Poetry or Narrative

Sooth Animation/Kinetic Audio Flash Multilingual or Non-English Video

La casa sota el temps Ergodic/Interactivity/Participation Flash Locative

Trope 3D Collaboration Virtual Environment

20

Multilingual or Non-English Palavrador

Collaboration Critical/Political/Philosophical Generative Multilingual or Non-English Virtual Environment

Universo molécula Ergodic/Interactivity/Participation Javascript Multilingual or Non-English

Reconstructing Mayakovsky Database Documentary Games Hypertext Text Movie Video

Up Against the Screen Mother Fuckers Audio Cave Critical/Political/Philosophical Hacktivist Non-Interactive Video

Senghor on the Rocks Locative Multilingual or Non-English Network Forms Place

V: Vniverse Collaboration Shockwave Textual Instrument Visual Poetry or Narrative

a show of hands Critical/Political/Philosophical Gender/Race/Sexuality Hypertext Generative

WhereAbouts Animation/Kinetic Ergodic/Interactivity/Participation Shockwave

Tierra de extracción Collaboration Hypertext Multilingual or Non-English Shockwave

The Unknown Collaboration Documentary Hypertext Parody/Satire

Tabela II – Hibridismo das obras inseridas nas categorias Narrative e Poetry.

Ambos os volumes prevêem a existência de uma categoria intitulada Visual Poetry and Narrative. No

segundo volume, onde esta categoria abarca dezasseis obras, ela surge definida da seguinte forma:

“A poetic or narrative work in which the visual component takes a primary role.” Entre as obras

pertencentes a esta categoria está Endemic Battle Collage (1986), Slippingglimpse (2007) e V: Vniverse

(2006), também inseridas na categoria Poetry. A obra Inanimate Alice-Episode 4 (2008), que surge

incluída na categoria Narrative, é também inserida em Visual Poetry and Narrative.

A alteração na configuração das Keywords ilustra o processo evolutivo da literatura electrónica entre

2006 e 2011. Como foi possível verificar, o desaparecimento, transferência ou adição de uma nova

categoria é muitas vezes provocado pela introdução de novo software na produção de obras20.

20 Veja-se o caso do desaparecimento das categorias Storyspace, Quicktime, HTML/DHTML, VRML, TADS e Inform e a inclusão das categorias Augmented Reality, Ergodic/Interactivity/Participation, Virtual Environment ou Retro.

21

Entre 2006 e 2011, a colecção da ELO sofreu um número significativo de alterações que evidencia

a natureza volátil desta forma literária. A colecção da ELO é um espaço onde estas transformações

podem tornar-se observáveis.

A hibridez é uma característica inerente a grande parte das obras de literatura electrónica. Esta

hibridez neutraliza qualquer tentativa de produzir uma categorização fechada. É neste contexto que

o antigo debate sobre o conceito de narrativa é reavivado pela literatura electrónica e devolvido aos

estudos literários. A narrativa não está apenas limitada ao romance, nem pode ser circunscrita a

uma única definição. Ela tem sido estudada dentro de várias disciplinas, desde a teoria da literatura

até aos estudos performativos. Um dos nomes que surge inevitavelmente associado à narratologia

ou ao estudo da narrativa é Gérard Genette. Na conclusão de Narrative Discourse (1983), este autor

tece o seguinte comentário sobre a sua própria obra:

This arsenal, like any other, will inevitably be out of date before many years have passed,

and all the more quickly the more seriously it is taken, that is, debated, tested, and revised

with time. One of the characteristics of what we can call scientific effort is that it knows itself

to be essentially decaying and doomed to die out: a wholly negative trait, certainly, and one

rather melancholy to reflect on for the "literary" mind, always inclined to count on some

posthumous glory (…). (Genette, 1983: 263)

Em Cybertext Poetics: The Critical Landscape of New Media Literary Theory (2012) Markku Eskelinen

refere-se a este carácter mutável dos conceitos e categorias dentro dos estudos literários. Tal como

Genette, Eskelinen acredita que nenhuma teoria é definitiva e que todas as teorias devem ser

desafiadas (4). Consciente que a história da literatura é constituída por uma cadeia de paradigmas,

Eskelinen pretende revisitar alguns deles analisando-os sob uma nova perspectiva21. Para tal, centra

a sua atenção na definição de vocábulos sinuosos para os estudos literários. Este é o caso do termo

“narrativa”.

Em Avatars of Story (2006), Marie-Laure Ryan referiu que existem várias abordagens à narrativa

digital. A abordagem expansionista vê a narrativa como um conceito mutável, que difere de cultura

para cultura e que evolui de acordo com as inovações tecnológicas. Já a abordagem metafórica procura

inspiração em conceitos da narratologia para desenhar e promover aplicações que não são

originalmente criadas para contar histórias. Sobre a metáfora de “storytelling” que visa tornar o

computador num contador de histórias, Ryan sublinha o seguinte: “The storytelling metaphor

provides an antidote to the cold indifference, rigid determinism, and unbending logic of the

21 Eskelinen efectua uma reformulação da narratologia através do arsenal crítico criado pela narratologia clássica e pós-clássica, ludologia e pela teoria cibertextual.

22

computer by giving a human face to the machine – the face of compassionate computing.” (Ryan,

2008: XIV). Ao ser adoptado para executar uma actividade milenar como o acto de contar histórias,

o computador abandona a sua faceta de instrumento meramente utilitário e passa a ser uma

ferramenta artística que possibilita a criação de novos textos. No entanto, a introdução destes no

“horizonte literário” (Hayles) ainda não se encontra finalizada. Markku Eskelinen considera que

existem textos ergódicos (ou cibertextos) cuja abordagem é permanentemente adiada pelos estudos

literários por ausência de instrumentos de análise adequados. O adjectivo “ergódico” foi

introduzido no campo dos estudos literários por Espen Aarseth para descrever todos os textos

(impressos ou digitais) que exigem do leitor um “esforço não-trivial” para proceder à sua leitura.

Isto significa que o leitor tem de levar a cabo um conjunto de escolhas que alteram a configuração

do texto. Sem este movimento selectivo, a leitura de um texto ergódico não tem lugar. Todavia, o

conjunto de escolhas que o leitor tem de levar a cabo parece consumir a sua atenção. Ao instituir

um conflito entre camadas ergódicas e narrativas, estes textos dificultam uma abordagem baseada

na sucessão de eventos, na existência de um narrador ou na lógica causa e efeito. No entanto,

Eskelinen afirma que é possível combinar estas duas camadas: “We already know that the ergodic

side can coexist and be combined with traditional text types (argument, description and narrative)”

(88). Aarseth distingue três tipos de discurso: ergódico, narrativo e descritivo. Segundo Eskelinen,

um jogo de computador pode ser ergódico (sucessão forçada de eventos) e descritivo (os ícones

no ecrã). Já as narrativas têm dois níveis de discurso (narração e descrição) e as enciclopédias e

manuais de utilizador têm dois discursos (ergódico e descritivo). Quanto a Afternoon: a story

(publicada em 1990 e considerada frequentemente como a primeira hiperficção electrónica) alcança

os três níveis. Para Eskelinen, isto é uma prova que o nível de discurso ergódico pode coexistir

com outros níveis de discurso mas só consegue sobreviver sozinho fora da literatura e em jogos

com um carácter representacional (idem.).

Eskelinen defende que a concepção de texto como um todo continua a ser um entrave à aceitação

de novos objectos textuais22. Tal como foi referido no início deste primeiro capítulo, a emergência

de novos tipos de textos23 força os limites do conceito de literatura. No caso dos textos produzidos

através de um computador, existem algumas características que são exacerbadas. Ryan refere-se

sobretudo à interactividade. É normalmente defendido que, ao ser catalisada, esta característica

ofusca a percepção de uma narrativa. Concentrado numa cadeia de escolhas que têm de ser levadas

22 Ryan refere-se ao texto electrónico como uma massa indefinida e não como um objecto discreto. Sendo assim ela refere que “não é necessário ler a totalidade do texto” (Ryan, 2001: 47). 23 Scott Rettberg identificou os seguintes (novos) textos na área da literatura digital: “hypertext fiction (both early works published on CD and published on the Web), literary text installations and CAVE works, ludic works that involve the conventions of games, kinetic poetry, interactive fiction, interactive drama, email narrative, visual poetry and works that reference the concrete poetry tradition, works that harvest and integrate texts from the web, poetry generators, a locative narrative, and works that emphasize aspects of user interaction” (Rettberg, 2013: 25).

23

a cabo para percorrer o texto, o leitor é frequentemente localizado num limbo entre a imersão na

narrativa e a manipulação do objecto. Para Ryan, isto não significa que a narratologia deva ser

abandonada:

I regard narratology as an unfinished project, and if classical narratology fails the test of

interactive textuality, this does not necessarily mean that interactive textuality fails the test

of narrativity. It rather means that narratology must expand beyond its original

territory.(…) the development of a digital narratology will be a long-term collaborative

project, and I can only sketch here what I consider to be its most urgent concerns. (Ryan,

2008: 98)

Face à emergência de novos tipos de texto e novas tecnologias de escrita e leitura, Eskelinen

constata igualmente que existe a necessidade de expandir a acção da narratologia mas não deixa de

afirmar que este processo tem vindo a ser adiado por inúmeros autores24. O modelo de análise

proposto por Eskelinen permite reconhecer uma nova fase na narratologia, o que reforça a noção

que os conceitos criados dentro dos estudos literários estão em permanente mutação.

Markku Eskelinen abre caminho para a introdução de diversos tipos de textos até agora

considerados como marginais por ausência de instrumentos críticos de análise adequados.

Eskelinen frisa que o contributo da ficção hipertextual para as várias narratologias tem sido

ignorado e que este pode ajudar a inserir também textos experimentais impressos. No estudo Digital

Fictions: Storytelling in a Material World (2000), Sarah Sloane referiu que a ficção digital tem a

propriedade de “desnaturalizar a arte de contar histórias” (9). Sloane viu na chegada das ficções

digitais uma oportunidade para a revisão de conceitos e categorias da tradição impressa. Sendo

assim, elas representavam não só instrumentos textuais, mas também críticos e pedagógicos. A

ficção digital permitiria ver a literatura através de novas lentes:

Digital fictions force us to consider the rhetorical triangle, narrative theories (especially

reader-response theories and semiotic models of reading and writing), and composition

theories (especially those that construe reading and writing as independent cognitive

processes) and pedagogies (especially those in creative writing classes). (Sloane, 2000: 9)

24 Eskelinen refere que a narratologia formalista clássica já havia sido esgotada no final dos anos oitenta e que o estudo da leitura, o significado e a interpretação foi considerado como uma alternativa teórica viável. No entanto, Eskelinen defende que o cibertexto não pode ser visto através da mesma lente ou através das “preferências orientadas para o contexto” propostas pela narratologia pós-clássica. Embora Eskelinen reconheça que a abordagem contextual poderá ser retomada, assim que os estudos literários conheçam melhor estes objectos, as obras cibertextuais exigem, por agora, o retorno de uma abordagem formal (115). A interpretação e análise de contexto serão abordados com maior profundidade no segundo capítulo desta tese.

24

Para Eskelinen, a ficção digital conjuga características ergódicas com características narrativas e por

isso mesmo pode estabelecer uma ponte entre ambos os extremos. A ficção pós-modernista, tal

como um vasto número de textos ergódicos, tem sido excluída da narratologia. Eskelinen considera

que, sem integrar estas ficções e outras obras de cariz experimental e ergódico no âmbito da

narratologia, a abordagem a diversos tipos de textos25 torna-se impraticável:

Without first integrating postmodernist, Oulipian and other experimental narratives into

the narratological framework, to be later modified by cybertextual theory and empirical

counterexamples, we can’t reliably study the interplay between ergodic and narrative layers

and compare games and narratives. We can’t even compare print narratives with literary

narratives (i.e. literary narratives in any medium) with necessary precision. Hence a more

inclusive literary narratology (also with respect to other actual and possible narratologies

such as film narratology) should be constructed. (Eskelinen, 2012: 106)

Eskelinen invoca a narratologia de Genette porque considera que, graças à exploração do tempo

narrativo, existe espaço para acomodar novos textos. O modelo de Genette é centrado no texto

narrativo e não na história (112). Os parâmetros distinguidos por Genette (ordem, velocidade,

frequência, distância, focalização, tempo de narração, nível e pessoa) são facilmente identificáveis

mas, segundo Eskelinen, são também facilmente invalidados perante “narrativas experimentais

mais complexas” (112)26. Apesar de estas serem ignoradas por Genette, Eskelinen defende que as

categorias estipuladas por este autor têm um valor “descritivo e explicativo” que não deve ser

ignorado. Este autor sublinha que a narrativa é frequentemente confundida com história. Eskelinen

utiliza a seguinte definição de narrativa criada por Gerald Prince para frisar que o narrador é uma

componente necessária da narrativa: “[The] recounting (as product and process, object and act,

structure and saturation) of one or more real or fictitious events communicated by one, two or

several (more or less overt) narrators to one, two or several (more or less overt) narratees.” (2012,

Prince apud Eskelinen: 199). Tal como Prince, Eskelinen defende que uma narrativa necessita da

presença de uma entidade para transmitir uma história. Este argumento surge em reacção à

narratologia transmedial27 (Marie-Laure Ryan é um dos nomes citados) que muitas vezes subtrai

25 Eskelinen refere-se particularmente aos textos ergódicos que apresentam simultaneamente características literárias e lúdicas. Como, segundo Eskelinen, os textos ergódicos exigem frequentemente uma actividade física, exploratória ou configurativa por parte do leitor, tornando-se em híbridos entre literatura e jogo, o autor defende que a ludologia poderá ajudar a abordar este tipo de textos. 26 Eskelinen ambiciona incluir, não só textos digitais, mas também obras pós-modernistas no âmbito da narratologia. 27 David Herman descreve a narratologia transmedial da seguinte forma: “Transmedial narratology thus begins with the assumption that, although stories conveyed via different media share common features insofar as they are all instances of the narrative text type, storytelling practices are nonetheless inflected by the constraints and affordances

25

esta entidade para garantir uma maior compatibilidade entre média. Só que, para Eskelinen, é a

história, e não a narrativa, que pode ser transferida entre média sem recorrer à presença de um

narrador. A título de exemplo, os filmes podem contar histórias mas, ainda que exista a presença

de uma voice over, o filme não consegue narrá-las por inteiro. Poderíamos referir que na ficção escrita

não existem apenas momentos de narração, mas também momentos descritivos ou de diálogo entre

personagens. No entanto, no filme é a interacção entre personagens que formaliza uma história

através de uma representação directa dos eventos. No livro, isto só é possível nos momentos em

que o diálogo entre personagens substitua a narração ou descrição. Na literatura electrónica o leitor

pode ser apresentado a uma narração simultânea ou em tempo real. Como veremos ao longo desta

tese, o conflito que é frequentemente apontado entre imersão e interactividade está directamente

relacionado com a noção de narrativa. Acontece que, como foi possível constatar neste primeiro

subcapítulo, a definição de narrativa (ou de literatura, ou de literário) não é uma definição

circunscrita mas em constante expansão. Para além de não podermos contar com uma definição

específica de narrativa, será preciso ter em conta o processo de criação literária, o qual não é sempre

efectuado por um nome. Os textos teóricos dedicados à literatura electrónica eram frequentemente

dedicados à insurgência face ao papel do autor através de uma maior participação configurativa e

exploratória por parte do leitor. Esta contribuição do leitor era promovida pela convicção que o

computador oferecia uma maior interactividade (e vice versa). Em seguida, para além de apresentar

alguma formas de transmitir uma história, analisarei o papel do autor e a noção de criatividade e

originalidade na literatura electrónica.

associated with a given semiotic environment. Sets of constraints and affordances interact in multimodal storytelling, or forms of narration that recruit from more than one semiotic channel to evoke storyworlds” (Herman, 2013: 107).

26

“Remembrance of songs sung”

L'écriture est précisément ce compromis entre une liberté et un

souvenir, elle est cette liberté souvenante qui n'est liberté que

dans le geste du choix, mais déjà plus dans sa durée.

Roland Barthes, Le degré zéro de l'écriture.

Num período anterior ao alfabeto e à escrita, as histórias eram transmitidas oralmente perante uma

audiência. A comunicação era fugaz e efémera porque não existia um registo físico da palavra. Com

o intuito de perceber a nossa cultura para além do universo tipográfico, Walter J. Ong centrou-se

numa era onde a comunicação era fundamentalmente oral. Na introdução ao estudo intitulado

Orality and Literacy: the technologizing of the word (1982) Ong recorda o tempo em que a palavra não

estava circunscrita a um espaço, listada em dicionários, dissecada num laboratório ou prescrita por

livros de estilo. Este era um mundo onde a palavra era um som único e irrepetível e não um

fenómeno passível de ser estudado. Um poeta oral não tinha como base o texto escrito. Para contar

uma história, ele partia dos materiais inscritos na sua memória. Isto significa que a cada audiência

era apresentada uma versão dessa história. Segundo Albert B. Lord, o acesso à literacia corrompia

o trabalho dos poetas orais (1982, Lord apud Ong: 58). O texto tornava-se no “controlador da

narrativa” o que alterava irremediavelmente os processos de composição. O poeta oral tinha a

palavra escrita como adjuvante. Este havia sido incapacitado de elaborar a actividade intitulada

remembrance of songs sung28 (1982, Peabody apud Ong: 58). No seu texto sobre o contador de histórias,

Walter Benjamin refere-se igualmente à memória como o material de trabalho da tradição oral.

Contudo, o romance depende igualmente da memória. Segundo Benjamin, o autor de romances

efectua uma “relembrança perpetuadora” de uma história. Já o contador de histórias baseia-se em

“reminiscências fugazes” de várias ocorrências difusas (Benjamin, 2007: 118). Se na tradição oral o

conhecimento era transmitido como um legado depositado nas mãos do aprendiz pelo seu mestre,

na era da escrita havia a possibilidade de rever29 ou regressar a um local onde o conhecimento havia

28 Peabody, citado por Ong, referiu o seguinte: ‘Song is the remembrance of songs sung’ (Ong, 1982: 143). Ong explica esta expressão desta forma: “The singer is not conveying ‘information’ in our ordinary sense of ‘a pipeline transfer’ of data from singer to listener. Basically, the singer is remembering in a curiously public way—remembering not a memorized text, for there is no such thing, nor any verbatim succession of words, but the themes and formulas that he has heard other singers sing. He remembers these always differently, as rhapsodized or stitched together in his own way on this particular occasion for this particular audience” (Ong, 1982: 143). 29 Ong adopta o termo “backward scanning” para descrever esta capacidade trazida pela escrita. Se no discurso oral a correcção de algo dito era “contraproducente” fazendo com que o ouvinte perdesse a atenção ou a conf iança no

27

sido armazenado. A comunicação deixou de ser um evento perdido no tempo para se tornar num

registo de algo dito no passado. De facto, ao transferir o som para o espaço, a escrita permitiu que

a palavra se tornasse num fenómeno observável. Ong defende que a escrita permitiu ao ser humano

a investigação abstracta, sequencial, classificatória e explicativa de fenómenos (8).

No seu estudo, Ong defende que a palavra “texto” está etimologicamente ligada à palavra “tecer”

e que este termo parece ter mais em comum com a tradição oral do que com literatura, a qual se

encontra ligada à palavra “letra” ou “litera” (13). Já Sloane detecta uma ligação umbilical entre a

tradição oral e as ficções digitais:

While clearly tied to their paper-based predecessor, the novel and the short story, the quality

of digital fiction’s rhetoric is, in some ways, more like speech than writing. Today’s digital

fictions remind me far more of myths and epics and far less of the depth and complexity

of most American and British literature. That is, the experience of reading digital fiction is

more like listening to those oral performances that Walter Ong (1982) describes as

aggregative, associative, and formulaic, and far less like reading the carefully laid

groundwork of any novel by, say, Jane Austen. (Sloane, 2000: 23)

Para Sloane, a ficção digital efectua uma reforma da antiga arte de contar histórias (7). De acordo

com Sloane, a criação de ficções digitais, tal como a composição de poemas orais, depende de um

conjunto de fórmulas30. Contudo, para Sloane, as ficções digitais distinguem-se da performance

oral porque não estão inscritas no mesmo contexto do contador de histórias. Sloane refere-se

particularmente a ficções interactivas, ficções hipertextuais, MUDs/MOOs/MUSHes ou a jogos

de computador como Riven e Myst. Porém, com a generalização da internet e do computador

pessoal, bem como novos programas de software, a ficção digital não pode ser resumida a estas

formas. Como será demonstrado mais à frente neste subcapítulo, existem agora outros tipos de

textos que ligam o contador de histórias à sua audiência.

Os poetas orais recorriam apenas à memória para tecer uma história. Todavia, eles nunca contavam

uma história ipsis verbis. Um conto era transmitido sempre de forma diferente, muitas vezes

obedecendo aos desafios da audiência. Para além da transmissão de conhecimento, eram

apresentados provérbios e enigmas de forma a envolver a audiência numa discussão verbal e

intelectual. A originalidade das narrativas dependia assim da adesão dos ouvintes. Segundo Ong,

orador, com a escrita era possível aperfeiçoar as composições e anular inconsistências (104). A escrita viria a possibilitar igualmente uma maior reflexão, não só sobre o que era contado, mas sobre o próprio texto. 30 Sloane não deixa claro a que fórmulas se refere mas podemos aqui acrescentar que a ficção digital, mais propriamente a ficção interactiva, parte da linguagem de programação e depende da inserção de comandos. A ficção interactiva e alguns jogos de computador dependem também das funções das personagens descritas por Vladimir Propp em Morfologia do conto (1928).

28

destes era esperado que respondessem com um provérbio ou uma adivinha contraditória (44). Ao

contrário do texto literário, mais propriamente do romance, com uma componente

fundamentalmente introspectiva, a performance do orador ou do contador de histórias teria de

envolver a audiência num assunto relativo à comunidade31. Como tal, a audiência era englobada na

narrativa, podendo participar na performance executada pelo poeta oral. Ong adiciona que, com a

introdução da escrita, esta interacção com a audiência foi substituída por um acto introspectivo:

Primary orality fosters personality structures that in certain ways are more communal and

externalized, and less introspective than those common among literates. Oral

communication unites people in groups. Writing and reading are solitary activities that

throw the psyche back on itself. (Ong, 1982: 69)

A individualização do processo de criação e recepção de uma narrativa é considerado por Ong

umas das principais mudanças trazidas pela escrita. Ong refere que a tecnologia electrónica32 terá

produzido uma “segunda oralidade”, partilhando algumas características com a sua antecessora:

“This new orality has striking resemblances to the old in its participatory mystique, its fostering of

a communal sense, its concentration on the present moment and even its use of formulas.” (136).

No entanto, esta segunda oralidade estava irreversivelmente marcada pela introdução da tipografia.

Tal como a oralidade primária, ela gera um “forte sentido de grupo”. Porém, este grupo é apelidado

por Ong de “aldeia global” (Marshall McLuhan). Numa cultura oral, existe uma lógica de grupo

porque esta é necessária à sobrevivência da comunidade. Para Ong, a oralidade criada pelos novos

média é na verdade auto-consciente e programada (133). Ong salienta que esta tem como objectivo

alcançar a mesma espontaneidade que a cultura oral. Esta necessidade de reaver parte desse passado

parece ter permanecido inscrita na nossa cultura. Apesar das tecnologias de inscrição entretanto

introduzidas, continua a existir um deslumbre com a tradição oral. Enclausurada no passado, mas

acedida como algo intemporal, ela mantém-se eternamente em suspenso, como algo inalcançável

mas que é simultaneamente parte de nós. A literatura oral é como uma história corrompida pelo

31 Walter Benjamin associa a emergência do romance ao fim da tradição oral: “Das früheste Anzeichen eines Prozesses, an dessen Abschluß der Niedergang der Erzählung steht, ist das Aufkommen des Romans zu Beginn der Neuzeit” [O primeiro indício de um processo, cujo desfecho é representado pelo declínio do acto de contar histórias, é a emergência do romance no início da modernidade] (107). Segundo Benjamin, a principal diferença entre ambas as formas é a dependência do romance em relação ao livro: “Was den Roman von der Erzählung (und vom Epischen im engeren Sinne) trennt, ist sein wesentliches Angewiesensein auf das Buch” (idem.). [O que separa o romance do acto de contar histórias (e do épico num sentido restrito) é a sua dependência intrínseca do livro]. Para Benjamin, devido à impossibilidade de comunicação entre autor e leitor, o romance condenou aquele à solidão e isolamento: “Der Romancier hat sich abgeschieden. Die Geburtskammer des Romans ist das Individuum in seiner Einsamkeit” [O romancista ausentou-se. Os aposentos onde nasce o romance são o indivíduo na sua solidão] (idem.). 32 Ong refere-se aqui ao telefone, à rádio e televisão.

29

tempo. Permanentemente em estado bruto, ela pode ser esculpida por várias mãos produzindo um

objecto único a cada intervenção.

Com o intuito de conhecer melhor as culturas orais e preservar algum do seu património, nasceu

um projecto em linha intitulado The Pathways Project33, que explora a ligação entre a tradição oral e

as formas de expressão proporcionadas pelas novas tecnologias. O sítio deste projecto oferece ao

visitante a oportunidade de aceder a um museu de arte verbal e de contribuir para o crescimento

deste projecto graças à adição de novos materiais. O projecto estabelece igualmente uma relação

com manifestações contemporâneas de arte oral. Tal como os poetas orais faziam um

reaproveitamento de materiais tradicionais, partilhando o resultado com a audiência, existe hoje

um conjunto de formas de arte que partem do mesmo princípio de reformulação. A spoken word

poetry, o rap, djeing ou o vjeing são um exemplo disso. Embora hoje exista a possibilidade de serem

filmadas e distribuídas de diversas formas, estas performances são sobretudo executadas para uma

audiência. Muitas delas têm uma preocupação social e referem-se a assuntos da comunidade.

A World Wide Web alterou a dinâmica e a natureza da comunicação tornando-a instantânea. Na

verdade, a comunidade está à distância de um dígito. Contudo, a natureza dessa comunidade

alterou-se. As histórias já não são unicamente partilhadas com a promessa de difusão de

conhecimento ou de sabedoria popular. Já não existe uma fogueira e o céu estrelado para iluminar

o encontro em redor do contador de histórias depois de uma jornada de trabalho. Também não

existe uma plateia atenta ao verso e à voz que interrompem o silêncio cénico. A comunidade é hoje

especializada e reunida em fóruns criados em torno de um tema específico. Muitas das vezes a

audiência é uma lista de contactos ou o destino de comentários sucintos e fugazes. O poeta ou o

contador de histórias, tal como a sua comunidade, mudou. Ao longo da história da literatura ele

tornou-se em narrador, em autor, romancista e, mais recentemente, em blogger. A World Wide

Web trouxe consigo novas formas de expressão. Porém, as histórias divididas com a audiência nem

sempre são centradas na comunidade. Elas são muitas vezes histórias pessoais extraídas do

quotidiano. Para além da abordagem expansionista e metafórica anteriormente descritas nesta tese,

Marie-Laure Ryan refere que existe uma abordagem prática à narrativa. Esta tem em conta “a

importância das histórias na vida das pessoas” e vê a WWW como um veículo para a transmissão

de histórias, estejam elas publicadas em blogs, em chatrooms ou até num anúncio publicitário.

Segundo Ryan, o principal objectivo desta abordagem é atentar no papel das narrativas digitais na

educação; preservar a memória colectiva e construir um arquivo da história oral na net.

Actualmente existem inúmeros veículos de publicação que concorrem com a função editorial.

Porém, os vocábulos leitor, autor e editor perduram. Estes não foram afastados pelas novas

33 Este projecto poderá ser conhecido em http://pathwaysproject.org/.

30

tecnologias mas as suas funções foram alteradas. É neste contexto que surge o termo wreader

(writer+reader). Este contraria a imagem do leitor que aguarda as directrizes do narrador. Ele é o

leitor tornado em autor porque constrói o texto à medida que o lê. O wreader incorporava

inicialmente o mito do leitor livre da hegemonia autoral. No entanto, ele agora também representa

a comunidade de nativos digitais que lê e publica textos através dos seus ecrãs.

Na WWW é possível conhecer novas formas de escrita e publicação que colocam em causa o papel

clássico do leitor, autor e editor. Para além da publicação de breves comentários sobre o quotidiano

ou partilha instantânea de notícias ou curiosidades, a página Facebook também oferece vários

exemplos de novos tipos de narrativas/histórias. Um dos exemplos são os microcontos, ou

pequenos textos, que são publicados usando os recursos do Facebook. Após a inserção de um

texto sob a forma de comentário, os leitores podem responder, partilhar ou atribuir um “like”,

interagindo assim com o autor. Na página Facebook, podem ser encontradas vários perfis

dedicados a esta actividade. A página Flash-Fiction34 declara que o seu propósito é oferecer aos

escritores uma frase inicial de onde poderá partir a sua história. A página portuguesa Micro Contos35

tem mais de 18.000 subscritores e descreve-se como um “Contador de pequenas histórias”. As

pequenas narrativas introduzidas pelos escrileitores vêm normalmente acompanhadas de fotografias

alusivas ao texto.

No volume II da ELO Collection é possível encontrar uma obra que utiliza o Facebook como

ferramenta criativa. The Fugue Book (2008) utiliza a informação pessoal contida nesta página e o e-

mail do leitor para criar uma narrativa acerca de questões de privacidade e identidade. A caixa de

correio do leitor começa por ser invadido por e-mails de diferentes personagens que simulam uma

relação de amizade com este, através da informação recolhida acerca dos seus amigos no Facebook.

Esta obra é um exercício irónico sobre questões de identidade, que usa plataformas como wikis,

fóruns, histórias eróticas, blogs e outros media sociais para formar uma narrativa. De acordo com

o autor, o leitor poderá fugir de tudo mas não poderá fugir de si próprio: “The Fugue fa participar

els teus amics en la ficció. Els teus amics no es comportaran igual que ho fan a The Fugue (o potser

sí, encara que no t'ho sembli). Si vols, podràs fugir d'ells. Fins i tot podràs fugir de The Fugue, però

no podràs fugir de tu mateix”36.

34 A página em questão pode ser consultada em https://www.facebook.com/pages/Flash-Fiction-Chronicles/111807932198001?fref=ts. Existe uma outra página onde é explicada a origem do termo https://www.facebook.com/pages/Flash-fiction/107726225923884?fref=ts&rf=177360282408549#. 35 A página pode ser consultada em https://www.facebook.com/microcontos. 36 “The Fugue faz com que os teus amigos participem na ficção. Os teus amigos podem não comportar-se como o fazem no The Fugue (ou talvez possa assim parecer). Se tu quiseres, podes evitá-los. Tu podes até escapar do The Fugue, mas não podes escapar de ti mesmo” [tradução minha]. Esta obra pode ser consultada no segundo volume da ELO em: http://collection.eliterature.org/2/works/ferret_fugue_book.html.

31

Alexander Bryan afirma que existe uma forma de “digital storytelling” que terá surgido com as

primeiras experiências com o computador e que conta já com duas gerações. Segundo Bryan, a

história desta prática poderá começar de duas formas:

To the extent one considers games to contain stories, we could begin with a game called

Spacewar, an early storytelling engine that dates back to the 1960s. If we think of world-

building as storytelling, the first virtual worlds in the early internet age—all text based!—

appeared in the late 1970s, with the first MUDs (Multi-User Dimensions or Multi-User

Dungeons). (Bryan, 2011: 17)

Para além do blog, do Twitter ou do Facebook, Bryan refere-se às Wikis como um instrumento de

escrita colaborativa. Para este autor, as Wikis podem tomar a forma do “cadáver esquisito”. Este é

o jogo surrealista durante o qual cada jogador acrescenta uma frase. O resultado é um texto

construído através da intervenção de vários autores.

Mark C. Marino efectuou uma close reading do romance exquisite_code (2010), uma obra que, como o

próprio nome indica, segue o processo de composição do “cadáver esquisito”. Durante cinco dias,

um grupo de escritores senta-se a uma mesa para escrever durante oito horas seguidas. Uma

audiência assiste à escrita deste romance. Este factor torna esta actividade numa performance bem

como anula a fixidez normalmente associada à escrita. A obra contraria a noção de criação e leitura

de um texto como uma actividade solitária levada a cabo exclusivamente por uma entidade:

“exquisite_code disrupts the romantic notion of the single-authored text” (285). Durante a escrita

desta obra existe um narrador (proctor37) que lê em voz alta o resultado da experiência. Tal como foi

mencionado anteriormente, o orador da tradição oral propunha enigmas à audiência, pelo que a

sua performance contava com a intervenção desta. Aos espectadores que assistem à construção de

exquisite_code está vedada a participação na escrita deste romance.

Marino informa que é possível obter uma versão impressa de exquisite_code. A experiência de leitura

desta obra é descrita da seguinte forma: “Reading the text, then, becomes a game of trying to detect

the signatures of the particular collaborators in the mash, as evidenced by repeating themes, diction,

and punctuation, as well as deducing the process, how each passage grew out of the dynamics of

the group and the randomly selected prompts” (285). A obra é objecto de processos

computacionais como a cadeia de código de Markov, uma adaptação algorítmica dos cut ups de

William Burroughs e SMSs. Este romance pode ser impresso on demand. Nele vêm incluídas as

37 Este é também aquele que determina que método de programação deve ser seguido pelos escritores. Para além de funcionar como um sistema autoral, Marino refere que este é uma metonímia do código usado para construir exquisit_code.

32

linhas de código que foram produzidas durante a performance de exquisite_code. Para além de ler o

resultado da experiência, o leitor é também convidado a interpretar o código. Toda a performance

foi também filmada, pelo que o leitor poderá também visualizar o resultado desta experiência.

exquisite_code junta várias formas de storytelling e apresenta a performance, escrita e programação

como actividades literárias. Esta obra também permite reconhecer que a forma de produzir ficção

não se limita ao romance. Joseph Tabbi refere-se a blogs e outros meios como novos objectos de

conhecimento. Para este autor a narrativa já não é a única forma de ficção: “turn away from

introspection, meaning, and agency, while bidding fair to activate a new popular audience through

the sustained use of blogs, networks, and a whole range of media affordances that become,

themselves, objects of knowledge” (Tabbi, 2010: 4).

O podcast é outra das formas de narrar uma história descritas por Bryan. Para este autor, esta forma

de publicação reúne vários tipos de média (ou práticas de storytelling):

Listening to a voice or voices tell a story without other media is an ancient human

experience, hearkening back to the oral tradition. (…) the podcaster’s voice resembles other

speaking voices familiar to audiences of different ages and media experience: the radio

announcer, the newsreel narrator, the TV anchor, even the ham radio operator. Further,

we may also know that telling voice from audiobooks (formerly “books on tape”). We

already knew aural performance before downloading the first mp3 into RSS or iTunes. In

this way, podcasts are deeply historical, even nostalgic. (Bryan, 2011: 77)

A categoria Web Video centra-se na imagem em movimento e é resumida por Bryan aos vídeos

publicados no YouTube. Aqui, o utilizador pode manter um canal próprio e construir um

reportório. O autor dos vídeos pode ainda entrar em contacto com a audiência através da parede

de comentários.

Comum a todas estas formas de publicação ou práticas de storytelling é o facto de deixar de existir o

editor como intermediário entre o leitor e o autor. No entanto, para além da aposta no formato

digital - que com todas as suas limitações (preço, acessibilidade e questões de propriedade)

actualmente surge publicado sob diferentes nomenclaturas e formatos, como por exemplo o Kindle

ou IBooks - existem várias empresas que começam a investir na auto-publicação.

Walter Benjamin referiu no seu texto sobre a obra de arte na época da sua possibilidade de

reprodução técnica que “o leitor está a todo o momento preparado para se tornar um escritor”.

(Benjamin, 2006: 227). Benjamin falava sobre artigos de opinião publicados em jornais. Porém,

hoje em dia é possível assistir a uma proliferação de títulos impossível de acompanhar. Muitos

destes permanecem para sempre incógnitos ou lidos por um grupo restrito de leitores. A WWW é

33

uma rede de páginas em mutação constante. Isto confere aos seus conteúdos um carácter

transiente. Tal como as palavras dos poetas orais, que permanecem suspensas no tempo,

dependentes de uma promessa de resgate que nem sempre se realiza, os textos publicados pelos

wreaders desaparecem no meio do ruído provocado pelo excesso de informação. Sendo assim,

muitos dos autores em meio digital acabam por publicar para si próprios e não para uma audiência.

Sem esta, os textos não são reanimados e acabam por cair no esquecimento. Tal como a poesia

oral, estes textos apenas sobrevivem através de uma constante “relembrança”.

34

Quem conta um conto acrescenta um ponto

Are they one's own, or emanations from the other, from the

precursor?

Harold Bloom, The Anxiety of Influence: A Theory of Poetry

(…) the real author of the narrative is not only he who tells it,

but also, and at times even more, he who hears it. And who not

necessarily the one it is addressed to: there are always people off

to the side.

Gérard Genette, Narrative Discourse

What does any writer do but choose, edit and rearrange material

at his disposal?

William Burroughs, “The Future of the Novel”

As composições orais reunidas sob o nome de Homero chegaram até nós através da escrita. Sem

um registo físico, seria pouco provável que estas tivessem sobrevivido. Ao longo dos séculos, a

Ilíada e a Odisseia vieram a alcançar um estatuto normativo tendo influenciado amplamente a cultura

ocidental. Elas foram utilizadas como um exemplo dessa força que emerge do texto e que age sobre

a imaginação do leitor, um efeito que apenas um excelente poeta poderia produzir. Homero foi

tratado como o estandarte da originalidade e criatividade, fazendo com que gerações de poetas

tenham tentado alcançar a mesma excelência das suas composições poéticas. No entanto, Milman

Parry, cujo trabalho é citado por Walter J. Ong, terá comprovado que as composições atribuídas a

Homero seriam afinal resultado de um conjunto de “materiais pré-fabricados”, reunidos de acordo

com fórmulas usadas por todos os poetas orais:

Careful study of the sort Milman Parry was doing showed that he [Homer] repeated

formula after formula. The meaning of the Greek term ‘rhapsodize’, rhapsōidein, ‘to stitch

song together’ (rhaptein, to stitch; ōide, song), became ominous: Homer stitched together

prefabricated materials. Instead of a creator, you had an assembly-line worker. (Ong, 1982:

22)

35

Contudo, ainda que Homero fizesse uso de temas ou frases tradicionais para construir uma

composição38, Ong chama a atenção para o facto de existir uma “originalidade narrativa”. Esta não

era encontrada na capacidade do enunciador criar novas histórias, mas na sua capacidade de gerir

a interacção com o público. A cada performance, a mesma história era apresentada de forma nova

e com novos elementos, adaptando-se à situação política vigente e criando “novos universos

conceptuais” (42). Mesmo fazendo uso das mesmas fórmulas e temas, estes eram ligados de forma

diferente, dependendo da “reacção da audiência, da disposição do poeta, da ocasião e de outros

factores psicológicos e sociais” (60). Ong refere que cada poeta também variava muitas vezes as

fórmulas e temas, reflectindo frequentemente as próprias idiossincrasias. Segundo Ong, o conceito

de originalidade seria muito diferente do contemporâneo: “Originality consists not in the

introduction of new materials but in fitting the traditional materials effectively into each individual,

unique situation and/or audience” (Ong, 1982: 60). Sendo assim, o poeta oral trabalharia como um

bricoleur, agregando materiais pré-existentes e tecendo as suas composições de forma improvisada39.

O conceito de bricolage foi considerado por Claude Lévi-Strauss como uma característica do

pensamento mitológico. O mito, segundo Lévi-Strauss uma das primeiras formas de narrativa, era

utilizado para explicar o mundo. Com a ausência da experimentação científica, o indivíduo criava

narrativas para explicar o desconhecido, o que criava a ilusão de entendê-lo (Lévi-Strauss, 2005: 6).

De acordo com Lévi-Strauss, o indivíduo faria um aproveitamento dos recursos ao seu dispor para

criar uma narrativa.

Suturar um texto

A forma como o poeta oral fazia o reaproveitamento de materiais para produzir uma nova história

é ilustrativa da forma como o cérebro humano gere a informação. Esta era uma preocupação

fundamental de um cientista referenciado como um dos precursores do conceito de hipertexto.

Vannevar Bush pretendia encontrar um sistema eficiente de organização para grandes quantidades

de dados. Para tal, baseou-se no funcionamento associativo do cérebro humano:

38 Em The Nature of Narrative (1966) Scholes e Kellogg referem que a figura de Homero poderá corresponder a dois criadores, ao intérprete e ao que registou as palavras (30). No mesmo livro, Scholes e Kellogg afirmam que o epíteto Homero se refere a uma tradição e não ao nome de uma única pessoa: “The breadth of knowledge and sympathy, the objectivity and accuracy of his representation of actual men and events, the sureness of both his piety and his satire are the achievements of an ancient Greek epic tradition named “Homer”, not of a single poet limited to his own observation and memory (Scholes and Kellogg, 1966: 24). 39 Lev Manovich defende que os objectos criados através dos novos média raramente são criados de raiz. Eles envolvem a selecção de partes construídas previamente, como por exemplo, plug ins, imagens ou ícones. A criação é assim substituída pela escolha de materiais através de um menu ou catálogo (Manovich, 2001: 124).

36

Our ineptitude in getting at the record is largely caused by the artificiality of systems of

indexing. When data of any sort are placed in storage, they are filed alphabetically or

numerically, and information is found (when it is) by tracing it down from subclass to

subclass. (…) The human mind does not work that way. It operates by association. With

one item in its grasp, it snaps instantly to the next that is suggested by the association of

thoughts, in accordance with some intricate web of trails carried by the cells of the brain.

(Bush, 1945)

Todavia, tal como Bush observa, o cérebro humano não armazena permanentemente a informação:

“trails that are not frequently followed are prone to fade, items are not fully permanent, memory

is transitory” (Bush, 1945). À medida que nova informação é recebida, o cérebro humano constrói

novos trilhos, acrescenta novos dados ou altera significativamente os dados já existentes. Na década

de quarenta, Bush projectou um dispositivo intitulado Memex40 que simulava o funcionamento do

cérebro humano mas que havia sido criado para superar esta instabilidade da memória. Vannevar

Bush descrevia este dispositivo da seguinte forma:

Selection by association, rather than by indexing, may yet be mechanized. One cannot hope

thus to equal the speed and flexibility with which the mind follows an associative trail, but

it should be possible to beat the mind decisively in regard to the permanence and clarity of

the items resurrected from storage. Consider a future device for individual use, which is a

sort of mechanized private file and library. It needs a name, and to coin one at random,

“memex” will do. A memex is a device in which an individual stores all his books, records,

and communications, and which is mechanized so that it may be consulted with exceeding

speed and flexibility. It is an enlarged intimate supplement to his memory. (idem.)

O Memex seria um dispositivo mecânico41 usado não só para pesquisa científica e académica, mas

também para armazenar ficheiros pessoais ou para construir uma biblioteca em microfilme. Ele

seria uma tecnologia que, tal como a escrita, poderia aumentar as capacidades humanas. O processo

de montagem levado a cabo pelo utilizador do Memex é reminiscente do processo de composição

de uma história levado a cabo pelo poeta oral. A tarefa de costurar ou tecer uma história agregando

materiais encontra um paralelo na seguinte descrição da organização associativa de informação: “a

provision whereby any item may be caused at will to select immediately and automatically another.

40 Tal como o poeta oral, o utilizador do Memex teria de recorrer a mnemónicas para evitar a consulta do livro de códigos que colocariam o Memex em funcionamento: “Frequently-used codes are mnemonic, so that he seldom consults his code book; but when he does, a single tap of a key projects it for his use” (Bush, 1945). 41 O Memex teria um funcionamento mecânico, pois era accionado através de alavancas. Já o funcionamento digital do computador oculta todas as operações que levam à emergência de um texto.

37

This is the essential feature of the memex. The process of tying two items together is the important

thing” (idem.). Além disso, Bush refere que os trilhos associativos poderão ser revisitados. A

possibilidade de rever o discurso foi uma característica introduzida pela escrita e é considerada

como uma das principais diferenças em relação à oralidade. Neste passo, Bush compara o Memex

a um livro:

Moreover, when numerous items have been thus joined together to form a trail, they can

be reviewed in turn, rapidly or slowly, by deflecting a lever like that used for turning the

pages of a book. It is exactly as though the physical items had been gathered together to

form a new book. It is more than this, for any item can be joined into numerous trails.

(idem.)

Apesar de o Memex introduzir um livro novo a cada intervenção do utilizador, ele permite ao leitor

rever os trilhos percorridos. Esta característica trazida pela escrita é inexistente em diversas obras

de literatura electrónica. Tomemos como exemplo o caso de The Jew's Daughter (2000) de Judd

Morrissey. Esta é uma narrativa recombinante cujo texto surge apresentado numa página em

branco. No entanto, à medida que o leitor coloca o cursor sobre a mancha gráfica, descobre que

existem palavras que desaparecem e dão lugar a outras. O texto reformula-se indefinidamente,

oferecendo novas possibilidades de significado - e, tal como o Memex, um novo texto a cada

intervenção - mas impossibilitando uma releitura. De certa forma, The Jew’s Daughter, embora conte

com um registo escrito, recupera o carácter volátil e efémero da comunicação oral.

O acesso e armazenamento de dados através de trilhos associativos encontram um paralelo na

estrutura ramificada da World Wide Web. Embora Vannevar Bush seja frequentemente citado

como o precursor do hipertexto, Paul Otlet já havia projectado, em 1934, uma rede de

computadores (ou “electric telescopes”) que permitiriam aos utilizadores armazenar, partilhar e

procurar documentos, antecipando assim o que viria a ser a World Wide Web. Juntamente com

Henri La Fontaine, Otlet ambicionava criar uma bibliografia de todo o conhecimento publicado

usando para isso uma base de dados de papel constituída por cartões (o que recorda o HyperCard).

Otlet previu igualmente a possibilidade de armazenamento electrónico para resolver o problema

de excesso de informação42.

42 A concretização do seu “mechanical, collective brain” e do seu projecto Mundaneum seria interrompida por cortes orçamentais. O local onde a pesquisa de Otlet decorria - agora o museu Mundaneaum, criado em sua homenagem – acabou por ser parcialmente destruído durante a ocupação nazi. Alex Wright, autor de um artigo sobre Paul Otlet, publicado no The New York Times em 2008, refere que Otlet havia previsto um sistema de hyperlinks mais inteligente do que o utilizado actualmente: “Whereas links on the Web today serve as a kind of mute bond between documents, Otlet envisioned links that carried meaning by, for example, annotating if particular documents agreed or disagreed with each other” (2008).

38

O Memex nunca chegou a ser construído mas veio a influenciar Theodor Holm Nelson43 na

conceptualização do projecto Xanadu. Durante a produção deste projecto - o qual nunca foi

acabado e acabou por ser suplantado pela World Wide Web, criada por Tim Berners-Lee - Ted

Nelson publicou um manuscrito intitulado Computer Lib/ Dream Machines44 (1974) onde define a

palavra hipertexto da seguinte forma: “Hypertext means forms of writing which branch or perform

on request; they are best presented on computer display screens. (…) Discrete, or chunk style,

hypertexts consist of separate pieces of text connected by links” (Nelson, 1974: 84). O hipertexto

seria um texto dividido em lexias45 interligadas de forma associativa (e não hierarquicamente,

através de números ou alfabeto) e cujo acesso era efectuado aleatoriamente. Algumas características

do hipertexto, nomeadamente a estrutura rizomática e fragmentária ou a aleatoriedade de acesso

marcaram profundamente a ficção digital. Porém, é nas hiperficções clássicas46 que as características

fundamentais do hipertexto têm uma maior expressão.

Em 2001, Rita Raley descrevia o funcionamento do hipertexto da seguinte forma: “hypertext works

by connection, assemblage, and combination--by connecting content blocks, phrases, phrase

regimes, nodes, computers, programs, and lines of code. It is not about signification but mapping:

not ordering, tracing, and fixing, but transmission, relay, and movement” (Raley, 2001). A

hiperficção Patchwork Girl (1995), construída através do programa Storyspace, apresenta uma

estrutura rizomática constituída por trilhos associativos que convidam o leitor a uma leitura

sincopada e exploratória. Cabe a este reconstruir a narrativa dispondo as várias lexias como quem

manuseia as peças de um puzzle. Na hiperficção Patchwork Girl a actividade de montagem47 é

43 Em Computer Lib/ Dream Machines (1974) Ted Nelson faz referência a Vannevar Bush: “In fact hypertexts were foreseen very clearly in 1945 by Vannevar Bush, Roosevelt’s science advisor” (Nelson, 1974: 84). 44 Este livro foi inicialmente publicado pelo próprio Ted Nelson. Embora o computador pessoal ainda não existisse, Computer Lib/ Dream Machines é considerado o primeiro livro acerca deste dispositivo. Neste livro, escrito à mão e à máquina, Nelson convida as pessoas a conhecerem este instrumento e a aprenderem programação. Para tal, oferecia esquemas e explicações sobre o seu funcionamento. O livro é constituído por duas capas (daí o título duplo) e pode ser acedido dos dois lados. Ambas as capas apresentam ao leitor duas partes do livro, uma parte técnica e uma parte conceptual. Na capa de Computer Lib, a qual se assemelha a um manifesto, está escrito “You can and must understand computers Now” e na capa de Dream machines, que parece extraída de um livro de banda desenhada, o leitor encontra o seguinte subtítulo: “New Freedoms through Computer Screens – a Minority Report”. 45 O termo “lexia” foi utilizado por Roland Barthes em S/Z (1974) para expressar o carácter fragmentário de qualquer texto e para a impossibilidade de conter a rede de significados que o sustém. As lexias seriam unidades de sentido que poderiam ajudar na abordagem de um texto plural. Estas poderiam ser frases, palavras ou o título da história (13-14). Este termo foi adoptado por George Landow para descrever os blocos de texto que constituem um hipertexto: “the individual lexia has looser, or less determining, bonds to other lexias from the same work (to use a terminology that now threatens to become obsolete), it also associates itself with text created by other authors. In fact, it associates with whatever text links to it” (Landow, 1992: 53). 46 Em Electronic Literature: New Horizons for the Literary (2008), N. Katherine Hayles situa as obras produzidas através do programa Storyspace num período clássico da literatura electrónica (7). O período clássico situa-se entre o final dos anos 80, altura em que é criada a primeira hiperficção electrónica intitulada afternoon, a story (escrita em 1987 e publicada em 1990) de Michael Joyce, até à generalização da Internet em meados dos anos 90. Esta distinção efectuada por Hayles serve aqui como ponto de referência. Porém, como temos vindo a demonstrar, a literatura electrónica começa num momento muito anterior a esta data. 47 Este termo terá sido igualmente usado na teoria do hipertexto porque, ao montar o texto, acreditava-se que o leitor/utilizador se tornava no seu co-autor. Sobejamente discutida, esta perspectiva tem vindo a ser abandonada.

39

exacerbada pelo facto de o leitor ser convidado a suturar as diversas partes do corpo que constituem

a rapariga de retalhos. O corpo desta rapariga representa o próprio hipertexto. A actividade de tecer

ou coser o texto, lembra o trabalho do poeta oral que costurava as suas histórias através dos

materiais colocados à sua disposição. Contudo, ao leitor (ou utilizador) não é dada a hipótese de

acrescentar lexias. A estrutura desta hiperficção permanece intocada. Embora o programa permita

acrescentar notas, estas não contribuem para a construção da narrativa e permanecem para sempre

como reflexões privadas inseridas pelo leitor.

Nos textos teóricos iniciais, as lexias de uma hiperficção são frequentemente comparadas a notas

de rodapé48. Se na cultura tipográfica estas têm a função de completar o texto ou um argumento,

na literatura electrónica elas foram a princípio utilizadas para sublinhar a sua índole transgressiva.

As lexias seriam notas de rodapé sem qualquer hierarquia entre si e independentes de um texto

central/ principal: “Hierarchies break down into chains of likenesses, the thing is not more present

than what the thing reminds you of; in this way you can slip out of one text into a footnoted text

and find yourself reading another text entirely, a text to which your original text is a footnote”

(Jackson, 1997). No programa Storyspace, a possibilidade de acrescentar notas foi inserida com o

intuito de oferecer ao leitor uma maior intervenção sobre o texto. As hiperficções electrónicas

nasceram do aproveitamento dos recursos tecnológicos para concretizar o texto em aberto,

fragmentário, rizomático e livre de uma sequência pré-determinada pelo autor. Estas características

seriam catalisadas pelo recurso à intervenção do leitor na montagem do texto. Alice Bell refere que

esta é uma falácia mantida na fase inicial da ficção hipertextual: “Overall, while hypertext fiction

does offer choice, the reader’s degree of control, which was envisaged by many first-wave theorists,

is inflated and readers are erroneously attributed with unrealistic powers in their actual capacity to

manipulate and operate within the text” (Bell, 2010: 12). Ao passo que os primeiros teóricos

dedicados ao estudo e produção de ficções hipertextuais admitem que a multilinearidade da ficção

hipertextual provoca “confusão e desorientação” (o que em última análise destrói por completo o

suposto poder oferecido ao leitor), eles referem que a ambiguidade poderá ser contornada pela

continuação da leitura “até que as suas curiosidades pessoais tenham sido satisfeitas” (14). Ao

mesmo tempo admitem que os leitores necessitam de uma “resolução narrativa satisfatória”

(idem.). Para Bell, instituir uma análise baseada numa coerência mínima ou numa cronologia linear

de eventos subverte o carácter multilinear do texto hipertextual (idem.). Bell refere que na segunda

Como será demonstrado mais à frente nesta tese, quando o leitor acede às diferentes lexias não está a colaborar com o autor numa actividade criativa, mas a colocar em marcha um mecanismo criado por este. 48 Ted Nelson havia descrito o hipertexto como uma sequência de notas de rodapé: “In ordinary writing the author may break sequence for footnotes or insets, but the use of print on paper makes some basic sequence essential. The computer display screen, however, permits footnotes on footnotes, and pathways of any structure the author wants to create” (Nelson, 1974: 84).

40

fase da ficção hipertextual, a questão da participação do leitor na produção do texto é revista da

seguinte forma: “the structure of the text, and the reader’s role within it, represent a means of

prohibiting her or him from fully engaging with the narratives that hypertext novels contain” (15).

Patchwork Girl é um híbrido constituído por vários discursos. Baseada na obra Frankenstein (1831)

de Mary Shelley, esta hiperficção deixa transparecer a sua intertextualidade elaborando um exercício

autocrítico. A hibridez textual é expressa pela invocação de obras de Shakespeare, Frank L. Baum,

Donna Haraway, Mary Shelley ou Franz Kafka. O termo intertextualidade é frequentemente utilizado

tendo em mente a relação específica entre textos que constituem a literatura. Segundo Ong, a noção

de que existe um diálogo interno entre textos veio a contrariar o conceito de originalidade do autor.

Tal como o poeta oral, o escritor parte de um conjunto de materiais pré-estabelecidos, isto é, de

um tipo de organização textual (ou mais objectivamente, do romance), bem como de um código

com séculos de evolução: o alfabeto49. Para Ong, o autor moderno encontra-se sujeito a uma

ansiedade de influência (Harold Bloom): “modern writers, agonizingly aware of literary history and the

de facto intertextuality of their own works, are concerned that they may be producing nothing really

new or fresh at all, that they may be totally under the ‘influence’ of other’s texts” (Ong, 1982: 134).

Roland Barthes refere que o autor moderno apenas tem acesso a uma “recordação em segunda

mão” (Barthes, 1972: 20). Para Barthes, o escritor será um “prisioneiro das palavras de outrem”

(20), ou seja, ele poderá ser livre na escolha do que pretende retratar mas acaba por ficar limitado

ao passado que é reinstituído a cada palavra.

Quem conta/narra o conto

A noção moderna de autor foi criada pela tipografia e pela conquista do direito de propriedade.

Manuel Portela, em O Comércio da Literatura (2003), afirma que foi durante o séc. XVIII que o autor

alcançou o direito legal sobre a sua obra:

Finalmente, durante o séc. XVIII, a propriedade passou a ser definida pelo conteúdo da

obra, e não apenas pela obra enquanto objecto manufacturado, o que permitiu colocar o

autor como origem da relação de propriedade, entendendo, à luz da doutrina do direito

natural, o texto como fruto do seu trabalho. O copyright tornou-se progressivamente a

propriedade intelectual do autor sobre as suas próprias criações. (Portela, 2003: 132)

49 O texto seria para Barthes: “a multi-dimensional space in which a variety of writings, none of them original, blend and clash” (Barthes, 1977: 146).

41

De acordo com Portela, as inúmeras batalhas legais entre editores, guildas e autores sobre o direito

de cópia de uma obra foram suplantadas pela noção de originalidade do autor:

A invenção da propriedade literária como propriedade do autor e a invenção da

originalidade como atributo da personalidade do autor proprietário permitiram reforçar a

ligação entre autor e obra, resolvendo o dilema da propriedade literária. […] a representação

da autonomia do autor enquanto sujeito criador e, ao mesmo tempo, como personalidade

com direito a vender a sua criação, foi essencial para a posterior regulação económica da

produção de todas as mercadorias artísticas. (Portela, 2003: 142-143)

A “personalidade do autor” estaria para sempre ligada a um direito de propriedade. A obra tornar-

se-ia num exemplo da originalidade do autor e, depois do séc. XVIII, evoluiria para uma

representação da subjectividade ou da personalidade do autor (144). Independente em relação a

mecenas ou a editores, o autor conseguiu autonomia económica e consequente profissionalização.

As obras literárias não estariam agora dependentes de um título ou do estudo minucioso das obras

clássicas, mas de um nome individual. Competia ao autor obedecer à lógica do mercado livreiro

encontrando novas formas de apelar ao interesse da audiência50. É precisamente esta componente

da função do autor que Roland Barthes ou Michel Foucault vieram a criticar. No texto intitulado

“La mort de l'auteur” (1968), Barthes refere que a figura do autor é um produto da sociedade e que

a cultura está erroneamente centrada na sua figura. A partir do momento em que uma acção é

narrada, a experiência dessa acção é indirecta e falsa o que inicia a derrocada do autor: “a voz perde

a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escrita começa” (Barthes, 1977: 142). Michel

Foucault elabora uma comparação entre o escritor moderno, que instancia a sua própria morte, e

o poeta da tradição oral que, tal como Xerazade, usava as suas histórias para evitar o momento

final:

Storytellers continued their narratives late into the night to forestall death and to delay the

inevitable moment when everyone must fall silent. (…) This conception of a spoken or

50 Segundo Ian Watt, a pressão para produzir fez com que o autor passasse a ter dois aspectos em consideração: “first, to write very explicitly even tautologically might help his less educated readers to understand him easily; and secondly, since it was the bookseller, not the patron who rewarded him, speed and copiousness tended to become the supreme economic virtues” (Watt, 1957: 56). Oferecendo como exemplo Daniel Defoe, Watt defende que esta lógica economicista provocou uma crescente valorização da prosa em detrimento da poesia: “prose, of course, was easy, copious, unpremeditated -- the very qualities that were most consonant both with the narrative manner of his novels and with the maximum economic reward for his labours with the pen. Verbal grace, complication of structure, concentration of effect, all these take time and are likely to require a good deal of revision, whereas Defoe seems to have taken the economic implications of the writer's situation to an unexampled extreme by considering revision as something to be undertaken only if extra remuneration was offered” (57). Por seu turno, esta preferência pela prosa terá contribuído para a emergência do romance.

42

written narrative as a protection against death has been transformed by our culture. Writing

is now linked to sacrifice and to the sacrifice of life itself; it is a voluntary obliteration of

the self that does not require representation in books because it takes place in the everyday

existence of the writer. Where a work had the duty of creating immortality, it now attains

the right to kill, to become the murderer of its author. (Foucault, 1991: 117)

Para escrever uma obra o escritor apaga a sua identidade do texto, tornando-se no autor e não na

pessoa que escreveu o livro. Ao tentar subtrair a sua presença no texto através do narrador ou das

personagens, o autor instancia a sua morte. No entanto, perante a sociedade, ele é remetido para

um “anonimato transcendente” (120). Durante a sua discussão sobre a função autor, Foucault

refere que a noção moderna de autor está ligada ao título de propriedade sobre uma obra, o que

torna o discurso num produto comerciável. Porém, os textos literários nem sempre estiveram

reunidos em torno de um nome: “there was a time when those texts which we now call “literary”

(stories, folk tales, epics, and tragedies) were accepted, circulated, and valorized without any

question about the identity of their author. Their anonymity was ignored because their real or

supposed age was a sufficient guarantee of their authenticity” (Foucault, 1991: 109). A seguinte

citação é exemplificativa da posição dos primeiros teóricos do hipertexto:

We set up rendezvous between words never before seen in company, we provide

deliciously private places for them to couple. (…) Having invented an infinitely

recombinant language, we can't prevent it from forming improper alliances, any more than

we can seal all our orifices without dying. […] Writers court the sideways glances of

sentences mostly bent on other things. They solicit bad behavior, collusion, conspiracies.

Hypertext just makes explicit what everyone does already. After all, we are all collage artists.

(Jackson, 1997)

Descendente da teoria estruturalista e pós-estruturalista51, bem como das práticas literárias pós-

modernistas, a hiperficção electrónica desejava contrariar a noção que a obra literária deveria ser

uma extensão do autor.

A noção de que o autor dispõe de um código pré-existente (“recombinant language”) encontra um

paralelo no processo de composição dos poetas orais, os quais faziam uma reutilização de materiais

51 Sloane considera que a insatisfação com as ficções hipertextuais partilhada por vários críticos parte da discórdia entre estes e a posição defendida pelo pós-estruturalismo: “the devaluation of hypertext writings is a knee-jerk reaction against the post-structuralist critique of the subject, and a nostalgia for individual unity, social realism, and traditional aesthetic values” (110).

43

que chegavam até si através da repetição52. No entanto, existe uma diferença fundamental entre

ambos. Para além da distância entre autor/leitor, o autor de um romance impresso fala ao leitor

sobre um mundo interior (Ong, 1982: 105). O discurso oral estaria dependente do contexto, mas

livre de um autor. Segundo Ong, o contador de histórias ou o poeta seria o canal de comunicação,

não a origem nem o motivo de criação do discurso (78). Ao contrário do discurso oral, Ong

defende que o livro anula a possibilidade de interrogar ou interpelar o autor, porque o texto se

encontra irremediavelmente registado nas suas folhas53. Segundo Ong, porque a tipografia está

intimamente ligada à publicação e comercialização do texto, ela terá promovido a noção de

“desfecho”, o que veio igualmente a conferir poder à figura autoral:

Print encourages a sense of closure, a sense that what is found in a text has been finalized,

has reached a state of completion. This sense affects literary creations and it affects analytic

philosophical or scientific work. (…) The printed text is supposed to represent the words

of an author in definitive or ‘final form’. For print is comfortable only with finality. (Ong,

1982: 131)

O autor e o leitor não partilham o mesmo eixo espácio-temporal. Por este motivo, Ong refere que

os textos são “unresponsive” (79) e que não permitem ao autor explicar uma afirmação54. Esta

impossibilidade de comunicação entre leitor e autor reflectiu-se na criação de uma figura

suplementar. Com o desaparecimento do bardo e do poeta oral, a “cena” dramática terá sido

progressivamente substituída pelo discurso na terceira pessoa, o que resultou na criação da figura

do narrador. A obra de Sharif Ezzat, Like Stars in a Clear Night Sky (2006), produzida através do

programa Flash, parece ilustrar a transferência do poeta oral para o narrador. Sob o céu estrelado,

uma voz comunica com o leitor/ouvinte em árabe. Cada fala surge acompanhada de uma legenda

em inglês. O contador de histórias convida o ouvinte a escolher uma estrela: as estrelas que brilham

52 Tal como o poeta oral dispõe de um conjunto de fórmulas para recombinar materiais, Barthes refere que, ao contrário da ideia de autor como o deus da narrativa, o “scriptor moderno” apenas dispõe de um “dicionário pré-formatado” para “imitar um gesto anterior e nunca original” (Barthes, 1977: 146). 53 Watt refere-se à idoneidade da palavra escrita: “Print, to the reader, is no fallible specimen of humanity -- no actor, bard or speaker who must prove himself worthy of credence: it is a material reality which can be seen by all the world and will outlive everyone in it. Nothing printed has any of the individuality, the margin of error, the assertion of personal idiosyncrasy, which even the best manuscript retains; it is more like an impersonal fiat which -- partly because the State and the Church print their messages, and so hallow the medium -- has received the stamp of universal social approbation. We do not, instinctively at least and until experience has made us wise, question what has appeared in print (Watt, 1957: 204). 54 No entanto, Watt aponta a existência de um paradoxo motivado por esta “autoridade impessoal” do texto impresso: “The development of the novel's concentration on private experience and personal relationships is associated with a series of paradoxes. It is paradoxical that the most powerful vicarious identification of readers with the feelings of fictional characters that literature had seen should have been produced by exploiting the qualities of print, the most impersonal, objective and public of the media of communication.” (Watt, 1957: 206).

44

com maior intensidade correspondem a uma história. A dado momento o contador de histórias diz

o seguinte: “I am full of stories. Pick One. I dare you”. No entanto, quando uma estrela é alcançada

pelo leitor, o contador de histórias é silenciado. Em vez da voz de um contador de histórias surge

um texto (exclusivamente em inglês) dividido em estrofes55. No momento em que o leitor é

apresentado ao texto, o contador de histórias dá lugar ao narrador. Este comunica com o leitor na

primeira e na terceira pessoa. As suas narrativas não ilustram actos heróicos ou assuntos relativos

à comunidade. O narrador transmite histórias pessoais através de estrofes.

A obra Whom The Telling Changed (2005)56 de Aaron A. Reed é uma ficção interactiva onde o leitor

pode participar numa “sessão de storytelling”. Esta obra apresenta um elo de ligação entre a

actividade ancestral de contar histórias e a ficção interactiva. Graças à introdução de comandos

como “LISTEN” ou “LOOK” o leitor poderá interagir e conhecer as histórias de outras personagens

e despertar a geração da narrativa. Poderá igualmente juntar-se aos membros de uma aldeia para

ouvir parte do épico de Gilgamesh. Embora exista momentaneamente um narrador, a leitura desta

obra é conseguida através da actividade (ou dos correctos procedimentos) por parte do leitor. Sem

o comando correcto ou se o leitor não compactuar com a arquitectura da narrativa, a sequência de

eventos é interrompida.

Tal como o autor da narrativa ou história, o programador tem um trabalho criativo a seu cargo. A

função deste é criar uma ponte entre a história/narrativa/linguagem humana e a linguagem de

programação/regras/programas. Sloane salienta que ele tem de prever a resposta do leitor ao texto

e que por isso este efectua um “processo de composição antecipatório” (41). O programador tem

de imaginar os diversos resultados de uma acção do leitor. A ele está entregue a criação de mundos,

desde o rascunho até à sua emergência no ecrã do computador.

Para Aristóteles, a tragédia deveria respeitar uma divisão coerente entre princípio, meio e fim e

obedecer a uma lógica de causa e efeito. No final da Poética ele afirma: “Por conseguinte, se a

tragédia se distingue em todas estas coisas e ainda no efeito próprio da arte (…), é evidentemente

superior, uma vez que atinge o seu objectivo melhor do que a epopeia” (Aristóteles, 2008: 106).

Porque a tragédia foi tão valorizada por Aristóteles, e porque a Poética adquiriu um estatuto

normativo, o romance acabou por tentar simular muitas das características deste género. O discurso

55 Nesse momento, esta obra torna-se num híbrido entre poesia (porque está dividida em versos) e prosa (é composta por uma sequência de eventos). Esta obra faz parte do volume I da ELO e está inserida nas seguintes Keywords: Audio, Flash, Multilingual or Non-English. Contudo não foi inserida na categoria “Poetry”. A “categoria” Narrative foi apenas inserida no segundo volume desta colecção. Embora os poemas que integram esta obra estejam distribuídos por diferentes estrelas existe um narrador que descreve ou narra uma série de eventos. Like Stars in a Clear Night Sky poderia ser considerada uma narrativa. 56 Esta ficção interactiva não tem a presença de gráficos. Ao leitor é pedido que use pontos cardeais para deslocar-se no terreno narrativo. A obra pode ser consultada em: http://collection.eliterature.org/1/works/reed__whom_the_telling_changed.html .

45

indirecto, por exemplo, substituiu a “cena” dramática. A estrutura coerente e hermética pautada

por um desfecho parece ter sido igualmente herdada da tragédia grega. Ong salienta que a

mecanização da escrita terá contribuído para essa necessidade de controlo derradeiro sobre a

narrativa: “Print makes for more tightly closed verbal art forms, especially in narrative. Until print,

the only linearly plotted lengthy story coherent line was that of the drama, which from antiquity

had been controlled by writing. (…) With print, tight plotting is extended to the lengthy narrative”

(Ong, 1982: 133).

Barthes referiu que a narrativa, enquanto resultante de um acto (que Barthes considera anti-

comunicativo) como a escrita, tem lugar no passado. Sendo assim, esta é resultante de uma selecção

de acontecimentos passados e exige uma sequência de eventos unidos entre si através de uma lógica

de causalidade (Barthes, 1972: 28). Se a terceira pessoa está ausente do romance, este deixa de

existir. O uso da terceira pessoa, tal como o uso do passado, torna o romance num mito. Remetido

para um tempo inexistente, o leitor fica impossibilitado de comprovar a veracidade da narrativa.

Contrariamente a Barthes, Ortega y Gasset, numa comparação entre o último descendente do épico

(o romance de cavalaria) e o romance moderno, afirmava que a narrativa é incompatível com o

romance moderno. Este tem como raio de acção o presente enquanto a narrativa refere-se a

acontecimentos passados:

I disagree with the accepted opinion which makes narrative the instrument of the novel.

This opinion is the consequence of not having contrasted the two genres confused under

the name of the novel. The book of imagination [book of chivalry] narrates, but the novel

describes. The narrative is the form in which the past exists for us, and it is possible to

narrate only what has happened, that is to say, what no longer exists. One describes, on the

other hand, what is present. (Gasset, 2000: 279)

Contudo, a narrativa pode ter momentos de descrição, ou seja, o narrador pode utilizar o pretérito

mas também o presente do indicativo. Para além de poder usar a terceira pessoa, ele pode dirigir-

se directamente ao leitor ou poderá retirar-se para dar lugar ao diálogo entre personagens. A voz

do narrador nem sempre se encontra presente num texto, pelo que a narrativa não pode ser definida

apenas pela existência de um narrador. Na literatura electrónica isto é particularmente evidente

porque o narrador está muitas vezes ausente da história deixando o leitor entregue à exploração

topográfica do texto ou à manipulação de diversos elementos, sejam eles outros utilizadores,

personagens ou a geografia do texto. Markku Eskelinen refere que o narrador é substituído pelo

46

“negociador”57 ou uma entidade programada que negoceia com o leitor a progressão ou o desfecho

da narrativa.

Como foi referido anteriormente, Eskelinen usa a teoria cibertextual para reformular o modelo de

Genette. A categoria pessoa centra-se na relação entre narrador e a história por si narrada. Genette

refere-se fundamentalmente aos níveis de presença ou ausência do narrador na história mas

Eskelinen salienta que Genette veio mais tarde a modificar esta teoria introduzindo a possibilidade

de situações limite em que o narrador pode comportar-se como um cronista ou uma testemunha

em primeira pessoa, sempre na iminência de participar na acção (184). Em textos ergódicos, os

narradores podem estar ausentes ou presentes na narrativa pois as provas ou marcas de presença

do narrador nesta podem ser apagadas, suplantadas, substituídas ou alteradas entre versões dos

textos. Por vezes o narrador pode tornar-se numa personagem (ou vice-versa), sem que exista um

texto que comprove esta alteração. Por esta razão, Eskelinen frisa que existem outros tipos de

narrador nestes textos: o narrador bidiegético que muda a sua posição entre homodiegético e

heterodiegético; os narradores homodiegéticos ou heterodiegéticos estáticos ou dinâmicos (o grau

de presença na história muda e podem tornar-se em personagens centrais); narradores que cessam

de ser narradores e tornam-se em personagens ou narratários e até narradores que desaparecem da

história.

Segundo Genette, os narradores podem contar os eventos depois (narração subsequente), antes

(narração a priori), enquanto eles acontecem (narração simultânea) ou entre momentos de acção

(narração interpolada) (Genette, 1980: 217). Na literatura impressa, a escrita e a leitura surgem

como duas actividades separadas no tempo mas nas narrativas digitais o mesmo pode não

acontecer: “in digital narratives the two layers or stages of the narrative process (narration and

narrative) can now occur both successively (narration predating narrative) and simultaneously

within a single text, and therefore we have to take into account the additional temporalities of

narrative transmission and narrative reception” (188).

Eskelinen defende que nas narrativas impressas o narrador é uma construção textual, na narrativa

oral ele é um ser humano e nos média digitais ele pode ser uma entidade programada (193).

Enquanto, para Eskelinen, os narradores da literatura impressa são estáticos, na literatura digital

podem ser dinâmicos, interligados ou combinados livremente58.

57 Eskelinen defende que a negociação deve ser usada como um ponto de equilíbrio entre níveis de discurso baseados em eventos e progressão (textos não-ergódicos) e níveis de discurso baseados em construção e quase-eventos (textos ergódicos): “The texts organized by the former put focus on some kind of pre-given goal, closure, end, or accessible totality. The texts organized more on the latter provide room for the rhythms and often self-asserted goals of the user’s self-expression and its manifold manifestations as playing, improvisation, seduction, competition, collaboration and community building (etc.). The discourse level of negotiation can serve both ends of the scale” (84). 58 Eskelinen sugere que estes narradores poderiam ter a capacidade de trocar os seus passados. Se competissem entre si pelas posições (em termos de espaço, tempo e credibilidade) e se o número e identidade dos narradores potenciais

47

Segundo Eskelinen poderão existir narradores escriptónicos (tal como apresentados ao leitor) e

textónicos (codificados no texto). A divisão entre camadas textónicas e escriptónicas produz ainda

outros narradores: narradores dinâmicos capazes de mudar as suas qualidades, identidades e

posições no texto; narradores indeterminados que não contam sempre a mesma história; narradores

pessoais que apenas surgem para alguns leitores/utilizadores; narradores temporários ou parciais

que pertencem e estão presentes no texto apenas por um período limitado de tempo. Sendo assim,

o número de narradores textónicos pode não corresponder ao número de narradores escriptónicos.

Eskelinen refere que os narradores podem existir numa espécie de reserva e podem ser distribuídos

e posicionados no texto narrativo e apresentados ao leitor por um período de tempo. Finalizado

este período eles são substituídos por uma nova selecção de narradores.

Para além da comunicação intratextual entre narradores, narratários e personagens (Eskelinen

adverte que estes diferentes elementos podem ainda trocar de lugar entre si), os textos digitais

permitem ainda uma comunicação extranarrativa entre autores e leitores. Eles permitem igualmente

uma comunicação entre leitores (195). No cibertexto é ainda possível constatar as seguintes

situações: utilizadores extratextuais desempenham o papel de personagens e/ou narradores

intratextuais; comunicação ergódica entre texto e utilizador e comunicação ergódica entre

utilizadores (195). Estes tipos de textos abrem um novo campo de teorização literária. Eles

apresentam novas funções para o leitor. Este pode acrescentar mais do que notas. Durante a leitura,

o leitor pode tornar-se numa personagem ou comunicar com o autor ou outro interveniente,

acrescentando assim pelo menos um ponto à história que lê ou experiencia. Contudo, como

veremos no último capítulo desta tese, esta actividade não pode ser confundida com uma

colaboração criativa.

mudasse, isto levaria a um aumento de esforço por parte do leitor para determinar se o narrador era fiável. Esta decisão apenas poderia ser tomada após a leitura do todo textual (193). Contudo, este tipo de textos ainda não existem. Eskelinen pretende incluir não só os textos já existentes, como os textos que possam vir a ser criados segundo a lógica combinatória da cibertextualidade ergódica.

48

Characters don’t need closure: a aventura impressa e digital

The essence of the novel—that is to say, of the modern novel

with which alone I am here concerned—does not lie in “what

happens” but precisely the opposite: in the personages’ living,

in their being and being thus above all, in the ensuing milieu.

José Ortega y Gasset, “From Meditations on D. Quixote”

“Quem teve a sorte de nascer personagem pode rir-se da morte. As personagens não morrem",

escreveu Luigi Pirandello em Seis personagens à procura de um autor (1921). Mesmo que sejam

executadas pelo autor elas podem permanecer camufladas entre as letras até serem despertadas. A

sua morte é apenas ensaiada e nunca é sinónimo de despedida. Porém, não é apenas o acto de

leitura que estende a mão às personagens e que as resgata do esquecimento. Muitas vezes elas são

recuperadas por outros média ou por outras formas de expressão. Elas comprovam que um livro

não tem um carácter ensimesmado, nem está circunscrito ao seu peso e medida. Ao extrapolarem

a fronteira de papel e ao instalarem-se noutros formatos, elas permitem igualmente concluir que o

livro mantém um diálogo contínuo com outras formas de representação.

As personagens não temem a ambiguidade. Tanto embarcam numa sequência linear de eventos,

como caminham sobre terreno irregular e enfrentam trilhos bifurcados. É desta forma que a noção

de texto como um todo autónomo tem vindo a ser contrariada pela literatura impressa e pela

literatura electrónica, através das suas personagens.

A construção de uma narrativa rizomática, a transgressão da barreira entre planos ficcionais, bem

como a alteração do contracto entre autor e leitor antecedem a emergência do romance pós-

modernista. Na literatura electrónica é possível assistir a uma extensão desses processos com a

adopção do computador como instrumento expressivo. Graças à sua capacidade de

armazenamento de informação e velocidade de processamento, bem como à divisão entre interface

e memória, é possível criar personagens dinâmicas que trocam autonomamente de posições ou

identidade. Isto significa que o texto pode revelar um comportamento emergente e imprevisível.

Entre a tradição oral, a invenção da escrita e a tipografia surgiram várias transformações que

alteraram não só a forma como uma história era veiculada mas a própria construção das

personagens. Segundo Walter Ong, a tradição oral estaria repleta de personagens ilustres que

representavam valores e princípios nobres. A construção de personagens modelo era necessária

porque, como a difusão de uma história dependia do momento único da sua narração, elas teriam

49

uma maior probabilidade de prevalecer na memória da audiência (68). Esta situação condicional

das personagens viria a alterar-se mais tarde com a introdução da escrita. Graças ao registo escrito,

o autor tinha a oportunidade de rever um texto. Para além de poder centrar a sua atenção na

construção do enredo, poderia igualmente completar as suas personagens tornando-as mais densas.

As personagens planas da literatura oral seriam substituídas por personagens cada vez mais

complexas. A sua construção era agora inspirada na existência humana e não na relação entre o

divino e o terreno. Por seu turno, o narrador, que antes era o responsável pela transmissão oral de

conhecimento, surgia agora de forma fugaz e restrita no livro impresso, limitando-se a fornecer

vida às suas personagens.

Um novo capítulo é adicionado à história da criação de personagens com a adopção da tipografia.

Por razões de economia de espaço, o texto fica circunscrito aos limites da página ou à formatação

da mancha gráfica. Sendo assim, o autor passa a ter de organizar o enredo de forma a causar um

maior impacto sobre o leitor. À semelhança da tragédia clássica, o desfecho tornava-se num

momento crucial da narrativa. Segundo Walter Ong, aos olhos do autor, o texto surgia como uma

linha dividida entre início, meio e fim. O formato encorajava-o a pensar no seu trabalho como uma

unidade discreta, fechada em si mesma e definida por um desfecho (145). Porém, Ong sublinha

que na “era electrónica” o enredo linear e dividido entre início, meio e fim começa a ser

desmistificado e a ser considerado como “demasiado fácil”, quer para o autor quer para o leitor.

Por este motivo, Ong refere que a literatura vanguardista viria a ser obrigada a “obscurecer os seus

enredos” (148). Segundo Ortega y Gasset, o público leitor, cada vez mais exigente, havia forçado

o romance a procurar um estado de perfeição inalcançável. Os leitores seriam “melhores psicólogos

do que os antigos autores” e esperavam conhecer histórias sobre personagens com uma riqueza

psicológica sem precedentes (313). A influência da psicanálise na literatura havia promovido a

construção de personagens com um mundo interior cada vez mais imbricado. De acordo com Ong,

estas começavam a assemelhar-se a pessoas reais (149). Ortega y Gasset referia-se à “psicologia

imaginária” como uma alternativa à escrita de romances baseada unicamente na originalidade do

enredo. A criação imaginária de “almas humanas” e a representação da vida interior das

personagens constituíam elementos promissores: “A esperança do romance reside na invenção de

personagens interessantes, não na invenção de enredos”, afirmava Ortega e Gasset (Ortega y

Gasset, 2000: 315).

A construção de enredos com uma estrutura rígida e linear viria a ser contrariada por ficções

labirínticas que reflectem um conflito entre planos ontológicos e que mantêm uma estrutura

episódica e fragmentária concretizando muitas vezes um final em aberto. Estas são características

fundamentais em narrativas multi-lineares como aquelas escritas por Julio Cortázar ou Jorge Luis

50

Borges. O desejo de alcançar o desfecho e de assistir à resolução da narrativa mantém o leitor

concentrado na finalização da leitura. No entanto, em narrativas multilineares associadas à ficção

digital (amplamente inspirada nas narrativas pós-modernistas e textos experimentais da literatura

impressa59) esse desejo é frequentemente frustrado. A procura de uma resposta emocional por parte

do leitor é adiada pelo apelo constante à interactividade ou montagem do texto. Esta resposta

emocional - que no enredo descrito pela Poética de Aristóteles é provocada pelo coerente desenrolar

de eventos até ao culminar da narrativa - é continuamente desafiada pela fragmentação estrutural

da narrativa e deslocação de entidades (narrador, personagens ou leitor) entre camadas diegéticas.

Embora um livro seja considerado como um produto acabado, uma história inscrita nas suas

páginas pode persistir para além deste habitat. A história e todo o conjunto de personagens podem

ser transferidas para outros formatos e aceitar alterações infinitamente. Como sabemos, as

colectâneas de contos tradicionais criadas por Charles Perrault e pelos irmãos Grimm oferecem

versões diferentes das mesmas histórias. Antes de serem registradas num livro estas eram

partilhadas pela comunidade e veiculadas através de um narrador. Como não existia um registo

escrito, cada história surgia como uma versão de si mesma. Retomadas pela memória colectiva, elas

não tinham uma existência para além do momento e do local onde eram narradas ou recordadas.

Os contos populares transmitidos pelos irmãos Grimm e por Perrault através de folhas de papel

resistiram ao tempo, não só porque foram reunidos numa colectânea, mas também porque foram

revisitados repetidamente por diversos média e formas de expressão. Muitas das apropriações

dessas histórias colocam as personagens perante novos caminhos a percorrer. Por vezes, a viagem

é de tal forma inusitada que, assim que elas ultrapassam as páginas de um livro, um novo capítulo

da sua obra (ou vida) começa a ser construído. Na introdução à obra Frankenstein (1831), Mary

Shelley escreve o seguinte: “I bid my progeny go forth and prosper”. Mary Shelley refere-se à sua

obra, ou seja, a uma história sobre uma criatura construída artificialmente. De facto, a história desta

personagem terá sido apropriada por vários discursos, o que veio a permitir que ela sobrevivesse

ao passar dos séculos e adoptasse a forma de um mito moderno.

A obra Patchwork Girl (1995), uma hiperficção electrónica criada por Shelley Jackson, tem como

personagem principal a irmã da criatura construída por Victor Frankenstein. Esta personagem

feminina não chegou a ser criada na obra de Mary Shelley mas ganha vida em Patchwork Girl. Para

conhecê-la, o leitor terá de visitar a secção {Graveyard} onde se encontram depositadas as partes

do seu corpo. Cada uma delas é representada por uma lexia com uma história para contar. Cabe ao

59 Lev Manovich considera que a ficção pós-modernista beneficiou da introdução do computador nos anos oitenta: “In my view, this new cultural condition found its perfect reflection in the emerging computer software of the 1980s that privileged selection from ready-made media elements over creating them from scratch. And to a large extent it is this software that in fact made postmodernism possible (Manovich, 2001: 131).

51

leitor suturar o seu corpo para garantir a leitura do texto. Embora o número de lexias seja

circunscrito e o leitor possa ler a totalidade do texto (quer aceitando percorrer a sequência de links

ou escolhendo os pontos de leitura através de mapas da obra) o tipo de leitura sugerido em

Patchwork Girl é multilinear e rizomático. Por seu turno, o desfecho da narrativa é inexistente60. Em

vez deste, podemos considerar que existe a finalização do processo de leitura, um processo que

pode ser concluído quando o leitor deixar de interagir com o corpo de Patchwork Girl (ou com o

próprio hipertexto). Tal como o seu irmão - a Criatura de Victor Frankenstein - ela não apresenta

um corpo uno. Também ela foi construída com pedaços de cadáveres. Cada pedaço do seu corpo

tem uma história para contar.

Como foi possível ver na secção anterior, Shelley Jackson adopta uma posição divergente em

relação ao romance e subverte algumas das características associadas a este género: a linearidade, a

rigidez da forma e a leitura baseada num desfecho. Patchwork Girl é uma hiperficção electrónica que

parte da narrativa de Frankenstein para contrariar os pressupostos do romance tipográfico. Contudo,

a obra de Mary Shelley tinha já uma natureza transgressiva. Dado o tema controverso explorado

nesta obra, Mary Shelley não assumiu imediatamente a sua autoria pelo que, até à sua segunda

edição, esta terá chegado ao público sem uma autora. Posteriormente, de forma a aumentar o grau

de aceitação por parte do público, Mary Shelley terá optado por oferecer à sua obra um tom

moralizante, o que resultou em inúmeras alterações entre edições (1818, 1822 e 1831).

Frankenstein tem uma estrutura epistolar, pelo que a narrativa está fragmentada em vários textos

que dão a conhecer vários narradores (Walton, Victor Frankenstein e a Criatura). Poderemos ainda

considerar que a obra tem um final em aberto: embora exista a promessa de auto-imolação por

parte da Criatura, o leitor não chega a assistir à descrição deste acontecimento.

Personagem encarnada

A ficção digital oferece às personagens uma nova forma de existência e novas possibilidades de

interactividade entre estas e o leitor. Um outro exemplo de uma personagem que foi lançada numa

aventura impressa e digital é a história do Capuchinho Vermelho reformulada por Donna

Leishman. Antes de proceder à leitura de RedRidingHood (2001) no primeiro volume da ELO

(Electronic Literature Organization), encontramos a seguinte apresentação: “RedRidinghood is the

type of Flash piece that suggests the potential for complex forms of interactive storytelling without

60 Lev Manovich refere que a própria RAM ou Random Access Memory pressupõe uma leitura não-linear: “Any RAM location can be accessed as quickly as any other. In contrast to the older storage media of book, film, and magnetic tape, where data is organized sequentially and linearly, thus suggesting the presence of a narrative or a rhetorical trajectory, RAM ‘flattens’ the data” (Manovich, 2001: 77).

52

typographic text” (Leishman, 2001). Recebido por uma banda sonora sofisticada, o leitor é

primeiramente apresentado ao título da obra. Quando selecciona a opção {Skip} surge uma nova

janela com um conjunto de opções. Em {Thesis}, é colocada a seguinte pergunta: “Does point and

click interactivity destroy the story?: the convergence of interactivity with narrative” (Leishman,

2001). Esta obra divide a atenção do leitor entre a riqueza do grafismo, mensagens subliminares de

teor feminista e a sua própria arquitectura. Em RedRidingHood não existe apenas um caminho a

seguir61. Ela implica um tipo de leitura que não é apenas fragmentária. Ao leitor é pedida uma maior

intervenção no sentido em que este se encontra perante uma superfície dinâmica. Não se trata

apenas de descodificar o alfabeto. Para ler o texto, o leitor terá primeiramente de saber manipular

a interface. RedRidingHood efectua uma fusão entre jogo e narrativa com múltiplos desfechos,

através da apropriação de um conto popular. Num artigo intitulado “Beyond Myth and Metaphor:

The Case of Narrative in Digital Media” (2001), Marie-Laure Ryan referiu que os jogos de

computador mantêm o utilizador preso a desafios semelhantes aos descritos em contos fantásticos:

Adventure and role-playing games implement the archetypal plot that has been described

by Joseph Campbell and Vladimir Propp: the quest of the hero across a land filled with

many dangers to defeat evil forces and conquer a desirable object. The main deviance from

the archetype is that the hero can lose, and that the adventure never ends. (Ryan, 2001)

Sarah Sloane aponta para a mesma tendência em ficções digitais. As personagens das primeiras

ficções digitais são caracterizadas da seguinte forma: “shallow characters questing, hacking, and

slashing across unlikely lands in a quest for some treasure, key, or goal (…) warriors hoping to slay

the dragon; and a whole set of tales, fables, and lessons, suggested behaviors or qualities, and story-

outcomes that distill our culture’s primary aims and motivations” (22). Por seu turno, a ficção

digital - particularmente a ficção interactiva - partilha um passado com jogos de computador e

divide com eles algumas características, como por exemplo, a existência de um desafio, regras,

objectivos, resultados variáveis ou a possibilidade de encarnar uma personagem. Esta última

característica é frisada por Sloane: “digital fictions are stories in which the reader takes on the role

of a central character and writes into an evolving narrative” (22).

De acordo com Markku Eskelinen, as personagens da literatura impressa são “cadeias de sinais”

que permanecem inalteradas nas folhas de um livro. Já na literatura digital, as personagens poderão

61 Ryan afirmou o seguinte sobre o conto do Capuchinho Vermelho: “Little Red Riding Hood is not a very promising scheme for interactive narrative, because the other options that offer themselves to the wolf or to the little girl are vastly inferior in terms of dramatic interest and tellability to the actual tale” (Ryan , 2005). Contudo, esta obra de Donna Leishman parece contrariar esta ideia. Leishman criou uma ficção digital com vários desfechos a partir de um conto fantástico com uma estrutura tradicional.

53

alterar a sua posição, identidade e características, independentemente da acção do utilizador. Estas

poderão igualmente tornar-se comunicativas quando se tornam entidades de inteligência artificial.

Eskelinen refere que o leitor de um texto impresso apenas lê uma descrição sobre as personagens

e não consegue estabelecer um diálogo com estas. As personagens de papel permanecem estáticas

nas folhas. Por isso apelida estas personagens de “objectos”. Já as personagens da ficção digital,

porque exibem um comportamento autónomo (ainda que limitado), são intituladas “sujeitos”.

Segundo a teoria cibertextual, descrita por Espen Aarseth no livro Cybertext: Perspectives on Ergodic

Literature (1997), textos indeterminados, com acesso controlado e hiperligações condicionais

podem interferir na transmissão da informação ao leitor. Para além disso, o leitor pode desenvolver

uma perspectiva pessoal e tornar-se num interveniente assíduo na construção da narrativa em

MUDs ou jogos que tenham em vista o desempenho de um papel (RPG ou role-playing games).

O funcionamento do computador encontra-se dividido entre interface ou tudo aquilo que acontece

ao nível do ecrã, e a memória, ou tudo que acontece internamente e que não está ao alcance do

leitor. Espen Aarseth traduziu a relação entre interface e memória através da diferença entre textões

(cadeias de sinais tal como estão no texto) e escritões (cadeias de sinais apresentadas ao leitor).

Eskelinen defende que a diferença entre textões e escritões permite a passagem de personagens

textónicas (tal como permanecem no texto) a escriptónicas (tal como são apresentadas ao leitor).

Isto significa que o leitor pode não vir a conhecer ou a interagir com o número total de personagens

criadas pelo autor/programador porque as personagens textónicas fazem parte dos dados textuais

inacessíveis ao leitor62. Para conhecer estas personagens, o leitor tem de despertá-las através da

exploração do texto.

Muitas obras de ficção digital exigem, não apenas a interpretação, mas também um esforço ergódico

para serem lidas. A intrusão do leitor, que altera a configuração do texto, entra em conflito com o

enredo aristotélico dividido entre início, meio e fim, o que inviabiliza a análise de um texto

recorrendo meramente à narratologia tradicional. O próprio leitor pode ocupar um papel de

personagem na narrativa. Isto leva Marie-Laure Ryan a perguntar o seguinte:

What kind of gratification will the experiencer receive from becoming a character in a plot

patterned after a novel or drama? (...) The personal experience of many fictional characters

is so unpleasant that users would be out of their mind —literally as well as figuratively —

to want to live their lives in the first-person mode. (Ryan, 2006: 124-125)

62 Em Expressive Processing (2009), Noah Wardrip-Fruin afirma que na obra V: Vniverse, criada por Stephanie Strickland e Cynthia Lawson Jaramillo, elas encontram-se numa lista de espera (“queue”) até serem despertadas pelo leitor (237).

54

Ryan refere-se aqui ao uso de realidade virtual que, à semelhança do holodeck de Star Trek (1988)63,

confere uma experiência imersiva superior à da leitura através de um ecrã. Esta tecnologia foi

projectada para cumprir o velho sonho de transparência64 do medium e de experiência directa de

eventos. Até agora, esta não passa de uma ambição acalentada pela investigação na área da

simulação perceptiva e da inteligência artificial. Contudo, os seus efeitos na literatura electrónica já

há muito se fazem sentir. O drama interactivo Façade (2005) permite ao leitor inserir frases e

comunicar com duas personagens que se encontram no centro de uma crise conjugal. O diálogo

com as personagens acaba quando o leitor decide abandonar o apartamento dos seus cicerones (ou

quando é convidado a sair por estes). Durante o período em que permanece em cena pode alterar

a disposição de diversos objectos e estabelecer um diálogo com relativa coerência. Durante a troca

de acusações, as personagens em conflito apelam constantemente à intervenção do leitor.

Embora apresente uma estrutura linear, que recorda a divisão da tragédia grega convencionada pela

Poética de Aristóteles (Façade apresenta uma estrutura divida entre introdução, complicação, clímax

e resolução), o diálogo pode variar drasticamente entre sessões. Os autores desta peça interactiva,

Michael Mateas e Andrew Stern, convidam o leitor a conhecer mais possibilidades de desfecho e a

aceder mais do que uma vez a esta obra. Este é um texto ergódico que surge na continuidade de

Eliza (1966), o chatterbot criado por Joseph Weizenbaum, durante a sua investigação sobre

inteligência artificial. Eliza permitia manter um diálogo com o utilizador sob a forma de uma

consulta de psicanálise. Para tal, utilizava as frases inseridas pelo utilizador (ou paciente)

transformando-as em perguntas.

A vida em jogo

O chatterbot Eliza está na base da criação de ficções interactivas como All Roads (2001) de Jon

Ingold; Savoir-Faire (2002) e Galatea (2000) de Emily Short ou Whom the Telling Changed (2005) de

Aaron A. Reed65. Perante a ausência de gráficos, o contacto com as personagens é efectuado através

da linguagem verbal. O leitor/utilizador tem de fazer uso de comandos como “LOOK” OU

63 O holodeck aparece pela primeira vez como um elemento central em Star Trek em 1988. Janet Murray deu uma ênfase particular a este dispositivo no seu livro intitulado Hamlet on the Holodeck: The Future of Narrative in Cyberspace (1998). 64 Na introdução do seu livro, Emerson defende que, paradoxalmente, a transparência oculta o funcionamento do computador, isto é, torna o computador (e todos os dispositivos computacionais) em “dispositivos para consumo de conteúdo” e não dispositivos que são usados para leitura, escrita e para produzir conteúdo (Emerson, 2014). 65 Estas obras pertencem ao primeiro volume da ELO Collection. Entretanto a palavra-chave Inform, junto da qual estas obras estavam organizadas, não foi mantida no segundo volume desta colecção. Inform é simultaneamente uma linguagem de programação e um sistema de design que permite a construção de ficções interactivas. Como categoria de classificação, exemplifica a importância do software para a classificação de uma obra de literatura electrónica. Estas obras podem ser consultadas na seguinte lista, no primeiro volume criado pela ELO: http://collection.eliterature.org/1/aux/titles.html.

55

“TOUCH” para conseguir uma resposta textual. Galatea é uma estátua que responde através de

enunciados quando interpelada pelo leitor. À semelhança desta, o interlocutor não poderá mover-

se no espaço. Já as ficções interactivas All Roads, Savoir-Faire e Whom the Telling Changed permitem

construir um diálogo com várias personagens e, através da introdução do nome de diversos pontos

cardeais, oferecem também a possibilidade de explorar espaços e de interagir com o ambiente (ou

com o universo ficcional).

Eliza está igualmente na base da criação de jogos como Dungeon (1975), um dos primeiros jogos

RPG. Devido ao seu carácter ergódico, muitas das obras de literatura electrónica partilham

características com jogos do computador. Markku Eskelinen defendeu que existem textos que

continuam inabordáveis porque a narratologia - baseada na existência de narração, narrador e

sequência de eventos, bem como em mundos coerentemente interligados - não se coaduna com a

multilinearidade, segmentação e aleatoriedade deste tipo de textos. Este autor defende que a

implementação de uma narratologia complementada com a ludologia e a teoria do cibertexto pode

ajudar na abordagem de textos que, embora centrados na problematização da leitura e na sua

própria geração, apresentam camadas narrativas. Este é também o caso das metanarrativas pós-

modernistas que são categorizadas como experimentais e relegadas para os limites da literatura.

As personagens permitem constatar que um texto persiste para além do desfecho. Elas escapam

muitas vezes à influência do autor, tornando-se autónomas e acrescentando novos capítulos à obra

de onde partiram. Graças ao computador, é possível assistir a um novo processo de construção de

personagens. Muitas das vezes elas são entidades autónomas na iminência de serem apresentadas

ao leitor. Podem tornar-se comunicativas e sobreviver num ambiente extradiegético ou mergulhar

entre o fluxo de operações para a seguir serem projectadas na narrativa através de um salto

metaléptico. A interactividade exigida ao leitor concretiza a suspeita lançada por Genette: “O mais

perturbador acerca da metalepse centra-se na hipótese inaceitável e persistente que o extradiegético

é provavelmente sempre diegético, e que o narrador e os seus narratários – tu e eu – talvez

pertençam a alguma narrativa” (236).

Com a oportunidade de interagir com o texto através de respostas corporais - uma possibilidade

prevista por Eskelinen mas patente desde que a realidade virtual foi associada à literatura electrónica

- a relação entre leitor e personagem pode alterar-se significativamente. Os dispositivos de detecção

de movimento já estão a ser usados criativamente em performances. A obra Voiced/Unvoiced or Body

Text (2013) recorre à tecnologia para encontrar novas respostas textuais. Nesta obra, os

movimentos da performer (Catherine Siller) são detectados pela máquina. No seu corpo, escondido

sob um pano branco, surge projectada uma boca, um olho ou um ouvido. Eles pairam sobre uma

tela textual, impulsionados pelos movimentos de Siller. A dança torna-se assim no gesto de leitura.

56

No caso da literatura electrónica já são conhecidas obras em que a interactividade é proporcionada

por esta tecnologia. Os textos criados para o teatro de realidade virtual CAVE66 (Cave Automatic

Virtual Environment) reflectem a chegada de novos paradigmas. Na obra Screen (2003-2007),

apresentada na introdução desta tese, o leitor equipado com óculos de realidade virtual e sensores

pode “tocar” nas palavras que se encontram dispostas nas paredes ou suspensas no ar. Durante

este “jogo literário alternativo”, os movimentos do utilizador apagam ou deslocam palavras,

desencadeando a derrocada total do texto. Um outro exemplo de interactividade através de

sensores de movimento será a obra Transient Self Portrait (2012) de María Mencía. Ao ser filmado

através de uma webcam o leitor depara-se com o seu auto-retrato construído através das palavras

do poema que o perseguem ao longo do ecrã. O poema torna-se assim numa mancha de letras

transiente que acompanha os movimentos do leitor e que o torna na figura central da geração

textual. O carácter abstracto e conceptual da poesia adapta-se facilmente a este tipo de exploração

artística do meio digital mas a narrativa nem sempre se coaduna com uma leitura meramente

exploratória em que apenas é possível reunir alguns pontos de ligação fugazes e restritos entre

significantes, ícones ou imagens. Porém, na ausência de um desfecho ou sequência coerente de

eventos, as personagens persistem. Elas auxiliam o leitor a acompanhar uma história ou narrativa,

mesmo quando esta não tem qualquer coerência estrutural. São portais de acesso, adjuvantes ou

oponentes, esfinges inquisitivas que aguardam pela resolução do enigma ou que indicam

instantaneamente o caminho. Elas recebem o leitor dentro de território desconhecido e inóspito,

tornando-o muitas vezes num membro do seu mundo possível. Por este motivo, elas são pontos

de resguardo quando o emaranhado de enredos começa a dominar toda a obra. Dentro delas

existem histórias que nunca conhecem um desfecho.

66 Este espaço pode ser conhecido no seguinte endereço: http://www.evl.uic.edu/core.php?mod=4&type=1&indi=161 .

57

- Capítulo II –

O ícone e a palavra: o texto como enigma

No capítulo anterior foi demonstrado que a literatura electrónica não é apenas uma forma de

expressão gerada através do uso do computador para fins artísticos. De facto, esta manifesta uma

familiaridade com formas de representação e média anteriores efectuando muitas vezes uma fusão

das suas características. Por este motivo, ela reacende algumas das fricções entre teorias literárias e

reforça a necessidade de, dado o seu carácter multimodal, rever alguns dos seus pressupostos. No

presente capítulo pretendo centrar a minha atenção na hibridez do texto electrónico. Para tal, será

primordial verificar de que forma este, fazendo uso de ferramentas informáticas e de um ambiente

multimédia, veicula uma história.

A literatura electrónica é constituída por uma intersecção entre várias linguagens e formas de

representação que dão lugar a uma miríade de criações imbricadas. O hibridismo das obras de

literatura electrónica, possibilitado pela capacidade de simulação reunida pelo computador,

complexifica a relação entre significante e significado ou entre referente e a sua representação.

Embora seja difícil encontrar um critério universal que possibilite a identificação ou categorização

de uma obra de literatura electrónica, se a atenção for centrada num conjunto de características que

provêm de outros meios é possível chegar a uma análise bastante rica e profícua deste tipo de

literatura. Desta forma, será possível aplicar todo o conhecimento construído em torno de outras

formas de representação e, ao mesmo tempo, reforçar a ideia de que a literatura electrónica é uma

continuação de um longo processo que remonta à primeira manifestação expressiva ou ao

surgimento das primeiras superfícies de inscrição. No primeiro capítulo foi demonstrado que a

literatura electrónica tem vários aspectos em comum com formas de expressão milenares. Neste

capítulo passarei a referir-me aos formatos e aos suportes capazes de revelar uma história e em que

medida estes interferem no processo de significação.

58

Words as occurrences: a (i)materialidade digital

La Littérature est comme le phosphore: elle brille le plus au

moment où elle tente de mourir.

Roland Barthes, Le degré zéro de l'écriture.

Es ist ein trockenes Material, an welchem sich das brennende

Interesse des Lesers nährt67.

Walter Benjamin, “Der Erzähler”

Materiality – if one whishes’ to call it that – is limited to the

individual pixel.

Oliver Grau, Virtual Art: from Illusion to Immersion

Numa cultura oral as palavras não têm uma presença visual68. Elas são sons que circulam

livremente, sem deixar um rastro. Segundo Walter Ong, elas são ocorrências, eventos (21). Sendo

assim, a literatura oral estaria dependente de uma “dynamic resurrection” levada a cabo pelo poeta

ou orador. Os contos, as lendas ou provérbios que nasceram numa cultura oral eram mantidos

vivos pelos seus falantes. Sem a possibilidade de registo, muitos deles acabariam por perder-se.

Para Walter Ong as palavras desaparecem assim que são enunciadas. Ao contrário do texto escrito

ou impresso, não existe uma superfície de inscrição que as receba e lhes dê forma. No seguinte

excerto, Ong sublinha o carácter imaterial e efémero do discurso numa cultura oral:

Oral man is not likely to think of words as ‘signs’, quiescent visual phenomena. Homer refers to

them with the standard epithet ‘winged words’ – which suggests evanescence, power, and freedom:

words are constantly moving, but by flight, which is a powerful form of movement, and one lifting

the flier free of the ordinary, gross heavy, ‘objective’ world. (Ong, 1982: 77)

O texto digital tem uma superfície de inscrição que é representada pelo ecrã. Contudo, as palavras

emitidas pelo computador nem sempre são apresentadas de forma estável e permanente. Tal como

numa cultura oral, as palavras inscritas em meio digital são muitas vezes momentos ou ocorrências

sem âncoras feitas de tinta ou de papel.

67 “É um material seco aquele que o leitor utiliza para alimentar o seu interesse ardente” [tradução minha]. 68 Uma versão reduzida do presente subcapítulo foi aceite para publicação na revista do CECL (Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens, Universidade Nova de Lisboa). Até à data, esta revista ainda não foi publicada, pelo que os dados deste artigo não podem ser aqui facultados.

59

Markku Eskelinen considera que, na maior parte dos casos, é possível referir-se a um livro impresso

como um “todo textual”69, ou seja, é possível constatar que o texto tem um fim. O formato em

que este se encontra inscrito apresenta uma última página e uma contracapa. É igualmente possível

relê-lo infinitamente, pois os seus significantes permanecem inalterados na superfície da folha.

Porém, existem inúmeros exemplos que permitem colocar em causa esta noção de texto enquanto

unidade hermética, finalizada e circunscrita ao corpo de um livro. O livro de artista Agrippa

construído por William Gibson e Dennis Ashbaugh é composto por dois formatos: um livro e uma

disquete. Agrippa apenas pode ser lido uma vez. Se o livro apresenta páginas fotossensíveis

autodestruindo-se após existir um contacto com a luz, a disquete inclui um programa que encripta

o texto após a primeira leitura. Ambos os formatos circunscrevem o processo de leitura. Porém,

enquanto o texto inscrito no formato de papel desaparece irremediavelmente, o conteúdo da

disquete pode ser recuperado. Na verdade, foi isto que veio a acontecer com a informação incluída

na disquete de Agrippa. O conjunto de dados foram desencriptados e a totalidade de bits foi

recuperada por uma equipa constituída por Matthew Kirschenbaum e Alan Liu70. Com este

exemplo, não pretendo defender que o formato digital oferece uma fiabilidade superior ao formato

impresso. O que pretendo aqui frisar é que ambos têm diferentes tipos de materialidade que não

se esgotam numa noção do que é palpável, visível ou derradeiro. Isto torna-se particularmente claro

quando recorremos à teoria do cibertexto criada por Espen Aarseth. Perceptualmente, os leitores

de um texto impresso têm todo o tempo para proceder à leitura, sem a sensação de que algo foi

escondido mas, no texto digital, o todo textual encontra-se dividido em duas camadas: a interface

e o armazenamento/memória. No texto impresso os scriptons e os textons71 não podem ser ocultados

do leitor durante muito tempo. Já no meio digital ambos podem permanecer inacessíveis ao

utilizador. São os textões (os quais permanecem ocultos do leitor) que geram os escritões. Embora

estes representem a cadeia de sinais tal como surgem perante o leitor, a forma como estes são

suscitados nem sempre é fácil de compreender e controlar. Tal como as palavras aladas de Homero,

69 As convenções ligadas à ideia de texto como um todo são identificadas por Eskelinen: os leitores conseguem ler o texto todo porque é uma exigência feita pela actividade interpretativa; os leitores devem ler o texto na sua totalidade porque apenas assim poderão compreendê-lo e interpretá-lo; o ponto onde termina o todo é o ponto que encerra a leitura; é possível reler o mesmo texto porque os seus significantes não mudam entre ou durante leituras; a forma como o texto é lido não altera a cadeia de sinais (Eskelinen, 2012: 70-72). 70 No arquivo dedicado a este livro, The Agrippa Files, Kirschenbaum explica como decorreu este processo: “Through a process of trial and error, we were able to obtain a complete “disk image” of the disk (that is, a bit-level copy) and then mount that copy in a Macintosh System 7 “emulator,” a software duplication for current machines of the functions of the original operating system on which the 1992 disk ran (definitions of disk image and emulator). This allowed us to run (and rerun) the Agrippa diskette at will by spawning multiple copies of the disk image and running each to its death (encrypted disappearance) through the emulator” (Kirschenbaum, 2007). 71 A teoria do cibertexto vê um texto como uma máquina concreta de produção e consumo de sinais e o medium como operador dessa cadeia de sinais. Esta cadeia divide-se entre textons (cadeia de sinais que compõem o texto) e scriptons (cadeia de sinais, tal como são apresentados ao leitor/utilizador). O mecanismo que permite aos textões gerar os escritões é chamado “função transversal” a qual é descrita através da colaboração entre sete variáveis: dinâmica, determinabilidade, transiência, perspectiva, ligações, acesso e função do utilizador (Aarseth, 1997: 62-65).

60

o texto digital caracteriza-se pela sua fugacidade. A sua natureza volátil e a necessidade de ser

accionado pelo leitor tornam estes textos em processos que decorrem ao longo da leitura. O texto

alimenta-se assim da sua própria geração. Por seu turno, a forma como decorre a alternância entre

palavras ou textos e o tempo destinado à leitura têm impacto na capacidade de o leitor perceber,

aceder ou interpretar qualquer narrativa. A relação entre temporalidade e materialidade torna-se

num tema obrigatório dentro da teorização da literatura electrónica na medida em que estas duas

componentes são directamente afectadas pelo funcionamento opaco e dinâmico do computador.

Nas próximas páginas será possível verificar que ambas estão inevitavelmente ligadas.

Temporalidade

Eskelinen acrescentou ao modelo de Genette (que contempla o tempo narrativo, da tempo da história,

o tempo real e o pseudo-tempo) o tempo do ecrã (tempo em que a obra está visível no ecrã) identificado

por David Bordwell (134). De acordo com Eskelinen, o pseudo-tempo afecta duas das categorias

temporais criadas por Genette: a ordem e a duração. O pseudo-tempo foi identificado por Genette como

um tempo que substitui o tempo real. Numa comparação com a narrativa oral, Genette sublinha que

o tempo de uma narrativa escrita está ligado ao espaço e traduz-se no tempo que o leitor demora

a “percorrer” o texto:

Books are a little more constrained than people sometimes say they are by the celebrated linearity

of the linguistic signifier, which is easier to deny in theory than eliminate in fact. However, there is

no question here of identifying the status of written narrative (literary or not) with that of oral

narrative. The temporality of written narrative is to some extent conditional or instrumental;

produced in time, like everything else, written narrative exists in space and as space, and the time

needed for "consuming" it is the time needed for crossing or traversing it, like a road or a field. The

narrative text, like every other text, has no other temporality than what it borrows, metonymically,

from its own reading. (..) we must first take that displacement for granted, since it forms part of the

narrative game and therefore accept literally the quasi-fiction of Erzählzeit, this false time standing

in for a true time and to be treated - with the combination of reservation and acquiescence that this

involves - as a pseudo-time. (Genette, 1980:34)

Contudo, Eskelinen considera que estas categorias de tempo não são suficientes na análise de obras

digitais e sublinha que é necessário ter em conta dois tipos de tempo: tempo do sistema (aparecimento,

desaparecimento e possível reaparecimento do texto e das suas partes ou fases) e tempo de leitura

(quando o acesso é limitado por constrições temporais). Estas duas categorias estendem-se a

61

qualquer texto digital e não são baseadas nas propriedades narrativas do texto. Eskelinen observa

que elas pertencem ao “sistema estilístico” dos textos digitais (135)72.

O tempo de sistema tem a ver com o que é permanente ou temporário no texto. Segundo Eskelinen,

um livro ou textos impressos são permanentes até ficarem deteriorados pelo tempo. Os seus

significantes não mudam, a não ser que sofram um desgaste. Por sua vez, caso fosse utilizada uma

técnica para fazer desaparecer intencionalmente os seus significantes (o que me leva a recordar

Agrippa), o texto nunca mais poderia ser revisitado. Eskelinen defende que, nos textos digitais, esse

processo de desaparecimento, tal como foi possível constatar com a recuperação de dados incluídos

na disquete de Agrippa, pode ser reversível (158). Este tipo de tempo pode ser estático ou dinâmico

(as definições mudam ou não) e, tal como o tempo de leitura, pode ser visto sob as categorias

duração, frequência e velocidade distinguidas por Genette73. A frequência (número de vezes que o texto

pode ser visitado) refere-se à capacidade de repetição do texto. Para Genette existem três tipos de

frequência: singulativa (narra-se uma vez o que aconteceu uma vez ou narra-se n vezes o que

aconteceu n vezes); repetitiva (narra-se n vezes o que aconteceu uma vez); iterativa (narra-se uma

vez o que aconteceu n vezes). Porém, o número de vezes que o leitor visita uma lexia varia de

utilizador para utilizador. Adicionalmente, o mesmo bloco de texto pode surgir várias vezes ao

longo da leitura. Eskelinen afirma que a releitura de um determinado passo reduz a incoerência

provocada por obras instáveis ou dinâmicas: “rereading reduces ‘noise’ in narrative information”

(148). Eskelinen equipara a repetição de um momento da narração à releitura de um bloco de texto.

Duração e velocidade são categorias temporais distinguidas por Genette e igualmente discutidas por

Eskelinen. Eskelinen distingue uma componente fundamental na análise da velocidade: “Perhaps the

only qualitatively important aspect of presentation speed is its relation to the reader’s capacities of

perception and cognition. If the text moves too quickly, then parts of it will be inevitably missed,

at least until the next presentation (if any)” (152). A velocidade de leitura exigida ao leitor pode

surgir como uma limitação. Algumas partes do texto podem ser movidas ou substituídas a uma

velocidade igual, superior ou inferior à velocidade de leitura. Adicionalmente, o texto poderá parar

de ser apresentado, introduzindo uma “pausa obrigatória” para o leitor seguir uma hiperligação ou

dedicar-se a outra actividade. Para além disso, o leitor poderá não conseguir reler uma parte ou o

texto inteiro porque as partes do texto podem ter sido alteradas ou deslocadas.

72 O tempo de sistema e tempo de leitura não são aplicáveis a textos impressos porque, de acordo com Eskelinen, estes foram construídos para serem acedidos permanentemente (136). Porém a relação entre o tempo da história e tempo da narrativa em obras impressas pode ser variável ou invariável e não apenas permanente. Eskelinen adverte que uma outra divisão pode surgir, nomeadamente entre tempo ergódico e não-ergódico, dependendo se o leitor consegue ou não manipular esses tempos. 73 Eskelinen afirma que os livros têm duração e frequência ilimitada e não têm velocidade ao nível do sistema.

62

Eskelinen distingue três tipos de duração: duração de ecrã (minutos e segundos); duração da narrativa

(medida em palavras e letras) e duração da história (anos ou meses em tempo real). Para Genette, a

duração de uma narrativa é impossível de medir74. Contudo, as narrativas digitais podem tornar a

duração num factor mesurável (150).

A forma como decorre a alternância entre palavras ou textos e o tempo destinado à leitura (tempo

de leitura) têm impacto na capacidade de o leitor perceber, aceder e interpretar qualquer narrativa75.

Perante as obras Dakota e Nippon, criadas pelo grupo Young-Hae Chang Heavy Industries, o leitor

dispõe de um tempo limitado para proceder à leitura. Estes dois textos assemelham-se a um filme

que, impulsionados por uma banda sonora jazzística (as palavras ou letras surgem interligados com

o som de cada nota ou acorde), impedem muitas vezes o leitor de ler a totalidade das frases ou

palavras. O surgimento das palavras acompanham cada nota ou acorde, o que confere ao texto

uma velocidade muitas vezes impossível de acompanhar. No entanto, apesar de a leitura total da

obra ser prejudicada pela rapidez com que as palavras surgem no ecrã, o leitor consegue chegar a

nichos de sentido ou captar o ambiente representado por ambas as obras.

A música jazz, um género musical que é frequentemente conotado com a improvisação, oferece

um carácter sincopado ao texto. A variação no ritmo da música tem impacto na velocidade de leitura

mas as personagens e eventos surgem de forma linear. O texto torna-se numa narrativa onde a

música e o design minimalista das letras têm um papel fundamental. Esta é uma narrativa

temporizada que não pode ser detida ou relida durante uma sessão. A música, imparável, dita o

ritmo a que o texto emerge no ecrã. Dakota e Nippon são baseadas na reprodução e não na

exploração ou configuração do texto.

Embora o tempo de leitura e o tempo de sistema não sejam narrativos, eles têm impacto na narrativa e

também podem ser analisados na narrativa impressa. Enquanto nesta são ilimitados e permanentes,

nos textos digitais existem limitações não-ergódicas e ergódicas. Eskelinen refere que apenas os

textos que não têm qualquer tipo de limitação em termos de tempo de leitura são compatíveis com a

narratologia tradicional (157). Sendo assim, o tempo de leitura pode ser ilimitado (ficção impressa) e

ainda limitado em termos de duração (quanto tempo a narrativa pode ser lida); pode ser limitada em

termos de velocidade (a que velocidade mínima e máxima um texto permite ser lido) ou frequência

(quantas vezes pode ser lido).

As obras criadas pelo grupo Young-Hae Chang Heavy Industries, acima referidas, são

constrangidas por limitações temporais não-ergódicas, ou seja, elas manifestam características

74 Na literatura impressa e na ficção hipertextual só existe duração em pseudo-tempo (155) mas em textos que tenham uma componente audiovisual é possível obter duração em tempo real. Para além do pseudo-tempo e do tempo real distinguidos por Genette, Eskelinen constata que existe o tempo real de comunicação entre utilizadores. 75 Schäfer e Gendolla referem-se ao computador como um “aparelho de programação temporária” (84).

63

fílmicas que anulam qualquer influência sobre a estrutura temporal do texto. Porque são

circunscritas em termos temporais, é possível calcular o tempo de leitura destas obras: Nippon tem

cerca de 16 minutos de reprodução e retorna ao início após esse período; Dakota é disponibilizada

durante 6 minutos e devolve o leitor à página inicial findo esse tempo. Contrariamente, o tempo de

leitura de um livro impresso é impossível de prever. O leitor pode fazer pausas durante a leitura e

pode rever uma página já lida. Perante textos digitais, é possível encontrar um novo tipo de leitura:

“As digital texts can be programmed to react to the way they are being read and to set conditions

on the reader and the reading process, a new dimension of constrained reading and programmed

time has opened up” (154).

Eskelinen chama a atenção para o facto de, embora o tempo de leitura possa depender do tempo de

sistema (proporcionado pelo computador), não significa que ambos possam ser equiparados. O

tempo do sistema pode apresentar um texto por duas horas mas o tempo de leitura pode não decorrer

em duas horas. O facto de um texto surgir 100 vezes, não quer dizer que o leitor o irá ler 100 vezes.

Por este motivo, Eskelinen projecta uma ficção web inexistente. Esta estaria disponível online por

12 meses (duração do sistema); durante este período mudaria uma vez por mês (velocidade de

sistema), ou seja, mudaria 12 vezes por ano (frequência de sistema). O leitor poderia aceder duas

vezes à obra (frequência de leitura) por 24 horas (duração de leitura). O leitor teria de ocupar 5

minutos em cada nó (velocidade de leitura) e só depois poderia passar ao próximo nó (160-161).

Porém, se tentarmos aplicar este esquema a Dakota e Nippon, surgem diversas dificuldades. Tal

como a obra projectada por Eskelinen, estas obras certamente não seriam consideradas como obras

temporalmente ergódicas porque o leitor não pode alterar (ou melhor, configurar) as suas

características temporais. Este exemplo torna necessária uma distinção entre a análise temporal de

uma obra numa sessão e a análise temporal de uma obra enquanto armazenada num local

permanentemente acessível ao leitor. Isto quer dizer que, se seguirmos o exemplo oferecido por

Eskelinen, no qual as alterações de estado de uma obra têm preponderância, verificamos que é

imperativo constatar se essas alterações se tornam manifestas durante a sessão ou se existe alguma

mutação entre sessões. Embora mudem completamente durante uma sessão, Dakota e Nippon

podem ser acedidas ad aeternum, sem qualquer tipo de alterações entre visitas.

Apesar de fazer referência a outro tipo de textos, Eskelinen centra a sua atenção em obras

hipertextuais, ou seja, obras divididas em blocos de textos e percorridas através de hiperligações

que, embora alterem os seus textões ou escritões durante uma sessão, não são alteradas entre visitas.

Para além disso, elas permitem ao leitor revisitar partes do texto76. Muitas destas ficções

76 Em muitas destas obras é possível fazer uma leitura cartográfica porque é fornecido um mapa ao leitor a partir do qual ele pode seleccionar uma determinada lexia. Estes mapas conferem igualmente uma visão geral do texto, apresentando-o como um todo inalterável.

64

hipertextuais foram publicadas em CD e a sua mutabilidade era circunscrita ao tipo e quantidade

de dados armazenados nesse suporte. A possibilidade de revisitar uma parte do texto ou de

regressar a um ponto do texto são factores que têm uma atenção particular por parte de Eskelinen

porque este autor parte da teoria cibertextual criada por Espen Aarseth nos anos noventa. Contudo,

se tentarmos aplicar o exemplo acima construído por Eskelinen às duas obras aqui citadas,

verificamos que existe um conflito entre a abordagem dessas obras numa sessão e a abordagem

dessas obras enquanto inscritas num ambiente volátil como a WWW. Tanto Nippon como Dakota

manifestam um comportamento diferente se forem analisadas dentro de uma sessão de leitura ou

como um artefacto inscrito online. Elas não são constituídas por partes nem podem ser relidas

dentro de uma sessão. Ao longo de uma sessão de leitura verificamos que ambas ocorrem a um

ritmo frenético e por vezes demasiado célere para permitir a finalização da leitura. Por este motivo,

são aqui sugeridos dois tipos de abordagem a esta obra: análise por sessão e análise entre sessões.

Análise por sessão

Ambas as obras apresentam o tempo de leitura e o tempo de sistema como paralelos e ocorrem

como processos. Nippon é apresentada pelo computador durante 16 minutos e Dakota é

apresentada durante 6 minutos (duração do sistema). Estes são os períodos de tempo que o

leitor tem para proceder à leitura de cada uma delas (duração de leitura). A velocidade de leitura é

determinada pelo ritmo da própria obra.

Ambos os textos podem ser divididos em letras e palavras (ou notas e acordes) mas não

podem ser divididos em passagens ou blocos de textos. Dado o seu carácter fílmico (ao que

acresce a inexistência das opções pause/rewind/forward/play), o leitor não pode repetir a

leitura de um ou mais trechos destas duas obras numa sessão porque a mesma está em

constante reprodução ou em “recombinant flux”, tal como referido por Hayles (2008, 58).

Isto faz com que não seja possível anular o “ruído” provocado pela contínua transmissão de

informação (frequência de leitura). Durante os 16 e 6 minutos disponíveis para a leitura destas

obras, os significantes mantêm-se em constante mutação (frequência do sistema) porque o

computador pode introduzir uma ou várias palavras por segundo (velocidade de sistema)77.

Análise entre sessões

Se analisarmos estas narrativas tendo em vista mais do que uma sessão (ou se ambas as

narrativas forem analisadas como artefactos armazenados num servidor e facultados

77 Importa aqui destacar que a reprodução destas obras também pode ser afectada pelo desempenho da rede e do próprio computador ( velocidade de processamento ou velocidade da transmissão de dados).

65

permanentemente ao leitor) as categorias estipuladas por Eskelinen têm diferentes valores.

Nippon e Dakota apresentam 16 e 6 minutos como tempo de leitura e duração de sistema numa

sessão mas vistos como artefactos (e não como processos) armazenados num servidor elas

são tornadas em objectos estáveis e imperturbáveis. Como artefacto publicado na WWW,

ambas as obras podem ser relidas eternamente (frequência de leitura), pois elas não são alteradas

entre visitas. A velocidade de leitura e a duração de leitura tornam-se permanentes, isto é, não se

alteram entre visitas. Por seu turno, a velocidade do sistema é imensurável e ilimitada. Desde que

o leitor tenha acesso à internet e que a obra não tenha desaparecido, pode aceder a esta

quando desejar.

Embora o leitor seja impossibilitado de fazer uma pausa e retomar a leitura a partir de um certo

ponto, porque os dois textos encontram-se em permanente geração, Nippon e Dakota podem ser

acedidas repetidamente. Elas não sofrem qualquer alteração nos seus significantes entre visitas.

Contudo, tal como o livro impresso, estas obras podem facilmente desaparecer. Basta o sítio onde

elas são publicadas ser fechado ou o software em que se encontram inscritas tornar-se obsoleto e

estas duas obras desaparecem. O “desgaste” de textos impressos apontado por Eskelinen pode ser

equiparado à obsolescência dos textos digitais (uma hipótese real, por exemplo, para textos

publicados em Flash). Contudo, como foi possível constatar depois de conhecer a história de

Agrippa, os textos digitais não são apagados, podendo mesmo ser recuperados.

Existem ainda algumas obras que podem ser alteradas entre visitas. A obra poética The Deletionist

(2013), criada por Amaranth Borsuk, Jesper Juul e Nick Montfort, reduz páginas visitadas a um

conjunto de palavras-chave. Se a página visitada for alterada, The Deletionist encarrega-se de gerar

um novo poema.

A temporalidade de uma obra durante a sua leitura é visivelmente diferente da sua temporalidade

como artefacto. Ao referir-se às alterações no estado das obras em termos de desgaste (ou

durabilidade), Eskelinen parece confundir as características intrínsecas - e intencionalmente

adicionadas pelo autor/programador - de uma obra com as características/ limitações do formato

ou média em que esta é veiculada. Embora manifeste um comportamento volátil perante o

utilizador, o texto digital pode perdurar, tal como um texto impresso perdura na folha de papel. O

“desgaste” de textos impressos apontado por Eskelinen pode ser equiparado à obsolescência dos

textos digitais78.

78 Impermanence Agent (1999) poderia ilustrar a forma como uma obra muda entre visitas. Fazendo uso do histórico de pesquisas, ela alterava-se cada vez que era acedida pelo leitor. Segundo os autores, Impermanence Agent demorava uma semana a contar uma história. Contudo, em vez disso, esta obra tornou-se num exemplo em como as obras de literatura electrónica podem desaparecer ou ser drasticamente alteradas. O sítio onde ela residia foi cancelado e o acesso a

66

Materialidade

Scholes e Kellogg afirmaram que, numa cultura oral, uma história teria um tempo de vida limitado,

ou seja, ela apenas existia no momento em que era transmitida: “He [the singer] neither composes

or memorizes a fixed text. Each performance is a separate act of creation. Until he actually sings a

narrative, that song does not exist, except as a potential song among infinitely many others in the

apparatus of the singer’s tradition” (Scholes e Kellogg, 1966: 22). A incapacidade de prever o

próximo passo e de chegar a uma estabilidade textual é comparada à efemeridade do discurso oral

por Rita Raley:

During the time lag that occurs before a link is actualized, that interval or period of waiting

while a page loads from the top or fills in an outline, it is usually possible to make out the

text that is emerging, and yet one might get it wrong. In the moments of waiting, as one

waits for speech to emerge through a stammer and wants to speak for, to fill the gap and

complete the utterance, there is an implicit invitation for the link to be written for, to be

written through, to be reloaded, to be completed (Raley, 2001)

A ideia que as obras lidas e criadas por intermédio do computador não têm qualquer materialidade

ocupou os textos dos primeiros autores dedicados à análise deste fenómeno. Rita Raley associava

o hipertexto ao conceito sous rature79 discutido por Jacques Derrida:

It cannot be denied that something different happens when we work with hypertext, but

we cannot fix what that something is--it exists as effect, as the trace. To describe it verbally

is to destroy its effect, again because it cannot be placed within the analogical, but only in

the mode of its performance--its location, not locatable in the metaphysical sense, is thus

under erasure. (Raley, 2001)

Para Derrida a linguagem é um processo temporal. A leitura de um texto exige uma substituição

entre significantes, um aflorar de sentido a cada contacto com o texto. As palavras sucedem-se e

Impermanence Agent foi irremediavelmente vedado aos leitores. Esta obra deu lugar ao projecto “The Impermanence Agent” em: http://www.impermanenceagent.org/agent/index.html. 79 A arbitrariedade do signo linguístico foi uma característica apontada por Saussure. Derrida veio a referir-se à instabilidade da linguagem ou do signo linguístico através do conceito “sous rature”, importado da teoria de Heidegger que, na ausência de uma definição satisfatória, rasurava a palavra Sein: “The ‘formal essence’ of the sign can only be determined in terms of presence. One cannot get around that response, except by challenging the very form of the question and beginning to think that the sign is that ill-named thing, the only one, that escapes the instituting question of philosophy: "what is . . .? " (Derrida, 1978: 19). Enquanto Saussure via o significado e significante como ligados, Derrida referia que ambos se encontram em permanente recombinação. Assim, um texto deveria ser abordado como se estivesse “sob rasura”.

67

desaparecem durante a leitura. Dependendo do contexto, o seu significado muda80, pelo que

Derrida não associa à escrita a propriedade de fixar ou determinar o discurso.

Também Barthes reflectiu sobre a efemeridade da comunicação oral, que caracterizou como “uma

transferência sem rasto nem atraso” (Barthes, 1972: 16). A mesma fugacidade terá sido apontada

como uma característica fundamental de obras electrónicas. Os primeiros teóricos do hipertexto

baseavam-se na ideia de instabilidade e imprevisibilidade para descrever a dinâmica do hipertexto,

contrapondo-o à fixidez normalmente associada à literatura impressa. Rita Raley equiparava o

hipertexto a um vestígio ou a um rasto de pistas que se consumia a si próprio: “That difference,

the performance, is the trace, a moment in which hypertext itself performs. The operative

difference of hypertext can only be revealed in the performing and tracing of itself, in its own

instantiation” (2000). Johanna Drucker acreditava que a diferença entre o meio electrónico e o

meio impresso residia na sua imaterialidade: “The immateriality of the electronic medium also puts

into new perspective the status of documents susceptible to change, erasure (…) all so radically

different from texts produced on parchment, paper and stone whose history resides in their

material as well as in the substance of their linguistic expression” (Drucker, 1995: 307-308).

Por oposição ao livro, o hipertexto electrónico81 teria uma presença fantasmagórica, fazendo-se

sentir apenas quando invocado pelo leitor. O computador seria responsável pela projecção de um

espectro. Já o livro tipográfico estava relacionado com a fixidez e controlo sobre o material ao que

se juntava o poder de uma entidade autoral sobre o texto. Sarah Sloane definiu a materialidade da

ficção digital não como um conjunto de características físicas mas como uma construção:

I do not mean raw materials, nor essence, bulk, terra, or physical domain. I mean something

constructed (…) the matter from which structures are made, including structures such as

allegory, narrator, plot, as well as all the material traces of such discourse, everything from

page to scripted behaviors (…) material as fabric, and the uses to which material is put by

programmers, as fabrications”. (Sloane, 2000:5)

80 Derrida defendeu que o discurso oral beneficia de um protagonismo na cultura ocidental (fonocentrismo), isto porque este implica a noção de presença. Já a escrita, escapa ao controlo, separa-se do interlocutor e obriga a uma exteriorização da consciência. No entanto, a alusão a termos universais (“significados transcendentais”) como “Deus” ou “Eu”, levou Derrida a afirmar que também existe um logocentrismo. Derrida considera que o logocentrismo e o fonocentrismo estão ligados a uma necessidade humana de subverter o caos e encontrar “um centro entre um começo e um fim” (Derrida, 1978: 12). 81 A expressão “hipertexto electrónico” é usada com o intuito de frisar que também é possível produzir um hipertexto no livro impresso. Sobre esta possibilidade N. Katherine Hayles escreveu o artigo intitulado “Print is Flat Code is deep: The importance of Media-Specific Analysis” (2004), no qual elaborou uma análise da especificidade do meio através de uma comparação entre o hipertexto electrónico e tipográfico. Ted Nelson já havia conceptualizado o hipertexto electrónico em 1965 por analogia com as estruturas textuais impressas dos jornais e das revistas.

68

Para Sloane, a materialidade encontrava-se geminada com o discurso, com a programação de um

texto digital ou com a própria narrativa. Tal como o poema da tradição oral, um texto electrónico

não tinha uma matriz física porque não era apresentado ao leitor através de uma superfície

visualmente estável. Em meados dos anos noventa, Johanna Drucker referia que o meio digital,

sendo ele imaterial mas também ilimitado em termos de armazenamento, poderia colaborar na

preservação do património tipográfico:

While it becomes problematic to believe that books as we have known them will endure,

or that future generations will take more pleasure from the physicality of writing than from

the immaterial electronic trace, it is also evident that electronic media offer tremendous

possibilities for preservation of older forms. Many of the sources referred to in this book

were literally crumbling as they were read, and may not exist for future generations of

scholars unless they are recorded electronically, preferably in some sophisticated surrogate

capable of recreating the visual excitement of the forms of the originals. (Drucker, 1995:

307)

Desde a publicação desta citação de Drucker, foram criados vários arquivos electrónicos dedicados

ao universo do livro tipográfico. George Landow criou os arquivos The Victorian Web e The

Postcolonial Literature and Culture Web. As obras e gravuras de William Blake estão representadas no

The William Blake Archive82. Em Portugal foi criado o PO.EX83, um arquivo sobre poesia

experimental portuguesa. Também em Portugal, está a ser criado um arquivo dedicado ao Livro do

Desassossego84 de Fernando Pessoa que disponibilizará fac-símiles dos excertos deixados por este

autor, bem como as diferentes edições do Livro do Desassossego produzidas até ao momento. Este

conjunto de arquivos não fornecem apenas uma vasta quantidade de informação mas também

novas ferramentas críticas ou de análise literária. À medida que novos recursos informáticos são

disponibilizados, surgem novas possibilidades de apresentação e exploração de obras anteriores à

chegada dos média digitais.

Ainda que os processos que possibilitam a emergência do texto no ecrã permaneçam ocultos, a

manipulação do objecto electrónico faz-se por intermédio de dispositivos (sejam eles sensores de

82 Estes arquivos podem ser consultados, respectivamente, em: http://www.victorianweb.org/;http://www.postcolonialweb.org/; http://www.cyberartsweb.org/cpace/ e http://www.blakearchive.org. 83 Disponível em http://po-ex.net/ . 84 A apresentação do projecto pode ser consultada no primeiro número da revista MATLIT, a revista do Doutoramento em Materialidades da Literatura: http://iduc.uc.pt/index.php/matlit/article/view/1618/html ou na página dedicada a este projecto: http://projetoldod.com/.

69

movimento ou o simples teclado) que exigem uma acção física por parte do leitor. Por este motivo,

podemos afirmar que existe uma manifestação concreta e um contacto físico com o texto e não

uma exposição imaterial ou desenraizada deste. Todavia, como a linha de causalidade entre acção

e efeito não pode ser visualizada, o computador surge como uma caixa negra cuja opacidade cria a

ilusão de uma cesura entre a acção do utilizador e a resposta do computador. Contrariamente a esta

posição, Matthew Kirschenbaum defende que o texto electrónico tem uma materialidade

específica, ainda que diferente da materialidade tipográfica. Num estudo intitulado Mechanisms: New

Media and the Forensic Imagination (2008), este crítico defende que o texto electrónico tem uma

materialidade, ainda que esta não seja imediatamente detectada pelo utilizador comum.

Kirschenbaum salienta que um texto electrónico está inscrito no disco rígido de um computador.

Assim como o texto impresso, o texto digital também pode ser localizado: “Electronic literature is

similarly locatable, even though we are not accustomed to thinking of it in physical terms” (3). Os

bits e microns que o compõem podem ser quantificados e visualizados com recurso, por exemplo,

a um MFM (microscópio de força magnética).

Kirschenbaum centra-se na materialidade forense e rejeita uma análise limitada à superfície do ecrã.

Com o intuito de contrariar o screen essentialism que leva a considerar o computador como parte de

um conjunto de haunted media, Kirschenbaum defende que este tem duas materialidades: a

materialidade formal e a materialidade forense. Se a materialidade forense remete para a

possibilidade de inscrição de dados num disco rígido, a materialidade formal refere-se à

manipulação de elementos ao nível do ecrã. Para Kirschenbaum, o computador permite uma

fixidez e estabilidade superior à do livro. De facto, todas as acções do utilizador ou alterações

efectuadas a um documento podem ser rastreadas (de acordo com Kirschenbaum, “every contact

leaves a trace”). A ideia de que o computador oferece um meio instável e imaterial de

armazenamento de informação é uma ideia projectada pela análise de objectos digitais ao nível do

ecrã.

Drucker reconhece a importância da distinção entre materialidade formal e forense85 sugerida por

Kirschenbaum. Contudo, observa que ambas são baseadas nos suportes físicos e não nas

funcionalidades do meio. Por este motivo, Drucker acrescenta um outro tipo de materialidade: a

materialidade performativa. Para esta autora, a materialidade formal e forense agem como uma

provocação de um acto interpretativo (Drucker, 2013). A materialidade pode referir-se ao meio ou

à superfície de inscrição, mas esta será apenas um ponto de partida para a interpretação. A

abordagem baseada na materialidade performativa parte de uma “premissa probabilística”, o que

85 Se em The Alphabetic Labyrinth (1999) Drucker caracteriza o meio electrónico como “imaterial”, no artigo publicado em 2013 a autora abandona este termo. Este detalhe deixa entrever uma viragem fundamental no estudo da materialidade do texto digital, bem como permite verificar que esta é uma área em constante revisão.

70

permite ver o texto como se este estivesse em permanente geração. A leitura deste é descrita como

um evento: “Performative materiality emphasizes the production of a work as an interpretative

event.” (Drucker, 2013: 22). Para além da materialidade forense e formal, a noção de materialidade

passa a estar ligada à interacção do leitor com a superfície de inscrição e à sua capacidade de

construir o texto através do acto performativo de interpretação. Isto significa que não são apenas

textos transientes e ergódicos que são gerados durante a leitura: “The materiality of the system, no

matter how stable, bears only a probabilistic relation to the event of production, which always

occurs only in real time and is distinct in each instance” (Drucker, 2013: 8). Esta noção de

materialidade atribui ao texto escrito algumas características da oralidade identificadas por Walter

Ong. Despertados pelo movimento interpretativo do leitor (que recorda a “ressurreição dinâmica”

identificada por Ong), os textos são “ocorrências, eventos” e não entidades fixas num espaço.

Porém, as palavras numa cultura oral não deixam o rasto (trace) que definia o comportamento

textual de obras digitais. Segundo Ong, as palavras “não têm um foco ou um rasto (uma metáfora

visual que mostra dependência da escrita)” (31). Sem um registo físico, a comunicação oral depende

da presença dos seus interlocutores. A materialidade performativa permite redefinir o texto como

um terreno de possibilidades suscitadas pelo contacto (ou comunicação) entre o leitor e a obra. Ao

descrever o texto literário como algo que é concretizado através e ao longo da leitura, Drucker

aproxima igualmente o meio impresso do meio digital através da interpretação. Livres da noção de

fixidez, que limita o estudo da materialidade do texto literário ao conjunto de provas físicas da sua

existência, os textos transientes e ergódicos digitais revelam a sua materialidade. Juntamente com a

materialidade formal e forense, a materialidade performativa permite ver o texto digital em toda a

sua amplitude.

Transparência

A noção de imaterialidade do meio digital é muitas vezes provocada pela rejeição da ideia que o

livro é, também ele, uma tecnologia. Esta tecnologia foi gradualmente naturalizada ao longo de

mais de cinco séculos (se considerarmos como ponto de partida a invenção da tipografia no século

xv) e é hoje um objecto familiar. Embora o computador tenha entrado no espaço doméstico, nas

salas de aula e nos acompanhe no dia-a-dia, ainda existe a noção que este é um meio artificial e

desumano. Isto acontece porque o computador tem vindo a evoluir tornando o seu funcionamento

interno cada vez mais transparente. Esta situação foi apontada por Friedrich Kittler no seu texto

sobre o desaparecimento do software.

71

Programming languages have eroded the monopoly of ordinary language and grown into a

new hierarchy of their own. This postmodern tower of Babel reaches from simple

operation codes whose linguistic extension is still a hardware configuration passing through

an assembler whose extension is that very assembler. As a consequence, far reaching chains

of self-similarities in the sense defined by fractal theory organize the software as well as the

hardware of every writing. What remains a problem is only the realization of these layers

which, just as modern media technologies in general, have been explicitly contrived in order

to evade all perception. We simply do not know what our writing does. (Kittler, 1995: 148)

O facto de não existir um espaço onde localizar o software, nem uma forma de discernir o software

da escrita leva Kittler a declarar o desaparecimento do mesmo e a autonomia da escrita. Lori

Emerson referiu-se ao funcionamento transparente do computador como uma consequência de

décadas de investigação para torná-lo user-friendly. Emerson vê o fenómeno de ubicomp ou ubiquitous

computing como o resultado de várias interpretações erradas do trabalho de Mark Weiser86, onde ele

define a “invisibilidade” como um critério fundamental para a construção de software (4). Os

componentes do computador são cada vez mais leves e diminutos. Só que isto não quer dizer que

ele possa ser considerado como um meio de expressão artificial e imaterial.

Numa cultura oral, a aquisição e difusão de conhecimento era um processo lento. Sem a ajuda de

um suporte físico seria difícil lembrar e propagar novas ideias. A cultura oral dependia amplamente

da sabedoria dos seus anciãos deixando pouco espaço para a experimentação intelectual. Platão

acreditava que a escrita viria a enfraquecer a mente porque esta se encontrava livre do exercício de

memorização87. Porém, os pensamentos filosóficos de Platão chegaram até nós porque foram

redigidos. Ong acredita que o pensamento analítico de Platão apenas foi possível porque as suas

ideias foram registadas (79). Sendo assim, todo o seu trabalho intelectual, incluindo o dedicado à

escrita, ficou a dever-se à possibilidade de registar e rever os seus argumentos.

Para Ong, aqueles que mantinham uma posição contra o uso do computador estariam a cometer o

mesmo erro de Platão, pois os artigos e livros publicados são compostos primeiramente através

deste dispositivo: “The same weakness in anti-computer positions is that, to make them effective,

their proponents articulate them in articles or books printed from tapes composed on computer

86 Em 1991, Weiser descrevia o computador do séc. XXI da seguinte forma: “Most of the computers that participate in embodied virtuality [Weiser distancia-se da realidade virtual através do corpo] will be invisible in fact as well as in metaphor. Already computers in light switches, thermostats, stereos and ovens help to activate the world. These machines and more will be interconnected in a ubiquitous network” (Weiser, 1991: 84). No entanto, referia que, para o computador tornar-se invisível, seria necessário uma literacia digital: “Such a disappearance is a fundamental consequence not of technology but of human psychology. Whenever people learn something sufficiently well, they cease to be aware of it” (78). 87 Em O Fedro, Platão defende o seguinte: “A escrita atrofiará a memória das pessoas. A confiança na escrita fará com que elas se lembrem de coisas partindo de marcas geradas por outros (…). A escrita fará desaparecer das suas mentes as coisas que elas aprenderam.” (Platão, 2003: 69).

72

terminals” (80). N. Katherine Hayles sublinhou a falibilidade do argumento baseado na

contraposição entre tipografia e texto electrónico porque a maior parte dos textos já nascem em

ambiente digital antes de serem publicados. Ao informatizar a composição do livro, este terá

beneficiado de um novo grafismo e até de novas formas de difusão (Hayles, 2008: 162). No início

da década de oitenta, Ong havia afirmado o seguinte: “Despite what is sometimes said, electronic

devices are not eliminating printed books but are actually producing more of them. (…) The new

medium here reinforces the old” (136). Com esta citação, não pretendo defender um argumento

baseado na oposição entre “o velho e o novo” mas frisar que ambos os formatos coexistem e

colaboram entre si. Através da citação de Ong, é possível entrever que esta noção já existia muito

antes de a literatura electrónica ter surgido em representação do formato digital e antes da

hiperficção ser apresentada como a forma literária que substituiria o romance (ou o representante

do formato impresso).

Para Ong, o pensamento linear e analítico era um produto da escrita e não uma capacidade natural

do ser humano (40). O discurso oral, porque nascia com o ser humano, seria aquele

verdadeiramente natural: “By contrast with natural, oral speech, writing is completely artificial.

There is no way to write ‘naturally’” (81). Tanto a escrita como o computador seriam formas

artificiais de exteriorizar o pensamento88. Porém, a história da humanidade está intimamente ligada

à produção de ferramentas, ou seja, à produção de tecnologia. Ong acrescenta um argumento que

importa aqui destacar:

To say writing is artificial is not to condemn it but to praise it. Like other artificial creations

and indeed more than any other, it is utterly invaluable and indeed essential for the

realization of fuller, interior, human potentials. Technologies are not mere exterior aids but

also interior transformations of consciousness, and never more than when they affect the

word. (…) Technologies are artificial, but – paradox again – artificiality is natural to human

beings. (Ong, 1982: 82-83)

Emerson considera que será necessário evitar a metáfora da interface transparente ou “interface-

free” e substituí-la pela “interface-as-threshold”89 (142) e refere que teóricos dos média como

88 Ong comparou a recepção do computador à recepção da escrita: “Most persons are surprised, and many distressed, to learn that essentially the same objections commonly urged today against computers were urged by Plato (...). Writing, Plato has Socrates say in the Phaedrus, is inhuman, pretending to establish outside the mind what in reality can be only in the mind. It is a thing, a manufactured product. The same of course is said of computers” (Ong, 1982: 79). 89 O termo “interface” é também um termo que adquire diversos sentidos. Lori Emerson, na introdução de Reading Writing Interfaces, define este termo da seguinte forma: “interface is a technology – whether it is a fascicle, a typewriter, a command line, or a GUI – that mediates between the reader and the surface-level - human-authored writing, as well as, in the case of digital devices, the machine-based writing taking place below the gloss of the surface (Emerson, 2014). Emerson refere-se a ele como uma capa de um mágico que cria a ilusões.

73

Marshall McLuhan, têm vindo a antropomorfizar os média tornando-os em “extensões do ser

humano”, o que torna a interface num elemento insípido na comunicação entre ser humano e

máquina:

Trapped in the limited confines of an anthropocentric model of technology that cannot

account for the ways in which computers are at least in part resolutely nonhuman, this kind

of drive to transparency can only ever more deeply conceal the workings of the interface,

workings that are neither neutral (and so cannot simply be revealed through a model of the

interface as window) nor entirely humanlike. (Emerson, 2014: 142).

No entanto, apesar de ter conquistado alguma autonomia de funcionamento o computador, tal

como tantas outras ferramentas, é programado para alcançar um objectivo. O seu funcionamento

poderá não ser visível mas, ainda que tenha atingido um nível de complexidade superior, poderá

ser percebido e explicado. As obras de literatura electrónica englobam a interface, tornando-a num

elemento expressivo e não numa silhueta fantasmagórica. Drucker refere-se à mediação como parte

integrante da estética de um texto:

Aesthetics is transformed, hybridized, by the challenges of mediation as a central feature

of artistic work. The very situatedness and codependent character of mediation calls forth

a host of other terms apt for describing the aesthetic properties of digital media works:

embodied, complicit, experiential, participatory. Mediation, as a space between, is

registered in digital expressions as an ephemeral but material trace, a time-based inscription,

transiently configured, and constituted by and as an experiential field. (Drucker, 2009: 177)

Sendo assim, será importante centrar a atenção, não só na especificidade do meio e na sua

materialidade forense, mas também nas propriedades da interface. Sloane defende que o livro, tal

como “televisões, telas de cinema, tábuas de barro, rolos de papiro, pergaminho, velino ou as

paredes de uma gruta”, é um “sistema de entrega de informação” (25). Para Sloane eles difundem

histórias de forma diferente tornando claras as suas limitações na transmissão das mesmas (idem.).

A estas juntou-se o computador ou uma tecnologia que está cada vez mais presente no nosso

quotidiano. Tal como o livro e a própria escrita, ele introduziu novas possibilidades de expressão

criativa, sendo a literatura electrónica apenas um exemplo. A noção de materialidade dentro dos

estudos literários já não se refere exclusivamente a textos transmitidos através das páginas de um

livro, mas também às palavras (e imagens) aladas que perturbam a superfície de um ecrã.

74

Histórias à superfície – a ligação entre média

There would be no media without humans to invent them, and

no purpose to them without humans to give them meaning and

significance (…).

N. Katherine Hayles, My Mother Was a Computer

Similarly, new narrative traditions do not arise out of the blue.

A particular technology of communication - the printing press,

the movie camera, the radio – may startle us when it first arrives

on the scene, but the traditions of storytelling are continuous

and feed into another both in content and in form.

Janet Murray, Hamlet on the Holodeck

Entre imagem e palavra

A relação entre imagem e palavra nem sempre foi marcada pela primazia do discurso verbal. Na

Grécia antiga a origem (e a componente mítica) do alfabeto era explicada através de uma lenda que

revelava o seu passado pictórico: “Classical authors linked the alphabet to both Phoenician or

Egyptian sources – to the figures of either the semi-mythic Cadmus, a figure whose names mean

person “from the East,” or Thoth, the Egyptian god who is associated with the Greek Hermes”

(Drucker, 1995: 56). As letras seriam para os gregos unidades mínimas indivisíveis capazes de

representar o universo. Até ao início do séc. XIX, o alfabeto continuou a ser considerado como

algo mítico. Pensava-se que, ao ser capaz de simular o universo, este só poderia ter uma origem

divina.

A cosmologia neopitagórica defendia a teoria da harmonia entre as esferas do cosmos. Estas esferas

correspondiam a sete vogais planetárias: Alfa (α), Épsilon (ε), Eta (η), Iota (ι), Ómicron (ο), Úpsilon

(υ) e Ómega (ω). Por sua vez, estas vogais tinham uma ligação com a música: “The distances of the

planets from the Earth were converted to values of the chords in the heptachord which served as

the basis of Greek musical harmony. (…) Chords and notes were both indicated by letters of the

alphabet, with the vowels holding privileged place” (86). A relação entre música e alfabeto é

exemplificada pela obra Nio (2001) de Jim Andrews. De acordo com a entrada no volume II da

ELO, o leitor é colocado na “posição de compositor”. Ao passo que ele elabora uma fusão entre

sons e letras, estas são tornadas em animações que flutuam no centro de um círculo. As letras

dispostas ao longo deste círculo não estão organizadas alfabeticamente. De facto, o alfabeto não

75

surge representado na sua totalidade. As letras que são contempladas em Nio parecem ter sido

fundidas entre si. O círculo que figura em Nio é feito de linguagem verbal e icónica. As letras

perderam a sua individualidade bem como o seu valor fonético e tornaram-se em ícones ou em

símbolos acústicos. A música resultante desta actividade revela a ligação entre as letras (que flutuam

dentro de uma redoma enigmática) e o som produzido por uma voz masculina. Em vez de juntar

as diversas letras para construir um texto, o leitor junta cada ícone para dar lugar a uma composição

musical.

Nicómaco de Gérasa acreditava que a harmonia musical, conseguida através da junção entre

notas/letras, aproximava o ser humano do divino: “If the inexpressible things (vowels) are

combined with expressible things (consonants) just as the soul is bound to the body and harmony

of the strings, they create animate beings, those of the stories and songs, those of active faculties,

production of divine things” (1995, apud Drucker: 86). Ao contrário do que é expresso em Nio, as

letras do alfabeto grego não eram apenas um código ou um conjunto de caracteres vazio de sentido.

Segundo Drucker, o Ómega simbolizava o oceano e a sua imensidão. Já no Cristianismo, Deus

seria representado pelas letras alfa e ómega, o início e o fim de todas as coisas (87). Cada uma das

letras tinha um significado implícito que interligava todas as áreas do conhecimento e de expressão

artística.

Ao longo da história do alfabeto e ao longo da história das superfícies de inscrição, é possível

verificar que a componente verbal nem sempre deteve a primazia face à imaginação. Em The

Alphabetic Labyrinth: the letters in history and imagination (1995), Johanna Drucker explora o potencial

simbólico do alfabeto, o qual é normalmente descrito como uma abstracção do som que pretende

representar e como um conjunto de caracteres sem um significado próprio90. Embora não exista a

possibilidade de comprovar de que forma a escrita pictográfica evoluiu tornando-se num sistema

linear como a escrita alfabética, Drucker afirma que esta tem uma origem pictográfica:

“Sumero/Babylonian/Akkadian cuneiform, Egyptian hieroglyphics and their increasingly linear

recursive hieratic and demotic forms, Chinese characters and even the alphabet, all have derived

their schematic forms from pictographic originals. (Drucker, 1995: 16). A título de exemplo, o

alfabeto grego partilha algumas características com o alfabeto fenício e o semítico. O alpha grego,

por exemplo, é uma adaptação do aleph semítico que provém da imagem de uma cabeça de boi e

ainda de um hieróglifo.

90 Enquanto o alfabeto é exclusivamente fonético, existem sistemas linguísticos logográficos (o signo escrito representa apenas uma palavra) ou ideográfico (ideias e conceitos são representados directamente na forma de glifos ou caracteres). No caso dos caracteres chineses e dos hieróglifos egípcios, embora a diferentes níveis, estas três características estão simultaneamente presentes (14). Apesar dos esforços de vários filósofos do séc. XVI, é impossível conseguir um sistema de escrita puramente ideográfico. Drucker refere-se particularmente ao trabalho do bispo anglicano John Wilkins que tentou reduzir todo o conhecimento a um único símbolo instantaneamente captado após contacto visual. Drucker afirma que a sua teoria foi baseada numa ideia idiossincrática e errada dos hieróglifos.

76

Com o fim do Império Romano a escrita havia passado a ser executada por monges copistas dentro

de mosteiros espalhados por toda a Europa. Drucker sintetiza deste modo as principais

transformações sofridas pela escrita: “The activity of writing shifted emphasis – from the carving

of monumental inscriptions, writing of classical poetry, and recording of legal and historical texts

– to the copying of religious and classical texts within the province of religious communities” (94).

Os materiais utilizados também haviam sido alterados: “vellum replaced papyrus as a material

support for writing and the codex (sheets bound into books) replaced the scroll” (idem.). A

organização dos elementos na página e a grafia sofreriam alterações decisivas:

The monumental capitals which had been produced for and in stone inscriptions were replaced by

graphic forms originating from the use of the pen, rather than the chisel, stylus or brush. Finally, the

division of elements within the text came to be visually marked so that titles, beginnings, endings,

and commentaries came to be organized spatially and indicated by distinctions of size and design to

a far more complex and nuanced degree than was practical within monumental inscriptions.

(Drucker, 1995: 94).

Estas alterações facilitariam certamente a consulta dos manuscritos (99) dando origem ao que hoje

conhecemos como a formatação da página. Algumas características da escrita medieval podem ser

ainda encontradas em textos digitais. Na verdade, muitos deles assumem algumas características de

superfícies criadas antes do livro. Os tablets, por exemplo, assemelham-se às tábuas de barro que

antecederam a criação do alfabeto e que, tal como o computador, eram instrumentos de

armazenamento de dados e de cálculo. Hayles referiu-se a uma ligação particular entre média que

impede que as características de um sejam esquecidas por um média emergente:

When literature leaps from one medium to another-from orality to writing, from

manuscript codex to printed book, from mechanically generated print to electronic

textuality - it does not leave behind the accumulated knowledge embedded in genres, poetic

conventions, narrative structures, figurative tropes, and so forth. Rather, this knowledge is

carried forward into the new medium typically by trying to replicate the earlier medium's

effects within the new medium’s specificities. Thus written manuscripts were first

conceived as a visual continuity of connected marks reminiscent of the continuous

analogue flow of speech; only gradually were such innovations as spacing between words

and indentations for paragraphs introduced. (Hayles, 2008: 58-59)

Qualquer página web, processador de texto ou folha de cálculo apresentam a função scroll

reminiscente do rolo medieval. Jessica Brantley, em “Medieval remediations” (2013) refere que a

77

“ecologia medieval da Idade Média” desafia a inovação que está expressa na designação “novos

média” (203). No meio digital, a fusão entre texto e imagens é constante, assim como é a junção de

vídeo e de música. Porém, o desafio à preponderância da palavra ou do discurso verbal é anterior

ao computador. Na época medieval, a ornamentação de letras, uma prática comum em

manuscritos, seria por vezes de tal forma destacada para dar enfâse a um determinado assunto, que

acabava por dominar todo o texto. Para além do valor oferecido à ornamentação (ou à imagem)

que obrigava o leitor a dividir a sua atenção entre esta e a informação verbal, os escribas marcariam

a sua presença através de comentários nos manuscritos. Esta função recorda o papel de co-autoria

atribuído ao leitor da ficção hipertextual clássica que podia acrescentar notas de rodapé a uma obra.

Os escribas medievais forneciam um estilo individualizado às páginas, o que pode ser comparado

ao papel dos designers gráficos na composição de um livro ou de uma página web. Drucker

acrescenta que muitos deles procederiam a jogos de palavras como a produção de frases que

incluíssem todas as letras do alfabeto (104). Os pangramas (frases com todas as letras do alfabeto)

foram mais tarde adoptados pela tipografia para testar o efeito proporcionado por um tipo de letra.

A invenção dos caracteres móveis e da imprensa em 1455 terá ajudado à normalização da escrita

alfabética. Circunscrita a uma superfície, a escrita e o alfabeto tornavam-se em fenómenos

observáveis e manipuláveis. Para Walter Ong, a mecanização da escrita veio a permitir a clausura

da palavra num espaço minuciosamente dividido. A organização do espaço textual permitiu uma

facilidade e rapidez de leitura que terá estado na base da emergência de vários estilos de escrita

(120). Quanto à fixidez91 da tipografia Ong referiu o seguinte: “Print situates words in space more

relentlessly than writing ever did. Writing moves words from the sound world to a world of visual

space, but print locks words into position in this space. Control of position is everything in print”

(Ong, 1982: 121). No entanto, Ong acrescenta que, apesar de permitir um controlo preciso sobre

o material, a tipografia também apelou à imaginação92 (129). Exemplo disso são as criações da

poesia visual que trabalham ao nível gráfico para explorar os limites da página. A disposição das

letras e a formatação do texto permitem a concretização de associações improváveis ao nível

semântico93. Na poesia visual o significado não está apenas no substrato verbal, mas emerge

91 Segundo Paul Zumthor, esta fixidez seria, na verdade, uma “uma revolta contra o tempo” ou contra a impossibilidade de o deter (Zumthor, 2007: 49). 92 Em Writing Space (2001), Jay David Bolter refere que a tipografia efectuou uma homogeneização da escrita mas também uma heterogeneização, já que a proliferação de cópias permitiu a diversificação de pontos de vista (49). 93 Hayles refere que a metáfora é frequentemente relacionada com a linguagem verbal. Contudo, para Hayles, existem obras que criam materialmente essas metáforas, ou seja, produzem significado através das suas características materiais. Esta relação entre palavras e os seus artefactos é apelidada por Hayles de “metáforas materiais” (Hayles, 2001: 22). Os textos que efectuam um uso específico das suas propriedades formais, para veicular um significado, são intitulados por Hayles de “tecnotexts”. Hayles define esses textos da seguinte forma: “physical form of the literary artifact always affects what the words (and other semiotic components) mean. Literary works that strengthen, foreground, and thematize the connections between themselves as material artifacts and the imaginative realm of verbal/semiotic

78

também do jogo gráfico entre os elementos da página, sejam eles letras ou pontuação. Lori

Emerson refere que a poesia concreta (assim como toda a escrita visual), devido ao uso que faz do

meio para criar efeitos visuais, é uma “media poetry” (98). Esta definição pode ser alargada à

literatura electrónica, nomeadamente à poesia digital, a qual recorre às propriedades físicas do meio

para alcançar novas formas de produzir significado. Tendo em conta que esta dispõe de uma base

de dados as possibilidades de combinação entre elementos e de emergência de significado são

aumentadas. Porém, nem todas as obras de poesia visual pretendem ser uma fonte de significados.

Numa referência ao trabalho de bill bisset, Emerson refere que por vezes o grafismo absorve de

tal forma a página que a extracção de um significado torna-se impossível: “many of the poems in

this collection push so hard against semantic meaning in service of the nonstandard and that which

cannot easily be consumed that the results are often not pictures or poems of or about anything so

much as they are inventive geometric designs that take advantage of the capabilities of the

typewriter” (102). A atenção dada ao grafismo sobrecarrega a folha com dados visuais tornando a

leitura semântica ou semiótica do poema numa tarefa impossível de concretizar.

Teorias de sinestesia foram desenvolvidas no séc. XIX na área da música, arte simbólica e literatura.

Stéphane Mallarmé, por exemplo, atribuiu às letras um valor iconográfico tecendo associações

entre o seu som ou a sua imagem que dão origem a um significado imaginado. No estudo Les Mots

Anglais (1878) Mallarmé elabora uma interpretação de inúmeras palavras em inglês através das suas

primeiras letras. A forma bipartida do “W”, por exemplo, transmite a ideia de oscilação (“wave”).

Já o “K” confere a noção de algo interligado (“knot” ou “knitt”). A obra Un Coup de Dés (1897) é

um poema que explora o espaço da página a partir do jogo entre tamanhos de letras e formulação

de versos que se prolongam entre duas folhas. As letras gravadas numa pedra ou em madeira

haveriam de ser transferidas para o papel, onde, graças à estereotipagem proporcionada pela

mecanização da escrita, foi possível chegar a uma versão polida e singular das mesmas. No séc. XX

é ainda possível conhecer uma fusão entre imagem e letra graças à adopção da fotografia para

técnicas de composição de letras (280). Com o advento do computador, a estrutura e a textura das

letras haveria de ser alterada. Segundo Drucker, o meio electrónico haveria de servir como uma

fonte inesgotável de inspiração para a criação de novas letras o que levou Drucker a prever o

seguinte: “The next decades may witness the reinvention of calligraphic imagination in electronic

form and correspondingly innovative methods of reading and processing language visually” (308).

As técnicas de data mining, por exemplo, são hoje aplicadas na análise de textos literários o que

permitiu abordar textos impressos sob uma nova perspectiva. Graças a técnicas de visualização de

signifiers they instantiate, open a window on the larger connections that unite literature as a verbal art to its material forms (25).

79

dados, é possível verificar, por exemplo, o número de ocorrências de uma palavra e iniciar um

estudo crítico sobre este dado.

Em Writing Spaces (2001), Jay David Bolter identificava um “reajustamento do ratio entre texto e

imagem” (48). Segundo o autor, os leitores estavam a ser transformados em “espectadores” através

do uso de técnicas de animação e interactividade (56). Bolter recorda que a tentativa de tornar

vívida uma situação ou evento através de uma descrição efectuada por palavras corresponde a uma

figura de retórica utilizada na Grécia Antiga e intitulada de ekphrasis. Bolter identificava, nos média

digitais, uma “ekphrasis invertida” ou seja, as imagens são utilizadas para explicar palavras. Segundo

Bolter, graças ao seu imediatismo, as imagens possibilitam uma comunicação de primeira ordem.

Já a escrita, porque tem de recorrer ao alfabeto, torna-se numa linguagem de segunda ordem. Bolter

refere que em causa está o desejo de alcançar o sinal natural que não solicita uma mediação:

The breakout of the visual, the ekphrastic impulse, is at its most vigorous in the electronic

writing space, where new media designers and authors are also redefining the balance

between word and image. Like the older visual media of photography, film, and television,

new digital media remediate the book, the newspaper, and the magazine by offering a space

in which images can break free of the constraint of words and tell their own stories.

Designers of hypermedia employ images as well as sound in an effort to provide a more

authentic or immediate experience than words alone can offer. This strategy of remediation

cuts deeply into the history of writing itself – beyond alphabetic writing to earlier forms.

(Bolter, 2001: 58)

As histórias podem ser veiculadas através de inúmeros formatos ou linguagens. De facto, quer no

formato impresso, quer no digital, podemos verificar que as letras têm uma face e um tratamento

gráfico, ou seja, o discurso verbal chega até nós sob a forma de uma imagem. A mancha do texto,

a pontuação, os parágrafos, títulos e cabeçalhos permitem destacar e organizar o texto ou prepará-

lo para a leitura. O que encontramos no computador é a continuidade de um processo que tem em

vista a organização dos elementos numa superfície de representação. Porém, perante o ecrã, a

informação pode mudar a todo o momento de forma imprevisível. Adicionalmente, e de acordo

com Manovich, para além da linguagem verbal e icónica o computador usa uma metalinguagem:

“coordinates of 3-D objects, pixel values of digital images, the formatting of a page in HTML”

(Manovich, 2001: 74). Para além do código binário e da linguagem de programação, o computador,

enquanto superfície de inscrição, divide-se entre aquilo que o leitor vê e o que (ainda) não vê.

Adicionalmente, o texto consegue assumir diferentes linguagens semióticas ou formas de

representação numa única sessão de leitura. Isto significa que, para além de ler, o leitor poderá ter

80

de ouvir, falar, digitar e movimentar-se num determinado espaço (virtual ou actual). A dicotomia

entre imagem e palavra, tão debatida ao longo de séculos, parece encontrar um beco sem saída no

ambiente digital. Aqui os textos podem ser descritos como imagens fugazes acompanhadas de sons.

Trans-Multi-Meta-Intermédia

Para John Zuern é fundamental entender como os textos estão “ligados” às suas superfícies de

inscrição. Dada a fusão entre média94 concretizada pela literatura electrónica, Zuern identificou a

necessidade de rastrear continuidades entre os textos “book-bound, stage-bound, screen-bound,

and body-bound” (Zuern, 2013: 262). No caso dos textos apresentados num ecrã, estes podem não

estar permanentemente ligados a esta superfície. Eles estão primeiramente inscritos em código e,

só depois de serem traduzidos pela máquina - Zuern recorda a substituição da expressão “digital-

born” de Hayles pela expressão criada por Kirschenbaum “born translated” - é que são

transformados em “símbolos legíveis por humanos” (260-261). Isto faz com que o texto seja

apresentado como “bound for screen” e não “screen bound”. Sendo assim, o ecrã não exerce um

impacto nas propriedades físicas do texto. Segundo Zuern, o código e os média utilizados têm um

poder transformativo muito maior no texto do que à superfície do ecrã. Zuern refere que isto

acontece porque o ecrã é o destino e não o lugar onde está inscrito o texto. A função desta

superfície na construção dos textos electrónicos (Zuern distingue a sua capacidade de mudar o

aspecto dos textos ou de provocar uma reacção por parte do leitor) está previamente codificada

(261). Hayles descreve como um texto literário pode emergir no ecrã: “Flexibility and the resulting

mobilization of narrative ambiguities at a high level depend upon rigidity and precision at a low

level (…) it is precisely the ability to build up from this reductive base that enables high-level

literariness to be achieved” (Hayles, 2005: 53). É a partir do código binário que o texto e a narrativa

começam a ser construídos. Entre o processador e o ecrã do computador é executada uma

transformação: o código binário é transformado em imagens e palavras ou em código literário95.

94 A junção de média permitida pelo computador leva Zuern a sugerir a criação de um estúdio em cada universidade para efectuar “experiências com vários média textuais” (275). 95 Aguiar e Silva refere-se à literatura como um sistema modelizante secundário e a língua (ou langue) como um sistema semiótico universal. Segundo este autor, o texto literário é pluricodificado, ou seja, é codificado numa língua natural ou “noutros códigos actuantes na cultura da colectividade em que se integra o autor/emissor”. É igualmente objecto de codificação métrica, estilística, retórica ou ideológica (96). Aguiar e Silva descreve igualmente um código ou policódigo literário (polissistema literário) constituído por diversos códigos (fónico-rítmico, métrico, estilístico, técnico-compositivo e semântico-pragmático e que se encontra em evolução) (101-107). Roland Barthes refere-se a cinco códigos que constituem a escrita: “the convergence of the voices (of the codes) becomes writing, a stereographic space where the five codes, the five voices, intersect: the Voice of Empirics (the proairetisms), the Voice of the Person (the semes), the Voice of Science (the cultural codes) , the Voice of Truth (the hermeneutisms), the Voice of Symbol” (Barthes, 1974: 21). Isto quer dizer que a leitura de um texto digital, tal como a leitura de qualquer texto, exige um processo de descodificação.

81

De acordo com Eskelinen, o computador consegue englobar um número considerável de média

tornando a análise da sua especificidade numa tarefa redundante. Ao mesmo tempo, como já foi

aqui destacado, Eskelinen refere que a totalidade dos média está a sofrer um processo de

digitalização pelo que a diferenciação entre eles deixa de ser uma questão central96. Eskelinen

defende que qualquer sistema semiótico pode recorrer a diversos média. Nos média não-digitais,

os sinais permanecem separados ou aglutinados, mas nos média digitais eles podem circular entre

si, com ou sem o esforço do leitor. A capacidade (que Eskelinen considera metamedial) do

computador em rede combinar e imitar os elementos e o comportamento de diversos média indica

uma mudança de paradigma: “In actual scholarly practice, the ideas of transmediality have centered

on stories and narratives and their transmission across media. From this perspective, new media

and new technologies have expanded the ecology of storytelling to include several digital specimens

and in extreme cases also computer games” (328)97.

De acordo com Kiene Wurth, a noção que os média são entidades separadas foi contrariada no

séc. XIX pela projecção da Gesamtkunstwerk por Richard Wagner. Wurth considera que o conceito

de obra de arte total deixa entrever uma fusão entre artes mas a obra projectada por Wagner

alimenta-se dos limites entre média (7). Enquanto na Gesamtkunstwerk as características das várias

artes encontram-se perfeitamente identificadas, como se fossem o resultado de uma colagem, em

textos digitais, as características dos diversos média fundem-se tornando impossível a distinção

entre estes. Lev Manovich vai mais longe e defende que os média digitais desapareceram e são

agora representados pelo software: “There is no such thing as ‘digital media’. There is only software

(…) for users who only interact with media content through application software, the ‘properties’

of digital media are defined by the particular software as opposed to solely being contained in the

actual content (i.e., inside digital files)” (Manovich, 2012: 5).

Referindo-se à poesia digital, Wurth defende que o conceito de multimedialidade torna-se

improfícuo na análise de textos digitais. Em substituição deste, Wurth sugere o termo

96 Este autor salienta que Murray e Manovich falharam no estudo dos média por tentarem evidenciar as diferenças entre os média digitais e todos os outros (20). O autor também se refere ao termo “remediação”, sugerido por Bolter e Gruisin, como demasiado vago. A Eskelinen interessa saber o que faz um medium e para que é usado: “As digital media continue (despite loudly predicted and heavily marketed convergences) to be a legion, and new devices, gadgets and applications pile up in the market, while almost every surviving “old” medium has already been or is being digitalized, the heuristisc question may no longer be what a medium is, but what a medium does and is used for” (Eskelinen, 2012: 20). 97 A abordagem transmedial tem em conta a forma como uma história ou narrativa sobrevivem à transferência entre vários média. De acordo com Ryan, este tipo de abordagem tem sofrido alguma resistência porque os adeptos da “transmedial storytelling” acreditam que não será necessário existir um narrador para transmitir uma história. A narratologia e, mais propriamente a “speech-act approach” que, segundo Ryan, é representada por Gérard Genette e Gerald Prince, defende que uma narrativa implica a existência desta entidade (Ryan, 2006: 5). No entanto, perante a possibilidade de transferir uma narrativa, por exemplo, de um romance para uma peça de teatro, essa entidade é subtraída. Como já foi aqui referido, Eskelinen frisou que nesses casos, não é uma narrativa, mas uma história que está a ser apropriada por outro meio.

82

“intermedialidade”98. Se o prefixo “multi-” aponta para a diversidade de média, o prefixo “inter-“

chama a atenção para um diálogo permanente e para uma dependência entre média. Os textos

digitais descritos por Wurth (por exemplo, Nio de Jim Andrews ou Another Emotion, de Jason

Nelson) no seu artigo têm uma componente multimedial. Porém, as suas características não podem

ser reduzidas a apenas um medium. Eles são textos dinâmicos, que mudam espacialmente deixando

transparecer uma fusão (e não uma colagem) entre vários média. O intermedial é, segundo Wurth,

o “hesitante algures-no-meio”, o provisório que mistura vários tipos de arte sem oferecer

protagonismo a um.

Para Wurth, uma obra multimedial pode tornar-se a certo momento intermedial: “multimedially

constituted ‘works’ can become intermedial once the different medial forms involved become

inter-active and inter-transformative” (12). Wurth descreve esse processo como “um momento

desestabilizador” ou um “evento que ocorre quando o verbal, espacial e visual se tornam em

processos dispersivos” (idem.). Sendo assim, a intermedialidade pode ocorrer, não apenas

espacialmente e visualmente mas também temporalmente. Isto contribui para que as obras sejam

consideradas como processos dinâmicos sem uma identidade estabilizada.

A intermedialidade é veiculada através de um dispositivo e, por isso, pode concretizar a noção de

presença mas simultaneamente pode ser descrita como uma ocorrência. Wurth refere que cada

medium traz dentro de si a possibilidade de “intermedialidade”, ou seja, cada um traz consigo

características de outro medium ou a possibilidade de aglutinar ou ser aglutinado por outro

medium. O computador apenas reforça a ideia que os média pertencem a um longo processo de

fusão. Traduzidos em números, os textos digitais dinâmicos e complexos são híbridos entre

linguagem humana e binária, mas também entre vários média. Segundo Wurth eles são simulações

da complexidade medial e a prova que não existe barreiras entre eles.

Bootz refere que a intermedialidade é uma abordagem semiótica que não é apenas linguística, pelo

que exige que o texto seja considerado como um “tecido de signos” (Bootz, 2006: 3). Inside: a journal

of dreams (2004)99, uma obra criada por Andy Campbell, assemelha-se a um livro de artista

constituído por itens aparentemente díspares. Andy Campbell criou uma experiência de leitura

invulgar através da reunião de características provenientes de vários média. Inside exemplifica o

processo de intermedialidade a que um texto pode ser sujeito. Esta obra é constituída por páginas

numeradas que podem ser folheadas pelo leitor. Contudo, uma lista de ferramentas permite

aumentar, diminuir, rodar ou pesquisar o texto. As folhas deste diário não são estáticas. Elas são

98 O termo foi cunhado por Dick Higgins em 1965. No texto “Intermedia” (1966), Higgins sublinha que as barreiras entre média desapareceram: “Much of the best work being produced today seems to fall between media” (Higgins, 2002: 28). 99 Sobre esta obra publiquei uma entrada no ELD (Electronic Literature Collection). A mesma pode ser consultada em: http://directory.eliterature.org/node/3764.

83

apresentadas ao leitor de forma sincopada. A transmissão do texto não é efectuada de forma

contínua, mas divide-se em pequenos impulsos, como se simulasse o pestanejar do leitor durante

a leitura. O som distante de algo mecânico acompanha a leitura. A narrativa encontra-se em plena

fabricação. Este trabalho exemplifica a forma como o computador pode tornar-se num poderoso

simulador de outros média.

O leitor encontra frases, sons e vídeos que se imiscuem para construir uma narrativa densa. Texto,

filme, fotografia, música ou ficheiros áudio tornam-se em aparições fugazes que emergem e

desaparecem. Elas ilustram a gravidade da situação em que se encontra o protagonista: “I’m falling

into a void. There is an infinite chain nearby, keeps coming into view, close, within reach,

sometimes I manage to grab it and hold on for a few fleeting seconds before having to let go. I

keep falling and falling” (62).

O estado de saúde do protagonista piora progressivamente. O leitor detecta este agravamento

através de pequenos sinais (ou através das suas características materiais). Palavras rasuradas ou

sublinhadas, textos em espelho ou escritos de cima para baixo começam a surgir. Algumas palavras

estão soltas e giram, como se fizessem piruetas para escapar ao controlo do leitor. Segundo Manuel

Portela, a poesia cinética e visual “chama a nossa atenção para a leitura enquanto processo

cognitivo” e, frequentemente, “brinca com a consciência que o leitor tem dos movimentos

oculares” (Portela, 2013: 24). As páginas intermitentes de Inside formam uma ilusão óptica que

simula o contacto temporário e segmentado entre o olho humano e a página. Campbell usa as

propriedades do meio, aliadas a propriedades de outros média, para reflectir sobre o acto de leitura.

A obra criada por Campbell permite verificar que a literatura electrónica efectua um

aproveitamento criativo das potencialidades do computador. Isto traduz-se numa experiência de

leitura que não centra a atenção do leitor apenas na palavra ou na imagem mas num “tecido de

signos” onde diversos média (e não apenas o meio digital) colaboram. A análise de um texto

multimodal como Inside exige diferentes tipos de abordagem que são suscitados pelos diferentes

formatos (desde o impresso ao digital) adoptados pelo autor. Dada a intermedialidade expressa por

Inside (e que torna irrisória uma distinção entre média), é possível observar que as obras não

representam os formatos em que estão inscritas, embora contem histórias à sua superfície.

84

Desenhos num tapete persa: interpretações.

We know now that a text is not a line of words releasing a single

'theological' meaning (....). The text is a tissue of quotations

drawn from the innumerable centres of culture.

Roland Barthes, Image, Music, Text

Don’t you think you ought – just a trifle – to assist the critic?

Henry James, “The figure in the carpet”

Em “Weapons of the Deconstructive Masses (WDM): Whatever Electronic Literature May Or

May Not Mean” (2012) John Cayley recorda que o vocábulo “literatura” foi sempre acompanhado

de outros atributos: “Literature has never been, for any of us, just ‘literature’. Without needing this

ever to be said, it has been predominantly, successively, concurrently ‘oral literature’ or ‘manuscript

literature’ or ‘book literature’, and so on” (Cayley 2012: 28). No caso do adjectivo “electrónica”,

como foi referido na introdução desta tese, Cayley considera que, ao remeter para o formato

adoptado, evidencia uma divisão e separação entre formatos, privilegiando um em detrimento de

outro. Cayley defende o abandono deste adjectivo e pretende encontrar outras formas de definir

este conjunto de “práticas de escrita executadas em média programáveis ou em rede” (27). Em vez

de atentar nas possíveis características de um tipo de literatura ou de perseguir a definição de

“literário”, Cayley pretende verificar se existe uma “viabilidade estética” e de que forma esta

reformula a literatura ou tem impacto na cultura artística em geral. Cayley considera que a

designação “literatura electrónica” refere-se maioritariamente a obras em que a representação

multimédia está aliada a uma estética fundamentalmente linguística (Cayley, 2012: 47). Ao descrever

Whose life is it anyway? (2008) – uma obra (ou autobiografia) de Caleb Larsen gerada através da

combinação de várias frases ou entradas do Twitter – Cayley confessa que, apesar de esta ser

maioritariamente linguística, não consegue defini-la como uma obra literária. Para Cayley, o Twitter

não tem um passado literário o que inviabiliza o reconhecimento de literatura numa obra concebida

a partir desta ferramenta.

A obra de Caleb Larsen é composta por uma impressora térmica que está exposta numa galeria.

Aqui, ela debita frases recolhidas do Twitter. O rolo de papel onde são inscritas estas frases inunda

o chão da sala. Perante este cenário, é possível identificar imediatamente uma “viabilidade estética”

pois, num primeiro plano, existem várias características (ou padrões) pertencentes a diferentes

formas de expressão, nomeadamente à instalação ou à performance. A obra Whose life is it anyway?

85

(2008) poderá ser considerada uma representação de diversas materialidades de escrita: o rolo de

papel que a máquina imprime pode ser comparado ao rolo que antecedeu a invenção do livro. Este

rolo pode ser considerado como um híbrido entre literatura electrónica (as frases são produzidas

electronicamente) e a literatura impressa. Pode ainda surgir em representação do processo de

digitalização de todos os média. Adicionalmente, a rapidez com que as frases são impressas para

permanecerem caídas no chão e impossibilitadas de alcançar um destinatário, recorda a celeridade

(e volatilidade) da comunicação em rede. No entanto, o espectador pode ir mais longe. Existe um

segundo plano que o aguarda. O espectador poderá avançar para a leitura (embora parcial, pois o

texto encontra-se em contínua geração/impressão) do que está inscrito no rolo de papel e tentar

extrair um sentido daquela amálgama de frases aleatórias. Sem um contacto com estas frases, não

é possível determinar se esta pode ser apelidada de literatura ou se faz parte da experiência estética

situada no primeiro plano. Sem proceder à leitura do rolo, a obra de Larsen permanece restrita a

este primeiro plano, onde poderá ser considerada como uma instalação.

A aleatoriedade das frases recombinadas e apropriadas por Larsen solicita um outro patamar de

análise que confere outro tipo de “viabilidade estética”. Entre as frases difusas que emergem

daquele rolo de papel o leitor irá certamente encontrar nichos de sentido, tal como o livro Cent

Mille Millards de Poème de Raymond Queneau suscita pequenas surpresas e oásis de significado ao

ser folheado100. O espectador pode ainda abster-se de uma apreciação estética e recusar-se a atribuir

um significado à visão e audição de um rolo de papel que é debitado por uma máquina. Porém,

não é possível ler um livro (ou abordar uma obra) sem procurar um único significado ou sem

proceder a um acto interpretativo.

Umberto Eco descreveu a literatura como um tesouro que deve ser partilhado e desfrutado pela

comunidade. Para este autor, a literatura não deve servir um propósito. Contudo, Eco considera

que esta “perspectiva descorporizada” ameaça reduzir a literatura ao “status de jogging ou sopa-

de-letras”. Para Eco, a literatura força o leitor a um exercício de “fidelidade e respeito, embora

encorajando a liberdade de expressão” (3). Eco refere que a ausência de qualquer limite à

interpretação é um sintoma dos nossos tempos. No entanto, acrescenta que se essa liberdade existe

é porque uma obra literária tem várias “camadas de leitura” que colocam o leitor perante a

ambiguidade da linguagem. Para que a literatura seja lida de diferentes formas por diversas gerações,

Eco defende que será necessário respeitar a “intenção do texto”.

100 Eskelinen acrescenta que, perante este texto, o leitor não pode ler a totalidade dos versos mas pode produzir poemas continuamente até atingir um nível de satisfação ou até perceber o conceito que levou à construção deste livro (Eskelinen refere-se à Ars Combinatoria). Segundo Eskelinen, esta actividade traz consigo o seguinte benefício: “as individual poems are complete in themselves, they are, at least in principle, aesthetically rewarding independently of one another and the hypothesized yet unattainable whole. In other words, the metamorphic process is divided into small potentially rewarding steps or phrases, rekindling one’s love for fragments” (Eskelinen, 2012: 82).

86

Segundo Eco, a leitura do texto depende das coordenadas oferecidas pelo autor. Porém, como foi

demonstrado no primeiro capítulo, a presença da entidade autoral nem sempre foi vista com este

optimismo. Na seguinte citação, extraída do livro Image, Music, Text (1977), Barthes sublinha que a

atribuição de um texto a um autor funciona como uma forma de circunscrever o seu significado:

“To give a text an Author is to impose a limit on that text, to furnish it with a final signified, to

close the writing. Such a conception suits criticism very well, (…) when the Author has been found,

the text is ‘explained’ - victory to the critic” (46). Para Barthes, a tentativa de decifrar um texto é

um acto hegemónico que entra em conflito com a própria natureza da literatura (ou écriture):

In the multiplicity of writing, everything is to be disentangled, nothing deciphered; the

structure can be followed, 'run' (like the thread of a stocking) at every point and at every

level, but there is nothing beneath: the space of writing is to be ranged over, not pierced;

writing ceaselessly posits meaning ceaselessly to evaporate it, carrying out a systematic

exemption of meaning. In precisely this way literature (it would be better from now on to

say writing), by refusing to assign a 'secret', an ultimate meaning, to the text (and to the

world as text), liberates what may be called an anti-theological activity, an activity that is

truly revolutionary since to refuse to fix meaning is, in the end, to refuse God and his

hypostases - reason, science, law. (Barthes, 1977: 147)

A questão da interpretação tem vindo a ser explorada pelos estudos literários e pela teoria da

literatura101. Barthes defende que a leitura baseada na extracção de um significado uno é um acto

hegemónico e uma tentativa de circunscrever o texto. Contudo, será possível reduzir um texto a

um significado uno? A interpretação constrange ou amplia o potencial semântico de um texto?

Veja-se, por exemplo, o caso de Frankenstein de Mary Shelley e todas as interpretações que foram

efectuadas sobre este texto. Desde o feminismo até à biologia, vários foram os discursos que

abordaram esta obra com uma perspectiva renovada, mantendo o livro em constante expansão. As

101 Gumbrecht referiu-se à intenção do desconstrucionismo em acabar com a “era do signo” (Gumbrecht, 2004: 57). A tentativa de “destronar” a interpretação (ou uma ideia de interpretação) é frustrada pelas seguintes razões: “The effort that it would take us to develop noninterpretative in addition to hermeneutic concepts would therefore be an effort directed against the consequences and taboos coming from the enthronement of interpretation as the exclusive core practice of the humanities. The difficulty of such an effort to develop a repertoire of noninerpretative concepts for the humanities would (or will) lie in the simple fact that, as a result of the dominance of the Cartesian world picture since early modernity and of hermeneutics since the early twentieth century, it seem literally impossible in our intellectual world, at least at first glance, to come up with concepts that may satisfy the goal of practicing (and grounding) something that it is not interpretation (52-53). Scholes referiu-se a uma oposição entre hermenêutica e niilismo catalisada por Nietzsche e continuada por Derrida (Scholes, 1989: 56). No entanto, Scholes observou que o desconstrucionismo não seria um antídoto à hermenêutica mas uma adição ou uma correcção da mesma (61). Scholes identificou a existência de uma “hermenêutica niilista”, que poderá ajudar a equilibrar o teor positivista da hermenêutica. Para Scholes esta disciplina está demasiado focada na procura da verdade ou de um significado implícito manifestado por cada texto (57).

87

várias interpretações sobre a obra de Caleb Larsen, anteriormente aqui partilhadas, permitem

constatar que dificilmente uma obra poderá ter uma interpretação una. Deleuze e Guattari

sublinham que a interpretação tem uma componente autofágica e encontra-se em permanente

reformulação:

(…) interpretation is carried to infinity and never encounters anything to interpret

that is not already itself an interpretation. The signified constantly reimports

signifier, recharges it or produces more of it. The form always comes from the

signifier. The ultimate signified is therefore the signifier itself, in its redundancy or

“excess.” It is perfectly futile to claim to transcend interpretation or even

communication through the production of signifier, because communication and

interpretation are what always serve to reproduce and produce signifier. (Deleuze e

Guattari, 2012: 126-127)

Segundo Hayles a literatura electrónica parte da incapacidade de o computador lidar com a

ambiguidade e plurissignificação (o código binário apenas permite a decisão entre 0 e 1) e de um

jogo entre “sequências sintagmáticas virtuais” e a “base de dados paradigmática”. A “impiedade

do código” é descrita por Hayles:

Every voltage change must have a precise meaning in order to affect the behavior of the

machine; without signifieds, code would have no efficacy. (…) every change in voltage

must be given an unambiguous interpretation, or the program is likely not to function as

intended. (…) Whatever messages on screen may say or imply, they are themselves

generated through a machine dynamics that has little tolerance for ambiguity, floating

signifiers, or signifiers without corresponding signifieds. (Hayles, 2005: 47)

Sendo assim, o texto electrónico parte da rigidez semântica do código binário (que apenas permite

uma interpretação ou um significado) para as inúmeras possibilidades de significação102. Num outro

local, Hayles refere que, para o ser humano, a alternância entre binários pode gerar resultados

interessantes: “while they have no capacity for semantic recognition, the humans interpreting their

results might see interesting patterns” (Hayles, 2008, 51). A interpretação de um texto electrónico

é gerada na decisão entre 0 e 1. Só que esta decisão pode gerar inúmeras possibilidades. Sendo

102 Robert Scholes intitulou esta propriedade leitura centrífuga. Este autor refere que existe um leitura centrípeta, que atribui ao texto um centro e uma intenção original e uma leitura centrífuga que vê o texto como se este estivesse em contante expansão e produzisse novas possibilidades de significado (Scholes, 1989: 8). Scholes considera a leitura como um processo temporal e contínuo, não como uma actividade localizada no tempo.

88

assim, o significado reside no processador num estado embrionário. O “significante flutuante” de

Lévi-Strauss cujo significado varia, conforme o seu intérprete (Lévi-Strauss, 1987: 63), a “corrente

de significados flutuantes” de Barthes cujo desenvolvimento é impossível deter (Barthes, 1977: 39),

e o significado permanentemente diferido ou différance (Derrida, 2002: 11) surge representado por

esta relação entre o discreto e o potencial proporcionada pelo contacto entre ser humano e

máquina.

A referência ao acto interpretativo não surge aqui como uma forma de limitar uma narrativa ou

uma história a um significado uno mas a centrar a atenção na riqueza semântica e expressiva, que

é ignorada numa abordagem superficial (ou centrada nas particularidades do meio) a um texto

literário. Se a interpretação for associada ao texto como um todo, os textos digitais - dado o seu

carácter mutável, estes provocam a emergência de significado através de um ciclo recursivo entre

ser humano e máquina - colocam um fim a essa tentativa de encontrar um significado uno para um

texto. Como será demonstrado, a adopção de um modo “reading-for-meaning” (Portela, 2013: 22)

não exclui a possibilidade de um estudo do meio.

Eskelinen adverte que os estudos baseados na recepção por parte do leitor não poderão ajudar na

análise de textos ergódicos ou digitais pela seguinte razão: “they are limited to the problems and

conceptualizations of the reader’s interpretative activity in the context of the non-ergodic print

literature” (70). Como é declarado por Eskelinen, Cybertext Poetics tem um carácter analítico que

ignora o acto interpretativo de obras literárias. Ao centrar-se na “textonomia” (estudo do medium)

e não na “textologia” (estudo do significado do texto) o modelo cibertextual proposto por Aarseth

e recuperado por Eskelinen apresenta um valor heurístico que permite ao crítico abordar diversos

tipos de textos:

The useful inclusiveness of cybertext theory results from its almost standard deconstructive

strategy. It lays its emphasis on an understudied and marginalized area of literary

scholarship (…). This way the existing field of textuality is both expanded and dynamically

rearranged, and the previously dominant forms are reinscribed back into a considerably

changed field of study as mere subsets of cybertexts. Unlike many hypothetical and utopian

models of digital media (along the lines of Murray’s Aristotelian Holodeck and Bolter and

Landow’s claims of hypertexts embodying the ideas and ideals of poststructuralism), the

resulting non-media-specific map of functional possibilities is fully empirical and based on

observable differences: all the values its seven variables can have are already operational in

existing textual objects. (Eskelinen, 2012: 22)

89

Eskelinen refere que os textos ergódicos exigem do leitor mais funções para além da interpretação..

Este autor salienta que as sete dimensões descritas pelo modelo cibertextual têm origem na

“variedade genérica e medial da história da literatura” (37). O objectivo deste modelo não é gerar

uma cisão entre média nem analisar a sua especificidade mas criar elos entre cada um deles, sem

encobrir as suas características fundamentais. Embora Aarseth considere que os textos impressos

são igualmente versáteis, Eskelinen conclui que estes não são “transientes”; que não existe uma

“função do utilizador textónica” que possa ser aplicada a este tipo de textos e que não existem

textos impressos variáveis ao nível textónico. Eskelinen elabora uma extensão do modelo de

Aarseth para incluir o maior número de textos possíveis, desde o formato impresso ao digital. Na

seguinte tabela é possível conhecer algumas103 das variáveis acrescentadas por Eskelinen. Estas são

antecedidas pelo símbolo “+”. Em itálico, permanecem as categorias criadas por Aarseth.

Variável Valor potencial

Dinâmica estática, intratextonicamente dinâmica, textonicamente dinâmica

+posição de escritões estática, dinâmica

+permanência de escritões permanente, temporária

+permanência de textões permanente, temporária

Determinabilidade determinada, indeterminada

+posições mediais uma, várias

Transiência transiente, intransiente

+número de apresentações limitadas, ilimitadas

+loops sim/não

+controlo de intervalo pelo utilizador ou pela máquina textual

Perspectiva pessoal, impessoal

+número de perspectivas pessoais uma, várias

+personagem estática, dinâmica

Acesso (aos escritões) aleatório, controlado

103 No próximo capítulo serão apresentadas as restantes variáveis.

90

+acesso a todos os textões104 sim/não

+temporariamente limitado sim/não

Hiperligações explícita, condicional, nenhuma

Tabela III – Modelo cibertextual criado por Aarseth e expandido por Eskelinen (Eskelinen, 2012: 46).

De acordo com Aarseth, os textos ergódicos não podem ser teorizados de acordo com critérios

linguísticos (sintáctico, semântico ou pragmático) e a ergodicidade não pode ser traduzida como

um modo105. Porém, o trabalho de Eskelinen, embora estimulante e necessário, não tem em conta

um número significativo de textos cuja essência é visual. Alice Bell, através do trabalho de Ensslin,

distingue a hiperficção de trabalhos hipermédia e cibertextuais:

The relative simplicity of hypertext’s mediality distinguishes it from ‘hypermedia’ literature,

defined by Ensslin as ‘semiotic systems [which] comprise text, graphics, digitized speech,

audio files, pictographic and photographic images, animation and film’ (21) and ‘cybertext’,

which she defines as ‘a term coined by Espen Aarseth (1997), who sees hypertexts that are

programmed in particular ways as autonomous “text machines” that assume power over

the reader by literally “writing themselves” rather than presenting themselves as an existing

textual product.’. (Bell, 2010: 5)

Como já foi aqui apontado, os textos (ou ficções) hipertextuais, constituídos maioritariamente por

blocos de textos, têm um local de destaque no trabalho de Eskelinen. Porém, os textos baseados

no grafismo ostentam características diferentes destes. O carácter multimédia de certas obras não

permite o mesmo tipo de abordagem manifestada por textos fundamentalmente verbais porque

eles implicam um número vasto de linguagens que não são contempladas por este modelo. Como

vimos com Nio, existem textos que exigem uma abordagem semiótica (ainda que o enigma que

apresentem possa parecer irresolúvel).

Eskelinen faculta um aparato crítico valioso na abordagem transmedial de textos (uma abordagem

que é inequivocamente revolucionada no seu trabalho), destruindo barreiras que tornavam textos

ergódicos em objectos inabordáveis. No entanto, a análise contextual de uma obra, ou seja, a voz

de cada texto, é severamente ignorada. Eskelinen parece seguir uma linha anteriormente explorada

104 Mais à frente nesta tese, será defendido que leitor não tem acesso aos textões porque estes se encontram num estado potencial até serem transformados em escritões. 105 Eskelinen refere-se aqui ao modelo de Genette baseado na arquitextualidade ou no que introduz um texto num determinado género.

91

pelos primeiros teóricos de hiperficção. Embora com diferentes intenções (aqueles tinham em vista

a concretização do texto multilinear e livre do poder do autor preconizado pela teoria pós-

estruturalista) Eskelinen enfatiza em demasia o poder do leitor como participante e como

catalisador de respostas textuais. Tal como Bell salienta, os teóricos de segunda fase tinham o

seguinte objectivo: “emphasize the reader’s role in the fiction-making process. According to their

theoretical conjectures, readers cannot fully engage with hypertext narratives because they are held

back by the interactive role they are required to play” (16).

Consciente de que as obras ergódicas exigem do leitor um papel diferente de textos não ergódicos,

Eskelinen acrescenta à função de utilizador descrita no modelo de Aarseth, a user position e user

objective106 para que textos com diferentes participações por parte do utilizador possam ser incluídos

na narratologia. A faceta ergódica de um texto é amplamente explorada mas, embora refira que as

camadas narrativas e ergódicas107 podem ser conciliadas, Eskelinen não oferece exemplos

concretos, isto é, não demonstra como esta reunião pode acontecer individualmente, em diferentes

textos. Bell aponta igualmente para esta tendência nos primeiros textos teóricos sobre hiperficções:

“their work has a predominantly theoretical focus and (…) contains few sustained applications to

individual works” (idem.). Tal como na primeira e segunda fase da teoria do hipertexto, Eskelinen

sobrepõe o medium (ou o formato) ao texto enquanto teia de significados. Concentrado em

conjugar a teoria cibertextual, ludologia e narratologia e focado em testar a eficácia ou ineficácia

destas três formas de abordar um texto, refere-se ao leitor como um elemento que está fora do

texto e que manipula textões e escritões como se estes fossem peças de um jogo. Ao optar por

distanciar-se do texto, sem nunca imiscuir-se com o seu conteúdo, Eskelinen reassume uma

posição defendida pela segunda fase da teoria hipertextual e também identificada por Bell: “Yet

because their work is concerned with developing theories of hypertext, they often, like many of the

first wave, focus on mechanisms that occur outside the text. That is, they are committed to making

general conclusions about the hypertext medium rather than linking them to the narratives that

they contain” (idem.).

Na sua análise formal, Eskelinen pretende reduzir a ambiguidade, tornando os textos em artefactos

cibertextuais vazios de sentido108. Sendo assim, os textos tornam-se em máquinas de criar regras,

objectivos e desfechos possíveis propostos ao leitor. Eskelinen pretende legitimar a ludologia

colocando-se fora de cada texto e listando características que são inabordáveis para a teoria literária

106 Estas são exploradas no último capítulo desta tese. 107 Eskelinen refere-se a uma “ergodic zone” entre textos egódicos e não ergódicos : “Within the ergodic zone, ergodic literature is a multifaceted field permanently open to other ergodic arts, play, toys and instruments not to mention evolving forms of everyday playfulness” (Eskelinen, 2012: 250). 108 Wardrip-Fruin, embora referindo-se ao modelo de Espen Aarseth, defende uma posição semelhante: “Aarseth’s mode of the textual machine (often represented as an equilateral triangle) divides the work up into a “material medium” and a “collection of words” (Wardrip-Fruin, 2010: 47).

92

e para a narratologia tradicionais mas que os instrumentos críticos disponibilizados pela ludologia

podem ajudar a abordar, ainda que superficialmente.

Como é possível verificar na tabela criada por Eskelinen, Espen Aarseth havia incluído no seu

modelo a “função interpretativa”. Aarseth considera que esta função é aplicada em todos os textos.

Esta função pode ser considerada como instrumental ou prática, ou seja, ela é associada ao acto

interpretativo que permite a compreensão da informação recolhida durante a exploração e

configuração do texto. Como será demonstrado mais à frente nesta tese, esta função permite

perceber o potencial figurativo de um texto, sem o qual não é possível efectuar a leitura de uma

ficção digital.

O trabalho de Eskelinen deve ser visto como um estudo de média que não tem em vista o universo

ficcional de obras individuais. Como vimos com as narrativas Nippon e Dakota, estes textos não

exigem uma interacção particular porque, embora dinâmicos e transientes, ocorrem ou decorrem

como um filme. Eskelinen reconhece que este tipo de textos ostenta um comportamento diferente

dos textos impressos, o que dificulta uma análise baseada na interpretação: “There may be

considerable losses as the user (due to temporal limitations, visual complexity, or simultaneities)

may be able to perceive only a fraction of each set of scriptons presented to him, and from those

perceived at least some may have to be immediately ignored in the interpretation because of

temporal pressure and the user’s resulting haste” (33-34). Contudo, se estes textos apenas forem

abordados superficialmente, perde-se a oportunidade de enfrentar cada texto em toda a sua

multidimensionalidade.

Ao analisar o seu conteúdo, o crítico ou o leitor não estão a restringir um texto. Eles estarão antes

a constatar toda sua imensidão. Porque a interpretação de um texto raramente é una e

estandardizada entre críticos (sobretudo se estes partirem de diferentes quadrantes), esta tem como

efeito tornar manifesto o potencial de um texto. Segundo John Gibson, a interpretação “é a

actividade de trazer à luz o que uma obra literária tenta dizer” (Gibson, 2007: 123). Para Gibson, o

crítico mostra que, através do envolvimento imaginativo com as obras, é possível ter acesso a uma

maior variedade de significado (134). Este autor distingue interpretação linguística (baseada na

linguagem da obra literária) da interpretação crítica (124-125). Gibson defende que o crítico não

pretende interpretar o significado de frases ou palavras (interpretação linguística) mas

“compreender” uma obra literária. Gibson sublinha que não será necessário mais distinções

linguísticas mas estéticas (129). O que é necessário explorar é a forma como as obras literárias

apelam à imaginação: “we need to explore how literary works engage the imagination, and, in so

doing, help bring about a unique object of appreciation, an object to which we simply have no

access if we take a purely linguistic stance towards a literary work” (129-130). A capacidade de as

93

obras literárias projectarem mundos ficcionais é, para Gibson, raramente observado: “That literary

works project fictional worlds is hardly news, of course. What is astonishing is that this feature of

the literary work of art is virtually never mentioned in current work on interpretation” (130).

Gibson refere-se a uma diferença fundamental entre a “linguagem literária” e a linguagem utilizada

“em contextos linguísticos correntes” através da capacidade de a literatura construir mundos:

This, as one might put it, world-generating capacity of literary language is not shared in

common with language in standard linguistic contexts. A hallmark of ordinary speech is

the use of language to describe the world; a hallmark of literature is the use of language to

create one. One would expect this difference between language in literary and standard

communicative contexts to have important consequences for a theory of literary

interpretation. (Gibson, 2007: 130)

Contudo, a linguagem literária não tem em vista apenas a construção de mundo ficcionais mas

também a representação do mundo actual109. Gibson confere ao leitor a missão de “erigir uma

ponte entre a vida e a literatura” (140).

A maior parte dos textos (electrónicos ou impressos) não sobrevive sem que o crítico suje as mãos

na seiva do texto (ou no seu significado). Sem uma ancoragem em cais de sentido, Dakota e

Nippon110 permanecem como um ruído cronometrado que se evade das colunas do computador e

como uma sequência de flashes disparados através do ecrã. Para perceber a ficção digital, gostaria

de propor um regresso ao acto de interpretação. Sem dúvida que este é um rumo que deixará o

crítico111 exposto à ambiguidade e volatilidade de significados. No entanto, só assim poderá ser lido

e abordado um texto feito de imagens, enigmas teóricos e distúrbios de atenção como é o texto

digital. Se a extensão da teoria cibertextual e da narratologia proposta por Eskelinen é uma

ferramenta eficaz no reconhecimento de novas entidades e novas relações entre texto e

leitor/utilizador/jogador, bem como entre diferentes tipos de texto e linguagens semióticas, torna-

se ineficaz no caminho que pretendemos seguir no resto deste subcapítulo. Tal como o crítico (ou

o narrador) de “The figure in the carpet” (1896), que tenta exasperadamente descobrir o último

109 O que distingue a linguagem literária do seu uso corrente é um tema também frequentemente debatido nos estudos literários. Na linguagem corrente também é possível gerar ou imaginar mundos possíveis, como por exemplo, quando o falante descreve planos ou hipóteses. No entanto, o que pretendo aqui frisar não é a distinção entre ambos os usos da linguagem mas a capacidade da a literatura gerar mundos ficcionais que apenas podem ser acedidos através de um elo entre imaginação e interpretação. 110 Estes textos foram analisados no subcapítulo “Words as occurrences: a (i)materialidade digital”, utilizando para isso a reformulação do modelo de Aarseth executada por Eskelinen. 111 O crítico nem sempre é aquele que avalia qualitativamente uma obra. Muitas das vezes esta entidade efectua um estudo sobre determinado aspecto de uma obra e reflecte sobre possíveis relações entre várias obras. Este é aqui considerado como uma entidade que explora o texto sob uma determinada perspectiva salientando detalhes que considere fundamentais. Graças a esta actividade, o potencial do texto é expandido, não constrangido.

94

segredo deixado pelo escritor Hugh Vereker, mais do que libertar o texto do jugo da interpretação

será necessário libertar o crítico das suas próprias pretensões.

A literatura electrónica poderia beneficiar de uma abordagem que tivesse em conta a singularidade

artística e expressiva manifestada por cada obra112. Em vez de uma interpretação una, as obras de

literatura electrónica poderiam ser consideradas como a matriz de várias questões. Sloane propôs

uma medida semelhante: “The new digital fiction must more actively seek to accommodate

multiple interpretations, plural worldviews, and bodied interpretations, especially interpretations

not foreseen by either writer or programmer, but that are actively invoked by readers engaged by

particular rhetorical strategies” (Sloane, 2000: 101).

Noah Wardrip-Fruin criou, tal como Eskelinen, uma proposta de extensão do modelo cibertextual

de Aarseth. Para Wardrip-Fruin os processos são meios poderosos para criar experiências mediais

e podem ser vistos como a versão miniatura de conceitos de mundo e humanidade. Wardrip-Fruin

salienta a necessidade de acrescentar cinco parâmetros de análise ao modelo de Aarseth: data refere-

se ao texto, imagens, ficheiros de sons sobre os quais o autor trabalha, especificações de gramáticas

de história, informação declarativa sobre mundos ficcionais, tabelas de estatísticas sobre

frequências de palavras e inclui instruções para o leitor e os processos que devem ser levados a

cabo por este; processos estão ligados às acções executadas pela própria máquina; a interacção têm em

conta a mudança do estado da obra por influência exterior (por exemplo, quando um utilizador

reconfigura um texto combinatório); superfície corresponde ao que a audiência experiencia (“the

output of the processes operating on the data”) e por fim o contexto (“context of the physical

hardware and setting, through which any audience interaction takes place”). Em Expressive Processing

(2009), Wardrip-Fruin reflecte sobre o trabalho criativo mediado pelo software. Wardrip-Fruin não

está interessado no que reside à superfície (ou no ecrã) mas nos processos executados pelo

computador: “My focus is on interpreting what processes do (…) Looking at what processes

express in this manner, enabling critics to interpret elements of works not visible on the surface”

(Wardrip-Fruin, 2009: xi). Para este autor, a actividade criativa é normalmente associada à escrita,

composição de imagem ou composição musical. Contudo, o processamento expressivo oferece uma

nova possibilidade ao autor: “the possibility of creating new simulated machines, of defining new

computational behaviors, as the great authoring opportunity that digital media offers (…) now one

must think of authoring new processes as an important element of media creation” (7).

De acordo com Wardrip-Fruin, o autor trabalha com dados ou “média pré-criados”, como texto,

fotos, vídeo ou música e processos ou as “partes operativas” do computador (7-8). O resultado (ou

112 D. Fox Harrell identifica a existência de um “significado expressivo” (Harrell, 2013: 74).

95

o output) é apresentado à audiência através da superfície e é por intermédio desta que a audiência113

pode manter uma interacção com a obra procedendo a alterações. Wardrip-Fruin refere que este

ciclo pode ser analisado em várias obras permitindo a formulação de padrões e abrindo caminho

para a descoberta de uma lógica operacional, que Wardrip-Fruin vê como um ponto de partida

para a interpretação. Na proposta de Wardrip-Fruin é possível extrair três pontos fundamentais: a

reintegração da função do autor na análise literária, pois os processos reflectem decisões levadas a

cabo por este; o retorno à interpretação (dos processos, dos dados, da superfície bem como da

natureza da interacção) e a necessidade de encontrar padrões comuns a um grupo de obras que

permitam chegar à identificação de uma lógica operacional. Na próxima secção deste capítulo

exploraremos estas possibilidades.

Forma e conteúdo

Como foi demonstrado no primeiro capítulo, os paradigmas dentro da literatura sucedem-se.

Alguns deles têm vindo a ser apontados nesta dissertação. A questão da hegemonia do autor sobre

a obra ou a transferência desse poder para o leitor; a necessidade de um desfecho ou a indefinição

de um final em aberto; a relação entre camadas ergódicas e narrativas, bem como a relação entre a

palavra e o ícone, não são pares obrigatoriamente dicotómicos. Para discutir a relação entre estes

elementos é necessário analisar cada obra individualmente. As diversas obras que constituem a

ficção digital ostentam diferentes características que não podem ser reduzidas a uma só teoria.

Eskelinen produziu um quadro de análise que, como foi aqui referido, permite incluir os textos

ergódicos na constelação da literatura. O seu trabalho abriu caminho para o diálogo entre a

narratologia, a teoria cibertextual e a ludologia mas a sua análise permaneceu restrita ao estudo das

capacidades dos média. Contudo, o que fazer quando estamos perante uma obra digital que

preenche o nosso ecrã114? No primeiro capítulo foi possível verificar, através da consulta dos

volumes da ELO Collection, que a hibridez das obras de ficção digital resulta não só do seu carácter

multimodal, mas também dos processos levados a cabo pelo computador. O que surge no ecrã é

o resultado desses processos que, por sua vez, são também o resultado das acções do leitor. Porém,

este ciclo de retroalimentação e alimentação (Hayles), descrito desta forma, corre o risco de se

tornar num ciclo vicioso. Ao reflectirmos apenas sobre a interacção entre ser humano e

113 Wardrip-Fruin não é claro na sua definição mas parece querer afirmar que a interacção pode ser igualmente mantida por uma entidade externa, talvez mantendo uma relação de intertextualidade com outros textos: “possibility of interaction with outsider processes and data sources” (12). 114 Embora seja possível aceder a textos através de outros meios, nomeadamente através de sensores, os textos veiculados por intermédio do ecrã parecem (ainda) representar a maioria dos textos inseridos dentro da literatura electrónica.

96

computador, a obra permanece esquecida entre os processos levados a cabo pela máquina e as

acções levadas a cabo pelo leitor. Drucker referiu que, por exemplo, a disposição de elementos no

ecrã manifesta uma retórica particular. Esta é fruto de interpretações e decisões e não um conjunto

de detalhes técnicos sem valor representativo:

So-called technical operations always involve interpretation, often structured into the shape

of the metadata, markup, search design, or presentation and expressed in graphic display.

The gridlike structures and frames in Web browsers express an interpretive organization

of elements and their relations (…). Features such as sidebars, hot links, menus, and tabs

have become so rapidly conventionalized that their character as representations has

become invisible. Under scrutiny, the structural hierarchy of information coded into

buttons, bars, windows, and other elements of the interface reveals the rhetoric of display.

(Drucker, 2009: 8)

John Zuern sugeriu que deveriam ser encontradas “estratégias de figuração que tornam o texto

reconhecível como literatura” (60). Referindo-se a Noah Wardrip-Fruin, Zuern concorda que

poderá ser necessário compreender o papel da computação. No entanto, adverte que, ao

centrarmos a atenção na especificidade do meio, a própria obra é ignorada:

A preoccupation with media specificity threatens to override our attention to aspects of

digital texts that are analogous, if not identical, to aspects of print documents, and thus to

thwart critical and pedagogical projects that trace comparisons across differently formatted

texts, special pleading for the digital impedes our access to each artwork’s ‘literary

singularity’. (Zuern, 2010: 61)

Como foi aqui demonstrado, a ficção digital está irremediavelmente ligada à ficção impressa. A

noção de que é impossível criar uma cisão com a tradição impressa está patente em vários textos

dedicados a esta área. A literatura em geral é, não só um conjunto de textos, mas de discussões

literárias. Muitas delas mudaram a literatura e continuam a reformulá-la até hoje. Outras foram

alteradas ou substituídas. Isto mostra que a literatura está em constante redefinição. Ao invés de

criar categorias restritivas e que não conseguem abranger todas as características específicas de uma

obra, surge a necessidade de retornar a uma ideia de literatura como um acto expressivo que é

executado através de diferentes estratégias de figuração. Esta é uma operação que, segundo Zuern,

97

começa na noção de estranhamento115 identificada na retórica de Aristóteles. Para este autor, o que

está em causa é o impacto do texto na imaginação do leitor:

While our critical practices must still pay scrupulous attention to the qualities of electronic

literature as electronic literature, this attention will result in richer and less circular

interpretations if we ask ourselves how these medium-specific elements figure – in all senses

– in the reader’s imaginative, ethical engagement with the text. (Zuern, 2010: 64)

O crítico pode não só ter em conta as capacidades figurativas de um texto, mas também a sua

materialidade, que Zuern associa a “strata of source codes, scripts, file formats, release dates, and

all the other technical data” (65). Contudo, torna-se necessário acrescentar que uma análise

concentrada na especificidade do meio confronta muitas vezes o crítico, não com a materialidade

do texto electrónico, mas com as possíveis diferenças entre o formato digital e o impresso. Este

resultado resume frequentemente o trabalho de investigação a uma comparação antagonista entre

ambos. Zuern refere que é necessário evitar o “essencialismo digital” e focar a atenção nas

propriedades figurativas do texto. Por este motivo, defende a adopção da técnica de close reading.

Este método permite, não só englobar a tradição literária, mas também retratar a ficção digital

como parte da literatura e não como uma experiência laboratorial116. No entanto, a técnica de close

reading sugerida pelo Novo Criticismo exclui a intenção autoral (para Wimsatt e Beardsley, uma

“intentional fallacy”). Referindo-se à estética de recepção, Gumbrecht defendeu um regresso à

intenção do autor: “Within the framework of a descriptive history of reception I would like to

recommend using the meaning intended by the author as the background against which other

meanings can be understood and compared” (19). Gumbrecht fornece várias razões para esta

decisão. Aqui gostaria de destacar uma em particular:

There are at least five reasons for supporting the suggestion to focus on the author's

intention rather than some random reader's as the background for comparing historical

meanings. (1) In most cases (biographical criticism not the least) the meaning intended by

115 O termo “estranhamento” ou ostraniene é frequentemente atribuído ao formalista russo Viktor Chklovski que o terá cunhado em 1917. Chklovski salienta que o efeito de “estranhamento” dificulta a percepção e torna-a laboriosa e demorada, ou seja, desautomatizada. O efeito de estranhamento impede um reconhecimento imediato do objecto. Chklovski refere-se a Aristóteles como aquele que defendeu a necessidade de a linguagem poética ser “estranha e maravilhosa” (Chklovski, 1965: 22). 116 Os textos digitais são normalmente comparados a obras impressas apelidadas de experimentais. Zuern defende que não é necessário proceder a essas comparações para encontrar a ligação entre o impresso e o digital: “we need not to limit our focus to those particular printed texts - Concrete or Language poetry, for example, or typographically complex works of fiction Hayles frequently treats – that appear to share an aesthetic (or a production process) with works of digital literature (65).

98

the author can be easily reconstructed quite independent of literary critics' various

presuppositions. (Gumbrecht, 2003: 19)

Isto não quer dizer que a procura de uma intenção autoral deva servir para circunscrever o texto a

um significado. Perante a presença de várias posições críticas divergentes, a intenção autoral

permite encontrar um caminho no emaranhado de propostas117. Para além de rejeitar qualquer

referência biográfica (que não pode ser confundida com intenção autoral) ao autor, centrando-se

apenas no texto, o formalismo e a técnica de close reading excluem igualmente um estudo da reacção

do leitor ao texto. O formalismo pretende estudar o texto em si e não o impacto que o texto terá

no leitor (Wimsatt e Beardsley referiram-se, dentro do New Criticism, a uma “affective fallacy”118).

Sendo assim, será necessário ajustar a close reading a cada texto, ou seja, expandir as capacidades

deste tipo de abordagem.

Tal como Zuern, também Sloane defendeu a aplicação da close reading: “We should aim to unmask

the digital text, to interrupt its inherent anonymity by close readings of its discrete elements and

participants in the composing process” (41). Contudo a autora refere-se à seguinte dificuldade:

The materials of computer fictions are process, not product: these theories have no

necessary closure, no grand finale, no necessary resolution. The ephemera of digital fictions

and their underlying participants, scripts, and codes allow users to grasp the never-ending

story with both eyes, reading and rereading unstable stories, which they can never hold in

their hands (idem.).

Sloane sublinha a dificuldade em lidar com textos instáveis ou transientes. Essa dificuldade pode

ser superada se o leitor ou o crítico se focar em pequenos detalhes que emergem durante a

reprodução e configuração do texto. A close reading, embora dirigida a textos de poesia, surge como

o método de análise adequado à ficção digital. Esta abordagem permite utilizar conhecimento

117 David Herman refere que a procura de uma “intenção” pode contribuir para uma melhor produção de sentido: “the intentional stance (…) is indeed a productive and perhaps optimal stance to adopt when pre- or nonconceptal ways of engaging with the world are derailed or cannot get off the ground and more deliberative, reasoned strategies for parsing out reasons for action are required” (Herman, 2013: 32). Referindo-se a Beardsley e Wimsatt, o autor defende o seguinte: “notwithstanding the anti-intentionalist arguments of formalists such as Wimsatt and Beardsley, narratives of all sorts can be characterized as a mode of communicative action, for the uptake of which inferences about authors’ (and sometimes narrators’) reasons for acting are not only pertinent but necessary” (42). 118 Em “The Affective Fallacy” (1949) Wimsatt e Beardsley definem ambas as falácias identificadas por ambos: “The Intentional Fallacy is a confusion between the poem and its origins (…). It begins by trying to derive the standard of criticism from the psychological causes of the poem and ends in biography and relativism. The Affective Fallacy is a confusion between the poem and its results (what it is and what it does) (…). It begins by trying to derive the standard of criticism from the psychological effects of the poem and ends in impressionism and relativism. The outcome of either Fallacy, the Intentional or the Affective, is that the poem itself, as an object of specifically critical judgement tends to disappear” (Wimsatt e Beardsley, 1949: 31).

99

reunido pela teoria literária e pelos estudos literários e aplicá-lo em texto curtos. Porque é centrada

em trechos de textos ou em elementos específicos, permite analisar narrativas sincopadas e

multilineares. Permite igualmente abranger várias formas de representação.

Ao invés de ensaiar um corte com todo o conhecimento herdado da literatura impressa e outras

formas de arte, esse conhecimento pode ser aplicado a estes novos textos que apresentam, como

foi possível ver até agora, várias questões teóricas, bem como características provenientes de

diferentes ambientes para além do digital. Mais uma vez, em questão está a ideia que a literatura

electrónica recupera várias das discussões teóricas e recursos expressivos colocados à disposição

de outros formatos e meios de representação.

Para David Ciccoricco a close reading constitui a segunda geração de teorização da literatura

electrónica. Porém, esta encontra-se circunscrita à análise visual e semiótica do texto: “close

readings of digital literature have a tendency to collapse into a strictly visual semiotics – by which

I refer to analyses of both pictographic material and text treated iconographically at the expense of

its verbal or referential qualities” (Ciccoricco, 2012: 2). Para este autor, a interpretação da animação

ou da imagem não poderá dominar a generalidade das técnicas de close reading, pelo que é necessário

criar uma ponte entre esta técnica de análise e, o que Ciccoricco intitula de “uma hermenêutica

materialmente consciente exigida pela textualidade digital” (idem.).

Para enfrentar o enigma do texto é necessário proceder à actividade de interpretação. A close reading

é baseada na análise detalhada de uma passagem de um texto o que a torna num recurso valioso

perante textos fragmentados. A análise da linguagem, da narrativa, do contexto da obra e da sintaxe

é efectuada através da leitura e releitura de um excerto e na escolha de mensagens específicas

fornecidas pelo texto. Para adaptar a técnica de close reading às humanidades digitais, Ciccoricco

sugere o abandono da noção de unidade (ou de texto como um todo) e a adopção de “novas

unidades bibliográficas” características do meio digital. Ciccoricco refere-se às seguintes

possibilidades:

(…) you can close read an entire novel or poem or an entire node. You can also close read

an idiosyncratic path of nodes, one that will include a reading of the links that both separate

and connect them (…) you can furthermore close read images (either static or dynamic)

and sound (be it music or noise) in relation to the text. (…) you can close read the kinetics

of the digital text in relation to the text; you can close read digital literature with and against

its interface / navigation; and you can close read digital literature in relation to its

application and — its ontological bedrock — programming code. (Ciccoricco, 2012: 25-

26)

100

Como o texto digital é maioritariamente um texto em permanente mutação, Ciccoricco vê a

releitura (segundo Ciccoricco, “close re-reading”), não como um contratempo, mas como uma

actividade característica da leitura em meio digital (27) que neutraliza a contradição entre leituras e

que ao mesmo tempo produz novos significados. Markku Eskelinen defende que a “frequência de

leitura” (ou as vezes que um passo ou um texto é lido) é importante para anular o ruído provocado

pelos sucessivos avanços e recuos (ou prolepses e analepses) e pelo movimento exploratório e

configurador levado a cabo pelo leitor. Contudo, tal como já foi aqui demonstrado, existem obras

que não permitem esta releitura. A literatura electrónica é constituída por textos de carácter diverso

que podem exigir diferentes técnicas de análise. No mesmo texto pode existir a necessidade de

recorrer a diversos tipos de abordagem.

Segundo Bootz, “algumas obras estão direccionadas para o autor, outras direccionadas para o

leitor” (3). Bootz distingue entre “texte-auteur” e “texte-à-voir”. Para o autor apenas é visível o

primeiro, enquanto que o segundo tipo de texto permanece virtual. O “texte-à-voir”, por seu turno,

permanece visível para o leitor mas o “texte-auteur” (ou a intenção do autor) permanece uma

incógnita (4). Entre ambos os textos existe uma “cesura semiótica” que impede o leitor de constatar

a intenção autoral: “There exists, then, a “semiotic gap” between the “texte-auteur” and the “texte-

à-voir” which comes out from the loss of visibility of the intention of the author. The “texte-à-

voir” reveals an intentionality that is its own and adapted and that may differ greatly from that of

the “texte-auteur” (Bootz, 2006: 4). Esta análise da relação entre autor e leitor perante um texto

transiente como o texto digital permite verificar que a literatura electrónica pode despertar várias

interpretações e não apenas uma única.

No artigo “Cross-reading: un outil de visualisation de close readings” (2013), Philippe Bootz e M.

Inés Laitano propõem uma análise cruzada de textos. Para os autores, os projectos ELO, ELMCIP

e CELL contêm uma quantidade extensa de informação para a qual são necessárias ferramentas de

visualização adequadas. Bootz e Laitano reuniram especialistas de várias áreas, com diferentes

metodologias e abordagens, para gerar um “corpus de close readings”. O projecto consistia em criar

uma ferramenta de indexação e visualização que facilitasse a pesquisa numa massa de artigos sobre

uma determinada obra (a obra escolhida foi Patchwork Girl). O objectivo não seria reduzir um texto

a uma interpretação mas criar um instrumento que permitisse a visualização de vários pontos de

vista: “l'indexation et la visualisation de ces articles ne devaient pas réduire ces différences, mais au

contraire les donner à voir, être centrées, donc, sur la problématique des points de vue” (Bootz,

2013: 2). Bootz pretende aqui associar a incisividade da close reading a uma perspectiva alargada

proporcionada pela distant reading, um método de análise criado por Franco Moretti. Este autor

descreve a distant reading da seguinte forma:

101

But within that old territory [literature], a new object of study: instead of concrete,

individual works, a trio of artificial constructs - graphs, maps, and trees - in which the reality

of the text undergoes a process of deliberate reduction and abstraction. 'Distant reading', I

have once called this type of approach; where distance is however not an obstacle, but a

specific form of knowledge: fewer elements, hence a sharper sense of their overall

interconnection. Shapes, relations, structures. Forms. Models. (Moretti, 2005: 1)

Moretti pretende desenvolver um “formalismo sem close reading” (Moretti, 2013: 118). Este autor

está particularmente ligado ao estudo do romance e as close readings são normalmente aplicadas a

textos compactos, como é o caso de poemas. Moretti tem em mente estruturas em grande escala e

observa que a close reading apenas pode ser aplicada numa diminuta selecção de textos: “the trouble

with close reading (in all of its incarnations, from the new criticism to deconstruction) is that it

necessarily depends on an extremely small canon. (…) you invest so much in individual texts only

if you think that very few of them really matter” (Moretti, 2013: 48).

Assim como o formalismo, Moretti pretende encontrar padrões e relações entre cenas, acções e

personagens119. Ao traduzir o texto numa série de ocorrências, as técnicas de visualização permitem

identificar fenómenos que passariam despercebidos ao olho humano. Moretti descreve esta

abordagem como se juntasse elementos e observasse a sua reacção através da lente de um

microscópio, durante uma experiência laboratorial120: “you reduce the text to a few elements, and

abstract them from the narrative flow, and construct a new, artificial object (…) with a little luck,

these maps will be more than the sum of their parts: they will possess ‘emerging’ qualities, which

were not visible at the lower level” (Moretti, 2005: 53).

Para analisar um vasto número de textos, Moretti considera que será necessário recorrer à análise

quantitativa de dados. Esta análise apenas pode ser feita através do computador. Este autor criou,

juntamente com Matthew Jockers, o Stanford Literary Lab em 2010 com o seguinte objectivo:

“The Stanford Literary Lab (…) discusses, designs, and pursues literary research of a digital and

quantitative nature”121. Contudo, a visualização de dados, que se assemelha a uma análise estatística

porque implica o uso de gráficos e tabelas122, parece representar um ponto de partida e não um

119 Um estudo sobre a relação entre personagens na obra Hamlet (1599-1601), efectuado por Moretti e pela sua equipa, deixa entrever que, de todos as personagens que falam com Claudius e Hamlet, apenas duas sobrevivem. Esta conclusão permitiu a Moretti identificar uma “região da morte” (Moretti, 2011: 4). 120 Ryan considera que os estudos literários estão a ser influenciados por métodos utilizados nas ciências naturais: “there is a tendency in literary studies toward scientism and technologization that will also affect narratology” (Ryan, 2014). 121 Este projecto pode ser conhecido em: http://litlab.stanford.edu/. 122 Moretti descreve este processo da seguinte forma: “From texts to models, then; and models drawn from three disciplines with which literary studies have had little or no interaction: graphs from quantitative history, maps from

102

estudo conclusivo em si mesmo123. Sem interpretar os dados resultantes da visualização, este tipo

de estudo resume-se a um conjunto de conclusões, sem dúvida empolgantes e pertinentes, mas que

parecem revelar a todo o momento uma análise num estado incipiente.

A identificação de um cânone é sempre problemática porque supõe a valorização de um certo tipo

de texto em relação a outro. Na literatura electrónica torna-se particularmente difícil porque, como

já foi aqui salientado, as obras estão sujeitas à obsolescência. Para além do mais, referindo-se ao

ELMCIP Knowledge Base, um arquivo sediado em Bergen, Rettberg afima que o mesmo está em

constante expansão e que nem toda a informação disponibilizada no arquivo é completa. A distant

reading sobre a literatura electrónica apresentada por Rettberg em “Emerging Canon” (2013)

permite afirmar que afternoon, a story de Michael Joyce (1987-1990), Patchwork Girl de Shelley Jackson

(1995) e Victory Garden de Stuart Moulthrop (1991) são as obras mais citadas (Rettberg, 2013: 13)

dentro da literatura electrónica124. Também permite comprovar que a investigação dedicada à

literatura electrónica tem aumentado (12). Rettberg refere que as visualizações resultantes da distant

reading permitem “contar uma história sobre a literatura electrónica e as suas preocupações” (29),

bem como auxiliar a reduzir o cepticismo que impede a sua integração na academia ou nas

humanidades: “we can now offer skeptics solid evidence of thirty years of sustained critical activity

(including a great deal of printed, as well as digital, matter) that has constituted a dynamic field”

(32). Contudo, apesar do seu optimismo na possibilidade de a distant reading poder vir a ajudar na

identificação de um cânone (que afinal é ainda “emergente”), Scott Rettberg adverte que esta não

pode substituir a close reading: “I don’t think that distant reading is any sense a replacement for

closer readings which engage very directly with the language, technical apparatus, interface, visual

presentation, interactive semiotics, etc. of any individual digital literary artifact” (idem).

As técnicas usadas na distant reading permitem ver a literatura sob uma nova perspectiva. Esta

abordagem surge como um movimento necessário face ao envolvimento do computador na

produção e análise de textos. Moretti adverte que a quantificação da literatura não representa a

solução mas a correcta definição do problema: “Quantification poses the problem, then, and form

offers the solution. But let me add: if you are lucky. Because the asymmetry of a quantitative

geography, and trees from evolutionary theory” (Moretti, 2005: 1). Para Moretti, a análise quantitativa de dados cria um novo tipo de formalismo: “Summaries, adjectives, proper names, nominal sentences, metonymies, metaphors... In a minute I will turn to articles (and I am thinking of sections on conjunctions and participles). This is a quantitative study: but its units are linguistic and rhetorical. And the reason is simple: for me, formal analysis is the great accomplishment of literary study, and is therefore also what any new approach - quantitative, digital, evolutionary, whatever - must prove itself against: prove that it can do formal analysis, better than we already do. Or at least: equally well, in a different key.” (Moretti, 2013: 204) 123 Esta limitação é referida por Moretti: “Quantitative research provides a type of data which is ideally independent of interpretations, I said earlier, and that is of course also its limit: it provides data, not interpretation.” (Moretti, 2005: 9). 124 Um dos gráficos que permite visualizar e comprovar esta afirmação pode ser consultado no seguinte endereço: http://retts.net/viz/elmcip_works_freq_cited/works_freq_cited.pdf.

103

explanandum and a qualitative explanans leaves you often with a perfectly clear problem-and no

idea of a solution” (Moretti, 2005: 26). Como temos vindo a observar nesta tese, enquanto descrita

como um conjunto de problemas, a literatura não permite chegar a conclusões ou soluções mas a

novas perguntas. Observar o comportamento expressivo de cada texto, e ajustar o nosso método

a cada tipo de texto, poderá ser a opção mais viável. Joseph Tabbi sugeriu uma close reading da

performance cognitiva: “What cognitive criticism can accomplish, and what can be aided by

attention to contemporary accounts of cognition in the sciences, is a discovery through close

reading of the moment-by-moment, word-by-word, and sentence-by-sentence enactment of

consciousness in language” (Tabbi, 2011:81). A abordagem cognitiva é salientada nesta tese. No

entanto, esta é centrada na interpretação enquanto compreensão, ou seja, na interpretação

semiótica e semântica de um texto catalisada por várias funções cognitivas, desde a percepção até

à imaginação.

Perante a ficção digital (ou perante qualquer tipo de texto) o leitor está permanentemente a

mergulhar e a vir à tona do mundo ficcional. Não é possível analisar todos os detalhes do texto

nem é possível chegar a uma interpretação una mas apenas a uma proposta de interpretação.

104

- Capítulo III –

Win-win game: como conciliar imersão e

interactividade

O terceiro capítulo, para o qual todos os outros capítulos e subcapítulos contribuem, está centrado

na relação entre imersão e interactividade. De forma a abordar textos dinâmicos que oferecem uma

resposta diferente daquela manifestada em textos da literatura impressa e outros tipos de arte,

Markku Eskelinen e Marie-Laure Ryan têm vindo a introduzir a ludologia no estudo da literatura

electrónica. Contudo, o que pretendo aqui demonstrar é que a interactividade oferecida pelo

computador surge em resposta a expectativas criadas antes da literatura electrónica. As inovações

tecnológicas, das quais a literatura electrónica usufrui, foram utilizadas para concretizar essas

expectativas. Isto significa que, na base da interactividade proporcionada pelo computador está um

longo processo de reflexão sobre possibilidades de representação. Se nos primeiros textos de

literatura electrónica era oferecida a ilusão de participação125 e possibilidade de escolha ao leitor

como forma de aumentar o seu poder face à entidade autoral, a literatura electrónica demonstra

hoje uma ramificação deste tema. Com novos recursos informáticos ao seu dispor, a literatura

electrónica tem à sua disposição novas respostas textuais. O impacto destas na discussão da relação

entre interactividade e imersão será ilustrado neste subcapítulo.

A imersão é um tema explorado por várias formas de arte, desde a pintura à música. Na literatura,

esta é possibilitada pela ficção e pela sua capacidade de aceitar a geração de mundos possíveis onde

o leitor é integrado através da imaginação. Na secção “Era uma vez um mundo possível: o ficcional

e o virtual” pretendo demonstrar a eficácia da literatura em criar mundos que o leitor pode explorar,

embora impulsionado pela sua imaginação. Esta propriedade da ficção ultrapassa em larga escala

os progressos conseguidos até ao momento na área da realidade virtual. Quanto à literatura

electrónica, a criação de mundos possíveis surge, não só relacionada com questões de

ficcionalidade, mas também com a impossibilidade de prever o resultado de uma acção.

125 Murray define a participação como uma característica essencial do ambiente digital: “That is what is most meant when we say that computers are interactive. We mean they create an environment that is both procedural and participatory” (Murray, 1997: 76).

105

Em “Leitura deambulatória: a frustrar expectativas desde 1987”, passarei a referir-me à

possibilidade de existir um modo de leitura deambulatório. Neste último subcapítulo, pretendo

demonstrar que a relação entre imersão e interactividade pode ser descrita, não através da existência

de um conflito, mas através de uma gestão ou distribuição da atenção.

Neste capítulo serão sobretudo usadas obras com uma componente lúdica e ergódica acentuada.

O intuito será demonstrar como é possível conciliar imersão e interactividade, bem como tornar

manifesta a existência de uma história, ainda que esta não seja transmitida de forma convencional,

ou seja, através de um trajecto coerente entre início, meio e fim.

106

O jogo da ficção e os seus desafios

Play. Games. Narrative. Interactivity. What a motley bunch.

Honestly, have you ever seen such a suspicious set of slippery and

ambiguous, overused, and ill-defined terms?.

Eric Zimmerman, “Narrative, Interactivity, Play, and Games”

Diegesis: Why narratology?

Ryan: Because there are narratives. (This of course presupposes

that we can define narrative, no easy task; but this problem occurs

in most disciplines: think of the difficulties of defining life, the

object of biology.)

“My Narratology: an interview with Marie-Laure Ryan”

Caring nothing for the division between good and bad literature,

narrative is international, transhistorical, transcultural: it is simply

there, like life itself.

Roland Barthes, Image, music, text

Em “Peeling the Onion: Layers of Interactivity in Digital Narrative Texts” (2005), Marie-Laure

Ryan associava a interactividade proporcionada pelos textos digitais com a “capacidade de o

utilizador fornecer input ao computador e de este, por sua vez, ajustar o seu comportamento a esse

input” (Ryan, 2005). Ryan defendia que, para um texto ser interactivo, necessitava de reagir às

intervenções do leitor. Segundo a autora, quando o leitor folheia as páginas de um livro, o texto

não muda. Já o texto digital manifesta o seguinte comportamento: “a digital text is interactive,

because when the user performs an action, the program reacts by executing a certain module of

code that alters the global state of the system” (Ryan, 2005). Para Ryan, no texto genuinamente

interactivo, teria de existir um feedback loop126 entre duas entidades que podem ser humanas (como

na narração de histórias ou numa conversa); entre o ser humano e o mundo ou entre um humano

e um sistema programável. Como vimos no segundo capítulo, as obras Nippon e Dakota, apesar de

serem reproduzidas pelo computador e de manterem um ciclo de alimentação e retroalimentação

entre este e o leitor127, não reagem às interpelações do leitor, funcionando como um pequeno filme

126 Schäfer e Gendolla consideram a existência de feedback loops na comunicação literária entre ser humano e máquina, como a maior mudança trazida pelo computador (Schäfer e Gendolla, 2010: 84). Segundo os autores, a produção literária já não é concretizada apenas pelo autor mas também pela máquina. Ela surge como um processo interminável de criação ou como uma ars combinatoria computacional (Schäfer e Gendolla, 2010: 88). 127 N. Katherine Hayles mencionou a existência de uma recursividade ou uma intermediação entre computador e ser humano: “An important aspect of intermediation is the recursivity implicit in the coproduction and coevolution of

107

que se desenrola entre o acesso do leitor à página e a decisão de abandonar a obra. Lori Emerson

afirma que o grupo Young-Hae Chang Heavy Industries recusa-se a incorporar interactividade nas

suas obras criando em vez desta uma estética de “clean glitch”. Esta estética é definida por Emerson

da seguinte forma: “Thus clean-glitch aesthetic is against its own cleanliness in that it uses Adobe

Flash to create a spare, mostly black-and-white, cinematic, and totally uninteractive environment

that thereby provides the reader with the ultimate control: to click away” (Emerson, 2014: 40-41).

Para Emerson, existem várias obras “insurgentes” que complexificam a leitura para contrariar a

noção de transparência do computador. Entre elas estão as obras de Young-Hae Chang Heavy

Industries (4). Por seu turno, existem vários livros em formato impresso que oferecem uma

interactividade acrescida. Tal é o caso de livros que apelam ao manuseamento das suas páginas de

forma não-convencional. Estes livros implicam, não só a actividade automatizada de “virar

páginas” mas também a actividade de desdobrar/dobrar, girar e recortar. Um exemplo

particularmente claro do tipo de leitura que exige um manuseamento do livro é a obra Andromeda

(2008) de Caitlin Fisher. Este é um livro de recortes que exibe uma multidimensionalidade atípica.

As suas páginas são como os foles de um leque que, quando abertas, exibem pequenas histórias

visuais. Porém, este “pop-up book” não ficaria completo sem o aproximar de uma webcam.

Quando isto acontece, surgem pequenas janelas com textos que são lentamente reproduzidos. Por

seu turno, uma voz feminina faz-se ouvir. Embora inscrito no formato impresso, Andromeda revela

uma dimensão que apenas pode ser explorada através do computador. Porém, esta dimensão não

oferece uma maior interactividade. O leitor apenas tem de mostrar as páginas do livro à webcam

do computador para observar as transformações sofridas por este, de página em página. Na

verdade, Andromeda efectua uma problematização do gesto de virar a página, problematização esta

que se estende do impresso ao digital, sem diferenciação entre ambos. Com este exemplo, não

pretendo elaborar uma comparação entre o uso do formato impresso e do formato digital (até

porque ambos surgem conglomerados) em Andromeda. O que gostaria de frisar é que o acto de ler

implica por si só uma interactividade que não pode ser ignorada. Adicionalmente, o computador

trouxe novas respostas textuais mas a análise de interactividade não pode ser resumida ao factor

de novidade. Scott Rettberg referiu-se à mesma necessidade:

Electronic literature is a field for various reasons prone to a sense of “presentism.” Because

of its intrinsic relationship to the technological apparatus in which it is produced, read, and

multiple causalities. Complex feedback loops connect humans and machines, old technologies and new, language and code, analog processes and digital fragmentations (Hayles, 2005: 31). Hayles refere-se à dimensão sociológica, formal e cognitiva do contacto entre ser humano e computador e às relações entre média, e não à propriedade de o leitor colaborar com o computador na construção criativa do texto.

108

processed, novelty is itself often cited as a literary value. While I don’t deny that innovation

and experimentalism often provide compelling reasons to engage with a creative work, if

we place novelty at the apex of a hierarchy of values, we risk blinding ourselves to the work

that preceded any given innovation, and thus operating without any sense of history. We

also risk focusing so intently on technological innovation that we might lose sight of what

any given work is actually about; and content matters in literary work. (Rettberg, 2013: 31)

Como veremos, embora o computador tenha colocado à disposição novos recursos, grande parte

da produção levada a cabo dentro da literatura electrónica surge em resposta às expectativas

acalentadas por diversas formas de expressão.

No artigo acima indicado, Ryan refere-se exclusivamente a textos digitais. O seu texto revela duas

ideias sobre interactividade que serão exploradas nas próximas secções. A primeira delas vê a

interactividade como intrinsecamente ligada à manipulação128 do texto através de acções físicas (ou

simulações das mesmas) levadas a cabo pelo leitor. A segunda noção de interactividade baseia-se

na quantidade de poder oferecido ao leitor para alterar a narrativa. Como será possível constatar,

estas concepções de interactividade nem sempre permitem uma análise textual eficiente.

Investigação em curso: o leitor como cúmplice

Apesar de admitir que não é um termo consensual, Marie-Laure Ryan considera que o termo

“interactividade” é “auto-explicativo” e por isso defende que este deve ser mantido129. A autora

sugere que existem vários tipos de interactividade que são como as camadas de uma cebola.

Enquanto que nas camadas externas a interactividade tende a ser exploratória, nas camadas internas

da cebola a interactividade tende a ser ontológica:

On the outer layers, interactivity concerns the presentation of the story, and the story pre-

exists to the running of the software; on the middle layers, interactivity concerns the user’s

personal involvement in the story, but the plot of a story is still pre-determined; on the

inner layers, the story is created dynamically through the interaction between the user and

the system. (Ryan, 2005)

128 Brenda Laurel referiu-se à “interface de manipulação directa” que possibilitava um “envolvimento directo” com o objecto representado (Laurel, 1993: 8). 129 Segundo Ryan, Aarseth pretende substituir este termo pelo termo “ergodismo” mas, em defesa do termo “interactividade”, a autora acrescenta: “just because interactivity comes in many forms there is no reason to discard the term, because it presents the significant advantage of being self-explanatory and intuitively meaningful” (Ryan, 2005). Aqui tratarei ambos os termos como necessários e fundamentalmente diferentes.

109

Para Ryan, a participação do utilizador poderá assumir quatro formas. As mesmas são distinguidas

pela autora através de duas dicotomias: o leitor pode existir como uma personagem (interactividade

interna) ou pode adoptar uma perspectiva afastada em relação à narrativa (interactividade externa);

as escolhas do utilizador podem ter um impacto no ambiente (interactividade ontológica) ou a

participação do leitor pode ser limitada à observação (interactividade exploratória). Como veremos,

existem textos que alternam permanente entre estas formas de participação.

Ryan distingue ainda quatro níveis de interactividade. No nível um de interactividade (peripheral

interactivity), a história é emoldurada por uma interface interactiva mas o contacto com esta não

afecta a história nem a sua ordem de apresentação. Acerca do poema Cruising130 (2001), Ryan

salienta que esta obra não pode ser considerada uma narrativa porque não tem um desfecho e

porque descreve uma acção repetitiva. O papel do leitor, por seu turno, resume-se ao controlo do

ecrã (ou ao ritmo a que a obra é reproduzida). Apesar do seu controlo sobre o processamento,

Ryan refere que o texto é “sempre o mesmo” e o leitor não pode avançar na sua reprodução nem

pode alterar a sua ordem interna.

Para além da leitura do texto ou de conhecer a história, o leitor pode ter de resolver enigmas, visitar

outras páginas, ou seja, poderá levar a cabo tarefas paralelas à história principal sem, no entanto,

alterá-la. Ryan descreve essas actividades da seguinte forma: “These activities are like the toys on a

playground: the reader can either progress in the story, or stop and play along the way. While some

activities involve puzzles to solve (…) there is always a way to avoid them, and none of them

constitutes a roadblock” (Ryan, 2005).

No nível dois de interactividade (Interactivity affecting narrative discourse and the presentation of the story), Ryan

defende que os elementos da história são pré-determinados mas a sua apresentação ao utilizador é

variável. Este tipo de interactividade opera ao nível do discurso narrativo como oposto ao nível da

história. Ryan relaciona a interactividade nível dois com aquela proporcionada pelo hipertexto e

acrescenta que o leitor pode explorar a história e configurá-la. Porém, esta é constituída por

hiperligações entre blocos de textos pré-determinados. Como Ryan conclui, mais uma vez, o leitor

não pode mudar a história. A interactividade permitida pela máquina surge descrita da seguinte

forma: “interactivity becomes a matter of choice between several pre-defined stories” (Ryan, 2005).

No nível três de interactividade (Interactivity creating variations in a partly pre-defined story), Ryan prevê que o

utilizador seja um interveniente no mundo ficcional, pelo que a forma de participação do leitor é

aqui interna (exploratória ou ontológica). Contudo, o computador continua a controlar o rumo da

narrativa: “the system grants him [the user] some freedom of action, but the purpose of the user’s

130 Esta obra pode ser consultada no volume um da colecção reunida pela Electronic Literature Collection em: http://collection.eliterature.org/1/works/ankerson_sapnar__cruising.html.

110

agency is to progress along a fixed storyline, and the system remains in firm control of the narrative

trajectory” (Ryan, 2005). Ryan associa este tipo de interactividade aos seguintes objectos:

“adventure games, shooters, mystery-solving games” (idem.). Quando o leitor apenas tem de

mover-se ou ver objectos, a sua participação é exploratória. Quando as suas acções têm o poder de

“mudar o mundo” ou afectar o destino do seu avatar, a sua participação torna-se ontológica.

Neste tipo de interactividade o leitor tem um corpo ou um avatar no mundo ficcional. As

actividades do leitor (que na descrição deste tipo de interactividade é transformado em jogador)

são descritas por Ryan: “the actions available to him are not merely abstract ways to see more of

the text, but represent a physical engagement of the avatar with the surrounding world, such as

moving, jumping, building, shooting, killing, picking up objects and looking around” (Ryan, 2005).

Com esta descrição, Ryan deixa transparecer o seguinte: a interactividade aumenta quando o texto

se assemelha a um jogo onde é pedido ao leitor que execute acções fisicamente exigentes. As

actividades descritas por Ryan neste passo são actividades físicas que associam a interactividade ao

desempenho físico131, embora simulado. Por oposição, a consulta de textos ou ficheiros paralelos

à história principal, porque não têm um impacto nesta, e porque não exigem uma actividade física

acentuada, é associada a uma interactividade nível um.

A obra La Disparue132 (2012) é um híbrido entre jogo e história policial que, por o leitor ser o

protagonista da história, possibilita um tipo de interactividade nível três e uma participação interna,

exploratória e ontológica. La Disparue é proposta como uma sequência de enigmas, cuja resolução

permite identificar o responsável pelo desaparecimento de Elisabeth Monohan e da morte de

Kacey Harnois133. Segundo Cécile Iran, Médéric Lulin e Sophie Séguin, os autores desta obra

colaborativa, La Disparue é uma hiperficção em que o leitor terá de encarnar a personagem de

Harry, um detective encarregado de resolver o mistério proposto em La Disparue. Esta história, que

não está inscrita num único lugar online mas que se distribui por diferentes espaços (muitos deles

são acedidos através de hiperligações, outros acrescentando dados ao URL), pode oferecer três

tipos de interactividade. Se a história principal for associada ao URL de onde ela parte, o leitor

pode efectuar “actividades paralelas à leitura” de La Disparue, como por exemplo, consultar a página

131 Em Narrative across media (2004), Ryan refere que um texto digital é aquele que explora, de alguma forma, a resposta a um ambiente em mudança. Quando essas mudanças são efectuadas através de um input do utilizador ele torna-se num texto interactivo (329). Nesta definição de texto interactivo Ryan frisa a necessidade de participação do corpo e, adoptando uma metáfora mcluhanesca, descreve a interface como uma extensão deste: “The interactive character of digital texts manifests itself as a feedback loop that sends information from the user’s body and its extensions (mouse, keyboard, joystick, magic wand, data glove, or headset) to the processor, often through the mediation of a virtual user body; from the processor to the display which is modified by the execution of the command user and back to the acting body” (Ryan, 2004: 329). 132 Uma entrada sobre esta obra foi escrita por mim para o Electronic Literature Directory durante a redacção desta tese. A mesma pode ser consultada em: http://directory.eliterature.org/node/3765. 133 Segundo Ryan, a participação interna-exploratória permite o seguinte: “Internal-exploratory participation is found in those games in which the mission of the player consists of solving a mystery, such as a murder case” (Ryan, 2005).

111

do Twitter de uma das vítimas ou escrever numa página de Facebook. Só que estas actividades,

embora pareçam acessórias, representam uma narrativa134. Algumas delas são essenciais para

desvendar o mistério. Esta obra parece alcançar o nível um de interactividade. Contudo, La Disparue

não tem uma história central como ponto de partida. Ela apresenta apenas uma espécie de

frontispício que precipita automaticamente o leitor/jogador numa investigação. Isto torna La

Disparue num processo que se estende a diferentes sítios da rede. De acordo com Ryan, Lev

Manovich intitulou este tipo de histórias database stories e sublinhou a sua incompatibilidade com a

narrativa135. Para Ryan, a narrativa, para além de ter de incluir um desfecho, também tem de

obedecer a uma lógica causal e cronológica. Esta história policial tem uma estrutura fechada que,

apesar de propor várias tarefas paralelas situadas em diversos locais na rede, não perturba uma

noção de coerência narrativa. Ela tem também um desfecho, pelo que, segundo os critérios de

Marie-Laure Ryan136, poderá ser considerada uma narrativa. La Disparue é apelidada de hiperficção

pelos seus criadores mas Ryan salienta que a estrutura hipertextual prejudica a formação de uma

narrativa137. Contudo, em La Disparue existe um narrativa e uma lógica causal que é conhecida pelo

leitor através da resolução de enigmas e superação de desafios.

As histórias policiais em formato impresso são normalmente desenhadas para atingir um objectivo:

chegar ao final da narrativa para descobrir a identidade ou localização do criminoso. Sendo assim,

elas estão dependentes de uma estrutura aristotélica, ou seja, são construídas mediante uma lógica

de início-meio-fim. La Disparue tem uma componente lúdica acentuada. Esta obra exige que o leitor

vença vários desafios até ganhar o jogo ou descobrir a verdade. Isto significa que também ela é

orientada para atingir um desfecho. O desenrolar da narrativa depende da viagem exploratória

executada pelo leitor que é mantido no jogo/na leitura pela ambição de descobrir a verdade sobre

um desaparecimento e um homicídio. O desejo de alcançar um desfecho está associado à sensação

de concretização e de “ordem restabelecida”: no final da história tudo é revelado e todas as questões

do leitor são respondidas.

134 La Disparue é considerada uma narrativa porque ela é constituída por personagens, por um narrador (ou negociador), por eventos que são explorados (sequencialmente ou não). Esta obra tem igualmente um desfecho e inclui uma história. 135 Hayles refere que estas não são oponentes mas natural symbionts, ou seja, seres de diferentes espécies que estabelecem uma relação de interesse mútuo. A narrativa precisa da base de dados para “aumentar a sua autoridade cultural e testar a generalidade das suas perspectivas”, a base de dados necessita da narrativa para que as suas acções tenham um significado (Hayles, 2012: 176). Contudo ambas têm um comportamento diferente: “Narratives gesture toward inexplicable, the unspeakable, the ineffable, whereas databases rely on enumeration, requiring explicit articulation of attributes and data values” (179). 136 Ao longo do seu artigo, Ryan salienta por várias vezes que a narrativa implica uma certa lógica, coerência, bem como um desfecho. 137 Ryan acrescenta que a existência de uma narrativa não é obrigatória para a produção de significado: “for meaning in hypertext does not have to be narrative: relations between lexias can be analogical and lyrical, rather than standing for chronological and causal relations” (Ryan, 2005).

112

Walter Ong considerou as histórias policiais um exemplo perfeito de estruturas lineares baseadas

na pirâmide de Gustav Freytag (142): “In the ideal detective story, ascending action builds

relentlessly to all but unbearable tension, the climactic recognition and reversal releases the tension

with explosive suddenness, and the dénouement disentangles everything totally” (147). Se La

Disparue oferece uma estrutura baseada no alcance de desfecho, também subverte a ideia de

linearidade e recrudescer de tensão associadas às histórias policiais. Schäfer e Gendolla consideram

que a leitura de uma história policial num dispositivo multimédia resulta numa experiência

completamente diferente: “the imaginary tension between expectation and disappointment is

disturbed or disrupted by the game features” (Schäfer and Gendolla, 2010: 100). La Disparue

desenvolve-se como uma investigação e, de acordo com Ryan, estes tipos de “jogos” oferecem

duas histórias: a investigação executada pelo seu avatar e a história dessa investigação. La Disparue

é um texto ergódico, tal como descrito por Espen Aarseth. Nesta obra é exigido um “esforço não-

trivial para que o leitor possa percorrer o texto” (Aarseth, 1997: 1). O leitor/investigador de La

Disparue tem de explorar várias hipóteses, fazer escolhas e, ao mesmo tempo, reconstruir o texto.

A produção de suspense para manter o leitor em contacto com o texto é substituída pela sugestão

de desafios e pela possibilidade de ganhar um jogo. Schäfer e Gendolla sublinham esta qualidade

das histórias policiais inscritas no meio digital:

This indicates a crucial difference between detective stories in books and those in net

literature or in computer games: in crime fiction, all the necessary clues have to be revealed

but, at the same time, the mystery has to be strictly preserved until the end of the story in

order to sustain the suspense. While the coherence of the story and the complete process

of induction, abduction, and deduction remain under the author’s control, in games as well

as in net literature, however, the solving of the mystery has to be subdivided into a series

of minor challenges which the reader/player has to pass one by one in order to advance.

(Schäfer e Gendolla, 2010: 97)

La Disparue depende da performance do jogador para avançar na história. Na verdade, esta obra é

composta por dois desfechos que dependem do sucesso/insucesso da investigação. Embora possa

acrescentar comentários na página Facebook de uma das vítimas (e apesar de esta página permitir

a comunicação entre leitores), tal como aquele utilizador que acrescenta comentários nas margens

de um livro ou acrescenta notas a uma obra construída através do programa Storyspace, a história

de La Disparue não é alterada138. Enquanto a investigação é colocada em curso, o leitor/jogador

138 Para entrar na página Facebook de uma das personagens, o leitor terá de fazê-lo através da sua página pessoal (ou uma conta criada para o efeito). A dado momento, ele tem de procurar uma localização no mundo actual através do

113

tem de seguir várias pistas, analisar provas, consultar documentos, visitar locais (activando para

isso o Google Earth) e entrar em páginas de redes sociais como o Facebook e o Twitter. Todos os

detalhes são importantes e o sucesso do jogo/investigação depende da atenção ao detalhe. O

roteiro levado a cabo pelo leitor foi forjado pelos criadores de La Disparue. As pistas plantadas

pelos autores desta história policial podem salvar a rapariga desaparecida. Em La Disparue, a

necessidade de chegar ao fim para descobrir a verdade, promovida por qualquer história policial, é

acompanhada pelo desejo de superar os desafios para descobrir o culpado dos dois crimes. Se o

leitor/jogador não reunir as pistas deixadas pelos autores não terá sucesso. Isto pode provocar uma

espécie de tensão, tal como evidenciada na pirâmide de Freytag. Contudo, as tarefas atribuídas ao

leitor/jogador camuflam esse sentimento, tornando-o em curiosidade e concentração para “passar

ao próximo nível”. Para além da sua fragmentação, La Disparue tem uma estrutura episódica que se

traduz em diferentes etapas da investigação/etapas do jogo. Na literatura impressa, a leitura de uma

história policial tem lugar entre páginas. O leitor é também o investigador porque ele também

coloca hipóteses e imagina cenários através das pistas deixadas pelo autor. Em La Disparue, ele é

convidado a investir um esforço ergódico que o leva a explorar e configurar o texto até conhecer o

paradeiro de uma das vítimas ou até chegar à resolução do mistério. A história não é veiculada

através de um texto constituído por letras mas por ficheiros, fotos, trilhos, provas e pistas

distribuídas por diversos locais. O acto de ler transforma-se numa investigação.

O recrudescer de tensão (ou suspense) é tratado frequentemente como um critério fundamental

para a imersão do leitor na narrativa mas os desafios colocados por um jogo também possibilitam

uma sensação de imersão. Sendo assim, a “tensão imaginária” a que Gendolla e Schäfer se referem

e que é interrompida pela necessidade de o leitor responder a desafios também é verificada perante

jogos de computador. Nestes, é a interactividade constante com o mundo ficcional que mantém o

leitor imerso no jogo:

The deductive element of the detective’s method, however, which, in print media, is to

provide a surprising solution of a case only at the end of a story, has in principle been

maintained in computer-based media but with far-reaching modifications. (…) There is no

way for the reader/player to keep up the suspense without constantly surmounting

challenges, i.e., without complementing the imaginary activity of perceiving what is

happening on the screen with explicit actions such as, for example, choosing between

Google Maps. Isto significa que La Disparue catalisa uma fuga do mundo ficcional para o mundo real e corrompe as barreiras ontológicas que separam leitor e autor. Enquanto o leitor explora o mundo ficcional, a obra vai ao seu encontro no mundo extradiegético, através dos seus dispositivos. Quando o leitor tem de visitar páginas paralelas, ele coloca em prática o nível um de interactividade. Porém, em La Disparue, ele é uma personagem na narrativa, o que significa que ele alcança o nível três de interactividade.

114

different links in a hypertext fiction or by controlling an avatar in a virtual world. (Schäfer

e Gendolla, 2010: 98)

Schäfer e Gendolla salientam que um jogador apenas desvenda o mistério se responder

eficientemente aos desafios colocados pelos criadores do jogo. Para tal, os autores referem que tem

de existir um contributo da imaginação:

In games and net literature, the mystery is unravelled if and only if the readers/players’

actions, which have been inspired by their imaginative analysis in the course of the

reception, turn out to be in accordance with pre-scripted solutions that have been

programmed by the game designers and implemented into the rules and computer

operations. (Schäfer e Gendolla, 2010: 98)

Segundo Zumthor, a imaginação é definida como uma faculdade “poética” que parte de uma

“apreensão intensamente concreta, do real particular”, mas que “se faz acompanhar de uma

recomposição dos elementos percebidos” ou da “percepção e de recriação imagética” (Zumthor,

2007: 196-197). A imaginação é simultaneamente uma forma de aceder a dados concretos ou um

recurso para compreender o mundo. Esta envolve recriação e livre arbítrio. Porém, estas

capacidades da imaginação não podem ser equiparadas à “participação na construção da narrativa”.

Ela é um processo posterior ao trabalho criativo efectuado pelo autor/ programador/ designer (ou

o que Sloane intitulou de “processo de composição antecipatório”, 41) e à descodificação do texto,

isto é, ela define-se através de uma apropriação ou reconstrução do que já foi ou está a ser

transmitido139. Segundo Zumthor, a leitura é “a apreensão de uma performance ausente-presente”

e a informação transmitida pelo texto ocorre num campo deíctico particular, ou seja, “um aqui-eu-

agora” irreproduzível (56). Tanto nas histórias policiais, como nos jogos, o leitor/jogador tem

139 Num texto sobre imersão e interactividade publicado em 1994, Marie-Laure Ryan havia distinguido a interactividade figurativa, a interactividade literal fraca e a interactividade literal forte. Nele, Ryan segue esta tendência de subjugar o texto à intenção do leitor. A interactividade figurativa é executada através de uma “colaboração entre o leitor e o texto na produção de significado” (125). A interactividade literal fraca tem em conta a “participação do leitor na produção material dos signos” e está relacionada com a interactividade física de selecção de hiperligações. Ryan refere-se à “estimulação de operações mentais” executada pelo acto de clicar mas cinge a discussão da liberdade oferecida ao leitor à propriedade (que Ryan considera como inexistente) de mudar o texto e ao facto de a imersão ser prejudicada pela actividade de selecção e montagem do mesmo (127-128). A interactividade literal forte é associada ao que o Ryan considera ser um objectivo do pós-modernismo: “empowerment of the reader”. Segundo Ryan o leitor “cria o mundo ficcional através da pespectiva externa do autor” (130). Ryan oferece como exemplo o drama interactivo e os MOOs que permitem a introdução de enunciados e oferecem ao leitor a possibilidade de desempenhar o papel de uma personagem num mundo ficcional, assim como de influenciar o desenrolar do enredo através do seu discurso e acção (idem.). No mesmo texto, Ryan declarava o seguinte sobre a interactividade: “Interactivity is not merely the ability to navigate the virtual world, it is the power of the user to modify this environment” (Ryan, 1994: 121). A relação entre interactividade e o poder de o leitor mudar o texto será atenuada por Ryan em textos subsequentes mas, como veremos, a ideia da participação do leitor enquanto co-criador continuará presente em grande parte da literatura dedicada à interactividade.

115

sempre de obedecer às regras ditadas pelo (s) autor(es) para alcançar um objectivo. Isto significa

que, um nível crescente de interactividade não oferece necessariamente um maior livre arbítrio ao

leitor. Como foi evidenciado no primeiro capítulo, existem diferentes formas, como os guard fields,

de restringir o raio de acção do leitor.

Ryan refere-se ao facto de a maior parte dos jogadores não estar interessada na história mas neste

conjunto de características: “Most players do not play for the story, but for the adrenaline rush of

competition and for the thrill of beating the game, and as long as they get stunning graphics and

their dose of fast action, they are satisfied with the same old storyline clothed in different themes

and visual motifs” (idem.). Ryan afirma que os “designers teriam de ter muita imaginação para levar

os jogadores a jogar por causa da história” (Ryan, 2005). Porém, é justamente por causa da história

que os jogadores são atraídos para um jogo. Gordon Calleja analisa esta situação da seguinte forma:

“The promise of an interesting scripted narrative can attract players to the game in and of itself.

This attraction can vary from the general appeal of a particular setting and genre to a specific

expectation of an intriguing story that players can participate in” (Calleja, 2011: 131). Calleja

distingue a scripted narrative (elementos da história pré-determinados pelos criadores do jogo) e a

alterbiography (a história gerada momento-a-momento através das acções do jogador)140. A relação

entre ambas é decisiva para o sucesso do jogo:

If the alterbiography (…) meshes well with the scripted narrative, players will tend to care

enough about the game world, its events, and its inhabitants to want to return to the game

in order to find out more about them and to see where the scripted narrative will lead. An

engaging scripted narrative has the ability to keep players wondering what might happen

next, not only when they are playing, but also between sessions. (Calleja, 2011: 131-132).

A distinção efectuada por Gordon Calleja permite analisar o que mantém um jogador concentrado

no jogo numa sessão e o que faz com que ele regresse141. Porém, não são os jogadores que criam a

história momento-a-momento através das suas acções. Caso exista uma história (ou uma narrativa),

ela foi criada antes da chegada do jogador. O que o jogador efectua é um despertar de elementos

dessa história que permitem efectuar uma reconstrução da mesma através da sua imaginação. As

acções e propostas de desafios constituem um tipo de leitura ou uma forma de adquirir informação.

Constituem ainda uma forma de configurar e explorar uma narrativa mas não permitem construí-

la.

140 Para Gordon Calleja, a interactividade proporcionada por um jogo gera a história (115). 141 Poderá também servir para distinguir e analisar, como foi efectuado no segundo capítulo, o comportamento ou o estado do jogo numa sessão e entre sessões.

116

Os jogos de computador são hoje apresentados através de teasers que se assemelham às

apresentações oficiais de filmes. Para além dos gráficos e da possibilidade de acção, os jogadores

desejam uma história com a qual se possam identificar. Alguns jogos são remakes de filmes, séries

ou cartoons que já ocupam o imaginário do jogador. Adicionalmente, se uns jogadores estão mais

interessados em jogos de acção, outros apreciam a resolução de enigmas. Porém, o que Ryan

pretende sublinhar é que dificilmente os jogadores adeririam a um jogo que tivesse em vista

exclusivamente a transmissão de uma narrativa (o que acontece com La Disparue). De forma a

conseguir este resultado, Ryan sugere que o jogo parta de um roteiro escrito por um “escritor

talentoso” e que ao mesmo tempo ofereça a possibilidade de o leitor interagir com este guião

(idem.) Esta é uma solução sugerida por Ryan que revela uma tensão profunda entre jogo e

narrativa: “I doubt that this approach would solve the problem of designing narratively compelling

games, because it is not any easier to tack interactivity on a story, than to tack a story on a game”

(Ryan, 2005)142.

Marie-Laure Ryan afirma que existem inúmeros teóricos (Brenda Laurel e Chris Crawford, são os

nomes citados) que desejam conceder aos jogos de computador o mesmo estatuto que é

reconhecido ao romance ou ao filme (Ryan, 2006: xvii). O seu objectivo é que os

utilizadores/leitores apreciem o jogo, não como actividade lúdica que desperta adrenalina ou incita

à resolução de problemas, mas como uma experiência estética. Daí a existência de interactive dramas

(como Façade) onde o leitor pode participar sob a forma de avatar e explorar o mundo ficcional.

Ryan refere que, para esta abordagem ser concretizada, a crítica deve resistir a tentação de rivalizar

com os grandes clássicos da literatura (xviii). A ligação entre narrativa, romance e literatura foi

salientada no primeiro capítulo desta dissertação. Estes conceitos estão de tal forma ligados que é

difícil destrinçar os elos que os unem e vê-los separadamente. Por seu turno, a literatura está ligada

ao que é canónico, ou seja, ao que foi aceite como parte da tradição literária. Isto envolve em grande

parte obras recebidas pelo público, incluídas em programas curriculares ou analisadas pela crítica

literária. Este sistema de legitimação dificulta a classificação de novos textos, (neste caso, textos

com uma forte componente lúdica) como literários. Em causa está a interactividade proporcionada

142 Nos seus textos, Ryan partilha frequentemente algumas reflexões sobre o termo narrativa. No seguinte comentário, extraído do livro Avatars of Story (2006), Ryan refere-se a uma “história emergente” e a uma “narrativa coerente”: “The ideal top-down design should disguise itself as an emergent story, giving users both confidence that their efforts will be rewarded by a coherent narrative and the feeling of acting of their own free will, rather than being the puppets of the designer” (Ryan, 2006: 100). Numa entrevista ao periódico Diegesis, Marie-Laure Ryan diferencia diferentes vertentes do conceito “narrativa”: “If we apply to narrative the semiotic categories of syntax (= discourse, narrative strategies), semantics (= story) and pragmatics (how narratives are used) I would say that the first has been explored in great detail, thanks to the useful tools devised by Genette and others, the second has been generally avoided after a promising start in the early days of narratology (Propp, Todorov, Bremond) because is very difficult to approach in a formal, theoretical way(…), and the third has only recently been discovered but is very promising” (Ryan, 2014). Estas diferentes abordagens ao termo “narrativa” denuncia que manifesta alguma flexibilidade e pode adaptar-se a diferentes situações ou perspectivas.

117

por eles, que entra em conflito com uma noção enraizada de texto literário como um todo coerente.

Marie-Laure Ryan sublinhou que a interactividade foi considerada pela teoria pós-modernista como

“o triunfo dos seus ideais estéticos”, ou seja, das noções de “leitor criativo, texto em aberto e

relação lúdica com a linguagem” (Ryan, 1994: 111). Sendo assim, a interactividade surge como uma

forma de problematizar o acto de leitura. O desafio a normas e pressupostos é recorrente ao longo

da história da literatura. Estes podem ser vistos como um sintoma do processo de introspecção a

que a literatura está constantemente sujeita.

Ao restringir a narrativa a uma construção linear e coerente, munida de uma lógica causal entre

início, meio e fim, a noção de narrativa fica limitada à imagem de um romance linear. Como vimos

no primeiro capítulo, o romance é uma forma literária que não se adapta facilmente a esta moldura.

Tal como já foi aqui defendido, o vocábulo literatura está em constante mutação, o que torna

infrutífera a procura de uma definição una. Um dos objectivos contemplados nesta tese é mostrar

que a literatura electrónica surge como parte integrante de um processo em constante evolução a

que vulgarmente chamamos “literatura”. Sendo assim, o objectivo aqui defendido não será

“rivalizar com os clássicos” mas apresentar a literatura electrónica como uma faixa de novos textos

que devem receber a nossa atenção. A sua inserção como parte da literatura (e não da ludologia ou

artes visuais) comprova que esta faz parte de um processo de transformação da própria literatura.

Um processo que não começou com a introdução do computador.

118

A narrativa projectada: o caso de Stanley

(…) but even unreliable narrators must be unconditionally

believed most of the time if the reader is to construct a fictional

world on the basis of their discourse.

Marie-Laure Ryan, Avatars of Story

Read, read, read, read, my unlearned reader! Read.

Laurence Sterne, Tristam Shandy

O jogo The Stanley Parable (2011-2013) apresenta-se como sendo uma “exploração de história, jogo

e escolha”. Na página que dá acesso a este jogo, é colocado um desafio: “the story doesn't matter,

it might not even be a game, and if you ever actually do have a choice, well let me know how you

did it”. The Stanley Parable é um jogo sobre contradições:

You will play as Stanley, and you will not play as Stanley. You will follow a story, you will

not follow a story. You will have a choice, you will have no choice. The game will end, the

game will never end. Contradiction follows contradiction, the rules of how games should

work are broken, then broken again. This world was not made for you to understand. But

as you explore, slowly, meaning begins to arise, the paradoxes might start to make sense,

perhaps you are powerful after all. The game is not here to fight you; it is inviting you to

dance.

Este é um “first-person exploration game” (segundo o modelo de Ryan, ele ocuparia o terceiro

nível de interactividade) durante o qual o jogador assume (ou não) o papel de protagonista143. Uma

parábola é uma pequena narrativa que transmite um ensinamento. O jogo parece recordar

permanentemente ao leitor que o seu poder de escolha é ilusório. As suas expectativas são

frequentemente frustradas. Neste jogo, o jogador é tratado como um peão que, tal como Stanley

(o protagonista), tem de pressionar botões e obedecer às directivas da máquina. Certo dia, o

conjunto de ordens geradas pelo computador não são recebidas por Stanley. Depois de aguardar

pacientemente, Stanley resolve abandonar a sua secretária para descobrir o que se passa. A partir

desse momento, o jogador passa a encarnar esta personagem.

143 O jogador poderá assumir a participação externa e interna, ontológica e exploratória.

119

Enquanto o jogo carrega, é possível ler uma faixa onde é repetida a frase: “The end is never the

end”. A parábola de Stanley é um jogo que faz uso da ironia para reflectir sobre a própria estrutura

e funcionamento. The Stanley Parable recorda as hiperficções multilineares do período clássico da

literatura electrónica e, embora não seja baseado na introdução de frases, recorda igualmente os

bots Galatea e Eliza. Este jogo é construído através de inúmeros desafios. A sua estrutura episódica

e multilinear assemelha-se ao texto identificado por Lev Manovich:

After the novel, and subsequently cinema privileged narrative as the key form of cultural

expression of the modern age, the computer age introduces its correlate - database. Many

new media objects do not tell stories; they don't have beginning or end; in fact, they don't

have any development, thematically, formally or otherwise which would organize their

elements into a sequence. Instead, they are collections of individual items, where every item

has the same significance as any other. (Manovich, 2001: 8)

Este não é um jogo de acção, nem é a história de Stanley. Esta parábola invoca um sentimento de

estranheza porque a barreira entre jogo e narrativa auto-reflexiva não é clara. São várias as

referências a vocábulos usados nos estudos literários e narratologia. A parábola de Stanley está

ligada à literatura através de um constante desafio a alguns dos seus pressupostos. The Stanley Parable

é um jogo que brinca com os limites da ficção e que desafia a noção de lógica, coerência,

verosimilhança e desfecho.

Stanley é apresentado por um narrador (Kevan Brighting). Ele é o funcionário “427” que tem de

cumprir as ordens fornecidas pelo seu computador e premir uma série de botões, sem conhecer o

sentido desta actividade. No entanto, assim que o leitor assume o controlo do jogo, o computador

liberta Stanley desta tarefa. O leitor acaba por descobrir que o edifício onde Stanley trabalha parece

ter sido evacuado. A sua interferência no jogo pode ter provocado o caos na vida de Stanley. É

neste edifício que ele irá procurar a história.

A certa altura o narrador afirma, usando para isso a primeira pessoa e assumindo o papel de Stanley,

que esta personagem consegue ouvir uma voz. Em seguida narra os sentimentos de Stanley. Este

episódio recorda o filme Stranger than Fiction144 (2006). Neste filme, o protagonista acorda um dia e

percebe que uma voz está a narrar todas as suas acções. O filme começa com a seguinte declaração:

“This is a story about Harold Crick (Will Ferrell)”. Porém, Stanley não é apresentado da mesma

144 Sobre este filme escrevi o artigo intitulado “’It's no Good Unless You Die at the End’: Stranger than Fiction como rascunho de um mundo possível” (2012) na revista Op. Cit. Este texto pode ser consultado em: https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxhcGVhYWRpcmVjYW98Z3g6Njg4YjRkNmU4MzQ5YTNlNw.

120

forma. A sua função enquanto protagonista é assumida pelo jogador e esta personagem acaba por

não ser conhecida. Stanley não tem uma vida própria. Ele encarna o avatar do jogador.

Existe uma cena em que Stanley ganha autonomia e surge como uma personagem de uma história,

ou seja, ele surge como distinto do jogador. A voz narra os seus sentimentos mas esta acaba por

simular um estado de loucura e faz com que Stanley se atire de um prédio. O jogador é apresentado

ao seu avatar que jaz inerte na rua e a voz centra-se numa outra personagem. Nesse momento, o

narrador usa a expressão “This is a story about…” até que o jogo é reiniciado. Em Stranger than

Fiction (2006) existe um momento similar. A narradora/autora (Emma Thompson) tenta encontrar

uma forma de matar a sua personagem (Will Ferrell). A queda de um edifício é a escolhida. Se em

Stranger than Fiction a autora simula essa situação colocando-se a si como vítima, em The Stanley

Parable, o narrador não toma a mesma decisão. The Stanley Parable não é uma história sobre uma

personagem. Ao assumir o papel de narrador, referindo-se aos sentimentos e acções de Stanley, o

sistema parece entrar em conflito. Reiniciar é a única solução viável.

Tal como Stanley, o protagonista de Stranger than Fiction é um funcionário que tem uma vida

monótona145, vivida de acordo com as directrizes de uma máquina (no caso de Stranger than Fiction,

o seu relógio). Certo dia, o relógio pára e esta personagem fica entregue à aleatoriedade. Esta avaria

permite-lhe ver a vida sob outra perspectiva146. Contudo, se em Stranger than Fiction o protagonista

consegue alcançar a narradora e (segundo o que é indiciado) retomar as rédeas da sua

vida/narrativa, The Stanley Parable está construído de forma a boicotar todas as tentativas de

controlar a sequência de eventos. Nesta parábola, também o narrador exibe algumas dificuldades

em acompanhar o rumo da história. Isto acontece porque The Stanley Parable é uma narrativa

projectada através do desafio das suas próprias fundações. Para Eskelinen, a ficção hipertextual, tal

como alguma ficção pós-modernista, é potencialmente narrativa, embora não possa ser acomodada

dentro dos mesmos parâmetros da narratologia tradicional (104). Já Calleja refere-se a uma narrativa

experiencial, ou seja, uma narrativa que é formada na mente do leitor ao longo do jogo, através de

“elementos representacionais e das nossas representações subjectivas” (119). Em vez de uma anti-

narrativa ou de uma narrativa sabotada ou relutante, Aarseth referiu-se a Afternoon como um “jogo de

narração”. Para Aarseth nada impede que os elementos da narrativa sejam usados para outras

finalidades para além de contar uma história147 (94). Os autores aqui referidos sugerem que a

narrativa poderá surgir como algo subentendido, eminente ou em formação. A narrativa pode ser

145 Esta personagem recorda ainda o protagonista do conto de Herman Melville, “Bartleby, the Scrivener: A Story of Wall Street” (1853), uma personagem que se recusa a executar uma acção através da célebre resposta: “I would prefer not to”. 146 Como Stanley corresponde ao avatar do jogador no mundo ficcional, é efectuada uma alternância entre diferentes perspectivas: a do jogador, a de Stanley enquanto personagem e a do narrador. 147 Aarseth considera que as acções levadas a cabo durante um jogo não são narrativas nem constituem uma história, embora representem uma sucessão de eventos (94).

121

considerada como um processo que, embora não seja construído pelo leitor, é apresentada (ou

suscitada) gradualmente ao longo da leitura.

A parábola de Stanley é constituída por um narrador, personagens e eventos (ou pelo que seria uma

narrativa) mas a sua história não é conhecida. A forma como os eventos se sucedem, assim como

a interacção entre as personagens, não são percebidas pelo jogador porque este encontra-se a

explorar e configurar o mundo ficcional como protagonista. Todavia, a participação do jogador

como personagem não está na origem deste estado latente da narrativa. O teor auto-reflexivo

oferecido pelos autores desta parábola já terá interrompido a formação de uma narrativa antes da

intervenção do jogador. Isto significa que a imersão na narrativa, a qual é normalmente referida

como incompatível com um nível acrescido de interactividade, não é interrompida pelas acções

levadas a cabo pelo leitor em The Stanley Parable. O atrito entre interactividade e imersão é catalisado

pelo jogo, como parte da sua expressividade, e não surge como resultado do esforço ergódico assumido

pelo leitor. Esta realidade pode estender-se a todas as obras de literatura electrónica com uma

componente ergódica forte. Por seu turno, a noção de imersão não se encontra necessariamente

ligada à existência de uma narrativa com uma estrutura linear e coerente. Tal como em La Disparue,

a noção de imersão está ligada ao investimento de atenção ou à concentração depositada na

execução das várias tarefas. Sendo assim, imersão e interactividade surgem como inseparáveis e

interdependentes.

Existem momentos em que o narrador comete erros (que poderiam ser comparados a bugs)

deixando entrever a maquinaria por trás da narrativa. Os erros que comete são como fendas que

mostram a estrutura do que seria uma narrativa e, como ambos se encontram ligados, do jogo.

Num dado momento do jogo, o narrador pede ao jogador para aguardar porque ele próprio está

perdido e tem de procurar nos seus papéis o caminho correcto para a história. O narrador é

frequentemente obrigado a reiniciar o jogo porque não consegue gerir a aleatoriedade provocada

pela influência do jogador. Os momentos metaficcionais e metalúdicos sucedem-se.

Existe um episódio em que o narrador, perante a insolência do jogador, inclui umas linhas amarelas

para evitar que este se perca no caminho da história. Estas linhas simulam a linearidade da narrativa

que é constantemente desafiada nesta parábola. A dado momento, elas sobem paredes e percorrem

o tecto, o que resulta numa visão escheriana da estrutura da narrativa e da arquitectura do jogo. O

narrador acaba por ter de pedir ao jogador para esquecer as linhas e para escrever a história (ou

forjar o destino da personagem) e escolher um caminho diferente, “sem linhas, nem monitores”.

Para isso, o jogador deve usar a sua imaginação. O jogo apela à participação criativa do jogador.

No entanto, o seu poder de escolha é apenas ilusório. Esta ilusão é mantida pela imaginação do

leitor e pela interactividade forjada pelos autores. Aqui é possível discernir uma sobreposição de

122

duas ilusões: a de agência e a de poder de escolha. O leitor não pode contribuir activamente para a

construção criativa da história, nem tem poder de escolha para decidir o rumo da história/jogo.

Ele pode apenas imagina, tal como em La Disparue, que tem alguma influência. Perante a tendência

de atribuir ao jogador/leitor um papel criativo no desenho da narrativa148, Janet Murray já havia

declarado essa impossibilidade em Hamlet on the Holodeck (1997):

There is a distinction between playing a creative role within an authored environment and

having authorship of the environment itself. Certainly interactors can create aspects of

digital stories in all these formats, with the greatest degree of creative authorship being over

those environments that reflect the least amount of prescripting. But interactors can only

act within the possibilities that have been established by the writing and programming. (…)

unless the imaginary world is nothing more than a costume trunk of empty avatars149, all

of the interactor’s possible performances will have been called into being by the originating

author. (Murray, 1997: 152)

A dado momento, o jogador é apresentado a uma sala que regista todos os movimentos do narrador

e do jogador. Regista também as vezes que o jogo foi iniciado e há quanto tempo ambos colaboram

para encontrar a história. Este episódio tem um nome: “the confusion ending”. O cronómetro que

mede o tempo de jogo paralisa. O narrador pensa que ambos ganharam, só que a vitória sobre a

máquina é sucedida por um regresso ao seu estado inicial. O jogo é pré-determinado e a escolha

do leitor é cingida ao que a máquina permite fazer.

A permanente transgressão levada a cabo pelo narrador recorda uma componente da metalepse

identificada por Gérard Genette. Segundo este autor, a metalepse150 corrompe “uma fronteira

148 Aarseth havia referido que a noção de co-autoria tinha sido usada para promover o hipertexto como uma “ferramenta da mente” mais eficiente. O autor revela-se renitente perante a possibilidade de o leitor construir a história enquanto a lê: “I doubt, however, that the effect of hypertext (in its many implementations) can be singularly identified as a means to make reading and writing come together in a single process” (78). 149 Punday refere que este tipo de jogos que exigem do leitor uma função configurativa forte oferecem menos possibilidades de conhecer uma história: “Games that involve simulating the development of cities or civilizations - like the influential SimCity series - can give the players many ways to succeed and develop successful worlds, but have very little story to tell” (Punday, 2004: 83). 150 Para Genette existem níveis narrativos metadiegéticos, intradiegéticos e extradiegéticos. Embora exista uma hierarquia, os níveis narrativos são facilmente corrompidos graças à metalepse. Segundo Eskelinen, William Nelles identificou dois movimentos na metalepse: “interior” (intrametalepse, move-se para níveis narrativos intradiegéticos ou metadigéticos) ou “exterior” (extrametalepse, move-se para o nível extradiegético). Nelles identificou igualmente duas circunstâncias temporais: a metalepse que contempla um movimento para frente (metalepse proléptica) e para trás no tempo (metalepse analéptica). Por fim, este autor verificou que pode existir uma metalepse verbal ou epistémica e ainda uma metalepse modal ou ontológica. Nesta última existe um “movimento físico para um mundo diferente” (2012, Nelles apud Eskelinen: 185). Já na metalepse verbal ou epistémica não existe esse movimento, mas as personagens ou narradores sabem que outro mundo existe. Na literatura impressa esta metalepse é circunscrita ao texto narrativo e à noção de que, de acordo com a definição de narrativa sugerida por Gerald Prince (a narrativa tem de apresentar pelo menos um narrador), existe um primeiro narrador que apresenta os outros narradores (186-187). Eskelinen refere que basta apresentar ao leitor dois narradores iniciais e um livro com duas capas para contrariar a definição de Prince. No

123

flexível mas sagrada entre dois mundos, o mundo onde se narra e o mundo sobre o qual se narra”

(Genette, 1983: 236). Para Ryan, o computador produz um habitat particularmente favorável à

produção da metalepse:

Computer games offer a particularly favourable environment for metalepsis: as programs

that produce fictional worlds, they can play with the levels of world and code; as worlds

that invite the player to play the role of a character, they can exploit the contrast between

the player’s real and fictional identities; and as fictional worlds, they can resort to many of

the metaleptic tricks of standard literary fiction. (Ryan, 2006: 224).

Ryan refere que existe uma história à superfície que se mantém como a história principal até outras

serem produzidas. Para Ryan, as histórias raramente alcançam mais do que três ou quatro níveis

para além da história principal. Cada vez que uma nova história é gerada, o leitor tem de dividir a

sua atenção entre a história do primeiro nível e as histórias emergentes. Segundo Ryan as histórias

devem ser acumuladas obedecendo a uma certa ordem151 pela seguinte razão: “It would be logically

dangerous for a narrative to jump from the third to the first story level without revisiting and

closing the story of the second level” (205). A parábola de Stanley efectua uma transgressão dessa

ordem, não só porque o narrador pode reiniciar o jogo a qualquer momento, mas também porque,

segundo o narrador, não existe (ainda) uma história. A metalepse que ocorre em The Stanley Parable

é ilustrada pela seguinte pergunta: “a procura por uma história será a história?”. Sendo assim, a

metalepse instaurada por este jogo pode ser definida como: “a grabbing gesture that reaches across

levels and ignores boundaries, bringing to the bottom what belongs to the top and vice versa”

(Ryan, 2006: 206). Uma outra descrição de metalepse oferecida por Marie-Laure Ryan será a da

“cobra que morde a própria cauda” ou de “strange-loop”, um termo criado por Douglas

Hofstadter: “A strange loop phenomenon, according to Hofstadter, ‘occurs whenever, by moving

upwards (or downwards) through the levels of some hierarchical system, we unexpectedly find

ourselves right back where we started’” (Ryan, 2006: 209). Este retorno ao ponto inicial é efectuado

literalmente152, sempre que o narrador transporta o jogador ao escritório de Stanley, ou seja, sempre

caso das narrativas heterárquicas (Aarseth), o livro consegue manter as duas, mas no caso dos textos digitais existem mais posições mediais a serem contempladas: “Levels may vanish, collapse, expand or fuse together reversibly or irreversibly, more levels could be generated, and the reader may also change from one reading or one point in the reading to the next.” (Eskelinen, 2012: 186). Quando é dada a possibilidade ao leitor de interferir no texto (Eskelinen refere-se à função configurativa ou textónica do utilizador), as alterações podem fazer sentir-se no conteúdo, número e relações entre níveis narrativos. Todavia, como já foi aqui sublinhado, essas alterações não são exercidas sobre a estrutura da narrativa mas sobre a forma como ela é apresentada ao leitor. 151 Ryan fala de uma pilha de camadas, que tal como num computador, são acumuladas e seleccionadas ordenadamente (Ryan, 2006: 205). 152 Segundo Ryan, embora muitos chamem a atenção para a sua estrutura, apenas alguns textos exemplificam uma “auto-referência literal” (209).

124

que o narrador inicia o jogo. Para além do mais, a procura por uma história acaba por tornar-se na

única história que é oferecida ao leitor. Esta por sua vez é despertada por ele durante a sua

interacção com a máquina, a mesma máquina que possibilita o jogo.

O narrador despoleta o que Ryan intitula de metalepse ontológica ou uma metalepse que permite

uma interpenetração ou mútua contaminação entre diferentes camadas da narrativa. Os limites

ontológicos, ou seja, os pares real vs. imaginário; lucidez vs. alucinação e sonho vs. realidade são

constantemente desafiados. Em The Stanley Parable, o jogador é lançado numa aventura metaléptica

na qual é permanentemente confundido com Stanley. Num momento caricato deste jogo, o

narrador perde-se o rumo à história e pede ajuda ao jogador. Em seguida, pergunta-se porque está

a pedir ajuda ao jogador. Ao aperceber-se do conflito gerado por este pedido de auxílio e ao

identificar-se como aquele que está a escrever a história, ele reflecte sobre a construção da narrativa.

Ao mesmo tempo confunde a função de narrador, designer, programador, autor (e leitor enquanto

co-autor da narrativa). Este episódio caricato permite verificar que The Stanley Parable não pretende

transmitir uma história mas uma ideia de narrativa ou um conjunto de características associadas a

esta forma literária.

Ensslin afirmou que existe uma metalepse convergente na ficção digital onde o leitor tem de

assumir um movimento ascendente e descendente entre camadas narrativas: “the movement is

both ascending (bringing the narrative to the reader) and descending (the reader having to descend

to the plane of the narrative and make diegetic decisions and commands)” (Ensslin, 2011: 13).

Contudo, a metalepse é determinada pelo autor, não pelo leitor. Ensslin oferece uma razão para

isto acontecer: “users respond to the textual tools and structures created by an author, rather than

creating their own narratives independently” (14). A autora parece frisar aqui o óbvio. Todas as

escolhas e possibilidades de participação são previamente desenhadas pelos criadores do jogo.

Porém, esta observação de Ensslin deixa transparecer que o tema da “participação do leitor na

construção da narrativa” ainda surge associado à interactividade.

The Stanley Parable é um jogo sobre ficção e literatura que projecta a ilusão de uma narrativa. Como

vimos, as contradições causadas por esta situação são contornadas pelo recurso a uma figura de

estilo: a metalepse. Neste jogo existe e não existe uma narrativa. Esta parábola é constituída por

personagens (ainda que fugazes), pelo jogador/ protagonista e um narrador. Ela oferece momentos

de leitura e audição mas o seu narrador não consegue veicular uma história. A estrutura de uma

narrativa é revelada ao longo deste jogo. No entanto, o conteúdo dessa narrativa, ou a história, não

chega a ser conhecida. Ao edifício da narrativa falta a história. Os seus corredores permanecem

vazios. O leitor apenas tem acesso ao que potencialmente poderia ser uma narrativa.

125

A voz do jogo e as suas contradições

Na parábola de Stanley, os conflitos entre a escolha do leitor e as indicações do narrador são

colmatados através do comportamento excêntrico deste. Num dado momento, o jogador é

apresentado a duas portas. O narrador salienta a necessidade de Stanley escolher a porta esquerda.

No entanto, a porta situada à direita não está vedada. Se o jogador escolher esta última, o narrador

manifesta o seu desagrado. Só que o jogo prossegue, mesmo que o jogador desobedeça. O narrador

mostra-se surpreendido (e por vezes ofendido) quando o jogador não segue as directivas. Para

contornar o conflito entre a liberdade de acção oferecida ao leitor e o desenho do jogo, Davey

Wreden e William Pugh criaram um narrador que não é omnisciente. Por vezes, surpreendido por

uma situação anómala, ele refere que o jogador “não deveria estar ali” ou confessa que não

reconhece o lugar em que se encontra o leitor. Existe um momento em que declara que o jogador

ganhou o jogo para corrigir mais um conflito gerado pela sua ineficácia. Mesmo estes momentos,

que parecem sugerir ao leitor que ele tem algum poder, denunciam que tudo está programado. A

ilusão de escolha é constantemente publicitada e usurpada.

Quando uma porta é atravessada, ela fecha-se de imediato, impedindo o leitor de retroceder no

jogo/narrativa. Esta medida, recorda os guard fields das hiperficções electrónicas clássicas

construídas através do programa Storyspace. A inclusão destes impedia o leitor de ler determinadas

lexias sem obedecer a uma determinada sequência. Ao contrário de um livro que pode ser lido

aleatoriamente, os guard fields controlavam o rumo da leitura. Em The Stanley Parable, o jogador é

frequentemente lembrado que o mundo ficcional e a narrativa não podem ser criados por si.

O narrador que acompanha o jogador em The Stanley Parable é um narrador bidiegético (Eskelinen)

que pode alternar entre homodiegético e heterodiegético. Isto significa que ele intervém como um

observador externo à narrativa, mas também como uma personagem desta. Contudo, ele é também

um narrador extradiegético, pois efectua uma comunicação com o leitor fora da narrativa. Ele pode

narrar os eventos depois de estes acontecerem (narração subsequente), antes (narração a priori) e

enquanto eles acontecem (narração simultânea) ou pode intervir entre momentos de acção

(narração interpolada). A voz que acompanha Stanley é um narrador escriptónico (tal como é

apresentado ao leitor) mas, porque é uma entidade programada (e despertada pelo leitor), também

é um narrador textónico. O narrador desta parábola é ainda um narrador dinâmico que consegue

mudar as suas qualidades no texto e um narrador indeterminado porque não conta sempre a mesma

história.

A voz na parábola de Stanley auto-intitula-se de narrador. Ela oferece indicações ao leitor como se

fosse uma voz que emergisse de um romance. Na presente frase, o narrador recorre à terceira

126

pessoa: “Stanley escolheu a porta da esquerda”. Porém, como é possível concluir durante o jogo,

esta voz não corresponde à imagem de um narrador convencional, ou seja, um narrador

omnisciente ou omnipresente. Como foi referido no primeiro capítulo desta tese, Eskelinen

defende que nos textos ergódicos existe a presença de um “negociador” e não de um “narrador”.

Aarseth sublinha que as narrativas, as ficções hipertextuais e os jogos de aventura ou de ficção

introduzem três tipos de discurso diferente: na narrativa o discurso é construído em torno do plano

de eventos (onde estes têm lugar e qual o seu desenrolar, conforme percebido pelo leitor implícito);

no texto ergódico exploratório (hipertexto) o “plano de progressão está divorciado do plano de

eventos porque o leitor tem de explorar activamente e não-trivialmente para extrair um sentido do

plano de eventos” (2012, Aarseth apud Eskelinen: 203); no jogo de aventuras surge um terceiro

plano para além do plano de eventos e de progressão: o plano de negociação. Este é o ponto onde

o leitor/jogador confronta a intriga para alcançar um desenrolar de eventos desejável. A intriga

ergódica tem lugar num nível extraficcional e é direccionada contra o utilizador. Este, de acordo

com Aarseth, “tem de descobrir por si próprio o que se passa” (idem.)

As negociações decorrem entre um utilizador implícito e a voz ergódica ou um “correspondente

simulado que relata os eventos ao utilizador” (idem.). Aarseth adverte que, embora este possa ser

equiparado ao narrador, a sua função não se limita a relatar as acções. Segundo Eskelinen, a voz

ergódica é um “negociador” e não apenas um contador de histórias ou um narrador (204). Aarseth

referiu-se igualmente à existência de um anti-narrador que destrói o esforço do narrador e que

“distrai e faz descarrilar a narrativa” (93). Ele pode não ser o autor mas é mais poderoso que o

narrador e surge frequentemente como seu oponente. Dada a impotência que por vezes é revelada

pelo narrador em The Stanley Parable, surge a hipótese de existir uma entidade153 que está

constantemente a boicotar o seu trabalho. No entanto, a voz assume-se como aquela que “escreve

a narrativa”, como narrador e comporta-se frequentemente como o oponente. É com ela que o

leitor desta parábola tem de negociar.

Eskelinen refere que, em textos ergódicos, o utilizador tem de negociar com a voz para resolver

um mistério. A voz poderá fornecer informação mas poderá também complicar a sua demanda.

Sendo assim, Eskelinen distingue o utilizador dos leitores identificados pela narratologia através do

facto de existir um desafio: “The user’s position here is very different from the triplet of

narratee/implied reader/reader of literary narratives – not only because his position is ergodic –

but also because the ergodic levels are organized as a puzzle or a game the solving or winning of

which is the explicit goal” (204). À voz ergódica cabe a seguinte tarefa: “the voice’s discontinuous

narrations and descriptions serve by both distracting the user and giving him the information he

153 Esta poderia ser o autor ou o programador do jogo.

127

needs to solve the puzzle (or to put it differently, the user’s occasional position as the voice’s

narratee serves the construction of his position as an intriguee in the intrigue or a player in the

game)” (205). O narrador que informa ou desinforma o jogador na parábola de Stanley, tal como

o negociador identificado por Eskelinen, surge por vezes como um adversário do leitor. Em The

Stanley Parable é possível detectar a existência de um “paradoxo narrativo”. Segundo Ryan, esta

expressão foi criada por Ruth Aylett e Sandy Louchart para ilustrar a dificuldade em conciliar a

liberdade oferecida ao utilizador, com a construção de uma história “esteticamente satisfatória”

(Ryan, 2005). Já Karen Wenz tem uma opinião diferente:

Narrative and interaction are interdependent, as the player’s actions constitute the

narrative. The narrative of a computer game establishes a conflict with a recursive structure.

While background information given introduces the conflict, the solution has to be found

in the interaction with the game. When the solution has been found, the problem is solved

and the text is changed to a solved text. Digital games usually include several unsolved

problems, which are all part of one major problem. The constant problem is what keeps a

player active and engaged. (Wenz, 2010: 117)

De acordo com Wenz, é a constante interactividade, alimentada pelo suplantar de um desafio, que

constrói a narrativa. Apesar de concordar com Wenz no sentido em que a interactividade instiga a

reprodução da história, o que pretendo aqui sublinhar é que as acções do jogador não podem

“constituir uma narrativa”. Caso exista uma narrativa, esta já foi criada pelos autores do jogo. Ao

leitor/jogador resta activar ou despertar a história e a narrativa, não construí-la ou representá-la

como se esta fosse uma consequência das suas acções. Este poderá eventualmente (e

posteriormente) reunir a experiência de jogo sob a forma de uma história mas, durante o jogo, o

seu trabalho resume-se a projectar uma narrativa pré-fabricada. Este paradoxo é a fonte de

inúmeras contradições mas estas são um elemento essencial em The Stanley Parable e em diversas

obras de literatura electrónica. Nesta parábola, o contra-senso é gerado pelo atrito entre o narrador

e o jogador. Através de uma mistura interessante entre ambiguidade e verosimilhança, este jogo

depende de uma transgressão imaginada.

The Stanley Parable apresenta-se como um jogo mas também pode ser definido como uma

metaficção. Patricia Waugh definiu a metaficção como uma “escrita ficcional que auto-

conscientemente e sistematicamente chama a atenção para a sua condição de artefacto para colocar

questões sobre a sua relação entre ficção e realidade” (Waugh, 1996: 2). A metaficção efectua uma

crítica do próprio processo de construção. Esta característica é visível em The Stanley Parable, onde

as “estruturas fundamentais da ficção narrativa” são exploradas e onde a “possível ficcionalidade

128

do mundo fora do texto literário ficcional” (Waugh) é igualmente analisada. O jogo é construído

através do constante desafio das fundações da narrativa e de um recurso à metalepse.

Ao construir a narrativa através de um feedback loop entre computador e ser humano, este jogo

torna-se numa parábola sobre aleatoriedade e a incapacidade de debelá-la. Na verdade, The Stanley

Parable começou por ser uma ficção interactiva e foi gradualmente actualizada (desde 2011 até 2013)

para acomodar novos gráficos (interactive fiction mod). Ela recorda os jogos Choose Your Own Adventure

mas elabora uma sátira em torno do tema da escolha ou do que pode ser voluntário e involuntário

num jogo de computador. Sobre a ficção interactiva, Eskelinen referia o seguinte: “interactive

fiction flirts with game conventions and marries them with literary conventions by adding the

discourse level of negotiation and shaping it as a challenge” (81). A adopção de características do

jogo (como por exemplo, a proposta de um desafio ou o alcançar de um objectivo) e de algumas

das suas convenções, ajudaria a minimizar a aleatoriedade e fragmentação de uma leitura

multilinear: “game conventions help domesticate the potentially endless variation by providing a

goal for the process and relieving the reader-user-player from having to aesthetically contemplate

every textual output” (81). Em The Stanley Parable a voz do narrador, que faz uso de uma linguagem

literária154, bem como os dilemas resultantes da sua ineficácia em controlar ou conhecer a narrativa,

resultam num exercício estético. Apreciar os textos gerados a cada momento e ouvir (ou ler) a

narração são actividades que parecem atrair o jogador para esta parábola. Ao consultar fóruns e

reviews sobre este jogo é possível concluir que os jogadores não se sentem atraídos por causa da

promessa (inexistente, como vimos na sinopse aqui parafraseada) de acção mas pela forma como

esta parábola é veiculada155. Numa das páginas de recensões escritas por jogadores de videojogos

intitulada Hardcoregamer é possível ler a seguinte opinião: “The writing is smart and the narration is

excellent, so much so that I usually found myself stopping any time the narrator had something to

say just to make sure I didn’t miss anything”. Segundo o autor desta opinião, The Stanley Parable é

um jogo de “interactividade limitada”, “cujo valor está na descoberta e na experimentação”156. Uma

jogadora na página Gamespot escreve o seguinte:

(…) it's exciting to play again and again, because the choices you make can take you down

such wildly different paths, and because the narrator's commentary is so smartly written

154 Aqui associa-se a linguagem literária ao uso da terceira pessoa, à prática de descrições longas de uma acção através de um registo formal e de uma escolha cuidada de vocabulário. 155 Os gráficos também não são um elemento atractivo em The Stanley Parable. Na verdade, a monotonia e a natureza rudimentar dos seus cenários parecem funcionar como um elemento desencorajador que colabora no projecto descrito na sinopse deste jogo, ou seja, que contraria todas as regras que ditam a forma como um jogo deve funcionar. 156 Esta review escrita por James Cunningham pode ser consultada em: http://www.hardcoregamer.com/2013/10/17/review-the-stanley-parable/58895/.

129

and its delivery so hilarious that finding ways to trigger new bits of it is as rewarding as

discovering a secret area containing precious treasures in a great adventure game.157

Para um jogo com gráficos limitados e com um leque de acções básicas, The Stanley Parable foi

extremamente bem recebido pela comunidade de jogadores158. Isto significa que a ambição destes

pode não ser apenas a oportunidade de interagir com um mundo graficamente sugestivo ou aceitar

desafios que envolvam perícia e técnica. O desafio também pode ser destinado à interpretação ou

à resolução de um enigma teórico. The Stanley Parable coloca acima de tudo um desafio intelectual

ao leitor.

Num artigo da revista Wired, o criador de Halo (2001) fala sobre o seu próximo projecto. Destiny

(2014), um jogo de computador criado pela empresa Bungie, é descrito como “uma aventura

multijogadores jogada em linha (…) que quer tornar-se a tua nova vida” (Gallaway, 2013). O

criador do jogo descreve o mundo de Destiny da seguinte forma: “It’s a world where the most

important stories are told by the players, not written by the developers”. O jogo poderá ser jogado

durante mais de dez anos e é descrito da seguinte forma: “Bungie’s plan is for the Destiny story to

unfold gradually over the course of 10 books”, each with a beginning, middle and end. Through this

will run an overarching story intended to span the entire decade’s worth of games”. Este jogo, um

first-person shooter, é descrito como tendo uma lógica coerente e um desfecho. É também descrito

como uma saga constituída por dez livros. A importância da história, que será construída pelos

jogadores, é aqui sublinhada. Porém, a intervenção do jogador é mais uma vez confundida com a

autoria do jogo159. Neste caso, o apelo ao papel criativo do jogador tem uma componente comercial.

Andrew Glassner demonstrou que jogo e história (Glassner refere-se a história em vez de narrativa)

estão interligados. Para este autor, uma história “segue um protagonista interessante que persegue

um objectivo específico através da superação de dificuldades crescentes” (Glassner, 2004: 36). O

objecto de estudo de Glassner é a “interactive storytelling”, pelo que esta definição de história160

está direccionada para jogos de computador. Todavia, a “escalada de dificuldade” a que Glassner

se refere parece apontar para uma escalada de tensão enquanto sugerida pela pirâmide de Freytag,

157 Esta review escrita por Carolyn Petit pode ser consultada em: http://www.gamespot.com/reviews/the-stanley-parable-review/1900-6415481/. 158 A página dedicada a este jogo apresenta um número considerável de prémios atribuídos por entidades ligadas aos jogos de computador. 159 Poderíamos ir mais além e salientar que, se o jogo ainda não foi apresentado aos jogadores, a história ainda não foi construída. Sendo assim, o jogo não poderá (ainda) ser apresentado como uma saga de “dez livros”. 160 Gerald Prince definiu história da seguinte forma: “The content plane of narrative as opposed to its expression plane of discourse; the ‘what’ of narrative as opposed to the ‘how’; the narrated as opposed to the narrating; the fiction as opposed to the narration; the existents and events represented in a narrative” (2004, Prince apud Ryan: 45). Tal como foi aqui demonstrado com a parábola de Stanley, a narrativa é um edifício que integra a história. Porém, Prince associa a narrativa com a segurança e com a certeza, não com o que é possível e provável (2004, Prince apud Ryan: 147). Stanley parece contrariar esta ideia de narrativa.

130

já aqui mencionada. Glassner refere-se igualmente a um conflito e à luta entre o vilão e o herói

(75). A relação entre a audiência e o contador de histórias é definida como um contracto que

recorda o pacto entre autor e leitor. O envolvimento da audiência é descrito da seguinte forma:

“The audience’s job is basically to enjoy the story. But the audience has to be willing to allow that

happen” (122). Glassner parece referir-se à “willing suspension of disbelief” destacada por Samuel

Taylor Coleridge que permite ao leitor entrar em contacto com a obra através de uma redução do

seu cepticismo (ou de uma entrega incondicional) face a um mundo alternativo161. O estudo de

Glassner, direccionado para histórias contadas através do computador, comprova a influência de

noções tradicionais de literatura e narrativa no mundo dos jogos.

Num artigo dedicado ao livro sobre o jogo Minecraft (2009-2011), John Naughton refere-se ao facto

de este jogo não ter um desfecho: “perhaps therein lies the secret of Minecraft’s attraction: it’s open-

ended. Players’ possibilities are bounded only by the limits of their imaginations – or by the limits

of their knowledge. Which perhaps explains those book sales” (Naughton, 2014). Naughton refere-

se ao facto de os jogadores fazerem uso da imaginação para apreciar um jogo minimalista (e sem

desfecho) como Minecraft. O autor frisa igualmente o facto de os jogadores não estarem

interessados na complexidade gráfica nem numa panóplia de acções: “Players are not compelled to

act out the crazed, violent, misogynistic scripts dreamed up for them by programmers working for

multimedia conglomerates. In Minecraft, there's no realism and no script. Instead, you find yourself

in a virtual world made of 1x1 block” (Naughton, 2014). Uma vez mais, é salientada a importância

da imaginação (e não apenas da interacção) num jogo de computador.

As diferentes possibilidades de interacção distinguidas por Marie-Laure Ryan são colocadas à

disposição do jogador em The Stanley Parable. O jogador pode ser uma personagem (interactividade

interna ontológica), pelo que ele não é um mero observador. Existem momentos em que, apesar

da impaciência do narrador, o jogador pode explorar o mundo em seu redor (interactividade interna

exploratória). Existem momentos de interactividade durante os quais o jogador é um mero

observador (interactividade externa). O leitor é remetido ao início do jogo várias vezes e, como já

conhece alguns dos passos, pode querer executar as actividades rapidamente. Só que isto fere a

sensibilidade do narrador pelo que este pode reagir negativamente a esta atitude162, ou seja, ele pode

161 Esta expressão tem sido usada de diversas formas. No entanto, para Coleridge, esta surge ligada a um apelo a uma audiência, cada vez mais céptica, para reduzir a sua incredulidade face a elementos sobrenaturais. Foi em Biographia Literaria (1817) que Coleridge mencionou este efeito: “this idea originated the plan of the ‘Lyrical Ballads’ in which it was agreed, that my labours should be directed to persons and characters supernatural, or at least romantic, yet so as to transfer from our inward nature a human interest and a semblance of truth sufficient to procure for these shadows of imagination that willing suspension of disbelief for the moment, which constitutes poetic faith” (Coleridge, 1983: 6). 162 O leitor pode ser repreendido por não ouvir a narração ou, por exemplo, pode ser condenado a ficar paralisado e a ouvir música new wave caso tenha agido precipitadamente.

131

condenar o leitor a permanecer parado e a assistir ao desenrolar de acontecimentos. A tarefa de

ouvir uma história, sem levar a cabo um procedimento configurativo ou exploratório, não é uma

interactividade reconhecida por Ryan. Isto acontece porque ela não exige uma acção física explícita

por parte do jogador163.

Tal como o leitor de um livro, o jogador de The Stanley Parable é convidado a ouvir uma narração

(cada fala é ainda acompanhada de legendas) e a descortinar um mistério. O contra-senso que por

vezes domina esta parábola não é estranho à literatura. Na literatura impressa, o mero acto de o

narrador se dirigir directamente ao leitor, catalisa uma transgressão da quarta barreira. Nestas obras,

tal como em The Stanley Parable, não existe apenas um recurso à interactividade física mas um apelo

à atenção do leitor, bem como um convite a reduzir a sua descrença e a entrar num mundo possível.

Aqui reside uma forma de interactividade que será explorada na próxima secção.

163 Calleja refere que o esforço ergódico não deveria ser resumido à acção de carregar num botão ou manipular o joystick. Segundo o autor, a disposição e preparação para agir é muito mais importante do que estas actividades. O esforço mental para resolver uma situação, por exemplo, também é considerado por Calleja (41-42).

132

O quarto nível de interactividade

Uma das mais importantes tarefas da arte foi desde sempre a de

gerar uma procura cuja total satisfação ainda se não se realizou.

A história de cada forma de arte conhece épocas críticas em que

esta forma aspira a efeitos que só se conseguem obter livremente

quando se chega a um nível técnico diferente, isto é, a uma nova

forma de arte.

Walter Benjamin, “A obra de arte na época da sua possibilidade de

reprodução técnica”

There is another, more rudimentary measure of interactivity:

You either feel yourself to be participating in the ongoing action

of the representation or you don’t.

Brenda Laurel, Computer as theatre

Bodies, bodies everywhere. Philosophy, feminist thought,

cultural studies, science studies, all seems to have rediscovered

bodies.

Don Ihde, Bodies in Technology

Ryan relaciona o nível quatro de interactividade (Real time story generation) com a construção de

histórias em tempo real. Estas histórias não são pré-determinadas mas criadas através de dados

produzidos pela interacção entre o leitor e o computador. Ryan refere que este tipo de histórias

ainda não existe. Tanto Eskelinen como Ryan pretendem abranger textos que são ainda uma

possibilidade técnica não realizada. Para antecipar a introdução de novos textos – que caso não

encontrem ferramentas de análise no momento da sua chegada ficarão à deriva164. Eskelinen sugere

a introdução da categoria potencial user profiling. Esta categoria está relacionada com a quantidade

de informação acerca do utilizador e a forma como esta é usada pelo sistema. Graças a um conjunto

de gadgets e à tecnologia sem fios, aliada à utilização de sensores, o sistema pode reunir informação

corporal do utilizador, e não se limitar a um conjunto de cliques. Para Eskelinen, a análise do perfil

do utilizador poderá catalisar novos tipos de textos:

(…) it has become possible to gather much more personal bodily grounded information

about the user and transmit it to the ergodic system to trigger textual responses. Such

164 Como foi referido anteriormente, Eskelinen pretende criar um modelo inclusivo que permita abranger textos ergódicos e experimentais, normalmente ignorados pela narratologia tradicional. Para tal, recorre às ferramentas oferecidas por Espen Aarseth, Gérard Genette e por autores ligados à ludologia.

133

pervasive semi- or occasionally ergodic textual environments could surround the reader in

his everyday life (and not limit themselves to a specific location) and respond to its patterns

and rhythms. (Eskelinen, 2012: 354)

A perspectiva centrada no que será o futuro da literatura electrónica reflecte a intenção de instaurar

paradigmas que ainda não são possíveis de discutir e, por isso mesmo, tornam qualquer tentativa

de verificar a sua validade numa tarefa impossível de concretizar. Sabemos que a literatura

electrónica está dependente de um recurso à tecnologia e que a chegada de novos dispositivos

corresponderá provavelmente à emergência de novas ferramentas expressivas e novos textos. No

entanto, ao canalizar toda a atenção na possibilidade de emergência de novos tipos de textos e

novas formas de interacção entre leitor e texto, surge o risco de ignorar os textos presentes e de

adiar uma resposta aos desafios colocados por estes. Por seu turno, esta atitude é facilmente

confundida com tecnofilia acrítica. O entusiasmo com as possibilidades trazidas pelo computador

é grande. No entanto, uma perspectiva crítica produtiva não deve estar apenas focada em novas

respostas textuais mas também em novas formas de exprimir uma ideia ou de contar uma história.

Para isso, será preciso focar a atenção em cada um dos textos e no que eles poderão transmitir e

não apenas na possibilidade de oferecer ao leitor uma nova componente interactiva.

Tal como Eskelinen, Ryan não identifica a necessidade de criar uma nova narratologia mas salienta

que os elementos que constituem a narrativa terão novos valores nos média digitais: “Interactive

narratology does not have to be built entirely from scratch, since it involves the same building

blocks as the traditional brand: time, space, characters, and events. But these elements will acquire

new features and display new behaviors in interactive environments” (Ryan, 2006: 100). A

necessidade de expandir a narratologia remete ambos os autores para cenários (ainda) inexistentes

e por isso mesmo difíceis de explorar criticamente. Se a narratologia funciona, será necessário

devolvê-la a textos presentes, ou como foi referido no segundo capítulo, textos que preenchem o

nosso ecrã.

134

Corpo interactivo

How, I asked myself, was it possible for someone of Moravec's

obvious intelligence to believe that mind could be separated

from body? Even assuming such a separation was possible, how

could anyone think that consciousness in an entirely different

medium would remain unchanged, as if it had no connection

with embodiment? Shocked into awareness, I began noticing he

was far from alone.

N. Katherine Hayles, How We Became Posthuman

São várias as propostas que tentam aproximar-se de uma definição precisa do termo

“interactividade”, chamando a atenção, ao mesmo tempo, para o seu uso ambíguo e

indiscriminado. Em Avatars of story (2006), Marie-Laure Ryan refere-se à interactividade da seguinte

forma: “interactivity is an umbrella category that covers a wide variety of relations between a user

and a text” (Ryan, 2006: 102). De forma similar, Markku Eskelinen considera que um estudo

comparativo entre a literatura e a arte ergódica é difícil de implementar pela seguinte razão: “the

field is riddled by buzzwords, ideologically fashionable over-interpretations of digitality, and vague

conceptualizations of interactivity” (352).

Lev Manovich, em The language of new media (2001) referia que a interactividade poderia ser

encontrada em diversas formas de arte. Manovich relacionava a actividade de “preencher espaços

em branco” (popularizada por Wolfgang Iser) com a interactividade: “Ellipses in literary narration,

missing details of objects in virtual art, and other representational ‘shortcuts’ require the user to fill

in missing information” (56). Para Manovich, dentro do teatro e pintura, existiam as seguintes

possibilidades de interacção: “Theatre and painting also rely on techniques of staging and

composition to orchestrate the viewer’s attention over time, requiring her to focus on different

parts of the display” (idem.). Na escultura e arquitectura “o espectador teria de mover o seu corpo

totalmente para experienciar a estrutura espacial” (idem.). Ao cinema, particularmente aos filmes

produzidos nos anos vinte, é atribuída uma componente interactiva ao facto de as técnicas de

montagem solicitarem ao espectador a criação de uma ponte entre as imagens aparentemente

desconexas. Nos anos sessenta, os happenings, as performances e instalações tornavam a arte

“explicitamente participativa” (idem.). Segundo Manovich, esta última manifestação, preparou o

público para as instalações interactivas construídas através do computador (56-57). Todavia,

Manovich adverte que ao equacionar os “media interactivos” com o computador e, por

conseguinte com a interactividade física exercida através de um itinerário de cliques ou rastreada

por sensores, a interactividade psicológica corre o risco de ser esquecida. Este autor considera que

135

a preponderância da interacção física está relacionada com o projecto de “objectificar a mente” ou

de exteriorizá-la para aumentar as suas capacidades (59). Segundo Manovich, o hipertexto

exteriorizou os processos associativos da mente, construindo uma simulação do seu

funcionamento através de hiperligações entre imagens, páginas ou episódios.

O processo de externalização da mente também estaria relacionado com a necessidade de

transformar os produtos desta em objectos configurados ou moldados através das mãos. Estas

surgiam em representação do corpo secundarizado pela sobejamente discutida dicotomia

cartesiana. A tónica oferecida à interactividade na literatura electrónica está relacionada com esta

necessidade de inscrever o corpo no (ciber)espaço. A necessidade de “trazer o corpo consigo para

mundos de imaginação” (2006, Laurel apud Ryan: 227) foi provocada por uma reavaliação da

relação entre corpo e mente no espaço virtual. Enunciados como data made flesh (Gibson, 1986: 26)

inscrito por William Gibson em Neuromancer (1984) catalisaram a ansiedade de localizar o corpo no

labirinto da mente e na desmaterializada auto-estrada do ciberespaço. Porém, Scott Bukatman

sugeriu que Neuromancer não representa a informação como desmaterializada mas terá ajudado a

repensar a corporalidade: “much cyberpunk has been concerned with the phenomonologically

relevant other space of information circulation and control. Neuromancer transformed terminal space

by casting it in physical terms, rendering it susceptible to perception and control” (Bukatman, 1998:

145). A noção de fragmentação da identidade (Barthes, 1997: 142) e a visão de um corpo que em

vez de órgãos encarna a multiplicidade (Deleuze e Guattari, 2012: 34), foi sendo progressivamente

associada à imagem do corpo como um invólucro descartável que é deixado para trás, quando se

trata de conectar a mente a um mundo paralelo apelidado de “cyberspace”.

Em diversas obras (como por exemplo, Narrative as Virtual Reality (2001) de Marie-Laure Ryan) a

referência à realidade virtual surge frequentemente, não como uma investigação de elementos

concretos que deixam entrever o potencial artístico desta tecnologia, mas como uma forma de

explorar hipóteses ou como um espaço de reflexão. Meredith Bricken sublinha que os designers de

interfaces fazem uso de metáforas para fornecer aos utilizadores “um modelo mental” das

capacidades de uma aplicação (Bricken refere-se à “metáfora do desktop”). Na investigação

dedicada à realidade virtual, as metáforas são usadas como “princípios organizativos”. De acordo

com Bricken, elas servem para descrever um “lugar ou um processo que não é familiar” (Bricken,

1992: 369). A metáfora do ciberespaço é descrita da seguinte forma: “Cyberspace participants

interact directly with virtuality (rather than reality) to experience the embodiment of the application.

This environment is “as if real” (368).

Sendo assim, a realidade virtual não é apenas virtual porque simula o mundo, mas porque é um

espaço imaginado onde teorias são testadas e novos caminhos são sugeridos. A realidade

136

aumentada165 distingue-se da realidade virtual devido à sua ligação à realidade, isto é, enquanto a

realidade virtual tem como objectivo a imersão num mundo ficcional através da tecnologia head-

mounted display, a realidade aumentada pretende adaptar a tecnologia ao quotidiano, seja através de

aplicações instaladas no nosso telemóvel, seja através de utilitários disponibilizados online166.

Ambas pretendem oferecer a ilusão de imersão: a realidade virtual pretende efectuar uma imersão

no mundo paralelo, a realidade aumentada pretende efectuar essa imersão sem “bloquear o mundo

físico”. A realidade aumentada difere da realidade virtual porque sobrepõe uma camada

informacional aos espaços físicos, tendo geralmente uma componente mais comercial e utilitária,

dirigida à satisfação de necessidades.

O nível quatro de interactividade determinado por Ryan, é assente numa tecnologia que não está

preparada para satisfazer as expectativas ou recriar os cenários descritos por esta autora. Ryan prevê

a existência de uma história que é construída em tempo real. Só que a tecnologia ainda não consegue

lidar com a aleatoriedade e imprevisibilidade que seriam exigidas por esse texto. A única forma de

responder coerentemente à aleatoriedade seria conferir ao computador uma maior autonomia ou

(a impressão de) um comportamento emergente. Estas possibilidades estão ainda a ser investigadas.

A referência a uma história que pode ser criada em tempo real é baseada no pressuposto de que ela

não existe para ser contada ou ouvida, mas para ser construída, manipulada ou experienciada

virtualmente. É também edificada em torno da possibilidade de existência de uma tecnologia que

não é descrita como uma forma de contar histórias (embora tenha a possibilidade e os recursos

para o fazer) mas que, ao invés disso, proporciona uma experiência sensória inovadora. Porém,

essa experiência seria drasticamente diferente da leitura ou da construção de uma história ou de

uma narrativa.

A realidade virtual é um espaço onde é discutida a possibilidade de incluir o corpo como elemento

participativo na experiência literária. Ela permitiu imaginar o que ocorreria se o leitor/espectador

pudesse aceder a mundos ficcionais por si criados. A realidade virtual surge assim como um

instrumento teórico que foi utilizado, num dado momento, para pensar a influência da tecnologia

na literatura numa situação extrema, ou seja, definida pela ausência (ficcional e imaginada) de

mediação.

Por seu turno, a tónica dada ao corpo na interacção com a máquina/texto partiu da necessidade de

comprovar que a literatura electrónica teria uma face material. Como vimos no segundo capítulo,

a descrição de texto digital era marcada pela noção de fugacidade e imaterialidade. Muitos dos

165 No segundo volume da ELO Collection existe a categoria “Augmented Reality” (onde foi incluída a obra Andromeda, 2008), mas não uma categoria dedicada à realidade virtual. Esta tecnologia surge inserida na categoria “CAVE”. 166 No seguinte artigo é possível conhecer a diferença entre ambas e algumas das possibilidades oferecidas pela realidade aumentada: http://www.bbc.com/news/business-28399343.

137

autores e críticos do período inicial da literatura electrónica, influenciados pela cibercultura e pela

investigação na área da cibernética e robótica, adoptaram o tema da incorporação. Face à

fisicalidade do livro impresso, o computador seria um meio instável e fragmentado.167

A participação física do leitor foi também promovida para desafiar a hegemonia autoral. Esta

intenção era primeiramente executada através da selecção de hiperligações. Embora de forma

metafórica, este tipo de interactividade, era já associado ao envolvimento do corpo na construção

da narrativa (veja-se o tipo de leitura sugerido por Patchwork Girl). Mais tarde, graças a inúmeros

avanços tecnológicos, a interactividade passou a implicar um contacto mais envolvente entre corpo

(e não só as mãos e a visão) e a máquina. Permitiu igualmente que o espaço do texto não fosse

resumido ao ecrã ou a um espaço fechado como o CAVE mas, por exemplo, pudesse estender-se

a uma cidade. Apesar disso, a tecnologia não conseguiu concretizar a antiga ambição de oferecer

ao leitor a capacidade de imergir totalmente o seu corpo168 em textos, que por sua vez, seriam

criados por si em tempo real. Ofereceu sim, novas respostas textuais, novos tipos de texto e novos

processos de leitura, bem como formas adicionais de envolver e cativar leitores. Ofereceu também

novas possibilidades de associar ser humano e máquina. Por seu turno, a atenção teórica oferecida

ao tema da incorporação permitiu igualmente, segundo Tom Boellstorff, evidenciar que a cognição

é uma actividade corporizada: “This emphasis on embodiment was significant becaute it challenged

a longstanding presumption of cognition as disembodied” (Boellstorff, 2008: 134).

Tal como Marie-Laure Ryan e Markku Eskelinen, também Astrid Ensslin associa a interactividade

à possibilidade de participação do corpo. Quando descreve a metalepse interactiva, Ensslin

considera o seguinte: “It involves mostly digital and interactive media that require the user’s

physical interaction with its hardware and software” (Ensslin, 2011: 11). Esta tendência surge no

seguimento da ambição de fornecer ao leitor um papel na construção do texto, bem como à

tentativa de conferir legitimidade à literatura electrónica face a um mundo que era visto como feito

de papel.

A insistência em envolver o leitor no processo de produção do texto através de uma maior

interactividade faz com que inúmeros autores estejam permanentemente à procura de novas

respostas textuais possibilitadas pelo recurso à tecnologia. Adriana Souza e Silva referiu que o

167 A generalização da World Wide Web e da investigação dedicada à realidade virtual (ou do seu doppelgänger, o ciberespaço) levou inúmeros autores a escreverem ostensivamente sobre a fragmentação da identidade e sobre a relação entre corpo e mente. Nos trabalhos de N. Katherine Hayles, Sherry Turkle, Janet Murray e Shelley Jackson, por exemplo, o corpo não é só aquele que permite a leitura de um texto, mas também o que permite abordar noções de identidade e género. Muitas destas perspectivas sobre a corporalidade seriam baseadas em ideias difundidas pela ficção ou, mais concretamente, pelo cyberpunk, steampunk e ficção científica. Sendo assim, a realidade virtual, surge ela própria como uma ficção que tem de ser concretizada através da imaginação e não através do movimento corporal. 168 Para Eskelinen, na ludologia e ontologia do jogo, os jogadores não são de “carne e osso”. Numa óbvia alusão ao “leitor implícito” distinguido pela narratologia, Eskelinen afirma que eles são jogadores “implícitos” moldados e limitados pela estrutura do jogo, ainda que possam lutar contra esta (275).

138

espaço urbano, devido à fragmentação e constante estimulação dos sentidos através de placards

luminosos, deixou de assumir uma “forma narrativa” (Souza e Silva, 2013: 33). Porém, de acordo

com Souza e Silva, os dispositivos de localização que fazem uso da tecnologia GPS permitem uma

nova exploração do espaço: “These technologies enable users to inscribe locations with digital

information, such as texts, images, and vídeos (…) they play an important role in helping people

imbue locations with new dynamic meanings and construct new types of urban mobilities and

narratives.” (idem.). De forma a explorar estes espaços, será necessário mover-se e escrever ou ler

os espaços com recurso à tecnologia. Os textos descritos por Souza e Silva são apelidados, dentro

da literatura electrónica, de textos locativos. Na Electronic Literature Collection a categoria

“locative” é definida desta forma: “refers to works that make use of locative technologies, such as

GPS, Global Positioning System, a satellite navigation system, or RFID, Radio Frequency

Identifiers, as part of their process”. Os textos apresentados no segundo volume desta colecção

não dependem do itinerário levado a cabo pelo leitor ao longo de uma cidade mas usam, por

exemplo, fotos extraídas do Google Maps ou outro tipo de mapas para explorar o espaço urbano.

in absentia (2008) de J. R. Carpenter, por exemplo, utiliza uma imagem da cidade de Montreal

publicada no Google Maps e introduz vinhetas dispostas em determinados locais da cidade/mapa.

Isto indica que, dentro da literatura electrónica, o movimento (ou a interactividade física) não

necessita de ser literal ou simulado, mas (tal como na literatura impressa) poderá ser simplesmente

reconstruído ou imaginado. Por seu turno, para um texto ser locativo, não é obrigatório recorrer a

tecnologia de ponta (isto é, a sensores ou sistemas de localização que rastreiam os movimentos do

leitor) mas apenas investir o que intitulo de esforço imaginativo. Senghor on the Rocks (2008) é definida

por Christoph Benda como um “livro virtual” e como um romance que faz uso de imagens de

satélite online. Este geo-romance assume a forma de um livro. Só que, assim que o livro é aberto,

o leitor é apresentado a um texto acompanhado de imagens de satélite sobre Dakar. À medida que

o leitor avança na narrativa, cujo texto está inscrito na página à direita, a página esquerda mostra

ao leitor o percurso narrativo via satélite. Sendo assim, a actividade de leitura não se destina a

conhecer apenas a narrativa, mas também o território coberto por esta. Apesar de descrever um

mundo ficcional, Senghor On The Rocks confronta o leitor com o mundo actual.

As inúmeras possibilidades introduzidas pela tecnologia levaram Eskelinen a adicionar duas

variáveis à função de utilizador criada por Aarseth. As variáveis adicionadas por Eskelinen

encontram-se assinaladas pelo sinal +. Dentro da função “user function”169, originalmente criada

por Aarseth, Eskelinen introduziu a user position e a user objective.

169 A user function estipulada por Aarseth já previa a função interpretativa, só que esta terá sido secundarizada pela atenção oferecida à participação física do leitor. Gostaria de frisar, que esta função, juntamente com o esforço ergódico mantido pelo leitor, é uma função primordial para a leitura de uma ficção digital.

139

Função do utilizador (user function) Interpretativa, exploratória, configurativa, textónica

+ Posição do utilizador (user position)

+autonomia Independente, dependente

+mobilidade requerida sim/não (não-estática/estática)

+posicionamento Localizada, não-localizada

+ Objectivo do utilizador (user objective) Travessia, consulta, amostragem, finalização, vitória, improvisação

Tabela IV – Função do utilizador expandida por Eskelinen (Eskelinen, 2012: 46).

Como os textos locativos dependem em grande escala do movimento, espacialidade e localização

do leitor, bem como de um esforço físico adicional exigido por actividades desportivas (e não

apenas de um conjunto de cliques, nem do acto de virar a página), Eskelinen sugere a adopção da

variável user position. Esta será aplicada aos seguintes textos:

(…) texts that require the user to be in a specific location, to move in order to be able to

access and realize the text, combine physical and virtual spaces in non-trivial ways, or make

users at least partly dependent on one another in creating and consuming the text. The user

position is determined in relation to other users, physical location, and bodily movement

(…). (Eskelinen, 2012: 35)

Uma outra variável introduzida por Eskelinen é a user objective. Esta tem em conta a finalidade da

intervenção do utilizador e prevê a existência de textos que proponham um desafio ou o alcançar

de um objectivo por parte deste. Os objectivos do leitor são consultar um outro texto; testar um

gerador de texto para poder posteriormente estipular o seu grau de envolvimento; completar um

puzzle; ganhar um jogo ou uma actividade lúdica improvisada em conjunto170 (42). Esta dimensão

da função de utilizador possibilita a inserção de textos com um aspecto exploratório, lúdico ou

ergódico acentuado.

Segundo Eskelinen, a função configurativa torna-se textónica171 quando o utilizador assume a seguinte

acção: “Sometimes the users are allowed to make more permanent additions to artwork either

collaboratively or on their own” (351). Eskelinen reconhece que a arte e literatura ergódicas por

170 Eskelinen refere-se aos MUDs, também comtemplados no trabalho de Aarseth. 171 O função textónica do utilizador assumirá uma função diferente à estipulada por Aarseth. Esta será descrita na próxima secção deste capítulo.

140

vezes confundem-se. No entanto, a diferença fundamental entre ambas está no esforço físico do

jogador: “in addition to utilized sign systems, is the physical effort required by most ergodic works

of art, which goes far beyond clicking and typing that are typical of the non-trivial user efforts in

ergodic literature” (351). Segundo Eskelinen, o prazer em manipular fisicamente as letras num texto

pode enfatizar o papel da interface colocando em segundo plano os atributos literários da obra.

Eskelinen refere que quanto mais este “prazer de manipular os signos” se torna central, mais estas

obras se tornam em instrumentos textuais: “the sheer ability of mastering them brings joy almost

despite or independently of the content or the results of that activity” (352). Todavia, esse prazer

é aqui descrito como um atributo literário e não como uma actividade paralela ou acessória

proposta por uma obra.

141

Interactividade cognitiva

To declare a system interactive is to endorse it with a magic power.

Espen Aarseth, Cybertext: Perspectives on Ergodic Literature

O texto vibra; o leitor o estabiliza, integrando-o àquilo que é ele

próprio. Então é ele que vibra, de corpo e alma.

Paul Zumthor, Performance, Recepção e Leitura

Muitos dos estudos dedicados à realidade virtual, literatura electrónica ou jogos de computador

confundem interactividade com participação na construção do texto. Segundo o esquema proposto

por Ryan, a interactividade só existe se o texto ceder à intervenção do leitor. No entanto, o que

pretendo demonstrar é que as respostas físicas por parte do leitor (desde o clique até ao sensor)

não podem ser vistas como o único critério para identificar um grau de interactividade

proporcionado por um texto. Para além do trabalho ergódico efectuado pelo leitor, como por

exemplo, explorar a textura de trilhos ou montar um texto de forma a poder ser lido, existe

igualmente um trabalho cognitivo que está na origem e é originado por todas as acções levadas a

cabo pelo leitor. A noção de que a interactividade se estende desde a oportunidade de agência por

parte do leitor, até ao trabalho psicológico, poderá ajudar a desmistificar a relação entre

interactividade e imersão. A ideia de um leitor que interage com as personagens no mundo ficcional

e que, em simultâneo, contribui fisicamente para a construção da narrativa não representa a relação

entre ambas.

Para além da interactividade física existe também uma componente cognitiva que raramente é

avaliada172. Em “Narrative, Interactivity, Play, and Games” (2003), Eric Zimmerman distinguiu

vários tipos de interactividade que poderão servir como ponto de partida para a perspectiva que

pretendo aqui adoptar. O modo um de interactividade intitula-se “interactividade cognitiva” ou

“participação interpretativa num texto” e é definida por Zimmerman da seguinte forma: “This is

172 De acordo com Eskelinen, os textos locativos e cinéticos apresentam um desafio perceptual adicional mas este autor não associa esse desafio com a presença de uma interactividade cognitiva. Em vez disso, Eskelinen efectua uma comparação entre a precepção do texto através do formato impresso e o formato digital: “There may be considerable losses as the user (due to temporal limitations, visual complexity, or simultaneities) may be able to perceive only a fraction of each set of scriptons presented to him, and from those perceived at least some may have to be immediately ignored in the interpretation because of temporal pressure and the user’s resulting haste. Although cybertext theory doesn’t conflate scriptons with the signs that the reader actually reads, the gap between these two varies considerably. In this respect, printed books (including artists’ books) and so-called classic hypertext fiction belong to the perceptually less challenging end of the spectrum while transient, kinetic, and three-dimensional poetry, both ergodic and non-ergodic, occupy the other and perhaps non-trivial end” (Eskelinen, 2012: 33-34).

142

the psychological, emotional, hermeneutic, semiotic, reader-response (…) kind of interactions that

a participant can have with the so-called ‘content’ of a text” (Zimmerman, 2003).

O modo dois de interactividade é apelidado “interactividade funcional” (ou a participação

utilitária no texto). O autor relaciona este tipo de interactividade com as seguintes interacções:

“functional, structural interactions with the material textual apparatus. (…) All of these

characteristics are part of the total experience of reading interaction” (idem.). O modo três de

interactividade, ou “interactividade explícita”, tem em conta a participação em escolhas e

procedimentos desenhados no texto e pode ser descrita da seguinte forma:

This is ‘interaction’ in the obvious sense of the word: overt participation such as clicking

the nonlinear links of a hypertext novel, following the rules of a Surrealist language game,

rearranging the clothing on a set of paper dolls. Included here: choices, random events,

dynamic simulations, and other procedures programmed into the interactive experience”

(idem.).

O modo quarto de interactividade intitula-se “meta-interactividade” ou “participação cultural”

e envolve as seguintes características: “This is interaction outside the experience of a single text.

The clearest examples come from fan culture, in which readers appropriate, deconstruct, and

reconstruct linear media, participating in and propagating massive communal narrative worlds”

(idem.). Esta última não apresenta uma interactividade com o texto no momento da sua leitura mas

acções externas à sua leitura.

Embora breves, as distinções alcançadas por Zimmerman permitem uma discussão do termo

interactividade bastante completa. Aqui não tentarei estipular vários tipos de interactividade ou

sugerir uma definição para este termo. Também não pretendo abandoná-lo nem substituí-lo, mas

colocar em causa algumas noções que impossibilitam a correcta abordagem da relação entre

interactividade e imersão.

O discurso de Zimmerman ainda é subsidiário da primeira fase de teorização da literatura

electrónica. Como tal, inclui algumas ideias que deviam ser analisadas com particular atenção. O

modo dois de interactividade e o modo três de interactividade poderiam ser fundidos dentro da

categoria “interactividade funcional” porque ambos implicam uma manipulação da materialidade

dos textos, desde a escolha de links até ao folhear. Todavia, estas actividades são tratadas nesta tese

como parte da intenção do texto e não como uma série de funções proporcionadas pelo mesmo.

O facto de um texto apresentar um determinado ícone como ponto de partida de uma hiperligação

pode ter um significado particular. A forma como a folha é folheada, bem como dobrada ou

143

recortada, poderá comunicar uma intenção da obra. Nestes casos, elas são partes da carga

expressiva que um texto traz consigo.

O modo quarto de interactividade poderia ser mantido e poderia servir para frisar o que foi aqui

sublinhado no subcapítulo “Characters don’t need closure”, ou seja, nenhum texto acaba

verdadeiramente na última página. A meta-interactividade poderia ser alargada a recensões e fóruns

sobre uma determinada obra e não apenas a um processo premeditado de fragmentação da sua

linearidade. Esta distinção permitiria distinguir o trabalho efectuado pelo leitor a partir de uma obra

(ou às apropriações da mesma). Normalmente esse trabalho é descrito como co-criação (por

exemplo, quando o leitor escreve na página Facebook de umas das protagonistas de La Disparue).

No entanto, essas tarefas são externas à obra e não permitem a adição de nova informação ou

alteração da sua estrutura.

Participação, interactividade e interacção

O modelo apresentado por Zimmerman suscita igualmente a necessidade de explicitar os termos

participação, interactividade e interacção. O termo “participação” (tal como a expressão “liberdade de

escolha”) surge muitas vezes como sinónimo de interactividade. Ele é normalmente associado à

colaboração do leitor na construção da narrativa e na história. Esta associação torna problemática

a descrição de interactividade porque transmite a ideia que o leitor terá um trabalho colaborativo

(normalmente como co-autor) na construção do texto. Lev Manovich descreve a criação de

objectos inscritos nos novos média da seguinte forma: “New media objects are rarely created

completely from scratch; usually they are assembled from ready-made parts. Put differently, in

computer culture, authentic creation has been replaced by selection from a menu.” (Manovich,

2000: 124). Manovich refere-se à existência de bibliotecas onde os designers podem escolher imagens,

botões, filtros ou diversos plug-ins. Para Manovich, os utilizadores finais também podem proceder

a este tipo de selecção. Estes deixam de ser consumidores e tornam-se em “autores” (125). Os

utilizadores podem, por exemplo, escolher o layout ou uma hiperligação entre muitas. Podem

igualmente escolher um avatar ou uma perspectiva num mundo virtual. Qualquer actividade

depende da escolha a partir de um menu, catálogo ou base de dados (“cut and paste logic”).

Segundo Manovich, existe um “novo tipo de autoria” (128) mas esta autoria corresponde a uma

descrição do trabalho configurativo efectuado pelo leitor e não à co-criação de uma obra.

Poderemos concordar com Wolfgang Iser e afirmar que o texto não existe sem o acto de leitura173,

173 Wolfgang Iser refere-se ao texto e ao leitor como elementos interdependentes envoltos num ciclo recursivo: “Reading is an activity that is guided by the text; this must be processed by the reader, who is then, in turn, affected by what he has processed” (Iser, 1980: 159). Iser considera que existe uma interacção diádica induzida pelo processo

144

mas o que pretendo aqui frisar é que esta participação, ligada a uma noção vaga e flexível de

interactividade, indica que o leitor terá um papel activo na escrita ou produção do texto, como se

houvesse a possibilidade de o leitor alterar criativamente a narrativa. Mesmo em textos com

múltiplos desfechos ou trilhos, a panóplia de escolhas e a autonomia do leitor é pré-determinada.

O leitor tem de facto um papel configurativo ou exploratório (tal como Manovich refere, ele poderá

efectuar escolhas a partir de um menu) mas não uma participação na construção da narrativa ou da

história. Ao leitor é dada a oportunidade de proceder a uma forma de leitura que implica diversas

acções, como configurar partes do texto ou explorar a sua estrutura. De facto, a interpretação do

texto e o uso que o leitor efectua do mesmo, após a leitura da totalidade ou de parte dele, escapa

ao domínio do autor, do designer ou do programador. Porém, durante a leitura, o leitor está cingido

à arquitectura do texto e do mundo ficcional a qual já terá sido prevista antes do seu contacto com

este.

O termo interacção, que Zimmerman associa sobretudo à interactividade explícita, não pode ser

confundido com interactividade. No âmbito dos jogos de computador e literatura electrónica, a

interacção é frequentemente associada a uma actividade física ou um intercâmbio visível ou

reconhecível entre ser humano e máquina174. Porém, para Zimmerman, a interacção também ocorre

ao nível cognitivo. Este autor identifica interacções psicológicas, emocionais, hermenêuticas ou

semióticas entre um leitor e o conteúdo de um texto. Só que a interacção implica a existência de

uma transacção igual entre computador e leitor. É nesta situação em que o uso da palavra interacção

é problemático. Na verdade, nenhum texto (digital ou não) efectua uma interacção175. Num

ambiente digital, o texto não interage, mas reage ao input do leitor/jogador. Poderemos dizer que

a verdadeira interacção depende do comportamento emergente, da resposta a situações aleatórias

e imprevisíveis, capacidades que apenas são manifestadas por seres vivos. O computador, enquanto

dependente da programação, apenas parcialmente consegue desempenhar essas funções. Don Ihde

refere-se a uma zona neutra entre humanos e não-humanos e à existência de vários graus de

interacção e de simetria ou assimetria. Ihde refere que o que distingue ambos será a

“intencionalidade”. Contudo, o agente não-humano nunca é transparente ou puro. Hayles referiu

de leitura. Porém, a interacção entre leitor e texto é caracterizada por Wolfgang Iser, como parte do carácter ficcional deste: “The dynamic interaction between text and reader has the character of an event, which helps to create the impression that we are involved in something real. This impression is paradoxical in so far as the fictional text neither denotes a given reality, nor caters overtly to the possible range of its reader's dispositions. It does not even have to relate to any cultural code common to itself and its readers, for its ‘reality’ arises out of something even more basic: the nature of reality itself” (Iser, 1980: 68). 174 Victor Nell refere-se igualmente a uma “interacção entre autor, leitor, livro e ambiente” (Nell, 1988: 116). 175 Neste sentido, o termo “interacção” poderia ser descrita como um contacto físico, cognitivo e comunicativo (através de diferentes interfaces ou dispositivos) estabelecido e mantido pelo utilizador com o computador. Contudo, o uso do termo interacção, tal como interactividade, está demasiado enraizado.

145

que um texto literário não é uma conduta onde circula passivamente a informação (Hayles, 1999:

21). Tal como Hayles, Ihde refere que os objectos transformam os seus criadores:

My middle-ground claim is that there is, indeed, a limited set of senses by which non-

humans are actants, at least in the ways in which interactions with the, humans and

situations are transformed and translated (…) while there are some situations of clear

symmetries, these are often limited, and there remain many situations that are asymmetrical.

The objects (nonhumans) in such interactions modify the humans, the subjects are

nonneutrally and noninnocently invariant, but the counterpart modifications are not always

those immediate, real time modifications. (Ihde, 2002: 100)

Durante a leitura de uma obra em meio digital, o leitor está em contacto constante com a máquina

e ambos constituem uma relação interdependente. No entanto, o computador é reactivo e não

verdadeiramente interactivo, ou seja, ele consegue exibir uma interactividade potencial. No seguinte

excerto, Murray convida o leitor a imaginar um texto interactivo e imersivo:

Imagine a visit to an entertainment venue of the late twenty-first century, the equivalent of

a movie theatre. (…) We would enter the story, and the plot would change according to

our actions while still sustaining its power to surprise and delight us. What would such

stories be like? Although we cannot predict how far the technology will take us, it is

irresistible to speculate on such possibilities. (Murray, 1997: 63)

Tal como o ser humano, os computadores são capazes de responder ao mundo externo. O

computador apresenta-se como uma máquina que contribui para a formulação de universos

ficcionais e que estabelece representações ficcionais da nossa relação com o mundo mas não só.

Para além da ilusão de interactividade mantida pelo computador durante o contacto com o leitor,

a interacção entre ser humano e máquina é frequentemente descrita através de metáforas. Hayles

refere que a intermediação entre ser humano e máquina pode ser vista de duas formas: “como uma

descrição literal da dinâmica de interacção entre ser humano e computador ou como uma metáfora

para essas interacções” (Hayles, 2008: 51). Quando Hayles anuncia a chegada de um leitor

ciborgue176, utiliza uma poderosa metáfora para descrever a nossa relação com este dispositivo.

176 Em “Print is Flat, Code is Deep”, N. Katherine Hayles refere que, porque o hipertexto é construído em “ambientes cognitivos distribuídos”, o leitor torna-se num ciborgue. O ciborgue é um ser que tem uma parte orgânica (org) e outra maquínica (cyber). Como o leitor está em contacto constante com a máquina, Hayles refere que ele adopta uma subjectividade ciborgue. Esta subjectividade poderá ser encontrada na literatura impressa - Hayles refere-se a Neuromancer (1984) e Synners (1991) - mas Hayles acredita que o meio instaura essa subjectividade através da sua especificidade (Hayles, 2004: 14).

146

Quando Eskelinen prevê a chegada de novos textos que catalisarão novas respostas textuais,

recorre à sua imaginação para transmitir o argumento que a narratologia tem de ser expandida para

receber esses textos. Estas são representações das expectativas depositadas neste instrumento mas

também alimentadas por ele.

Ralph Schroeder referiu-se à ligação entre ciência e literatura através do fenómeno de cibercultura.

Para este autor, a cibercultura alimenta-se das inovações tecnológicas, sendo uma delas a realidade

virtual. Schroeder afirma que a cibercultura anseia pela fusão entre ciência e arte e por formas de

expressão alternativas ou recursos para criar novos mundos através das tecnologias de

comunicação e informação (Schroeder, 1996: 133). Como sabemos, a literatura alimenta igualmente

a ciência. A palavra “robot”177 foi extraída da peça de teatro R.U.R. ou Rosumovi Univerzální Roboti

(1920) criada por Karel Čapek. Na obra I, Robot (1950) de Isaac Asimov, a palavra “robótica” seria

popularizada, bem como as suas três leis. Estas leis tinham em vista a pacífica convivência entre

seres humanos e máquinas e (embora tenham vindo a ser alteradas ou substituídas) continuam a

estar na base da discussão sobre ética e ciência.

Norbert Wiener, criador da palavra “cibernética”, refere-se ao facto de as máquinas terem “sense

organs” que possibilitam a recepção de mensagens. Para Wiener elas conseguem responder a

estímulos externos (Wiener, 2002: 51), ou seja, tal como o ser humano, conseguem entender e gerar

informação. Don Ihde refere que a relação entre estes é sempre bidireccional: “Insofar as I use or

employ a technology, I am used by and employed by that technology as well. This is what Andrew

Pickering call the dance of agency and what Bruno Latour terms the symmetry between humans

and nonhumans” (Ihde, 2002: 138). N Katherine Hayles identificou um processo de intermediação

entre ambos: “humans and computers are bound together in dynamic heterarchies characterized

by intermediating dynamics. Humans engineer computers and computers reengineer humans in

systems bound together by recursive feedback and feed forward loops” (Hayles, 2008: 48).

Perante um texto (ou durante a sua leitura), o leitor apenas pode ser considerado como co-autor

ou entrar em contacto com personagens através de uma interactividade imaginada. A

interactividade é uma ilusão projectada pelo computador e pelas propriedades expressivas de um

texto. Ela pode ser vista como simulação da acção num mundo paralelo, um acto de faz de conta

(ou como Kendall Walton referiu “a prop in the game of make-believe”178) que, mais tarde ou mais

177 Mais propriamente da palavra checa “robota”. 178 Kendall Walton descreve o contacto entre leitor e obra como um jogo imaginativo de faz-de-conta: “The basic appreciative role consists, in a word, in participating in a game of make-believe in which the appreciated work is a prop” (Walton, 1990: 190). Gibson considera que a teoria baseada no make-believe, porque parte do jogo, explica a ficção como algo social. Contudo, porque traduz tudo num jogo, Gibson refere que esta apenas reintroduz o problema tradicional da ficção e verdade (167). Gibson pretende ver a realidade na ficção ou o que liga esta à realidade. No entanto, de acordo com Kendall Walton, esta forma de ver a ficção tem apenas um carácter instrumental e não representa qualquer valor estético (Walton, 2008: 6).

147

cedo, devolve o utilizador à realidade. Apesar da interactividade ser uma ilusão, isto não significa

que este termo deva ser abandonado. A existência de inúmeros textos e dispositivos classificados

como interactivos impossibilita este gesto. Adicionalmente, o carácter ilusório da interactividade

permite incluí-la como uma parte integrante da narrativa ou do potencial expressivo de um texto.

Sendo assim, ela não é uma actividade externa oposta à narrativa mas um recurso expressivo que

não pretende oferecer liberdade de escolha nem a oportunidade de participar na construção na

narrativa, mas que pretende incluir o leitor num mundo possível. O jogo da ficção assim o permite.

Reunir esforços

Como vimos no primeiro capítulo, a ficção interactiva esteve na origem dos jogos de computador.

Existe uma ligação fundamental entre estes e a literatura electrónica. O facto de existirem obras

digitais que conferem ao leitor um nível acrescido (ou a ilusão de um nível acrescido) de

interactividade, leva a comparar essas obras a um jogo. Embora existam pontos de contacto entre

jogos de computador e literatura electrónica, os textos ergódicos não são necessariamente

interactivos no sentido em que respondem às interpelações do leitor. Espen Aarseth é

frequentemente conotado com a ludologia por ter implicado no seu estudo jogos de computador

e ficções interactivas179. Markku Eskelinen180 defende que o rigor cibertextual poderá ajudar a

decidir qual o tipo de interactividade presente num texto e associa vários tipos de interactividade

às funções de utilizador registradas por Aarseth: exploratória (navegação no texto); configurativa

(participação e conversação) e textónica (colaboração; alteração permanente do texto). Eskelinen

descreve aqui as diversas funções do utilizador levadas a cabo pelo leitor perante um texto ergódico

ou um cibertexto. Contudo, ergodicidade não pode ser confundida com interactividade. Embora

funcionem em conjunto, elas abrangem diferentes atributos do acto de leitura. De facto, em

Cybertext: perspectives on ergodic literature (1997), Aarseth distancia-se deste vocábulo referindo-se à

179 Segundo o que Gonzalo Frasca demonstra em “Ludologists love stories too” (2003), Espen Aarseth nunca fez uso do termo “ludologia”. 180 Para Eskelinen, de forma a conseguir uma perspectiva o mais completa possível da literatura é necessário “cibertextualizá-la”. Para conseguir entender a literatura ergódica, será vital complementar esta operação com a ludologia (42). Esta colaboração entre ludologia, narratologia e teoria cibertextual, como já foi referido, tem de ser complementada com a noção que os textos não são um conjunto de respostas textuais vazias de sentido. Para incluir textos ergódicos, que estão permanentemente à deriva, Eskelinen ignorou parte deles por não representarem um desafio à função do utilizador. O facto de um texto ser considerado ergódico não quer dizer que ele confira interactividade ou implique o leitor na criação do mesmo. Quer porventura dizer que, para ler o texto, o leitor tem de efectuar actividades de diferente natureza, ou seja, contar com algum tipo de resistência. Eskelinen declara que não está interessado no que é um medium mas no que ele consegue fazer. Só que as potencialidades do meio podem ser exploradas de diversas formas (e não só através do nível de interactividade que ele consegue proporcionar). No fundo, esta ânsia por uma maior interactividade, surge em grande parte na sequência do antigo projecto de envolver o leitor na construção da narrativa através de uma representação mimética da realidade, uma representação que implica a transparência do meio.

148

interactividade como um adereço introduzido por uma manobra de marketing: “The industrial

rhetoric produced concepts such as interactive newspapers, interactive video (…) all implying that

the role of the consumer had (or would very soon) change for the better” (Aarseth, 1997: 48).

Ergodicidade não pode ser igualmente confundida com escrita colaborativa ou co-autoria. Se numa

primeira fase da literatura electrónica a interactividade era relacionada com a participação do leitor

na construção da narrativa através de um itinerário constituído por cliques, a introdução de novas

tecnologias como o GPS ou sensores, coloca a tónica no corpo do leitor (ou utilizador) e a sua

relação directa com a máquina. Sendo assim, assiste-se a uma intensificação do antigo projecto de

oferecer uma maior liberdade ao leitor.

Em Avatars of Story (2006), Ryan centrava-se na possibilidade de virem a existir textos que

permitissem uma maior iniciativa por parte do utilizador. Porém, a coerência imposta pelo enredo

aristotélico tornava essa ambição impossível: “The Aristotelian plot of interpersonal conflict

leading to a climax and resolution does not lend itself easily to active participation because its

strength lies in a precise control of emotional response that prevents most forms of user initiative”

(113). A realidade virtual, porque permitia a intervenção do corpo, poderia oferecer uma solução:

Its best chance of interactive implementation resides therefore in a VR simulation (…) the

user would exercise her agency by observing the action from various points of view, by

mingling corporeally with the characters (who would be played by synthespians, that is,

computer-simulated actors), and perhaps by exchanging an occasional word with them”.

(Ryan, 2006: 113)

Ryan salienta a necessidade de implicar o corpo para garantir um maior grau de interactividade: “If

interactive narrative is ever going to approach the emotional power of movies and drama, it will be

as a three-dimensional world that opens itself to the body of the spectator but retains the top–

down design of a largely fixed narrative script” (idem.). No entanto, a narrativa não tem de

obedecer ao enredo identificado por Aristóteles e por Freytag, o qual implica uma estrutura

piramidal construída em torno de um clímax e circunscrita por um desfecho. Como tem vindo a

ser demonstrado nesta tese, uma narrativa pode não apresentar-se como um itinerário fixo e

coerente rumo a um desfecho. Adicionalmente, a realidade virtual (“mundo tridimensional”) é uma

condição vital para a aquisição de uma resposta emocional, tal como encontrada em filmes ou

teatro. Esta ideia será discutida na segunda parte deste capítulo. No entanto, gostaria de referir

antecipadamente que a ficção tem uma capacidade ilimitada (que é também explorada por Marie-

Laure Ryan) de construir mundos possíveis. Desta forma, não é necessário recorrer à realidade

virtual para proporcionar um sentimento de imersão num mundo ficcional.

149

Joseph Tabbi apontou a necessidade de pensar para além da narrativa. Em vez de enredo, este

autor menciona a existência de “pistas” e “sugestões” (Tabbi, 2011: 3). Tabbi defende que a

cognição (ou o conhecimento do texto) poderá emergir em substituição da introspecção e

interpretação. A cognição estará mais ligada à autogeração do texto do que à narratividade: “the

autopoiesis or self-making of the literary work of art, is much more central to the cognition of the

literary work than narrativity, metaphor, or any of the purported “origins” of language and

consciousness”(4). Porém, a narrativa está (ainda) presente no discurso dedicado à literatura

electrónica. Como tem sido demonstrado ao longo desta tese, ela adquire várias formas,

obedecendo à perspectiva e intenção daqueles que invocam este termo. Apesar de ser um termo

problemático, ele permeia consecutivamente o discurso sobre criação literária. É por este motivo

que, paralelamente ao termo narrativa, é aqui sugerida uma perspectiva do texto enquanto

catalisador de mundos ficcionais. A criação destes mundos depende da imaginação e do acto

interpretativo, os quais exigem um tipo de interactividade sugerida por Zimmerman: a interactividade

cognitiva. Este tipo de interactividade será aqui adoptado como um elemento central na leitura de

um texto. Ela manifesta-se não só na exploração e configuração do texto mas também na

interpretação do seu conteúdo e características formais. Isto significa que, a interactividade cognitiva

cria uma junção entre as actividades físicas e mentais levadas a cabo pelo leitor. A introdução da

interactividade cognitiva permite ver a imersão (normalmente considerada como um processo

cognitivo) como um elemento catalisado pela interactividade (frequentemente descrita como

catalisadora de respostas físicas) e, por conseguinte, descrever ambas as componentes como

inseparáveis. Para identificar a dinâmica de leitura de uma ficção digital, adoptarei a função do

utilizador descrita por Aarseth e Eskelinen.

A noção de interactividade cognitiva recupera a noção de ergodicidade distinguindo-a da interactividade

física e colaborativa. Como foi acima referido, a função do utilizador pode ser interpretativa, textónica,

configurativa e exploratória. Aarseth salienta que o conceito de cibertexto é focado na organização

mecânica do texto e vê as características do meio como “parte integrante da troca literária” (1), um

factor que pretendo aqui sublinhar. O prefixo cyber indica que o texto é considerado uma máquina

ou “um aparelho mecânico para o consumo e produção de signos verbais” (21). Só que a ficção

digital não é constituída apenas por linguagem verbal. Existem textos que propõem uma função

interpretativa baseada em ícones, fotos e imagens em movimento ou as “metáforas materiais”

apresentadas por Hayles.

Aarseth refere que, na função exploratória, o leitor tem de escolher entre vários trilhos, o que indica

que Aarseth tem em mente obras hipertextuais (64). No entanto, esta função pode ser adaptada a

diversos tipos de textos, e não só a textos com características de um jogo ou hiperficções. Esta

150

função pode ser ainda associada à actividade de explorar as características expressivas do texto. A

função configurativa está relacionada com a escolha parcial ou criação de escritões e a função textónica

com a adição permanente de textões (idem). Aarseth sublinha que um texto não corresponde à

informação transmitida durante a leitura porque o texto “pode (mas não tem de) fazer sentido”

(62). Contudo, o que pretendo aqui frisar, é que a informação tem um conteúdo e não é apenas

“uma cadeia de sinais” transmitida entre dois pontos. A função configurativa, por seu turno, é aqui

associada, não à escolha ou criação de textões, mas à forma como o leitor dispõe e organiza a

informação de forma a proceder à leitura e interpretação de dados. O leitor age de acordo com a

liberdade de escolha e de acção oferecida pelos criadores do texto. O leitor não pode colaborar na

construção da obra mas apenas reconstruí-la. Isto significa que a função textónica do utilizador teria

de ser afastada. Porém, o leitor encontra-se perante uma obra literária. Os textões, tal como as

palavras inscritas numa página, têm uma componente potencial. O leitor desconhece como eles

são formados e emergem. Isto significa que o leitor não sabe que forma (ou significado) eles

assumirão. Eles são catalisadores de mundos possíveis e a função textónica tem como objectivo

encontrar a forma de despertar estes textões e de concretizar esses mundos possíveis. O leitor leva

a cabo um esforço imaginativo para especular sobre o que vem a seguir e para preencher espaços

vazios. Os textões (porque podem ser transformados em escritões) permitem a satisfação da sua

curiosidade. Para tal, o leitor tem de adoptar a função textónica, ou seja, tem de ajustar (ou criar) a

sua estratégia para que os textões sejam transformados em escritões.

Em última instância, e sem a contribuição da imaginação do leitor, tudo se resumiria à alteração do

estado do ecrã ou a um conjunto de respostas textuais catalisadas pelo leitor. Porém, não é apenas

isto que um texto digital veicula. Com The Stanley Parable conhecemos um extremo, ou seja, um

texto que recusa a transmissão de uma história mas, apesar da interactividade oferecida, o leitor

não deixa de sentir-se imerso, quer na procura da história, quer na tentativa de reconstrução da

narrativa. Este jogo centra-se no desafio metaficcional e metalúdico proposto ao leitor e por isso

torna-se difícil considerá-lo unicamente como um jogo ou como literatura181. No caso da parábola

de Stanley, o leitor tem de imaginar que as suas acções têm um impacto profundo na narrativa,

ainda que o seu poder de escolha e as suas expectativas sejam constantemente frustrados. O mesmo

acontece com a possibilidade ficcional de construir uma história.

Aarseth descreve a situação do leitor do cibertexto como instável: “The cybertext puts its would-

be reader at risk: the risk of rejection” (4). Esta frase é particularmente interessante porque o texto

é descrito como se apresentasse resistência ao leitor (um tema que será tratado na última secção

desta tese). Para além disso, indica a existência de um leitor potencial. Embora Aarseth não

181 Para além disso, como foi salientado, este jogo foi inicialmente construído como uma ficção interactiva.

151

considere o texto como um catalisador de significados182, deixa entrever que o cibertexto é, também

ele, um catalisador de mundos possíveis. Ele refere que “as tensões” criadas por um cibertexto,

embora não sejam incompatíveis com as do “desejo narrativo”, estabelecem o seguinte: “a struggle

not merely for interpretative insight but also for narrative control: ‘I want this text to tell my story;

the story that could not be without me.’ In some cases this is literally true. In other cases, perhaps

most, the sense of individual outcome is illusory, but nevertheless the aspect of coercion and

manipulation is real” (4). Aarseth refere-se a uma componente ilusória da co-criação que aqui é

retratada como parte do mundo ficcional do texto e, por conseguinte, do horizonte de

possibilidades apresentado por ele. Porém, embora o texto dependa da sua leitura, isto não quer

dizer que o leitor efectue um trabalho criativo para construir a sua própria história.

A meta-interactividade permite ao leitor criar um texto (ou outro tipo de objecto) a partir do texto lido

mas aquele é uma apropriação deste. A função interpretativa, porque tem em vista a extracção de

significado (do resultado das acções do leitor e do próprio texto), poderá contribuir para a

construção da meta-interactividade. Esta pode ser aplicada ao que descrevemos no capítulo anterior

como sendo a close reading. Sem a função interpretativa, a meta-interactividade e, por conseguinte, qualquer

análise literária de um texto, são impraticáveis. Porém, é necessário distinguir a função interpretativa

da interpretação de uma obra literária. A função interpretativa é aplicada durante a sessão de leitura

para compreender o texto e não surge em vez da prática de uma análise ou uma abordagem

hermenêutica ao texto. No entanto, como é direccionada para a procura de sentido (das acções,

das respostas textuais, dos ícones, dos símbolos, das imagens, das palavras ou das metáforas), a

função interpretativa é utilizada como um meio para construir uma análise literária. Aarseth sugere

que, quando as decisões levadas a cabo pelo leitor são baseadas na extracção de um significado,

esta função domina todas as outras (64) mas a função interpretativa não é usada apenas para extrair

um significado. Para além de ser associada à tarefa de compreender as “estratégias de figuração”

(Zuern) de um texto, esta função assumida pelo leitor permite efectuar decisões tendo em conta as

características semânticas e semióticas do texto (ou o significado de determinadas passagens ou

respostas textuais). Juntamente com a função textónica, permite ajustar a sua estratégia à resistência

(e exigência) do texto. A função interpretativa pode ainda assumir uma componente pragmática (o que

recorda a interactividade funcional de Zimmerman). O leitor tem de interpretar o resultado das

182 Aarseth refere que, quando ocorre a leitura de um cibertexto, o leitor está constantemente a ser lembrado de “estratégias inacessíveis e caminhos não tomados” e que o leitor pode não chegar a conhecer o resultado das suas escolhas (3) mas acrescenta que a inacessibilidade não pode ser confundida com ambiguidade. Contudo, esta inacessibilidade pode sugerir uma metáfora ou um significado em particular. Por exemplo, a frustração provocada pela impossibilidade de proceder à leitura total de Nippon e Dakota deixa entrever uma crítica à intervenção do leitor como co-produtor do texto. Como vimos, The Stanley Parable é um jogo/narrativa auto-reflexiva/ficção interactiva que boicota o poder de decisão do leitor. Mesmo quando a frustração das expectativas do leitor se torna num elemento central, a possibilidade de extrair uma mensagem ou um sentido não é totalmente inviabilizada.

152

suas acções para activar as funções (configurativa, textónica e explorativa) que possibilitam a leitura

de um texto.

O leitor não pode criar o texto, pode apenas suscitá-lo através de uma série de acções. Isto significa

que os textões são pré-existentes e o leitor desconhece a forma como eles se tornam escritões (ou

como eles se tornam visíveis). Num texto como Patchwork Girl, em que é pedido ao leitor que

costure a história/o corpo da rapariga, os textões adquirem um carácter ficcional e ilusório porque

permanecem como catalisadores de estados potenciais do texto e porque a forma como o leitor os

desperta é uma estratégia figurativa do texto. Eles são apresentados como se fossem manipuláveis

mas esta é apenas uma ilusão. Esta é mantida pelo esforço imaginativo e pelas diferentes funções

assumidas pelo leitor.

O esforço ergódico identificado por Aarseth está assim dependente do esforço imaginativo. Este é

considerado como o conjunto de operações levadas a cabo pelo leitor para produzir na sua mente

uma imagem mental do que lhe é transmitido. O esforço imaginativo também está relacionado com o

facto de o leitor ter de imaginar que o mundo apresentado foi permeado por si (ou seja, o leitor

tem de imaginar que está a conhecer e a percorrer esse mundo); que o esforço ergódico exigido pela

obra tem um impacto na mesma e que a sua participação na obra é significativa. Poderá ainda ter

de imaginar que a obra depende da sua colaboração para ser construída. Esta ampliação do trabalho

imaginativo do autor permite abordar o tema da co-autoria como parte da singularidade expressiva

e ficcional da obra e não como uma ferramenta teórica contra a entidade autoral ou como sinónimo

de interactividade. O esforço imaginativo, porque surge aliado a processos cognitivos complexos e às

funções desempenhadas pelo utilizador (ou ao esforço ergódico), permite tratar a “willing suspension

of disbelief” ou a imersão no texto como uma actividade dinâmica e não como uma actividade

acrítica ou passiva. A introdução deste parâmetro permite igualmente evitar que a leitura da ficção

digital esteja concentrada no esforço ergódico levado a cabo pelo leitor, uma tendência que, como aqui

demonstramos, impede que o texto seja visto em toda a sua imensidão.

O objectivo (travessia, consulta, amostragem, finalização, vitória, improvisação) e a posição do utilizador

(autonomia, mobilidade requerida e posicionamento) adicionadas por Eskelinen (41-46) podem ser

distribuídas pela função exploratória e configurativa do texto. A função exploratória, porque engloba o

conjunto de funções levadas a cabo pelo leitor para conhecer o texto, pode englobar a travessia,

consulta, amostragem, finalização e improvisação. No caso da vitória, esta é vista como uma

consequência das acções do utilizador e não como um objectivo central. Como sabemos, a leitura

de uma ficção digital, devido à produção de resistência, pode implicar também o fracasso e a

frustração dos objectivos do leitor. A vitória pode ser um objectivo provocado por um desafio

momentâneo mas, para além de existir a hipótese de o texto não responder da forma pretendida

153

pelo leitor, a vitória não é um objectivo central na leitura de um cibertexto. Ao considerar a vitória

como parte da função do utilizador discriminada por Aarseth, estaríamos a submeter o texto à intenção

e expectativas do leitor183. Só que o texto oferece uma resistência que nem sempre é superada pela

vitória de uma desafio.

A função configurativa, principalmente quando ligada a textos locativos, pode solicitar do leitor um

(re)posicionamento e mobilidade. Quanto à autonomia, a mesma não pode ser vista como uma

posição porque em nenhum momento o leitor é autónomo em relação à máquina ou ao sistema. A

única autonomia que o leitor preserva durante o contacto com o texto é o acto de abandonar a

leitura. No seguinte esquema, encontra-se explicitado o tipo de leitura exigido por uma ficção

digital:

Figura 1 – Elementos que constituem a leitura de uma ficção digital.

Todos os elementos deste gráfico efectuam um diálogo entre si. A título de exemplo, para

configurar um texto, o leitor terá de efectuar um esforço ergódico e assumir uma função configurativa mas

esta actividade não permanece restrita a essa função (ou à base do esquema). O leitor tem de levar

a cabo um função interpretativa para analisar o resultado dessa configuração. Ao alterar a configuração

183 Ensslin, tal como referido no segundo capítulo, referiu que o cibertexto “assume um poder sobre o leitor” porque é programado para funcionar autonomamente ou para proceder a uma auto-geração (2010, Ensslin apud Bell: 5).

função interpretativa

esforço imaginativo

esforço ergódico

função exploratória

função configurativa

função textónica

154

do texto o leitor poderá ter de ajustar ou encontrar uma nova estratégia para despertar os textões184

(função textónica). Este processo exige um esforço imaginativo, porque o leitor trabalha para manter a

ilusão que as suas acções têm impacto no texto. Por seu turno, o leitor não conhece o resultado da

sua função textónica, ou seja, não sabe quando, nem como, o textão é tornado permanente. O leitor

é mantido em contacto com o texto, não só através de um esforço ergódico, mas também através da

formulação de hipóteses sobre o que vem a seguir. O esforço imaginativo estende-se desde a

especulação até à necessidade de suspensão da descrença para imergir no mundo possível. Por seu

turno, a sua curiosidade e especulação acerca do resultado da função textónica, leva a que o leitor

deseje assumir novamente um esforço ergódico. Antes disso, o leitor terá de analisar o resultado das

suas acções através da função interpretativa. Isto quer dizer que, para reatar o esforço ergódico ou escolher

uma das funções (textónica, configurativa e explorativa), o leitor terá de ter accionado a função

interpretativa para analisar o resultado das suas acções. Como é possível ver através desta descrição,

o esquema aqui proposto não é hierárquico mas dinâmico. A leitura do texto pode ser descrita

partindo de qualquer uma das funções. A função interpretativa foi destacada e separada das outras

funções pela necessidade de sublinhar que o leitor tem de interpretar o resultado do seu esforço

ergódico (e das funções textónica, exploratória e configurativa) para continuar a ler o texto.

Aarseth refere que a função interpretativa está presente em todos os textos e canaliza a sua atenção

para outro tipo de funções do utilizador (64). O que pretendo aqui demonstrar é que, sendo assim,

a função interpretativa não deveria ser considerada como paralela a outras funções mas como resultado

e origem das outras funções do utilizador. Simultaneamente, proponho que o contacto com o

texto seja descrito, não como uma interacção física sem significado ou como um conjunto vazio

de respostas textuais, mas que tenha em conta o contacto cognitivo que é, por seu turno, gerado

pelo esforço ergódico levado a cabo pelo leitor. Este surge definido como um conjunto de acções

significativas levadas a cabo pelo leitor para aceder ao texto e não como uma propriedade

manifestada por textos que apelam à participação colaborativa do leitor. Já a interactividade, ao ser

considerada como cognitiva (e não como exclusivamente física), permanece relacionada com a

função interpretativa, esforço ergódico (e as funções do utilizador) e esforço imaginativo e não apenas com

acções físicas por parte do leitor ou reacções mecânicas por parte da máquina.

Fox Harrell referiu-se à construção de mundos imaginados e de fantasmas poéticos. A primeira

consiste na modelagem da realidade partindo de mundos subjectivos, ou seja, baseia-se na

construção de fantasmas que “veiculam uma imagética e informação suficiente para invocar uma

sensação coerente de um mundo” (Harrell, 2013: 76). A construção de fantasmas poéticos, por seu

184 Na verdade, a função configurativa poderá ter surgido como resultado da configuração textónica, isto é, o leitor poderá ter sido obrigado a encontrar uma estratégia para despertar os textões (ou que permitisse configurar o texto).

155

turno, centra-se na moldagem desses fantasmas para que exibam considerações estéticas centrais à

construção do significado. Ambas nascem do pensamento poético que nos permite contar

histórias, “vislumbrar os mundos imaginados pelos romances” e relacionar obras de arte com a

vida real. O autor refere que o pensamento poético nasce de “processos cognitivos” que dão lugar

aos seguintes fenómenos: “mental images, narrative, metaphor, analogy, parable, and indeed

phantasms185” (77). Quando o “pensamento poético” se refere a objectos que se parecem com os

do mundo real, Harrell refere-se a um pensamento “figurativo”. Também Joseph Tabbi chamou a

atenção para um elo entre ficção e cognição:

This is not a matter solely of objective falsification— although it is well known that

memories are largely inventions and a conscious lie, once told, over time can become

indistinguishable from truth in the liar’s mind. The fictional qualities of cognition go deeper

however than just making things up. There are structural similarities in the sense that, even

during the most ordinary acts of perception and experiencing, our minds continually

undergo processes of construction, revision, recognition, selective input, and self-

reflection. (Tabbi, 2010: 3)

A interactividade cognitiva permite abarcar todas estas componentes e englobar a imersão como uma

característica intrínseca de um texto. Esta será analisada com maior detalhe na próxima secção

deste capítulo. Para Zumthor, o discurso poético (ou o “literário”) depende de um confronto entre

recepção e performance. Referindo-se à ideia de recepção defendida por Wolfgang Iser, Zumthor

defende que “a maneira pela qual é lido o texto literário é que lhe confere o seu estatuto estético”

e que “a leitura se define, ao mesmo tempo, como absorção e criação, processo de trocas dinâmicas

que constituem a obra na consciência do leitor” (51). Zumthor refere-se ao leitor descrito pela

teoria da recepção como “uma simples entidade da fenomenologia psicológica” (52) e concorda

com a teoria da recepção no sentido em que esta defende que a leitura exige produtividade. Porém,

falta um elo com o corpo: “é preciso reintegrar, nesta ideia de produtividade, a percepção, o

conjunto de percepções sensoriais” (idem.). Zumthor descreve a leitura como um acto de absorção

e criação. Para além dos “efeitos semânticos de um texto”, Zumthor defende que é necessário ter

em conta “as transformações do próprio leitor, transformações percebidas em geral como emoção

pura, mas que manifestam uma vibração fisiológica” (53). A leitura é para Zumthor um acto

performativo que depende da intervenção do corpo. Segundo este autor, todos os textos poéticos

são performativos porque o leitor ouve o que eles dizem. A sua materialidade é apreendida pelo

185 Ruth Webb referiu-se a phantasma como uma imagem interna (112).

156

leitor durante a leitura e esta tem um impacto físico no leitor, pelo que a interpretação também

ocorre sob a forma de percepção:

Percebemos a materialidade, o peso das palavras, sua estrutura acústica e as reacções que

elas provocam em nossos centros nervosos. Essa percepção, ela está lá. Não se acrescenta,

ela está. É a partir daí, graças a ela que, esclarecido ou instilado por qualquer reflexo

semântico do texto, aproprio-me dele, interpretando-o, ao meu modo; é a partir dela que,

este texto, eu o reconstruo, como o meu lugar de um dia. E se nenhuma percepção me

impele, se não se forma em mim o desejo dessa (re)construção, é porque o texto não é

poético; há um obstáculo que impede o contacto das presenças. Esse obstáculo pode residir

em mim ou provir de hábitos culturais (tal como chamamos o gosto) ou de uma censura…

(Zumthor, 2007: 54)

Ryan pretende enaltecer a presença do corpo face à máquina, mas cingem o corpo à actividade dos

membros. Só que a colaboração do corpo pode ocorrer de várias formas. Por exemplo, o virtual

depende do sentido de visão. Como o sentido de tacto ainda não é completamente simulável186 e o

utilizador não consegue tocar objectos, a realidade virtual depende sobretudo da imaginação. A

presença do corpo tem de ser imaginada. Sem esta actividade cognitiva o leitor não pode mover-

se num mundo virtual ou ficcional.

Para efectuar a leitura sempre foi necessária a intervenção do corpo. As mãos sempre foram usadas

para abrir e folhear o livro. Os olhos sempre percorreram a página para que a informação fosse

traduzida em emoção. Segundo Zumthor, ler implica não só um acção visual, mas também um

“conjunto de disposições fisiológicas” como por exemplo a posição do corpo. Para Zumthor,

independentemente da posição e do objecto de leitura “os ritmos sanguíneos são afectados” (32-

33).

186 Para Don Ihde a tecnologia e a ciência baseiam-se sobretudo na visão e os média apenas conseguem efectuar “compensações miméticas” que permanecem dentro das possibilidades do audiovisual. Contudo, o autor refere que, fenomenologicamente, nós experienciamos os média de forma multidimensional e multissensorial. Para Ihde, o corpo está inscrito em todas as actividades. Embora possibilite uma experiência sensória superior, o anseio por incluir a totalidade do corpo em experiências de realidade virtual não foi conseguido pela tecnologia (Ihde, 2002: 8). Porém, no site do MIT surge representada uma tecnologia que permite tocar objectos à distância. Esta tecnologia é definida pelos seus autores da seguinte forma: “inFORM is a Dynamic Shape Display that can render 3D content physically, so users can interact with digital information in a tangible way. inFORM can also interact with the physical world around it, for example moving objects on the table’s surface. Remote participants in a video conference can be displayed physically, allowing for a strong sense of presence and the ability to interact physically at a distance” (Tangible Media Group, MIT, 2013). A apresentação do projecto pode ser consultada no seguinte endereço: http://tangible.media.mit.edu/project/inform/.

157

Era uma vez um mundo possível: o ficcional e o virtual

The world of literature is a universe in which it is possible to

establish whether a reader has a sense of reality or is the victim

of his own hallucinations.

Umberto Eco, On Literature

These new media objects keep reminding us of their artificiality,

incompleteness, and constructedness, They present us with a

perfect illusion only next to reveal its underlying machinery.

Lev Manovich, The Language of New Media

The need for illusion has not ceased to trouble the heart of

painting since the sixteenth century. It is a purely mental need,

of itself nonaesthetic, the origins of which must be sought in the

proclivity of the mind towards magic. However, it is a need the

pull of which has been strong enough to have seriously upset

the equilibrium of the plastic arts.

André Bazin, What Is Cinema?

Segundo Bolter e Gruisin, a World Wide Web exemplifica na perfeição o termo hipermediacia187. Já

a realidade virtual representa a lógica da imediacia transparente (Bolter e Gruisin, 2000: 161).

Segundo estes autores, os entusiastas da realidade virtual consideram que a imediacia da realidade

virtual provém da “ilusão de uma imersão tridimensional e da capacidade de interacção” (162). A

questão da presença colaborativa do utilizador e a convicção que é possível alcançar a transparência

do meio e alcançar uma experiência autêntica são expectativas depositadas na realidade virtual. Esta

foi considerada como o único meio tecnológico que conseguiria alcançar a imersão do utilizador

num mundo paralelo. Só que a realidade virtual, tal como a literatura electrónica, não surge

espontaneamente do vazio. O sonho de permear ou catalisar realidades e mundos paralelos não é

uma ambição recente. Drucker refere que, a partir do séc. X, existe uma preocupação em fornecer

uma tridimensionalidade à página. De forma a conseguir uma “ponte visual” entre o ornamento e

o texto, os desenhos tornam-se cada vez mais imbricados e complexos. É igualmente comum

recorrer-se ao espaçamento e ao jogo de texturas, bem como a padrões de folhagem que percorrem

187 Imediacia está relacionada com a transparência e ausência de mediação ou representação (71) ou com a noção que o medium poderia ser apagado e deixar o leitor “na presença dos objectos representados ou um sentimento que a sua experiência é autêntica” (idem.). A hipermediacia é associada à opacidade e à convicção que o conhecimento acerca do mundo é adquirido através dos média ou através da experiência de mediação proporcionada por estes. (idem.) A hipermediacia transforma a experiência do medium na experiência do real. A fusão entre ambas constitui a autenticidade da experiência (Bolter e Gruisin, 2000: 71).

158

a página para conferir ao leitor a ilusão de estar perante uma página animada (Drucker, 1999: 108).

Sendo assim, a página surge como um “universo dotado de vida” comparável ao ambiente

multimédia proporcionado pelo meio digital. A partir do séc. XIII, as ilustrações começam a

abandonar o foro decorativo e ornamental e começam a surgir separadas do texto mantendo um

poder narrativo autónomo: “Complex three-dimensional illusions of carving or decoration also

made their appearance which were very distinct from the earlier play of elements as a surface

pattern. In many cases the letters become autonomous, representational objects, fully formed

illusions on the page, rather than aspects of surface” (112). Como poderemos ver nesta próxima

secção, a ilusão de um movimento imersivo na obra de arte, construída através de uma experiência

sensória acrescida, é constatada em diversas formas de representação. A aproximação entre

espectador/leitor/utilizador e o objecto representado é provocada por um desafio dos sentidos

que envolve uma actividade cognitiva complexa (e não passiva) para manter essa ilusão.

Corpo imerso

Absence is absolute, but presence has degrees.

Gérard Genette, Narrative Discourse

Ryan salienta que a realidade virtual surge na continuidade de um processo de criação de

“tecnologias de ponto de vista” que começa com a introdução da perspectiva (Ryan, 2001: 54). A

diferença entre o cinema e a realidade virtual é que o corpo move-se e o espectador pode controlar

o ponto de vista: “In contrast to VR, the screen display does not offer three-dimensional

stereoscopic effects, VR is the only medium that combines the three properties of 360-degree

panoramic picture, three dimensional display, and a point of view controlled by the user” (idem.).

Ryan define o ciclorama e o panorama como os antepassados da realidade virtual (Ryan, 2001: 53)

mas o conceito de obra total descrito por Wagner é aquele que é frequentemente citado como uma

fonte de inspiração para a criação da obra de arte em ambiente virtual188. Só que, como Matthew

Wilson refere, esta seria construída através da distância entre audiência e obra de arte. Essa

distância, criada por uma localização estratégica da orquestra num fosso (místico) e por um duplo

proscénio, seria primordial para garantir uma imersão através da imaginação mas também um

confronto da audiência com a sua própria realidade:

188 Don Ihde refere-se à ambição de alcançar uma “totalidade virtual” (85).

159

It [abismo ou fosso místico] separated the zones of audience and performance by “making

the spectator imagine [the scene] quite far away” (…), and thereby reinforced the illusion

of a distant dreamworld on stage, entirely removed from the contingencies of everyday life.

Wagner intended these techniques at once to separate the audience from the spectacle, and

at the same time so entrance the audience that the fundamental distance between spectator

and spectacle would be overcome. The mystic gulf thus separated the real from the ideal

in order to cause the real to realize itself, its real self, in the ideal: the audience/spectacle

opposition at Bayreuth was enforced only for the sake of its elimination. (Smith, 2007: 32)

Smith referiu-se à componente cristalina e à componente icónica da obra de arte total. A face

icónica da Gesamtkunstwerk tem como finalidade esconder o seu funcionamento mecânico: “a

totalizing performance machine that aims to hide the mechanisms of its own production through

appeals to nature, to roots, to myth, to blood, to folk. The iconic Gesamtkunstwerk is light projected

into darkness, is phantasmagoria” (47). Já a componente cristalina da Gesamtkunstwerk, embora o

seu funcionamento seja ocultado, exibe o potencial da maquinaria como parte do espectáculo:

“totalizing performance that exposes and celebrates symbols of technology and mechanized

production (e.g. hyper-rational organization, electronic media, glass-and-steel, gadgetry), while

simultaneously hiding real labor beneath the veneer of a supposedly organic unity” (idem.).

A mecanização da produção da obra de arte e a industrialização da cultura foram temas explorados

por Walter Benjamin no texto “A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica”

(1936) e por Theodor W. Adorno em “Breves considerações acerca da indústria da cultura”

(1963)189. A participação do leitor ou espectador e o encurtamento da distância entre este e a obra

de arte é visto como um sintoma da introdução da máquina na produção e reprodução da obra de

arte. O cinema, segundo Benjamin, efectua uma “penetração” ou uma intrusão nos seus

espectadores. Para Benjamim, esta arte, amplamente influenciada pela intervenção da máquina,

deseja instituir uma visão imediada entre espectador e arte: “a visão não mediata da realidade

tornou-se a Flor Azul no reino da técnica” (228). A máquina é relacionada com o aparato militar e

o “disparar” da câmara é um projéctil que penetra o corpo do espectador. Este por sua vez, recebe

o cinema através da distracção e não através da atenção e contemplação. A câmara efectua uma

acção cirúrgica sobre a realidade através dos seus “operadores”. Ela interfere com a percepção

impossibilitando uma distância contemplativa. Segundo Benjamin, esta é substituída por uma

“recepção táctil”.

189 Neste texto, Adorno substitui o termo cultura de massas, criado juntamente com Max Horkheimer, pelo termo indústria da cultura: “Substituímos esta expressão por ‘indústria da cultura’ a fim de excluir, logo à partida, a interpretação que convém aos advogados daquela, ou seja, que se trataria de qualquer coisa como uma cultura que surge espontaneamente das próprias massas, a forma contemporânea da arte popular” (Adorno e Horkheimer, 2003: 97).

160

O destaque oferecido à fisicalidade e experiência sensória é frequentemente associado a uma

diminuição do espírito crítico. O mesmo é referido acerca da imersão. Como esta depende de uma

redução do cepticismo (ou redução da descrença) para que o leitor se sinta imerso na narrativa, ela

é associada a uma recepção acrítica da obra de arte. Bolter referiur-se a esta situação desta forma:

“Losing oneself in a fictional world is the goal of the naive reader or one who reads as

entertainment. It is particularly a feature of genre fiction, such as romance or science fiction”

(Bolter, 2001: 155). Por seu turno, a interactividade e a imposição de tarefas ao leitor por parte de

um texto dinâmico e multimodal, é associada a uma recepção distraída. Estas características são

frequentemente atribuídas a uma arte dedicada ao entretenimento ou a arte popular. Susan Sontag

referia que a arte já não se centrava na interpretação. As obras de arte haviam deixado de ser uma

“expressão individual e pessoal” e passaram a assumir a sua existência como um objecto (Sontag,

1986: 297). Sontag refere-se a uma nova sensibilidade e a uma forma de arte emergente que tem

como função a satisfação190 do espectador e não a sua formação e disciplina. A arte contemporânea

é, segundo Sontag, baseada em sensações e sentimentos:

The basic unit for contemporary art is not the idea, but the analysis of an extension of

sensations (Or if it is an “idea,”, it is about the form of sensibility.) Rilke described the artist

as someone who works “toward an extension of the regions of the individual senses”;

McLuhan calls artists “experts in sensory awareness.” And the most interesting work of

contemporary art (…) are adventures in sensation, new “sensory mixes.” Such art is, in

principle, experimental – not out of an elitist disdain for what is accessible to the majority,

but precisely in the sense that science is experimental. (Sontag, 1986: 300)

Artaud identificou uma “linguagem física concreta” destinada aos sentidos e independente do

discurso verbal. Esta é “puramente teatral” e tem em vista a satisfação sensorial do espectador (37).

Ela forma uma poesia dos sentidos e os pensamentos que estão para além da linguagem falada.

Esta é uma linguagem de palco que apela aos sentidos “assim com a linguagem de palavras apela à

mente” (38) e pode ser expressa pela música, dança, artes plásticas, gestos, intonação, arquitectura

e cenário. Artaud descreve um teatro que, tal como a Gesamtkunstwerk, engloba várias formas de

arte.

O teatro da crueldade imaginado por Artaud tem uma influência mágica sobre o espectador que é

executada numa “atmosfera de sugestão hipnótica onde a mente é afectada por uma pressão directa

dos sentidos” (125). Artaud refere-se ao desaparecimento do palco (que se estende ao teatro e às

190 Como veremos mais à frente este é um aspecto citado por vários autores na descrição de uma experiência de realidade virtual.

161

suas paredes) e à imersão e envolvimento físico do espectador num “constante banho de luz,

imagens, movimentos e barulhos” (idem.). Trata-se de uma criação total (93) que pretende efectuar

uma reunião entre corpo e mente, através dos sentidos. Artaud compara o teatro à alquimia. Porque

ambos lidam com o potencial, ambos são “artes virtuais” (48). Segundo Artaud existe uma

identidade entre a realidade virtual, onde o teatro se desenvolve, e o mundo ficcional e ilusório dos

símbolos usados na alquimia (49). A obra mistura-se com o sobrenatural e o virtual, envolvendo o

leitor na fusão dos próprios sentidos.

Em “Is there love in the telematic embrace?” (1990), Roy Ascott escreveu sobre a telematics para

designar o conjunto de comunicações em rede mediadas pelo computador entre utilizadores ou

instituições dispersas. Esta envolve a interacção entre seres humanos e “entre a mente humana e

sistemas artificiais de inteligência e percepção” (334). Para Ascott o mundo está em constante

interacção com o utilizador. O autor refere-se a novas formas e novos meios de expressão e a uma

tendência para juntar som, imagem e texto em ambientes interactivos , o que resulta numa “síntese

entre artes”. Ascott refere-se a uma Gesamtdatenwerk que transforma o observador em participante.

O “significado” é assim transformado no produto da interacção entre o observador e o seu

conteúdo está “num fluxo constante, de mudança e transformação interminável” (336). O

utilizador negoceia o significado fazendo com que a criatividade resida, não só no trabalho do

artista, mas também na sua percepção. Ascott sublinha a chegada de uma nova ordem na arte, a

ordem da interactividade e da ‘autoria dispersa’, bem como a emergência de um novo cânone: o

“cânone do imaterial e participatório” (339).

Na “simbiose entre humano e máquina” a percepção humana é para Ascott o produto de

negociação (o que recorda o processo de negociação descrito por Aarseth e por Eskelinen) e não

de uma recepção passiva. Porque estão interligados através da rede, os utilizadores tornam-se

participantes numa “acupunctura global” que constrói “um fluxo de data mundial” (342). Ascott

refere-se a uma arte à escala planetária formada através de um “telematic embrace” (344) e associa

o processo telemático ao desejo de alcançar a transcendência do corpo, mente e linguagem.

Para Oliver Grau, desde muito cedo havia a ambição de expandir o cinema para além do ecrã. O

autor considera o computador como uma das mais radicais inovações em ilusionismo da imagem

e aponta para uma tendência em concretizar “uma simbiose física entre ser humano e imagem”.

Através do computador executa-se uma “interpenetração osmótica” (165). Oliver Grau identifica

uma “expansão de imagens técnicas e abstractas que têm como objectivo envolver o maior número

de sentidos possíveis para concretizar um efeito estético” (idem.).

Tal como foi demonstrado no capítulo anterior, a interactividade surge frequentemente ligada à

participação do corpo na construção do texto. A imersão também apresenta uma relação

162

semelhante com a corporalidade. Ryan sugere que a oportunidade de agência física é um elemento

que permite distinguir entre a realidade virtual e o ciberespaço:

Once in a while one hears cultural critics emit the opinion that VR is a disembodying

technology (…) that VR replaces the body with a body image, thereby causing a Cartesian

mind-body split. This opinion is justifiable if under VR one understands ‘‘cyberspace’’ and

the imaginary geography of the Internet, where face-to-face encounters in physical meeting

places give way to conversations with strangers lodged in invisible bodies and hiding behind

digital avatars. (Ryan, 2001: 52)

No entanto, Bukatman sublinha que o ciberespaço contém uma estética de imersão baseada em

concepções físicas e fenomenológicas: “Cyberspace, with its aesthetic of immersion, maintains the

mathematical determinism of the coordinate system, but it superimposes the experimental realities

of physical, phenomenal, space upon the abstractions of this Cartesian terrain” (Bukatman, 1998:

153). Bukatman refere-se aqui ao ciberespaço descrito por Neuromancer, ou seja, o ciberespaço que

não foi ainda invocado por uma perspectiva sociológica. Já o ciberespaço acima descrito por Ryan,

é um ciberespaço tornado em instrumento de reflexão e que representa a fragmentação da

identidade provocada pela alternância entre o estado online/offline.

Já Manovich via a realidade virtual como uma fase na ambição de libertar o corpo das suas

constrições físicas. Graças a aparelhos cada vez mais diminutos, bem como à introdução da

tecnologia sem fios, seria possível “transportar connosco as nossas prisões”191 (Manovich, 2001:

114). Manovich refere-se à possibilidade de a realidade virtual envolver o corpo do utilizador e

atribui às tecnologias de representação anteriores a imobilização do leitor: “Alberti's window,

Dürer’s perspectival machines “the camera obscura”, photography, cinema – in all of these screen-

based apparatuses, the subject has to remain immobile” (109). Para Manovich, a realidade virtual

exige um papel mais activo por parte do utilizador: “the spectator is no longer chained,

immobilized, anesthetized by the apparatus that serves her ready-made images; now she has to

work, to speak, in order to see” (idem.). Contudo, para Manovich, a introdução da realidade virtual

não oferece um antídoto para esta imobilidade. No seu livro publicado no início do novo século,

The language of new media (2001), Manovich defendia que, embora o utilizador tenha que mover-se

no espaço físico para mover-se no espaço virtual, este ficava sempre preso à máquina (através de

fios ou sensores) tornando-se numa peça do próprio computador (110). Para Manovich, a realidade

virtual perseguia a mesma tradição de imobilidade dos outros sistemas de representação.

191 Ihde refere-se a “wired body cages” e a “face sucker goggles”, bem como a uma “moldura” imposta pelo ecrã (Ihde, 2002: 11).

163

Como se fosse possível: simulação e representação

Open your eyes, listen, smell, and feel – sense the world in all its

magnificent colors, depth, sounds, odors and textures – this is the

cinema of the future!

Morton Heilig, “The Cinema of the Future”

Yet in every plot there is an escape from chronicity, and so, in some

measure, a deviation from this norm of “reality”. When we read a

novel we are , in a way, allowing ourselves to behave as young

children do when they think of the past as ‘yesterday’(…).

Frank Kermode, The Sense of an Ending

A simulação é uma componente necessária para a realidade virtual. Esta produz uma imagem o

mais aproximada possível do objecto simulado para fornecer ao leitor uma sensação de presença

perante este. Porém, uma simulação pode ocorrer de diversas formas e não implica necessariamente

a produção de uma imagem que integra o leitor ou utilizador num mundo virtual. O seu valor

representacional é explorado por Eskelinen. De acordo com Eskelinen, as instâncias narrativas e

de história são construídas através da interpretação do discurso narrativo. No caso dos jogos, ao

leitor é exigido uma actividade configurativa. Contudo, segundo este autor, a actividade

interpretativa não é reduzida, mas exacerbada (277). Nos jogos, a interpretação está na base das

acções configurativas efectuadas pelo jogador. Para Eskelinen as acções configurativas e

interpretativas estão relacionadas e são inseparáveis. O jogador pode levar a cabo acções

interpretativas, por razões tácticas e estratégicas, sobre as suas próprias acções e recursos. Poderá

igualmente interpretar as acções, recursos, tácticas e estratégicas dos seus adversários. Para garantir

uma colaboração eficiente e vantajosa, poderá ter de interpretar as acções e recursos dos seus

colegas de equipa. Durante o jogo, terá de efectuar interpretações acerca da estrutura do jogo e os

desafios conhecidos, subsequentes ou decorrentes. Terá ainda de interpretar o comportamento dos

objectos simulados ou dinâmicos no mundo do jogo e ainda, se existente, o conteúdo ficcional das

representações do estado do jogo e dos eventos do jogo em busca de pistas (279). É através da

interface que o jogador pode fazer este tipo de interpretações, contudo, para Eskelinen, isto não

quer dizer que o ecrã seja inerentemente narrativo. Os jogos têm uma superfície semiótica dinâmica

e, por isso, um valor expressivo (280). Sendo assim, para este autor, não é apenas a literatura ou a

arte que têm um valor estético. Contudo, a capacidade de simulação do computador é diferente da

164

capacidade de representação manifestada pela literatura192. Calleja defende que a interactividade

não só não exclui como gera uma história através das interpretações efectuadas pelo leitor:

On the moment-by-moment level of engagement, a player’s interpretation of events

occurring within the game environment and his interaction with the game’s rules, human

and AI entities, and objects result in a performance which gives game environments their

narrative affordances. Interaction generates, rather than excludes, story. (Calleja, 2011: 115)

Ao contrário de Eskelinen, Calleja acredita que o jogo consegue manifestar “possibilidades

narrativas” mas Calleja refere-se aqui a uma sessão de jogo (que ocorre em tempo real), não a uma

história. Para este autor, os jogos também têm um valor representacional porque o jogador parte

das suas experiências com outros média: “Digital games are not only game systems but, more

importantly, are digitally mediated experiences that aim to satisfy the desires generated by movies,

literature, or free-ranging fantasy” (146). Aqui é necessário distinguir a função interpretativa do

conjunto de avaliações ou apreciações sobre o estado do jogo. Estas avaliações são efectuadas pelo

jogador para melhorar o seu desempenho ou para, de facto, ganhar o jogo. As interpretações a que

Calleja se refere não são destinadas a compreender uma representação de “eventos” ou a atentar

numa mensagem transmitida pelo texto. Ao acto interpretativo descrito por Calleja e Eskelinen

falta o contacto entre o leitor e um mundo imaginado, bem como a componente estética

manifestada pela obra. Eskelinen defende que, quanto maior a propriedade ergódica do jogo (ou

quanto mais é pedido do jogador), menos espaço é deixado para a ficção. Para este autor, o trabalho

ergódico efectuado pelo leitor não permite confundir as representações efectuadas por um jogo e

as representações integradas num filme:

To the degree these dynamic representations constitute a gameworld to be explored,

manipulated or even altered by the player, the similarities between these worlds and static

filmic and other representations of unexplorable and non-configurative “worlds” begin to

192 Eskelinen refere-se a uma falácia de representação: “a representational fallacy that conflates either narratives, stories, or both with events, actions, (re)presentations, fiction” (231). Este autor pretende adicionar ao modo dramático (imitar a acção) e ao modo narrativo (representar) a simulação como uma forma representacional (91). Para Eskelinen existem três tipos de representação: abstracta, estática e dinâmica. A representação abstracta é não-representacional porque não representa nada para além de si própria (Eskelinen, em reacção a Marie-Laure Ryan, oferece o exemplo do jogo Tetris). As representações estáticas são tudo aquilo que os jogos partilham com outras formas de arte, ou seja, as imagens paradas ou em movimento que representam eventos ou existentes, ficcionais ou não-ficcionais que permanecem as mesmas (em termos de ordem, duração, frequência) de uma apresentação para outra. As representações dinâmicas (simulação) de eventos e existentes ligam os jogos a simulações fechadas (que ocorrem do início ao fim de acordo com certas regras sem qualquer intervenção de actores ou jogadores humanos) e várias formas de arte generativa que podem ser ergódicas ou não.

165

radically diminish, while the differences between fiction and simulation as well as their

complex interplay gain more force. (Eskelinen, 2012: 331)

Contudo, o trabalho configurativo efectuado pelo leitor surge aqui descrito como parte da

expressividade da obra e não como uma actividade externa. Por seu turno, a interactividade é

tratada como uma dessas características expressivas e encontra-se dependente da função interpretativa

do leitor. Eskelinen não pretende centrar-se na extracção do significado efectuada pelo leitor

através da função interpretativa e por isso dissocia o trabalho ergódico da actividade de interpretação.

O que pretendo frisar é que o trabalho ergódico efectuado pelo leitor é uma actividade que antecede

e abre caminho para o acto interpretativo. Sem efectuar escolhas e sem configurar o texto, este não

é revelado ao leitor. Por seu turno, sem interpretar o resultado das suas acções, o leitor não pode

continuar a explorar ou configurar o texto. Aqui poderá parecer necessário distinguir entre dois

tipos de interpretação. A interpretação funcional, que trabalha sobre os dados e que permite ao leitor

efectuar uma configuração e organização do texto para que este possa ser lido, e uma interpretação

compreensiva, ou seja, uma interpretação que tem em conta a exploração do potencial figurativo do

texto ou a sua compreensão. Porém, a distinção entre as duas pode ser difícil de identificar (ou

tornar-se, na maior parte dos casos, redundante) porque a configuração do texto é tratada como

parte da sua estética. A função configurativa e a função exploratória poderão parecer associadas a cada

um deste tipo de interpretação: a configuração surge aliada à interpretação funcional e a

exploratória à interpretação compreensiva. Contudo, a distinção entre os dois tipos de

interpretação torna-se irrisório porque ambas as funções são assumidas pelo leitor tendo como

objectivo a compreensão do texto. Por seu turno, a função interpretativa engloba os dois tipos de

interpretação como se fossem um só. Para construir uma análise de uma obra de ficção digital que

envolva um esforço ergódico (explorar, configurar e tornar textões em escritões) é necessário activar a

função interpretativa, bem como investir um esforço ergódico e um esforço imaginativo.

Segundo Eskelinen, as simulações executadas pelo computador têm uma natureza reducionista em

relação ao sistema simulado. Para Eskelinen, a representação não está apenas ao alcance das artes

visuais ou da narrativa. O jogo tem igualmente um valor representacional que está associado à sua

capacidade de simular o mundo. De acordo com Eskelinen, existem três tipos de simulação: a

simulação feita através do computador que é autónoma em relação ao ser humano e pode tomar decisões

ou levar a cabo acções; a simulação humano-máquina, que tal como o nome indica, é feita através da

colaboração entre ser humano e computador (este pode assumir o papel de processador ou pode

apresentar um modelo/conjunto de modelos que são despoletados pela acção dos jogadores);

simulação completamente humana onde a máquina não tem qualquer intervenção (318). Eskelinen

pretende centrar a sua atenção no “poder das simulações como representações dinâmicas que criam

166

modelos críticos do mundo, do jogador e da relação entre os dois” (315). Adicionalmente, afirma

que o poder de simulação adicionado pelo computador não é um poder narrativo:

(…) the relations of games to the world should be articulated in terms of simulation and

model (with real or imagined references) and not in terms of themes, stories, and other

easily detectable surface elements, appearances, and possible similarities. In short, games

model dynamic behavior – of players, game worlds, and player to player relationships,

societies and social processes and practices (etc.) – instead of simply telling tales about

them. (Eskelinen, 2012: 315)

Contudo, como temos vindo a demonstrar, um jogo não é apenas visto como a matriz de acções

por parte do leitor ou de simulações do mundo efectuadas pelo computador. Os jogadores anseiam

por uma história ou, como vimos em The Stanley Parable, uma ideia que sustenha todas as suas

acções no mundo do jogo. A possibilidade de o jogo fornecer uma narrativa poderá ser uma

questão de perspectiva e de noção de narrativa. De facto, existem jogos que têm um narrador e

momentos de narração. Todos eles têm personagens e alguns permitem conhecer a sua

profundidade. Estes são alguns dos factores que podem levar a crer que um jogo tem uma narrativa.

Contudo, nem todas as concepções de narrativa permitem esta conclusão, principalmente a

concepção que associa a narrativa à linearidade e coerência. O potencial representacional de um

jogo é aqui visto como a sua capacidade de gerar uma ilusão e um mundo ficcional e não com o

conjunto de acções disponibilizadas ao leitor. Esta capacidade, como vimos, está directamente

ligada à interactividade, a qual (ela própria uma ilusão) permite que o jogador/leitor seja recebido

no mundo ficcional. A interactividade é simultaneamente tratada como uma ilusão gerada pelo

computador e como parte da componente figurativa do texto. Para manter a possibilidade de

interacção, o leitor tem de assumir um esforço imaginativo. O facto de o leitor ter de imaginar que a

interacção é possível oferece à interactividade uma componente ficcional. Quando é pedido ao

leitor que “dispare” sobre uma personagem, que “recolha” objectos ou que “vire” uma página

(como vimos em Inside), o leitor tem de efectuar um esforço imaginativo para concretizar essas acções.

Em The Stanley Parable, conhecemos uma sala intitulada “Mind control facility” onde cada

funcionário é vigiado através de câmaras instaladas no seu escritório (cada um deles é identificado

pelo número do seu gabinete) e monitorizado num ecrã gigante. A Stanley é oferecida a

possibilidade de desligar o sistema que vigia todos os seus colegas e de “ganhar o jogo”. Contudo,

como vimos no capítulo anterior, este não é um jogo convencional. A autoridade do jogador é

constantemente boicotada. Tal como é possível ler na sua apresentação, esta parábola convida o

jogador a dançar. Mesmo que o sistema ficcional seja desligado, o jogo não acaba e o computador

167

continua a gerar informação. Depois de desligar o sistema na sala “Mind control facility”, o jogador

é apresentado a um ecrã megalómano que revela uma paisagem natural. A paisagem é gradualmente

carregada pela máquina que preenche todos os pixéis da tela (e do nosso ecrã). Somos convidados

(ou Stanley é convidado) a entrar neste mundo. Situada para além dos limites do jogo, está uma

simulação de um real idílico, próximo da natureza193. No entanto, o jogador não pode explorar

livremente este mundo. Ele é revelado ao leitor para que ele perceba que, após uma simulação,

outra simulação é introduzida. De facto, esta cena recorda o que N. Katherine Hayles sublinhou

acerca do computador e sobre o Regime de Computação. A construção deste dispositivo é baseada em

sistemas complexos mas este não efectua apenas uma simulação desses sistemas: “computation is

envisioned as the process that actually generates behavior in everything from biological organisms

to human social systems” (Hayles, 2005: 19). Para Hayles, dada a influência do computador na

vida humana, ele “gera a realidade”194 (idem.). Sendo assim, de acordo com Hayles, o computador

não efectua uma simulação ou uma cópia virtual da realidade, nem o simulacro de Baudrillard. O

computador gera o mundo actual.

Para Wagner, a ilusão do cenário, aliado ao poder da orquestra e da dança, aproximaria o ser

humano da natureza, da arte e de si mesmo (Wagner, 2002: 8). Richard Wagner ofereceu uma

ênfase particular à pintura de cenários na sua visão de uma obra de arte do futuro. O pintor de

cenários seria o responsável pela integração das características da pintura e arquitectura no palco.

A transparência do meio era também um dos objectivos de Wagner que pretendia gerar uma obra

de arte como um todo orgânico. Contudo, segundo Smith, Wagner teria de introduzir mais

maquinaria para representar uma aproximação entre ser humano e natureza: “The business of the

Wagnerian Gesamtkunstwerk is never complete. The more it aims to realize nature, the more it must

utilize the machine, a vicious circle that produces a multiplication of blinders” (Smith, 2007: 39).

Tal como em The Stanley Parable, onde uma simulação é seguida por outra simulação, na obra de

arte total descrita por Wagner, a presença da máquina é impossível de apagar. A simulação

apresentada em The Stanley Parable recorda uma descrição de uma paisagem efectuada por Heilig:

193 Richard Wagner deu particular ênfase à pintura de cenários na sua visão de uma obra de arte do futuro. O pintor de cenários seria o responsável pela integração das características da pintura e arquitectura no palco. Para Wagner, a ilusão de cenário criado por este, aliado ao poder da orquestra e da dança, aproximaria o ser humano da natureza, da arte e de si mesmo (Wagner, 2002: 8). 194 Jaron Lanier, pioneiro na investigação dedicada à realidade virtual escreveu um livro/manifesto intitulado You are not a gadget (2011). No seguinte passo, Lanier salienta a capacidade de a tecnologia mudar o mundo e a urgência em implicar os utilizadores comuns na generalização desta: “We make up extensions to your being, like remote eyes and ears (web-cams and mobile phones) and expanded memory (the world of details you can search for online). These become the structures by which you connect to the world and other people. These structures in turn can change how you conceive of yourself and the world. We tinker with your philosophy by direct manipulation of your cognitive experience, not indirectly, through argument. It takes only a tiny group of engineers to create technology that can shape the entire future of human experience with incredible speed. Therefore, crucial arguments about the human relationship with technology should take place between developers and users before such direct manipulations are designed” (Lanier, 2011: 5-6).

168

Suppose we are standing on a hill top overlooking the countryside. First we are struck by

the huge sweep of the view before us. Then we notice the vivid green of the fields and the

sunshine. Then the silent expansion and rolling of a cumulus cloud entrance us. We feel a

warm gust of wind and our nostrils dilate at the smell of new-mown hay. Suddenly, our

ears sharpen as the shriek of a jet plane cuts the air. We cannot see it, but we linger on the

way its high-tone lowers in pitch and fades away. (Heilig, 2002: 249)

Nesta descrição, a máquina (representada por um avião) interrompe abruptamente a descrição de

um cenário idílico. A descrição efectuada por Heilig refere-se a uma experiência sensorial oferecida

pelo “cinema do futuro”. Para efectuar a descrição dessa experiência, Heilig recorre à ekphrasis.

Ruth Webb distinguiu a ekphrasis clássica da ekphrasis produzida pela literatura impressa. Se na

Grécia Antiga esta seria descrita como “um discurso que traz o objecto descrito vividamente

perante os olhos” (Webb, 2009: 14) e que implicava “um envolvimento imaginativo” (18), com a

introdução da imprensa a ekphrasis seria exclusivamente uma descrição poética de obras de arte

(31). A ekphrasis implicava igualmente uma leitura motivada pela “sensação de ser imerso numa

cena ou transportado a um momento passado” (19).

A função de “tornar visível” (“place before the eyes”) ou de tornar os ouvintes em espectadores

era assumida pela ekphrasis. O objectivo não seria apenas criar um “impacto visual” mas também

um “impacto emocional” (20). Embora Webb admita que a ekphrasis também pode envolver mais

do que o sentido de visão e por vezes se refira à enargeia como um produto ou finalidade da ekphrasis,

a autora distingue a noção de enargeia da ekphrasis através de um envolvimento de todos os sentidos

(22). Tal como a ekphrasis, o objectivo da enargeia é igualmente invocar uma cena vividamente.

Contudo, de acordo com uma descrição de Diónisos citada por Webb, a enargeia envolve as

seguintes funções: “This enargeia is a certain power to lead the things shown before the senses (…).

Dionysios claims that Lysia’s enargeia made the reader feel as if he was in the presence of the

characters themselves, even able to converse with them” (idem.). Webb acrescenta que Diónisos

descrevia-se a si próprio, não como um espectador distante, mas da seguinte forma: “as a

participant who could almost enter into the scene himself and converse with the characters”

(idem.). A participação do leitor e a interactividade com as personagens eram produzidas por (e

produziam) um estado imersivo. Este era fomentado, tal como foi referido por Webb, através do

envolvimento imaginativo e emocional, ou o que aqui é considerado como esforço imaginativo.

A vividez com que eram descritas as cenas seria um poderoso meio de garantir que o leitor sentiria

um efeito de presença numa cena descrita. A noção de ekphrasis teria mais a ver com o impacto no

leitor ou com alterações à percepção: “The distinction between ekphrasis and diēgēsis is therefore

169

not a question of the type of referent but resides in the effect on the listener.” (71). Webb distingue

a ekphrasis da diēgēsis através da noção de vividez : “An ekphrasis is distinguished from narration

(diēgēsis) by the quality of enargeia, vividness” (idem.).

Para Webb, a enargeia produzida verbalmente é uma ilusão e cria constantemente uma tensão entre

“presença e ausência”(103). O efeito de presença veiculado pela ekphrasis, é intitulado de metastasis

ou methatasis. Webb refere que este é mais do que uma alteração temporal. Para a autora este

proporciona a seguinte sensação: “the speaker is said to transport his audience in imagination back

or forward to the events in question, making use of the ability of enargeia to make them feel ‘as if’

they were present” (101). Oliver Grau considera que a arte cria ilusão de duas formas:

(…) first, there is the classic function of illusion which is the playful and conscious

submission to appearance that is the aesthetic enjoyment of illusion. Second, by intensifying

the suggestive image effects and through appearance, this can temporarily overwhelm

perception of the difference between image space and reality. (Grau, 2003: 17)

A capacidade de um meio enganar os sentidos leva um espectador a agir “como se” estivesse em

contacto com o mundo representado: “suggestive power may, for a certain time, suspend the

relationship between subject and object, and the ‘as if’ may have effects on awareness. The power

of a hitherto unknown or perfected medium of illusion to deceive the senses leads the observer to

act or feel according to the scene or logic of the images” (idem.). Segundo Grau, os media usam o

poder da sugestão para diminuir a distância entre observador e o objecto: “This is the starting point

for historic illusion spaces and their immersive successors in art and media history. They use

multimedia to increase and maximize suggestion in order to erode the inner distance of the

observer and ensure maximum effect for their message” (idem.).

Jonathan Steuer referiu-se à “vividez” e à “interactividade” como poderes representacionais

exibidos pela realidade virtual (Steuer, 1993: 10). A vividez é definida da seguinte forma: “the

representational richness of a mediated environment as defined by its formal features, that is, the

way in which an environment presents information to the senses. De acordo com Steuer esta é a

qualidade que confere ao meio a sua “transparência” (11). Ela contempla uma amplitude sensória

(número de dimensões sensórias apresentado simultaneamente) e a profundidade sensória

(resolução dentro de cada um dos canais perceptuais). Segundo o autor, a interactividade depende

de três elementos: rapidez ou a velocidade a que o input pode ser assimilado no ambiente mediado,

alcance ou número de possibilidades de acção oferecidas num dado momento e mapeamento, que se

refere à capacidade do sistema mapear as alterações ao sistema mediado de forma natural e

previsível (15). A interactividade e vividez são elementos fundamentais para a criação de

170

telepresença. No entanto, sem esforço imaginativo, é impossível compreender uma obra ou conhecer

um mundo virtual. Na verdade, a simulação está antes de mais ligada a uma actividade humana e

não a uma capacidade manifestada exclusivamente e intrinsecamente pelo computador. O ser

humano consegue projectar realidades paralelas recorrendo apenas à imaginação. Jan Simmons,

fazendo uso de humor, descreve como isso poderá ser feito:

Moreover, one doesn’t need joysticks, buttons or other input devices to feed a model with

variable parameters or “conditions.” In its technologically simplest form a simulation can

be run in the mind by imagining a certain situation (e.g., “throwing a ball at a narratologist”),

feeding this situation imaginarily with certain conditions (e.g., “balls can talk”), and then

see what happens (“narratologist waits until ball starts telling stories”). Languages even

have syntactical constructions for thought experiments like these, known as conditionals,

counterfactuals or hypothetical constructions (e.g. Fauconnnier, 1994). Neither is it

necessary that a simulation can be interactively manipulated in real time. (Simons, 2007)

A imaginação tem um papel fundamental na recepção de uma obra. A sua intervenção vai mais

além da dicotomia entre o real e o ficcional, o falso e o verdadeiro. Ela implica uma série de

processos cognitivos que ligam o leitor ao mundo real e envolvem corpo e mente na actividade de

leitura. Kant195 ligou a imaginação à intuição mas também à razão. Pelo que a imaginação, embora

associada à sensibilidade (Kant, 1998: 241) e apesar de ser apresentada como algo impossível de

observar (“a faculdade transcendente da imaginação”), ela é um instrumento operativo para

compreender o mundo e a obra de arte:

The imagination (as a productive faculty of cognition) is a powerful agent for creating, as

it were, a second nature out of the material supplied to it by actual nature. It affords us

entertainment where experience proves too commonplace; and we even use it to refashion

experience, always following, no doubt, laws that are based on analogy, but still also

following principles which have a higher seat in reason (and which are every whit as natural

to us as those followed by the understanding in laying hold of empirical nature). (Kant,

2007: 143)

195 Kant associa a a noção de génio ao poder mental da imaginação: “The mental powers whose union in a certain relation constitutes genius are imagination and understanding” (Kant, 2007: 145). A imaginação surge igualmente associada à originalidade e criatividade. No entanto, a imaginação não é aqui associada a estas características mas à actividade cognitiva levada a cabo pelo leitor.

171

Vilém Flusser refere-se igualmente à imaginação como uma forma de compreender o mundo que

se estende desde o mito à computação (ou à sintetização de imagens)196.

Reunidas através da ficção e do poder imaginativo do leitor, imersão e interactividade tornam-se

em elementos inseparáveis. Na literatura electrónica, a interactividade é concretizada ao nível físico

mas também ao nível cognitivo, através da imaginação e da interpretação. O leitor é encorajado a

suspender a sua descrença e a “acreditar” que a tarefa de, por exemplo, coleccionar objectos para

vencer um desafio é uma actividade real. As obras construídas por intermédio do computador

apelam à imaginação do leitor mas também são (re)criadas através da sua imaginação. A

interactividade não é apenas fruto da manipulação e contacto com uma interface mas também do

esforço imaginativo.

196 Flusser apontou a existência de uma inversão dos papéis da razão e da imaginação. Se a história é tecida através de uma tentativa constante de submeter a imaginação à razão (por este motivo ambas estão interligadas), hoje assiste-se a uma subserviência do texto em relação à imagem. Flusser refere-se a uma tecno-imaginação ou à capacidade de descodificar e codificar imagens (Flusser, 2002: 67-68).

172

E se fosse possível? – imersão e imaginação

Cyberspace is a habitat of the imagination, a habitat for the

imagination. Cyberspace is the place where conscious dreaming

meets subconscious dreaming, a landscape of rational magic, of

mystical reason, the locus and triumph of poetry over poverty,

of “it-can-be-so” over “it-should-be-so”. The greater task will

not be to impose science on poetry, but to restore poetry to

science.

Marcos Novak, “Liquid architectures in cyberspace”

There are millions of other what ifs. I don't want to know what

happened in any of them. I'll never say ‘What if’ again.

Isaac Asimov, “What if”

The problem with the real world, frankly, is that it is the only

one we have.

Eric S. Rabkin, Fantastic Worlds: Myths, Tales, and Stories

John A. Waterworth e Eva L. Waterworth salientam que a presença não pode ser confundida com

imersão nem com o “interesse ou envolvimento emocional com os conteúdos de um ambiente”

(Waterworth e Waterworth, 2003: 1). Waterworth e Waterworth referem que habitualmente

lidamos com dois tipos de informação, a concreta e a abstracta. A primeira provém do mundo que

nos rodeia e pode ser acedida directamente, dando origem a uma sensação de presença; a segunda

(informação abstracta) tem de ser concretizada mentalmente: “an imagined world is created from

abstract information, and such imagined worlds may be very vivid and emotionally engaging, but

they exist only mentally” (2). Os autores consideram que quanto mais concreta a apresentação,

maior a produção de presença. O mundo descrito num romance é para ambos os autores abstracto,

já o mundo construído através da realidade virtual é um mundo concreto. Os autores salientam

que, na realidade virtual, a informação é concreta porque o utilizador age neste mundo como o faz

no mundo real. Perante um livro, o leitor terá de efectuar um trabalho conceptual para produzir

uma construção mental (3). Os autores afirmam que a realidade virtual fornece uma experiência

igual para todos os utilizadores, tal como o mundo real, enquanto que perante um romance, a

informação pode não ser acedida da mesma forma por todos os leitores. Para Waterworth e

Waterworth, “podemos partilhar mundos externos, mas não podemos partilhar mundos

imaginados”. Contudo, uma das componentes da literatura é precisamente a produção e partilha

de mundos imaginados.

173

Para distinguir presença da imersão ou envolvimento emocional, os autores afirmam que a presença

tem uma componente biológica: “Presence is the feeling of being bodily in an externally-existing

world. It was designed by evolution to ensure that organisms attend to the things in their here and

now that might affect their survival” (4)197. Os autores referem-se a uma “consciência expandida”

que permite imaginar ou planear informação e que não constitui uma experiência de coisas e

eventos presentes. Esta consciência expandida permite “criar um mundo interno onde

suspendemos a nossa descrença” (4). A consciência nuclear (“core consciousness”), por seu turno,

é aquela que nos permite lidar com o aqui e agora. A experiência de um mundo externo é intitulada

“presença” e a experiência de um mundo interno é intitulada “ausência”. Embora um romance e a

realidade virtual consigam despertar no leitor/utilizador uma experiência emocional, ambas são

diferentes, porque o romance cria uma “ausência” e a realidade virtual depende do sentido de

“presença”. Para os autores, a “suspension of disbelief” é baseada numa presença imaginada e não

numa presença real (5).

Jonathan Steuer distinguiu presença de telepresença: “presence refers to the natural perception of an

environment, and telepresence refers to the mediated perception of an environment” (Steuer, 1993:

6). A realidade virtual é definida como um ambiente simulado ou real onde o indivíduo experiencia

telepresença (7). Steuer adverte que as características do meio e do utilizador poderão afectar a

sensação de telepresença:

Factors influencing whether a particular mediated situation will induce a sense of

telepresence include the following: the combination of sensory stimuli employed in the

environment, the ways in which participants are able to interact with the environment, and

the characteristics of the individual experiencing the environment. Thus, telepresence is a

function of both technology and perceiver. (Steuer, 1993: 10)

A “vividez” (ou a capacidade de a tecnologia produzir um ambiente mediado sensoriamente rico),

bem como a “interactividade” (ou o grau de influência dos utilizadores sobre a forma e conteúdo

do ambiente mediado) são “poderes representacionais da tecnologia” determinantes para a

produção de presença (10-11). Contudo, Steuer refere que o impacto desta varia conforme o

utilizador porque a produção de telepresença depende da “consciência do indivíduo”. Waterworth

e Waterworth falam de uma “presença mediada”: “Mediated presence is the feeling of being in an

197 Num artigo publicado em 2010, ambos os autores referem o seguinte: “The future won’t be so much about being in a mediated or physical reality, but about having different kinds of experience and ways of behaving, in new situations that combine both (Waterworth e Waterworth, 2010: 183). Os autores afirmam que a presença será estudada em “blended realities” ou entre o físico e o virtual, bem como de acordo com diferentes perspectivas, ou seja, incorporando a primeira, segunda e terceira pessoa (193).

174

external world, in the realization of which technology plays a role” (Waterworth e Waterworth,

2010: 193). Sendo assim, a ilusão de presença depende dos atributos da tecnologia mas também da

capacidade imaginativa e da performance física do leitor.

Calleja defende que os jogadores têm conhecimento que os ambientes virtuais são desenhados. Ao

contrário de Aylett e Louchart e da sua definição de informação concreta e abstracta, Calleja

defende que os estímulos proporcionados pelo mundo físico não são iguais aos proporcionados

pelo mundo virtual. Para este autor, a interpretação e a agência (ou a capacidade de executar acções

que afectam o mundo do jogo e os seus habitantes) têm um papel fundamental na criação de

presença (55). Calleja acrescenta que as capacidades de um meio ficam sempre dependentes da

imaginação: “Even if we argue that certain qualities of the medium and text in question afford such

an experience, the phenomenon remains within the domain of subjective imagination” (23). Don

Ihde refere que os “novos dispositivos aumentam as possibilidades de fantasia e virtualidade”

(Ihde, 2002: 83). Porém, a imersão é frequentemente colocada ao serviço da imitação do real através

da transparência do medium, como se a realidade virtual fosse uma substituição do mundo actual.

A realidade virtual é um reflexo das nossas ambições ou uma construção imaginária alimentada

pela tecnologia de ponta. Contudo, raramente é referida como uma forma de contar histórias ou

como instrumento de expressão artística.

Calleja, refere que existe uma diferença fundamental entre sentir-se presente num mundo virtual e

sentir-se presente num mundo descrito por um livro:

Book readers might imagine themselves within the space world described by a literary work,

but that world does not recognize them. On the other hand, game environments afford

extranoetic habitation by recognizing and reacting to the presence of the player. Books also

do not provide readers with the possibility of actually (not imaginatively) acting within the

worlds they describe. (Calleja, 2011: 29)

Segundo Caleja, a presença num mundo ficcional criada por um livro e a presença no mundo

ficcional criada por um jogo diferem por causa da hipótese de agência oferecida ao leitor. Só que

o “reconhecimento” do jogador por parte do mundo ficcional é catalisado pelo esforço imaginativo e

não é uma característica intrínseca de um jogo.

Como vimos anteriormente, o computador não interage mas reage às interpelações do leitor. Isto

significa que a reacção do computador não é dirigida “à presença” do leitor mas às acções

fomentadas ou às funções assumidas por este. Tal como o esforço ergódico de Aarseth, o esforço

imaginativo está relacionado com o facto de o leitor efectuar escolhas decisivas para a leitura do

texto. Contudo, o esforço imaginativo permanece centrado numa situação hipotética em que essas

175

escolhas seriam efectuadas de forma autónoma, bem como teriam um impacto na construção do

texto. Este tipo de esforço tem em conta o trabalho conceptual efectuado pelo leitor para

possibilitar a sua inclusão e imersão num mundo ficcional. O esforço imaginativo, que resulta da (ou

colabora na) concretização da interactividade cognitiva, permite a este interagir com personagens,

explorar um mundo paralelo bem como participar na construção de um texto.

Em vez de utilizar o termo imersão, Calleja pretende descrever o tipo de envolvimento do utilizador

no jogo. Para este autor existe um micro envolvimento (elementos que cativam o jogador durante o

jogo) e um macro envolvimento (elementos que fazem com que o leitor regresse ao jogo). Estes

produzem seis tipos de envolvimento: lúdico (que regras, objectivos, bem como as tácticas e

estratégias para atingir esses objectivos), cinestético (ligado a questões de agência, controlo e

movimento), espacial (exploração do mundo virtual e dos seus limites), partilhado (comunidades e

questões de colaboração, competição e coabitação), narrativo (os elementos da história

identificáveis no jogo) e afectivo (as respostas emocionais a um jogo). O micro envolvimento baseia-se

na atenção oferecida ao jogo no momento em que este decorre. O macro envolvimento (ou

envolvimento off-line) está relacionado com o mundo exterior e com as experiências que

antecedem uma sessão de jogo (disposição, por exemplo) ou sucedem o jogo a longo-prazo. Para

tal, contribuem os seguintes elementos:

(…) the feeling of belonging to a close-knit community, the formation of strategies and

plans that could be tried in upcoming sessions, interest in continuing to unravel a game

narrative or exploring a newly discovered part of the game world, the ambition to develop

one’s abilities and outperform others, or simply the desire to feel surrounded by a

beautifully rendered world of a desired setting (Calleja, 2011: 39).

O micro e o macro-envolvimento permitem definir o que mantém um jogador interessado num jogo

mas, como Calleja declara, a presença num mundo ficcional da literatura não é igual à presença

num jogo. Perante um jogo ou perante um texto ficcional, o leitor/utilizador deseja descobrir o

que acontecerá em seguida. Perante uma obra de ficção digital, a sua curiosidade, que é promovida

pelo carácter potencial do texto, impele-o a activar a função textónica ou a procurar incessantemente

uma forma de transformar textões em escritões. É a constante transformação do potencial em

actual que mantém o leitor concentrado num texto. Perante a ficção digital, o leitor poderá ter de

efectuar mais funções para além da interpretativa mas a transformação de textões em escritões não

é apenas efectuada através de um esforço ergódico mas também através de um esforço imaginativo.

Imaginar ou tentar prever o que vem a seguir são actividades identificadas em todos os tipos de

texto. No entanto, na ficção digital, estas actividades podem ser utilizadas como formas de reagir

176

eficazmente à transiência ou imprevisibilidade de um texto digital. O esforço imaginativo possibilita

simultaneamente uma recepção estética da obra.

Ruth Aylett e Sandy Louchart implementaram uma teoria narrativa da realidade virtual que passarei

a descrever. Para ambos os autores, a realidade virtual tem um potencial narrativo mas este não é

identificável através das mesmas concepções de narrativa aplicadas ao romance, filme ou televisão.

De acordo com os autores, a forma como uma história é apresentada ou contada varia entre média.

Tal como já foi aqui apontado cada medium tem características e limitações que são reflectidas na

forma como contam uma história. No caso da realidade virtual, os autores consideram que a

narrativa é produzida da seguinte forma: “the role of the subject (i.e. the user) to whom the

narrative is communicated is, in terms of interaction, ‘active’ in the unfolding of the narrative as

opposed to its ‘passive’ role in most of other classical narrative media (i.e. the spectator)” (Aylett e

Louchart, 2003: 3). Já aqui foi defendido que o leitor nunca tem um papel passivo. No entanto, o

que gostaria de salientar é que, enquanto defendem uma maior participação do leitor na narrativa,

Louchart e Aylett parecem esquecer que o leitor está imerso numa experiência de realidade virtual,

não a construir uma narrativa. Os autores referem que existe “uma narrativa comunicada ao

utilizador” mas ignoram que a mesma está a ser construída por este198. Sendo assim, urge perguntar

qual é a entidade ou de que forma é a narrativa comunicada ao leitor.

Louchart e Aylett vêem o enredo aristotélico como irreconciliável com a proposta da realidade

virtual (5) e pretendem oferecer uma maior liberdade ao utilizador. Os autores acreditam que uma

forma narrativa baseada em personagens terá o seguinte benefício: “this presents the double

advantage for the user of, on the one hand, taking part in a unique experience, and on the other,

acting freely without the constraints imposed by a plot centred approach” (idem.). A proposta de

Aylett e Louchart, em basear a narrativa nas personagens e não no enredo, permite acolher o

utilizador numa experiência onde ele tem um lugar de destaque. Os autores oferecem o exemplo

do Interactive Theater (IT): “In IT, the actors are usually given a certain amount of information

interactively by the audience, and then act ‘in character’; applying this material creatively. Narrative

emerges through the interaction between the different actors, who may themselves be advised by

a part of the audience” (6). Aylett e Louchart referem-se ao espectador como spectACTOR e

198 Roy Ascott (criador do Sensorama) refere-se a uma participação criativa por parte do leitor através de um feedback entre este e o artista. Isto faz com que a obra de arte permaneça num “estado perpétuo de transição” (Ascott, 2002: 98) cuja resolução depende do espectador. Ascott compara a relação entre artista e espectador a um jogo. Se antes o espectador perdia porque as suas acções eram pré-determinadas, agora o jogo nunca é ganho mas mantém-se em constante reformulação (idem.). Se antes o objectivo da arte era encontrar a harmonia e o equilíbrio através de uma recepção passiva, Ascott refere que a arte é agora “a more strident agent of change, effecting a jolt to the whole organism, a catalyst which sets up patterns of behavior, of thought and emotion, which are unpredictable in any fine sense” (idem.). Segundo Ascott, o artista pretende efectuar um diálogo com o espectador. Este é efectuado da seguinte forma: “to set feelings and ideas in motion, to enrich the artistic experience with feedback from the spectator’s response” (idem.).

177

atribuem a este um papel activo. Este espectador não assiste apenas à representação mas participa

na escrita do guião seguido pelo actores. Os autores referem que este modelo pode ser aplicado à

realidade virtual pela seguinte razão: “Participative forms such as IT defy in some ways the usual

conception of narrative as a storyline moving from pre-defined plot points to form a coherent,

interesting and entertaining narrative experience” (idem.). Contudo, não é possível ter o mesmo

tipo de controlo sobre os eventos nem o mesmo nível de interacção (o IT tem em vista

intervenientes humanos que conseguem responder eficientemente à aleatoriedade provocada pela

construção de um texto em tempo real) sobre um sistema de realidade virtual. Como é possível ver

na descrição de Aylett e Louchart, participação, interactividade e presença são necessários para o

desenvolvimento da narrativa produzida em ambiente virtual:

By participating, the user commits to the narrative in a way that a spectator cannot, and

rather than evaluating as detached observer, acts as engaged character. Thus, their personal

trajectory is as different in nature from that of a spectator as participating in a train crash

is from reading about it on the news later. As is said of some anecdotes intended to amuse

‘you had to be there’. ‘Being there’ is in our view the defining characteristic of VR.

(Louchart e Aylett, 2003: 8)

O tipo de narrativa que Aylett e Louchart pretendem aqui descrever é a narrativa “como um

processo” desenhado para proporcionar ao espectador uma experiência invulgar: “A narrative form

where, interactivity as well as user satisfaction, constitute a basis for the construction and unfolding

of a narrative, flexible enough in its articulation, to bring maximum satisfaction to the user (i.e. in

terms of experience, enjoyment and interest)” (8). A teoria construída por Aylett e Louchart sugere

a presença do leitor enquanto personagem como a única característica que permitiria ligar o texto

a uma narrativa. Contudo, esta característica não é suficiente para construir uma teoria da narrativa.

Embora os autores se refiram à existência de uma narrativa que é comunicada ao leitor, esquecem

que a mesma está a ser construída pelo próprio leitor. Na verdade, Aylett e Louchart referem-se à

possibilidade de oferecer a este uma nova experiência através de novas tecnologias ou à necessidade

de associar os conhecimentos produzidos na narratologia à realidade virtual. Porém, a construção

dos fundamentos de uma narrativa para a realidade virtual permanece adiada pelos autores.

Mundos alternativos

Marcos Novak, referiu-se à poesia como uma “linguagem líquida” que poderia ser aplicada à

experiência no ciberespaço. Este autor oferece ao ciberespaço uma componente estética utilizando

178

para isso a poesia: “poetic devices that allow an inflection of language to produce an inflection of

meaning. By push and pull applied to both syntax and symbol, we navigate through a space of

meaning that is sensitive to the most minute variations in articulation” (Novak, 2002: 277). Novak

considera que o ciberespaço é um espaço de múltiplas representações (278). A sua arquitectura

líquida é desmaterializada e altera-se constantemente. É uma arquitectura apenas indirectamente

tangível, constituída por relações flutuantes entre elementos abstractos (284-285).

Já Scott Bukatman salientou que a experiência no espaço electrónico é “real” porque o ecrã pode

ser permeado através da visão: “Vision permits an interface with the objects of the world, and thus

the emergence of thought and the presence of the self is a function of the simultaneous projection

and introjection that defines the act of vision. The visualization of electronic space thus

acknowledges the reality of an other space” (Bukatman, 1998: 136). A internet e a realidade virtual

são frequentemente associadas ao ciberespaço descrito pelo cyberpunk. Bukatman refere que a

palavra “cyberspace” se tornou numa representante da era electrónica (137). Este autor salienta

que a ficção científica é em geral baseada em inovações tecnológicas (ou extrapolações destas) e

que depende de um “unforeseeable twist”, como por exemplo, uma máquina do tempo, pelo que

a diegesis da ficção científica é normalmente “desconhecida, pouco clara e ou inconsistente” (142).

A narrativa da ficção científica depende de uma proposta “what if”, isto é, a ficção científica

expande os limites do que é credível e verossímil e propõe constantemente ao leitor que imagine

se uma determinada situação fosse possível. O conto de Isaac Asimov “What if” foi criado em

torno da seguinte pergunta: “Norman, what if you had been one minute later at the streetcar corner

and had taken the next car? What do you suppose would have happened?” (Asimov, 1990: 490).

As alternativas são apresentadas através de um dispositivo operado por um homem desconhecido.

O conto “What if?” demonstra como a ficção científica cria mundo possíveis.

Em Narrative as virtual reality (2001) Ryan acredita que os computadores foram munidos do poder

de criar “mundos artificiais” (25). Também Manovich referia o seguinte: “The creation of illusions

has been delegated to optic and electronic machines” (Manovich, 2001: 177). Este autor acredita

que cada cultura gera as suas formas de ilusão. No entanto, adverte que, com a introdução dos

novos média, as teorias de análise do “ilusionismo visual” têm de ser expandidas. Se antes a atenção

era oferecida à “aparência visual”, as novas tecnologias permitem a interacção física e a contribuição

de outros sentidos para além da visão, bem como a simulação de objectos, fenómenos naturais e

seres vivos (181-182).

Segundo Ryan, o “virtual” tornou-se numa metáfora para a “fuga da tecnologia para o

desconhecido” (26). Ryan refere que a partir do séc. XVIII e XIX, o virtual torna-se o ficcional e

o inexistente (27). O uso moderno da palavra “virtual” situa-se entre dois polos: “o falso” (que está

179

ligado à noção de simulacro sugerida por Baudrillard) e “o potencial” (uma acepção que é atribuída

a Pierre Lévi). Para Ryan, a teoria de Baudrillard surge como redundante pois pode ser defendido

que já vivemos imersos em cópias da realidade que nós próprios construímos (32). Já Pierre Lévi

vê o virtual como o potencial ou aquilo que antecede a concretização de uma acção. Algo entre

imaginação e concretização. A linguagem, por exemplo, tem uma face virtual e uma actual:

Whereas the creation of language is the result of the process of virtualization, its use in an

act of parole is an actualization that turns the types into concrete tokens of slightly variable

phonic or graphic substance and binds utterances to particular referents. Even in its

manifestation as parole, however, language exercises a virtualizing power. Life is lived in

real time, as a succession of presents, but through its ability to refer to physically absent

objects, language puts consciousness in touch with the past and the future, metamorphoses

time into a continuous spread that can be travelled in all directions, and transports the

imagination to distant locations (Ryan, 2001: 38).

O virtual enquanto potencial não é gerido pelas regras do real mas pelas regras dos mundos

possíveis criados pelo poeta ou autor. O virtual como potencial é igualmente associado por Ryan

ao papel do leitor enquanto destinatário da narrativa: “This actualization requires of the reader a

filling in of gaps and places of indeterminacy that can take a highly personal form, since every

reader completes the text on the basis of a different life experience and internalized knowledge”

(44). Segundo Wolfgang Iser, os textos ficcionais têm uma “conectividade” que é interrompida por

espaços em branco199. Estes são preenchidos pelo leitor através de “decisões selectivas”. Os

espaços em branco correspondem a possibilidades: “in fictional texts the very connectability

broken up by the blanks tends to become multifarious. It opens up an increasing number of

possibilities, so that the combination of schemata entails selective decisions on the part of the

reader” (Iser, 1980: 184). A conectividade referida por Wolfgang Iser pode ser adaptada à proposta

de esforço imaginativo aqui apresentada. É através do estabelecimento de associações (ou de “alien

associations”) e da exploração da possibilidade de sentido que o leitor compreende um texto. Num

texto digital ou num cibertexto, o leitor tem de lidar com a imprevisibilidade dos textões (função

textónica). Estes são invocados por si mas o leitor não chega a conhecê-los. Quando eles surgem no

ecrã, eles já se metamorfosearam em escritões. Esta característica mantém um texto digital num

estado permanentemente potencial. Contudo, a constante emergência de significado não é possível

199 A existência de espaços em branco por preencher foi relacionada por Rita Raley (citada no segundo capítulo desta tese) com a volatilidade e alegada imaterialidade do texto digital. Aqui relaciono esta propriedade ao carácter potencial da ficção digital e à ilusão de o leitor poder participar na construção do texto.

180

apenas em textos digitais. O leitor não sabe o que irá suceder na próxima página. Segundo

Zumthor, os espaços em branco “constituem um espaço de liberdade ilusório” que apenas pode

ser ocupado temporalmente. Para Zumthor, o sentido tem um “existência transitória e ficcional”

(Zumthor, 2007: 54). Cada leitor pode “concretizar” o mundo de forma diferente. Ryan referindo-

se ao trabalho de David Lewis, tem em consideração a possibilidade de existência de “vários

mundos textuais” (44). A autora salienta que, para Lévi, o virtual como potencial “não só representa

o modo de existir do texto literário mas também o estado ontológico de todas as formas de

textualidade” (45). Após ser escrito, o texto permanece num estado virtual até ser despertado pelo

leitor. Ryan refere que isto não está apenas relaccionado com a interpretação de um texto, mas

também com uma simulação efectuada pelo leitor, através da imaginação:

In the case of texts, the process of actualization involves not only the process of ‘‘filling in

the blanks’’ described by Iser but also simulating in imagination the depicted scenes,

characters, and events, and spatializing the text by following the threads of various thematic

webs, often against the directionality of the linear sequence. (Ryan, 2001: 45)

Segundo Ryan, o texto já é um espaço onde o virtual tem lugar, mas a tecnologia electrónica parece

ter evidenciado uma nova faceta: “As a generator of potential worlds, interpretations, uses, and

experiences, the text is thus always already a virtual object. But the marriage of postmodernism and

electronic technology, by producing the freely navigable networks of hypertext, has elevated this

built-in virtuality to a higher power” (45-46). Ryan considera que entre o texto “como uma colecção

de sinais escritos pelo autor” e o “texto construído mentalmente pelo leitor” existe um outro texto:

o texto presente no ecrã. Citando Lévi, Ryan refere que o hipertexto torna-se numa “matriz de

textos potenciais”. Contudo, como foi acima demonstrado, a literatura impressa, embora apresente

os escritões e textões ao mesmo nível, também tem uma componente potencial. Como foi possível

ver através da obra de Isaac Asimov, a pergunta “what if” pode suscitar na mente do leitor mundos

possíveis. O que aconteceria se o protagonista chegasse um minuto atrasado? A ficção científica

depende desta pergunta para poder apresentar ao leitor hipóteses pouco prováveis, como por

exemplo: “e se a viagem no tempo existisse?”. Perante o ambiente digital, o leitor é frequentemente

levado a agir através de uma hipótese suscitada pela pergunta “what if”. A interactividade é aqui

tratada como ficcional200 porque o leitor é convidado a imaginar o que aconteceria se o computador

efectuasse um diálogo com ele e respondesse às suas intervenções. É esta convicção (bem como o

200 Emerson atribui, na introdução do seu livro, um poder ilusório aos recursos tecnológicos: “magic-sleights of hand that disguise how closed our devices are by cleverly diverting our attention to seemingly breathtaking technological feats” (Emerson, 2014).

181

desejo de despertar textões para satisfazer a sua curiosidade) que permite considerar o texto ou o

computador como interactivo. Contudo, o contacto entre ambos é integrado no mundo actual, isto

é, é possibilitado por respostas sensórias, processos cognitivos e tecnologia que têm lugar no

mundo actual.

Ryan considerou a realidade virtual como a concretizadora de uma comunicação entre mentes ou

através da “linguagem dos anjos” (113). Partindo de textos de entusiastas e pioneiros da realidade

virtual, refere-se a um gradual desaparecimento do computador. As frases citadas por Ryan

demonstram o optimismo e expectativas, bem como o efeito da imaginação na produção de

tecnologia. Pimentel e Teixeira, Frank Biocca, Gabriel Ofeisch e Jaron Lanier misturam avanços

tecnológicos com imaginação: “When the screen disappears, and you can see an imaginary scene...

then you are in VR” (1994, Ofeisch, apud Ryan: 113). Ryan afirma que a questão não é tornar o

mundo virtual em real, mas construir um mundo que seja suficientemente credível para criar a

mesma ilusão oferecida por um romance: “The question isn't whether the created world is as real

as the physical world, but whether the created world is real enough for you to suspend your disbelief

for a period of time . This is the same mental shift that happens when you get wrapped up in a

good novel or become absorbed in playing a computer game” (Ryan, 1994: 114).

Alice Bell distinguiu os mundos ficcionais dos mundos possíveis identificados pela filosofia. Eles

referem-se a uma realidade alternativa ou hipotética apoiada nas acções das personagens: “Fictional

texts describe both events which are presented as facts as well as alternative or hypothetical states

of affairs which are generated by the hopes, fears, wishes, dreams and so on of characters” (Bell,

2009: 23). Para esta autora um texto ficcional não cria apenas um mundo possível mas um universo

que funciona de acordo com as próprias regras. David Herman identificou duas formas de catalisar

mundos possíveis. A estratégia exofórica relaciona o mundo da história a detalhes do ambiente no

qual a interacção comunicativa tem lugar. A estratégia endofórica envolve a construção, mais ou

menos detalhada, de um modelo mental do domínio narrativo (Herman, 2013: 109). A primeira

forma de catalisar mundos pode ser relacionada com a comunicação face-a-face201. Na segunda

estratégia, o leitor terá de efectuar um modelo ou uma imagem mental do que é descrito.

Relacionado com o esforço imaginativo está a formação de uma imagem mental do que é narrado.

Contudo, a ficção digital nem sempre inclui uma narração. De facto, esta pode apresentar um

mundo ficcional através da fotografia e vídeo, dispensando uma imagem mental ou o recurso à

201 O computador permite uma comunicação face-a-face mas se relacionarmos esta forma de catalisar mundos à ficção digital somos confrontados com a impossibilidade de distinguir leitor de co-autor. Porém, se relacionarmos a situação comunicativa com o contacto entre leitor e narrador/obra, a estratégia exofórica poderá referir-se à comunicação extradiegética entre estes, ou seja, quando o narrador se dirige ao leitor ou quando a obra exige que o leitor pratique acções no mundo actual. Em La Disparue, por exemplo, o leitor terá de consultar o Goggle Maps ou consultar a página ficcionada de uma das personagens.

182

ekphrasis. Nesse caso, o esforço imaginativo permanece centrado na condição provisória do texto e na

possibilidade de transformação de textões em escritões. Para além do que é verossímil e ilusório, a

ficção digital encontra-se associada ao que é potencial.

Para ler um texto ergódico será necessário, tal como Aarseth constata, um “salto de fé” (180).

Aarseth descreve a obra de arte ergódica bem sucedida da seguinte forma: “The successful ergodic

work of art maintains tension and excitement while providing a path for discovery, a coming into

focus of a didactic of the design and hidden principles at work in the work” (179). Aarseth refere-

se aqui ao funcionamento da obra ou à componente auto-reflexiva que torna manifesta os

mecanismos que a sustêm. Nos jogos de computador, este acto de “tornar claro” é um princípio

do design e uma parte necessária da experiência do jogador. Já em obras como Afternoon (ou em

obras de ficção digital), Aarseth constata a existência de uma componente ficcional e ilusória: “In

others again, such as Michael Joyce’s Afternoon, it may be imaginary but still a necessary illusion for

the reader’s construction of narrative” (idem.). O que pretendo aqui comprovar é que as obras

ergódicas estão ligadas a uma componente ficcional e ilusória que depende do esforço imaginativo para

serem compreendidas. A introdução do esforço imaginativo no esquema atrás apresentado permite

que as obras não sejam observadas apenas ao nível do esforço ergódico e passem a ser compreendidas

através da imaginação e da função interpretativa que, para além da possibilidade de uma análise

hermenêutica, tem em conta o conjunto de processos cognitivos levados a cabo pelo leitor. Como

esforço ergódico e esforço imaginativo estão interligados, as acções físicas e processos cognitivos, cuja

relação tem sido ignorada pela tónica oferecida à interactividade física, surgem como inseparáveis.

Por seu turno, o esforço imaginativo está ligado à possibilidade de ser conferida ao leitor a sensação

de imersão, graças a uma “willing suspension of disbelief”. Embora frequentemente citada, a

“suspensão da descrença” tem sido conotada com a redução do espírito crítico ou com a satisfação

imediata das expectativas do leitor/utilizador. Só que a imersão surge associada a um trabalho

cognitivo (ou interactividade cognitiva) levado a cabo pelo leitor. Este trabalho estende-se desde a

configuração do texto até ao acto interpretativo. O esforço imaginativo permite que a imersão não seja

considerada como uma tarefa ligeira ou desatenta e surja ligada à necessidade de concentração para

entrar num mundo possível. Em suma, a imersão surge como resultado da concentração mas

também desta “suspensão da descrença” que aqui é vista como um acto voluntário do leitor (que

não é construtor mas reconstrutor) para conhecer o mundo ficcional através da sua imaginação.

A capacidade de o computador gerar mundos possíveis é observada por N. Katherine Hayles. A

partir de elementos mínimos e discretos (ou de um diálogo entre 0 e 1), o computador invoca

possibilidades virtuais. Na ficção hipertextual, esta geração de mundos possíveis é expressa pela

capacidade de memória e processamento do computador:

183

(…) the strategy of evoking "virtual" possibilities happens not only on the level of the

individual word but at the narrative level where different strands, outcomes, and

interpretations mutually resonate with one another. This richness is possible, of course,

only because all these possibilities are stored in the computer, available to be rearranged,

interpolated, followed or not. (Hayles, 2005: 53)

Para Alice Bell, o mundo actual (o sistema de realidade, segundo Ryan) é acompanhado de vários

mundos possíveis. Um texto literário é igualmente rodeado por esta pluralidade de mundos. A teoria

dos mundos possíveis converte as discussões sobre a representação mimética da realidade ou sobre

a natureza fictícia de um texto, numa análise que tem em conta a existência de diversas realidades

paralelas e diferentes planos ontológicos202. Por seu turno, também tem em conta o potencial da

ficção.

Lubomír Doležel descreve os mundos criados pela literatura da seguinte forma: “Fictional worlds

of literature (…) are a special kind of possible world; they are aesthetic artefacts constructed,

preserved, and circulating in the medium of fictional texts” (Doležel, 1998: 16). Para Doležel, o

leitor não tem qualquer papel colaborativo na criação do texto mas reconstrói um mundo criado

pelo autor através de uma apropriação:

Readers access fictional worlds in reception, by reading and processing literary texts (…)

possible-worlds semantics insists that the world is constructed by its author and the reader’s

role is to reconstruct it. The text that was composed by the writer’s labors is a set of

instructions for the reader, according to which the world reconstruction proceeds. Having

reconstructed the fictional world as a mental image, the reader can ponder it and make it a

part of his experience, just as he experientially appropriates the actual world. The

appropriation, which ranges from enjoyment through knowledge acquisition to following

as a script, integrates fictional worlds into the reader’s reality. (Doležel, 1998: 21)

202 Bell refere-se à existência do mundo actual como aquele a que pertencemos (“o centro do nosso sistema de realidade”). Os mundos possíveis são domínios ontológicos que representam alternativas ao “mundo actual” e são criados através de projecções, desejos, medos, e sonhos dos habitantes deste mundo. O mundo textual actual é uma das formas de mundo possível que é descrito e criado por um texto ficcional. As personagens deste texto ficcional pertencem ao mundo textual actual e os mundos possíveis textuais estão ligados a este. Ele é o centro do universo textual (ou um sistema modal construído por um texto). Os mundos possíveis textuais e o mundo actual textual pertencem ao universo textual. Ambos são vistos como alternativas ao que é dado como facto na narrativa. Os mundos possíveis textuais são gerados pelos processos mentais das personagens, tal como desejos, sonhos e projecções. Eles são alternativas ao “curso actual de eventos” (Bell, 2012: 25).

184

John Gibson sugeriu uma colaboração entre leitor e autor executada através da imaginação:

“Literary works generate (…) the fictional worlds they inhabit in tandem with the reader, by

presenting their language as in effect a recipe for the imagination. It is through this that a text that

would otherwise remain a continuous string of empty representations is given substance” (Gibson,

2007: 131). O esforço imaginativo é investido para conferir substância a esses mundos. Na literatura

electrónica, isto não é apenas efectuado através do poder sugestivo de um texto, nem através de

um exercício de apropriação mas através do esforço ergódico que surge aliado ao esforço imaginativo. Ryan

refere-se a dois tipos de resposta por parte do leitor: “The reader produced by the electronic reading

machine will therefore be more inclined to graze at the surface of texts than to immerse himself in

a textual world or to probe the mind of an author” (Ryan, 2001: 47).

O que Ryan defende aqui é que, para recriar imersão, é necessário um texto coerente baseado num

desfecho ou no recrudescer da acção. Para além disso, Ryan refere-se ao papel do autor como uma

função que seria subvertida por uma estrutura multilinear e pelo carácter transgressivo do texto.

Só que a ficção digital não tem apenas como objectivo a redução do papel do autor. Para além

disso, como temos vindo a demonstrar, é possível obter imersão em textos amplamente

fragmentados e que manifestam um nível acrescido de interactividade.

185

Leitura deambulatória – a frustrar expectativas desde 1987

For as much as we seem enamored by the possibilities of digital

media, we seem just as soundly dissatisfied with its current state.

(…) frustration with the lack of cultural sophistication in the

gaming industry; frustration with the limitations of current

technology; frustration with a lack of critical theory for properly

understanding the medium. Perhaps frustration is a necessary

part of the process.

Eric Zimmerman, “Narrative, Interactivity, Play, and Games”

Interface, like any other component of computational systems,

is an artifact of complex processes and protocols, a zone in

which our behaviors and actions take place. Interface is what we

read and how we read combined through engagement. Interface

is a provocation to cognitive experience.

Johanna Drucker, “Humanities approaches to interface theory”

No subcapítulo anterior foi demonstrado que os termos “interactividade” e “imersão” têm uma

componente ilusória ou ficcional. Ao proceder a este retrato destes dois termos, ambos os

conceitos foram abordados como parte da expressividade do texto e não como adereços da ficção

digital. Neste último subcapítulo descreverei a leitura de uma obra de ficção digital como

“deambulatória”. O esforço ergódico efectuado pelo leitor obriga a que este distribua a sua atenção por

várias tarefas exigidas pelo texto. Contudo, após descrever a interactividade e imersão como duas

características fundamentais do meio, passarei a definir as mesmas como parte de um tipo de leitura

errática, promovida pela curiosidade do leitor mas também pela constante frustração203 das suas

expectativas.

203 O ano de 1987 corresponde à data em que foi criada Afternoon: a story por Michael Joyce. Porém, esta obra apenas terá sido publicada, através do programa Storyspace em 1990. Afternoon é frequentemente citada como a primeira hiperficção electrónica.

186

Atenção distribuída

Again, the only place to search is in the mind of man. We must

try to learn how man shifts his attention normally in any

situation.

Morton Heilig, “The Cinema of the Future”

O efeito de choque do cinema, que, como qualquer efeito de

choque, exige ser amortecido por um esforço de atenção

intensificado.

Walter Benjamin, “A obra de arte na época da sua possibilidade de

reprodução técnica”

Hayles referiu-se à close reading como o tipo de leitura predilecta dentro dos estudos literários.

Contudo a autora considera que este tipo de leitura poderá vir a ser substituída por outros tipos de

leitura. O meio digital (“digital reading”) poderá estar a provocar a necessidade de um novo tipo

de leitura identificado por James Sosnoski: a hiperleitura. Hayles salienta que Sosnoski definiu este

tipo de leitura como “direccionada pelo leitor e assistida pelo computador” (Hayles, 2012: 62). Esta

está associada às actividades de procurar ocorrências, filtrar palavras chave, skimming, fragmentar,

pecking (retirar itens de um texto longo) e hiperligar. Hayles acrescenta a este conjunto de actividades

a justaposição (de janelas, para ler vários textos) e scanning (ler superficialmente um texto para

localizar pontos de interesse). À semelhança da “recepção distraída” identificada por Benjamin, a

carga cognitiva sobre o leitor leva a que este queira efectuar uma leitura de skimming ou uma leitura

rápida (saltar passos) porque a quantidade de informação é excessiva. Para Hayles, a hiperleitura

tornou-se fulcral num ambiente sobrecarregado de informação como o proporcionado pela World

Wide Web pelas seguintes razões: “It enables a reader quickly to construct landscapes of associated

research fields and subfields; it shows ranges of possibilities; it identifies texts and passages most

relevant to a given query; and it easily juxtaposes many different texts and passages” (62).

Hayles refere que somos munidos de uma memória de trabalho e uma memória a longo prazo. A

capacidade da primeira é limitada mas a memorização depende da transferência da informação da

memória de trabalho para a memória longa. A leitura online e do hipertexto aumenta a carga sobre

a memória curta e dificulta a capacidade de memorização. Já a literatura linear promove o seguinte

resultado:

187

With linear reading, by contrast, the cognitive load is at a minimum, precisely because eye

movements are more routine and fewer decisions need to be made about how to read the

material and in what order. Hence the transfer to long-term memory happens more

efficiently, especially when readers reread passages and pause to reflect on them as they go

along. (Hayles, 2012: 64)

Hayles refere-se a dois tipos de atenção. A atenção profunda é essencial para responder a fenómenos

complexos como teoremas matemáticos, obras literárias exigentes e composições musicais

complexas (69). A hiperatenção será necessária para alternar entre diferentes “fontes de informação”

ou mover-se rapidamente entre “diferentes tipos de texto” (idem.). Michael Heim recordou que o

termo hyper está - na psicologia, medicina e ciências sociais - relacionado com os adjectivos

“agitado” ou “patológico”. Heim parece referir-se no seguinte passo a uma diferença entre

hiperleitura e close reading: “Hypertext thinking may indeed reveal something about us that is agitated,

panicky, or even pathological. As the mind jumps, the psyche gets jumpy and hyper. We can only

hope that the postmodern hyperflood will not erode the gravity of experience behind the symbols,

the patient, painstaking ear and eye for meaning” (Heim, 1993: 39).

Hayles aponta também para a existência de uma “leitura da máquina” ou efectuada pela máquina:

“Machine reading ranges from algorithms for word-frequency counts to more sophisticated

programs that find and compare phrases, identify topic clusters, and are capable of learning” (70).

Segundo Ryan, esta pode ser complementada com a close reading e com a hiperleitura para fazer face

à instabilidade e multilinearidade da leitura em ambiente digital. Hayles salienta que a close reading e

a hiperleitura colaboram entre si. A hiperleitura abre o caminho para a close reading quando é

utilizada para identificar passagens (73). De facto, a leitura da máquina204 e a close reading podem ser

consideradas como técnicas de abordagem ou de análise de um texto. Adicionalmente, a leitura da

máquina e a hiperleitura contribuem para uma close reading. No entanto, durante a sessão de leitura, a

hiperleitura e a hiperatenção são elementos vitais para lidar com textos transientes e multimodais como

os que temos vindo a analisar. Aliando-se à função interpretativa, ao esforço ergódico e ao esforço imaginativo,

ambas permitem compreender a obra para efectuar uma close reading. Isto pode ser demonstrado

através de uma análise de The Intruder (1999). Esta obra é baseada num conto de Jorge Luis Borges

intitulado “La Intrusa” (1969). Antes de proceder à leitura da obra de Natalie Bookchin, o leitor

poderá proceder à leitura deste conto em espanhol. Nesta história, Juliana (ou a intrusa) é a razão

para o conflito entre dois irmãos (Eduardo e Cristián). A competição entre ambas as personagens

é traduzida por Bookchin em diversos desafios colocados ao leitor. Esta obra começa com uma

204 Embora Hayles distinga os dois tipos de leitura, a leitura da máquina é semelhante à distant reading identificada por Moretti e apresentada no segundo capítulo desta tese.

188

sessão de jogo que se assemelha ao jogo Pong (1972), um dos primeiros arcade games comercializados

pela empresa Atari. Num dos desafios o leitor tem de reunir os objectos da intrusa usando para

isso um balde. Cada objecto é trocado por uma palavra.

Esta narrativa interactiva205, tal como é apelidada pela autora, é um exemplo de como a

interactividade e imersão podem ser conciliadas se ambas forem consideradas como parte da

expressividade da obra ou da narrativa. A disputa entre os dois irmãos é ilustrada através da

competição entre leitor e máquina para conseguir mais um excerto narrativo. Ainda que o texto

original de Jorge Luis Borges não seja integralmente dividido com o leitor durante a leitura desta

obra, através da curiosidade do leitor (ou da sua determinação em ganhar cada desafio), pode ser

percebida uma história. The Intruder recorre aos jogos como representações de vários temas

explorados em La Intrusa. O momento de The Intruder intitulado “Pong” deixa entrever que o

movimento pendular da silhueta que é projectada entre as duas extremidades do ecrã ilustra a

partilha de Juliana entre os dois irmãos. O jogador tem de evitar que as palavras toquem nas

extremidades da moldura para continuar a ouvir a história que é narrada por uma voice over. O leitor

é ao mesmo tempo um ouvinte e um jogador. A história não será contada se o leitor não vencer os

desafios colocados.

Num outro momento de The Intruder, o leitor entra num duelo. Este jogo intitula-se “Quick draw”

e a figura feminina (ou Juliana) avança e recua permanente entre as duas figuras do duelo. A disputa

entre os irmãos é representada através deste pequeno jogo. Já no último jogo, o leitor é colocado

atrás de uma mira. Ele encontra-se num helicóptero que sobrevoa um território e procura Juliana.

A sua ânsia em saber o desfecho desta história precipita a personagem para a sua morte. Em The

Intruder a arma é sempre colocada nas mãos do leitor.

Nesta obra, a atenção do leitor é distribuída pela leitura da história, a audição da narração e a tarefa

de ganhar um jogo. Esta é uma obra em que o leitor tem de gerir a sua atenção eficientemente de

forma a responder aos desafios colocados. A atenção do leitor é transformada na hiperatenção

descrita por Hayles. A voz só partilha a história com o leitor se ele responder conforme esperado.

As funções configurativa e exploratória, ou o esforço ergódico, são exacerbadas. A imersão já foi aqui

descrita como a sensação de presença num mundo ficcional provocada pela ekphrasis ou provocada

por uma experiência sensorial acrescida. Por seu turno, para além da imersão no mundo ficcional,

a imersão é igualmente produzida através da concentração nas diferentes tarefas desempenhadas

pelo leitor. Aqui é possível vislumbrar um outro tipo de imersão. Esta é provocada pela

concentração nas diversas tarefas que causam uma distribuição da atenção (e não uma focalização)

205 Bookchin define The Intruder da seguinte forma: “The Intruder is a web-based hybrid interactive narrative that merges computer games and Literature”. Esta citação foi recolhida na página official da autora em: http://bookchin.net/projects/intruder.html.

189

por parte do leitor. O esforço ergódico e o esforço imaginativo são catalisados simultaneamente. Enquanto

explora os diferentes espaços da obra e configura o texto de forma a despertar uma reacção ao

nível textónico, o leitor tem de imaginar que está a atirar sobre uma das personagens e que as suas

acções têm impacto na narrativa.

Calleja refere que todos os média representacionais requerem um investimento de atenção (40).

Em The Intruder, os estímulos são diversos, o que obriga o leitor a efectuar várias tarefas ao mesmo

tempo. Segundo Calleja, na maior parte do tempo, não nos apercebemos da importância da

atenção. No entanto, quando efectuamos uma tarefa pela primeira vez ou quando tentamos

compreender informação complexa, o efeito da atenção na nossa performance ou comportamento

torna-se evidente (Calleja, 2011: 41).

Eskelinen frisa que, para Aarseth, existem dois tipos de textos (e obras de arte) que diferem

profundamente dos romances, um género que é amplamente influenciado pela ideia do texto como

um todo estável. Esses textos podem ser anamórficos (ou textos que surgem como enigmas

decifráveis) e metamórficos (textos mutáveis e imprevisíveis). Estes textos exigem diferentes tipos

de leitura: uma leitura regular que permite uma leitura trivial de todo o texto; uma leitura

hipertextual que possibilita a leitura total mas exige trabalho não-trivial; a leitura sob a forma de

resolução de um enigma colocado por um texto anamórfico (que também exige um trabalho não-

trivial compensado pela necessidade de voltar a envolver-se ou reler o texto novamente) e,

finalmente, uma leitura em que o leitor tem de encontrar formas de adaptar-se a um texto

metamórfico dinâmico e imprevisível que não tem um ponto de resolução (Eskelinen, 2012: 80-

81). Os textos metamórficos continuam a representar um verdadeiro desafio para a teoria literária.

No entanto, ao adaptarmos a nossa abordagem às características de cada texto, ao invés de subjugá-

los a técnicas de análise, é possível ultrapassar várias das dificuldades impostas pela transiência,

fragmentação e multimodalidade desses textos. Os recursos propostos pela teoria do cinema, das

artes plásticas e das artes performativas (as quais, por sua vez, já têm elos com a literatura impressa)

poderão ajudar na análise desses textos. Eskelinen refere que, embora o processo de leitura de uma

obra possa ser repetitivo e aleatório, existe sempre a possibilidade de encontrar fases distintas e

desfechos potenciais que poderão compensar a actividade deambulatória a que o leitor é sujeito.

Mesmo durante a interacção com o bot Eliza, existem “pontos de resolução e terminação”

intercalados com “variações bem-sucedidas” (83).

A atenção (ou a hiperatenção) exigida por parte do leitor pode ser dividida entre a leitura, o

responder a um desafio e ainda a descoberta de como o texto ou o programa funciona. Este tipo

de leitura não é apenas deambulatória porque o texto se apresenta como rizomático mas também

porque o leitor pode não entender de imediato o que o texto exige dele. Existe a necessidade de

190

experimentar (e provavelmente falhar) até conseguir desempenhar uma tarefa. No caso de The

Intruder, não existem instruções e a função textónica (ou o processo de entender como os textões

são despertados) torna-se central para conseguir efectuar a leitura. Enquanto o leitor tenta entender

o que pode fazer para conseguir mais um momento de narração, uma história está a ser contada.

O conhecimento acerca de jogos clássicos de computador como Spacewar ou Pong podem ajudar o

leitor a diminuir o esforço na percepção da narrativa ou a conseguir obter uma narração mais

coerente e menos sincopada. Se o leitor já conhecer o conto de Jose Luis Borges a tarefa de leitura

e de extracção de um significado é facilitada e a atenção dedicada à função textónica é canalizada

para outras tarefas. Esta obra está centrada na literatura e em jogos de computador e efectua um

diálogo permanente entre ambos. Porém, no último jogo, o leitor deverá perder o desafio (a

personagem terá de cair nas crateras que vão surgindo). Mais uma vez, o leitor terá de tornar-se no

carrasco para conseguir ouvir a narração.

Marie-Laure Ryan identifica uma tendência na narratologia: “cognitive narratology will be more

and more focused on the level of neurons, and it will increasingly rely on brain scans, even though

we still don’t know how certain neuronal configurations are interpreted as meanings” (Ryan, 2014).

A “narratologia cognitiva” é um ramo da narratologia em ascensão. Por este motivo, as suas

contribuições ainda não são claras. Todavia, o interesse na actividade cognitiva do leitor já há muito

foi despertado. Como temos vindo a demonstrar, o facto de os textos digitais serem vistos como

processos (como vimos anteriormente com a análise de Dakota e Nippon, as obras digitais também

podem ser artefactos) exige um estudo baseado na resposta cognitiva por parte do leitor. Este

estudo pode basear-se na gestão da atenção e concentração perante textos que, tal como The

Intruder, têm uma expressividade que se estende desde a narração até à forma como a interactividade

é integrada no texto.

Johanna Drucker descreve o ambiente em rede como uma cena de “distracções infinitas”. A leitura

em rede torna-se numa sequência de frames sem uma relação hierarquizada e linear entre si:

(…) in the graphically complex multimedia environment of the web, no pre-existing

narrative organizes our task of correlation. We are constantly in the frame jumping state

that disorients the reader, trying to create relations across varied types of material – images,

videos, maps, graphs, texts, and the many structuring elements of layout and format that

organize the graphic environment. (Drucker, 2011: 5)

O facto de a leitura ser descrita como feita através de frames, permite observar que o leitor é

obrigado a um processo cognitivo de filtragem e de decisão ao longo de eixos semânticos e

sintácticos que têm como base a leitura do valor metafórico das imagens e ícones. Drucker

191

encontra-se focada no estudo da interface que define, não como uma coisa ou um local onde as

acções e tarefas do computador são accionadas mas como uma zona de possibilidades, onde o

leitor é desafiado a tomar determinadas acções de forma probabilística e não mecânica. Perante um

livro, o leitor também tem de ler a organização espacial ou as imagens de letras. Isto quer dizer que

o leitor tem de ler a componente gráfica de um texto para extrair um sentido do mesmo. Para

Drucker, a interface é a zona onde a leitura tem lugar:

We do not read content independent of interface on a screen any more than we do when

we read the newspaper. We have only to strip away the graphical codes of a printed text –

put its letters and words into a simple sequence, remove paragraphing, hierarchies, word

spacing etc. – to see how dependent we are on these format elements as an integral part of

meaning production.

We receive ‘content’ embodied in graphical codes that structure our reading and viewing

and perform a quasi-semantic function, not merely a formal or syntactic one. (Drucker,

2011: 9)

A quasi-semantic function aqui sugerida por Drucker está relacionada com a função interpretativa

enaltecida na secção anterior desta tese. Perante um texto, o leitor terá de activar a função

interpretativa para encontrar um sentido e para compreender o texto. Ainda que o texto surja como

indecifrável e ainda que o leitor não tenha como objectivo a concretização de uma close reading, a

leitura depende largamente desta função. A função interpretativa não se resume apenas às palavras

mas abarca a organização dos elementos na página. Embora o leitor pareça ignorar os “códigos

gráficos”, estes colaboram para a expressividade de um texto.

Victor Nell salienta que os estudos da atenção prendem-se com o facto de esta poder ser unitária

ou divisível (ou focalizada e distribuída). Segundo Nell , a leitura de um livro implica uma maior

atenção do que ver, por exemplo, televisão. Para interpretar, será necessário decifrar o texto escrito:

“the conversion of written text to a language analogue, followed by meaning extraction” (76). No

texto digital, como vimos, pode ainda existir uma configuração e exploração do texto e o leitor

pode ter de assumir uma função textónica antes de haver lugar à função interpretativa.

Nell distinguiu a atenção do transe. Para Nell o transe é um estado provocado pelas “criações do

autor”: “Attention holds me, but trance fills me, to varying degrees, with the wonder and flavour

of alternative worlds. Put differently, attention grips us and abstract us from our surroundings; but

the otherness of reading experience, the wonder and thrill of the author’s creations (as much mine

as his) are the domain of trance” (77). Nell refere-se ao carácter lúdico deste tipo de leitura. A “falta

de esforço” desta forma de leitura deve-se à “natureza automatizada da actividade de descodificar

192

o texto” manifestada pelos leitores mais experientes (77-78). Nell relaciona esta facilidade de leitura

à formação de engramas ou à forma física das recordações: “Perceptions, argues Rubakin, leave

traces called engrams in our organic matter, the sum total of which becomes our mnema, or memory

store. Primary engrams are the mark left by reality while secondary engrams are fictious

constructions, which comprise the great bulk of each person’s knowledge” (Nell, 1988: 117). O

processo de devolver um engrama à vida é intitulado de ecphory. O conhecimento e as experiências

(ou experiência) do leitor têm um impacto profundo no acto de leitura. Um leitor experiente poderá

ter criado automatismos que permitem gerir e distribuir a atenção por diferentes tarefas com maior

destreza.

Waterworth e Waterworth constatam que os media que exigem menos atenção para levar a cabo

acções são por vezes aqueles que proporcionam uma maior sensação de imersão: “presence in

media is maximized when there is no attentional “effort of access” to information, nor attentional

“effort of action” in experiencing media content” (Waterworth e Waterworth, 2010: 187).

Contudo, Waterworth e Waterworth referem que a acção não é um indicador de atenção consciente

porque as acções podem ser automatizadas (187). Graças à plasticidade do cérebro as acções

podem ser interiorizadas e o leitor pode ter de canalizar cada vez menos esforço para efectuar uma

acção. Sendo assim, a relação entre imersividade e interactividade poderá ser uma questão de

interiorizar automatismos ou uma questão de literacia. Como vimos com The Intruder, um leitor que

conheça os jogos propostos por esta obra terá menos dificuldades em responder à exigência do

texto e conseguirá gerir a atenção com mais eficácia.

Contudo, existem textos que se baseiam numa estética de resistência. Estes possibilitam a imersão

na narrativa através de uma tentativa de resolução de vários desafios ou enigmas. O leitor poderá

ter de investir toda a sua concentração na superação desses desafios. Aqui, a imersão é relacionada,

não com a presença num mundo ficcional, mas com a concentração ou com o conjunto de

actividades que possibilitam essa imersão.

Scholes referiu que o leitor tem de levar a cabo um esforço para “compreender e um esforço para

incorporar” (Scholes, 1989: 9). Scholes associa esse processo ao facto de o leitor ter de inventar o

autor e as suas intenções usando as pistas que pode encontrar para estimular o seu “processo

criativo” e acomodar novos conhecimentos (idem.). Para Scholes, a leitura implica o despertar de

um diálogo entre textos, uma actividade que, segundo este autor, é um tipo de escrita. O leitor pode

construir o seu próprio metatexto, mas o leitor está destinado a assimilar significados que não foram

produzidos por si (50). Paul Zumthor sublinhou que a leitura exige uma descodificação e

interpretação: “a acção visual orienta-se de vez para a decifração de um código gráfico, não para a

observação de objectos circundantes. Para todo o indivíduo alfabetizado, tendo adquirido o hábito

193

de ler, a relação entre o significante (a letra) e o significado (…) é interiorizada, não transita mais

pelo objecto” (77). A leitura é uma consequência de automatismos e de atenções redobradas; de

esforços e de interacções emolduradas; de interpretações suscitadas por uma palavra ou pelos

parênteses que interrompem uma frase. A leitura é também a tentativa de lidar com a resistência

do texto.

194

Resistência e frustrações

A good piece or art can reach us on many levels, from emotional

and spiritual to intellectual. To give it that opportunity, we must

allow the work to affect us and perhaps even manipulate us. Andrew Glassner, Interactive Storytelling: Techniques for 21st Century

Fiction

When a literary work interrogates the inscription technology

that produces it, it mobilizes reflexive loops between its

imaginative world and the material apparatus embodying that

creation as a physical presence.

N. Katherine Hayles, Writing Machines

Marie-Laure Ryan refere que os textos da literatura popular são mais favoráveis à imersão porque

o leitor “pode trazer mais conhecimento e ver mais expectativas concretizadas do que perante um

texto que cultiva uma sensação de estranhamento” (Ryan, 1994: 120). O efeito de estranhamento,

embora se estenda a toda a literatura, já foi aqui definido como uma característica intensamente

explorada pela literatura electrónica. Contudo, a autora salienta que a imersão também pode ser

despertada através de um processo que envolva “um elemento de luta e descoberta” (idem.).

Segundo Ryan: “A literary text is the most satisfying when it lures the reader into what appears at

first a hostile environment”(idem.).

A interactividade foi primeiramente associada à oportunidade de escolha e participação oferecida

ao leitor. Porém, a interactividade está também ligada à resistência por parte do texto. Esta

resistência é, na ficção digital, veiculada através da junção de várias linguagens semióticas,

transiência e enigmas teóricos. A resistência apresenta-se como um desafio cognitivo que é

colocado pelo texto através da sua auto-reflexividade. Esta característica é normalmente descrita

como um dos factores que contribui para ruptura da imersão do leitor na narrativa. Porém, nesta

tese, a auto-reflexividade é descrita como uma componente expressiva e, desta forma, como aquela

que atrai o leitor para um texto.

O leitor de um texto ergódico tem de desenvolver um certo número de capacidades. Para

Eskelinen, um texto tradicional apenas exige do leitor uma tarefa interpretativa. Um texto ergódico

exige um leitor eficiente, capaz de lidar com textos instáveis e complexos ao nível teórico e

estrutural:

195

(…) readers must have patience to cling on the frame of epistemological and ontological

problems or gaps and learn to cherish many kinds of insecurity and indeterminacy within

many possible action sequences in many cases until they reach the last page. Similarly, the

readers familiar with Oulipian practices are able to look for constraints and specific types

of textual organization (both on local and global levels) that interact with narrative

organizations and complicate both the interpretation and the construction of action

sequences. (Eskelinen, 2012: 120)

Eskelinen considera que os textos construídos pelo grupo OULIPO não apresentam um desafio

real (131). Já os textos ergódicos digitais apresentam um desafio acrescido porque são textos

radicalmente instáveis ao nível dos textões (cadeias de sinais que permanecem ocultos do utilizador)

e dos escritões (cadeias de sinais apresentados ao leitor). Como o computador apresenta dois níveis

de acção – uma oculta (memória e base de dados) e outra apresentada ao leitor (a partir do ecrã ou

interface) – Eskelinen acredita que não existe um texto ergódico permanente e estável. A

inconstância do texto, que se estende ao comportamento imprevisível do meio, torna a leitura num

processo estratificado. Aarseth afirmor que a tentativa de conhecer um cibertexto é um

investimento pessoal de improvisação que pode resultar em intimidade ou fracasso (Aarseth, 1997:

4).

Como já foi aqui sublinhado, a ficção digital, nem sempre tem em vista a satisfação das ambições

do leitor. Essas ambições podem ser, por exemplo, ler a totalidade do texto, alcançar um desfecho

coerente ou ter um controlo sobre a geração da narrativa. Lori Emerson refere-se à “poética do

fracasso” (Emerson, 2014: 156) que tem como objectivo frustrar as expectativas do leitor ou, pelo

menos, problematizar o processo de leitura. Na introdução do seu livro, Lori Emerson afirma que

existem escritores que pretendem boicotar a suposta transparência da interface: “These writers all

work with and against interfaces across various digital and analog media to undermine not only

normative reading/writing practices but, above all, the assumed transparency of conventional

reading and writing interfaces” (Emerson, 2014). Esta posição entra em contraste com o anseio

por uma interface que daria acesso ao mundo ficcional, sem qualquer barreira.

Bootz refere que a obra não é mais um objecto mas um processo ou um transitoire observable: “A

work can no longer be regarded as an object, but as a complex set of components of different

natures (object for the texte-auteur, state for the texte-à-voir and process for the generation) that

can only exist while the program is running” (Bootz, 2005). Para Bootz a actividade ergódica tem

um significado que é construído pelo leitor enquanto ele interage com o texto. Bootz intitula este

significado de “double reading”. Esta serve para sugerir uma forma alternativa de construção do

significado de uma obra. A meta-reading exige uma compreensão “mais intelectual” por parte do

196

leitor. Quanto à leitura, esta é relacionada com uma “compreensão afectiva” do texto. Para Bootz,

o leitor tem de interpretar o significado mas também toda a situação comunicativa levada a cabo

entre leitor e autor. Sendo assim, o leitor torna-se num “meta-reader” porque, para além da leitura,

este terá de decidir o que é significativo no transitoire observable. Aarseth referiu-se igualmente a um

metareader que luta contra um “circulo anti-hermenêutico” possibilitado pelo texto e que “lê” a sua

própria leitura (idem.). Aarseth considera que esta posição não pode ser considerada como

interactividade mas como um “contra-ataque estratégico ao papel e à perspectiva oferecidos ao

leitor” e como um esforço para reconquistar o acto de leitura convencional (93). Nesta tese, este

esforço ergódico está ligado ao esforço imaginativo e ambos colaboram entre si para produzir a

interactividade cognitiva.

Manuel Portela refere-se à actividade cognitiva levada a cabo pelo leitor. Este autor constata que

os movimentos dos olhos dividem-se em dois elementos: sacadas (ou os movimentos efectuados

de objecto para objecto, e fixações, o momento em que os olhos permanecem estáticos e a

informação é absorvida pelo indivíduo (24). Geralmente, o processo cognitivo de leitura não é

tornado manifesto pelo texto. Contudo, textos dinâmicos e transientes, que desaparecem ou

surgem no campo de visão do leitor complexificam a actividade de leitura. Segundo Portela, textos

que manifestam uma componente auto-reflexiva frequentemente também exploram a percepção

visual representando a leitura como uma actividade corporizada. De acordo com Portela, o leitor

consegue ver o processo de leitura:

One of my hypotheses is that self-reflexive operations in codex and computer works often

play with readers’ awareness of eye movements during reading. In this way, they foreground

the cognitive processing that takes place through the act of reading as a perceptual

interaction with various layers of material signs. Readers are made aware not just of the

inscriptional materiality of alphabetic or multimodal forms, but also of their own way of

acquiring and constructing them as perceived forms. (Portela, 2013: 24-25)

Para além da percepção visual de um texto, Portela refere-se igualmente à noção de tactilidade. A

noção de um livro enquanto objecto tridimensional é exacerbada por textos (Portela dirige-se a

livros de artistas) que exploram as propriedades físicas deste formato. A leitura de textos

constituídos por dobragens, cortes e diferentes texturas, aumentam a recepção sensorial do texto.

Estes livros tornam a leitura num acto performativo baseado na multidimensionalidade da página.

Perante o leitor, esta não é uma folha plana de papel mas uma panóplia de escolhas que revelam e

ocultam a informação e que surpreendem o leitor numa escala paradigmática. A mão revela o que

197

se esconde entre os vincos da folha. O gesto suscita o que a visão ainda não alcança. Sendo assim,

a leitura não depende apenas do movimento ocular mas também do tacto.

A resistência por parte do texto incita o leitor a adoptar diferentes tipos de leitura que vão para

além do gesto comunicativo entre leitor e autor. Ele é tornado no meta-leitor que testa as

possibilidades de aceder ao significado. A sua atenção destina-se a completar diferentes tarefas e a

avaliar situações diversas que, para além de extrair um significado, o permitam permanecer em

contacto com o texto.

Grande parte das obras de literatura electrónica obrigam o leitor a testar a sua eficiência antes (e

como resultado) da experiência de leitura. Para além de terem de ser instaladas e de o leitor ter de

aprender a lidar com o software, a obra desenrola-se como um processo imprevisível catalisando

por vezes uma leitura deambulatória dependente da função interpretativa. Fest (2012)206 é uma obra

criada por Gabriel Helfenstein que coloca à disposição do leitor um sistema de escolha (tal como

o dispositivo que respondia à questão “what if”). Criada como um “sistema interno de tomada de

decisão”, Fest é uma história sobre uma rapariga que, durante um passeio com os seus pais,

aproxima-se de um precipício sobre o mar e contempla a hipótese de saltar. A decisão entre dois

caminhos é apresentada ao leitor: a rapariga deverá saltar ou regressar para a sua família? Para

responder a esta questão, Helfenstein substituiu o seu poder de decisão por uma espécie de

software empresarial que calcula riscos e resultados de uma determinada decisão (Decision Support

System). Este sistema tem como finalidade ajudar o leitor a resolver o dilema e depende de duas

entidades: “aquele-que-propõe” e “aquele-que-decide”. Enquanto conferenciam sobre a decisão a

ser tomada Fest é descrita da seguinte forma: “missão « dilema nº 20.1056.089, Unidade-A: rapariga

e um penhasco, saltar ou não saltar. Nível de dificuldade: médio”.

Helfenstein criou uma narrativa ramificada (num dos momentos da obra é possível ver que a

estrutura de Fest é representada pelo desenho de uma árvore) e auto-reflexiva constituída por lexias.

Compete ao leitor colocar em marcha o mecanismo que irriga as ramificações desta árvore. Fest

introduz uma leitura deambulatória, não só porque não se apresenta como uma narrativa

multilinear, mas porque o leitor tem de descobrir, através de tentativas, como a obra é catalisada.

A função textónica tem aqui um papel fundamental. Para activar o texto, o leitor tem de perceber

como ele funciona. A curiosidade de conhecer o próximo passo faz com que o leitor active esta

função.

Fest é um jogo de sorte. Só que, embora o leitor calibre e accione o sistema que gera a narrativa,

este já tem a solução para o dilema. Fest, tal como as obras analisadas até ao momento, oferece ao

206 Uma entrada escrita por mim, sobre esta obra, foi publicada no Electronic Literature Directory. A mesma pode ser consultada em: http://directory.eliterature.org/node/3761.

198

leitor a ilusão de escolha. Esta ilusão de escolha é baseada na suspensão da descrença por parte do

leitor. Don Ihde refere que a sensação de imersão total do corpo apenas pode ser concretizada

através desta capacidade do leitor: “to experience this enhanced virtuality of touch and motion,

one must first enter a highly framed context, it is a theaterlike situation wherein one enters with a

suspension of disbelief” (Ihde, 2002: 128) Como será possível ver, Fest proporciona um efeito de

imersão através da auto-reflexidade e de um jogo psicológico que se estende, desde a configuração

e exploração do texto, até à especulação e esforço imaginativo.

O dilema apresentado no início da obra apresenta um caminho bifurcado (saltar ou não saltar) mas

Fest é constituída por mais do que um caminho. Fest é uma máquina combinatória que tem de ser

recarregada pelo leitor. A dado momento, o narrador pergunta ao leitor: “Quais são os riscos?

Quais são as possibilidades?”. Assim que o leitor activa o sistema (e a função textónica), ele desperta

várias possibilidades. O leitor é apresentado a um texto rizomático representado por ramos

tremeluzentes. O sistema arbóreo é irrigado quando o leitor selecciona os nós (ou pontos de

decisão) entre as ramificações. Mais tarde, o leitor vem a descobrir que história da rapariga surge

emoldurada por uma outra história. Esta corresponde ao conflito interior de um homem num bar

que tenta decidir se irá abordar uma rapariga. A partir desse momento, Fest apresenta vários

cenários possíveis partindo desta mesma situação.

Ao representar-se a si própria como uma máquina que tem de ser activada pelo leitor, Fest manifesta

não só uma componente lúdica, mas também um carácter metaficcional. O leitor é convidado a

recarregar o sistema através do ícone de uma pirâmide: “Vous devez recharger la pyramide”. Este

ícone sugere que o leitor irá conhecer uma história tal como representada pela pirâmide de Gustav

Freytag. No topo deste esquema encontra-se o clímax. Em Fest, o clímax é representado por uma

pirâmide carregada e luminescente. Quando isso acontece o sistema efectuou a sua decisão.

O texto relembra permanentemente o leitor que a decisão é efectuada pelo sistema. Numa das

lexias é possível ler: “Tu danças, não tens outra escolha”. Fest surge como uma paródia das

hiperficções clássicas como afternoon: a story (1987-1990) onde o protagonista testemunha um

acidente de carro que pode ter morto (ou não) a sua família. A ansiedade e relutância do

protagonista é representada pela viagem deambulatória do leitor que tenta descobrir a verdade e

destrinçar o emaranhado de lexias que constituem afternoon. As expectativas do leitor são

contrariadas pela estética da frustração seguida por esta obra207. Contudo, ao contrário de afternoon,

207 Daniel Punday refere-se à frustração provocada por afternoon como uma forma de envolver (ou imergir) o leitor: “the story of loss is echoed in the reader's own sense of frustration with the story and the inability to come to a conclusion. As in those stories, the reader is pulled into the story emotionally through a very different form of narrative inevitability - the inevitability of failure” (Punday, 2004: 95).

199

o leitor não permanecerá imerso num mar de possibilidades. Fest exige uma resposta: a rapariga

vive ou morre?

O narrador, que ocupa também o papel de negociador, disponibiliza algumas pistas sobre a

resolução deste mistério mas também acrescenta continuamente novas variáveis tornando a

narrativa cada vez mais densa. Como foi acima referido, Fest é uma história dentro de uma história.

O narrador está em permanente contacto com o leitor tecendo uma descrição do mundo ficcional.

Após ser identificado como sendo o homem no bar, ele é subitamente mergulhado no mundo

ficcional tornando-se no protagonista de Fest. Este salto metaléptico revela ao leitor que afinal ele

está a ler sobre as suas próprias acções no mundo ficcional. As impressões sensórias acerca deste

mundo são descritas pelo narrador/negociador com recurso a uma ekphrasis: “Suddenly, you sense

a growing uneasiness. The air in your lungs becomes rarefied – your vision becomes blurred. The

world vibrates. Sounds are nothing more than entangled lines that form incomprehensible multi-

colored motifs. Someone vomits at the end of the room”. O esforço imaginativo e esforço ergódico são

permanentemente invocados para manter o leitor ligado ao texto e imerso na narrativa.

Durante toda a incursão, as intervenções do narrador surgem inscritas em letras iridescentes

inscritas em janelas pretas, como se a sua voz emergisse de um abismo. O narrador é afinal o guia

do leitor no mundo ficcional ou aquele que ilumina os “caminhos bifurcados”. Na ausência desta

figura tudo permanece na escuridão. Porém, sem saber, o leitor está a ser lentamente arrastado para

lugares recônditos situados na mente da rapariga.

O grafismo e a interactividade proporcionados por Fest são colocados ao serviço da imersão do

leitor na narrativa e no mundo ficcional. O emaranhado de possibilidades que rodeiam o leitor

nesse mundo multiplicam-se à medida que o leitor permeia a narrativa. Tal como The Stanley Parable,

La Disparue ou The Intruder, as obras estudadas neste capítulo, Fest oferece ao leitor a ilusão de

interactividade e imersão frustrando constantemente as suas expectativas. Numa entrada sobre

“animated poetry”, em que Philippe Bootz fala sobre a revista Alire, criada no final dos anos oitenta,

o autor explica a expressão “aesthetics of frustration”:

Alire significantly contributed to the discovery of the specific properties of programmed

literature, including the actual role of the execution process. It also gave rise to a distinctly

French aesthetic partly based on the failures of traditional modes of reading: the aesthetics

of frustration. By revealing a reader’s relationship with their natural language throughout

the reading process, this aesthetic considers that each and every one of the reader’s

reactions is part of the work. Thus, frustration is a consequence of the readers’ inability to

adopt a way of reading that is appropriate for computers and incompatible with books.

(Bootz, 2014: 12)

200

Sloane aponta os erros de comunicação (ou o ruído) provocados pelo contacto permanente entre

ser-humano e máquina como uma causa de frustração para o leitor. A repetição de leitura de uma

dada lexia já lida; o cálculo de enunciados ou eventos sem coerência ou desajustados em relação à

história central e a rejeição de comandos (existem ficções interactivas que apenas aceitam verbos)

constituem algumas das principais fontes de frustração (Sloane, 2000: 32). Porém, a frustração aqui

sublinhada é aquela que, tal como frisado por Bootz, faz parte da obra. Contudo, esta frustração

não reside na incapacidade de o leitor adaptar as suas técnicas de leitura (Bootz refere-se à

incompatibilidade entre as técnicas do meio impresso e as que o meio digital exige) a textos digitais,

mas a uma frustração criada pelo(s) autor(es). Essa frustração é provocada pela resistência do texto

a uma interpretação una, pela divisão da atenção do leitor entre a configuração e a leitura semântica

do texto e pela auto-reflexividade da obra. A frustração invoca a interactividade e imersão como

parte da experiência de leitura.

Aarseth identifica igualmente uma resistência provocada pela impossibilidade de apreender o texto

como um todo. Se na literatura impressa a resistência é provocada pela dificuldade em interpretar

uma passagem, o que resulta numa aporia (91), na hiperficção esta aporia torna-se num recurso

expressivo ou num tropo: “The hypertext aporia prevents us from making sense of the whole

because we may not have access to a particular part. Aporia here becomes a trope, an absent pièce

de résistance rather than the usual transcendental resistance of the (absent) meaning of a difficult

passage” (91).

Embora referindo-se a jogos de computador208, Daniel Punday descreve um tipo de envolvimento

melancólico provocado pela metaficção. A resposta emocional é provocada por uma “estrutura

melancólica de perda” enquanto é oferecida liberdade de interacção ao leitor/jogador (Punday,

2004: 100). Punday estabelece uma ligação entre os jogos de computador e os romances

sentimentais209 os quais são particularmente estruturados para despertar uma determinada resposta

emocional. Para Punday, quando o sistema rejeita um desfecho, produz um sentimento de

208 Apesar de, no título do seu artigo, leve a crer que o seu estudo é dedicado a jogos de computador, o autor acaba por centrar grande parte da sua atenção na literatura impressa e em hiperficções como afternoon: a story (1987-1990) e Patchwork Girl (1995). Punday adverte que os jogos não contam uma história. Quando os seus criadores desejam veicular uma história esta é normalmente construída fora da situação de jogo: “Although the game may imply a narrative - the development of a great society from its humble beginnings - the game itself cannot tell a story, cannot stage turning-points or develop a sense of irony or tragedy except as an accidental byproduct of the player's choices and successes. When game designers want to tell a more structured story, they frequently turn away from gameplay and instead develop that narrative within the set lexias of the game” (Punday, 2004: 83). 209 Citando Cohen, Punday refere que o romance sentimental tem os seguintes atributos: “The sentimental novel, Cohen argues, puts its whole rhetorical effort into emotional involvement-presenting generalized characters to encourage readerly identification and constructing a narratave arc that moves relentlessly towards a tragic conclusion” (Punday, 2004: 86).

201

“frustração” (ou “inevitabilidade de fracasso”). Ao interromper uma narrativa linear, os textos

criam esta emoção no leitor, envolvendo-o na narrativa.

Existem jogos que efectuam uma pausa entre momentos narrativos (cut scenes, por exemplo) para

que o leitor possa efectuar um tarefa. Para Punday estes momentos funcionam como “apartes onde

o envolvimento emocional do jogador é aumentado” (87). Já nos romances, essas interrupções

surgem como forma de reafirmar o papel activo do leitor na história:

Our emotional involvement with narrative is generated by occupying a certain position

within the economy of the story, a position that gives us our sense of role within the story.

This role can be heightened by interruptions that address us directly and emphasize our

agency, but ultimately those interruptions must return to a narrative teleology that reassures

us that our reading is, indeed, purposeful. (Punday, 2004: 87)

Este “papel activo” é diferente da participação do leitor na construção de uma história. O leitor

nunca é um elemento passivo porque este não é apenas um receptáculo de uma mensagem. O seu

trabalho de descodificação do texto, embora seja em grande parte automatizado (a leitura não é

efectuada palavra-a-palavra e o virar de uma página é frequentemente ignorado), vem

acompanhado da tarefa de interpretação. O envolvimento do leitor (ou a imersão no texto) é

frequentemente confundido com escapismo ou ausência de espírito crítico. No entanto, como tem

sido até aqui demonstrado, o leitor efectua um trabalho que não pode ser conotado com uma

recepção acrítica ou passiva de uma história. Em questão está a interactividade cognitiva levada a cabo

pelo leitor.

Normalmente pensa-se que a leitura de um texto ocorre numa linha temporal contínua. O valor

das interrupções para a leitura raramente é analisado. Durante a leitura, o leitor tem de imergir e

vir à tona do mundo ficcional. Em Deep Surface (2007) – uma obra criada por Stuart Moulthrop e

descrita como um “romance esquisito” ou como um híbrido monstruoso entre uma máquina de

leitura e um simulador de mergulho - interactividade e imersão surgem representadas literalmente

através do texto. Este parte de uma situação imaginária em que as páginas web seriam feitas de

água e permitiriam ao leitor mergulhar gradualmente. O texto está equipado com um sistema que

avisa o leitor quando este tem de vir à tona para respirar. A profundidade do mergulho é

configurada pelo leitor mas a imersão na narrativa é interrompida pela necessidade biológica de

respirar. Para imergir na narrativa, o leitor tem de saber jogar (e sobreviver), isto é, tem de saber

como o texto funciona. A função textónica tem aqui um papel fundamental. Sem testar nem saber

como o texto é activado, o leitor não consegue ler (ou não tem tempo para ler) esta obra. Deep

202

Surface demonstra que uma concentração constante (ou uma imersão sem interrupções) é

impossível de conseguir.

As interrupções permitem avaliar o que foi lido, apreciar o conteúdo, reposicionar perspectivas e

rever um determinado passo para uma maior compreensão. Permitem ainda testar uma estratégia.

Nem sempre é possível regressar a um ponto anterior da leitura. O simples acto de pestanejar pode

lançar o leitor no desconhecido. Porém, é necessário considerar esta perda de rumo, não como

uma limitação, mas como parte da obra e da sua exploração estética do meio.

203

Conclusões

Twenty years ago a giddy excitement about what Michael Heim

termed “electric language” turned the heads of humanists and

writers. (…) But as the “wow” factor of those early encounters

has evaporated, a deeper potential for interrogating what a text

is and how it works has come into view within the specialized

practices of electronic scholarship and criticism.

Johanna Drucker, Speclab

A intenção de colocar o leitor no centro da narrativa, tornando-o no construtor do mundo ficcional

estava ligada à tentativa de reduzir o poder autoral. O autor seria uma entidade cuja presença daria

lugar ao computador enquanto máquina de emaranhar desfechos e caminhos. Por seu turno, a

possibilidade de participação oferecida ao leitor e a destruição da noção de narrativa como linear e

pautada por um desfecho seriam aplicados como os antídotos do poder autoral. Todavia, apesar

da interactividade fornecida ao leitor, os textos não podem ser alterados. Eles são programados ou

pré-determinados. Aqui foi demonstrado que, embora seja uma característica fundamental na

literatura electrónica, a interactividade não pode ser vista como a capacidade de o texto reagir ou

oferecer liberdade de escolha e agência ao leitor. Sobretudo, a interactividade não pode ser

equacionada com a possibilidade de participação criativa por parte do leitor, embora esta

possibilidade seja propagandeada pela obra.

Ryan referiu-se à imersão como um meio de alcançar uma “satisfação estética” e observou que

existem leitores que “estão dispostos a sacrificar algum nível de imersão pelo prazer intelectual da

auto-reflexividade” (Ryan, 1994: 134). Contudo, a imersão foi aqui descrita como uma sensação

provocada pela resistência do texto, isto é, pela necessidade de o leitor dividir a atenção ou focar a

atenção em diversos desafios teóricos proporcionados pelo texto. Para resolver esses desafios, o

leitor tem de estar imerso na obra, ou seja, ele tem de permanecer concentrado na sua leitura.

A interactividade, como foi possível ver ao longo desta tese, está ligada a uma problematização do

acto de leitura ou da componente auto-reflexiva da ficção digital. Esta componente é habitualmente

identificada como aquela que impossibilita a imersão do leitor na narrativa. Só que, ao associar a

imersão à concentração, esta e a interactividade surgem como conciliadas. Adicionalmente, ao

identificar uma interactividade cognitiva (e não exclusivamente física) bem como um esforço imaginativo

que está ligado ao esforço ergódico e às funções de utilizador descritas por Aarseth, é possível verificar

que a associação entre interactividade e imersão é igualmente executada ao nível estilístico. O esforço

204

ergódico é visto simultaneamente como parte do desafio teórico (ou da auto-reflexividade) proposto

ao leitor e como um recurso expressivo.

O esforço ergódico foi aqui distinguido da noção de interactividade. Mesmo obras que não exijam um

esforço ergódico (tal como Nippon e Dakota) apelam a uma interactividade cognitiva que se estende desde

o esforço imaginativo até à função interpretativa. A imersão é catalisada pela necessidade de o leitor levar

a cabo um esforço ergódico para se manter em contacto com o texto e um esforço imaginativo para

permear um mundo ficcional. A função interpretativa, por seu turno, é catalisada e catalisa toda a

interacção com o texto e com o mundo ficcional. Tendo como objectivo compreender o texto, ela

torna-se na matriz das decisões e acções levadas a cabo pelo leitor para manter o contacto com o

texto (enquanto objecto ou artefacto) e com o mundo ficcional. Contudo, a função interpretativa

também está dependente do esforço ergódico e do esforço imaginativo. Sem manter um contacto com o

texto ou com o mundo ficcional, o leitor permanece incapacitado de compreender o texto durante

a sessão de leitura (ou de, posteriormente, construir uma análise literária do mesmo). Sendo assim,

a função interpretativa adquire uma natureza funcional e instrumental (ou surge como uma ferramenta

cognitiva) que permite ao leitor configurar, explorar e compreender o texto, mas também é usada

como um veículo para uma leitura crítica do mesmo.

A interactividade cognitiva exigida por um texto ergódico está também ligada às respostas e acções

físicas levadas a cabo pelo leitor, pelo que o papel do corpo e da percepção são elementos

primordiais para a leitura de uma ficção digital. Na realidade virtual, o leitor pode caminhar num

espaço virtual mas este é inscrito no espaço físico (ou actual). O mundo em redor não desaparece

para que o leitor coloque em prática a sua experiência. Por seu turno, o leitor necessita de sensores

e de outros recursos que proporcionem essa experiência. Mesmo que exista um recurso a vibrações

(e que se recorra à tecnologia táctil criada pelo projecto inFORM, anteriormente referido) a

imaginação é a chave para o mundo ficcional e virtual. Esta permite suspender a descrença. Só que

a redução do cepticismo do leitor e a sua imersão na narrativa não devem ser vistos como

consequências de uma experiência sem mediação. A suspensão da descrença surge antes de mais

para permitir que o leitor explore o mundo ficcional, mesmo ciente que esse mundo tem limites e

não pode ser manipulado. Completada a experiência (ou a leitura), o leitor é reposicionado no

mundo actual. Sendo assim, não se trata de “gerar verdades ficcionais” (Kendall Walton) mas de

seguir um caminho ou vários caminhos sugeridos pelo arquitecto (ou pelos arquitectos) do mundo

ficcional, virtual ou simulado.

A realidade virtual foi simultaneamente descrita como um instrumento teórico e como uma ilusão

(ou como uma resposta a ambições e expectativas). No caso da obra Screen, por exemplo, a

tecnologia é usada para a manipulação de letras, o que contraria profundamente a noção de

205

realidade virtual como uma tecnologia “pós-simbólica” (Ryan). Embora o acto de manipular o

texto possa traduzir-se numa experiência agradável, esta é uma obra conceptualmente complexa

que exige um conjunto de conhecimentos para ser compreendida. Esta obra, tal como muitas obras

associadas à literatura electrónica implicam uma resistência. Isto quer dizer que a realidade virtual

não confere obrigatoriamente uma “experiência autêntica” ou um contacto instantâneo com um

mundo paralelo que proporcione ao leitor “satisfação”. Ela poderá ter uma componente conceptual

ou criar um efeito de “estranhamento” que obrigam o leitor a activar uma série de conhecimentos.

Por seu turno, como vimos com a estética de “clean glitch” descrita por Lori Emerson ou a estética

de frustração identificada por Bootz, as obras nem sempre exibem uma mensagem de boas vindas

ao leitor. Muitas destas obras pretendem afirmar que o leitor não é um parceiro na construção da

narrativa, nem um coabitante do mundo ficcional.

A realidade virtual é normalmente considerada como a fonte de uma experiência sensória

inovadora e como uma nova forma de integrar o leitor em mundos ficcionais mas, embora seja

frequentemente associada à literatura, nunca é descrita como uma forma de veicular uma história.

Os estudos sobre realidade virtual raramente fazem referência ao conteúdo das suas representações

ou efectuam o estudo de uma obra localizada neste ambiente. Esta é retratada como se

possibilitasse uma representação mimética dos objectos ou como se substituísse a construção de

imagens mentais proporcionada pela literatura impressa. O regresso a formas de contar histórias e

espaços de inscrição anteriores à escrita serviram para veicular uma noção de literatura há muito

esquecida. Ainda que a obra revele um carácter (maioritariamente) auto-reflexivo e que a atenção

do leitor seja frequentemente solicitada para diversas funções, uma obra tem sempre algo para

transmitir, quer seja uma história ou uma ideia. Por seu turno, mesmo que o autor apresente as

peças de um puzzle irresolúvel ou um enigma indecifrável, a obra contém uma mensagem que só

pode ser acedida através de um esforço imaginativo (e não recorrendo apenas ao esforço ergódico).

O regresso à interpretação foi proposto para evitar que os textos sejam descritos como um

conjunto de respostas textuais. Esta decisão foi motivada pela necessidade de considerar os textos

individualmente e não como representantes de uma determinada tecnologia ou formato. A

proposta de uma interactividade cognitiva, em vez de estritamente física e baseada nas capacidades do

meio, foi igualmente motivada por essa necessidade.

A actividade hermenêutica, mais precisamente a técnica de close reading, foi aqui descrita como

fundamental para textos que se alteram a cada passo. Para além de efectuar um estudo do meio e

das suas potencialidades, foi apontada a necessidade de efectuar um estudo da carga semântica de

um texto para o qual contribuem a imersão e interactividade. Esta tese pretendeu sublinhar que,

perante um texto cuja superfície muda a cada passo encobrindo e deixando a descoberto enigmas,

206

não é possível deixar o leitor à margem ou circunscrever a sua à actividade das mãos que despertam

o texto. A sua tarefa não se resume a configurar ou a percorrer o texto mas a compreender e

conhecer as suas potenciais dimensões.

207

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