A Ideia de Infinito e o Lugar da ficção no Método Fenomenológico em Emmanuel Levinas:...

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RIO DE JANEIRO, V.18, N.1, P.99-113, 2011 | ETHICA 99 A IDEIA DE INFINITO E O LUGAR DA FICÇÃO NO MÉTODO FENOMENOLÓGICO EM LEVINAS: DOSTOIEVSKI PAULO SÉRGIO DE JESUS COSTA 1 “If the Greeks invented tragedy, the Romans the epistle and Renaissance the sonnet our generation invented a new literature, that of testimony” 2 Resumo O presente artigo, partindo da consideração do infinito ético, procura responder à questão acerca do papel da ficção como elemento essencial no método fenomenológico de Levinas. A hipótese central para responder a esta questão é que a necessidade de uma linguagem hiperbólica sugere a ficção literária como linguagem ética. A partir desta tese, a obra de Dostoievski será considerada como “hipérbole ficcional”. Para compreender o tipo de fenomenologia que está sendo proposta por Levinas, o artigo termina comparando Levinas e Nietzsche. Em face da tradição oriunda de Husserl, é possível falar com Levinas de uma fenomenologia radical da transcendência. PALAVRAS-CHAVE: Fenomenologia, ficção, ética, hipérbole, Levinas, Dostoievski ABSTRACT Starting from the idea of the ethical infinity this paper addresses the question about the role of the fiction as an essential element inside the phenomenological method by Levinas. The main hypothesis to answer this question is that the need of hyperbolical language suggests the literary fiction as ethical language. On 1 Professor adjunto de Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria. Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email: [email protected] . 2 Cf. WEISEL, “The Holocaust as a Literary Inspiration”.

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A IdeIA de InfInIto e o LugAr dA fIcção no Método fenoMenoLógIco eM LevInAs:

dostoIevskI

PAULO SÉRGIO DE JESUS COSTA1

“If the Greeks invented tragedy,the Romans the epistle and Renaissance the

sonnet our generation invented a new literature,that of testimony”2

ResumoO presente artigo, partindo da consideração do infinito ético, procura responder à questão acerca do papel da ficção como elemento essencial no método fenomenológico de Levinas. A hipótese central para responder a esta questão é que a necessidade de uma linguagem hiperbólica sugere a ficção literária como linguagem ética. A partir desta tese, a obra de Dostoievski será considerada como “hipérbole ficcional”. Para compreender o tipo de fenomenologia que está sendo proposta por Levinas, o artigo termina comparando Levinas e Nietzsche. Em face da tradição oriunda de Husserl, é possível falar com Levinas de uma fenomenologia radical da transcendência.

Palavras-chave: Fenomenologia, ficção, ética, hipérbole, Levinas, Dostoievski

AbstrAct

Starting from the idea of the ethical infinity this paper addresses the question about the role of the fiction as an essential element inside the phenomenological method by Levinas. The main hypothesis to answer this question is that the need of hyperbolical language suggests the literary fiction as ethical language. On

1 Professor adjunto de Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria. Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email: [email protected].

2 Cf. WEISEL, “The Holocaust as a Literary Inspiration”.

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the basis of this thesis, Dostoevsky’s work will be considered as “hyperbolical fiction”. The article finishes comparing Levinas positions with Nietzsche in order to understand what kind of phenomenology is the case here in face of the established tradition that comes from Husserl. It is suggested that it is possible to talk about one phenomenology of radical transcendence by Levinas.

Key-Words: Phenomenology, fiction, ethics, hyperbole, Levinas, Dostoevsky

Levinas concebe a ideia do infinito de maneira perturbadora, a ideia de infinito não pode ser pensada, daí a linguagem para dizer o infinito é complexa. De alguma maneira, já os românticos do primeiro romantismo alemão anteciparam, o infinito é mais do que eu posso pensar, e nenhuma contemplação, conhecimento ou intuição poderá suprimir a desmesura, mas também é rejeitada a imagem de uma fusão mística: “não é a atração que o fogo exerce sobre a borboleta”, que irá se consumir. A ideia do infinito se dá na relação com o outro absolutamente exterior3.

O absolutamente outro, todavia, tem poder de paralisar as forças do homicídio, como resistência ética. “A resistência ética é a presença do infinito”. Essa desproporção que não é de natureza cognitiva cria desejo: “Um pensamento que pensa mais do que pensa é Desejo”. A análise levinasiana do Desejo não tem nada a ver nem com a “afetividade do amor”, nem tampouco com a “indigência da necessidade”. Esse Desejo, Levinas denomina bondade, pois ele cresce cada vez mais naquele a quem nada falta.

A questão aqui a ser investigada constitui um tema extremamente rico de consequências para a interpretação do pensamento de Emmanuel Levinas. Este artigo pretende contribuir parcialmente para o estudo do método fenomenológico, em particular salientando a importância do papel da ficção literária na sua fenomenologia do infinito, que é radical em virtude do desafio da ética4. O presente artigo é assim um esforço

3 Cf. LEVINAS, “A Filosofia e a ideia do infinito” In: En Découvrant L’Existence Avec Husserl et Heidegger.

4 Cf. LEVINAS, Totalité et Infini, especialmente o prefácio e HUSSERL, Vorlesungen über Ethik und Wertlehre, para a teoria moral de Husserl. Levinas, assim como Nietzsche, questiona radicalmente a possibilidade de uma teoria moral. Comparado a Husserl, que vai procurar fundamentar a ética: na objetividade de valores, nos atos da vontade e na referência intersubjetiva, Levinas desconfia das teorias éticas fundadas na ontologia.

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na direção das seguintes teses: a) Levinas permanece fiel à tradição fenomenológica, praticando, contudo, uma fenomenologia distinta daquela do pai fundador Husserl5; b) a ficção literária é um elemento fundamental da análise intencional da ética levinasiana6. Como exemplo significativo e desdobramento da problemática suscitada, procurar-se-á compreender o papel da obra de Dostoievski, no âmbito da fenomenologia ética de Levinas.

A investigação sobre a relação entre fenomenologia e literatura num primeiro momento não é nova, apresentando já expressivos resultados7. Todavia, o que permanece como necessitando ainda de cuidadosa apresentação é o modo como Levinas integra à sua fenomenologia a ficção literária, pois isso poderá contribuir para qualificar a posição de Levinas no âmbito da tradição fenomenológica com maior precisão.

Uma primeira dificuldade ocorre em relação à fenomenologia mesma, qual seja a constatação de que há passagens na obra de Levinas, que tanto apontam para uma ultrapassagem da fenomenologia, quanto ocorre uma sistemática afirmação de que se permanece no solo da fenomenologia. Os comentadores, portanto, oscilam em teses muitas vezes antitéticas a respeito do assunto com base textual significativa. A hipótese que vamos apresentar aqui procura enfatizar que Levinas radicaliza a fenomenologia de seu mestre Husserl, porém no sentido 5 Cf. JANICAUD, The Theological Turn of French Phenomenology, que apresentou

uma tese polêmica na qual acusa diversos representantes da fenomenologia francesa, inclusive Levinas, de estarem traindo a fenomenologia a partir de uma “virada teológica”. Em oposição a Janicaud, Murakami defende a tese de que Levinas permanece fenomenólogo. Ver MURAKAMI, Lévinas phénoménologue, para um estudo no qual objetiva mostrar a presença de Husserl, mesmo quando Levinas critica a fenomenologia do mestre.

6 Cf. COSTA (Org.), Dossiê Emmanuel Levinas, para um dossiê organizado por mim, que procura investigar a questão do papel da literatura russa de Dostoievski no âmbito da ética da alteridade de Emmanuel Levinas. A questão relativa ao modo como a ficção literária de Dostoievski integra-se ao método fenomenológico levinasiano torna-se crucial, como próximo passo da investigação. Nesse sentido, o presente artigo pretende ser inaugural e programático.

7 Cf. MAGLIOLA, Phenomenology and Literature, An Introduction, para uma introdução às obras de Roman Ingarden,Mikel Dufrenne e Heidegger, na perspectiva de uma fenomenologia da obra literária, que segue ainda em grande medida o método fenomenológico de Husserl. Ver também POPA, “Introduction: Phenomenology and literature” In: STUDIA PHÆNOMENOLOGICA ROMANIAN JOURNAL FOR PHENOMENOLOGY, p. 9-13, onde Popa observa que há uma relação profunda entre as descrições fenomenológicas e a literatura. Uma longa tradição de estudos no âmbito da fenomenologia atesta, portanto, a persistência do tema.

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de uma fenomenologia da transcendência ética radical, inaugurando assim uma nova vertente fenomenológica, mesmo quando ele fala em interrupção da fenomenologia8.

Em relação à ficção literária no método fenomenológico de Levinas, trata-se de uma questão também muito delicada e de difícil compreensão. Basta atentar para algumas passagens para dar-se conta da dificuldade. Assim, há claras afirmações de Levinas quanto à ficção literária entendida como forma plástica estética idolátrica em A realidade e sua sombra (1948). Nesta obra, a narrativa ficcional é desqualificada como incapaz de ensejar a saída do mesmo e inaugurar a relação ética com o outro. Na sua tese negativa a respeito da obra de arte, a literatura é claramente condenada. Porém, por outro lado, em oposição a esta tese negativa, encontram-se inúmeras referências sobre a importância da literatura em outros textos9.

Para se começar a dissipar essa aparente ambiguidade no modo de Levinas tratar a ficção narrativa ou poética é fundamental ter presente que Levinas frequentemente recorre à ficção literária em dois registros distintos que se cruzam de maneira bastante complexa. A hipótese aqui a ser apresentada é que para Levinas a ficção literária que está próxima da fenomenologia, tanto pode exibir o caráter encantatório da ontologia, quanto estimular a evasão do ser, pela ética da responsabilidade absoluta pelo outro10. 8 Cf. OLIVIER, « Diaconie et diachronie : de la phénoménologie à la théologie »: “D’une

part, une phénoménologie de l’invisible, comme phénoménologie de l’événement ou comme phénoménologie du visage, n’est pas une phénoménologie, et d’ailleurs Levinas lui-même le reconnaît ; mais d’autre part, c’est la phénoménologie de Husserl, qui révèle ses propres insuffisances ou ses propres incertitudes, ne serait-ce que dans son échec pour constituer l’autre à partir du propre ; c’est la pratique de la phénoménologie elle-même qui semble imposer un retrait par rapport à la conscience intentionnelle et exiger de remonter en deçà de l’ipséité, de la conscience et du présent. Ce ne serait donc pas Levinas, mais Husserl lui-même qui nous conduirait à transgresser les interdits phénoménologiques. Du côté de la tradition phénoménologique, Levinas se bornerait donc à prendre acte de la crise constitutive de la phénoménologie”. Desejo aproveitar esta sugestão de Olivier para tentar interpretar essa “crise da fenomenologia” como ainda fenomenologia secular e não teológica.

9 Cf. DAVIS, “Levinas and the Phenomenology of Reading”, para um bom exemplo de análise do problema criado pelas afirmações aparentemente contraditórias sobre o papel da literatura para os interpretes do pensamento levinasiano. Davis lembra que no ensaio posterior de Levinas sobre Proust é valorizado a obra do escritor francês no sentido ético do rompimento da estrutura do ser. Davis, porém, vê no ensaio sobre Proust contradição em relação às afirmações de Levinas em A realidade e sua sombra. Logo, para Davis a leitura levinasiana de Proust estaria sugerindo um equívoco, na melhor das hipóteses.

10 Ao considerar a ficção literária no contexto da fenomenologia levinasiana, atente-se para: 1) a importância da relação de Levinas com a obra de Maurice Blanchot,

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No seu registro ético, a fenomenologia radical da transcendência11 de Levinas integra a ficção literária como linguagem hiperbólica. O excesso, o superlativo, a ênfase são utilizados como desdizer hiperbólico, como linguagem ética que preserva o enigma do fenômeno. A ruptura com a ordem natural da correlação que sempre transforma o outro em tema para a consciência conduz a uma linguagem da exorbitância. O modelo maior e mais maduro dessa linguagem certamente é aquele desenvolvido em Outramente que ser ou para além da essência.

Nesta obra, a fenomenologia husserliana se transforma de maneira notável. Entre os conceitos fundamentais de Husserl que são alterados, a redução eidética é transformado por Levinas na redução do dito (Dit) ao dizer (Direr). Ocorre, assim, a passagem de uma intencionalidade centrada na questão do conhecimento para a responsabilidade ética que chega ao paroxismo da substituição. O movimento que re-inscreve a fenomenologia husserliana também pode ser percebido em alguns ensaios que precederam de pouco a publicação de Outramente (1974), que foram retomados nesta grande obra. Na re-edição do livro Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger, os três últimos ensaios introduzem algumas noções importantes para a compreensão da ficção literária na fenomenologia levinasiana12.

A hipérbole ou ênfase está associada ao que Levinas irá reivindicar como análise intencional, na qual ocorre a redução do dito

pois a leitura acurada do “espaço literário”, que sob muitos aspectos é paralela à temática da “sufocação” do ser, nos convence exatamente da necessidade da obra poética e crítica de Blanchot, que aos olhos de Levinas é fenomenologia. De resto, há inúmeras referências a Blanchot, quando Levinas apresenta a noção de Il y a. Na mesma direção, por exemplo, são feitas alusões às obras de Gotcharov e Shaskepeare, respectivamente, quando são apresentados os temas da fenomenologia da insônia e da tragédia do ser etc.; 2) o já citado ensaio sobre Proust, o texto sobre a poesia de Celan, a citação de Vida e Destino de Vassili Grossman e, principalmente, a referência à obra de Dostoievski, no contexto da linguagem ética hiperbólica da fenomenologia da alteridade.

11 Cf. CHOPLIN, « L'homme ou la littérature ? » Levinas et la phénoménologie de la transcendance radicale. Choplin neste artigo propõe a utilização desta expressão “fenomenologia radical da transcendência” para caracterizar a fenomenologia de Levinas. Em muitos aspectos, sigo de perto as sugestões de Choplin sobre o problema da escritura levinasiana em sua relação com a literatura. Contudo, não compartilho de sua posição ao final do artigo que estabelece uma dicotomia entre a literatura e o homem, para depois afastar Levinas da literatura representada por Maurice Blanchot, em nome da ética do outro homem. De resto, a grande lacuna do excelente artigo de Choplin é não tratar da relação profunda de Levinas com a obra de Dostoievski, caso o fizesse, a conclusão de seu artigo seria outra.

12 Cf. LEVINAS, En Découvrant L’Existence Avec Husserl et Heidegger: “O vestígio do outro”; “Enigma e fenômeno” e “Linguagem e Proximidade”.

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(Dit) ao dizer (Direr). O que Levinas retém de Husserl não é, portanto, um método puro e simples da fenomenologia transcendental estrito senso13. Segundo Levinas:

“Não é a palavra “transcendental” que eu reteria, mas a noção de análise intencional. Penso que, apesar de tudo, o que faço tem viés fenomenológico, mesmo que não haja redução segundo as regras exigidas por Husserl e sua fenomenologia não seja totalmente respeitada.”14

A análise intencional precisa da noção de vestígio, pois ela aponta para uma significação estranha da presença de uma ausência. Aqui ocorre uma radicalização que já está no próprio Husserl, pois a questão do irredutível vive no coração da fenomenologia15. O irredutível é aquilo que não pode ser reduzido, que não pode ser trazido a outra coisa. Mas Levinas precisa insistir mais do que Husserl no infinito, na desproporção, na provocação que vem da exterioridade. “O vestígio não é um sinal como qualquer outro, mas exerce a função de sinal”16. Enigma e sinal como linguagem hiperbólica, como único possível dizer que hiperbolicamente constantemente se desdiz.

Daí que a linguagem vai ser para Levinas sempre um relâmpago que atravessa o sensível do dito, lançando adiante sua imemorial epifania. Ao contrário da ‘fantasia perceptiva” de Husserl tão importante para a fenomenologia imanente da obra literária, a hipérbole é a figura de linguagem central para o método filosófico levinasiano.

“A ênfase significa figura de retórica, excesso de expressão, maneira de se exagerar e maneira de se mostrar. O termo é muito bom, como o termo

13 Cf. MURAKAMI, “Horizons de l’affectivité: l’hyperbole comme méthode phénoménologique de Lévinas”, onde Murakami procura matizar sua tese original sobre a presença de Husserl na obra de Levinas. Neste artigo, ele marca muito mais as diferenças entre Levinas e Husserl, sem negar, todavia, que o primeiro pertence de pleno direito à tradição fenomenológica. Entretanto, um grave problema, a meu ver, na sua posição atual, é sua ênfase na facticidade, que parece aproximar demais Levinas de Heidegger.

14 Cf. LEVINAS, De Dieu Qui Vient À L’Idée, p.126. 15 Cf. MALDINEY, “L’irréductible” In: L’irréductible, Revue EPOKHE, nº3, p.12. 16 Cf. LEVINAS, Humanisme de l’autre homme, p.66.

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“hipérbole”: há hipérboles em que as noções se transmutam. Descrever esta mutação é também fazer fenomenologia. É a exasperação como método da filosofia!” 17

A hipérbole ficcional de Dostoievski como fenomenologia radical da transcendência

No contexto da linguagem hiperbólica da fenomenologia radical da transcendência, Levinas refere ao que se poderia denominar de hipérbole ficcional central de Dostoievski: “Cada um de nós é culpado diante de todos por tudo e eu mais que os outros” 18. As metamorfoses no modo de apresentação e interpretação da hipérbole ficcional de Dostoievski, ao longo da obra de Levinas, indicam diferentes maneiras de aprofundamento da significação do Dizer que a partir da fórmula original da responsabilidade de Os Irmãos Karamazov vai hiperbolicamente desdizer incessantemente a linguagem temática do ser.

Zimborska-Leboda comenta de maneira sistemática alguns momentos nos quais a fórmula da responsabilidade de Dostoievski é empregada nos textos de Levinas, que são sinais muito elucidativos, porquanto apontam para um leque de matizes de significação da hipérbole ficcional segundo a hipótese de uma fenomenologia da transcendência radical:

1- O filosofo revela a universalidade da fórmula, da verdade ética (do mandamento), que a contem: «…tous les hommes sont responsables les uns des autres, et moi plus que tout le monde. C’est la formule de Dostoïevski…», “Todas as pessoas são responsáveis um perante o outro, e eu mais do que os outros. É a formula de Dostoíevski”;

2- Ele [Levinas] atribui especial importância para a segunda parte da fórmula (como exclusivamente importante), por que ela expressa a ideia central levinasiana sobre a assimetria da relação interpessoal: “Todos são responsáveis perante tudo e todos, mas eu mais do que todos”. A relação ética Eu – Outro, ao contrário da relação Eu – Tu de Martin Buber,

17 Cf. LEVINAS, De Dieu Qui Vient À L’Idée, p. 127. 18 Cf. LEVINAS, Autrement Qu’Être ou Au-Dela de Essence, p.228. Levinas aqui faz

referência de maneira condensada à passagem de Os Irmãos Karamazov,

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não pressupõe a reciprocidade. A assimetria desta relação, segundo Levinas, significa o excesso da responsabilidade do lado do eu, ou, aquela responsabilidade excessiva (infinita), da qual não se pode eximir, pelo fato de que o Outro faça o mal, cometa o crime;

3- A responsabilidade é originalmente escrita no eu humano desde tempos imemoriais (un passé immémorial), é heterônomo, é uma manifestação do “outro no mesmo”. Em termos de estrutura do eu, a responsabilidade que Dostoiévski acentua, vem antes da liberdade humana, é primeira à liberdade. Em Levinas, isso está relacionado à “re-ligiosidade do eu, que é relação pré-originária com o Outro;

4- Levinas revela mais um significado interessante da fórmula sobre a responsabilidade, colocando o acento na segunda parte, isto é, mostrando um sentido especial das palavras “e eu mais [culpado] do que os outros” («C’est le sens du “et moi plus que tous les autres” chez Dostoïevski»). O estado espiritual do sujeito, de acordo com Levinas, sobre o qual escreve Dostoíevski, está conectado com a inspiração interna dele, com inspiração através do Outro. O Eu, consciente de sua vocação à responsabilidade excessiva, é capturado pelo Outro (posédé), ele responde à chamada dele “apesar de si”, como em delírio. Mas neste “apesar de si”, fala Levinas, é a situação, sobre a qual escreve Dostoíevski, o eu torna-se mais do que era antes. De acordo com o filosofo, a vocação dele, a elevação no sentido ético, se mostra nisso. “O eu é escolhido: ninguém mais pode fazer o que o Eu está fazendo”, - fala Levinas. Este é o sentido do dever que ele lê nas palavras de Dostoíevski “e eu sou mais [culpado] do que outros”, sublinhando sua ideia central («asymétrie de l’intersubjectivité») e a situação excepcional do Eu (la situation exceptionelle du Moi). Citando a mesma fórmula de “Irmãos Karamazov” e salientando a segunda parte dela em Le Dieu qui vient à l’idée, Levinas escreve: “Nesta segunda parte da frase, o Eu já não se considera um caso especial de Eu como si mesmo. Ele torna-se o ponto (singular) único, que suporta o Universo”. Esta mesma situação, expressa pela fórmula de Dostoiévski, Lévinas define com as palavras vulnérabilité («vulnerabilidade», «sensibilidade»), la

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culpabilité absolue («culpabilidade absoluta»), la responsabilité absolue («responsabilidade absoluta»)19.

Levinas quando realiza a fenomenologia do desejo, no citado ensaio sobre o vestígio, comenta:

“Há uma cena em Crime e Castigo de Dostoievski, onde a propósito de Sonia Marmeladova que observa Raskolnikov no seu desespero, Dostoievski fala de “insaciável compaixão”. Ele não diz “inesgotável compaixão”. Como se a compaixão que vai de Sonia a Raskolnikov fosse uma fome que a presença de Raskolnikov alimentasse para lá de toda a saturação, aumentando até o infinito essa fome.”20

A utilização da hipérbole ficcional aqui se dá no contexto da fenomenologia do desejo, isto é, para apontar sinais da exorbitância infinita de um desejo que não está vinculado à necessidade, Levinas recorre a uma passagem expressiva de Crime e Castigo que não é mais do que uma metamorfose da fórmula da responsabilidade de Dostoievski. No ensaio em questão, é necessário distinguir o desejo fundado na falta, no apetite, de um desejo como bondade. No segundo caso, esse desejo que vem do infinito me destitui de mim mesmo, aumentando sempre mais minha responsabilidade em relação ao outro. Sonia segue com Raskolnikov para a prisão na Sibéria.

Com a recente publicação do primeiro volume da edição crítica das obras completas de Levinas, é possível finalmente ter acesso aos cadernos da prisão agora publicados na íntegra. Este novo material registra as aventuras fenomenológicas dolorosas de um prisioneiro dos alemães, na época da segunda guerra mundial. No caderno número dois, há uma citação de Memórias do Subsolo de Dostoievski: “É no desespero que estão os prazeres os mais ardentes, sobretudo quando se tem consciência deste desespero”21. Nesta citação, percebe-se que o homem do subsolo (podpolia), sobretudo na segunda parte da 19 Cf. ZIMBORSKA-LEBODA, “Kainov otvet Bogu, ili Otvetstvennost´ (Ia-dlia-

Drugogo): ot Dostoievskogo do Levinasa”, p.214-222. 20 Cf. LEVINAS, En Découvrant L’Existence Avec Husserl et Heidegger, p. 193. 21 Cf. LEVINAS, Levinas 1, Carnets de Captivité e autres inédits, p.68.

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novela, encontra-se enclausurado na sua incapacidade de romper com o círculo fechado do subsolo, quando não consegue consumar sua relação amorosa com a prostituta da novela. Aqui se está descrevendo fenomenologicamente a realidade obsedante do murmurinho do ser. Tema que vai ser desenvolvido em Da Existência ao Existente, mediante a apresentação da noção de Il y a.

Em Outramente que ser ou para além da essência, Levinas tem a titânica tarefa ética de dizer a estrutura da subjetividade outramente. Em uma seção intitulada Testemunho e Linguagem, se diz essa subjetividade como “não-lugar onde a inspiração pelo outro é também expiação pelo outro”, “psiquismo que altera a substância enquanto essa substância suporta todas as coisas”, “alteração onde se acusa a identidade”, “substituição que não é o acontecimento psicológico da compaixão”, “mas que torna possível as paradoxais possibilidades psicológicas do se-colocar-no lugar do outro”, “subjetividade do sujeito enquanto ser sujeito para todos”, “susceptibilidade pré-originária”, “antes de toda a liberdade”, “fora de todo o presente”, “acusado no desconforto”, “na in-condição do acusativo”, “no eis-me aqui”: “que é obediência à glória do infinito me ordenando ao Outro”22.

Logo na frase seguinte, Levinas diz a fórmula da responsabilidade de Dostoievski: “Cada um de nós e culpado diante de todos por todos e eu mais do que os outros”. É interessante notar que a frase de Dostoievski é proferida entre um conjunto primeiro de expressões hiperbólicas que, por assim dizer, referem-se negativamente à subjetividade como substância ontológica, e um segundo conjunto de expressões enfáticas ainda mais radicais: “subjetividade do sujeito como perseguição e martírio”, “Recorrência que não é consciência de sí”, ”onde o sujeito se manteria ainda distante dele mesmo na não indiferença”, “recorrência que não é coincidência consigo”, “recorrência além de si mesmo”, “além da indiferença em si”, “precisamente substituição ao outro”, “um sem atributo”, “sem mesmo a unidade do um”, “um absoluto de toda a relação de todo jogo, literalmente sem situação”, “sem permanência”, expulso de todos e de si mesmo”, “dizendo um ao outro “eu” ou “eis me aqui’, “O eu despossuído pelo traumatismo da perseguição de sua subjetividade vergonhosa e imperialista”, “tornado “eis me aqui” na transparência sem opacidade”, “Eis-me aqui” como testemunho do Infinito” 23.

22 Cf. LEVINAS, Autrement Qu’Être ou Au-Dela de Essence, p.228. 23 Cf. LEVINAS, Ibidem, p.229.

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Gostaria de comparar brevemente os estilos hiperbólicos de Levinas e Nietzsche, especialmente as leituras de ambos do “idiota”, para iluminar a compreensão do que está em jogo na linguagem da fenomenologia de Levinas. Entre as passagens da escritura ficcional de Dostoievski, nas quais ocorre a hipérbole ficcional da responsabilidade, uma das mais impressionantes no sentido levinasiano, que gostaria de destacar, é a cena do príncipe Michkin consolando Rogojin, em um dos momentos finais de O Idiota. Ao consolar Rogojin, que estava sofrendo muito após ter assassinado Nastácia Filipovna, Míchkin é o personagem que movido pelo desejo (insaciável) do infinito é levado ao sacrifício. Levinas parece que não alude a esta cena em particular nos seus escritos publicados, mas ainda assim, em uma entrevista, há referência ao romance de Dostoievski O Idiota24.

Nietzsche menciona o “idiota” quando discute o tipo Jesus no Anticristo. Na sua descrição, enfatiza a passividade de Jesus no seu amor, o caos de sua vida como via de superação do niilismo europeu. A fraqueza de Míchkin, sua passividade, sua renúncia ao moralismo, é muito fraca para assumir a responsabilidade pela diversidade dos homens. Príncipe Míchkin como o tipo Jesus é porta voz da responsabilidade no sentido nietzschiano, pois é forte o bastante para não julgar e não castigar moralmente o outro. Na sua fraqueza, na sua idiotia, é o mais forte, na sua resposta que se dirige a todos, na experiência dolorosa comum e solitária25.

Levinas também lembra a passividade do “eu” destituído de sí da subjetividade ética que, não oferece resistência, na sua vulnerabilidade: “a passividade consiste em entregar-se, em sofrer além de toda a passividade, passividade que não se assume, chego a fissão do si mesmo”26. Também o Outro, na sua imensa fragilidade, do olhar singelo da nudez da face, é a única resistência. Não condena, não exige nada em sua fraca infinita violência. A fraca visitação do rosto

24 Cf. CIOCAN, Levinas Concordance. Até o momento, não há registro de referência ao O Idiota nas vinte e oito obras de Emmanuel Levinas publicadas. Também a edição crítica da obra completa de Levinas, inclusive de vários inéditos, que ainda está em curso até agora não registrou nenhuma entrada. Entretanto, em uma entrevista, Levinas fala da importância de O Idiota, ver a esse respeito PFEUFFER, Die Entgrenzug der Verantwortung, Nietzsche-Dostojewskij-Levinas, p.51: “Levinas relaciona a relação do “eu” [com o outro] na frase de Dostoievski [fórmula da responsabilidade], que se trata de um idiota.” Pfeuffer cita a fonte em uma entrevista realizada com Florian Rötzer (Ed.): Französiche Philosophen im Gespräch..

25 Cf. PFEUFFER, Die Entgrenzug der Verantwortung, Nietzsche-Dostojewskij-Levinas, p.47.

26 Cf. LEVINAS, De Dieu Qui Vient À L’Idée, 127.

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do Outro não é moralista, mas diz: “não matarás”. “A significância do vestígio não é retidão que marca ainda o sinal”27.

A fenomenologia da transcendência radical precisa muito da ficção hiperbólica para dizer algo indizível. Esta nova fenomenologia afinal não é tão nova assim, pois os românticos, Nietzsche e finalmente Levinas a estão praticando. Aqui talvez esteja a irmandade entre Levinas e Blanchot em silêncio além de toda a controvérsia filosófica e literária. Estes dois amigos estão fazendo algo que se chama ...fenomenologia.

referênciAs bibliográficAs

CHOPLIN, Hugues. « L’homme ou la littérature ? » Levinas et la phénoménologie de la transcendance radicale In: Revue philosophique de la France et de l’étranger, 2004/2 Tome 129, p. 199-210_______________ « Tourner la phénoménologie » In: Revue philosophique de la France et de l’étranger, 2004/2 Tome 129, p. 147-148.

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27 Cf. LEVINAS, Humanisme de l’autre homme, p.65.

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