“O que transformou o mundo é a necessidade e não a utopia” - Estudos sobre Utopia e Ficção...

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“O que transforma o mundo é a necessidade e não a utopia” Estudos sobre utopia e ficção em José Saramago Burghard Baltrusch (ed.) Frank & Timme Verlag für wissenschaftliche Literatur Baltrusch (ed.) Utopia e ficção em José Saramago iBroLiT – Ibero-Romance Studies in Literature and Translatology 4 Apesar de José Saramago se ter mostrado crítico em re- lação ao significado tradicional do conceito de utopia, a sua obra oferece muitas vias de análise de temáticas rela- cionadas. Os trabalhos aqui reunidos centrar-se-ão em temas que abrangem a (re)aprendizagem de humanidade, o pós-colonial, o iberismo, a imagologia, a tradução, a lín- gua, o estilo, a representação da mulher, o imaginário, a identidade e as representações de cultura e história. En- tre outros aspectos, trata-se de ilustrar o facto de Sara- mago nunca ter entendido a utopia como uma via paralela à realidade. Antes, considerou-a como extensão do pre- sente histórico no amanhã, na sua possível transformação em “acção contínua” por convicção, o que também chegou a definir como “a minha utopia”. Although seen as critical of the traditional concept of uto- pia, José Saramago’s oeuvre enables many approaches to analysing related themes. The works gathered here will focus on a range of topics, spanning the (re)learning of humanity, postcolonialism, iberianism, imagology, trans- lation, language, style, the portrayal of women, imagina- tion, identity, and cultural and historical representations. Amongst other things, this volume aims to illustrate that rather than understanding utopia as disconnected from reality, Saramago saw it as an extension of the historic present in the immediate future, as a ‘continuous act of conviction’, which he also came to define as ‘my utopia’. EUR 49,80 ISBN 978-3-86596-496-0 www.frank-timme.de

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Baltrusch (ed.) Utopia e ficção em José Saramago

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Burghard Baltrusch (ed.) “O que transforma o mundo é a necessidade e não a utopia”

Ibero-Romance Studies in Literature and Translatology – Studies in Contemporary Literature, vol. IV

Series editors: Camiño Noia Campos, Burghard Baltrusch, Teresa Bermúdez and Gabriel Pérez Durán

iBroLiT

Estudos Iberorrománicos de Literatura e Tradutoloxía Ibero-Romance Studies in Literature and Translatology

Honorary Editor:

Camiño Noia Campos Editorial Board:

Burghard Baltrusch, Teresa Bermúdez Montes, Gabriel Pérez Durán Advisory Board:

Silvia Bermúdez (University of California, Santa Barbara) Ana Paula Ferreira (University of Minnesota) Susana Kampff Lages (Universidade Federal Fluminense) Ria Lemaire Mertens (Université de Poitiers) Inocência Mata (Universidade de Lisboa) Lênia Márcia Mongelli (Universidade de São Paulo) Cláudia Pazos Alonso (University of Oxford) John Rutherford (University of Oxford) Kathrin Sartingen (Universität Wien) Fernando Venâncio (Universiteit van Amsterdam) Yara Frateschi Vieira (Universidade Estadual de Campinas) Michaela Wolf (Karl-Franzens-Universität Graz)

Editorial Contacts:

GAELT Universidade de Vigo, Facultade de Filoloxía e Tradución 36310 Vigo, Galiza / España [email protected] | http://gaelt-uvigo.blogspot.com

Burghard Baltrusch (ed.)

“O que transforma o mundo é a necessidade e não a utopia”

Estudos sobre utopia e ficção em José Saramago

Verlag für wissenschaftliche Literatur

© Series Design: X. Bieito Arias Freixedo & Gabriel Pérez Durán

© Photographs of Casa dos Bicos/Fundação José Saramago: Burghard Baltrusch.

This edition has been funded by the GAELT research group of the University of Vigo (H012, 2010–2013). Revision of the texts: Burghard Baltrusch & Ana Bela Almeida. Layout: Rita Bugallo. ISBN 978-3-86596-494-6 ISSN 2194-752X © Frank & Timme GmbH Verlag für wissenschaftliche Literatur Berlin 2014. Alle Rechte vorbehalten. Das Werk einschließlich aller Teile ist urheberrechtlich geschützt. Jede Verwertung außerhalb der engen Grenzen des Urheberrechts- gesetzes ist ohne Zustimmung des Verlags unzulässig und strafbar. Das gilt insbesondere für Vervielfältigungen, Übersetzungen, Mikroverfilmungen und die Einspeicherung und Verarbeitung in elektronischen Systemen. Herstellung durch das atelier eilenberger, Taucha bei Leipzig. Printed in Germany. Gedruckt auf säurefreiem, alterungsbeständigem Papier. www.frank-timme.de

Konkrete Utopie steht am Horizont jeder Realität; reale Möglichkeit umgibt bis zuletzt die offenen dialektischen Tendenzen-Latenzen.

A utopia concreta encontra-se no horizonte de toda realidade; a possibilidade real compreende, até ao último instante, as tendências-latências dialécticas abertas.

(Ernst Bloch 1959: 258)

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“O que transforma o mundo é a necessidade e não a utopia” – sobre utopia e ficção em José Saramago

Burghard Baltrusch 9

Apresentação dos estudos 19

Utopia e ficção em José Saramago 29

José Saramago: da realidade à utopia. O Homem como lugar onde Ana Paula Arnaut 31

A nova Mensagem do trans-iberismo – sobre alguns aspectos utópicos e metanarrativos no discurso saramaguiano

Burghard Baltrusch 53

Tradução e utopia pós-colonial – a intervenção invisível de Saramago Ana Paula Ferreira 73

José Saramago e a iberização do português. Um estudo histórico Fernando Venâncio 95

Memorial do Convento de José Saramago: crítica e utopia no uso da técnica da enumeração

José Cândido de Oliveira Martins 127

Mulher e utopia em José Saramago – a representação da Blimunda em Memorial do Convento

Burghard Baltrusch 155

8

O Conto da Ilha Desconhecida – possibilidades imagináriasRosângela Divina Santos Moraes da Silva 181

O labirinto da memória: a Guerra Civil de Espanha em O Ano da Morte de Ricardo Reis

Ângela Maria Pereira Nunes 197

José Saramago: “Cadeira” ou a queda de Salazar Isabel Araújo Branco 217

Sobre a convergência do espaço literário, cultural e político como questionador de uma identidade social em José Saramago

Raquel Baltazar 227

“Vale mais ser romancista, ficcionista, mentiroso” – realidade e ficção no romance A Viagem do Elefante de José Saramago

Yvonne Hendrich 241

Nationale und koloniale Identitäten im historischen Roman: José Saramagos A Viagem do Elefante

Verena-Cathrin Bauer 263

Autoras e autores 279

Bibliografia 285

Índice temático-onomástico 305

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“O que transforma o mundo é a necessidade e não a utopia” – sobre utopia e ficção em José Saramago

Burghard Baltrusch

A vontade utópica autêntica não é de modo nenhum uma ambição infinita, pelo contrário, ela quer o meramente imediato e, dessa forma, o conteúdo não possuído do encontrar-se [Sich-Befinden] e do estar-aí [Da-Sein] finalmente mediado, aclarado e cumprido, cumprido de modo adequado à felicidade.

(Ernst Bloch)1

Sobre a crítica do discurso utópico em Saramago

O título deste volume parte de uma intervenção de José Saramago durante a conferência “Quixotes hoje: utopia e política”,2 aquando do V Fórum Social Mundial em Porto Alegre (2005): “Atenção, muita atenção, porque eu vou pronunciar uma frase histórica: o que transforma o mundo é a necessidade

1 “Der echte utopische Wille ist durchaus kein unendliches Streben, vielmehr: er will das bloß Unmittelbare und derart so Unbesessene des Sich-Befindens und Da-Seins als endlich vermittelt, erhellt und erfüllt, als glücklich-adäquat erfüllt” (1959: 20, trad. minha).2 Onde partilhou palco com Ignacio Ramonet, Federico Mayor Zaragoza, Eduardo Galeano, Luiz Dulci e Roberto Savio; parcialmente disponível em formato vídeo em Saramago 2005c (as transcrições seguintes são minhas).

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e não a utopia”.3 Tanto neste debate como também nas entrevistas dadas por ocasião da sua participação no Fórum, Saramago defendeu uma postura aparentemente paradoxal em relação ao conceito de utopia, uma das ideias-chave escolhidas para aquele congresso (“Um outro mundo é possível”). Embora uma versão abreviada acabe de ser publicada, de forma póstuma, na revista Blimunda (Saramago 2014), preferimos transcrever algumas das passagens centrais do discurso oral do autor, uma vez que se trata de uma intervenção de grande impacto nos meios de comunicação social e que resulta especialmente significativa para o tema deste volume:

Tenho uma má notícia para vos dar […]: eu não sou utopista. E, pior notícia ainda, considero a utopia, ou o conceito de utopia, não só inútil como também tão negativo […] como a ideia de que quando morremos todos vamos para o paraíso. A utopia, segundo se diz, começou com Thomas More, com o seu livro Utopia, publicado em 1516, e isso coloca o nascimento de uma palavra, de uma ideia, mas podíamos ir muito mais atrás, podíamos ir a Platão. No fundo, a utopia nasce sem nome. E talvez o que esteja a atrapalhar aqui tudo isto seja o nome porque, curiosamente, tudo quanto foi dito antes podia ter sido dito com igual rigor […] sem a introdução da palavra utopia. Demonstrarei, ou pelo menos tentarei demonstrar mais adiante, [que] há uma questão que é indissociável da utopia […], ou do anseio do ser humano por melhorar a vida (e não só no sentido material), [por] melhorá-la também no sentido […] da dimensão espiritual, [da] dimensão ética, [da] dimensão moral. Está indissociavelmente ligada, e parece que não, à revitalização e, se quiserem, à reinvenção da democracia. [Para] os 5 milhões de pessoas que vivem na miséria […] a palavra utopia não significa rigorosamente nada. (Saramago: 2005c)

A sua “frase histórica”, no sentido de o que transforma o mundo ser a necessidade e não uma utopia, relacionou-a, também, com o D. Quixote que, no final da sua trajectória fictícia

resolve voltar a ser Alonso Quijano, […] por regressar aonde principiou: à humilde razão humana com a qual temos que viver e com a qual temos de trabalhar. Curiosamente, muitíssimos anos

3 Não existe um registro escrito por Saramago desta frase. Foi pronunciada já na fase das perguntas da intervenção referida e recolhida, de forma independente, e com ligeiras variantes, em Gutkoski 2005, Joffily 2005: 36 (que é a que aqui reproduzimos), Reis 2005 e Santiago 2005.

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depois de Platão, e muitíssimos anos depois de Thomas More e bastantes anos depois também de Fourier, […] outro ideólogo da utopia, aparece um poeta francês chamado Rimbaud que escreveu meia dúzia de palavras que são essenciais em tudo isto quanto estamos a dizer aqui. Esse verso diz simplesmente isto: “la vraie vie est ailleurs” […]. Por aqui se podia estabelecer um nexo de utopia entre, por exemplo, Thomas More e o que haja de utópico em D. Quixote […]. No fundo D. Quixote é um pragmático. (Saramago: 2005c)

Também José Saramago tem sido, neste sentido, um pragmático ao insistir que a importância da utopia não reside no seu significado etimológico como ‘não-lugar’, como esperança espácio-temporal sempre adiada para um futuro longínquo, mas na sua possível transformação em “acção contínua” imediata, o que chegou a definir como “a minha utopia” (Saramago 2005b):4

Quando vos digo que não sou um utopista e que até tenho que dizer, com toda a franqueza, que me desagrada […] o discurso sobre a utopia porque […] é o discurso sobre o não existente. […] O grande equívoco em que caímos todos [que falamos de utopia] é imaginar que aquilo que nós precisamos hoje, mas que não podemos ter por faltarem os meios […], [é] um pormenor muito simples: quem é que nos garante que as pessoas que então estejam no mundo […] — porque daqui em 150 anos ninguém de nós estará vivo para o ver —, quem é que nos garante que eles estarão interessados em aquilo em que nós agora estamos interessados? […] Então, aquilo que a mim me parece como mais sobriamente, menos retoricamente e, se permitem, até menos demagogicamente, é dizer que o único lugar no tempo onde […] o nosso trabalho pode ter um efeito, e que esse possa ser reconhecido por nós, discutido por nós, contrastado por nós, para passar ao futuro imediato, é o dia de amanhã. O dia de amanhã é a nossa utopia. (Saramago 2005c; cf. também 2005b)

4 Cf. também: “[Que se] teria de inventar, em Porto Alegre, enfim, algo que não fosse uma ONG, que se dilui na quantidade quase astronómica de ONGs, mas que fosse, efectivamente, que se apresentasse como um fórum de debates de ideias não simple[s]mente que as pessoas se encontram e vão ter ideias e ficam, enfim, contentes com isso e vão aprender algo, e comunicar algo, mas que seja mais do que isso. Que seja um instrumento para a acção.” (Saramago 2005b).

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Há nestes enunciados bem mais do que uma retórica graciosa, uma vez que remetem para a histórica controvérsia ideológica entre socialismo (utópico) e marxismo. Em Porto Alegre, antes de colocar a questão de uma prevalência da necessidade do ser sobre as ideias e a boa-fé transformadoras, Saramago fez algumas referências muito breves aos textos fundadores do pensamento utópico, porém, eram suficientes para deixar entrever a sua intenção: em Platão ainda não constava um emprego do conceito de utopia, embora A República apresente a ideia de um estado perfeito, associado à perfeição das ideias, da qual o mundo terrenal é só uma imitação inconclusa. Muitos séculos depois, inspirada por esses princípios platónicos, a Utopia de Thomas More (1516) esboça uma ilha imaginária, onde uma sociedade perfeita daria direito à educação e à saúde, sem necessidade de propriedade. Esta utopia surge em paralelo com a chegada de navios europeus a outras terras no Atlântico, onde More acaba por situar a sua ilha descrita, precisamente, por uma personagem portuguesa, Rafael Hythloday, companheiro de viagem de Américo Vespúcio. Este Rafael faz uma crítica da sociedade europeia da época e da sua economia pré-capitalista, com cuja actualidade Saramago talvez tenha concordado:

Though, to speak plainly my real sentiments, I must freely own that as long as there is any property, and while money is the standard of all other things, I cannot think that a nation can be governed either justly or happily: not justly, because the best things will fall to the share of the worst men; nor happily, because all things will be divided among a few (and even these are not in all respects happy), the rest being left to be absolutely miserable. (More 2005: 35)

Embora haja quem diga que, até certo ponto, a utopia de More talvez tenha tido uma intenção meramente satírica, a sua influência sobre o uso do conceito e a posterior evolução de uma literatura utópica e distópica provou ser fundamental. A partir de Utopia, o termo penetrou no vocabulário político-social da época, designando qualquer sistema de governo imaginário, incluindo, em retrospectiva, a República de Platão. Porém, uma utopia como conceito uniforme e universal sempre acabaria por ter um carácter totalitário. É justamente esta apreciação crítica que

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transparece nas palavras de Saramago quando designa, como única utopia válida, o impulso de mudar a realidade (através da “acção contínua”, cf. supra), uma ideia que também ilustram, de uma forma muito plástica, os enredos e as principais personagens dos seus romances.

No entanto, a sua crítica da utopia continua a ser uma contribuição para o debate iniciado pelos fundadores do marxismo (cf. Joffily 2005) que se tinham dirigido, no seu Manifesto do Partido Comunista (1848), contra os “diferentes sistemas utópicos” (Marx & Engels 1973: 58) no contexto do socialismo e comunismo novecentistas. Concretamente, Marx e Engels tinham questionado as propostas e iniciativas social-utopistas de Henri de Saint-Simon, Robert Owen e Charles Fourier, por estes não terem reconhecido a capacidade do proletariado para a organização e acção históricas auto-determinadas (cf. ibid.: 490). Assim, os fundadores do marxismo aproximaram o utópico do reaccionário, uma crítica que ainda subjaz, embora de forma bastante actualizada, às reflexões saramaguianas. Em “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”, Friedrich Engels (1880) chegou a consolidar a conotação pejorativa do conceito, constatando que o socialismo científico representaria o fim da utopia.

Embora Saramago tenha reclamado, reiteradamente, uma revisão integral do conceito de esquerda (cf. 2005c), a sua crítica da utopia ainda lembra, vagamente, o discurso novecentista de Engels: “As causas fundamentais de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas […] na filosofia mas na economia da época em questão” (Engels 1973: 210, trad. minha), ou seja, por extensão, na práxis em geral. É este pragmatismo que reaparece, transformado e adaptado às circunstâncias políticas e sócio-económicas da globalização, na defesa que realizou Saramago das figuras de Sancho Pança e D. Quixote (2005c).

Como era de esperar, o autor de Jangada de Pedra não ficou ancorado na perspectiva marxista que ainda vigora em certos autores actuais que, como Jameson, consideram que a utopia não nos ajuda a imaginar um futuro melhor e só demonstra a “nossa total incapacidade de imaginar tal futuro” (2006: 169). Saramago, porém, ao reduzir o valor da utopia à imediatez do amanhã, deixou uma porta aberta para a salvação de certos aspectos positivos da ideia utópica:

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Se eu pudesse riscava a palavra utopia dos dicionários. Mas claro, não posso, não devo e nem o faria. [...] [H]á que reconhecer que os jovens são muito sensíveis à ideia da utopia. [...] se eu tivesse que substituí-la, então, enfim, substituí-la-ia por uma palavra que já existe: esta palavra é simplesmente amanhã. [...] Porque o amanhã é a única utopia [...]. (Saramago 2005b)

Saramago estava consciente de que uma substituição completa da utopia pelo pragmatismo, como a propõe uma corrente central do marxismo, viria desembocar em discurso neo-liberal. O slogan “there is no alternative”, exaustivamente usado por Margaret Thatcher, nos anos de 1980, para enfatizar a bondade da globalização capitalista e do livre comércio para as sociedades modernas, poderia ser invocado como exemplo de um discurso pragmático radicalizado. Assim, a crítica saramaguiana da utopia não pretende excluir certas possibilidades de reabilitação, como aquela exposta por Karl Mannheim que, em Ideologia e Utopia (1929), adverte para o perigo de que um “desaparecimento da utopia conduza a um estado de coisas estático, no qual o próprio ser humano é transformado em coisa” (1965: 225, trad. minha).

O discurso de Saramago aproxima-se, assim, do conceito utópico de Ernst Bloch que se tinha distanciado, em O Princípio Esperança (1959), da crítica realizada por Marx e Engels, como também das noções abstractas de More e Fourier, entre outros. O filósofo neomarxista propunha o oximoro de uma “utopia concreta” que estaria “no horizonte de toda a realidade” como uma “possibilidade real” (1959, 3: 258). Ao colocá-lo neste contexto, o discurso saramaguiano de uma resistência antiglobalização ultrapassa o debate histórico entre os socialismos utópico e científico. Na sua intervenção de 2005, o Nobel português também usara a metáfora do Quixote reescrito por Pierre Ménard, do conhecido conto de Borges, relacionando-a com a necessidade de redefinição ou retradução constante dos conceitos de utopia ou justiça, entre outros (cf. Saramago 2005c).

A sua distância crítica a respeito de um conceito tradicional da utopia reflecte, além disso, a tensão contínua entre pessimismo e optimismo numa obra que sempre oscilou entre uma concepção marxista da História e a sua transformação ou em “dialéctica negativa” (Adorno 1966) ou em semiótica da resistência (cf. p. e. Tarasti 2009). Partindo de uma atitude relativamente próxima do “optimismo militante” de Bloch (1959, 1: 144),5 Saramago

5 Cf. também a proposta de I. Rocha 2009.

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sempre fez questão de pôr em causa as grandes metanarrativas e estruturas sócio-culturais como a religião ou a própria democracia. Em relação a esta última, poderíamos tornar a evocar a conferência de 2005 em Porto Alegre, onde entreteceu as grandes questões da utopia e da democracia na actualidade.6

Em consequência, no pensamento ideológico e literário de Saramago a utopia de uma organização social baseia-se, antes, na ideia de solidariedade, de resistência popular e de activismo anti-sistémico, tal como o ilustram A Jangada de Pedra (1986) ou o Ensaio sobre a Cegueira (1995), por exemplo. É uma “utopia como práxis” (I. Rocha 2009: 8), cuja literarização tem vindo a questionar as diferentes institucionalizações sistémicas do conceito de realidade, uma realidade à qual só podemos aceder através das suas representações culturais.

Quando Linda Hutcheon observou, em 1988, que “the relation of power to knowledge and to historical, social, and ideological discursive contexts is an obsession of postmodernism” (86), já era evidente que a obra saramaguiana até então correspondia a esta interpretação, para não falar da obra posterior. Porém, o que o autor português acrescenta a um certo mainstream na teorização pós-modernista da literatura, e da cultura em geral, motivado talvez pela própria experiência sócio-cultural, é o ímpeto semiótico, estético e político da resistência:7 Só podemos mudar as representações culturais institucionalizadas ao demonstrarmos, incessantemente, o seu carácter de construção, sempre artificial e ideológico, ou seja, ao praticarmos, crítica e continuadamente, uma tradução cultural, histórica e sócio-política do legado sistémico.8

6 “Não se repara em que a democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada. Porque o poder do cidadão, o poder de cada um de nós, limita-se, na esfera política, a tirar o governo de que não gosta, e é por outro de que talvez venha a gostar, nada mais. Mas as grandes decisões são tomadas numa outra esfera e todos sabemos qual é: as grandes organizações financeiras internacionais, os FMIs, a Organização Mundial de Comércio, os bancos mundiais, a OCDE, tudo isso; nenhum destes organismos é democrático. […] Quem é que escolhe os representantes dos países nestas organizações? Os respectivos povos? Não. Onde é que está então a democracia?” (Saramago: 2005c, cf. também 1993 ou 2002b).7 Cf. também Arnaut: “no que diz respeito à cena literária portuguesa, não julgamos ser conveniente aceitar as teorias relativas ao facto de, no (re)aproveitamento que fazem do passado histórico, os textos post-modernistas consubstanciarem uma redução apolítica da História à estética, com o consequente afastamento em relação a qualquer forma de ideologia” (2010b: 137).8 Em termos identitários, por exemplo, Saramago fê-lo através da revisitação do imaginário nacional português e, concretamente, do iberismo (cf. também “A nova Mensagem do trans-

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Também o próprio acto de ler surge, na obra do Nobel português, como uma afirmação dupla de colaboração e resistência ou, até, de interrupção da História. Nos seus romances, as vozes narradoras, em constante diálogo com o público leitor, costumam evocar o pano de fundo de um programa ético-político e de uma crítica da cultura (ocidental), com o qual Saramago sugere a necessidade de um processo revolucionário a partir do interior do próprio sistema, apesar de todas as cumplicidades inevitáveis.

Estas e outras concepções utópicas particulares viram o significado etimológico grego de utopia, como “não-lugar” ou “lugar nenhum”, do avesso, como acontece no caso daquela Península Ibérica que se transforma em jangada e acaba por ser colocada num lugar tão simbólico como concreto entre a América e a Europa. Mas a obra saramaguiana também convoca, em termos pós-coloniais, a ideia do lugar do Outro e, também, de um outro mundo possível, da passagem da identidade à alteridade, a fim de se alcançar uma significação nova e liberta dos padrões do passado. Saramago não quis entender a utopia como um futuro longínquo ou uma via paralela à realidade, mas como extensão do presente histórico no amanhã, uma vez que, nas palavras de Bloch, “o conteúdo histórico da esperança [...] é a cultura humana na relação com seu horizonte concreto-utópico” (1959, 1: 108, trad. minha).

É também neste sentido da “utopia concreta” e da “imaginação construtiva” (Bloch 1959) que a obra literária surge, nas palavras do Saramago bloguista de 2009, como o “trabalho de quem traduz”, como um “texto-tradução”, cuja instância autoral assume a responsabilidade, “inevitavelmente ambivalente”, de transportar “uma determinada percepção de uma realidade social, histórica, ideológica e cultural” para um “entramado linguístico e semântico”, igualmente ambivalente (Saramago 2009d: 152-153).

O facto de as intervenções de Saramago incluírem, sobretudo na última década da sua vida, um importante discurso tradutológico9 ilustra como o autor sempre soube tomar o pulso aos debates e aos desenvolvimentos teóricos mais inovadores do momento, fossem estas mais académicas ou políticas. A adopção da ideia de que todas e “todos somos traduzidos e

iberismo” e “José Saramago e o idoma português”, neste volume). 9 Para uma análise da faceta do tradutor literário cf. Ferreira, neste volume.

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todos somos tradutores” (Saramago 2003), está intimamente relacionada com o projecto de politização de uma cultura estética só aparentemente autónoma, uma ideia já presente na obra saramaguiana com anterioridade ao Manual de Pintura e Caligrafia, e que relaciona a ideia de tradução com a tarefa da “acção imediata” da “utopia concreta”.

Neste sentido, praticamente toda a obra de José Saramago encontra-se inserida no contexto da problemática relação entre juízos estéticos e políticos.10 O autor sempre se mostrou consciente do facto de o político já não poder representar um modelo estético em termos de categoria unificadora e que o estético, em princípio, já não serve como modelo para o político. Ainda assim, a obra saramaguiana sugere uma literatura que se reveste de um estatus estético paradigmático, uma vez que subverte autoridades e estruturas de poder, podendo transformar-se num discurso cultural e político alternativo. Em certo sentido, o discurso estético saramaguiano até poderia estar a reclamar uma reescrita ou reinvenção politizada do sensus communis aestheticus kantiano (Crítica do Juízo, §40) através da noção do “texto-tradução”. A sua proposta de tradução entre os juízos estético e político é uma tarefa sempre alternativa e permanente; é a tarefa de quem traduz visando a utopia muito concreta da “acção contínua”.

10 Para uma abordagem deste problema no contexto do pós-estruturalismo cf., por exemplo, Carroll 1984.

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Apresentação dos estudos

Como é natural, o presente volume não poderá satisfazer todas as expectativas em relação a um tema tão vasto e exigente no contexto de uma das obras literárias mais importantes do período pós-revolucionário em Portugal. Embora queira contribuir a desenvolver novas perspectivas, não poderá analisar, de forma sistemática, todo o complexo da questão de ‘utopia e ficção’ em José Saramago. Portanto, os estudos aqui reunidos restringir-se-ão à exploração de temas concretos, embora inter-relacionados, com a esperança de estimular futuros debates e continuações.

Uma primeira abordagem do tema desta colectânea de estudos realiza-se em “José Saramago: da realidade à utopia. O Homem como lugar onde”, de Ana Paula Arnaut. Este trabalho parte de alguns textos fundadores do conceito utopia para pôr em evidência que, no caso de José Saramago, em regra, a procura de uma (im)possível sociedade livre e perfeita assume contornos de tonalidades diversas. O desejo de cenários diferentes daqueles em que vivemos, mais justos e fraternos, não acarreta, necessariamente, a ideia de deslocalização ou de relocalização espacial implicada nas tradicionais utopias. Pelo contrário, parte-se da ideia que o ideal utópico saramaguiano, ou o que entendemos como tal, supõe uma busca que se traduz num processo de (re)aprendizagem que começa e acaba no próprio ser humano. Para tal, há que acreditar na capacidade e no poder do ser humano para lutar contra várias espécies de adversidades, de obstáculos e de violências. Destaca-se a presença (aparente) de afinidades

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com alguns vectores da tradição religiosa que o autor sempre recusou e a aproximação (efectiva) de uma outra dimensão espiritual: a de certos rituais maçónicos. Defende-se a teoria que a conceitualização de um apocalíptico real a vir reforça a ideia de que o ser humano se torna o centro, o local, o não espaço tornado espaço da própria utopia. Quer o autor o tenha pretendido ou não, a ancestralidade da aliança espiritualidade/utopia, ou a permanência de sonhos e de desejos velhos como a própria Humanidade, sonhos e desejos como este de sociedades justas e perfeitas ou aquele da imortalidade, encontram eco no espaço-tempo dos romances escritos. Afinal, como disse, em 1997: “Sabemos mais do que julgamos, podemos muito mais do que imaginamos” (Saramago in Gómez Aguilera 2010: 155).

Desde uma perspectiva imagológica e pós-colonial, Burghard Baltrusch destaca em “A nova Mensagem do trans-iberismo – sobre alguns aspectos utópicos e metanarrativos no discurso saramaguiano” dois aspectos que podem ser considerados inovadores na obra saramaguiana. Por um lado, constata-se uma crítica imagológica da memória cultural e colectiva (portuguesa, ibérica e europeia), à qual se contrapõe, através da ideia de “trans-ibericidade” uma utopia cultural e de identidade, motivada por um ideário próximo das teorias pós-coloniais. Pelo outro, analisam-se exemplos da reflexão teórica de Saramago em relação à literatura e à historiografia, com a intenção de demonstrar como esta costuma partir de um perspectivismo atemporal, exemplificado através da continuada crítica dos discursos e dos níveis narrativos institucionalizados. A crítica destas imagologias culturais, das metanarrativas identitárias e históricas como também da narratologia tradicional repete-se na obra através de certas características topológicas. Neste contexto, a sobreposição subversiva do autor ao narrador pode ser considerada uma tentativa de unificar o ideário pessoal com o ficcional e, em extensão, de relacionar o imaginário cultural e/ou particular com o universal. Esta confabulação utópica de ética e estética visa um humanismo pós-moderno, com um propósito ético e claramente político, uma ‘nova Mensagem’ materialista, ironicamente oposta ao imaginário metafísico e providencialista de Fernando Pessoa.

No seu estudo “Tradução e utopia pós-colonial – a intervenção invisível de Saramago”, Ana Paula Ferreira desenvolve uma perspectiva tradutológica ao perguntar o que acontece quando em vez de Saramago como autor do “texto-tradução” (2009d: 152-153) nos deparamos com

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Saramago autor de uma “tradução-texto”. A pertinência desta pergunta fica evidente em relação a textos especificamente anti-coloniais, em cuja força política e imaginativa se anuncia a utopia ou “singularidade” pós-colonial. Ainda que Saramago não se tenha ocupado directamente do colonialismo português nem dos problemas económicos, sociais e morais dele advindos, a sua intervenção como tradutor de obras referentes a um colonialismo outro, neste caso específico, o francês, poderá apontar para a sua posição relativamente a uma temática que, muito embora cabendo no imperialismo em termos estruturais, toca especificamente à cultura portuguesa colonial e àquela que se vai construindo no período após as descolonizações, em 1975. Entre as mais de sessenta obras de uma variedade de áreas de saber e de géneros que Saramago traduziu entre os anos 1950 e 1980, este estudo destaca Une vie de boy, de Ferdinand Oyono. O romance é considerado um clássico da literatura africana, tendo sido traduzido em pelo menos treze línguas e em diferentes épocas, respondendo portanto a muito diversas realidades políticas, sociais e culturais. Verifica-se como a ‘domesticação’ por parte de Saramago do original francês vai ao encontro da realidade política e cultural portuguesa dos finais dos anos de 1970 e princípios da seguinte década. Nesse sentido, o que ‘é’ no texto de Oyono retorna intacto no de Saramago. O aceno à utopia absoluta e singular revela a dimensão utópica da literatura pós-colonial: um “utopianism deeply embedded in critique, a tentative hope for a different world emerging from a clear view of the melancholic state of this one” (Ashcroft 2009: 14).

Desde a perspectiva de um historiador da língua, Fernando Venâncio analisa em “José Saramago e a iberização do português. Um estudo histórico” a castelhanização progressiva da escrita ficcional saramaguiana considerando que esta tem de ser entendida num contexto ideológico, favorecedor da integração política e cultural ibérica. No fundo, trata-se de aquilo que já entusiasmara António Vieira: o programa vieiriano previa a criação de um português tão próximo quanto possível do castelhano, e por isso ‘iberizável’, uma condição para vir a ser, tal como o idioma de Castela, internacionalizado. A castelhanização do português, na pena de Vieira e na de Saramago, seria posta ao serviço de um sonho maior, a ‘iberização’ do idioma. A partir de um estudo pormenorizado de múltiples ocorrências identificadas em romances e contos, conclui-se que em Saramago se repetem os vários mecanismos históricos da castelhanização portuguesa:

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uma rápida assimilação, uma ausência de rejeição, uma desatenção do processo e uma assimetria. Sugere-se que o seu arraigado seiscentismo pode ter criado em José Saramago uma suplementar predisposição para abrir as portas ao idioma vizinho. O significado último de um idioma ibérico como utopia implícita é, decerto, especulativo, uma vez que Saramago nunca associou os seus sonhos políticos ibéricos a uma convergência linguística com o espanhol, convergência em que decerto colaborou, mas provavelmente sem consciência disso. Contudo, o estudo argumenta haver uma conexão ‘objectiva’ dos dois planos. Sabe-se que José Saramago não alimentava reservas mentais no referente à integração política de Portugal num conjunto peninsular. O resultado dessa ausência de objecção mental está à vista e pode-se, até, supor que, ao sentir — ao sentir ‘dentro’ — o português cada vez mais próximo do idioma do Estado vizinho, ele visse mais realizado esse grande sonho ibérico, que era o seu.

Em “Memorial do Convento de José Saramago – crítica e utopia no uso da técnica da enumeração”, José Cândido de Oliveira Martins analisa uma das manifestações da composição linguística e ficcional do romance de José Saramago, em Memorial do Convento — o manifesto uso da técnica da enumeração. Apesar de a dimensão da língua e do estilo ter merecido a atenção de vários estudos, o recurso à técnica da enumeração tem sido bastante ignorado, apesar da sua enorme frequência ao nível da escrita saramaguiana. Em primeiro lugar, ilustra-se o número e a variedade das enumerações na escrita do Memorial do Convento, ao mesmo tempo que se propõe uma definição da sua natureza linguístico-retórica. Seguidamente, partindo sempre das ocorrências saramaguianas, propõe-se uma gramática e tipologia possível do uso desta técnica. Por fim, contrariando uma visão redutora da enumeração — como técnica de matriz barroca —, sustenta-se que o seu uso tem uma indiscutível funcionalidade semântico-ideológica. Conclui-se que a enumeração saramaguiana impede-a de ser vista como um estático ou gratuito ornamento barroco; ou de desempenhar uma função dilatória em relação ao desenvolvimento da diegese. Integra-se, assim, na estratégia de re-visão crítico-paródica da História do Portugal joanino.

Outro aspecto deste romance trata-se em “Mulher e utopia em José Saramago – a representação da Blimunda em Memorial do Convento” de Burghard Baltrusch. Analisam-se os discursos que constroem a

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representação de Blimunda em Memorial do Convento (1982) no que diz respeito a duas questões centrais: em que medida esta figura impar na obra saramaguiana poderia estar a (re)construir um mito feminino universal, no qual a mulher simbolizaria a “essência do ser humano” (Saramago & Viegas 1989); e até que ponto a sua representação poderia estar a ser condicionada, ainda, por estéticas e discursos androcêntricos? Realiza-se uma releitura de uma das mais canónicas obras do autor a partir de perspectivas clássicas do feminismo como também a partir da questão do sublime e, concretamente, do “sublime feminino” (Freeman 1995). Não se encontram evidências para pôr em questão a coerência interna da figura de Blimunda e a sua adequação a uma concepção do sublime. Constata-se, porém, que a sua construção se caracteriza por uma certa objectivação e reificação do conceito e da alegoria da mulher como sujeito idealizado, aspectos que podem estar a perpetuar certos discursos de poder históricos. Porém, este resultado não invalida a clara intenção compensatória e de reabilitação histórica, social e política da mulher numa obra que contribuiu, substancialmente, para a revalorização da representação das mulheres na história da cultura e literatura portuguesas.

Sob a perspectiva crítica do imaginário proposta por Gilbert Durand (1997), Rosângela Divina Santos Moraes da Silva oferece no seu estudo “Conto da Ilha Desconhecida – possibilidades imaginárias” uma análise simbólica deste conto de José Saramago. O imaginário torna-se o ponto de equilíbrio entre a precariedade da vida e a vontade do ser humano de transcender-se, vencendo o tempo e, consequentemente, a morte. Neste sentido, “O Conto da Ilha Desconhecida” constitui-se em exemplo perfeito, pois metaforiza, através das imagens místicas, a trajectória a ser percorrida por qualquer ser humano ao fazer a travessia da vida para a morte, quer se a deseje ou não. Trata-se de uma abordagem do imaginário respaldada no semantismo das imagens, na qual se busca reconhecer a organização dinâmica do mito, sobretudo, o da morte, sob o feixe de constelações de imagens estruturadas por um certo isomorfismo dos símbolos convergentes, desenvolvidos dentro de um mesmo tema arquetipal. Conclui-se que, no plano do imaginário, pode ser inferido do conto que ao ser humano compete a responsabilidade do mundo que cria, num processo de dessacralização da história divinamente legitimada.

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Dessa forma, na tentativa de harmonizar os contrários, surge, no final da narração, o arquétipo andrógino na fusão dos corpos do homem e da mulher como também o motivo universalizante do ser humano como uma ilha em busca de si próprio.

Em “O labirinto da memória – a Guerra Civil de Espanha em O Ano da Morte de Ricardo Reis”, Ângela Maria Pereira Nunes parte do ensaio “História e Ficção”, onde Saramago evidencia que a história, “tal como a fez o historiador, é o primeiro livro, não mais que o primeiro livro. [...] Restará sempre, contudo, uma grande zona de obscuridade, e é aí [...] que o romancista tem o seu campo de trabalho” (1990: 19). Analisa-se a tensão muito singular entre a história e a ficção concebida pelo romancista que Saramago cria em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Mantendo-se fiel à figura literária idealizada por Fernando Pessoa, Saramago empenha-se em confrontar Ricardo Reis e a sua filosofia inerente com a situação histórico-política do ano de 1936, ano em que o Estado Novo se consolida, devido em muito à evolução dos acontecimentos na vizinha Espanha. Destacam-se os temas da memória e da necessidade de uma arte empenhada em causas políticas e sociais que são, sem dúvida, centrais no romance. A sua tessitura híbrida, minuciosamente arquitectada como mosaico de citações, resulta numa narrativa labiríntica e polifónica que veicula uma sensação generalizada de desorientação. O motivo do espelho, e do jogo de espelhos, intimamente ligado ao do labirinto, permite, não só a expansão do espaço e do tempo, como também a inversão da ficção em realidade e da realidade em ficção. É na alternância destes dois planos que irrompe um alto-relevo labiríntico que, no sentido concebido por Jorge Luis Borges, exorta o púbico leitor a desvendar o enigma dos acontecimentos de 1936, nomeadamente dos acontecimentos da Guerra Civil de Espanha.

Sobre outro tema de carácter histórico debruça-se o estudo “José Saramago: “Cadeira” ou a queda de Salazar”, de Isabel Araújo Branco. O conto “Cadeira”, inserido em Objecto Quase (1978), corresponde a uma leitura profunda do significado simbólico e prático da queda real da cadeira do ditador português Oliveira Salazar dez anos antes, em 1968. O conto é analisado na sua condição de reflexão literária sobre a ditadura, a ideologia fascista e o estado do País ao longo dessas quase cinco décadas, mas também sobre o império português então quase a desaparecer.

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Atentando no rigor semântico com grande ironia, o narrador apresenta-nos traços de intertextualidade com Luís de Camões e Alexandre Herculano, entre outros. O estudo centra-se, também, na imagem de Portugal e do poder político durante a ditadura presente em «Cadeira» e nas estratégias narrativas adoptadas. Verifica-se um processo de personificação do bicho-da-madeira em paralelo com um processo de animalização de Salazar através da adjectivação e da comparação. Assim, o narrador retira-lhe a sua humanidade, realizando uma leitura simbólica da ditadura, do poder e do contrapoder.

“Sobre a convergência do espaço literário, cultural e político como questionador de uma identidade social em José Saramago”, de Raquel Baltazar, centra a sua atenção sobre a questão identitária em três romances. Levantado do Chão (1980) de José Saramago concretiza o paradoxo metaficcional da consciencialização do ser humano sobre a sua alienação sócio-política, centrada na ditadura de Salazar por converter uma interpretação social de um mundo em colapso ideológico. A Caverna (2000) representa uma metáfora do obscurecimento da razão que incapacita a criação do conceito de comunidade ao apresentar uma indagação constante sobre a adaptação do ser humano a uma realidade política, que aprisiona mental e fisicamente os indivíduos. Finalmente, o estudo argumenta que Ensaio sobre a Cegueira (1995) completa esta viagem de libertação política, ideológica e social através de um exercício de autognose em forma de literatura de denúncia, em que ocorre o resgate da experiência humana através de situações de epidemia e prisão sugerindo uma epifania de cariz político. A análise destas obras permite discutir a anulação da identidade como elemento fundamental para a construção de uma ideologia e procurará evidenciar a convergência do espaço literário, cultural e político como questionadores de uma identidade social.

Em “«Vale mais ser romancista, ficcionista, mentiroso» – realidade e ficção no romance A Viagem do Elefante de José Saramago”, Yvonne Hendrich analisa as fontes históricas da viagem e da chegada do arquiduque Maximiliano da Áustria e da sua comitiva a Viena, em 1552, acompanhados por um elefante. A partir das circunstâncias que inspiraram o penúltimo romance de José Saramago, o estudo centra-se no processo de (re)invenção d’A Viagem do Elefante desde a perspectiva da “metaficção historiográfica”

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(cf. Hutcheon, 2005a). Confronta-se o romance e a escrita saramaguiana com as questões da ‘realidade histórica’ como mediação de discursos e de interpretações de agentes historiadores, e com o grau de ficção já contida na própria representação historiográfica. Conclui-se que, através das intromissões metanarrativas, a suposta objectividade e imparcialidade da historiografia/história é questionada e levada ao absurdo. Embora em A Viagem do Elefante desempenhe uma função menos relevante do que em romances como História do Cerco de Lisboa, destaca a problematização da relação entre os métodos da historiografia e a metaficção historiográfica como medium de auto-reflexividade e auto-referencialidade.

Em relação ao mesmo romance, Verena-Cathrin Bauer observa, em “Nationale und koloniale Identitäten im historischen Roman – José Saramagos A Viagem do Elefante”, como Saramago, além de tratar certos estereótipos nacionais, chama a atenção para o contacto entre identidades e nacionalidades europeias, ironizando costumes e crenças e questionando os mecanismos da construção identitária e de uma história oficial. Neste sentido, analisa-se, por um lado, a visão saramaguiana da história europeia, tendo em conta o seu ideário iberista (Saramago 1988) e, pelo outro, a (dupla) apropriação da pessoa colonizada. O estudo propõe uma leitura do romance a partir das possibilidades que Homi K. Bhabha deduz do hibridismo produzido pelos fluxos migratórios e transnacionais, e do respectivo espaço “in-between” (cf. 1994: 1, 9), onde as questões identitárias são negociadas. A própria viagem surge, assim, como a utopia de um third space, ainda que, na cooperação harmónica e utópica entre o Mahut e o elefante, também permaneça o aspecto da desterritorialização forçada. Conclui-se que o motivo da viagem como momento transitório simboliza a permeabilidade das estruturas culturais e o processo de intercâmbio, em termos de uma utopia tão condicionada pelo contexto histórico como efímera.

Formalia

A literatura activa de José Saramago cita-se com a correspondente data de primeira publicação (por exemplo, Memorial do Convento cita-se: Saramago 1982). O índice temático, porém, refere as ocorrências da literatura activa do autor a partir dos títulos.

As opiniões expressas nestes estudos e as decisões de se adaptar ou não ao acordo ortográfico de 2009 são da responsabilidade de cada autor ou autora.

Utopia e ficção em José Saramago

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José Saramago: da realidade à utopia O Homem como lugar onde

Ana Paula Arnaut

Falar de utopia, na obra de José Saramago ou num âmbito mais abrangente e abstrato, implica relembrar, ainda que de forma necessariamente breve, alguns dos textos fundadores do conceito. Um conceito, um nome, cuja criação é atribuída a Thomas More, com a publicação de A Utopia, em 1516, e cuja definição base aponta para o domínio da fantasia, ou melhor, da idealização,1 já que se centra no desejo de uma sociedade perfeita e de um governo ideal.

Sem pretendermos negar a importância do humanista inglês na implementação e na divulgação da (im)possibilidade de um sonho orquestrado à volta de uma sociedade livre e justa, cumpre fazer referência àquele que parece ser, de facto, o seu primeiro concetualizador (se é que este sonho não nasceu com a própria Humanidade). Referimo-nos, já se adivinhou, a Platão e aos termos com que, em A República, descreve Callipolis, a cidade possuidora e defensora de quatro virtudes essenciais:

1 Etimologicamente ‘utopia’ significa lugar que não existe. A palavra resulta da junção dos elementos gregos ou (não) e tópos (lugar), isto é, “lugar [que] não [existe]” (Machado 1987: “Utopia”).

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a sabedoria, a coragem, a temperança e a justiça, requisitos inteiramente preenchidos pelos filósofos, com a sua plena consciência do bem, do belo e do justo e, precisamente por isso, aqueles a quem deveria ser atribuído o governo.2

Ora, recordando, como disse Karl Marx, que o lugar social determina o lugar epistemológico, ou, por outras palavras, que o posicionamento sobre determinada matéria é sempre nimbado de uma perspetiva subjetiva, tributária tanto dos contextos em que o sujeito se insere quanto da sua enciclopédia, a verdade é que a utopia platónica, como outras de conceção posterior, não consubstancia uma total ideia de perfeição, traduzida, entre outros aspetos, na igualdade e na fraternidade entre os seres. Os ideais por que se deve reger a bela cidade não só excluem a presença de poetas ou pressupõem a existência da escravatura (dos bárbaros), e de outras linhas sociais divisórias, como, além disso, implicam a diferença de género, assumindo a debilidade do sexo feminino.3

Em todo o caso, os ecos do mote para a construção de uma nova sociedade sentir-se-ão, por exemplo, quer na já mencionada obra moresiana, quer nas menos conhecidas Christianopolis (1619) de Johann Valentin Andreæ, A Cidade do Sol (1623)4 de Tommaso Campanella e na inacabada Nova Atlântida (1627) de Francis Bacon. Pese embora a diversidade de traços com que se faz o desenho, sempre esboço, da arquitetura social e ideológica das sociedades idealizadas nestas obras, cumpre assinalar, como já escrevemos em outra ocasião (Arnaut 2009a: 224), que em todas é possível destacar o progresso científico-tecnológico, bem como a (relativa) igualdade e a amizade entre os cidadãos (homens e mulheres), ou a abolição da propriedade privada.

2 Atentemos na seguinte fala de Sócrates a Gláucon: “Enquanto não forem, ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam reis e soberanos filósofos genuínos e capazes, e se dê esta coalescência do poder político com a filosofia, enquanto as numerosas naturezas que actualmente seguem um destes caminhos com exclusão do outro não forem impedidas forçosamente de o fazer, não haverá tréguas dos males, meu caro Gláucon, para as cidades, nem sequer, julgo eu, para o género humano, nem antes disso será jamais possível e verá a luz do sol a cidade que há pouco descrevemos.” (Platão 1996: 473d).3 Platão 1996: 398a-b, 469c, 463a-b, 457b, respetivamente. Não deixa de ser interessante, porém, que certas teorias feministas vejam Platão como “um feminista ‘avant la lettre’” (M. L. Ferreira 2010: 77).4 Segundo Lewis Mumford, esta “utopia existia já em manuscrito antes de Andreæ escrever a sua Christianopolis” (2007: 91).

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Apesar das diferentes tonalidades dos valores básicos, religiosos ou outros, apesar da diferente importância atribuída às artes, ou apesar de algumas diferenças essenciais no que respeita, por exemplo, ao facto de não existir escravatura na utopia de Campanella,5 destacam-se, ainda, em todas, formas de governo a cargo dos mais sábios, isto é, dos melhores. A título parentético, já que não pretendemos debater essa problemática, por não caber nos limites deste texto, cabe sublinhar que esta última característica tem levado alguns autores a ancestralmente enraizar diversos sistemas ditatoriais-autoritários nestas utopias clássicas (Mumford 2007: 11-12).

Em todas, também, finalmente (entenda-se o advérbio de forma retórica), importa destacar, para o ponto de vista que pretendemos fazer valer, o facto de a sociedade ideal a construir implicar uma deslocalização espacial, uma relocalização geográfica, se preferirmos, relativamente ao lugar em que o(s) sujeito(s) de enunciação se encontra(m) na verbalização da(s) sua(s) utopia(s): em More, a Ilha da Utopia, situada algures no continente sul-americano; em Andreæ, a cidade de Christianopolis, simplesmente algures; em Campanella, a Cidade do Sol, no Equador; em Bacon, a Ilha de Bensalem, para além do Peru.

Se quisermos alargar o nosso raciocínio, podemos convocar, em paralelo, a tradição judaico-cristã e o desejo tornado crença de uma vida eterna, ou de uma vida que existe além da morte, como se lê nos vários livros que compõem a Bíblia, principalmente nos menos antigos e, essencialmente, no Novo Testamento. Em notações sempre pintadas ao de leve, porque nunca concretizando questões de pormenor relativas a descrições mais ou menos exaustivas do espaço de que se fala, são múltiplas as indicações relativas a uma vivência não terrena: os justos ressuscitarão para a vida, os pecadores para o opróbrio. Por outras palavras, o espaço do céu, visto no âmbito desse imaginário como uma espécie de retorno ao Paraíso genesíaco, como recompensa para os justos, e o espaço do inferno como castigo para os pecadores.6 Não parece inoportuno, pois,

5 Outras diferenças respeitam à importância atribuída aos ofícios mecânicos (ao contrário de A República, onde os ofícios mecânicos não eram vistos como profissões nobres, em A Utopia de Morus todas as artes são primordiais e importantes); ao entendimento do conceito “família” e respetiva organização; ou ao peso concedido à religião (maior em Christianopolis).6 No Livro de Daniel, por exemplo, entre tantos exemplos, lê-se que “[m]uitos dos que dormem no pó da terra acordarão, uns para a vida eterna, outros para a ignomínia, para a reprovação eterna. Os que tiverem sido sensatos resplandecerão como a luminosidade do

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afirmar que a ascensão à desejada e sonhada esfera celeste pode tornar-se, provavelmente, para além da Terra Prometida por Moisés, a mais utópica de todas as utopias; provavelmente o não-lugar mais não-lugar de todos; provavelmente o mais ideal mundo de todos os mundos idealizados.7

Não parece também inoportuno reconhecer que o Homem, desde sempre um ser insatisfeito, ou, no mínimo, pouco paciente, tenha feito várias tentativas para, antes do tempo, tentar alcançar a recompensa prometida, trazendo para a esfera terrena a promessa, e o gozo, dessa recompensa celestial, pela procura e pela recuperação do Paraíso Perdido, (re)localizando-o na terra, mais propriamente no Novo Mundo do continente sul americano. É nesse sentido que convocamos, agora, alguns comentários tecidos por Rogério Mendes Coelho, na esteira, aliás, da leitura de Daniel J. Boorstin e de Sérgio Buarque de Holanda sobre a descoberta do Novo Mundo.

Para o historiador americano, “[o] dogma cristão e a tradição bíblica impuseram outras ficções da imaginação teológica ao mapa do Mundo”, levando a que “[o]s próprios mapas” se tornassem “guias dos artigos da Fé” e a que “os geógrafos cristãos” tentassem identificar em lugares descobertos os lugares “mencionados nas Escrituras”, como o Jardim do Éden (Boorstin 1987: 105). Para o historiador brasileiro, por seu turno, “[j]á no tempo de

firmamento, e os que tiverem levado muitos aos caminhos da justiça brilharão como estrelas com um esplendor eterno” (Dan. 12, 2-3). Em 2º Mac (7, 9), o segundo dos sete irmãos martirizados, por se terem recusado a comer carne de porco, exclama: “tu arrebatas-nos a vida presente, mas o rei do universo ressuscitar-nos-á para a vida eterna”. Ver, ainda, por exemplo, o Livro dos Salmos (Sl 16, 15, 9-11): “[…] o meu corpo repousará na segurança. / Vós não me entregareis à mansão dos mortos; […] / Ensinar-me-eis o caminho da vida; / na Vossa presença (gozamos) a plenitude da alegria, / na Vossa direita (encontramos) / as delícias eternas”; o Livro da Sabedoria (5, 15 e seguintes): “[…] os justos viverão eternamente / a sua recompensa está no Senhor, / e o Altíssimo cuidará deles. / Por isso, receberão um glorioso reino, / e um diadema brilhante da mão do Senhor […]”; ou o Evangelho segundo São Mateus (5, “Sermão da Montanha”). As citações são feitas a partir de Bíblia Sagrada 1995.7 Apesar de o texto bíblico oferecer várias passagens em que se menciona a ressurreição carnal, de Jesus ou de Lázaro, a verdade é que, pelo menos de acordo com a leitura que fizemos e com o entendimento com que ficámos, surge-nos como mais natural que as promessas feitas e as recompensas prometidas respeitem mais a uma ressurreição espiritual, na esteira, aliás, entre outros exemplos, do que é dito em São Lucas (6, 20-23; ver também Lc 6, 23, onde lemos: “Alegrai-vos e exultai nesse dia, pois a vossa recompensa será grande no Céu”). Sobre a ressurreição carnal de Jesus, ver Mt 28, aparece às Santas Mulheres (Mc 16), aparece a Maria de Magdala e aos seus discípulos, para depois ser “arrebatado ao Céu” (16, 19, Lc 24), aparece aos discípulos em Emaús para depois deles se separar e se elevar “ao Céu” (24, 51, Jo 20), aparece a Maria de Magdala e, por três vezes, aos seus discípulos. Para Lázaro, ver Jo 11, 43-44.

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Colombo, a crença na proximidade do Paraíso Terreal não é apenas uma sugestão metafórica ou uma passageira fantasia”, é, pelo contrário, “uma espécie de idéia fixa […] que acompanha ou precede […] a atividade dos conquistadores nas Índias de Castela” (Holanda 1959: 17).

De acordo com estas palavras, e tendo em conta que os descobridores “eram homens medievais motivados a entender o mundo através de uma razão subjetiva” e em cujas reflexões “ainda havia a influência da escolástica”, Rogério Coelho não escreve apenas sobre o Novo Mundo como “a materialização desse imaginário” ancestral (2006: 250).8 Referindo-se às descrições que são feitas, e de que já falaremos, aponta também o aproveitamento religioso da matéria:

a interpretação do espaço americano como Paraíso Terrestre garantiria a manutenção do controlo do imaginário da Igreja sobre os homens, convertendo a descoberta da América em um projecto utópico, de reforma não social, e sim, de reforma política da Igreja, já que a mesma se encontrava em crise devido a descentralização de seu poder [causado pelo] Grande Cisma do Ocidente, momento em que a Igreja foi governada por dois papas, ocasionando insegurança, desorientação e o surgimento de várias doutrinas contrárias a seus dogmas, ameaçando sua hegemonia. (R. M. Coelho 2006: 251-252, cf. 257)

A aceitar este ponto de vista, o que se pode depreender é, por conseguinte, mais uma vez, a assunção de uma linha de controlo, pela fé, através da reinstauração da ideia e da promessa (agora alcançável) do Paraíso. Um Paraíso que Cristóvão Colombo estava certo de ter encontrado nesta terra “maravilhosa” e “magnífica” (Colombo 1990b: 45), como podemos verificar pelas citações que a seguir transcrevemos:

tomavam e davam o que tinham, tudo, de boa vontade. Mas pareceu-me que eram pessoas muito desprovidas de tudo. Andam nus, tal como as mães os pariram, e as mulheres também, todavia só vi uma que era muito jovem. E todos os homens que

8 “É como se os testemunhos dos viajantes descrevessem um universo que pré-existia como confirmação de um horizonte de expectativas que se enquadrava em universos familiares descritos antes por religiosos, historiadores, filósofos e literatos que acreditavam piamente na existência e localização, por exemplo, do mito do Paraíso Terrestre como anseio, que durante algum tempo fundamentou a razão do Velho Mundo” (ibid.: 250, itálicos do autor).

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vi eram jovens, nenhum tinha mais de trinta e dois anos; eram todos muito bem feitos, muito belos de corpo e muito bonitos de rosto […]. Não usam armas nem sequer as conhecem […].

O algodão cresce nesta ilha […], o ouro nasce aí de tal modo que o usam suspenso do pescoço […].

Estas ilhas são muito verdes e férteis, com ar muito suave […]. (Colombo 1990a: 43, 45, 49, respetivamente, passim).

Ora, se no relato desta sua primeira viagem não existe, propriamente, a menção direta ao Paraíso, bem como à sua relação com o local das Escrituras, o mesmo não acontece no Diário da sua segunda viagem, onde lemos o seguinte:

As Santas Escrituras mostram que Nosso Senhor fez o Paraíso terrestre, que aí pôs a árvore da vida e que daí sai uma fonte de onde nascem neste mundo quatro rios principais: o Ganges nas Índias, o Tigre e o Eufrates […] e o Nilo […]. Já disse o que pensava sobre este hemisfério e da sua forma, e creio que passava sob a linha equinocial, ao chegar lá, ao ponto mais elevado, encontraria uma temperatura mais suave e outras diferenças entre as estrelas e nas águas. […] Estou convencido de que lá está o Paraíso Terrestre, onde ninguém pode chegar se não for pela vontade divina. […] Não concebo que o paraíso Terrestre tenha a forma de uma montanha abrupta, como os escritos a seu respeito nos mostram, mas sim que está neste cume, nesse ponto que disse, que figura o mamilo da pêra [...]. São estes grandes indícios do Paraíso Terrestre, porque a situação está conforme à opinião que disso têm os ditos santos e sábios teólogos. (Colombo 1990b: 92-93)9

Não são apenas, no entanto, as belezas físicas, ou a riqueza e a naturalidade de comportamentos, que permitem, em Colombo, o paralelismo entre o Novo Mundo e o Jardim do Éden. Como aponta Sérgio Buarque de Holanda, sendo o descobridor “tributário de velhas convenções eruditas, forjadas ou desenvolvidas [...] principalmente durante a Idade Média” (1959: 22), torna-se relativamente simples aceitar

9 Cf. Colombo (1990b: 95): “tenho na minha alma por muito seguro que lá onde disse se encontra o Paraíso Terrestre, e baseio-me para isto nas razões e autoridades acima descritas” (refere-se, entre outros, a Plínio ou a Santo Agostinho).

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que também no seu relato se verifique quer a existência de locais povoados por monstros humanos (traduzidos, cremos, nos canibais), quer de espaços onde se faz notar “a presença de uma extraordinária fauna mais ou menos antropomórfica”; ambos pertencentes, claro, “aos arrabaldes daquele jardim mágico” (Holanda 1959: 22) em tudo diferente do local para onde Adão e Eva são expulsos.

Não esqueçamos, aliás, que “depois de ter expulsado o homem”, Deus procede à delimitação de fronteiras bem explícitas entre os dois espaços, colocando “a oriente do jardim do Éden, querubins armados de espada flamejante para guardar o caminho da árvore da vida” (Génesis 3, 24; cf. Holanda 1959: 169). É assim que, se, por um lado, sabemos (plausivelmente) de ilhas (as de Caribe) “habitadas por pessoas que comem carne humana” (Colombo 1990b: 22), por outro lado, nessa mesma linha, mas, agora, de modo fantasioso, é-nos dada a conhecer a existência de “homens com um único olho e outros com focinho de cães, que comiam os seres humanos, e, quando agarravam um, o degolavam, bebiam o seu sangue e cortavam-lhe as partes naturais” (Colombo 1990a: 70).

Por outro lado, ainda, um outro paralelismo possível pode ser sugerido, agora a propósito da questão da imortalidade — facultada no texto bíblico pela árvore da vida e posteriormente traduzida na existência de uma fonte da juventude. Referimo-nos, por conseguinte, não à (infrutífera) busca dessa fonte por Juan Ponce de León (companheiro de Colombo na sua segunda viagem), mas ao facto de, em outros textos, podermos ler ecos de que no Novo Mundo, a gente “É muito sã e de bons ares, de tal maneira que com ser a gente muita e ter muito trabalho, e haver mudado os mantimentos com que se criaram, adoecem muito poucos, e esses, que adoecem, logo saram” (Nóbrega 2004: 59).10

Da descrição destas novas terras, deste Paraíso Terreno belo e rico, ressalta, ainda, a ideia (perpetuada no nosso quase presente) de que, tal como acontecera no Génesis de onde o Homem foi expulso, não existe lugar para o mal, para o pecado. Esta ideia é também certificada por Oswald de Andrade, ao escrever que “a Europa atlântica divisava no horizonte utópico das Américas o sonho de uma humanidade igual, feliz e sem pecado”. Sonho aliás fixado “num dístico latino que afirma não haver pecado além dos

10 Carta do Padre Manoel da Nóbrega a Martín Navarro, datada de 10 de Agosto de 1549.

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trópicos” (Andrade 1990: 197)11 e que serviu, um dia, a Chico Buarque e a Ruy Guerra para escrever “[n]ão existe pecado ao sul do equador”, poema tornado famoso por Ney Matogrosso, em 1978.12 Sonho, ainda, muito antigo, que leva o ensaísta a escrever que “[a]s Utopias são, portanto, uma consequência da descoberta do Novo Mundo e sobretudo da descoberta do novo homem, do homem diferente encontrado nas terras da América” (Andrade 1990: 163).

No caso de José Saramago, pelo menos no que respeita aos traços englobantes da larga maioria dos seus romances, a problemática da utopia assume contornos de tonalidades diversas. O desejo de uma sociedade diferente daquela em que vivemos, mais justa e fraterna, não acarreta, necessariamente, a ideia de deslocalização ou de relocalização espacial implicada nas utopias a que já nos referimos. Ele não implica, também, o enraizamento e a responsabilidade da mudança em homens de eleição, estando ao alcance de qualquer um de nós, independentemente do género, religião ou raça.

A manutenção do desejo de um outro (não) lugar onde a perfeição assiste à vida do quotidiano humano parece fazer-se presente, apenas, em A Jangada de Pedra (1986) e, de modo diferente, como veremos, em As Intermitências da Morte (2005a). O primeiro romance não problematiza, apenas, questões relacionadas com a identidade portuguesa, em particular, e ibérica, em geral. Para além de consubstanciar as importantes viagens de auto e de heteroconhecimento de Joana Carda, Maria Guavaira, José Anaiço, Joaquim Sassa e Pedro Orce (e por que, não, do cão que virá

11 Cf. Manoel da Nóbrega: “ultra equinoxialem non peccavi” (“Nota preliminar” da Edição da Itatiaia das Cartas do Brasil e mais escritos).12 Poema escrito para a peça Calabar (1972-1973): “Não existe pecado do lado de baixo do Equador / Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor / (Vamos fazer um pecado safado debaixo do meu cobertor) [verso censurado e substituído pelo anterior] / Me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho / Um riacho de amor / Quando é lição de esculacho, olha aí, sai de baixo / Que eu sou professor // Deixa a tristeza pra lá, vem comer, me jantar / Sarapatel, caruru, tucupi, tacacá / Vê se me usa, me abusa, lambuza / Que a tua cafuza / Não pode esperar / Deixa a tristeza pra lá, vem comer, me jantar / Sarapatel, caruru, tucupi, tacacá / Vê se me esgota, me bota na mesa / Que a tua holandesa / Não pode esperar // Não existe pecado do lado de baixo do equador / Vamos fazer um pecado rasgado, suado a todo vapor / Me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho / Um riacho de amor / Quando é missão de esculacho, olha aí, sai de baixo / Eu sou embaixador” (disponível em <http://kdletras.com/chico-buarque/n%C3%A3o-existe-pecado-ao-sul-do-equador>, último acesso: 1.06.2013).

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a chamar-se Constante), a semântica interna da obra é, ainda, pautada pela exposição da velha e não consensual vontade de uma união ibérica e do posicionamento do autor relativamente à adesão de Portugal (e de Espanha) à União Europeia.

Segundo o próprio José Saramago, o romance tem por objetivo “demonstrar que, se existe uma vocação histórica nos povos da Península, essa seria a de uma ligação profunda com os povos da área cultural ibero-americana e ibero-africana” (in Gómez Aguilera 2010: 442-443). Por isso se separa a Península do espaço não desejado da velha Europa; por isso viaja a jangada Atlântico fora;13 por isso, não por acaso, depois de um movimento de rotação que coloca Portugal e a Galiza ao Norte, se relocaliza a barca de pedra no território (marítimo) entre o continente africano e o sul-americano (Saramago 1986: 323). A nova localização geográfica da Península Ibérica permite, por um lado, reavivar a memória das importantes ligações económicas e das profícuas afinidades culturais iniciadas ao tempo dos Descobrimentos. Por outro lado, o local encontrado permite estabelecer uma ligação com as utopias que já referimos, na medida em que o espaço utópico eleito se aproxima, geograficamente, daqueles que foram escolhidos por Morus ou por Bacon.

Apesar de A Jangada de Pedra não oferecer, propriamente, elementos que permitam a pormenorizada caracterização, social e outra, do novo espaço achado, parece-nos seguro presumir, pelo menos segundo Saramago, que, também aqui, se poderá cumprir o sonho de uma sociedade melhor. A gravidez coletiva das mulheres da Península Ibérica, no final da longa viagem, talvez não seja, então, mais do que a certificação simbólica do cumprimento do sonho ibérico saramaguiano: a nova geração a vir será seguramente outra, diferente, já que formada longe da velha Europa, ironicamente designada por “Mãe amorosa” (Saramago 1986: 33).

A problemática desenvolvida no romance de 2005, As Intermitências da Morte, consubstancia, segundo cremos, um outro(-mesmo) tipo de cenário utópico. Não se trata, agora, é certo, de ficcionalmente ansiar por uma sociedade ideologicamente renascida para a (quase) perfeição. Trata-se , em todo o caso, de, numa linha afim, expor o “maior sonho da humanidade desde o princípio dos tempos, isto é, o gozo de uma vida eterna cá na

13 Sobre o assunto, cf. Branco s.d. e Monteiro 2006.

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terra” (Saramago, 2005a: 17). É assim que, numa relocalização respeitante a um país e a um tempo nunca identificados, utópicos, portanto, numa estratégia que aponta para a universalização exemplar do enredo, a morte decide não matar.

Contudo, durante os sete meses em que decorre a greve da morte (Saramago 2005a: 113), o que parecia e aparecia como a concretização apolínea desse velho sonho-utopia de imortalidade, transforma-se em gozo e euforia esporádicos. Recorrendo a um registo matizado de cores variadas, da seriedade quase sempre irónica às diversas modalidades do cómico, o narrador deixa-nos saber que, afinal, a existência da morte é condição fundamental para o bem-estar do Homem.

À medida que o caos se instala na vida eterna provisoriamente14 ganhada, “o temor de não morrer nunca” acaba, de forma irremediável, por se sobrepor à “esperança de viver sempre” (Saramago 2005a: 77): pela falência de agências seguradoras, que ficam sem clientes, ou, entre outros malefícios, pela falência da crença na igreja, já que a instituição fica sem moeda de troca (sem morte não pode haver a recompensa de uma vida para além dela, logo, não há como seduzir os fiéis). Como disse “[u]m teólogo ortodoxo”, “‘a morte é a evidência da história, a Ressurreição é o segredo da fé’” (in Saramago 1996: 93).

A grande lição final deste resvalar da utopia na distopia, traduz-se, por conseguinte, na tranquila aceitação da “impossibilidade de viver” num mundo em que a morte se retira de cena (Saramago & Vasconcelos: 114). Proporcionada, em termos englobantes, pelo próprio modo como a trama se desenovela, esta lição é, ainda, sabiamente retirada de um interessantíssimo episódio que, logo no início do romance, prende a atenção do narrador: o da família de camponeses pobres que, após longa ponderação, opta por clandestinamente passar a fronteira para que avô e neto possam morrer (Saramago 2005a: 40-51).

A menção destacada que fazemos a este momento narrativo tem uma explicação simples e lógica. Recuperando, com variantes, aspetos já por nós abordados em outro texto (Arnaut 2010: 69), parece ser evidente que da globalidade da leitura de As Intermitências da Morte sobressai a sábia

14 Lembramos que a morte acaba por decidir voltar ao ativo, com a variante de passar a avisar do final da vida de alguém com uma semana de antecedência (Saramago 2005a: 106-107).

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assunção de que ao Homem cumpre esperar que atrás do tempo, tempo venha — na vida, na morte e nas utopias. Não é menos evidente, porém, que aquela humana atitude permite ler mais do que isso. Ela faculta a ideia de que é ao Homem que cumpre (tentar) fazer da sua vida um tempo — espaço de contínua, sistemática e ponderada procura do que é melhor para si e para os outros que o rodeiam.

Não pode ser acaso, como começámos por dizer, que a arquitetura utópica dos demais romances do autor se atualize e concretize em tonalidades diferentes das utopias que referimos. O sonho num mundo melhor não implica, como condição sine qua non, o achamento de um novo espaço, diverso daquele que habitamos. Esse parece ser, na ficção de José Saramago, um mero pormenor. Pelo contrário, a ideia que subjaz à leitura que fazemos das ficções saramaguianas aponta para a exigência de (re)construir uma sociedade livre, justa e fraterna exatamente no mundo/sociedade em que vivemos. O (não) lugar da utopia deixa de ser um (outro) espaço físico, geográfico, passando a ser o próprio Homem, as suas crenças e convicções.

Não nos parece, então, que devamos aceitar sem qualquer questionamento a falta de esperança ou o caráter cético e pessimista do autor e da sua obra, mesmo que as suas verbalizações públicas para isso apontem. Citamos algumas delas que, em todo o caso, como, aliás, sucede nos seus romances, apontam para a possibilidade de relativizar o entendimento que tem sobre este assunto:

Sou bastante céptico em relação à natureza humana, tão céptico que nem acredito que haja uma natureza humana. Mas, seja isso o que for, acredito que se podem criar situações, estados de espírito, determinações que podem converter as mesmas pessoas pouco generosas ou nada generosas em solidárias em certas circunstâncias.

Não tenho nenhum motivo para ter esperança. No plano estritamente pessoal, podemos ter razões para isso. Mas se falarmos numa esperança que nos envolva a todos, ela não é possível num mundo como este. Como será daqui a cinquenta ou cem anos? Estamos no fim de uma civilização e não temos ideia nenhuma do que vem aí. Nem sabemos se no futuro o ser humano terá alguma coisa a ver com o actual, ou se não será outra coisa que deva passar a chamar-se de forma diferente.

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Muita gente diz-me que eu sou pessimista; mas não é verdade, é o mundo que é péssimo. O ser humano limita-se na actualidade a «ter» coisas, mas a humanidade esqueceu-se de «ser». Ser dá muito trabalho: pensar, duvidar, interrogar-se sobre si mesmo... (in Gómez Aguilera 2010: 158, 160, 163-164, respetivamente)

Em derradeira instância, aos múltiplos comentários de sentido e melancólico desalento sobrepõem-se outros, talvez em menor número, mas, ainda assim, de fundamental importância, que evidenciam a constante procura do que o Homem pode/poderia ser. Como diz a rapariga dos óculos escuros em Ensaio sobre a Cegueira: “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome. É isso que somos” (Saramago 1995a: 162). E é isso que o autor procura, e nós com ele; e é isso que o autor acha em algumas das suas personagens. É isso, também, que parece ser descortinado pelo médico do mesmo romance, quando levanta a hipótese de os olhos que levou a vida a observar serem, eventualmente, “o único lugar do corpo onde talvez exista uma alma” (ibid.: 135).

A redefinição utópica saramaguina, ou o que entendemos como tal, implica, pois, uma busca que se traduz num processo de (re)aprendizagem que começa e acaba no próprio ser humano. Para tal, há que acreditar na capacidade e no poder do Homem para lutar contra várias espécies de adversidades, de obstáculos e de violências. Afinal, como disse, em 1997, a Eduardo Sterzi e Jerônimo Teixeira: “Sabemos mais do que julgamos, podemos muito mais do que imaginamos” (in Gómez Aguilera 2010: 155).

Este percurso de (re)aprendizagem, que acarretará a mudança social, ainda que de forma (muito) lenta e, se calhar, impossível (ou não falássemos de utopia), passa, necessariamente, portanto, ainda que, por vezes, de modo enviesado, pela construção de universos agónicos e caóticos, que progressivamente consubstanciam a representação de um real que poderá vir a acontecer, a impor-se , se não tivermos em conta os avisos à navegação que os romances também são/pretendem ser. Assim acontece em Ensaio sobre a Cegueira ou em Ensaio sobre a Lucidez (2004), variantes, ambos, de um retrato do Homem transformado em caçador do seu semelhante; variantes, ambos, também, da redução absoluta do valor da vida, da transformação da solidariedade em despotismo, da racionalidade em irracionalidade, da humanidade em ganância e em cobiça.

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A exposição crua e violenta do que de pior existe no ser humano, numa realidade distópica alarmante e, quiçá, premonitória, torna-se necessária, porém, para fazer sobressair a teoria que defendemos: a concetualização de um apocalítico real a vir reforça a ideia de que o Homem se torna o centro, o local, o não espaço tornado espaço da própria utopia. Apesar de tudo, então, neste como em outros romances, a crença, a esperança, é, ainda, na redenção da Humanidade. Não uma redenção religiosa, não poderia sê-lo, tratando-se de José Saramago, mas uma redenção humanista e humanitária. Por isso se permite, no romance de 1995, a recuperação progressiva do mal da cegueira branca, a do espírito; por isso assume o autor o caráter de ‘fábula’ de Ensaio sobre a Lucidez (Saramago 2004: 39), em cujas páginas se retomam, diversamente, temas e personagens que haviam presentificado a bondade e a maldade (im)perfeitamente humanas.

Por isso é possível verificar, para além dos casos a que já aludimos, outros exemplos que deixam patente a assunção do poder do Homem e a consequente procura “daquela coisa que não tem nome” e a que talvez possamos, como diz, chamar humanidade. Uma humanidade que, por vezes, se traduz, simplesmente, numa auto-humanidade que, em todo o caso, anuncia outros processos de mudança. Só depois de se reencontrar pode o indivíduo plenamente lutar com e pelos outros que o rodeiam.

Não podendo falar de todas as obras, por tantas serem, destacamos, a título de exemplo, o incipiente percurso de aprendizagem humanista protagonizado por H., de Manual de Pintura e Caligrafia (1977), ou o longo processo de aquisição ideológica de João Mau-Tempo, que, em Levantado do Chão (1980), assume protagonismo simbólico em nome de tantos outros que com ele, ou como ele, trilharam os mesmos caminhos.

No caso de H., e à medida que este vai intensificando a relação com M., é possível verificar a sua progressiva transformação num sujeito mais capaz de compreender-se e, também, de compreender os problemas do seu semelhante, neles se envolvendo com uma humanidade que lhe não assiste no início do romance (Saramago 1977: 264-268, cf. também 276). Apesar de este desenvolvimento pessoal, e também sócio-ideológico, se estabelecer em paralelo com processos de evolução pictóricos e de aprendizagem das técnicas e potencialidades do registo escrito, a verdade, acreditamos, é

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que sem a proximidade relacional de M. a viagem interior, conducente ao verdadeiro conhecimento de outrem e, concomitantemente, ao seu próprio conhecimento, bem como ao conhecimento do sentido da vida, não teria sido inteiramente conseguida.

Ao contrário, por exemplo, da resposta “vasa forçada num jogo obrigado a naipe” (Saramago 1977: 126) que, anteriormente, viveu com Adelina e, extensionalmente, com Ana, Francisco, Sandra ou Carmo, H. adquire, finalmente, a capacidade para (re)conhecer, António, irmão de M., tranquila e conscientemente se preocupando em ajudar os pais deste, agora numa vasa não forçada de um jogo não obrigado a naipe:

É chegada a altura de ter medo: murmurei estas palavras. Pelo horizonte do meu deserto estão a entrar novas pessoas. Estes dois velhos, quem são, que serenidade é a que têm? E o António, preso, que liberdade transportou consigo para a cadeia? E M., que me sorri de longe, pisando a areia com pés de vento, que usa as palavras como se elas fossem lâminas de cristal e que de repente se aproxima e me dá um beijo? [...] “Gostei de estar contigo”, disse ela. Aplicadamente, cuidando do desenho da letra, escrevo e torno a escrever estas palavras. Viajo devagar. O tempo é este papel em que escrevo. (Saramago 1977: 295)15

O tempo, podemos também dizer, foi o da autognose, da mudança que o fez liquidar “um passado e um comportamento” e “preparar um terreno”, de onde tirou pedras, arrancou vegetação, arrasou “o que tirava a vista”, assim fazendo um deserto, em cujo centro se encontra, sabendo “que é este o lugar” da sua “casa a construir (se de casa se trata, mas nada mais sabendo)” (Saramago 1977: 264).

De igual modo, também João Mau-Tempo teve que aplanar e fertilizar um espaço de deserto, até que pudesse haver lugar, enfim, a uma, à sua, Primavera redentora. A aquisição de uma consciência política é, então, agora, a grande prova por que João Mau-Tempo tem que passar. A emergência dessa outra personalidade é um processo lento e difícil. Começa embrionariamente dentro da própria personagem que, pela sua vivência no grande mar do latifúndio dos senhores sem rosto, diariamente

15 Sobre Manual de Pintura e Caligrafia, cf. também Arnaut 2002a: 159-160.

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sente na pele a indignidade do tratamento a que os trabalhadores são submetidos. Continua e completa-se pela informação e pela formação que recebe dos papéis que lê e dos encontros clandestinos em que participa.

Assim, numa primeira etapa, é possível verificar a falta de forças inicial para discordar do poder, o que o leva a fazer parte da carga a granel que, em silêncio, se acotovela na camioneta que levará os trabalhadores a Évora, a um comício a favor dos nacionalistas espanhóis (Saramago 1980: 95). Seguidamente, o gérmen da revolta instala-se quando, comparando os “dizeres inflamados” do padre Agamedes a favor do latifúndio com o que “em sua cabeça conseguiu fixar dos papéis que às escondidas lhe têm dado, faz o seu juízo de homem simples, e se dos papéis acredita alguma coisa, das palavras do padre não acredita em nenhuma” (Saramago 1980: 121). Juízo feito, ponderadas e comparadas as coisas, a revolta é explicitamente assumida quando, em conversa com o feitor a propósito da reivindicação pela jorna de trinta e três escudos, “João Mau-Tempo abre a boca e as palavras saem, tão naturais como se fossem água a correr de boa fonte, Ficará a seara no pé, que nós não vamos por menos” (Saramago 1980: 141). A ativação e o desenvolvimento de processos de reivindicação e de revolta que levam a personagem a começar a saltar o muro de si mesmo, na tentativa de derrubar esse outro muro feito de repressões diversas, continuará (Saramago 1980: 312-318) com a participação em várias revoltas e culminará na rebelião de 23 de Junho de 1958, em Montemor.16

Em romances mais recentes, podemos apontar a mudança interior sofrida por Tertuliano Máximo Afonso, de O Homem Duplicado (2002), ou a evolução presentificada pelo Comandante que, em A Viagem do Elefante (2008),17 escolta a comitiva portuguesa que entregará Salomão aos representantes do arquiduque Maximiliano da Áustria. Também aqui, nenhuma das personagens é a mesma no final do romance. Se no confronto tantas vezes violento com o seu duplo, Tertuliano aprende o labirinto da humanidade dos afetos, o Comandante ganha, ao longo da viagem, eventual metáfora da própria vida, a capacidade para aceitar o valor das lições que vêm da gente simples (Saramago 2008: 144).

16 Sobre Levantado do chão, cf. Arnaut 2002b: 209-221.17 Sobre A Viagem do Elefante, cf. também Hendrich e Bauer, neste volume.

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No mesmo âmbito, podemos apontar a capacidade do senhor José, protagonista de Todos os nomes (1997c), para aceitar e para levar a bom termo os desafios que lhe permitirão conhecer-se e conhecer os outros. Podemos, também, sublinhar a progressiva lucidez de Cipriano Algor que, em A Caverna (2000), não se deixa enganar pelas aparências de uma (boa) vida que, enfim, se revelará sombra. Aparentemente um local de extraordinária comodidade, onde tudo, ou quase tudo, existe, o espaço do Centro para onde a família se muda sempre se lhe apresenta, contudo, como um local de redução de liberdade e de humanidade. Por isso, depois de conhecer o segredo da(s) caverna(s), num percurso de consciencialização desde cedo posto em evidência, Cipriano arrasta a filha, Marta Isasca, e o genro, Marçal Gacho, na fuga a esse espaço de tonalidades utópicas.

A fuga acontece, por consequência, não na direção da tradicional perfeição da utopia mas, antes, na direção de um lá fora, indeterminado, é certo, mas um lá fora, o nosso mundo, onde o Homem pode ser livre e perfeitamente imperfeito. E esta mesma lição que impõe a perfeição da humana imperfeição parece-nos ser aquela que assiste ao exemplo que acima demos da família de camponeses que, clandestinamente, passa a fronteira para que avô e neto possam morrer em paz. Na mesma linha, não podemos esquecer os comportamentos das personagens que compõem o grupo de protagonistas de A Jangada de Pedra e que vão adquirindo a sua humanidade num constante jogo de afetos nem sempre pacíficos. Relembre-se, tão-somente, a atitude de Maria Guavaira e, depois, de Joana Carda, que, ao decidirem fazer de Pedro Orce um homem menos só, provocam uma momentânea desunião/cisão no grupo (Saramago 1986: 287-290).

E já que destas mulheres falamos, deve pôr-se em evidência que o elemento feminino é, no romance saramaguiano, de fundamental importância para o desenvolvimento moral, afetivo, ideológico e, às vezes, físico, do elemento masculino. Por outras palavras, a mulher é, desde Manual de Pintura e Caligrafia, desde M., portanto, a mola de conhecimento que permitirá ao homem tornar-se um ser melhor e humanamente mais completo; a mola de conhecimento que ajudará o homem tornar-se no Homem como lugar onde o sonho utópico poderá concretizar-se.

A esta galeria de mulheres e à importância que têm nos universos do autor, devemos aduzir, ainda, os seguintes nomes: Faustina e Gracinda Mau-Tempo, mulheres-companheiras de armas de homens que, em Levantado

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do Chão, ensaiam um novo tempo de consciência humana e política; Blimunda, de Memorial do Convento (1982), a mulher de olhos excessivos, cujos poderes, aliados ao sonho quimérico de Bartolomeu Lourenço, abrem novos horizontes a Baltasar Sete-Sóis; Lídia de O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), elo de ligação entre o mundo do poeta e o do povo comum; as já mencionadas Joana Carda ou Maria Guavaira sem as quais se não podia entender, plenamente, o sentido da viagem da Península torna d�A Jangada de Pedra; Maria Sara, por causa de quem Raimundo escreve a sua História do Cerco de Lisboa (1989), num percurso que é também o da afetividade; Maria de Magdala responsável por um Jesus capaz de humanamente amar e errar.

Relembrem-se, também, a incógnita figura feminina de Todos os nomes, mentora indireta da fuga de José ao marasmo em que vivia, e a mulher do médico, única personagem que ao longo de Ensaio sobre a Cegueira, mantém a capacidade de olhar e de ver e, de, por isso, ajudar a compreender, numa mesma linha, aliás, recuperada em Ensaio sobre a Lucidez. Sem esquecermos Marta Isasca ou Isaura Madruga que, em A Caverna, cada uma à sua maneira, dão a Cipriano Algor novos alentos de vida, mencionem-se Maria da Paz e Helena cujas ações e atitudes, em O Homem Duplicado, são fundamentais para o nascimento de um ‘novo’ Tertuliano Máximo Afonso.

Nos romances mais recentes, As Intermitências da Morte, A Viagem do Elefante e Caim (2009), destacamos, respetivamente, a morte tornada mulher, que contribui, apesar de tudo, para o (re)nascimento de um novo homem, o violoncelista; a rainha dona Catarina, mulher de Dom João I e o facto de ser ela a motivar a viagem de Salomão e, por conseguinte, a possibilitar as diversas viagens de autognose; e, finalmente, a insubmissa e rebelde Lilith, pelo papel que desempenha na consubstanciação do humano Caim, e Eva, pelo que na (re)construção da personagem existe de diferença subversiva em relação ao arquétipo bíblico.18

18 Ao contrário da original, a Eva saramaguiana não evidencia apenas consciência crítica para comentar a atitude de Deus, considerando forçoso, por exemplo, levá-lo a explicar o motivo pelo qual os fez e com que fim:

Sobre o que o senhor possa ou não possa, não sabemos nada, Se é assim, teremos de o forçar a explicar-se, e a primeira coisa que deverá dizer-nos é a razão por que nos fez e com que fim, Estás louca, Melhor louca que medrosa, Não me faltes ao respeito, gritou adão, enfurecido, eu não tenho

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Convém aduzir, a propósito, que não nos parece ser um acaso o relevo que a personagem feminina adquire na obra saramaguiana. Lembrando a impossibilidade de, na ficção do autor, separarmos a (sua) vida da arte (literária) que a recria,19 julgamos não errar se afirmarmos que o respeito e os afetos dedicados à avó Josefa contribuíram, decisivamente, para o desenho da constelação de mulheres que acabamos de enumerar. O reconhecimento desta influência (a que, quase sempre, se aliam as menções ao avô Jerónimo) é verbalizado pelo próprio José Saramago em textos tão diversos como As Pequenas Memórias (Saramago, 2006), o discurso pronunciado na Academia Sueca, por ocasião da entrega do Prémio Nobel (Saramago 1999a), ou, se quisermos recuar ainda mais no tempo, as crónicas “Retrato de antepassados” (Saramago 1973) e “Carta para Josefa, minha avó” (Saramago 1971). Assim sabemos da consciência de que:

[...] estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação. (Saramago 1999a: 15)

Assim sabemos, também, de uma avó Josefa cujo desconhecimento da literatura ou da filosofia não a impediu de alcançar a coragem, a sensibilidade e a bondade que devem assistir ao ser humano (Saramago 1971: 27).

Mas a assunção do poder do Homem, da sua capacidade para se tornar o local, o centro, de concretizações utópicas, passa, também, pelo polémico tópico da religião, implicando, na obra ficcional saramaguiana, a necessidade

medo, não sou medroso, Eu também não, portanto estamos quites, não há mais que discutir, Sim, mas não te esqueças de que quem manda aqui sou eu, Sim, foi o que o senhor disse, concordou eva, e fez cara de quem não havia dito nada. (Saramago 2009a: 25-26)

Além disso, a nova Eva mostra-se capaz de agir, na esteira dessa linha de composição de personagens femininas corajosas, determinadas, e não pouco importantes ao desenvolvimento de vários traços da personalidade, dos afectos e da capacidade ideológica dos homens que acompanham. Assim, prolongando alguns traços da composição de Lilith, esta Eva, ao contrário de Adão, resignado com a deliberação divina e temeroso dos efeitos de novas desobediências (Saramago 2009a: 24-25), não aceita pacificamente a fome que são obrigados a passar, decidindo, por isso, “ir pedir ao querubim que lhe permitisse entrar no Jardim do Éden e colher alguma fruta que lhe aguentasse a fome por uns dias mais” (Saramago 2009a: 24). 19 Referimo-nos à impossibilidade, tantas vezes assumida por José Saramago, de separarmos autor de narrador (cf., por exemplo, Saramago 1997a: 40-41).

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de denegar a força do divino. O poder a alcançar, e a manter, é o que decorre da vontade humana. A vontade que não é a alma, nem com ela deve ser confundida, como Bartolomeu Lourenço diz a Baltasar Sete-Sóis (Saramago 1982: 123). Parece-nos lícito, afirmar, então, que a alma a que se refere o médico de Ensaio sobre a Cegueira, na citação que acima fizemos, seja lida nesta dimensão. Parece-nos também correto, a propósito, relevar a importância de, em Memorial do Convento, o engenho voador construído pela santíssima trindade terrestre (Bartolomeu, Baltasar e Blimunda) se elevar nos ares por causa das duas mil vontades de homens e de mulheres; vontades recolhidas por Blimunda e distribuídas pelas duas esferas da Passarola.

De igual modo, não podemos deixar de convocar os episódios finais de O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) ou de Caim. No primeiro romance, numa paródica linha de subversão muito característica do modo como José Saramago se apropria dos dados históricos, laicos ou religiosos, Jesus, crucificado, clama “para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez” (Saramago 1991: 444), assim dando resposta cabal à questão formulada em Memorial do Convento sobre “quem há-de perdoar a Deus ou castigá-lo” (Saramago 1982: 183). Não se trata, pois, como regista o canónico Evangelho de São Lucas (23,34)20 de pedir perdão ao Pai para os que o haviam crucificado. E muito menos se trata de entregar nas Suas mãos o Seu Espírito (Lc 23, 46).21 Trata-se, pelo contrário, numa clara assunção do papel egoísta e malévolo de um Deus que, “sacrificador”, o obriga a morrer, de implorar ao humano que perdoe as atitudes do divino, desse modo totalmente assumindo a supremacia do primeiro sobre o segundo. Como já havia dito em Memorial do Convento, “é a vontade dos homens que segura as estrelas”, sendo “fácil ver que, faltando os homens, o mundo pára” (Saramago 1982: 124, 66).

Em Caim, o narrador não só evidencia a sua compreensão relativamente ao assassínio de Abel. Além disso, sempre regula a sua simpatia de modo a (re)criar uma personagem, Caim, de “bons princípios como

20 “Quando chegaram ao lugar chamado Calvário, crucificaram-n’O a Ele e aos mal-feitores, um à direita e outro à esquerda. Jesus dizia: «Perdoa-lhes, ó Pai, porque não sabem o que fazem»” (Lc 23, 34).21 “Por volta da hora sexta, as trevas cobriram toda a terra, até à hora nona, por o Sol se haver eclipsado. O véu do Templo rasgou-se ao meio, e Jesus exclamou, dando um grande grito: «Pai, nas tuas mãos entrego o Meu Espírito». Dito isto expirou” (Lc 23, 44-46).

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poucos” (Saramago 2009a: 41): digna, humana, visceralmente bondosa e intrinsecamente honesta (150),22 detentora de uma consciência ideológica capaz de comentar e de desmontar criticamente as atitudes de Deus (passim);23 capaz, também, de lutar contra os desígnios divinos. É assim que, depois de entrar na arca de Noé, vai eliminando, um a um, os filhos, as noras e a mulher de Noé. Este acaba também por perecer, deixando-se cair borda fora da arca depois de ter concluído sobre o fracasso da missão que lhe havia sido atribuída, pois “sem mulheres que fecundem não haverá vida nem humanidade” (Saramago 2009a: 179). O confronto final acontece, pois, entre o humano Caim e o divino Senhor, afinal os únicos (sobre)viventes do apocalítico dilúvio; afinal os únicos (sobre)viventes de uma nova humanidade que não chegará a acontecer da forma idealizada porque o humano derrota Deus (cf. Arnaut 2010: 63-65).

Não deixa de ser muito curioso, porém, que o delinear destes percursos de humana aprendizagem faculte a verificação da presença de afinidades com certos vetores da tradição religiosa que se denega. Radicar a esperança de uma sociedade mais justa e perfeita no próprio Homem assemelha-se, pelo menos numa primeira abordagem, a essa linha a que já fizemos referência no início e que implica que os justos serão recompensados, ressuscitando no reino dos céus. Esta afinidade é, todavia, meramente aparente: no caso da tradição judaico-cristã a sociedade justa situa-se num não local, num não espaço; no caso de José Saramago, a ideia é que a recompensa, isto é, a vida melhor, se situe na vida terrena.

Neste sentido, a utopia saramaguiana aproxima-se mais de uma outra dimensão espiritual. Referimo-nos às semelhanças com o rito de elevação ao grau de mestre maçon e, segundo se pode ler na Introdução à Maçonaria, da

22 Talvez por isso Caim assuma, duas vezes, o nome Abel, desse modo redistribuindo e reatribuindo (logo, corrigindo), a carga semântica tradicionalmente atribuída ao irmão.23 Na conversa que mantém com os “dois anjos do senhor”, por exemplo, a propósito da aposta feita entre Deus e o Diabo sobre a fidelidade de Job, Caim comenta: “[...] não me parece muito limpo da parte do senhor, [...] [job] vai ser castigado sem motivo com a perda dos seus bens, talvez, como tantos dizem, o senhor seja justo, mas a mim não me parece, faz-me recordar sempre o que aconteceu com abraão a quem deus, para o pôr à prova, ordenou que matasse o seu filho isaac, em minha opinião, se o senhor não se fia das pessoas que crêem nele, então não vejo por que tenham essas pessoas de fiar-se no senhor [...], Estou cansado da lengalenga de que os desígnios do senhor são inescrutáveis [...], deus deveria ser transparente e límpido como cristal em lugar desta contínua assombração, deste constante medo, enfim, deus não nos ama [...]” (Saramago 2009a: 142).

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autoria de António Arnaut (2009), à forma como Hiram24 se transforma em figura de ritual iniciático e, em concomitância, em símbolo de ressurreição para uma vida justa e perfeita. Recusando-se a revelar os segredos do grau de Mestre, que “três maus companheiros” queriam obter para “alcançar a mestria e o respectivo salário” (A. Arnaut 2009: 24),25 Hiram é assassinado: um dos companheiros atinge-o com uma régua no ombro, o outro com um esquadro de ferro no peito, e o último derruba-o com um golpe de maço sobre a fronte, “provocando-lhe a morte” (ibid.: 25). Ao verificar que nenhum havia conseguido saber a palavra do Mestre, sepultam-no, deixando sobre o túmulo um ramo de acácia. “Ali foi encontrado, mais tarde, pelos mestres” que, segundo a lenda, escreve, ainda, o ex-Grão Mestre do Grande Oriente Lusitano, “haviam combinado que o primeiro sinal que fizessem e as primeiras palavras que proferissem ao descobrirem o cadáver, ficassem para sempre como o sinal e a palavra sagrada de mestre”, assim acautelando “a eventualidade de os sinais correspondentes ao grau terem sido descobertos pelos assassinos” (ibid.). Essas palavras e sinais,

[...] que apenas são revelados quando um companheiro ascende ao grau de mestre, ainda hoje são utilizados. Também os graus estabelecidos por Hiram constituem, tantos séculos volvidos, os três primeiros graus da Maçonaria [...].

O assassínio de Hiram interrompeu os trabalhos e o Templo de Jerusalém ficou por concluir, sendo mais tarde destruído pelos caldeus e pelos romanos.

Os maçons procuram desde então a palavra de Mestre, a fim de o poderem reconstruir. Esta palavra perdida é a essência do segredo maçónico. A sua descoberta permitirá a ressurreição simbólica do arquitecto e a construção do novo «Templo», símbolo da fraternidade universal. (ibid.: 25)

No ritual maçónico o recipiendário identifica-se, portanto, com Hiram, devendo, por isso, morrer simbolicamente. E os três golpes desferidos no Mestre passam a representar uma tripla morte: física (ombro), sentimental (peito) e mental (fronte). Ora, esta morte iniciática mais não é do que a

24 Artesão de Tiro incumbido por Salomão da construção do Templo de Jerusalém (1º Livro dos Reis, 7, 13-51). 25 Cf. também Chevalier e Gheerbrant 1992: 505-506.

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possibilidade (simbólica) de uma renascença (também ela tripla) em um novo Hiram, quando ao aprendiz/companheiro é concedido o grau de mestre. A palavra procurada reside, por conseguinte, nesta possibilidade de transformação interior; uma transformação espiritual conducente à busca da integridade, da Sabedoria, da Tolerância e da Generosidade (Chevalier e Gheerbrant 1992: 505-506). Alcançadas estas qualidades, não é difícil compreender que, a partir daí, se poderá construir uma sociedade ideal, porque livre, porque igual, porque universalmente fraterna.

Parecendo, também, semelhante ao ideal de ressurreição dos católicos, há, no entanto, que assinalar uma variante fundamental entre estas duas linhas de espiritualidade. A saber, se a tradição judaico-cristã remete (para alguns) para uma (utópica) vida perfeita a atingir depois da morte, a tradição maçónica, tal como em José Saramago, ou tal como lemos os romances do autor, reenvia (para outros) para uma (talvez não menos utópica) sociedade também ela perfeita, mas a ser alcançada e experimentada em vida depois de múltiplas simbólicas privações e tormentos.

Em qualquer uma das atitudes que acabamos de mencionar não parece difícil, em todo o caso, afirmar a ancestralidade da aliança espiritualidade/utopia, ou a permanência de sonhos e de desejos velhos como a própria Humanidade; sonhos e desejos que, em alguns casos, deixaram já de o ser, porque concretizados por viscerais ambições humanas; sonhos e desejos utópicos, ainda — como este de sociedades justas e perfeitas ou aquele da imortalidade —, que, quer o autor o tenha pretendido ou não, encontram eco no espaço-tempo dos romances escritos.

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A nova Mensagem do trans-iberismo –sobre alguns aspectos utópicos e metanarrativos

no discurso saramaguiano

Burghard Baltrusch

“[O ser humano] possui uma capacidade revolucionária tanto para mudar a realidade quanto para transformar a si próprio.”

(Saramago in Gómez Aguilera 2008: 223)

A obra de José Saramago caracteriza-se por uma constante preocupação político-cultural e ético-filosófica. É sabido que, na sua criação literária e nas suas reflexões ensaísticas, o autor tem vindo a desenvolver uma revisão crítica não só do imaginário cultural português mas também de grandes conceitos e metanarrativas, como a Europa, a Democracia, a Sociedade, a Religião ou a Globalização. Entre estas reflexões destaca um conjunto de temas relacionados com o iberismo, alguns dos quais já foram tratados, por exemplo, em relação à função de espelho que representariam as culturas americanas e africanas de fala portuguesa e espanhola para a pluralidade sócio-histórica da Península e da sua diferença cultural em relação à Europa central. A partir deste contexto, este estudo pretende centrar a sua atenção,

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por um lado, na prática discursiva e narratológica da obra saramaguiana e, pelo outro, na sua crítica da imagologia portuguesa e, por extensão, em alguns aspectos relacionados com as imagologias ibérica e europeia.

Debrucemo-nos, primeiro, sobre o que diz respeito a Portugal. O tratamento da história e do imaginário nacional na grande maioria dos romances publicados até à História do Cerco de Lisboa (1989), facilmente poderia ser relacionado com os debates identitários mais destacados do pensamento português contemporâneo. Para podermos salientar melhor a contribuição saramaguiana, lembremo-nos, brevemente, das tentativas históricas de institucionalizar ideários e mitificações do destino nacional como realidades superiores e teleologicamente ordenadas e que se converteram, tanto como os seus respectivos questionamentos, em mecanismos relevantes da memória cultural contemporânea em Portugal (cf. Real 1998: 18-19). A irreconciliável polêmica entre os defensores de uma ‘estrangeirização’ e europeização de um Portugal entendido como decadente (desejada, por exemplo, pela Geração de 70, por António Sérgio, Raul Proença, etc.) e os defensores tanto de concepções utópicas como de uma filosofia portuguesa propriamente dita (com representantes, tão diferentes entre si, como Pascoaes, Pessoa, Agostinho da Silva, ou Álvaro Ribeiro, por exemplo) talvez tenha a sua origem no choque sistémico entre ilustração e escolástica no século XVIII.1

A autoconfiança cultural que parece ter existido com anterioridade ao século XVIII (cf. Calafate 2002) foi-se transformando na ideia generalizada de uma decadência do pensar filosófico em Portugal e em desejo de assimilar a tradição franco-anglo-germânica do conceito filosofia. Além disso, o pensamento providencialista, cultivado em Portugal desde a primeira metade do século XX, também esteve, frequentemente, sujeito à suspeita de apresentar uma proximidade com os ideários fascista e nacionalista. Calafate (2000) demonstrou, ao contrário do que se tinha tornado opinião geral, que o pensamento filosófico em Portugal sempre esteve inserido num contexto literário ou artístico em geral, ou seja, que nunca se chegou a praticar uma distinção clara entre estética e filosofia.

1 Esta polêmica também tem estado presente nos problemas que suscitaram as tentativas de institucionalizar uma “Filosofia portuguesa” como disciplina académica (cf. Calafate 2002); cf. também os respectivos cuidados de Pedro Calafate em relação à selecção do título (cf. ibid.) da sua História do Pensamento Filosófico Português (Calafate 2000).

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Porém, àquilo que evidencia a História do Pensamento Filosófico Português em relação ao século XX (Calafate 2000, vol V.1-2) haveria de acrescentar as obras fundamentais de Eduardo Lourenço e António José Saraiva, que nela não se incluíram, mas que representam um autêntico “tournant do imaginário filosófico português” (Real 1998: 63; cf. também 2011), uma vez que praticaram um diálogo crítico, mas ao mesmo tempo já normalizado, com o pensamento europeu contemporâneo. Assim, Lourenço tinha introduzido o conceito de “imagologia”2 para iniciar um novo “discurso crítico” sobre a autognose portuguesa (1978: 14), dirigindo-se abertamente contra o que identificou como o “irrealismo prodigioso” (1978: 17) do imaginário nacional.

Se relacionássemos o respectivo discurso saramaguiano, tanto na sua vertente prática como na utópica, com este debate imagológico, poderíamos falar de uma ‘nova Mensagem� materialista, ironicamente oposta ao imaginário metafísico e providencialista de um Fernando Pessoa ortónimo.3 A Mensagem pessoana, apesar de representar uma renovação imagológica da memória colectiva em termos esotérico-gnósticos, e visando um universalismo cultural, continua a tradição das tendências messiânicas do Bandarra, do Sebastianismo e da História do Futuro de Vieira.4 O intertexto que cria o título da Mensagem com a Eneida de Virgílio (“mens agit molem“, Eneida VI: 727), a epopeia que já constituíra o modelo para Os Lusíadas, revela a ligação entre espírito divino e matéria que Pessoa quis imprimir, desde um ponto de vista hermético-alquímico, à história de Portugal.5

Lourenço (1978) interpreta estas expressões providencialistas como um histórico desejo de superioridade, derivado de um profundo complexo de inferioridade, que, pela sua vez, se teria desenvolvido a partir de três traumatismos históricos: o “acto sem história” e “injustificável” do surgimento de Portugal como estado, o impacto psicológico de Alcácer

2 O emprego do conceito nos estudos de recepção foi iniciado por Carré (1953).3 Uma primeira versão deste estudo foi publicada em Gómez-Montero 2001 (247-266); uma segunda, aumentada, em Grossegesse 2004 (111-133), sendo aqui, novamente, revista e actualizada. 4 Seguiu-lhe, mais tarde, Agostinho da Silva com a concepção da missão messiânica do Império do Espírito Santo que Portugal teria de cumprir.5 Esta intenção entrevê-se, também, na epígrafe da Mensagem, “benedictus dominus Deus noster qui dedit nobis signum”, extraída do ritual rosacruciano De mysteriis rosae rubeae et aureae crucis. Foi este processo de purificação espiritual, por via alquímica, que Pessoa pretendia aplicar em relação à história, ao presente e ao futuro de Portugal.

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Quibir e a perda definitiva dos restos do império colonial em 1974/75. Saraiva (1981) coincide com esta interacção de imaginários antagónicos, embora os derive, em termos psicológicos e imagológicos, do «eterno balanceamento do português entre a solicitação de «aventura» e o «complexo de ilhéu»» (Real 1998:152) surgidos do mito da Cruzada, da limitação geográfica e do contra-mito da decadência.

Contra a corrente providencialista, tanto Saraiva como Lourenço argumentam que Portugal sempre tinha sido uma parte da Europa, que interagiu com ela, verificando-se, somente, um afastamento durante os quatrocentos anos entre o século XVI e o século XX. Porém, o reencontro com a Europa, depois da sua formalização política em 1986, consumiu-se quando esta Europa já se encontrava «vazia por dentro de qualquer intenção e desígnio que transcendam a realidade quotidiana das suas performances, da sua existência infantilmente paradisíaca de Disneyland” (Lourenço 1984: 34), quando ela já se revelava “imageticamente desequilibrada” (Real 1998: 82). Esta apreciação coincide, em parte, com o pensamento saramaguiano em relação à Europa, seja o ensaístico seja o deduzido da obra literária.

A utopia pós-colonial saramaguiana

Em geral, pode-se dizer que a autognose de Saramago reduz a interacção entre os imaginários de inferioridade e superioridade àquilo que chegou a denominar, com certo pragmatismo, como o “emblemático bifronte humano do possível e do desejável, a realidade e a utopia, máscaras que para ocultar o rosto o repetem, rostos que sempre acabam por imitar a máscara” (1993: 22, trad. minha). Em substituição de uma memória cultural de inferioridade, ainda que esta tenha sido suavizada pela mitificação do 25 de Abril, Saramago propõe, indirectamente, introduzir no imaginário português um sentimento de culpabilidade europeia em relação ao ‘Terceiro Mundo’. Um dos testemunhos mais nítidos deste empenho representa o seu discurso na Real Academia Sueca, aquando da entrega do prémio Nobel, onde insiste na necessidade de uma “nova utopia” (1998b: 6), ou seja, de uma Europa que precisa ser (re)orientada “para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo”. Em conclusão, desenvolveu a utopia de uma “Europa finalmente como ética” (ibid.: 7).

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Três meses antes, numa conferência proferida durante o 1º Congresso Iberoamericano de Filosofia em Cáceres, já reivindicara que a Europa assumisse as responsabilidades das injustiças cometidas durante o tempo dos descobrimentos. Saramago inclui, até, o actual sistema político na sua crítica pós-colonial. Assim, advertiu num ensaio da ilusão democrática que encobriria a inexistência de uma verdadeira democracia na Europa, uma ilusão que estaríamos a exportar ao resto do mundo (1993: 34).

Em termos literários, a grande crítica cultural, aqui inerente, provém de Jangada de Pedra (Saramago 1986, cit. JdP), onde a ficção faz que a Península Ibérica se desprenda do continente para flutuar o oceano abaixo até, metaforicamente, parar entre a África e a América. Saramago ignora deliberadamente as advertências de Lourenço e de Saraiva, de que seria imprescindível situar a imagologia histórica, presente e futura de Portugal no contexto europeu desvinculando-se, também, da corrente europeizante no pensamento nacional.6 Ele até admitiu no seu discurso nobelístico que JdP tinha sido o “fruto do ressentimento colectivo português pelos desdéns históricos de Europa” (1998: 6), actuando com tal afirmação como porta-voz contemporâneo de uma parte marginalizada da memória colectiva portuguesa. Porém, a sua reivindicação dos “factos diferenciais”,7 que separam a cultura ibérica da europeia, não fica por aí.8 A jangada ibérica,

6 Os argumentos de Saraiva e de Lourenço também foram retomados por Real (1998: 152-153). Cf. também Saramago 1988: 24. 7 Termo da linguagem política espanhola (“hechos diferenciales”), com o qual se pretende destacar as especificidades culturais e históricas como diferenças de comunidades singulares com vontades colectivas próprias. Saramago amplia a perspectiva da Constituição española, que pretendia integrar, sem grande êxito, os diversos povos do estado español através de uma ideia de identidade colectiva plural, e coloca o problema da própria Europa como uma ‘identidade colectiva plural’, igualmente conflictiva.8 “Neste livro [JdP] tentei mostrar duas coisas; primeiro: a Península Ibérica tem pouco a ver com a Europa no plano cultural. Dir-me-ão que a língua vem do latim, que o Direito vem do Direito Romano, que as instituições são europeias. Mas o certo é que, com este material comum, fez-se nesta península uma cultura fortemente caracterizada e distinta. Segundo: há na América um número muito grande de povos cujas línguas são a espanhola e a portuguesa. Por outro lado, nascem em África novos países que são as nossas antigas colónias. Então imagino, ou antes, vejo, uma enorme área ibero-americana e ibero-africana, que terá certamente um grande papel a desempenhar no futuro. Esta não é uma afirmação rácica, que a própria diversidade das raças desmente. Não se trata de nenhum quinto nem sexto nem sétimo império. Trata-se apenas de sonhar — acho que esta palavra serve muito bem — com uma aproximação entre estes dois blocos, e com o modo de o demonstrar. Ponho a Península a vogar para o seu lugar próprio, que seria no Atlântico, entre a América do Sul e a África Central. Imagine, portanto, que eu sonharia com uma bacia cultural atlântica” (Saramago & Pedrosa 1986: 24).

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como alegoria de um renovado iberismo,9 em termos de utopia sócio-política, distingue-se de maneira significativa dos simbolismos nacionalistas ou providencialistas — sejam estes camonianos, mais modernos ou no sentido do nacionalismo atlântico de um Sarmiento de Gamboa (cf. Vidal-Noguet 1988). Porém, a seriedade com a qual se articula o seu iberismo utópico também se distingue das diferentes recepções contemporâneas de uma (irónica) “brave new world” shakespeariana.

Dois anos depois da publicação de JdP, em resposta às acusações de anti-europeismo que lhe foram dirigidas, Saramago esclareceu a sua posição num artigo titulado “O meu iberismo” (1988) e, novamente, em “Acerca do (meu) Iberismo” (1989c). Nestes textos, separa-se o ideário do iberismo português10 do elemento providencialista-irrealista como também das suas raízes nacionalistas e rácicas, que culminaram no século XIX na ideia da União Ibérica (cf. Marques 1972, III: 35-36). Da apreensão da “constelação socio-histórico-cultural pluriforme” da Península Ibérica (Saramago 1988: 32),11 que ainda assim constituiria “uma cultura fortemente caracterizada e distinta” da europeia, Saramago deduz a necessidade de uma “harmonização dos interesses” ibéricos e um “previlegiamento das permutas culturais” (Saramago & Pedrosa 1986: 24). Ante o temor de uma, ainda que utópica, permutação cultural ibérica se dissolver no caldo europeu, o autor chega à conclusão que a “Península Ibérica não poderá ser hoje plenamente entendida fora da sua relação histórica” com as culturas da América Latina e da África (ibid.). Estes representariam, então, o futurível da própria pluralidade cultural, de maneira que a utopia do trans-iberismo12 requereria, para a manutenção da identidade cultural ibérica, uma continuação crítica do caminho empreendido pela expansão providencialista dos descobrimentos, assumindo, esta vez, responsabilidades políticas e culturais de carácter e pós-colonial.

9 “O iberismo está morto? Sim. Podemos viver sem um iberismo? Não o creio” (Saramago 1989c: 31).10 Sobre varios aspectos do iberismo em Saramago cf., por exemplo, Armbruster 1999, M. C. Silva 2002, Grossegesse 2005 ou Ribeiro 2012. 11 Cf. também: “Pude sair duma visão histórica globalizada para a apreciação dinâmica das diferenças” (ibid.).12 A recepção na Espanha daquilo que Saramago inicialmente designou “trans-ibericidade” (Saramago 1989c) passou a transformar este termo em “trans-iberismo” (Molina 1990: 7 ou Urrutia 2001: 26; cf. também Estrada 2011: 157-163). Devido ao seu dinamismo e a sua evocação de um certo activismo, que corresponde ao que Saramago parece ter pretendido, preferimos usar este termo também em português.

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Saramago se situa entre os primeiros agentes literários ibéricos que trataram com certa plasticidade este momento histórico de finais do século XX, no qual o conflito pós-colonial de sistemas se foi deslocando cada vez mais para o que se chegou a denominar como “cultural conflict”.13 Este conflito cultural desenvolve-se tanto no âmbito intra-ocidentendal como na relação Ocidente-Oriente ou Ocidente-África. A situação ibérica na Europa, e de Portugal em concreto, consistiria, portanto, num balanceamento precário, o que Saramago ilustrou com a sua insistência em que os laços imagéticos de Portugal (e da Península Ibérica em geral) com as ex-colónias seriam mais profundas e duradoiras do que os que permaneceram, por exemplo, depois do declive dos imperialismos inglês e francês. O discurso saramaguiano também tenta estabelecer um equilíbrio imagético através da introdução da ideia ética da culpabilidade de toda a Europa em relação aos países colonizados por ela, um discurso então inovador no que diz respeito à imagologia portuguesa, e não só na sua vertente literária.14

Por conseguinte, a sua utopia literária de um futuro ibérico também retoma, de passagem, alguns aspectos estéticos procedentes da suposição de um destino messiânico português que partia da premissa “que a humanidade é espiritualmente [...] uma só” (Real 1998: 36). Mas o providencialismo reformulado por Saramago substituiu a unidade simbólica do povo português, como ainda a defendia Agostinho da Silva (cf. 1994), pela unidade simbólica de povos ibéricos dentro de um discurso global tans-ibérico, dentro de uma “bacia cultural atlântica” (Saramago 1986: 24). A

13 Samuel Huntington formulou a hipótese “that the fundamental source of conflict in this new world will not be primarily ideological or primarily economic. The great divisions among humankind and the dominating source of conflict will be cultural. Nation states will remain the most powerful actors in world affairs, but the principal conflicts of global politics will occur between nations and groups of different civilizations. The clash of civilizations will dominate global politics. The fault lines between civilizations will be the battle lines of the future.” (1993: 22; cf. também Turk 1994: 244). De certa maneira, Saramago subverte estas contraposições um pouco simplistas de Huntington, ao propor um conflito no interior da civilização europeia, e ocidental em geral, a ser solucionado com uma aliança utópica que desmembraria este suposto bloco.14 Desde un ponto de vista ético-filosófico caberia, naturalmente, a pergunta em que norma se baseia este sentimento de culpa e se Saramago parte de um determinismo compatível com o livre alvedrio, na linha de compatibilistas como David Hume ou, mais recentemente, Daniel C. Dennett ou Richard Rorty.

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vertente do complexo de inferioridade e de pessimismo nacional,15 que Lourenço via resumida naquela interrogação de Garrett: “que ser é o meu, se a pátria a que pertenço não está segura de possuir e ter o seu?” (1978: 86),16 é transformada por Saramago em escatologia positiva: Passa a ser uma permutação cultural ibérica e a sua dissolução numa trans-ibericidade. As propostas de estrangeirização e de europeização são, assim, substituídas por uma proposta de universalização. Neste sentido, o conceito imagético do trans-iberismo aproxima-se do conceito cultural universalista proposto por Ernst Cassirer. O filósofo alemão pretendia chegar, a partir de um “conceito geral do mundo”, a um “conceito geral da cultura”, ou seja, considerando a língua, o conhecimento científico, o mito, a religião, a arte, enfim, todas as “produções da cultura mental” como partes de um grande contexto problemático, como uma tarefa comum (cf. Turk 1995:18).

A “Europa finalmente como ética”, que Saramago reivindica, implica não só uma ampliação do conceito de cultura, mas também uma actualização epistemológica em termos universalistas: se a teoria de a forma mentis portuguesa sempre se ter alimentado “imageticamente do Outro (mouro, castelhano, índio oriental e ocidental, espanhol, francês, Europa)” (Real 1998: 152) fosse certa, a ideia imagética da “trans-ibericidade” saramaguiana representaria uma inovação importante. Este conceito incide no que os estudos pós-coloniais consideram ser o grande problema cultural de Ocidente na actualidade: a necessidade de estabelecer um diálogo racional e humanitário com culturas, que, depois da sua colonização moderna, adquiriram a capacidade de combinar a crítica social com a defesa das suas identidades e tradições não-modernas, (como também o pretendia Cassirer).17 Neste contexto semiótico-filosófico de uma diversidade cultural e das diferentes unidades de significado subjacentes à ‘cultura’ situa-se, por exemplo, a crítica que se faz em JdP do discurso eurocêntrico, ao afirmar-se aí uma relação entre a diversidade cultural peninsular e o “facto diferencial”

15 Cf. a suposição de Agostinho da Silva que, desde o século XVI, o melhor de Portugal se tivesse mudado para o Brasil.16 Se Lourenço revisasse O Labirinto da Saudade, poderia resultar oportuno incluir a obra de Saramago entre as poucas obras capitais da autognose nacional que ali citou, à parte de O Delfim de José Cardoso Pires (1978: 68).17 Cf. Turk 1994: 245 e Orth 1988; cf. também o projecto de análise de uma Europa vista de fora que propuseram, por exemplo, Michel Foucault, no âmbito teórico pós-estruturalista, e, no âmbito literário, Salman Rushdie.

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ibérico perante à Europa. A confabulação de ética e estética, que Saramago emprega como elemento discursivo pós-moderno (cf. Baltrusch 1998) é, também, utilizada para denunciar certos discursos de poder que actuam sobre e nas memórias colectivas.

Em JdP, e posteriormente no ensaio “O meu Iberismo” (1988), como também no seu discurso nobelístico, o autor defendia a “nova utopia” de uma “Europa finalmente como ética” (1998) que necessita ser orientada para o Sul, a fim de assumir as responsabilidades pelos estragos causados durante a colonialização e descolonialização. Consequentemente, e ao contrário daquilo que propagara o providencialismo, Saramago reduz os ideários da nação e da identidade nacional a uma linguagem cultural, dissolvendo-a na necessidade multi-cultural de uma trans-ibericidade. Em paralelo com o já mencionado Cassirer, Saramago propõe uma percepção actualizada, reivindicando um inter-relacionamento das representações próprias e das representações alheias do próprio. A grande crítica saramaguiana às consequências tidas como negativas das identidades nacionais e das memórias colectivas, e da portuguesa em concreto, poderia ser estruturada por três aspectos:

• O primeiro visaria as sínteses feitas pelos estudos pós-coloniais que alertam para os processos de re-possessão dos imaginários depois das imposições coloniais europeias.18 • O segundo seria a percepção de uma pós-modernidade como fenómeno global e globalizador que tem como consequência uma desterritorialização cultural tanto de pessoas como de valores e de ideários que orientavam os processos de identificação. • O terceiro aspecto, consequência do segundo, parte da ideia de a identidade cultural uniforme aparecer, na actualidade, cada vez mais como uma ficção ou utopia inverosímil, que estaria a perder importância perante o crescente anti-miticismo que acompanha os processos de hibridismo cultural na actualidade.

Na JdP, Saramago joga com os referidos níveis da desterritorialização quer negativa quer positivamente, e propaga uma pluralidade cultural ibérica como substituto identificatório. John R. Gillis (1994) definiu a identidade constituída pela interdependência com a memória, um processo no qual a

18 Cf. por exemplo as propostas de Edward Said, Gayatri Spivak ou Homi K. Bhabha.

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História actuaria como intermediária. Saramago acrescenta a este modelo a possibilidade e o dever do sujeito contemporâneo de questionar a sua identidade cultural através de uma reavaliação e “correcção” da História19 e da historiografia oficial e colonizadora.20

Assim, a atitude ateísta de Saramago combina-se, frequentemente, com a ideia materialista de uma História modulável e com a ideia neo-existencialista de adquirir segurança e identidade ontológica através da actuação e do compromisso humanitários: “O ser humano não se deve contentar com o papel do observador. Tem responsabilidade perante o mundo, tem de actuar, intervir» (Saramago & Thorau 1987: 49, trad. minha). Porém, Saramago não encadeia os factos-signos e mitemas da História, mantendo uma ordenação totalmente teleológica, como o requereria a sistemática de uma formação como a dos “centros históricos imaginários” (Real 1998: 19). O seu discurso inverte estes processos ao praticar uma reordenação e remitificação da história desde uma percepção (por vezes) não-linear do tempo histórico. As repetidas afirmações do autor, de o historiador/narrador ser um “escolhedor de factos” (1990: 19), que “faz a História”, que a corrige deliberadamente para perturbar e fazer com que “toda a apreensão do mundo e da vida [seja] ficcionante” (1989b: 45), oferecem um perspectivismo atemporal.21

Saramago sintetizou esta tentativa de renovação do imaginário mítico com a “ideia do tempo como uma tela gigante, onde tudo está projectado (o que a História conta e o que a História não conta)”.22 Esta “arrumação

19 Em 1988, Hutcheon descreveu a problematização da História como uma das características fundamentais do pós-modernismo. Apesar das evidentes coincidências, ainda falta um estudo rigoroso que determine as semelhanças e diferenças da obra saramaguiana em relação ao pós-modernismo. Cf. também Hendrich e Bauer neste volume.20 Um exemplo deste processo, e também da crítica dos discursos de poder na obra saramaguiana, é o tratamento do cristianismo. Assim, em O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984, cit. AMRR) e n�O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), o autor desmitifica quer os conteúdos religiosos do fascismo europeu quer os aspectos totalitários do ideário religioso. Em AMRR, a peregrinação a Fátima, presenciada por Ricardo Reis, é apresentada como exemplo da paralisada e mutilada mentalidade nacional que o Estado Novo institucionalizara. Através da boca de Pessoa, o autor rejeita tanto a ânsia passiva de redenção como a ordenação teleológica da História: “perturbar a ordem, corrigir o destino, [...], Para melhor ou para pior, tanto faz, o que é preciso é impedir que o destino seja destino” (Saramago 1984: 334). 21 No que diz respeito à sobreposição de estética e observação historiográfica, estas ideias alinham com as teses de historiógrafos e críticos contemporâneos como Hayden White ou Northrop Frye.22 Saramago & Reis 1998: 80, fazendo referência a Jacques Le Goff.

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caótica” (ibid.), ou “transversal” (cf. Welsch 1996) da História permite-lhe, depois, “a reinvenção do passado”, isto é, a “reavaliação dos factos progressos, como condição, inclusive, de futuro” (Saramago 1989b: 45). A utopia de uma “Europa ética” e a pretensão de perturbar o público leitor para “reclamar a presença” (Saramago & Reis 1998: 85) histórica daquelas e daqueles que não foram registados pela historiografia, oriunda, porventura, da discussão sobre o “Novo Humanismo” neorealista que chegou a definir a literatura como um “meio de consciencialização do homem humano” (Alberto 1940).23

O trans-iberismo saramaguiano alberga, portanto, tanto um humanismo moderno ou, até, pós-moderno, dado que as vozes narrativas dos romances sempre oferecem um perspectivismo crítico em relação à história e às teorias e ideologias sistémicas.24 Quer dizer, segundo o discurso cultural desenvolvido em JdP, a integração na UE não representaria o fim da história do imaginário nacional, nem um posthistoire cultural ibérico. O ideário saramaguiano revela uma aspiração mais filosófica, pois é justamente a consciência dolorosa do presente, do presente “inexistente”, que leva a interrogar o passado e que, através de uma “rarefacção” e reavaliação do referencial histórico, viabiliza a imaginação como suporte da História, oferecendo novas vias imagéticas de futuro.25

A revisão crítica do mito de Camões em O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984, cit. AMRR) — centro histórico imaginário que simboliza, para Saramago, a paralização imagética nacional — resulta exemplar para o dito processo de consciencialização. Neste romance, a consciência histórica reflexiva do autor identifica Camões, com cuja estátua Ricardo Reis se vê confrontado quotidianamente, com uma novela que Reis subtraiu da biblioteca do navio que o levou a Lisboa. O título e o nome do autor, The God of the Labyrinth de Herbert Quain, provêm do conto “Examen de la obra de Herbert Quain” das Ficciones de Jorge Luis Borges. Camões é apresentado, no meandro de Lisboa, como também na maranha da literatura portuguesa, como o deus deste labirinto, o objecto de um

23 Contudo, no que diz respeito à reformulação do imaginário português, o neo-realismo não se tinha mostrado especialmente revolucionário (cf. Lourenço 1978: 31 e Saraiva 1963, 1973) caracterizando-se, antes de mais, por um certo androcentrismo.24 Também contém uma refutação da ideia do fim da História (cf. Saramago & Reis 1998: 45 e Grossegesse 1999: 79 e seguintes).25 Cf. Saramago 1990: 20.

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culto instrumentalizado pelo Estado Novo, da mesma maneira na que Fernando Pessoa vinha sendo institucionalizado pela Segunda República. Para desmitificá-los, o narrador ironiza-os, falando de Camões como de uma “espécie de D’Artagnan, premiado com uma coroa de louros por ter subtraído, no último momento, os diamantes da rainha às maquinações do cardeal” (Saramago 1984: 70).26

Nestas estilizações de autores consagrados, Saramago entrevê ainda outro perigo para a forma mentis portuguesa, uma postura da qual se deriva a sua renovada leitura d’Os Lusíadas: estes seriam “o recado de um grande desígnio nacional que nos paralizou naquele tempo e que, pior ainda, nos manteve paralisados” (Saramago & Alves 1986: 36). O texto épico camoniano, na sua função fundadora de um imaginário nacional, acaba por ser revalorizado como espelho esperpêntico de uma época instituída por falsos valores. Saramago apelida-o de “imensa galeria de poses” (ibid.) e responsabiliza a sua mitificação pela fixação melancólica do imaginário nacional na grandeza perdida do passado. A crítica da paralização e mutilação do imaginário colectivo através do mito pode ser considerado um topos na obra de Saramago, do que também dão prova as numerosas entrevistas. Em contraposição ao mito rácico da “progénie forte e bela” (Lusíadas IX: 42), descendente da deusa marina Thetis, predestinada a servir de exemplo ao mundo, a reescrita saramaguiana seculariza o povo português como “descendentes do rei D. João V e da sua amante a monja Paula de Odivelas, frutos de amores de sacristia, procreados pelo poder absoluto e a corrupção da igreja” (Saramago & Guardiola 1985: 8).

Seguindo a reflexão saramaguiana, os elementos submissos e fatalistas do imaginário português, em certa coincidência com a herança cristã, teriam favorecido a mitificação labiríntica das ‘vacas sagradas� do respectivo discurso político ou cultural no poder: Camões, D. Sebastião, a Saudade, o Quinto Império, o Império do Espírito Santo, Pessoa,27

26 A alusão visa aquela coincidência, sobradamente explorada, de Camões ter salvo com muito custo o seu manuscrito de um naufrágio, como também a de o ter conseguido publicar pouco antes da queda do império em Alcácer Quibir: “Seria bom que soubesse que dele se servem, à vez ou em confusão, os principais cardeais incluídos, assim lhes aproveite a conveniência” (Saramago 1984: 70). Cardoso Pires comentou estas estilizações de autores consagrados em ocasião do cinquentenário da morte de Pessoa: “quando oficialmente descobrem um herói utilizam-no para castrar o futuro” (apud Saramago & Guardiola 1985b: 154, trad. minha).27 AMRR publicou-se no ano anterior ao cinquentenário da morte do poeta (1984) e no ano

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Europa e, recentemente, a Lusofonia. Em AMRR, Ricardo Reis surge como a alegoria da passividade aguardante da burguesia portuguesa, ante a deformação fascista da sociedade pelo Estado Novo.28 Saramago identifica esta “capacidade de esperar” com um “desejo de pospor” (Saramago & Guardiola 1985: 8), uma indecisão e incoerência, também imanente en Reis, que incapacita a forma mentis para qualquer esperança, condicional de actuações assertórias.29

Desta arqueologia crítica da mentalidade portuguesa, depreende-se que a paralização e mutilação mental, derivada das instrumentalizações diferentes às quais se sujeitaram, por exemplo, Os Lusíadas ao longo da história, levara o imaginário nacional a uma incapacidade de autognose e renovação, da qual o Ricardo Reis do romance seria o símbolo supremo.

Enquanto Camões tinha pessoalizado Portugal (cf. Lourenço 1978: 81) e Pessoa o tinha enigmado, Saramago despersonaliza e desconstrói a Nação, reduzindo-a a uma linguagem cultural e dissolvendo-a, finalmente, na utopia da “trans-ibericidade”. Assim, o Nobel português continua, agora em termos materialistas e antisistémicas, a “gesta de consciência universal” (Lourenço 1978: 107) que Pessoa empreendera e é, talvez, por isso que ele ironicamente reproduz na JdP o célebre dito de Unamuno que Portugal representa a “proa da Europa” (Saramago 1986: 93).

A subversão dos níveis discursivos e narrativos

A subversão dos imaginários e mitos da memória cultural que se manifesta na obra de Saramago tem a sua correspondência no questionamento da narratologia tradicional. A crítica saramaguiana mais significativa destes discursos literários tradicionais entrevê-se na conhecida prática de dissolução

da mudança da sepultura do Cemitério dos Prazeres ao Mosteiro dos Jerónimos, símbolo por excelência do mito messiânico-colonial dos descobrimentos, vis-à-vis do Monumento dos Descobrimentos, erigido por Salazar. Saramago definiu o acto como uma “grandilocuencia” e como “la típica idea de político. En vez de entender lo que Pessoa es para los portugueses de hoy, se cae en el culto necrófilo de las apariencias. No el culto a los muertos, [...], sino el comerse al muerto” (Saramago & Bayón 1985: 156).28 Em relação a O Ano da Morte de Ricardo Reis cf. também Nunes, neste volume.29 “A esperança é uma atitude activa, mas nos portugueses é uma forma cómoda de projectar para um futuro cada vez mais longínquo o que deveríamos fazer agora, de pospor até ficarmos sem saber se desejamos ou não o entretanto acontecido” (ibid.).

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dos níveis narrativos. Saramago pretende que seja um mito que tenha de existir uma diferença narratológica entre os sujeitos do autor, do narrador e do crítico. Levado pela intenção de ressaltar não só a oralidade mas também a imprescindibilidade do carácter lúdico e ritual da escrita,30 Saramago emprega ou como elemento estrutural de toda a sua narrativa, pelo menos desde 1980, um complexo de vozes que descrevem, desmontam, sentenciam, dialogam, profetizam, se apagam, manipulam, ironizam, dominam, etc. (cf. também Real 1995), substituindo, assim, os sujeitos narrativos tradicionais.

Assim, em AMRR, pratica-se a revisão de vários aspectos do imaginário nacional português a partir da confrontação do heterónimo neo-helenista de Fernando Pessoa com a realidade histórica de 1936. É uma revisão construída como um palimpsesto: as caracterizações próprias e alheias de Reis transluzem, através da densa textura, composta de poesia citada e parafraseada, e da narração que a interpreta e valoriza, como variações sobre um só tema: a inaceitabilidade do cinismo de um observador aparentemente sereno do mundo, de um voyeur sossegado do “espectáculo do mundo” que desiste de assumir uma responsabilidade e intervir. Reis é incapaz de sentir compaixões das quais poderiam resultar actuações comprometidas com a realidade histórica: “Sou somente o lugar onde se pensa e sente” (cf. Pessoa 1992: 180), são os versos da sua própria ode que ele mesmo relê no romance:

Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estará pensando agora o que eu penso, ou penso que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual, quem, Quain, que pensamentos e sensações serão os que não partilho por só me pertencerem, quem sou eu que outros não sejam ou tenham sido ou venham a ser. (Saramago 1984: 24)

Porém, o ‘narrador’ sugere uma consciência metanarrativa do protagonista, produzindo, ao mesmo tempo, uma autêntica embrulhada dos sujeitos narrativos no enredo textual: Reis/poeta como fingimento de Pessoa, Reis/poeta como palco dos “inúmeros” que sente em si, Reis/poeta

30 Cf.: “O jogo é, talvez, a mais séria das actividades humanas” (Saramago 1990: 17).

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como ficção/fingimento de Saramago, Reis/poeta como personalidade independente, etc. Mas sobre toda esta encruzilhada de níveis narrativos paira a confissão de um autor que se serve desta para fins ressentidos, porque lhe irritava profundamente a indiferença de Reis e a vontade deste de ser um mero espectador dos acontecimentos (cf. Saramago & Guardiola 1985: 8). O jogo com a ficção enleada por outras ficções obedece, portanto, a directivas tanto estéticas como éticas.

Assim, a sobreposição subversiva do autor ao narrador,31 pode ser considerada uma tentativa de unificar o ideário pessoal com o ficcional e, em extensão de relacionar o imaginário cultural e/ou particular com o universal. No seu discurso em Estocolmo, Saramago elevou esta sobreposição, até, a uma identificação de vida e arte: “Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que [...] tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei” (1998: 4; cf. também 1997b). A identificação entre vida e obra, que Saramago parece ter querido empreender, também se verifica em diferentes níveis metanarrativos. Com os seus ensaios, intervenções públicas, nas entrevistas e nos Cadernos de Lanzarote (desde 1994), Saramago tem vindo a desenvolver um auto-comentário dos grandes temas e das grandes ideias que motivam a sua escrita. As suas auto-exegeses demonstram, também, que ele incorpora no seu discurso certos conceitos que a crítica académica maneja na explicação da sua narrativa (cf. por exemplo Saramago & Reis 1998). Estabeleceu-se um diálogo reflexivo e cônscio da sua responsabilidade que Saramago mantém quer com o público leitor em geral, quer com os seus intérpretes académicos.

A confabulação utópica de ética e estética deste diálogo intertextual está relacionado com o sonho de totalidade do seu conceito romanesco e do romance, nas mais vastas amplitudes dos seus significados (carácter de romance, romântico, maravilhoso, devaneador, apaixonado, fabuloso; ou, também, de novela, conto, fantasia, objecto imaginário e enredo de falsidades, etc.). Porém, Saramago pretendeu ir ainda mais longe na sua remodelação dos mitos literários: não só questionou a veracidade da existência do género

31 Cf. “a [...] aceitação muito consciente do papel do autor como pessoa, como sensibilidade, como inteligência, como lugar particular de reflexão, na sua própria cabeça” (Saramago & Reis 1998: 97); cf. também a crítica desta postura em Batista 1998.

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do romance histórico, como também a função de género do romance em si,32 ao defini-lo como um simples “lugar literário” (Saramago & Reis 1998: 138). A pretensão do seu projecto romanesco seria, portanto, a “tentativa de uma descrição totalizadora”,33 de “dizer tudo” (ibid.). Saramago recria com estas aspirações certos aspectos da ideia romântica da obra de arte total34 incluindo, porém, uma função do próprio público leitor/espectador que as teorias wagnerianas ainda não tinham tomado em consideração.35 Esta inclusão também sublinha o empenho ‘democratizador’ e pós-colonial da sua poética.

A mitificação da inexistência de uma instância narradora uniforme36 tem como consequência que o romancista se substitua ao “lugar literário”: “o leitor não lê o romance, o leitor lê o romancista” (Saramago & Reis 1998a:97), uma vez que “um livro é, acima de tudo, a expressão [do] seu autor”.37 Saramago fornece indicações para a leitura, como se quisesse adaptar e reinstituir certas intenções do teatro épico:

1. A autocrítica inerente às vozes narrativas dos seus romances destaca sempre algumas das precaridades dos papéis que se protagonizam;

32 Esta crítica do género traduz-se, por exemplo, no emprego da ironia como meio de indeterminação ou como jogo com a “semiose e deriva ilimitada” (Eco 1992:425-442). Eco exemplificou esta prática nos seus romances, depois de analisar já em Opera aperta a arte moderna em termos de uma “frustração dos instintos romanescos” do leitor/espectador (1973: 203), supondo que “a abertura, no sentido de uma ambiguidade fundamental da mensagem artística, seria uma constante de todas as obras e em todas as épocas” (ibid.: 11, trad. minha).33 Cf. também: “quando convoco o romance, no fundo entendo-o como uma tentativa de o transformar numa espécie de soma” (ibid.).34 Cf.: “aquilo a que eu aspiro é traduzir uma simultaneidade, é dizer tudo ao mesmo tempo. [..] Isto mostra até que ponto os escritores [...] aspiramos a essa forma de expressão total” (ibid.: 99s.). Note-se, também, que a confabulação de literatura e filosofia também conheceu o seu ponto culminante, tanto em termos teóricos como literários, durante o Romantismo. Seria interessante discernir mais detalhadamente entre os paralelismos românticos, os elementos pós-modernos e as reminiscências neorealistas na sua obra.35 Cf.: “ele [o leitor] só pode entender o texto se estiver «dentro» dele, se funcionar como alguém que está a colaborar na finalização que o livro necesita” (ibid.: 101s.); acerca de uma aplicação do conceito de obra de arte total (Gesamtkunstwerk) ao modernismo cf. Baltrusch 1997: 356 e seguintes.36 Cf.: “como o meu romance é um romance em construção contínua, é um romance que se vai fazendo a si mesmo” (ibid.: 133); e: “a figura do narrador não existe” (Saramago & Reis 1998).37 Cf. também a sua ideia de os romances serem “o sinal de uma pessoa” (ibid.: 98).

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2. as vozes têm um carácter altamente explicativo que convida à crítica; 3. o conhecido através da história tradicional e através do imaginário colectivo é enleado e reavaliado.

Outro aspecto fundamental do discurso literário saramaguiano, seriam as já referidas interacções de indeterminação e ironia.38 Um exemplo seria a ironia da “História como ficção” (Saramago 1990: 17) e do agente historiador como “escolhedor de factos” que “substitui o que foi pelo que poderia ter sido” (ibid.). A ironia subversiva desta ideia obedece, no entanto, a uma intenção didáctico-iluminista que retoma, até, algum ideário do neorealismo: uma consciência histórica crítica gera, através do meio de comunicação romance, a narração de uma outra história, que manipula, retroactivamente, a consciência do público leitor em consonância com esta consciência histórica crítica, incitando-o a reler e reavaliar a própria História (cf. Baltrusch 1997:201ss). A aparência do autor, oscilando entre o carácter lúdico e o impulso ético

[...] produzirá uma espécie de jogo contínuo em que o leitor participa directamente, por meio duma sistemática provocação que consiste em ser-lhe negado, pela ironia, o que lhe fora dito antes, levando-o a perceber que se vai criando no seu espírito uma sensação de dispersão da matéria histórica na matéria ficcionada, o que, não significando desorganização duma e outra, pretende ser uma reorganização de ambas. (Saramago 1990: 20)

Meio essencial de uma determinação relativa, a ironia aparece, assim, como tentativa de harmonização da oposição dialéctica entre História e Verdade, entre carácter lúdico e seriedade, entre reivindicação universalista e essencialista. Esta ânsia de síntese alberga um impulso ético que também se oferece como modelo de identificação positiva para o público leitor.

Um exemplo da realização desta teoria estética de indeterminação e ironia na sobreposição de ficção e realidade, constitui a História do Cerco de Lisboa (1989, cit. HCL). O protagonista e revisor Raimundo Silva introduz, durante a correcção de uma obra historiográfica sobre o cerco da

38 Também Real considera o narrador saramaguiano nascido “justamente do cruzamento singular entre uma consciência determinista e uma consciência contingente da História” (1995: 29).

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Lisboa moura no século XII, um “não” numa passagem decisiva. Depois de a sua alteração ter sido descoberta, o revisor começa, insatisfeito com a historiografia tradicional, por escrever a sua própria versão do Cerco. Dão-se interferências entre o narrador reflexivo Raimundo Silva e as vozes reflexivas e auto-referenciais do autor (cf. Baltrusch 1990). A análise da técnica irónica do narrador Silva, empreendida pelo autor/narrador, é um irónico exercício estilístico, cuja complexidade pretende evocar, na consciência do público leitor, aquela “sensação de dispersão da matéria histórica na matéria ficcionada” (Saramago 1990: 20), para que este adopte uma perspectiva diferente e crítica em relação à História:

Raimundo Silva encontra-se numa interessante situação, a de quem, jogando o xadrez consigo mesmo e conhecendo de antemão o resultado final da partida, se empenha em jogar como se o não soubesse e, mais ainda, em não favorecer conscientemente nenhuma das partes em litígio, as negras ou as brancas, neste caso os mouros ou os cristãos, segundo as cores. E muito abertamente o tem vindo a demonstrar, haja vista a simpatia, diríamos mesmo o apreço, com que tem tratado os infiéis, em particular o almuadem, sem falar no respeito que manifestou quando se referiu ao porta-voz da cidade, aquele tom, aquela nobreza, em contraste com uma certa secura, uma impaciência, uma ironia, até, que sempre vêm à tona do discurso quando se trata dos cristãos. (Saramago 1989d: 233)

A ironia contramina aqui a respectiva posição contrária sem a destruir, apresenta a própria posição sem reclamar a verdade absoluta. Ela distancia o narrador da sua narração, distancia o narrador na narração da sua narração dentro da narração, distancia, finalmente, o público leitor da sua leitura e percepção histórica habitual e provoca, além disso, em ambos consternação e compromisso. A ironia obedece aqui a um impulso ético, revela-se, ao mesmo tempo, como característica ideológica de um pensamento estético e da sua expressão crítica, empregando-se esta como outro modelo de identificação positiva e transversal para o público leitor, como uma metanarrativa ‘reescrita�.

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Conclusão

No centro da nossa atenção estiveram duas características centrais e inovadoras, desde um ponto de vista discursivo, na obra saramaguiana. Por um lado, constata-se uma reflexão teórica em relação à literatura e à historiografia que parte de um perspectivismo atemporal, exemplificado através da continuada crítica dos discursos e dos níveis narrativos institucionalizados. Pelo outro, oferece-se-nos uma crítica imagológica da memória cultural e colectiva (portuguesa, ibérica e europeia) e da sua mutilação através do mito, à qual se contrapõe uma utopia cultural e de identidade, motivada por um ideário próximo das teorias pós-coloniais.39 A crítica das metanarrativas históricas, dos níveis narrativos tradicionais e das imagologias culturais repete-se na obra através de certas características topológicas. O seu emprego é intencional e obedece a um propósito ilustrado e claramente político. Desde a perspectiva artística sobressaem, sobretudo, o inter-relacionamento de ética e estética e a inclinação para uma renovada ideia da obra de arte total (no sentido de um entretecimento de vida e arte).40

39 Pode-se acrescer um terceiro elemento inovador (em relação ao discurso androcêntrico que dominou grande parte da história literária) e que seria a recriação pós-moderna de um mito feminino e (quase) matriarcal (cf. Baltrusch, “Mulher e utopia em Saramago”, neste volume).40 Este ideário manifesta-se, por exemplo, na seguinte selecção de algumas das principais características topológicas da obra:

• o enleio da ficção/narrativa através de outras ficções/narrativas que lhe são sobrepostas ou subordinadas;• a tentativa de estabelecer um estilo de representação universalista, através do qual transluz um sonho de totalidade (pós-)moderno da narrativa literária;• a sobreposição, intencionalmente subversiva, da instância autora à instância narradora;• uma redefinição humanitária da crítica pós-moderna dos discursos, entretecida com uma reorientação e democratização do ideal romântico da obra de arte total;• a reinstituição de certas técnicas do teatro épico;• a modernização, também em termos pós-coloniais, do ideal neo-realista de um “Novo Humanismo”;• a interacção entre ironia e indeterminação para deixar margens de interpretação;uma auto-interpretação que envolve a crítica literária académica;• a contínua re-avaliação e “correcção” da história e da historiografia;• a tentativa de dissolução dos discursos de poder: a) da identidade apoiada no conceito de nação-estado, b) da perspectiva neo-colonialista da globalização em geral e c) da perspectiva eurocêntrica em especial; poder-se-ia acrescentar a subversão da perspectiva androcêntrica (cf. “Mulher e Utopia em Saramago”, neste volume).

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A ‘nova Mensagem’, ou seja, a grande metanarrativa de uma confabulação de ética e estética que, na obra saramaguiana, inicialmente partia do imaginário cultural português, acabou por se converter na utopia de um humanismo universalista e, simultaneamente, numa advertência contra a paralisação do imagético europeu que deveria conferir mais importância às representações alheias do próprio ser. Este novo humanismo universalista, retroactivamente, implicaria uma pós-modernização da memória cultural portuguesa. A estética da dúvida e da relatividade discursiva, que Saramago cultiva com o perspectivismo crítico das suas vozes narrativas, aproxima-se de uma “razão transversal” (cf. Welsch 1996 e 1997). Esta razão pós-moderna, sem deixar de ser eticamante fundamentada, consiste na sua capacidade de pensar e aguentar os paradoxos (cf. Derrida 1967), enlaçando o heterogéneo e encarando a realidade como pluralidade e transição.

Não é só através destas e outras inovações semânticas e operativas do imaginário cultural que a obra saramaguiana nos sugere, embora involuntariamente (cf. 1998: 5), a ideia de um ‘Super-Camões’ bem distinto daquele com quem Pessoa sonhara: não-androcêntrico, trans-iberista, dialecticamente materialista e decididamente pós-colonial.

• a utopia de uma identidade pós-colonial trans-iberista, a partir da ideia de uma “bacia cultural atlântica”;• a reivindicação de permutação cultural, de identidades mestiças e supra-nacionais; • a tentativa metanarrativa de uma re-ocupação positiva do conceito ideologia através das exigências trans-individuais e trans-culturais antes mencionadas.

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Tradução e utopia pós-colonial:a intervenção invisível de Saramago

Ana Paula Ferreira

Nothing comes closer to the central activity and political dynamic of postcolonialism than the concept of translation.

(Young 2003:138)1

I

Num breve apontamento intitulado “Traduzir”, publicado em 2009 na secção “Outros Cadernos” no sítio da Fundação Saramago, o escritor afirma que a tradução é sempre uma atividade no mínimo dupla, implicando uma relação não apenas intersubjetiva mas intercultural. Saramago argumenta que ao articular a sua experiência da realidade um escritor efetua desde logo um tipo de tradução. Aquele que a traduz para outra língua vê-se na necessidade de transportar para a sua própria experiência da realidade e não apenas para outra língua o que, no original, é apenas uma aproximação.

1 “Nada se assemelha mais à atividade central e à dinâmica política do pós-colonialismo do que o conceito de tradução”. As traduções do inglês são da minha responsabilidade a não ser que se indique de outro modo.

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O importante é que a tradução de um texto para outra língua respeite “ao mesmo tempo, o lugar de onde veio e o lugar para onde vai” (itálico no original): a “’tradução-texto’” completa deste modo o “texto-tradução”, ou seja, o original. Além de um diálogo entre tradutor e autor, dá-se assim na prática da tradução “um encontro entre duas culturas colectivas que devem reconhecer-se” (Saramago 2009d).

Embora a data em que Saramago escreve esta reflexão teórica sobre a tradução não seja mencionada, faz sentido supor que se pronunciaria sobre o tema tendo em vista as numerosas traduções feitas da maior parte dos seus romances e graças às quais foi possível ser conhecido internacionalmente e galardoado com o Prémio Nobel de Literatura em 1998.2 Seguindo o seu próprio argumento, pode-se dizer que as traduções em que os membros da Academia Sueca teriam lido a sua obra apontariam à transmissibilidade da experiência do escritor tanto quanto da cultura local que a sua linguagem atualiza. Do “lugar” de origem, da tradução primeira que constituiria a escrita de Saramago em português, ao “lugar” ou lugares em que essa escrita se traduz noutras línguas e evocando outras experiências, efetua-se um trânsito do pessoal ao abstrato interpessoal e intercultural ou, mesmo, supracultural.

O efeito sugestivo desse trânsito é, porventura, o que teria levado os membros da Academia Sueca a reconhecer no escritor alguém “who with parables sustained by imagination, compassion and irony continually enables us once again to apprehend a elusory reality”.3 A apreensão daquilo que se fuga à linguagem é precisamente o que, segundo Walter Benjamin, aufere à tradução o seu valor artístico e filosófico: “Mag man nämlich an Mitteilung aus ihr entnehmen, soviel man kann und dies übersetzen, so bleibt dennoch dasjenige unberührbar zurück, worauf die Arbeit des wahren Übersetzers sich richtete.“ (Benjamin 1972: 15).4

2 Uma versão reduzida e substancialmente diferente do presente artigo foi publicada na revista PMLA (cf. Ferreira 2013). 3 In <http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/1998/> ou, na tradução que se encontra no site da Embaixada de Portugal em Estocolmo: “[Q]ue, com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia torna constantemente compreensível uma realidade fugidia” (<http://www.embassyportugal.se/index.php?option=com_content&view=article&id=74&Itemid=130&lang=pt>, último acesso: 27.06.2012).4 “Subtraia-se da tradução o que se puder em termos de informação e tente-se traduzi-lo; ainda assim, restará intocável no texto aquilo a que se dirigia o trabalho do verdadeiro tradutor” (trad. de Susana Kampff Lages, in Benjamin 2008: 73).

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Na medida em que a tradução tem sempre que ver com duas ou mais experiências concretas de lugar, o que implica também experiências íntimas e corporais impossíveis de fixar seja na língua original seja na da tradução, pode-se argumentar que será na medida em que esta acena ao lugar-outro da utopia que a tradução completa o original. Esse lugar-outro para além de qualquer realidade específica far-se-á tanto mais proeminente na tradução quanto sejam distantes as culturas, vivências e línguas entre o original e esta, como é o caso da escrita-tradução pós-colonial. A noção de “singularidade” proposta por Peter Hallward (2003), para caracterizar a meta para a qual se move a literatura pós-colonial, parece-me apta para descrever tal aceno à utopia. Muito embora o seu argumento não tenha que ver com a prática da tradução, o movimento entre os pólos do “específico” relacional e do “singular” absoluto que Hallward identifica na escrita de cada um dos escritores contemplados no seu estudo é análogo ao efetuado por uma tradução artística.5

Partindo da especificidade de um texto, da realidade e da subjetividade nele inscritas (“traduzidas”, como diria Saramago), a tradução procuraria na capacidade criadora da linguagem a enunciação literal e singular que acaso apenas a elipse pode auferir (cf. Hallward 2003: 19). A escrita de Saramago, “texto-tradução” dirigido ao outro que o traduz e assim o completa em “tradução-texto” acenando à utopia ou lugar-outro que não existe ou é, pode, assim, ser caracterizada em termos filosóficos como pós-colonial. “Pós-colonial” não no sentido cronológico restrito e equívoco, identificado como“pós-colonial” ou depois do final do colonialismo, mas como expressão elaborada a partir de e em reacção ao domínio colonial (Gandhi 1998: 3-4). O que acontece, porém, quando em vez de Saramago autor do “texto-tradução” nos deparamos com Saramago autor da “tradução-texto”? E de textos especificamente anti-coloniais em cuja força política e imaginativa se anuncia a utopia ou “singularidade” pós-colonial?

Entre as mais de sessenta obras de uma variedade de áreas de saber e de géneros que Saramago traduziu entre os anos cinquenta e oitenta encontram-se cinco romances de autores francófonos de nítida orientação pós-colonial. Estes são: Governadores de Orvalho (1979), de Jacques

5 Peter Hallward estuda as obras de Edouard Glissant (1928-2011), de Martinique; Mohammed Dib (1920-2003), da Algeria; Severo Sarduy (1937-1993), de Cuba; e do afro-americano, Charles Johnson (1948-).

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Romain, publicado em Port-au-Prince em 1944; O Velho Preto e a Medalha e Uma Vida de Boy (1979 e 1981, respetivamente), do camarão, Ferdinand Oyono, publicados em Paris em 1956; O Harmatão (1981), do senegalês, Ousmane Sembène, publicado em Paris em 1964; e Remember Ruben (1983), igualmente publicado em Paris, em 1974, pelo controversial escritor dos Camarões, Mongo Beti. Estas cinco obras integram-se num total de vinte e sete traduções publicadas por Saramago entre 1976 e meados de 1980.

O autor foi excepcionalmente prolífico logo após se encontrar desempregado da posição de director-adjunto do jornal, Diário de Notícias, cargo que ocupou durante escassos meses e de que foi deposto na sequência do golpe militar de Novembro de 1975. Durante este período, publica também nove obras suas, de vários géneros (cf. [Anónimo] 2010), sendo então que decide de vez tornar-se escritor profissional. Considera por isso o trabalho de tradução um ganha-pão necessário; mas a comparação do mesmo com um “trabalho a táxi” (in Aguilera 2008: 79) não deixa dúvidas quanto à frustração que lhe causava a alta demanda de traduções.

Conforme o próprio escritor referiu a Horácio Costa em 1986, eram os editores que encomendavam as traduções (Costa 1997: 178), informação confirmada por Zeferino Coelho em entrevista que me concedeu em maio de 2012. O editor da Caminho assinalou ainda que as traduções de Saramago eram de tal qualidade que não era necessário grande trabalho de revisão, pelo que se publicavam rapidamente. Faz sentido que assim fosse num momento em que se celebrava a liberdade de expressão trazida pela revolução pró-democrática do 25 de Abril de 1974 e se construía, a par e a passo do processo de descolonização (para muitos doloroso) uma cultura portuguesa pós-colonial ou, talvez, de afinidade pós-colonial.6

Entre finais da década de 1970 e meados da década seguinte, regista-se um surto sem precedente em Portugal de traduções de escritores pós-coloniais, na sua maioria africanos francófonos e anglófonos. É de notar, em contraste com a categoria problemática da lusofonia, que essas obras traduzidas são apresentadas por nome de escritor e origem nacional, não sendo agrupadas ou referidas coletivamente com os epítetos alusivos à língua europeia respetiva (i.e. anglófonas e francófonas).

6 Elaboro esta proposta num outro estudo que tenho em preparação sobre a multiplicidade e fluidez do “pós-colonial”.

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Na sua maior parte são publicadas pelas Edições 70, na série “Vozes de África”, e pela Editorial Caminho, na série, “Uma Terra Sem Amos”. Esta última, fiel à inspiração do seu título evocando o hino socialista, “A Internacional”, abrange autores anti-imperialistas não só africanos mas de vários países e regiões. É para esta última que a Editorial Caminho, recém fundada em 1975, encomenda a Saramago as traduções das obras antes referidas, de autores anti-coloniais oriundos dos Camarões, do Senegal e do Haiti. E é de notar que se regista certa coerência ideológica entre as mesmas e várias das obras de ciências sociais, de história, de educação e de história de arte, por exemplo, que Saramago traduz no mesmo período.7

Ainda se Saramago não parece ter-se ocupado do colonialismo português nem dos problemas económicos, sociais e morais dele advindos, a sua intervenção como tradutor de obras referentes a um colonialismo outro, neste caso específico, o francês, poderá apontar para a sua posição relativamente a uma temática que, muito embora cabendo no imperialismo em termos estruturais, toca especificamente à cultura portuguesa colonial e àquela que se vai construindo no período após as descolonizações, em 1975.8

Talvez não seja surpreendente o silêncio da crítica e, até certo ponto, do próprio autor em torno da sua obra como tradutor. Normalmente, os tradutores fazem-se notar apenas se cometem algum erro, mas apagam-se quando têm êxito — o que foi, evidentemente o caso com Saramago. Com excepção de umas poucas páginas dedicadas ao tema por Horácio Costa em José Saramago. O Período Formativo, estudo que foi elaborado antes do autor ser premiado com o Nobel em Literatura, tem-se registado uma total indiferença da crítica académica perante a sua obra como tradutor; nem o sítio da sua Fundação contém uma bibliografia da mesma. Em 2011, contudo, Jorge Santos disponibilizou no sítio AP Aprender Português uma bibliografia de “Traduções feitas por Saramago”, que tem a data de 1998. É tão curiosa esta data — ano em que Saramago foi reconhecido com o Prémio Nobel — como é curiosa a falta de eco crítico a propósito de tão preciosa informação.

7 Cf. J. Santos (1998) para uma lista completa dos títulos traduzidos por Saramago.8 Maria Alzira Seixo sugere que em romances alegóricos, tais como A Jangada de Pedra e Ensaio sobre a Cegueira, Saramago toca em questões pós-coloniais, incluindo a reflexão crítica sobre a guerra colonial (Seixo).

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Eis portanto um caso notável de invisibilidade de um tradutor, que, muito embora tendo cultivado com êxito a arte da tradução por três décadas, desde os anos de 1950, acabou sendo reconhecido internacionalmente pelas traduções que se fizeram da sua própria obra literária. Note-se, no entanto, que se tenha feito disponível em 2009, ou seja, pouco antes da sua morte no ano seguinte, o pequeno texto teórico em que o escritor explicita de modo sintético e brilhante o importante papel artístico, cultural, mesmo político reservado à tradução. Como se o Autor, ou os responsáveis pelos conteúdos do sítio da sua Fundação, não quisesse(m) que fosse de todo esquecida a sua contribuição, especificamente como tradutor, para a realidade cultural portuguesa da segunda metade do século XX; e, em particular, dado o número de obras traduzidas, no período posterior à descolonização.

Não é essa invisibilidade exatamente a mesma que tem sido denunciada, historiada e problematizada desde a década de 1990 por Lawrence Venuti, com relação sobretudo ao estatuto da tradução e do tradutor na esfera monolíngua da cultura ou culturas anglo-americanas. No entanto, a sua contribuição teórica para o estudo da tradução numa linha hermenêutica (por oposição à tradução num sentido estritamente instrumental) não deixa de iluminar em que medida a invisibilidade de Saramago como tradutor se insere no processo de construção de uma cultura portuguesa pós-colonial, cultura esta que só pode ser entendida no marco teórico da tradução. Para Venuti, a tradução exerce sempre uma função modelar, “domesticadora” ou manipulativa com relação à cultura em cuja língua é escrita e em que se publica (Venuti 1995: viii; 8).

Idealmente, a tradução observaria o ideal ético de fazer presente em vez de apagar a alteridade do outro estrangeiro, convertendo-a à cultura da recepção (15-6). Não é assim, porém, que funciona, posto que uma tradução, ainda aquela altamente consciente de que o é,

serves an appropriation of foreign cultures for domestic agendas, cultural, economic, political. Translation can be considered the communication of a foreign text, but it is always a communication limited by its address to a specific reading audience. (18-9)9

9 “[T]razer de volta um outro cultural como se fosse o próprio [da cultura nacional], alguém reconhecível, mesmo familiar; e este propósito arrisca-se sempre a domesticar por completo o texto estrangeiro, com frequência em projetos altamente auto-conscientes em que a tradução serve como apropriação de uma cultura estrangeira para ir ao encontro de agendas culturais, económicas e políticas no espaço doméstico. A tradução pode ser considerada a comunicação

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O ponto de vista de Venuti não tanto se opõe como contrasta com o ideal de Saramago acerca da tradução. Onde o escritor-artista vê o ideal de encontro entre duas culturas e dois escritores, o académico vê domínio, controle, assimilação forçada por parte do tradutor na língua e cultura mais poderosas, patente, segundo ele, em traduções ao inglês. Posteriormente, porém, Venuti viria a identificar um exemplo de tradução no idioma de uma cultura não dominante (como é o caso do catalão) em que a inscrição da alteridade do outro cultural na tradução provocaria o leitor a refletir sobre esse outro em termos éticos, abrindo-se à formação de comunidade, de compreensão linguística e cultural (Venuti 2000: 469; 486). Proposta que, como se observou ao início do presente ensaio, coincide com a de Saramago, sendo ambas devedoras da linha de pensamento ao parecer iniciada com a conferência de 1813 do filósofo alemão, Friedrich Schleiermacher, e posteriormente seguida por Walter Benjamin e Henri Lefebrve, entre outros (Venuti 2000: 6).

Seja ou não a língua de tradução considerada dominadora ou dominada, caberia entreter a possibilidade de que a violência cultural que é inerente ao processo de tradução pode ter consequências positivas, emancipadoras, e de abertura democrática para a cultura da recepção. Talvez seja essa a principal razão pelo grande surto do mercado da tradução em Portugal num periodo que celebra o fim da censura fascista e em que urge a consciencialização política de um povo violentamente reprimido durante quase cinco décadas. Neste contexto, faz-se importante considerar de que maneira dada tradução ou traduções dialogam com e respondem a uma certa conjuntura pós-colonial metropolitana (i.e. posterior ao final do colonialismo).

Para Robert Young, o pós-colonialismo de uma ex-metrópole colonial deve ser entendido em termos de “desconstrução e revisão” da história colonial oficial bem como dos valores por ela mediatizada, de modo a “ajustar” a cultura metropolitana aos imigrantes das antigas colónias (apud Corbett 2011). Limitando-nos ao domínio da literatura, por ser neste em que Saramago se “formou” por meio das muitas traduções que levou a cabo antes de meados dos anos oitenta, tal como de forma pioneira e acertada sugeriu Horácio Costa, importa atender ao modo como o escritor-tradutor contribuiu para o pós-colonialismo metropolitano.

de um texto estrangeiro, mas é sempre limitada pelo facto de que se dirige a uma audiência específica de leitores.”

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Entre as obras literárias anti-coloniais antes referidas, merece a meu ver atenção especial Une vie de boy, de Ferdinand Oyono. O romance é considerado um clássico da literatura africana, tendo sido traduzido em pelo menos treze línguas e em diferentes épocas, respondendo portanto a muito diversas realidades políticas, sociais e culturais.10 Não sendo este o caso com Uma Vida de Boy, verificar-se-á como a “domesticação” por parte de Saramago do original francês, francês colonial dos Camarões, vai ao encontro da realidade política e cultural portuguesa dos finais dos anos de 1970 e princípios da seguinte década.

II

Une vie de boy, publicado em Paris em 1956 pelo escritor camarão, Ferdinand Oyono (1929-2010), apresenta-se como o diário de um jovem conterrâneo que o escritor fictício teria encontrado já quase morto, na Guiné Equatorial, ao tempo Guiné Espanhola. O diário teria sido escrito originalmente em ewondo, uma das línguas principais dos Camarões, sendo o escritor responsável por traduzi-lo em francês. A narrativa é, portanto, enquadrada numa macro-narrativa metaficcional que remete a escrita a um ato de tradução, seguindo uma convenção feita famosa por Miguel de Cervantes em El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha (1605, 1615). Cervantes teria encontrado numa feira em Toledo um manuscrito em árabe, da autoria do historiador mouro, Cid Hamete Benengueli.

O importante aqui, para uma perspetiva pós-colonial, radica em que o grande escritor castellano teria traduzido um documento árabe, resgatando assim do esquecimento uma cultura que fora parte integrante da realidade espanhola ao longo de oito séculos.11 No caso de Une vie de boy, a tradução de uma das muitas línguas africanas à língua europeia imposta pelo colonizador francês representa, tal como o ato subversivo de Cervantes, uma apropriação da língua do colonizador para dar voz a uma escrita de denúncia anti-colonial.

10 David Chioni Moore desenvolve desde 2011 um projeto de investigação colaborativa, centrado nas várias traduções de Une vie de boy. A publicação dos primeiros resultados desse projeto foi publicado em PMLA em janeiro de 2013. Cf. Ferreira 2013 para o estudo inicial que serviu de base ao presente ensaio. 11 Não será mera concidência que a primeira Gramática castellana, de Antonio de Nebrija, seja publicada em 1492, o mesmo ano que Cristovão Colombo chega à América.

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A narrativa conta a história de Toundi Ondoua desde que este abandona a casa dos seus pais e o seu povo pouco antes do rito de iniciação para ir servir um missionário, que lhe dá o nome cristão de Joseph Toundi e o inicia na cultura dos brancos colonizadores, ensinando-o a falar, ler e escrever francês, a abraçar o catolicismo e a seguir o padrão de conduta europeia. Eventualmente torna-se criado da casa de um governador colonial, designado para lavar a roupa (“washerman”) e servir a sua esposa. Nesta capacidade vem a ser testemunha do adultério que ela comete com o chefe da polícia local. Por isso é preso e torturado, acusado injustamente de cúmplice no roubo de sua patroa por parte de uma criada indígena, outrora também amante do comandante, e que havia fugido para a Guiné Espanhola. É para lá que o protagonista escapa, ajudado por um enfermeiro seu conterrâneo que o cuida no hospital sob prisão, suspeitando que haverá qualquer outra forte razão para a persecução de Toundi por parte dos brancos.

O aspeto mais marcante da tradução portuguesa de Une vie de boy consiste na tensão entre a aparência de familiaridade e fluência da linguagem e as marcas de “estrangeirismo” que a pontuam. À primeira vista e na sua maior parte, o texto oferece uma versão fluída e quase literal do original francês, em parte graças à relativa proximidade entre as duas línguas românicas mas também facilitada pela fluência linguística e cultural de Saramago e pela sua habilidade poética. No entanto, marcas inconfundíveis de diferença antropológica e não apenas linguística fazem-se notar claramente no texto, forçando-nos a lembrar que estamos perante uma tradução de um texto estrangeiro.

Além de dois breves apontamentos de caráter introdutório sobre o autor e o romance, da autoria de Saramago (que serão discutidos mais adiante), as manifestações dessa diferença são termos e frases no original ou traduzidos de modo literal e, assim, provocando um efeito de estranheza no discurso em português. Esses termos de diferença ostensiva, posto que aparentemente intraduzíveis, chamam a atenção para o facto de que o diário original de Joseph Toundi teria sido em ewondo, uma língua africana impossível de traduzir na íntegra em francês. Nestes casos específicos, a tradução portuguesa parece ir ao encontro do ideal de transparência a que se refere Walter Benjamin ao caracterizar a “real translation”:

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Die wahre Übersetzung ist durchscheinend, sie verdeckt nicht das Original, steht ihm nicht im Licht, sondern läßt die reine Sprache, wie verstärkt durch ihr eigenes Medium, nur um so voller aufs Original fallen. Das vermag vor allem Wörtlichkeit in der Übertragung der Syntax und gerade sie erweist das Wort, nicht den Satz als das Urelement des Übersetzers. (Benjamin 1972: 18)12

Também a qualidade de tradução literal cultivada por Saramago dá origem a uma espécie de estranheza devido ao uso de certas palavras que não são de uso comum embora existam em dicionários de francês e português como sendo equivalentes.13 É este o caso do adjetivo “incirconscis” no texto francês (Oyono 1956: 42), “incircunciso” na tradução portuguesa (Oyono 1981: 35), termo pejorativo que reduz os patrões brancos à aparência pouco viril dos seus pénis. Um caso semelhante de estranheza regista-se com o verbo “obliquer”, utilizado na frase “elle obliqua” (Oyono 1956: 59), traduzido “ela obliquou” (Oyono 1981: 47).

Ao utilizar expressões raras tanto na linguagem oral como na formal, mas expressões que coincidem com aquelas utilizadas por Oyono, o tradutor chama a atenção para a peculiaridade de uma linguagem europeia, que seria tradução de uma língua africana. Faz-se dramatizar deste modo um problema que, tal como Kwaku Gyasi o faz notar, afeta as literaturas que têm origem em experiências vividas em línguas africanas e que são traduzidas em línguas europeias para comunicar com um público mais vasto (1999: 76-79). No caso aqui em foco, a suposta tradução francesa do original em ewondo é vertida numa segunda língua europeia, o português, sugerindo um grau de tradutabilidade que faz a ponte entre a experiência específica africana e outra mais “universal” ou melhor, “singular”, seguindo a sugestão de Peter Hallward antes referida. É nesta premissa que se baseia a teoria da tradução do grande escritor e intelectual do Kenya, Ngugi Wa Thiongo (apud Gyasi 1999: 82).

12 “A verdadeira tradução é transparente, não encobre o original, não o tira da luz; ela faz com que a pura língua, como que fortalecida por seu próprio meio, recaia ainda mais inteiramente sobre o original. Esse efeito é obtido, sobretudo, por uma literalidade na transposição da sintaxe, sendo ela que justamente demonstra ser a palavra — e não a frase — o elemento originário do tradutor” (trad. de Susana Kampff Lages, in Benjamin 2008: 78).13 Para o Saramago tradutor do francês cf. também Venâncio, neste volume.

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Um bom exemplo encontra-se na frase, “le son de Jesus” (Oyono 1956: 51), traduzida como “o som de Jesus” (Oyono 1981: 42). A ideia do sino da igreja tocando para a missa ou outro ritual sugere a ingenuidade, dir-se-ia que infantil, da experiência de fé dos povos indígenas convertidos ao cristianismo, o instrumento mais efetivo da colonização europeia. O “som de Jesus” serviu de meio de tradução entre as várias culturas, línguas e experiências do mundo, mobilizadas em comunidade de fé ou língua em teoria universal.

Ao sugerir uma experiência de tradução linguística e cultural que provocou, pelo menos em parte, o estranhamento existencial dos africanos com relação às suas línguas, culturas e a si mesmos, a narrativa de Oyono traça um processo de consciencialização política que passa pela aprendizagem da língua do colonizador europeu. A tradução de Saramago é fiel à comunicação desse processo porque não corrige a gramática ou dicção da língua do original, mas antes a transporta literalmente para português. Por exemplo, logo depois de morrer como resultado da violência a que fora sujeito na prisão agravada pelo esforço da sua fuga para a Guiné Espanhola, o protagonista é identificado como “uno alumno” pelo homem que o encontra moribundo na fronteira com os Camarões (Oyono 1956: 14).

A maneira gramaticalmente incorreta em que o natural da Guiné fala espanhol — note-se “uno” em vez de “un” na frase citada — pode ser interpretada como um comentário irónico vis-à-vis aquele que aprendeu perfeitamente a língua do colonizador do outro lado da fronteira, isto é, o assimilado à cultura francesa dos Camarões, Joseph Toundi. A sua morte como homem africano acontece muito antes da sua morte física, resultante da violência a que é injustamente submetido por parte das autoridades francesas. Ele começa a morrer a partir do momento em que o Padre Gilbert o baptiza com esse nome, pretendendo assim apagar da memória o homem africano, Toundi Onduoa, e começar com o novo nome o seu processo de assimilação. Contudo, é importante notar que Toundi resiste em parte essa assimilação, escrevendo o seu diário na língua materna, ewondo, cujo uso era proibido nas escolas coloniais francesas (Picoche e Marchello-Nizia, apud Dambré 2003: 93).

Explorando a etimologia de “alumno”, que originalmente se referia a uma criança criada por alguém alheio à sua família, Oyono sugere que a “nutrição” que Toundi recebe da língua francesa leva-o, eventualmente, à morte. Esse destino antevê-se logo que, de pequeno, é seduzido a entrar no

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mundo dos brancos pelo missionário que lhe dá cubos de açúcar e depois lhe ensinará a língua, a religião, e o alfabetiza. O pai do pequeno pressente a maldição que o missionário implica para toda a comunidade (anunciada na luta entre os pais devido às respetivas crianças disputarem os cubos de açúcar): “C’est toi, Toundi, la cause de toute cette histoire! Ta gourmandise nous perdra. On dirait que tu ne manges pas assez ici!” (Oyono 1956: 17).14 Ao repetir “uno alumno” em vez de corrigir para “um aluno”, a tradução portuguesa respeita, portanto, um momento hermenêutico e político de grande importância na narrativa de valor pedagógico anti-colonial. A história de Joseph Toundi dramatiza a contradição inerente ao domínio da língua do colonizador por parte do colonizado, situação que Franz Fanon explana a nível teórico no capítulo de abertura de Peaux noires masques blancs, por sinal publicado em 1954 em Paris dois anos antes que Une vie de boy.

Dois termos que Saramago não traduz, acentuando assim uma diferença em cada caso inassimilável à língua da suposta tradução em francês, na que se basearia a tradução em português, são “boy” e “palabres”. O primeiro, parte integrante do título e emblema do racismo colonial, o tema principal da narrativa, é explicada por Saramago num dos dois textos de apresentação que precedem o romance; lá voltaremos. Quanto a “palabres”, o tradutor reitera e elabora a explicação oferecida pelo autor. No texto francês, “palabres” aparece primeiro na frase “Case à palabres” numa nota de rodapé explicando a frase, “La masse de l’abba” (Oyono 1956: 11). Na versão portuguesa lê-se a estranha frase, “A massa da aba”, e uma explicação um pouco mais detalhada em nota de rodapé: “Barraca de palavras, ou seja para conversa, convívio e ponderação de questões” (Oyono 1981: 12).

Ou seja, Saramago dá uma tradução aproximada da frase, “case à palabres” (“barraca de palavras”), explicando depois a função que preenche na vida da comunidade representada no romance. A partir daí o tradutor utiliza simplesmente “palabres”, sem explicação ou uso de itálicos, tal como aparece no texto francês. O uso do artigo masculino plural “os” antes de “palabres” assinala não apenas outro uso peculiar de uma palavra que soa (para alguém que fala português) vagamente espanhola e feminina. Trata-se de uma hibridização linguística formada pelo junção do género masculino

14 “És tu, Tundi, a causa de toda esta história! A tua gulodice há-de perder-nos. Vão dizer que não comes o suficiente em casa!” (Oyono 1981: 16).

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do substantivo em francês, “les paroles” e do género feminino do mesmo substantivo em espanhol, “las palabras”. Ao manter “les palabres” do texto de Oyono, Saramago honra a frase referente à atividade de conversa e discussão que está na base da consciencialização e luta anti-colonial. Eis aqui — no original e na tradução, que lhe é fiel — a apropriação pós-colonial resultante da fusão de duas línguas coloniais, francês e espanhol, usadas naquela área da África central.

O termo “boy”, utilizado na cultura africana francófona em zonas de influência colonial inglesa, tal como é o caso dos Camarões, apresenta um desafio particular na tradução portuguesa. Isto deve-se, a meu ver, à explicação que Saramago oferece por ter feito essa opção; esta explicação constitui uma das duas notas explicativas que antecedem o volume. Depois de uma sinopse da história colonial dos Camarões, o tradutor faz notar que o termo inglês “boy” “era utilizado nos “territórios tropicais” colonizados pelos franceses e que tinha significados específicos nessas regiões. “Daí que não se tenha procurado substituí-lo por termos usados nas antigas colónias portuguesas, por exemplo, ‘rapaz’, que se adequaria mal a toda a situação focada no livro” (Oyono 1981: 7). Existiriam, por certo, termos mais apropriados do que “rapaz” para descrever os serviçais nas casas coloniais portuguesas, entre eles, “moleque” e “mainato”, mas também os mais afetivos, “menino”, “puto” e “miúdo”.15

Antes de iniciar a leitura do romance de Oyono, estamos portanto prevenidos por parte do tradutor, Saramago, contra qualquer comparação entre o mundo colonial que conhecemos, direta ou indiretamente mas em português, e esse outro mundo ou mundos coloniais onde a designação “boy”, teria ampla circulação. Ao rejeitar a equivalência entre “boy” e “rapaz”, este, um termo racialmente neutro em contraste com a carga racista acumulada por aquele (e que também não está ausente de termos como “moleque” ou “mainato”, que não contemplou usar), Saramago opta portanto pela carga retórica do termo inglês sobre a sua lógica relativamente à designação de jovens serviçais nas “antigas colónias” (portuguesas).

15 “Com putos assim, quem precisa de mulheres?” – é a legenda de uma das fotografias incluídas num blog da autoria de Egidio Cardoso, um ex-militar da companhia, “Caçadores 3441”, em Angola, em 1973, rodeado dos “putos” que lavam a roupa aos militares. Note-se que em vários comentários ao blogue se repete o nome “putos”, pelo que tudo indica ser esse o termo que, nessas circunstâncias, seria equivalente a “boy” (Cardoso 2011).

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Para além de uma referência localmente restrita, o significante “boy” pode ser considerado, portanto, uma vasta metáfora da ideologia racista colonial que reduzia os africanos a servos limitados a preencher os desejos dos patrões e da ordem colonizadora em geral.16 Muito apesar do aviso de Saramago sobre a especificidade da “situação” colonial representada na história de Joseph Toundi, nada leva a crer que teria sido diferente nas áreas colonizadas por Portugal. A opção de Saramago nos termos da identidade racial no texto de Oyono ajuda talvez a explicar porque razão ele não apenas mantém a designação de “boy” mas chama a atenção para o uso desse estrangeirismo anglófono, específico no desenrolar da ação numa colónia francesa com forte influência inglesa.

Noutras opções linguísticas Saramago distancia-se de modo significativo da tradução literal que caracteriza a sua versão de Une vie de boy, nesses momentos contrariando a definição da “verdadeira tradução” proposta por Benjamin, cobrindo o original, ofuscando a sua luz (cf. supra). O caso mais sério deve-se a que Saramago não segue a distinção que Oyono faz entre o uso de “nègre” e de “noir” e suas respetivas formas plurais. Condensa os dois termos em “preto”, excluindo da tradução a referência à categoria racial, “negro”. Saramago tende a utilizar maiúsculas para referir-se a grupos raciais em geral, por exemplo, “Preto/s”, onde no texto de Oyono se lê, “nègre/s”. Saramago utiliza minúsculas, “preto/s”, para se referir a uma ou mais pessoas ou grupos específicos de pessoas definidas pela sua raça ou cor, o que, no original, aparece normalmente com letra maiúscula.

Por exemplo, “Il tint a expliquer à tout le monde le comportment des nègres” (Oyono 1956: 81)17 é traduzido como, “Fez questão de explicar a toda a gente o comportamento dos Pretos” (Oyono 1981: 64).18 No seguinte exemplo, Oyono refere-se com maiúsculas a um grupo racial específico, no contexto específico onde Toundi é serviçal: “Tous les Nègres s’étaient réunis autour d’un grand feu dans la case à palabres” (Oyono 1956: 89). Saramago

16 Dirigindo-se ao ingénuo Joseph, um dos serviçais mais velhos enuncia claramente a redução do homem africano a servo por parte dos colonizadores: “Quando comprendras-tu donc que, pour le Blanc, tu ne vis que par tes services et non par outre chose! Moi, je suis le cuisiner. Le Blanc ne me voit que grâce à son estomac. … Ah! Vous, les enfants de nos jours, je ne sais pas ce que vous avez. . . Depuis les Allemands, le Blanc n’a pas changé” (Oyono 1956: 132). 17 Neste parágrafo as enfâses em negrito são da minha responsabilidade. 18 Os negritos nestas e nas seguintes citações são meus.

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usa minúsculas para traduzir essa especificidade: “Todos os pretos estavam reunidos em redor duma grande fogueira na barraca de palabres” (Oyono 1981: 69). Outras vezes regista-se um desvio relativamente às normas tipográficas do original, em cujo caso parece dar-se uma correção por parte do tradutor, como se vê na primeira frase do seguinte exemplo:

Kalisia, qui en avait assex de Blancs, vécut longtemps avec un nègre de la côte, vous savez, ceux qui ont la peau salée. [...] Elle vécut encore avec d’autres Blancs, avec d’autres nègres, avec d’autres hommes qui n’étaient pas ni tout à fait noirs ni tout à fait blancs. (Oyono 1956: 138)

Kalisia, que estava farta de Brancos, viveu muito tempo com um preto da costa, sabem, daqueles que têm a pele salgada. [...] Viveu ainda com outros brancos, com outros pretos, com outros homens que não eram completamente pretos nem completamente brancos. (Oyono 1981: 106)

Não é claro porque razão Oyono sugere que Kalisia viveu com homens brancos específicos, na frase “Elle vécut encore avec d’autres Blancs”, utilizando depois minúscula “avec d’autres nègres”, o que implicaria o grupo racial e não homens negros específicos. Saramago regulariza, assim, a expressão do autor camarão referente à raça e à cor, utilizando minúsculas nas duas frases, sugerindo portanto dois grupos específicos de amantes de Kalisia, segundo a cor/raça de cada um.

A confluência de categoria racial e cor no termo “preto” assimila à cultura da metrópole ex-colonial portuguesa — lembre-se que a tradução é de 1981 — os termos usados por Oyono em meados da década de 1950 para evocar o racismo que ele próprio viveu na colónia francesa dos Camarões. Não parece diferir do que imperava nas colónias africanas portuguesas no mesmo período: basta atender ao discurso colonial até finais da década de 1950 para se ter uma ideia de como, efetivamente, o racismo é tão ubíquo na cultura colonial portuguesa como o era na francesa e noutras culturas coloniais europeias da primeira metade do século XX (cf. Matos 2006).

Saramago traduz, no entanto, a linguagem da raça e do racismo do texto de Oyono numa linguagem considerada moralmente correta no seu meio. O mesmo tinha feito com Le vieux nègre et la médaille, também de Ferdinand Oyono, traduzido como o O Velho Preto e a Medalha e publicado em 1979. O mesmo já não acontece, porém, com os outros

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três romances africanos francófonos que traduz, onde os termos “nègre” e “noir” são traduzidos exatamente como “negro” e “preto”. Faça-se notar que os mesmos não incidem em primeiro plano no racismo europeu ou na crítica à política colonial de assimilação, tal como é o caso com Une vie de boy, manifestando, contudo, claras posições anti-coloniais. Cabe pois indagar porque razão Saramago se abstem de utilizar o termo “negro” na sua tradução do texto aqui em foco.

Em Sociologia da Negritude, publicado em 1976 pelas Edições 70, a mesma editora que iniciaria a série “Vozes d’África”, a socióloga Maria Carrilho afirma que “no português escrito a palavra ‘negro’ assumiu um tom preferentemente poético, emotivo; e correntemente usa-se a palavra ‘preto’, que quer dizer a mesma coisa”. Adianta ainda que “na linguagem falada nas ex-colónias quando um branco queria ofender expressamente um africano usava a palavra ‘negro’” (56). Nas décadas seguintes à circulação da “Declaração sobre a Raça”, da UNESCO, emitida em 1950 e revista no ano seguinte, o termo “negro” começou a ser evitado na linguagem falada em Portugal por se considerar evocativo de raça e, portanto, ofensivo, passando o termo “preto” a ser de uso generalizado como antónimo de “branco”(Carrilho 1976: 56-57), pelo que seria natural que assim fosse utilizado por Saramago.19 Ao não assinalar, porém, em português as instâncias em que “nègre” aparece no original francês (intercalado com mas eventualmente diferenciando-se de “noir”), a versão portuguesa de Une vie de boy arrisca-se a neutralizar tanto a confusão identitária sofrida pelos colonizados como a violência do racismo que os subjuga antes e depois da década de 1950 e por via (também) da política da assimilação.

Por outro lado, a omissão de “negro” e a redução do mesmo à cor, “preto”, como se fosse simples antónimo de “branco” sem o estigma da ‘raça’ oferece à denúncia do racismo, levada a cabo pelo escritor anti-colonial de mais de duas décadas antes (Ferdinand Oyono), um significado pós-colonial marxista de intervenção. Este significado privilegia o conceito do trabalhador “universal” independentemente de identidades raciais ou nacionais. Daí que a série da Editorial Caminho, “Para uma terra sem amos” não seja limitada a escritores africanos, abrindo-se em vez disso a

19 Como se sabe, os termos raciais e seu uso dependem muito do contexto, de quem os usa, com quem, e para quê.

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qualquer obra de índole anti-imperalista e, por extensão, anti-capitalista. Esse sentido dominava o movimento da negritude desde a década de 1930 mas só desde finais dos anos quarenta no âmbito anti-colonial em português. No contexto das colónias portuguesas representou até data tardia uma plataforma de unidade política pan-africana contra o colonialismo e o imperialismo.

A partir de 1959 os próprios poetas que tinham abraçado a negritude rejeitam-na com o argumento de que não tem poder mobilizador coletivo revolucionário (Laranjeira 1995: ix-x). O valor “negro” é, assim, substituído pelo coletivo “trabalhador”, sendo o trabalho o que irmana pretos e brancos. O conto do moçambicano Bernardo Honwana, “As Mãos dos Pretos”, incluído num dos livros fundacionais da literatura pós-colonial moçambicana, Nós Matámos o Cão Tinhoso (1964), é significativo ao respeito. Saramago não estaria, portanto, violando a noção fundamental da luta anti-colonial nem da ideologia marxista que a inspira ao não utilizar o termo “negro” da ‘raça’ e utilizar simplesmente o da cor, “preto”, que se supõe equivalente a “branco”. Convém refletir sobre este tipo de “correção” do original, com relação à teoria da tradução que o escritor viria a elaborar décadas mais tarde (ou que só décadas mais tarde viria a fazer-se pública).

III

Em “Traduzir”, Saramago propõe que o tradutor respeite “ao mesmo tempo, o lugar de onde veio e o lugar para onde vai” o texto que traduz, adicionando logo uma observação esclarecedora se bem que vertida numa linguagem um tanto críptica. “Para o tradutor, o instante do silêncio anterior à palavra é pois como o limiar de uma passagem ‘alquímica’ em que o que é precisa de se transformar noutra coisa para continuar a ser o que havia sido” (Saramago 2009d; itálico no original). Saramago não parece estar longe de articular uma ética da tradução que visa a um tipo de recuperação da alteridade ou diferença do texto original, para todos os efeitos uma manifestação do outro cultural, na língua — e sobretudo na linguagem — da tradução. Tal ideal é precisamente o que Lawrence Venuti vem insistentemente defendendo na sua teoria da tradução e, em particular, nos ensaios incluídos em The Scandal of Translation: Towards an

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Ethics of Difference. Se “[t]he very function of translating is assimilation, the inscription of a foreign text with domestic intelligibilities and interests” (Venuti 1998: 11),20 como se poderá chegar à articulação do outro, e enquanto outro, depois de o haver transformado no mesmo?

Independentemente do grau de ‘literalidade’ que caracteriza a tradução de Saramago de Une vie de boy, realçando assim a violência da linguagem que está na base da crítica anti-colonial de Oyono, a versão em português não pode escapar o etnocentrismo que necessariamente informa qualquer acto de tradução. Saramago considerá-lo-ia, acaso, “respeito ao lugar para onde [o texto] vai”. Isto torna-se evidente quando, além da rejeição do termo “negro”, se considera a nota explicativa de que não existia nas ex-colónias portuguesas um termo análogo a boy nem uma situação semelhante àquela evocada no romance. Torna-se também evidente num pequeno mas importante detalhe do que parece ser adaptação à pronúncia portuguesa dos nomes africanos do protagonista, “Toundi Ondoua”, que se tornam “Tundi Ondua” na tradução. Em conjunto, tais manipulações do texto original para que este “fale” ao público português de 1981 convida a uma interpretação das opções de Saramago na sua tradução do texto de Oyono em função da ideologia da ‘raça’ dominante na cultura portuguesa do seu momento, ou seja, no período posterior às independências políticas das colónias africanas.

A ideia de que os portugueses se misturaram melhor do que qualquer outro colonizador europeu com povos de outras culturas e raças tornou-se, ao longo do século XX e não estritamente após a vulgarização do pensamento luso-tropicalista de Gilberto Freyre, um sentido comum cultural, eventualmente partilhado por colonialistas e anti-colonialistas. É emblemático o caso, por exemplo, do primeiro presidente do Sénegal, Léopold Sédar Senghor, mais conhecido como poeta e um dos fundadores do movimento da negritude. O seu discurso, “Lusitanidade e negritude”, apresentado em 1975 por ocasião da sua entrada na Academia de Ciências de Lisboa como membro correspondente, constitui um verdadeiro mostruário de lugares-comuns luso-tropicalistas enaltecendo a mistura de raças da nação portuguesa e, em base da mesma, o não racismo dos

20 “A própria função da tradução é a assimilação, a inscrição de um texto estrangeiro com inteligibilidades e interesses domésticos”.

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portugueses. Os convidados de honra do evento eram os membros do governo revolucionário do General Vasco Gonçalves, acompanhados pelo então Cardeal Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro (Senghor 1975: 7).

Ao evocar a diferença da sociedade colonial portuguesa ou do colonialismo português para justificar a sua escolha de não traduzir o termo “boy”, ao não utilizar na sua tradução o termo “negro”, e ao aportuguesar os nomes africanos do protagonista, Saramago parece ser orientado por um sentido comum cultural (português) que corre o risco de neutralizar não apenas a diferença cultural mas a força anti-colonial do texto de Oyono. Mas este é um risco, aliás, a que convida o texto original, na medida em que a cena de abertura assinala um vivo contraste na relação entre as raças na Guiné Equatorial, colónia espanhola, e nos Camarões, colónia francesa. O texto virtualmente abre com o narrador comentando que os “franceses” do Gabão e dos Camarões viajam de férias para a Guiné espanhola para fugir aos embates com seus “compatriots blancs” (Oyono 1956: 7).

Duas páginas depois, o dono da casa de hóspedes onde o narrador se encontra de férias refere-se a “ces pauvres Francés” (9), enfatizando a ideia de que os senhores brancos nas colónias francesas eram mais abusivos do que aqueles nas colónias espanholas. A ideia de que portugueses e espanhóis eram mais benevolentes para com as outras raças do que outros povos coloniais é central ao argumento de Gilberto Freyre em Casa grande e senzala (1933) e, antes dele, ao argumento do filósofo mexicano, José de Vasconcelos, em La raza cósmica (1925).21 Parece, portanto, que o autor de Une vie de boy, analogamente a Léopold Senghor com relação ao luso-tropicalismo, abraçava a crença no excepcionalismo hispano. Seduzido ou não por essa posição, Saramago não deixa porém de “domesticar” a alteridade do texto de Oyono.

Ao entrelaçar o intraduzível africano francófono com o vernáculo português do seu tempo, incluindo o do período posterior à descolonização, Saramago inscreve em Uma Vida de Boy o resíduo mais persistente da ideologia colonial portuguesa e o que mais aberto se encontra à resignificação pós-colonial. Trata-se da famosa mistura de raças e culturas, espécie de multiculturalismo ‘luso-hispano-tropical’. Atendendo às instâncias de

21 A ideia era já moeda corrente entre cientistas sociais anglo-americanos a princípios do século XX (cf., por exemplo, Reuter 1918.)

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“estrangeirismo” que interrompem a fluência de um discurso que, na sua maior parte, não parece ser o produto de uma tradução, não se pode tanto notar resistência à assimilação por parte da língua da tradução como recriação cultural, no sentido de re-atuação, jogo, regeneração associado à apropriação pós-colonial. Saramago problematiza deste modo mas sem deixar de contribuir para “a invisibilidade do tradutor” que Venuti denuncia com respeito à prática de tradução na esfera anglo-americana por esta tender a apagar a diferença cultural do texto original.

Antes que tudo, a invisibilidade de Saramago como tradutor, que é superlativa na medida em que publicou sessenta traduções e todas elas com editoras de renome, relaciona-se à do trabalhador que precisa de ganhar a vida, idealmente fazendo o que melhor sabe fazer – escrever, criar uma obra de arte literária, ainda que seja da autoria de outrém. Essa invisibilidade relaciona-se portanto, neste caso, à habilidade artística do poeta, do escritor, que ele sempre desejou ser. Em “O autor como produtor” (Der Autor als Produzent, 1934), Walter Benjamin considera todo o escritor um produtor de cultura, e, portanto, de ideologia. Sendo o “modo de produção” neste caso a tradução artística, o autor-tradutor (Saramago) assimila em parte a diferença da cultura anti-colonial dos Camarões dos anos de 1950 para produzir uma cultura pós-colonial metropolitana portuguesa, mas enfim uma cultura reluctante de confrontar e nomear o colonialismo e o racismo que pelo menos em parte a constitui. É porventura o racismo do colonialismo português, entendido tanto em termos específicos como em termos estruturais com relação a outros racismos, o que escapou ou foi “elusivo” a Saramago na tradução do romance de Oyono no contexto português de finais da década de 1970, princípios da década de 1980. Este contexto ressentia-se da amargura de coloniais “retornados”, não apenas doridos de perder as suas vidas, as suas posses, as terras que chamavam suas, mas de ver o curso violento que os governos revolucionários da África lusófona tinham tomado.22

Haveria portanto que reinventar a utopia pós-colonial e anti-imperialista: aquela legada pela geração de Oyono, que é também a de Saramago, ter-se-ia traduzido em realidade ditatorial. Independentemente

22 Como bem se sabe, violentas guerras civis destroçam o povo angolano e moçambicano, o primeiro de 1975 a 2002, e o segundo de 1977 a 1992.

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da literalidade em momentos alcançada ou da tentação de transformar o texto traduzido, o trabalho do tradutor, antes que e sem dúvida preparando o do escritor por todos conhecido, estava ele também virado para “levantar do chão” os colonizados e oprimidos. Nesse sentido, o que “é” no texto de Oyono retorna intacto no de Saramago: o aceno à utopia absoluta e singular. O que nos leva a um dos teóricos fundadores do pós-colonialismo, Bill Ashcroft, para quem a dimensão utópica da literatura pós-colonial se cifra no conceito de “transnação”: o lugar-outro livre de limites de fronteiras e de identidades, um “utopianism deeply embedded in critique, a tentative hope for a different world emerging from a clear view of the melancholic state of this one” (2009: 14).23

Quatro anos depois da publicação em português de Uma Vida de Boy, o que restava de uma peça de teatro banida na televisão angolana, “Os meninos de Huambo”, torna-se uma canção popular na metrópole ex-colonial. Manuel Rui (Monteiro), o seu autor, tinha servido como Ministro de Informação no governo do Movimento Popular para a Liberação de Angola durante o período de transição para a independência. Ainda se os “meninos” referidos na canção tornada famosa na interpretação do cantor, Paulo de Carvalho, não pareçam evocar outra conotação do que tenra idade, se se pensa na canção à luz da realidade de colonização em que emergeu e a que se refere, torna-se evidente que esses “meninos” não estão afinal tão distantes dos “boys” do romance de Oyono. Estes reunem-se na “case à palabres” à volta da fogueira num qualquer lugar dos Camarões franceses para discutir os assuntos que os preocupam como grupo, como coletividade (Oyono 1956: 89); do mesmo modo, na colónia portuguesa de Angola, no Huambo, se reuniriam “[o]s meninos à volta da fogueira”:

Os meninos à volta da fogueira vão aprender coisas de sonho e de verdadevão aprender como se ganha uma bandeiravão saber o que custou a liberdade.

(Carvalho 1985)

23 Um “utopianismo profundamente enraízado na crítica construtiva, uma esperança provisória na emergência de um mundo diferente a partir de uma visão clara do estado melancólico deste mundo”.

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José Saramago e a iberização do português.Um estudo histórico

Fernando Venâncio

I

Um dia, o ensaísta António José Saraiva descreveu a arte da escrita de António Vieira do modo seguinte:

Qualquer leitor de Vieira admira o relevo, a clareza da escolha e a tensão que sabe dar às palavras, quase a cada palavra. Não há nele palavras átonas, indiferentes, lânguidas. Cada uma parece ocupar o lugar que lhe está destinado, como em estado de alerta. (Saraiva 1996: 9)

Este retrato linguístico não individualiza, decerto, António Vieira, já que é válido para todo o grande prosador, em qualquer idioma. No século XX português, o mesmo diagnóstico serviria a Miguel Torga, a José Cardoso Pires, a Mário de Carvalho. Mas tem de dizer-se que alguns elementos do retrato definem agudamente a experiência de quem lê Vieira: o relevo de cada palavra, a tensão entre elas, o estado de alerta em que parecem estar.

Esta lição de escrita foi bem aprendida por José Saramago. Ao lê-lo, a experiência do relevo, da tensão, do estado de alerta, repete-se de contínuo. Há, neste tipo de escrita, um transparente avaliar da adequação

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e da oportunidade para cada vocábulo, um cálculo milimétrico dos efeitos, enfim, um infindável desassossego. Ler por alto, para apreender sem grandes esforços o conteúdo, não funciona num autor assim. Ou se entra no jogo da tensão e do alerta, ou não vale a pena lê-lo.

Que o prosador Saramago aprendeu este tipo de preocupações e conseguimentos com a leitura de Vieira está longe de ser especulativo. Uma análise, mesmo que superficial, da escrita de um e de outro permitirá concluí-lo. Mas o próprio Saramago nos facilitou a tarefa. Já em 1983 afirmava, numa entrevista: “António Vieira é uma dívida que reivindico. […] sei que, profundamente, é o verbo vieiriano que vai ressoando no meu cérebro enquanto escrevo” (in Gómez Aguilera 2010: 231). Não é, como veremos, a única dívida que Saramago reivindica. Também a Garrett e a Cervantes se declara empenhado devedor. Mas são nítidas a frequência e a intensidade das suas referências a António Vieira.

Em 1996, diz que tem com o prosador seiscentista “uma relação de linguagem”, e que essa escrita no “limiar do inefável” exerce nele “uma espécie de atracção” (Baptista-Bastos 1996: 38). Concede, ainda assim, que Vieira “se perde, muitas vezes, em conceptismos e ocultismos um tanto exasperantes” (ibid.). E seja-nos permitido lembrar que, para alguns leitores de Saramago, esta última caracterização serviria perfeitamente ao romancista. Pouco mais tarde, em 1998, afirmaria que Vieira “é, e continua a ser, um mestre”. E ainda: “As estruturas da minha narrativa têm muito a ver com esse fluxo narrativo que é o da prosa do padre António Vieira”, nos Sermões, mas não menos nas Cartas. É que “nas Cartas talvez seja mais visível ainda essa relação, porque a carta é mais oral” (Saramago & Viegas 2010: 41). Anote-se, de passagem, que os sermões vieirianos estão efectivamente longe de uma oralidade. Vieira redigiu-os à mesa de trabalho, dezenas de anos depois de, com base em anotações, os ter pronunciado de improviso. Por fim, e a um ano de falecer, Saramago escreveu ainda:

Isto a que chamam o meu estilo assenta na grande admiração e respeito que tenho pela língua que foi falada em Portugal nos séculos XVI e XVII. Abrimos os Sermões do Padre António Vieira e verificamos que há em tudo o que escreveu uma língua cheia de sabor e de ritmo, como se isso não fosse exterior à língua, mas lhe fosse intrínseco. (Saramago 2009c: 43)1

1 Um sólido estudo sobre a presença de Vieira na escrita de Saramago foi feito por Patrícia

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Esta proximidade, assumida e sublinhada, é tanto mais curiosa quanto também os percursos do civil António Vieira e do civil José Saramago apresentam paralelos deveras impressionantes. Ambos foram cidadãos interventivos, infatigáveis até ao fim das suas longas vidas (morreram os dois com quase 90 anos): Vieira com os seus sermões, que eram, não raro, ensaios políticos disfarçados de oratória sacra, e Saramago com as suas crónicas em jornais e outras tomadas de posição pública. Em ambos a intervenção política chegou a ser directa: Vieira foi, durante largo tempo, o principal conselheiro do rei, Saramago foi presidente da Assembleia Municipal de Lisboa. Ambos tiveram, também, sérios enfrentamentos com o poder estabelecido, indo mesmo ao abandono do país. Ambos foram convictos visionários iberistas, perseguindo uma ‘utopia ibérica’: Vieira conspirando para uma nova união das coroas, mas desta vez com capital em Lisboa, Saramago profetizando uma integração de Portugal em Espanha. Ambos foram, na cultura do seu tempo, o português internacionalmente mais conhecido. Acrescente-se que ambos tiveram honras fúnebres de Estado. Sabe-se, ainda, que Saramago se propunha escrever, um dia, uma “biografia romanceada” do padre António Vieira (Lopes 2011: 92).

As outras duas ‘dívidas’ declaradas do prosador Saramago foram, já o dissemos, Almeida Garrett e Miguel de Cervantes. Numa entrevista de 1989, declarou ele: “Tenho uma tendência digressiva, que tem exemplo na nossa literatura e o melhor é o do Almeida Garrett” (in Gómez Aguilera 2010: 153). Em 2003, também numa entrevista, esclarecia:

Sou incapaz de narrar uma coisa em linha recta. Não quer dizer que me perca no caminho: quando encontro um desvio, entro por ele e depois volto por onde ia. Se houver um antepassado directo meu na literatura portuguesa, esse é um poeta, dramaturgo e romancista do século XIX que se chamou Almeida Garrett. O meu gosto pela digressão recebi-o desse autor. (in Gómez Aguilera 2010: 157)

E, por fim, em 2008, igualmente entrevistado, diz:

Nos últimos tempos cheguei a uma conclusão — que eu não tinha reconhecido como tal —, de que, no fundo, a grande influência literária na minha pessoa, na minha maneira de

Isabel Martinho Ferreira (2009).

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escrever, na minha maneira de encarar a questão do relato, da narração, foi o Almeida Garrett. Tornou-se-me claro, evidente, luminoso, nos últimos tempos. (in Gómez Aguilera 2010: 157)

Isto poderia provocar alguma perplexidade. Afinal, a «grande influência» foi Garrett ou foi Vieira? É preciso dizer (e eu tenho alguma experiência de entrevistador) que a situação de entrevista produz habitualmente no entrevistado uma espécie de euforia, nascida de um processo, rápido e incontrolável, de auto-esclarecimento, de um ‘pôr ordem’ na vida. Daí as afirmações absolutizantes, em que não poder buscar-se, menos ainda exigir-se, coerência com produtos de situações anteriores. E, no entanto, o que vemos afirmado nesses transes de autognose é preciosíssimo para o conhecimento de um indivíduo que nos interessa. Parece claro que a ‘digressão’ saramaguiana deve muito a Garrett (vamos vê-lo num exemplo) e que a lição de Vieira recobre outras prestações, mais genéricas, como o ‘sabor’ e o ‘ritmo’ da linguagem, o ‘fluxo narrativo’, ou o ‘limiar do inefável’, para usar os seus termos.

E, no entanto, se algum livro o nosso escritor levaria para a proverbial ilha deserta, ou salvaria do funesto incêndio, foi escrito por Cervantes. Di-lo Saramago em 1996:

O Cervantes foi desde muito novo uma leitura minha, algumas das Novelas Exemplares, mas sobretudo o D. Quixote. Mas certas características minhas vêm daí, vêm por absorção não consciente, mas sim por indução, por penetração, não pela mente, mas pela pele. É como se, ao ler Cervantes, me desse conta de que aquilo também era meu, mas não de uma forma consciente. (Baptista-Bastos 1996: 39)

E, uns anos depois, a aludida formulação apocalíptica: “O Quixote é o tal livro que se leva para a ilha deserta, o tal livro que se salvaria do incêndio de todos os livros, pelo menos é o livro que eu salvaria” (Saramago & Viegas 2010: 39). A ‘utopia linguística ibérica’ que já referi (e de que ainda nos ocuparemos) tem raízes vieirianas, decerto. Mas o contacto directo com o castelhano de Cervantes teve de ser também decisivo, um contacto, como se vê, tão peculiar e de tão longa data. É nessa contiguidade com a lição de Vieira, e com o idioma espanhol, que José Saramago se inscreve na nossa história cultural, e particularmente linguística. Mas comecemos por Almeida Garrett.

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A arte da digressão, sugere Saramago, aprendeu-a ele no Garrett das Viagens na minha terra, de 1846. Há todos os motivos para crê-lo. Garrett foi o grande renovador da prosa portuguesa de Oitocentos. A sua escrita folhetinística (que é a das Viagens) enfeitiçou os contemporâneos — Lopes de Mendonça, Latino Coelho — e influiu, pouco depois, também Júlio César Machado e Eça de Queirós. Vejamos um trecho:

Frades... Frades... Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste século, como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada, moral e socialmente falando. No ponto de vista artístico, porém, o frade faz muita falta. (Garrett 1966: 61)

É um exemplo de ‘digressão’, e um bom exemplo. Quase não há subordinação, o pensamento flui espontâneo, há mesmo um minúsculo anacoluto (“Como nós os vimos ainda os deste século”), há um contraste inesperado (“o frade faz muita falta”). Estamos longe, muito longe, do hieratismo clássico, do famigerado ‘arredondamento do período’. Era uma estética inédita em Portugal e que será contraposta à estética tradicional, tida por pesadona, sem brilho, fradesca, à imitação, segundo Antero de Quental, das “algaravias místicas de frades estonteados” (1865).

Em Saramago, este movimento fluido, sem um final definido, é recorrente, mas o mais acabado exemplo de digressão pode ter ficado já em 1978, em Objecto Quase. É o início do conto «Refluxo». Há uma sucessão de perspectivas, de que aqui se destacam as ‘articulações’.

Primeiramente, pois tudo precisa de ter um princípio, mesmo sendo esse princípio aquele ponto de fim que dele se não pode separar, e dizer «não pode» não é dizer «não quer» ou «não deve», é o estreme não poder, porque se tal separação se pudesse, é sabido que todo o universo desabaria, porquanto o universo é uma construção frágil que não aguentaria soluções de continuidade – primeiramente foram abertos quatro caminhos.2

Observamos uma progressão no pensamento (é difícil chamar-lhe ‘raciocínio’), procedendo por acumulação, uma acumulação indefinida, em que cada nova perspectiva poderá nunca ser a última.

2 Nas citações, os negritos e cursivos são meus.

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II

A digressão é, em Saramago, uma técnica recorrente, sim, mas não a dominante. Dir-se-ia que antes nele predomina a feitura tradicional, aquela que poderia apelidar-se de ‘seiscentista’, e mais exactamente vieiriana. Ou, com menos cerimónia, a tal ‘algaravia’ dos ‘frades estonteados’, próxima daquilo a que José Cardoso Pires chamou “sintaxe rural”, contraposta à “sintaxe urbana” (Pires & Silva 1997). É um tema a que regressaremos.

Predominam, pois, as marcas da estética seiscentista, a de António Vieira, a de Manuel Bernardes: a complexidade sintáctica e mental, os jogos da subtileza e do paradoxo. Isto produz, em Saramago, como produzira em Vieira, passagens fulgurantes, de uma frescura e uma novidade que fascinam. Observemos três pequenos trechos, respigados em Todos os Nomes, de 1997, de propósito, fora do círculo dos ‘grandes’ romances saramaguianos:

Quanto aos pensamentos metafísicos, meu caro senhor, permita-me que lhe diga que qualquer cabeça é capaz de os produzir, o que muitas vezes não consegue é encontrar as palavras.

Seria o cabo dos trabalhos dar com a desorientada ficha para nela inscrever qualquer dos averbamentos ocorrentes e comuns, o de casamento, o de divórcio, o de morte, dois mais ou menos evitáveis, o outro nunca.

Homem, não tenhas medo, a escuridão em que estás metido aqui não é maior do que a que existe dentro do teu corpo, são duas escuridões separadas por uma pele, aposto que nunca tinhas pensado nisto.

Predomina, também, uma gramática classicizante, de morfologia e sintaxe próprias, isto é, hoje com menos uso. Nas seguintes passagens, essa morfologia é destacada em negrita, a sintaxe em itálico:

E talvez não tenha sido assim, talvez numa noite qualquer destas Faustina tivesse dito a João Mau-Tempo, porventura o interrompendo em seus pensamentos de pôr amanhã papéis no buraco duma árvore combinada, […].

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Neste caso da História do Cerco de Lisboa, já sabe Romeu que não encontrará motivos bastantes de embevecimento, embora Raimundo Silva, na conversação preambular e algo labiríntica sobre as emendas dos erros e os erros das emendas, tenha dito ao autor que gostava do livro, e, de facto, não mentiu.

Tivessem eles executado as ameaças, e mais injustiças viriam agravar a situação, acaso com consequências dramáticas imediatas, porquanto duas das camaratas, para ocultarem o delito de retenção de que eram culpadas, se apresentaram em nome de outras, […].

O coche arquiducal está por aí algures, mas não se vislumbra nem o rasto dele, e da galera das forragens, que deve vir atrás, tão-pouco há notícias.

A feição ‘seiscentista’ dessa morfologia pode ser ilustrada em passagens de autores do período. Observemos os casos de porventura e porquanto:

Não há no homem afeição mais desculpável que a da pátria. Assi ela a soubesse pagar! Se não foi porventura providência.Francisco Manuel de Melo

Entre as tentações de França acerca de nossas conquistas, ouvi dizer em Lisboa e aqui que não deixa de ser uma, e porventura a principal, o Rio de Janeiro, ajudando-se a ambição uma espécie de justiça. António Vieira

Se pudera aqui dizer com o Apóstolo: Porventura não tendes casa onde comais e bebais, e vindes desprezar a igreja? Manuel Bernardes

Confesso-vos que me deu riso, sobre indignação, quando li nesse tempo a cédula real, donde se manifestavam as razões de sua conveniência, tomando-se, entre os mais, por principal motivo que, porquanto Sua Majestade desejava atalhar os vícios e fraudes que nas escrituras se faziam, mandava interpor aquele papel público, a fim de evitar conluios e desconcertos.Francisco Manuel de Melo

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No Brasil se tem feito um catecismo da língua da terra, que, por ser muito largo nos pareceu se devia reduzir a menos perguntas, porquanto os índios desta terra não estão ainda capazes de tanto, nem nós podemos ter com eles a assistência que se requer para tão dilatado modo de doutrina.António Vieira

São Pedro Maurício [...] ordena que o monge que tiver a seu cargo tirar vinho para as missas da noite de Natal tire um pouco de cada tonel ou vasilha de todas as que estiverem na adega, porquanto diz que há experiência certa de que a vasilha donde se tirou o vinho para as missas daquela felicíssima noite não se turba nem esfria nem azeda.Manuel Bernardes

São essas e outras marcas ‘classicizantes’ frequentes em Saramago? Algumas são-no, tanto em frequência absoluta (ou seja, no contexto do vocabulário do romancista) como em frequência relativa (isto é, numa comparação com escritores contemporâneos). Abaixo vão alistados alguns pronomes, advérbios e conjunções de restrito uso na escrita contemporânea. Indica-se o número de ocorrências na obra ficcional de Saramago. Em itálico, para dois casos, mencionam-se as ocorrências num conjunto de obras de ficção portuguesa do século XX, segundo o Corpus do Português de Mark Davies e Michael Ferreira (s.d.). Este corpus está longe de reunir a nossa actual produção novelística, mas permite detectar peculiaridades, neste caso saramaguianas:

Pronomes, advérbios e conjunções

Obra ficcional JS

Corpus do Português

porventura 111 263porquanto 100 172consoante adv. 77 –acaso adv. 70 –tão-pouco 36 –algo adv. 21 –algures – 11adrede – 6

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doravante 6 –tão-só 6 –ademais 5 –avonde - 5malamente 5 –outrem - 5tirante adv. 5 –aqueloutro 4 –outrossim 3 –deveras 2 –debalde 1 –

Constata-se uma superabundância de formas como porventura, porquanto, tão-pouco e dos advérbios consoante (conforme), acaso (talvez) e algo (em algum grau). Das restantes frequências, algumas são ainda notórias: os casos de adrede, avonde, malamente e tirante. Mas, em contrapartida, é notória a infrequência de outras formas, com destaque para doravante, tão-só e deveras. Voltaremos a algumas destas frequências num outro contexto.

Serão estas marcas lexicais e gramaticais suficientes para fazer de Saramago um ‘seiscentista’ que se enganou de século? Numa apreciação superficial, seríamos tentados a afirmá-lo. A realidade é que Saramago não ‘faz’ seiscentismo, não ‘faz’ anacronismo. Constrói, sim, uma sugestão classicizante. É um seiscentismo ritualizado.

Para tornar-nos isso claro, concebeu José Saramago um estratagema. Em História do Cerco de Lisboa, põe em cena dois textos seiscentistas autênticos, decerto esperando que o discernimento do leitor faça o resto. É como se o escritor dissesse (e imito a linguagem despachada que, nesse romance, ele pôs na boca de Afonso Henriques): “Vocês chamam-me seiscentista, mas estão bem enganados. E para mostrar-vos isso, aqui deixo uns textos em autêntico seiscentista, e vocês vão comparar”.

Há, primeiro, uma longa citação da Crónica de D. Afonso Henriques, de Frei António Brandão, de 1632, integrada na sua célebre Monarquia Lusitana. Numa passagem aqui reproduzida, destacam-se arcaísmos (em itálico) e anacolutos (em negrito):

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Estando o infante neste alegre sonho, nem bem dormindo, nem de todo acordado, entrou na tenda João Fernandes de Sousa, de sua câmara, e lhe fez a saber como a ela chegara um homem velho, o qual pedia audiência e, segundo dava a entender, era sobre negócio de muita importância. Mandou o infante que entrasse sendo cristão e, tanto que o viu, reconheceu ser o mesmo que acabava de ver em sonhos, com que ficou sumamente consolado.

Um segundo texto, depois, é aduzido. Trata-se de uma biografia de Santo António de Lisboa, Sol nascido ao Ocidente e posto ao nascer do sol, de Brás Luís de Abreu, saída em 1725. Aqui destacamos (em cursivo), primeiro, uma sintaxe ousada e, em seguida, um caso de redundância:

Não se descuidavam aqueles pássaros de mau agouro, que vivendo na funesta noute dos seus erros só rendem sua altivez obstinada às armas da luz, de maquinar contra a sua vida venenos disfarçados, contra a sua honra diabólicos artifícios, contra a sua reputação infernais inventos, solicitando, quanto o podiam alcançar as forças da sua malícia, desacreditar e obscurecer as luzes de tanta doutrina, os troféus de tamanha santidade.

Saramago não o explicita em lado nenhum, mas percebe-se-lhe o intuito de forçar a uma comparação entre a sua cuidadíssima prosa e o desleixo dos dois textos que nela inseriu. Mas não era tudo ainda. O protagonista Raimundo Silva, sabemo-lo, está a redigir uma “História do Cerco de Lisboa”, mas só no fim do romance (1989a: 331 e seguintes), temos acesso a esse texto. Reproduzo uma passagem, destacando os lugares-comuns em que a escrita do protagonista abunda. Assinale-se, ainda, o arcaísmo moimento para ‘monumento fúnebre’:

Voltara frei Rogeiro a dormir a sono solto, sonhando que alguma comida avariada lhe causara aquele molesto sonho, quando tornou a entrar o cavaleiro, outra vez o sacudiu e despertou, e disse, Não durmas, frade, que eu ordenei-te que fosses buscar o meu escudeiro à cova onde jaz longe de mim, e tu bem me ouviste e não fizeste caso […] Aonde terá ido frei Rogeiro buscar as forças necessárias ao hercúleo trabalho que lhe tinha sido assinado, não se sabe, presumindo-se que ao próprio medo que sentia, mas em pouco tempo abriu a sepultura e retirou o

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escudeiro, que às costas transportou para o barco, e, alagado em suores frios e quentes, regressou ao ponto de partida, acarretou o tremendo peso pela encosta acima até S. Vicente, e ao lado do moimento do cavaleiro fez nova cova e nova sepultura.

A ocorrência desse arcaísmo dá-nos azo para o comentar de uma afirmação de José Saramago a respeito desses vocábulos caídos em desuso. Numa entrevista de 1986 (e destacamos alguns dos termos), disse ele: “Utilizo muitas vezes os arcaísmos para acentuar o humor ou a ironia. Não o faço como quem cultiva arcaísmos, mas como quem pretende — e peço desculpa se não corresponder — rejuvenescer a língua” (in Gómez Aguilera 2010: 151). São afirmações, estas, em si interessantes, mas que não primam pela coerência. Em entrevistas, é certo, alguma incoerência não é coisa rara. Mas, que se saiba, é a única vez que Saramago aborda o tema, o que torna, à falta de melhor, esta passagem preciosa.

Os arcaísmos serviriam, para Saramago, dois propósitos: sublinhar o ‘humor’ ou a ‘ironia’, e ‘rejuvenescer’ a língua. São propósitos muito díspares, e, na realidade, mutuamente excludentes. Um arcaísmo que transporta humor ou ironia é, por definição, um arcaísmo de circulação necessariamente restrita, pois ele funciona com base num desuso. Um arcaísmo com que se quisesse ‘rejuvenescer’ o idioma aspiraria, pelo contrário, a um alargamento da circulação. Estamos, pois, perante conjuntos distintos, e irredutíveis.

Mas o projecto é, se possível, ainda mais inglório. Não só não se detectam (eu não detectei) usos humorísticos ou irónicos de arcaísmos em Saramago, como os arcaísmos são nele, em termos absolutos, quase inexistentes. Uma das características de Saramago é, exactamente, a actualidade do seu vocabulário. E, na realidade, só consegui encontrar um arcaísmo que merecesse alguma atenção: malamente.

Esta palavra aparece 5 vezes na obra novelística de Saramago. No nosso idioma, o último registo do vocábulo datava de 1505, há portanto meio milénio. Poderia supor-se que, lido agora em Saramago, o vocábulo reentrasse em uso. Mas a probabilidade disso é mínima. E a razão está na indefinição em que a palavra é deixada. Essa ‘indefinição’ resulta, para sermos exactos, de uma demasia de significados.

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[…] águas abundantes que em menos de um minuto fizeram desaparecer da face da terra, literalmente, o artificioso líquido malamente denominado Fonte de Juventa. História do Cerco de Lisboa

[…] sem dúvida demandareis a pátria dos mouros que sois e donde malamente viestes, deixando-nos o que nosso é […].História do Cerco de Lisboa

[…] uma horda de palhaços e mandarins, de bobos e enfermeiras, de esquimós e assírios de barbas, todos malamente disfarçados de peles-vermelhas.A Caverna

[…] na formulação das quais [leis] não metemos mais prego e mais estopa que as palavras com que malamente as nomeamos, […].Ensaio sobre a Lucidez

[…] do ministério, ou, para falar com precisão, do ministro do interior, logo malamente atirado para as pacientes costas da direcção da polícia, […].Ensaio sobre a Lucidez

Como se observa, o vocábulo surge com valores díspares: ora o de erradamente, ora o de desajeitadamente, ora o de qualquer coisa como perfidamente. Esses valores não são só díspares, eles são-no, como se disse, demasiado. Isto basta para não augurar grandes êxitos a um regresso de malamente.

Mais genericamente, a toada saramaguiana — tanto parece claro — propõe-se recuperar uma estética velha de séculos, e isto sem incorrer naquilo que ela tinha de mais frágil: uma prosa desconexa, deslavada, sem frescura nem brilho. Pode ser uma estética para o nosso tempo. E é-o, de certeza, haja vista os altos conseguimentos do ficcionista Saramago. Mas não é a estética do nosso tempo. Isto coloca a escrita saramaguiana no âmbito da “sintaxe rural” e longe dessa feitura que o século XX criou, designada como “sintaxe citadina”. Estou, manifestamente, a servir-me de uma perspectiva e uma terminologia divulgadas por José Cardoso Pires (cf. Portela 1991: passim).

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Vimos, há pouco, os impressionantes paralelos entre a personalidade civil de Saramago e a de Vieira. O paralelismo de Saramago com Cardoso Pires é igualmente notável. Comecemos pelo mais óbvio: Cardoso Pires e Saramago foram os dois maiores artistas da palavra na literatura portuguesa do seu tempo. Foram prosadores de uma inventividade, um virtuosismo e uma ductilidade únicos. Na minha opinião, dois verdadeiros génios. Ambos foram cidadãos interventivos, associaram-se a causas, assumiram riscos. No campo literário, foram romancistas, cronistas, ensaístas. Ambos desenvolveram actividade editorial, fizeram crítica de literatura, foram empenhados jornalistas. Ambos se auto-exilaram por razões políticas: Pires por uns anos, Saramago definitivamente.

E, no entanto, vivendo e escrevendo durante décadas na mesma cidade, Lisboa, não se lhes conhece qualquer cumplicidade pessoal ou sequer profissional. Habitaram mundos literários e estéticos pouco comunicáveis, até do ponto de vista da sociabilidade. Cardoso Pires movia-se, e pontificava, na elite literária. Fundou e dirigiu uma revista cultural de vanguarda, Almanaque, e um suplemento literário, A Mosca, igualmente ‘último grito’. Era íntimo de neo-realistas e surrealistas. As suas cumplicidades literárias incluíam Alexandre O’Neill, Fernando Assis Pacheco, José Cutileiro, Sttau Monteiro, Vasco Pulido Valente e, em fase posterior, António Tabucchi e António Lobo Antunes. Em suma, a fina-flor do Chiado e o bas-fonds do Cais do Sodré. Nada disto coube a Saramago. Nunca esteve em nenhum ‘clube’, mesmo informal. Os seus amigos escritores, sempre poucos, nunca pertenceram à ‘elite’, e os mais confidentes deles, Rodrigues Miguéis e Jorge de Sena, tinham-se fixado no estrangeiro. Portas adentro, Saramago foi, autenticamente, um corredor solitário.

As relações pessoais entre escritores podem ter menos importância para a literatura (na acepção diáfana, laboratorial, do termo), mas têm-na, certamente, para a história literária. O conhecimento das apreciações mútuas de autores contemporâneos pode iluminar factos e posições que os textos não reflectiram. Por isso nunca parámos de investigar as relações de Eça e Camilo. Por isso tem tanto interesse conhecer o que pensavam um do outro António Vieira e Francisco Manuel de Melo (cf. M. L. Pires 2008).3

3 Tive oportunidade de reconstituir as relações de Castilho e Herculano pelos anos de 1840 e, com isso, obter um entendimento mais exacto, suponho, da Questão Coimbrã, ocorrida na década de 60.

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O nosso escasso conhecimento das relações de Saramago e Cardoso Pires, afinal tão mais próximos de nós, tem provavelmente uma razão algo decepcionante: essas relações praticamente não existiram. Não conheço nenhuma referência de Cardoso Pires ao seu célebre colega. Não sabemos, portanto, o que pensava exactamente de Saramago. Ainda assim, alguma especulação nos é permitida. Cardoso Pires achava que a prosa portuguesa tinha, demasiado tempo, sido “submetida a uma sintaxe rural”. Era uma referência, muito concreta, à obra de Miguel Torga, mas englobava bastante mais. Esse tipo de prosa foi, segundo ele, ultrapassado pela “sintaxe citadina” desenvolvida por Almada-Negreiros, autor que “tem um lugar muitíssimo importante na renovação da nossa escrita” (apud Portela 1991, 59-60). Podemos tranquilamente inferir que, para Cardoso Pires, também a prosa ficcional de Saramago se inseria nessa modalidade “rural”, que, a seu ver, tinha os dias contados. E para que tudo bata certo: sabemos que Torga foi um dos raríssimos prosadores portugueses vivos (na realidade, só dois, o outro era Luiz Pacheco) por quem Saramago exprimia uma admiração rasgada.

Repare-se que Saramago tem noção nítida da novidade que a escrita de Almada constituiu. Em declarações de 2009, ouvimos-lhe isto:

Para mim, Almada Negreiros é o responsável pela segunda grande revolução estilística da nossa língua e da nossa literatura. A primeira foi a do Garrett, com as Viagens na minha terra, e a segunda foi a do Almada Negreiros com o Nome de Guerra. (in Gómez Aguilera 2010: 158)

Há aqui um incontestável reconhecimento, mas nenhuma expressão de uma dívida. Não, a frase sabiamente desleixada, reguila, ‘citadina’, de Almada-Negreiros não era, definitivamente, a sua praia estética.

As referências de Saramago a Cardoso Pires existem, é um facto, mas são de um jaez que diríamos sóbrio, comedido. Não são, aliás, mais que duas, distam entre si 30 anos e a segunda foi, vendo bem, provocada. Em Outubro de 1968, Saramago, então crítico literário na Seara Nova, faz uma recensão de O Delfim, romance de Pires que acaba de aparecer. Considera, “sem esforço”, o livro de Pires “tecnicamente perfeito”. Mais explícito, diz que “a linguagem de Cardoso Pires conserva e apura as qualidades de rigor, economia e disciplina que sempre a distinguiram” (ibid.). Mas há um

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senão, e ele é sério. No conceito de Saramago, O Delfim denuncia algum fascínio, “um odor de saudade”, pelo “marialvismo” (os termos hoje seriam ‘sexismo’, ‘machismo’), o que redunda numa patente “ambiguidade”, numa “relação de amor-ódio” com o fenómeno (ibid).

José Cardoso Pires nunca apreciou ser conotado com o marialvismo, que ele achava, de resto, tema secundarizável no romance em questão. Historiei, em dois números do Jornal de Letras de 1994, essa actividade crítica de Saramago, então já totalmente esquecida. Mas é para a curta memória das gentes que existem os historiadores. No atinente a essa recensão de O Delfim, comentei na altura:

Por uma vez com gravidade, a subtileza abandonava o crítico. Não ocorreu a Saramago que, desde a primeira à última página, O Delfim é o corajoso funeral do marialvismo. E que, a cada assomo da ‘simpatia’, da ‘saudade’, mais ensombrado o féretro passa. (Venâncio 2000: 45)

Não sei se Cardoso Pires reagiu em 1967, e certamente não o fez em público. Mas reagiu Saramago, em 1994, num dos Cadernos de Lanzarote. Chamou ao meu trabalho “arqueologia literária”, o que era decerto apropriado. Sobre a sua longínqua actividade crítica, escreveu:

Apesar da minha inexperiência, e tanto quanto sou capaz de recordar, creio não haver cometido grossos erros de apreciação nem injustiças de maior tomo. Salvo o que escrevi sobre O Delfim do José Cardoso Pires: muitas vezes me tenho perguntado onde teria eu nesse momento a cabeça, e não encontro resposta...

Tão díspares quanto possam ser a novelística de Saramago e a de Pires, um elemento os une e, mesmo, individualiza entre os escritores contemporâneos: um e outro cultivaram, com garbo, um narrador notavelmente interventivo. Vejamos exemplos disto em Saramago:

Ópera só em Lisboa, para vir o cinema ainda faltam duzentos anos, quando houver passarolas a motor, muito custa o tempo a passar, […].Memorial do Convento

De longe em longe, a mulher-a-dias faz-lhe solene declaração sobre a necessidade de limpar o pó dos livros, que, sobretudo nas prateleiras altas, onde se arrumam os que só muito raramente

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são consultados, mais parece ser o depósito aluvial duma acumulação de séculos, um pó negro, como de cinza, que não se sabe donde vem, de tabaco não pode ser, que o revisor há muito que deixou de fumar, é a poeira do tempo, e está tudo dito. História do Cerco de Lisboa

É esta a nossa rua, o prédio está do lado esquerdo, mais ou menos ao meio, Que número tem, perguntou a mulher do médico, ele não se lembrava, Ora esta, então não é que não me lembro, varreu-se-me da cabeça, disse, era um péssimo agoiro, se já nem sequer sabemos onde moramos, o sonho a tomar o lugar da memória, aonde iremos parar por este caminho.Ensaio sobre a Cegueira

Em Cardoso Pires, o narrador interventivo é menos paternal, menos indulgente, e antes de tipo despachado, seco, mangão, de uma oralidade muito genuína, com investimento no discurso indirecto livre. Em Dinossauro Excelentíssimo, de 1972, uma magnífica sátira ao regime salazarista, achamos dois bons exemplos:

Onde se levantasse arraial, era sabido, aparecia padre.

Tudo dependia única e exclusivamente da Providência justiceira porque naquela terra a fortuna aparecia uma vez por outra, e olha lá, mas nunca pelo processo do suor no rosto.

De Alexandra Alpha, romance de 1987, respigam-se três exemplos.

Subiram ao miradouro de Santa Luzia. Bonito, deixemo-nos de coisas.

Ninguém diria, o Sebastião Opus Night a ir-se abaixo como um aprendiz de meias doses. Mas ia, a verdade é para se dizer.

Do volume de contos A república dos corvos, de 1988, mais estes cinco:

À passagem deixa cair um ou outro galanteio a esta e àquela. «Sua galdéria», «Sua aluada», mas nunca se vira para trás, é o viras.

A desfeita que a galinheira lhe fez deixou-o engalinhado, é caso para dizer.

Arregaçou as mangas e, vai disto, começou.

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Portanto, a Travessa do Capitão tem o correr dos dias assinalado por ondas de vapor que a cegam durante momentos. Pelo menos tinha.

Isso não significava que se mostrasse mais acolhedor, não se pense.

O colorido das intervenções é diferente nos dois autores. Mas a ‘atitude’, essa voz-off sentenciosa e prazenteira que acompanha a narrativa, é exactamente a mesma. O narrador não abdica de um destacado papel lúdico no relato, exteriorizando-se num grau que diríamos compulsivo, roçando, não raro, o vulgar exibicionismo. Daí o risco que se corre, o de resvalar para algum maneirismo e de, mesmo renovando sempre as expressões, construir alguma previsibilidade, com perturbação do prazer da leitura.

III

Afirmei, há pouco, que a obra ficcional de José Saramago sugere a prossecução de uma ‘utopia linguística ibérica’, uma prossecução que deita raízes até António Vieira. Admito que estas afirmações são crípticas. Proponho-me, pois, esclarecê-las. Comecemos pela observação do seguinte texto:

A palavra de Deus ressuscita os mortos, regenera os vivos, cura os enfermos, conserva os sãos, alumia os cegos, acende os tíbios, farta os famintos, esforça os fracos, alegra os tristes, e anima os desesperados.

Um leitor português suspeitará tratar-se de uma passagem de algum sermão de Vieira. E compreende-se. Em português, quem senão ele se exprimiu assim, com esta imponência verbal, este gozo semântico, este cálculo, esta clareza? Mas não. O autor não é Vieira, nem sequer é de língua nativa portuguesa. Mais ainda: isto foi escrito e publicado, em Lisboa, um século antes de Vieira ter iniciado a redacção dos seus sermões.

O autor do trecho citado é Luís de Granada, o frade dominicano espanhol que em 1551 se fixou em Portugal e aí ficou até à morte, em 1588. Luís de Granada era um mestre da oratória e da prosa de espiritualidade, reconhecido e venerado no Portugal do seu tempo. Certo: ele era um dos numerosos pregadores espanhóis que, durante todo o século XVI, ressoaram pelos templos portugueses, sempre em castelhano, a língua em

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que também faziam imprimir, para leitores portugueses, as suas prédicas. Luís de Granada é, neste particular, uma excepção. De resto, o texto citado figurava, não num sermão, mas num livro de espiritualidade, um Compêndio de doutrina cristã, publicado em 1559.

Não é, no presente contexto, importante saber se Granada escreveu, ele próprio, esse livro em português. Por mim, estou convencido de que não. O mais provável é que alguém o tenha traduzido de um original espanhol (aliás nunca encontrado), um tradutor quase sempre competente, que poderia ser um confrade seu. Tenho dois motivos fortes para defendê-lo. Primeiro, parece-me fora de questão que um espanhol tivesse conseguido em meia dúzia de anos um tal domínio do português. Segundo, e espero que mais convincente ainda, é impensável que, tendo Granada atingido então tal domínio, nunca mais dele se tivesse aproveitado nos restantes 30 anos que viveu entre nós. Há uma terceira ponderação: não havia em Portugal qualquer tradição dessa prosa robusta e vibrátil, nem a haverá até surgirem Luís de Sousa, Rodrigues Lobo, Francisco Manuel de Melo, e sobretudo António Vieira.

O que pretendo sugerir é que os grandes prosadores do século XVII aprenderam essa arte em textos espanhóis. Nada de estranho. Rodrigues Lobo tinha um óptimo conhecimento do espanhol, o mesmo valendo para Vieira, e Melo era perfeito bilingue. Além disso, todos eles tiveram uma formação liceal jesuítica, em que os mestres da oratória espanhola, e Granada antes de todos, eram de estudo obrigatório. Durante todo o século de Quinhentos e o de Seiscentos, o espanhol foi, em Portugal, língua de cultura e de consumo diário. Nela se exprimiam e publicavam quase todos os escritores, dos maiores aos mais pequenos. O historiador e ensaísta João de Barros, um dos grandes clássicos quinhentistas portugueses, é nisto um caso interessantíssimo. Não se lhe conhecendo nenhum escrito em espanhol, a sua linguagem revela um contacto íntimo com esse idioma. As suas obras juvenis, como o célebre Clarimundo, contêm numerosas primeiras ocorrências no português de vocábulos e fraseologia coincidentes com produtos já com larga circulação em Castela. Em suma: João de Barros castelhanizava, e assim continuaria a fazer. Tudo isto vale para Luís de Camões, também ele excelente conhecedor, e utente, de espanhol. A historiografia tradicional dá-no-lo como grande ‘renovador’ do idioma, e ele foi-o, de facto, mas castelhanizando.

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O português dos séculos XVI e XVII passou por uma profunda renovação lexical, indispensável para o seu funcionamento na agitação cultural que sacudia o mundo. Essa renovação poderia ter-se feito através do revigorar do acervo autóctone, de raiz galego-portuguesa. Os portugueses escolheram outro caminho. Aproveitaram a renovação que em Castela se fizera no século XV, produto duma intensa latinização e da exploração de virtualidades autóctones. Podemos lamentar essa opção dos meus antepassados. Pessoalmente, lamento-a, e teria preferido o caminho galego, garante de uma maior diferenciação face ao castelhano. Mas teria dado muito mais trabalho, e louvo os meus antepassados por essa visão económica. Para nossa felicidade, muito da velha cepa galego-portuguesa sobreviveu à voragem castelhanizante de Quinhentos e Seiscentos. Mas foi mais sorte que juízo.4

António Vieira, repito, dominava bem o espanhol. Conhecemos dele, nessa língua, a longa Carta Apologética e alguns divertidos poemas. Sabemos que acompanhou de perto algumas traduções de sermões seus para espanhol e supõe-se que ele próprio verteu para este idioma alguns que tinha pronunciado em italiano, em Roma. Conhecia, de resto, muito bem a oratória espanhola do seu tempo, e contra ela tomou posições duras. Na sua escrita, bem timbrada e ‘moderna’, confluíram numerosos castelhanismos de recente data, introduzidos no nosso idioma pelos jesuítas que o precederam, com destaque para Luís Fróis e João de Lucena. Mas ele próprio introduziu bastantes novos, e eles contam-se por dezenas. Verdade é, também, que certas novidades vieirianas não convenceram a posteridade. Estão entre elas desechar, desvalijar, entapizado, entretenido, nombramento, ojeriza, viudez. Só em autores brasileiros ojeriza sobreviveu.5

4 Trato, com pormenor, toda esta problemática num livro que preparo, Como o espanhol mudou o português. O essencial da questão, tive oportunidade de expô-lo num simpósio em Santiago de Compostela, em 2010. Desculpe-se, pois, algum primarismo na presente exposição.5 Três breves anotações. A primeira para lembrar que ainda não se digitalizou toda a obra de Vieira, e que os dados actuais são, portanto, provisórios. A segunda para sublinhar que algumas primeiras ocorrências de castelhanismos em Vieira podem ser ‘falsas primeiras ocorrências’. Um melhor conhecimento de textos anteriores poderá vir a corrigi-las. Mas há pouca probabilidade de o serem em número significativo. A terceira anotação toca um ponto mais decisivo. O êxito das novidades lexicais e fraseológicas vieirianas procedentes do castelhano há-de dever-se, sim, a alguma qualidade intrínseca. Mas foi decisivo o papel dos lexicógrafos e tratadistas posteriores, que rapidamente as sancionaram, isto é, as transformaram em vernáculo, em português castiço. E lembre-se que a palavra castiço, um espanholismo, nos soa intensamente portuguesa.

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IV

Que tem tudo isto a ver com Saramago? Muito. Também na obra ficcional saramaguiana se operou uma integração de materiais espanhóis: lexicais, fraseológicos, morfológicos, e mesmo sintácticos. Essa integração acelerou-se com Ensaio sobre a Cegueira, de 1995, mas já antes era observável. Que Saramago dominava o espanhol, pelo menos de modo passivo, é indiscutível desde a tradução de El cuento polaco, aparecida em 1977 como Contos polacos, volume de 394 páginas. Podemos supor, ainda, que a leitura de Cervantes se fez, pelo menos em parte, no original.

Este tema da tradução dá azo a uma anotação com interesse, no contexto. Sendo a quase totalidade das muitas traduções de José Saramago feita do francês, é curioso verificar como toda a escrita do autor se manterá imaculadamente imune a derivas galicistas.6 Isto é menos estranho do que poderia julgar-se. Com efeito, os portugueses desenvolveram, no decorrer dos séculos XIX e XX, uma apertada vigilância face ao galicismo, acompanhada de uma rejeição que tocou, não raro, a histeria. O castelhanismo nunca foi objecto de qualquer vigilância. Pelo contrário, foi sempre tolerado, e por vezes irmãmente acolhido. Recordo aqui a posição de António Feliciano de Castilho, grande ideólogo linguístico. Escrevia ele, em 1863: “Na leitura do castelhano, se hoje em dia a frequentássemos, como cumpria, bem fácil e bem agradavelmente pudéramos nós retemperar ainda hoje o bom falar vernáculo” (Castilho 1863: LXXXI).

Ignoro se Saramago se deu conta da crescente castelhanização do seu português. Alertei para ela publicamente em 1995, voltei a fazê-lo em 2001 e em 2006, e é difícil imaginar que tudo lhe tenha passado despercebido. Facto é que nada disso pareceu jamais impressioná-lo. Quanto mais reflicto sobre a questão, mais conta me dou de que ela extravasa o domínio da ‘consciência’ ou do ‘querer’. A castelhanização progressiva da escrita ficcional saramaguiana tem, antes, de entender-se num contexto ideológico, favorecedor da integração política e cultural ibérica. No fundo, aquilo que já entusiasmara António Vieira. O programa vieiriano — fantasmagórico, mas não menos motivador — previa a criação de um português tão próximo

6 Para o Saramago tradutor do francês, cf. também Ferreira, neste volume.

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quanto possível do castelhano, e por isso ‘iberizável’, uma condição para vir a ser, tal como o idioma de Castela, internacionalizado. A castelhanização do português, na pena de Vieira e na de Saramago, seria posta ao serviço de um sonho maior, a iberização do idioma.

V

Observemos alguns dados biográficos. Em 1986, logo após o aparecimento de A Jangada de Pedra, José Saramago conhece a jornalista sevilhana Pilar del Río. É já envolvido nesta relação que redige a História do Cerco de Lisboa, de 1989, e O Evangelho segundo Jesus Cristo, de 1991. A mudança para a ilha de Lanzarote, nas Canárias, dá-se em 1993, e aí é produzido o Ensaio sobre a Cegueira, saído em 1995. É com este romance que, repita-se, entra em aceleração a transferência de materiais castelhanos para o nosso idioma.

Essa transferência inclui novidades absolutas, e em breve veremos algumas delas. Nisto, Saramago procede exactamente como os castelhanizantes de Quinhentos e Seiscentos. Mas uma parte importante da absorção saramaguiana do espanhol faz-se num sector em que os quinhentistas e seiscentistas pouco puderam mexer, por motivos óbvios: o da semântica, e mais exactamente o da distribuição relativa entre sinónimos. Darei um exemplo.

Em 1572, um português introduz no nosso idioma uma palavra nova: estupendo. É Camões, nos Lusíadas. Ao mesmo tempo, outro português, o jesuíta Luís Fróis, no longínquo Oriente, faz o mesmo, e possivelmente adiantando-se a Camões. Também de Fróis sabemos que estava em íntimo contacto com o espanhol e nele sabia redigir. A tradicional História da língua faz a seguinte apreciação: estupendo é um latinismo, o português estava a latinizar-se. Ora as coisas não são bem assim. Camões e Fróis usam em português esse vocábulo, não porque é latino, mas porque faz parte, como vocábulo castelhano, da enciclopédia bilingue de uma vasta comunidade portuguesa. Trata-se, pois, de uma falsa latinização. Foi esse, constatamos, o trajecto natural de centenas de ‘latinismos’ então introduzidos no idioma. Eram correntes em Castela, a elite literária portuguesa conhecia-os, utilizava-os quando se exprimia em espanhol, e era inevitável que eles aflorassem, um dia, no seu português. A transfusão de materiais entre idiomas é, sobretudo, obra de bilingues. Houve, decerto, uma latinização

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portuguesa exclusiva. Mas ela é, sob vários pontos de vista, modesta, e, o que é mais, em caso nenhum ela aproveitou ao idioma vizinho. As nossas relações linguísticas foram, ao longo de toda a história, profundamente assimétricas.

Inicialmente, estupendo tinha o valor latino de ‘assombroso’, ‘inaudito’. Em espanhol o valor foi derivando para ‘admirável’ e o vocábulo acabou por caracterizar tudo quanto é ‘muito bom’, acepção em que se tornou frequentíssimo, e mesmo a designação mais comum. Em português, a palavra adquiriu também o novo sentido espanhol, mas manteve uma baixa frequência, sendo ainda hoje de feição culta. Para algo ‘muito bom’, o português usa habitualmente óptimo, por sua vez pouco corrente em espanhol. Na prosa ficcional de Saramago, observamos o movimento seguinte:

Ocorrências de óptimo e estupendo

Romance óptimo estupendoManual de Pintura e Caligrafia 4 –Objecto Quase 2 –Memorial do Convento 1 –O Ano da Morte de Ricardo Reis 1 –História do Cerco de Lisboa 2 6O Evangelho segundo Jesus Cristo 1 1Ensaio sobre a Cegueira 1 2A Caverna 2 1O Homem Duplicado 1 3Ensaio sobre a Lucidez – 4As Intermitências da Morte – 6

Total 15 23

Há, assim, duas derivas paralelas: a decrescente de óptimo, rumo à inexistência, e a crescente de estupendo, vindo de uma inexistência. As estatísticas de Davies e Ferreira mostram a evidente predominância de óptimo na escrita portuguesa: 719 ocorrências no século XX, contra 96 de estupendo. Mas mesmo estes números são enganadores, visto reflectirem um acervo ‘escrito’. Na produção total portuguesa, a desproporção entre óptimo e estupendo é incomparavelmente maior. Mais inesperado é, portanto, que uma novelística assumidamente ‘oral’, como a de Saramago, se encaminhe para o cenário exactamente inverso.

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Continuemos no terreno da distribuição de sinónimos. Para um português, é patente a frequência, em espanhol, dos verbos equivocarse e lograr. São verbos correntíssimos, em contraste com a situação no nosso idioma, em que são ‘cultos’, e praticamente inexistentes na oralidade. O que se observa em Saramago é uma acentuada subida na frequência dos dois verbos. Isto significa que são crescentemente transferidos para um âmbito ‘oral’, numa convergência com os usos e frequências do espanhol:

Ocorrências de equivocar e lograr

Romance equivocar lograrManual de Pintura e Caligrafia 1 1Objecto Quase – –Levantado do Chão – –Memorial do Convento – –O Ano da Morte de Ricardo Reis – 2Jangada de Pedra 1 –História do Cerco de Lisboa 2 4O Evangelho segundo Jesus Cristo – 2Ensaio sobre a Cegueira 1 2Todos os Nomes 3 6A Caverna 3 4O Homem Duplicado 4 4Ensaio sobre a Lucidez 2 8As Intermitências da Morte 6 3A Viagem do Elefante 2 6Caim 3 3

Total 27 45

Essa convergência com o espanhol é acompanhada pela sua contrapartida, também ela sistemática: o desbaste daquilo que diferencia os dois idiomas. Já vimos o que aconteceu com óptimo: dá-se um recuo, e por fim um desuso, de uma peculiaridade portuguesa. O desuso afectou, também, o advérbio consoante (conforme), inexistente em espanhol. É um exemplo, mas é particularmente eloquente, visto esse advérbio ter tido, nos primeiros romances de Saramago, uma utilização marcadamente elevada, quando comparada com os usos correntes portugueses:

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Ocorrências de consoante (adv.)

Romance consoante (adv.)Manual de Pintura e Caligrafia 8Levantado do Chão 17Memorial do Convento 10O Ano da Morte de Ricardo Reis 8Jangada de Pedra 6História do Cerco de Lisboa 2O Evangelho segundo Jesus Cristo 5Ensaio sobre a Cegueira 4Todos os Nomes 2A Caverna 8O Homem Duplicado 2Ensaio sobre a Lucidez 2As Intermitências da Morte 1A Viagem do Elefante 1Caim –

Total 76

Movimentos semelhantes se observam no terreno da fraseologia. Vejamos um exemplo. Quando um português acha que certa expectativa ou exigência exorbita do razoável, exclama Era o que faltava! O seu vizinho espanhol brada ¡No faltaría más!

Localizei as ocorrências, em Saramago, dessas exclamações quando ‘puras’, isoladas, deixando de lado, para melhor contraste, os casos em que elas se inscrevem num conjunto maior (“era o que faltava partir-se o pouco que temos”, “era o que faltava morrerem estes”, “era o que faltava se ias ofender a memória dos nossos avós”). O resultado da pesquisa foi este: a exclamação portuguesa, Era o que faltava, cede lugar à hispanizante, Não faltaria mais:

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Ocorrências de Era o que faltava e Não faltaria mais

Romance Era o que faltava Não faltaria maisLevantado do Chão 7Memorial do Convento 1O Ano da Morte de Ricardo Reis 1A Caverna 3 1O Homem Duplicado 1As Intermitências da Morte 1A Viagem do Elefante 1 1Caim 1

Novo exemplo. Um espanhol que se viu, a contra-gosto, na obrigação de, digamos, pagar uma multa, dirá No tuve más remedio que pagar, ou, menos frequentemente, No tuve otro remedio que pagar. Um português na mesma situação dirá Não tive outro remédio senão pagar. Em Saramago, esta construção portuguesa (com senão) é uma raridade, enquanto o decalque das duas construções espanholas (com que) claramente domina. No quadro abaixo, indicam-se igualmente, à esquerda, as ocorrências em português e em espanhol nos dois últimos séculos, segundo os corpora de Davies & Ferreira:

ConstruçãoSéculo XIX(Davies & Ferreira)

Século XX(Davies & Ferreira)

Saramago

Portuguêsoutro remédio senão 13 28 7mais remédio senão 1 1 0outro remédio que 0 1 49mais remédio que 0 1 21

Espanholotro remedio sino 4 1 –más remedio sino 4 0 –otro remedio que 79 10 –más remedio que 231 139 –

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No âmbito da deriva semântica, há um exemplo extraordinário, que aqui me limito a assinalar, já que o seu tratamento exigiria uma observação demorada dos contextos. Trata-se do valor de certo numa sequência como não é certo. Ela equivale ao espanhol no es seguro, enquanto o espanhol no es cierto significa em português não é verdade. Ora bem, a partir de Todos os nomes, de 1997, o nosso autor usa não é certo com o valor de no es cierto. Para tornar o tema, se possível, mais aliciante, há ainda uma fase — correspondente aos romances O Homem Duplicado e Ensaio sobre a Lucidez — em que não é certo significa realmente não é certo, mas em que se diz sempre É possível, não é certo — como se a expressão portuguesa necessitasse de uma glosa para segurar-lhe o sentido. Depois, em Caim, o último romance, de 2009, não é certo volta a significar, erradamente, ‘não é verdade’.

Alguns comentários intercalares. Um primeiro para acentuar esta progressiva confluência com o espanhol num autor que, pela temática ficcional, associaríamos a uma genuinidade portuguesa. É menos paradoxal do que poderia supor-se. Tradicionalmente, as aquisições ao espanhol, uma vez esquecida a fonte, foram sentidas como deveras genuínas, como pertencentes ao mais lídimo vernáculo português. Com efeito, sempre entre nós se observou uma capacidade para rapidamente assimilar o espanhol, para rapidamente o transmutar em vernáculo. É uma operação alquímica ou, mais chãmente, uma ‘digestão rápida’. Observou-se sempre, também, a ausência de mecanismos de vigilância e de rejeição, além do pronto esquecimento da origem dos materiais. Ouso pensar que, se fosse pedido a um hipotético linguista, no Portugal do ano de 1700, um comentário à patente castelhanização da escrita de Manuel Bernardes, então o nosso maior prosador vivo, esse linguista teria respondido: ‘Não, trata-se de uma natural evolução do português’.

A recepção de José Saramago parece inscrever-se neste exacto contexto. Assim poderá explicar-se, nos inúmeros comentadores portugueses e brasileiros de Saramago, a ausência de qualquer alusão a esta deriva alienígena de um dos nossos maiores escritores. Há-de explicar-se, também, a nenhuma impressão que os meus vários alertas fizeram. É, autenticamente, como se, assinalando estes factos, eu me movesse numa realidade paralela, numa ficção científica de fabrico próprio. Essa cegueira, e essa objectiva negação, elas são um dado cultural de primeira ordem,

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inscrito no quadro, bem mais vasto, da grande cegueira sobre a nossa castelhanização histórica, processo silenciado por portugueses e brasileiros, mas também por publicistas e investigadores estrangeiros que se ocuparam do léxico português. Estou a pensar particularmente em Paul Teyssier e em Dieter Messner, dois estudiosos a quem muito devemos. Só com mil cuidados abordam o assunto, como se receosos de ofenderem o brio nacional português.

Um segundo comentário. É conhecida a nossa tendência para uma concepção essencialista, a-histórica, do português, uma concepção que, de resto, sempre reinou em Espanha, também, no atinente à língua do Estado. Trata-se de simples ideologia nacionalista, muito atreita a mitos. E um dos mitos portugueses é a fundamental originalidade da língua portuguesa, directa e virginalmente saída do seio latino. Ao galego, raiz do português, não é reconhecido qualquer papel. O espanhol só o tem se anedótico, e portanto tranquilizador.

Um terceiro comentário, ainda. Sei que, quando trato destes assuntos, há sempre, no espírito do leitor, ou ouvinte, um fantasma que lhe segreda: “Está bem. O português absorveu muitos castelhanismos. Mas houve o movimento recíproco. O espanhol adoptou, também ele, palavras portuguesas”. É, repito, um fantasma, embora benigno, já que apostado em devolver alguma justiça ao mundo. Só que a realidade é bastante mais cruel. Sim, o espanhol integrou, no decurso da História, materiais portugueses. Mas foram sempre poucos e estão, na maioria, marginalizados ou tecnicamente perdidos. Enquanto o português faz, hoje, uso corrente de largas centenas de vocábulos adoptados do idioma vizinho, o espanhol diário não conta mais que três vocábulos provenientes do extremo ocidente da Península: os verbos despejar, afeitar e enfadar. São habitualmente designados como ‘lusismos’, podendo também ser galeguismos. Mas repare-se. O português despejar significa hoje, quase só, ‘verter um líquido’. O antigo valor de ‘desimpedir’ passou ao espanhol, onde despejar é ‘aclarar’, ‘desanuviar’. Um espanhol diz Hoy tenemos cielos despejados, um português Hoje temos céu limpo (e um galego Hoxe temos ceo limpo). Quanto a afeitar, tornou-se em espanhol de uso diário, significando ‘fazer a barba’, enquanto em português já desapareceu há séculos e nunca significou isso. O caso de enfadar é mais intrincado ainda. Não só se deu uma divergência semântica

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(em espanhol significa ‘suscitar ira’, em português ‘suscitar tédio’), como houve ainda, ao longo dos séculos, um vaivém de derivados de enfadar entre os dois idiomas. Em suma: a presença do português no idioma vizinho é bastante módica (cf. Venâncio 2008a). Em feliz compensação, alguns lusismos entraram recentemente em espanhol, como capoeira e caipirinha, de procedência brasileira.

VI

Observámos em Saramago exemplos de interferência lexical, semântica, morfológica, fraseológica. No campo da morfologia, pode sublinhar-se o progressivo desaparecimento do infinito pessoal, com crescente recurso ao subjuntivo, recurso para nós deselegante e monótono, mas em espanhol o único possível. Esta perda já se verificou no galego oral, por uma habituação ao espanhol circundante, e ameaça qualquer português ou brasileiro em tais circunstâncias. Eis alguns exemplos, respigados de A Viagem do Elefante, de 2008:

«Aconselho-te a que não fales lá fora desta conversação» (em vez de ‘não falares’);

«o que eu quero dizer é que antes que os porcos tivessem caído» (em vez de ‘antes de... terem’);

«o mais provável é que instalem o acampamento fora das muralhas» (em vez de ‘instalarem’);

«a possibilidade de que nos apareçam pela frente excepções» (em vez de ‘nos aparecerem’).

Mas — seríamos levados a pensar — restaria sempre um terreno incontaminado, impossível de subverter: o da sintaxe. Pois bem, também aí o espanhol entrou e fez das suas. Concentremo-nos num caso com algo de espectacular: o decalque do pronome neutro lo seguido de adjectivo (variável em género e número), ou de advérbio, mais o pronome que. Esta construção é gramaticalmente inaceitável em português. Como noutros casos, tudo começa em Ensaio sobre a Cegueira:

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Romance Ocorrência

Ensaio sobre a Cegueira o primeiro que fiz foi ir a todas as casas

A Caverna o primeiro que há que fazer é soltá-lo,

O Homem Duplicado

o único que nos sai da boca é a pergunta,

o jovens que são

o maravilhoso que seria se me telefonasses

Ensaio sobre a Lucidez o estupendo que havia sido

As Intermitências da Morte

o retorcido e maligno que é o espírito

o malvados que são

o bem que o seu violoncelista tocou

o bonita que te vejo

A Viagem do Elefante pelo bem que soam juntas

Caim com o aborrecido que aquilo era

Uma construção como lo jóvenes que son corresponde ao português ‘como ‘quanto são jovens’, ou ‘que jovens são’, ou mesmo ‘quão jovens são’. A construção lo bien que suenan juntas pode ser vertida por ‘como soam bem juntas’, ou ainda, com algum sabor antigo, ‘quão bem soam juntas’. Mas sequências como o jovens que são ou o bem que soam juntas são impossíveis. Quem as produz demonstra que ‘pensa em espanhol’ ao escrever português.

Essa sensação de ouvir José Saramago pensando em espanhol vai-se acentuando a cada novo romance. Os decalques de construções espanholas vão-se, de livro para livro, acumulando. Tudo se passa como se ele, ao mesmo tempo que aprendia os mecanismos expressivos espanhóis, fosse esquecendo os moldes próprios, distintivos, da sua língua materna. Destacamos alguns em Ensaio sobre a Lucidez, de 2004, fornecendo o original de Saramago, a óbvia correspondência em espanhol e a forma portuguesa que podia esperar-se:

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Decalques de construções espanholas

Original de JS Espanhol PortuguêsChame-me ao telefone móvel,

Llámeme al teléfono móvil.

Ligue-me para o telemóvel.

Já veremos como isto acabará,

Ya veremos como esto acabará.

Vamos ver como isto acaba.

Em honra à verdade, En honor a la verdad, Para ser sincero,Não o creia, No lo crea. Está enganado.

pelas boas ou pelas más por las buenas o por las malas a bem ou a mal

se davam pressa em levar se daban prisa en llevar se apressavam a levar

não seja que eu tenha de vir

no sea que yo tenga que venir

não aconteça eu ter de vir

se mal não recordo si mal no recuerdo se bem me lembro

Encerramos com a lista das novidades trazidas por A Viagem do Elefante, de 2008, o penúltimo romance de Saramago:

Espanholismos inexistentes em português: malviver, rezo, manda-mais, ensilhar, cornamenta, sudoroso, desbandar, reempreender, causante, entramado, olvidadiço.

Espanholismos desusados em português: pago, olor, suspeitosamente, rompível, valeroso, chufa, gualdrapa, malgastar, arroio, rizar, prebendado, descomposição, alude, desembocadura.

Fraseologia espanhola: os de a pé, dar de corpo, em nada de tempo, seja como seja, ler de corrido, tomar cartas, sobre as doze do meio dia, em realidade, cada vez a pior, ao parecer, ir de companhia, em pago, dá o mesmo, em áustria [sic].

Semântica espanhola: enfadar, enfado, despejar, vizinhos, prosperar, valor, equipagem, assear, naipes, romper, moléstia, sucesso, propina.

Este hispanizante José Saramago é, no quadro português actual, um caso isolado, sendo já de si um caso extremo. Estas duas circunstâncias tornam-no marginal, inofensivo. Mas isso não o despe de significado. Com efeito, aqui se repetem os vários mecanismos históricos da castelhanização

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portuguesa: uma rápida assimilação, uma ausência de rejeição, uma desatenção do processo, uma assimetria brutal. Neste sentido, o caso saramaguiano vale como aviso à navegação. Os mecanismos históricos podem, a qualquer momento, ver-se revitalizados, pondo em marcha o que hoje julgaríamos impensável.

Ignoramos o que trariam, a Saramago, mais dez anos de vida feliz e, a nós, mais cinco romances seus. Mas a deriva que aqui se desenha permite supor que a convergência com o espanhol iria prosseguir sem fim à vista.

Para um historiador da língua, isto transporta-nos ao século XVII. O cenário era comparável. Mesmo nos melhores autores, prefigurava-se uma crescente confluência com o idioma de Castela, com abandono das peculiaridades autóctones. O português caminhava a passos largos para uma dialectização pelo espanhol. Pelos anos de 1690, Manuel Bernardes, o grande ‘paladino do idioma’ da história oficial, o continuador de Vieira (como este mesmo disse), prosseguia na transferência de materiais do espanhol, que, no dizer dele, “para nós é quase o mesmo idioma”. Os autores que Bernardes aduz, às dezenas, são praticamente todos espanhóis. Atente-se bem: já se passara meio século desde a restauração política de 1640.

Vários factores, linguísticos e culturais, embargaram o avanço à desgraça. Entre eles, a morte da última geração bilingue, o ‘culteranismo’, que transformou o espanhol de idioma de prestígio em extravagância, e a descoberta do classicismo francês.

José Saramago foi um ficcionista de eleição, um dos prosadores de topo na literatura portuguesa (e possivelmente também mundial) de todos os tempos. Mas, linguisticamente, inscreve-se numa história que não é propriamente a do sucesso. Somos tentados a sugerir que o seu arraigado seiscentismo, esse que lhe penetrou até ao tutano, foi mais efectivo do que ele jamais suporia. Não contando já com essa estranhíssima tolerância que os portugueses desenvolveram face ao espanhol, o seiscentismo pode ter criado em José Saramago uma suplementar predisposição para abrir as portas ao idioma vizinho. Com alguma blague, diríamos que o jornalista António Vieira e a oradora Pilar del Río conspiraram para eficazmente o castelhanizar.

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O significado último que dei a tudo isto — o de um idioma ibérico como utopia implícita — é, decerto, especulativo. Que se saiba, nunca Saramago associou os seus sonhos políticos ibéricos a uma convergência linguística com o espanhol, convergência em que decerto colaborou, mas provavelmente sem consciência disso.

Parece-me, contudo, haver uma conexão objectiva dos dois planos. Sabe-se que José Saramago não alimentava reservas mentais no referente à integração política de Portugal num conjunto peninsular. Ora, o cuidado de manter um distanciamento linguístico face ao espanhol seria já um tipo de reserva. Semelhante preocupação estava também, como vimos, ausente nos nossos seiscentistas.

O resultado dessa ausência de objecção mental está à vista: Saramago deixou-se ir, ele também, ao sabor do espanhol. Podemos, até, supor que, ao sentir — ao sentir dentro — o português cada vez mais próximo do idioma do Estado vizinho, ele visse mais realizado esse grande sonho ibérico, que era o seu.

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Memorial do Convento de José Saramago: crítica e utopia no uso da técnica da enumeração

José Cândido de Oliveira Martins

1. Relevância da enumeração

Editado em 1982, e redigido poucos anos após a Revolução de 1974, o romance de José Saramago Memorial do Convento oscila entre a anamnese histórica, sob o signo da paródia revisionista pós-moderna, e o respectivo esconjuro político-ideológico de um país pretérito e intemporal. Ao recriar ficcionalmente em dois planos narrativos entrelaçados uma dupla construção — da máquina do convento e da máquina de voar —, com propósito alegórico e manifesto distanciamento crítico, a voz narrativa de Saramago investe com violência judicativa contra o Portugal joanino e os valores que ele representa (cf. Seixo 1999: 61).

Servindo-se da sátira, do grotesco e da paródia a palavra literária assume-se como forma comprometida de denúncia da exploração e das injustiças sobre os humilhados e ofendidos (“o povo miúdo”), em nome do ideal de uma sociedade mais justa e igualitária, enunciada pela modernidade ideológica e assumida pelo autor-narrador (cf. Arnaut 1996; Martins 2008). Por vezes, o leitor mais distraído ou menos preparado não chega a aperceber-se que essa intencionalidade crítica, de clara matriz ideológica, está presente nos mais diversos procedimentos da escrita de um autor como José Saramago.

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Ora, uma das muitas marcas de novidade da escrita de Saramago em Memorial do Convento reside no recurso a certas opções linguístico-discursivas — desde o uso peculiar da pontuação e do diálogo até ao recurso a certos estilemas. Entre esses múltiplos procedimentos estilísticos, com óbvias repercussões semânticas e ideológicas, como veremos, destacamos um — a enumeração — que, ao que julgamos, não tem sido objecto da merecida atenção crítica.1

De facto, nesta escrita de Saramago, quase tudo é passível de ser descrito ou pintado através da técnica da enumeração, bem expressiva das ideias barrocas de acumulação e de excesso, numa palavra, de carácter hiperbólico: os condenados de um auto-de-fé; as ordens religiosas ou irmandades que integram cortejos e procissões; as igrejas das devoções da rainha; as comidas de uma refeição régia; a amostra onomástica e alfabética dos trabalhadores de Mafra; os apetrechos do carro para o transporte da grande pedra; os diversos componentes da passarola; os incontáveis pormenores do protocolo da corte; o “cortejo de miseráveis” ou “cortejo de maltrapilhos, atados como escravos”; os perfis das estátuas dos santos importados para Mafra; a infindável lista dos materiais adquiridos para o palácio-convento; o rol das riquezas possuídas por D. João V; o inumerável cortejo de “viaturas” do casamento da infanta; os rituais da liturgia católica; os nomes dos autores clássicos que Bartolomeu Lourenço prometia “dizer de cor” (“todo Virgílio, Horácio, Ovídio, Quinto Cúrcio, Suetónio, Mecenas e Séneca, para diante e para trás”; sem esquecer o saber teológico do sábio pregador).2

A referida enumeração das enumerações saramaguianas — longe de ser exaustiva — é por si só esclarecedora do lugar que este técnica ocupa na economia narrativa do MdC. Como estudado recentemente por Umberto

1 Devido à extensa dimensão de algumas citações de sequências enumerativas, opta-se seguidamente por abreviar alguns textos citados, transcrevendo apenas o início e o fim da citação. Dada a frequência com que se cita o romance Memorial do Convento, para maior economia, opta-se apenas pelo uso das iniciais MdC, seguidas da página.2 Assim ilustrado enumerativa e superlativamente: “[...] e responder a todas as dúvidas da Sagrada Escritura, tanto do Testamento Velho como do Novo, repetindo de cor, quer a fio corrido quer salteado, todos os Evangelhos dos quatro Evangelistas, para trás e para diante, e o mesmo das epístolas de S. Paulo e S. Jerónimo, e os anos de profeta a profeta e quantos de vida teve cada um deles, e o mesmo de todos os reis da Escritura, e o mesmo, para baixo e para cima, para a esquerda e para a direita, dos Livros dos Salmos, dos Cantares, do Êxodo e todos os Livros dos Reis, e que não são canónicos os dois Livros dos Esdras” (Saramago 1982: 62-63).

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Eco (2009: 17), em A Vertigem das Listas, o conhecimento em geral e a arte em particular estão repletos de enumerações, listas, catálogos, inventários, etc., da mais diversa natureza, estilística e semântica. A enumeração exprime frequentemente a pluralidade, aquilo que não acaba, a imensidão do universo, a ânsia de infinito. Por isso, não estranha que se prefigure como alegoria da denúncia e como imagem da utopia, numa narrativa de inspiração histórica, protagonizada por um herói colectivo.

Com efeito, em arte e particularmente em literatura, o uso da enumeração tem uma longuíssima história, desde os primórdios da literatura grega às vanguardas novecentistas (experiências de OULIPO ao nível das construções enumerativas, v.g.) e à literatura contemporânea: das relações linguísticas de termos específicos de uma nacionalidade, dos inventários da Teogonia de Hesíodo e das listas dos milagres das narrativas hagiográficas (mirabilia); às hilariantes e grotescas enumerações rabelaisianas, e aos singulares inventários da escrita de Jorge Luís Borges — numa variedade infindável de registos retórico-composicionais e de funcionalidades semânticas.

Como amplamente ilustrado pelo referido Eco, “[a] história da literatura está cheia de colecções obsessivas de objectos” (2009: 167); e a escrita saramaguiana de MdC, como ilustrado, é um caso absolutamente exemplar a este respeito.3 De facto, no universo ficcional recriado por Saramago, ilustrado ao nível do discurso narrativo e descritivo com várias e intermináveis procissões e cortejos — sejam as imponentes procissões religiosas, os cortejos dos miseráveis trabalhadores ou as aparatosas comitivas reais que se dirigem aos grandes eventos (inaugurações, casamentos, etc.) —, é muito revelador analisar como essa imagem física e pictórica das procissões, cortejos, desfiles se espelha nas enumerações ou inventários verbais que perpassam os modos narrativo e sobretudo descrito da escrita em MdC, enquanto forma privilegiada de representação da realidade.

3 Aliás, entre as fontes consultadas para informação histórica, entre muitos outros documentos, Saramago leu certamente quer o texto camiliano que transcreve a carta de um religioso sobre a sagração de Mafra (cf. Branco, 1993); bem como o livro de Frei João de S. José do Prado (1751), sobre a mesma faustosa cerimónia. Embora movidos por intencionalidade oposta (censura contundente e enfático panegírico, respectivamente), os dois documentos da época estão enriquecidos por sugestivas enumerações, realçando através de notícias detalhadas, listas e números, a quantidade assombrosa de gente e de dinheiro enterrada no palácio-convento de Mafra.

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Fig. 1 – Dois dos muitos inventários relativos à faustosa liturgia da sagração da Basílica de Mafra (Prado, 1751: 111)

Pelo seu sentido de excesso e porque muitas vezes associada ao realismo grotesco, a enumeração também pertence ao que Bakhtine (1987) designa como “gramática paródica” servida por uma mundividência subversiva e carnavalesca; e nessa acepção, também se mostra muito fecunda na escrita ficcional de Saramago. O escritor português não só não desconheceria o abundante e histórico uso da técnica da enumeração; como também teria plena consciência do recurso que a estética barroca fez a esta técnica linguístico-estilística.

Esta é, por conseguinte, a questão que se nos coloca – reflectir, breve e ilustradamente, sobre a forma e o sentido da enumeração saramaguiana em MdC: mero artifício retórico-estilístico? Procedimento típico da estética barroca e do seu horror ao vazio? Quais os processos linguísticos mais recorrentes para a sua construção? Que realidade (denominação) ou elementos são seleccionados para serem sujeitos à expansão enumerativa? Quais as leituras interpretativas de tão manifesto recurso a este processo enumerativo? Antes ainda, impõe-se uma breve definição do conceito operativo.

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Com efeito, uma das técnicas discursivas mais usadas no MdC é a enumeração. Em múltiplas sequências narrativas e descritivas, sobretudo a voz narrativa principal — mas também, ocasionalmente, outras vozes a quem ela concede a enunciação temporária — procede-se à apresentação de inumeráveis e exaustivas enumerações. Mas em que consiste este processo retórico-linguístico? Responde Lausberg: “figure de rhétorique que consiste à passer en revue toutes les manières, toutes les circunstances, toutes les parties” (1980, III: 338). Desde logo, a ideia de que se trata de um discurso somativo de elementos em número variável (a + b + c + d... + n).

Genericamente, entende-se por enumeração (eperismos, em grego; enumeratio em latim) um inventário ou conjunto de elementos relativos a um determinado quadro temático, formando uma adição ou acumulação (adiectio) mais ou menos heterogénea e/ou exaustiva:

Los miembros de la enumeración son las partes coordinantes de un todo. El todo (representado y especificado por las partes) es (según la magnitud de la suma de las partes) frecuentemente un concepto abstracto-colectivo (“mucho”, “todo”, etcétera), que a su vez puede expresarse u omitirse. Cuando el todo (semánticamente superpuesto) se expresa, puede ir antes de las partes (que entonces son epexegéticas y sensibilizadoras) o detrás, a manera de remate sintetizador e intensificador” (ibid., § 669, cf. também §§ 665-687).

Na tradição taxionómica da retórica, há autores que distinguem o inventário (enumeração exaustiva) do exemplo, sob a forma de enumeração parcial. A diversidade dos elementos objecto da adição pode ser considerável — conjunto de factos, de objectos, de partes de objectos, de qualidades, de sensações, de nomes próprios, de circunstâncias, etc. Enumeração simples, quando os elementos pertencem ao mesmo conjunto; ou complexa, se são de vários conjuntos (cf. Estébanez Calderón 2006: 333-334).

Sendo a enumeração uma lista de elementos com relação semântica entre si, os seus componentes podem ser ordenados através de diversas construções linguístico-estilísticas, como o polissíndeto (enumeração por coordenação copulativa), o assíndeto (enumeração por justaposição), a gradação (ascendente ou descendente). Ao mesmo tempo, a construção enumerativa mantém íntima relação com as figuras da amplificação, da

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acumulação, da sinonímia e de outras “figuras de repetição”, na terminologia de Fontanier. Sem esquecer as figuras do cómico ligadas às ideias de excesso e de exagero, próprios do cómico verbal, tais como: adinata (impossibilia), caricatura, hipérbole, ironia, sátira, etc.

Ainda do ponto de vista sintagmático, enquanto a enumeração por coordenação, recorrendo a uma última conjunção copulativa (“e”) transmite a ideia acumulação enfática e, por vezes, de fechamento: “[...] não tardam aí o sangue e a urina, e as bostas dos touros, e os benicos dos cavalos [...] (Saramago 1982: 97). Já a enumeração por justaposição expressa estilisticamente a noção de abertura, podendo nela sempre figurar a expressão latina et caetera, uma vez que não tem moldura a assinalar a sua finitude. Em ambos os casos, a escrita saramaguiana valoriza a parataxe sobre a hipotaxe, como no início de uma das mais longas enumerações do romance saramaguiano — das infindáveis irmandades incorporadas na procissão do Corpo de Deus:

[...] já da capela real estão saindo as irmandades, homens e mulheres aos milhares, postos por ordem de pertença e de sexo, aqui não se misturam evas com adões, olha lá vai António Maria, e Simão Nunes, e Manuel Caetano, e José Bernardo, e Ana da Conceição, e António da Beja, e trivialmente José dos Santos, e Brás Francisco, e Pedro Caim, e Maria Caldas, tão variados são os nomes como as cores, capas vermelhas, azuis, brancas, negras e carmesins, opas cinzentas, murças castanhas, e azuis e roxas, e brancas e vermelhas, e amarelas, e carmesins, e verdes, e pretas, como pretos são alguns dos irmãos que passam, o pior é que esta fraternidade, mesmo indo na procissão, não chega aos degraus de Nosso Senhor Jesus Cristo. (Saramago 1982: 151)

Casos há, a título excepcional, em que quem enumera não tem preocupações de rigor matemático, realçando os limites da sua omnisciência, como quando afirma diante da sumptuosidade da cerimónia da sagração de Mafra, com mais outra “procissão solene”: “Não se descrevem tantas maravilhas” (350). Quando o narrador saramaguiano descreve, por exemplo, o enorme cortejo de “viaturas” que vão de Lisboa para a fronteira espanhola acompanhar o casamento da infanta, o narrador ora enumera os coches reais, ora os objectos que os decoram, não hesita em usar expressões linguísticas de origem coloquial ou popular (“para cima de” e “sem falar em”), que ainda amplificam mais a grandeza das enumerações, de modo a dar todo o “aparato completo” da comitiva e o fausto da cerimónia:

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Assim, quando D. João V atravessou o rio, no dia oito de Janeiro, para principiar a sua grande viagem, havia em Aldegalega, à sua espera, para cima de duzentas viaturas, entre estufas, caleças, seges de campo, galeras, carromatos, andas, uns que tinham vindo de Paris, outros feitos de propósito em Lisboa para a ocasião, sem falar nos coches reais, com as douraduras frescas, os veludos renovados, as borlas e sanefas penteadas. Da real cavalariça, só em bestas, eram quase duas mil, não se incluindo nelas os cavalos da guarda do corpo e os dos regimentos de tropa que acompanham o cortejo. (Saramago 1982: 300)

Enquanto retórico, também não é indiferente a ordenação mais ou menos lógica e progressiva dos elementos listados (geral/particular, abstracto/concreto, etc.); ou a opção pela ordenação acumulativa e errática — a enumeração caótica, mas também a enumeração elíptica, utilizadas em diversas épocas e estilos de época, desencadeando a impressão de amontoado caótico, desde a escrita poética à técnica do monólogo interior. A ligação entre os vários elementos da enumeração pode estabelecer-se a partir de um termo genérico, do qual são derivados todos os outros (expansão normalmente aberta).

Além do referido, trata-se de um recurso retórico-linguístico não exclusivo do discurso narrativo, sendo igualmente partilhado por outros géneros literários — da poesia ao teatro (teatro do absurdo, v.g.). A apresentação da enumeração pode ainda servir-se ou articular-se com várias técnicas ou procedimentos discursivos, desde o diálogo ao monólogo, monólogo interior, passando pelo discurso directo narrativizado ou, mais abundantemente, pela descrição. Dada a frequência da enumeração no plano descritivo, poderíamos pensar que estaria condenada ao estatismo. Porém, em vários casos, marcada por uma vocação cenográfica e até cinematográfica, a enumeração saramaguiana tende a imprimir dinamismo e, em alguns exemplos, até uma impressão de desfile vertiginoso.

Não restam dúvidas de que o uso saramaguiano da enumeração é motivado, em boa medida, pela recriação de uma cultura barroca (História e língua), como realçado por vários estudos. Particularizando o romance MdC, Arnaut afirma que “não é difícil observar a influência que esta estética [Barroco] exerceu sobre o autor”; e mais adiante, refere-se ao pastiche e ilustra algumas “afinidades existentes entre esta obra e a estética barroca” (2007: 194, 290-210), podendo aqui acrescentar-se a técnica da enumeração.

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Mais detalhadamente, Ferreira centra-se nas várias manifestações do barroco na escrita do romance saramaguiano, não deixando de referir-se à enumeração:

Memorial do Convento poderá ser lido e considerado à luz da época e estética barrocas, tanto pelo enquadramento da acção narrativa que cria, quanto pela linguagem, temáticas e códigos literários que actualiza através das técnicas da paródia e do pastiche. (2009: 28, passim)

Ora, reconhecendo o uso destas técnicas, parece-nos que o escritor não apresenta o propósito de ficar escravo de um mero pastiche completo da língua e convenções literárias de setecentos. Porém, isso não invalida o reconhecimento da enumeração como um procedimento congenial à estética barroca, que definitivamente não se confina ao uso do barroco e “gracioso jogo de palavras” (Saramago 1982: 165). No seu estudo sobre a criação barroca de Lope de Vega inspirada em Polifemo e Galateia, Osuna enfatiza a centralidade e singularidade da enumeração enquanto procedimento tipicamente barroco:

Uno de los fenómenos anormales del Barroco es la enumeración, figura de lenguaje incluida en la categoría más amplia de la acumulación y que no hay que confundir con la repetición y todas las subdivisiones de esta: geminación, reduplicación, gradación, anáfora, epífora, complexio, paronomasia, políptoton, sinonímia, traductio, distinctio y reflexio. La enumeración es, como todas esas figuras nombradas, una figura per adiectionem y consiste en el amontonamiento de palabras semánticamente complementarias. (1996: 67)

Diante de um tão intenso uso da técnica discursiva da enumeração no Memorial do Convento, como exemplificaremos, seduzem-nos duas questões nucleares e articuladas: primeira, qual a gramática retórica dessas construções? Segunda, qual a semântica e ideologia dessas formas discursivas? Numa palavra, importa reflectir sobre o modo como se constrói e o que significa o reiterado uso desta técnica.

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Fig. 2 – Inventário do “número da gente” que trabalhava nas obras de Mafra em 2 de Maio de 1731 (Prado, 1751: 152)

2. Gramática possível da enumeração

Como sugerido, o recurso à técnica da enumeração pode assumir várias formas ou procedimentos. Uma delas é a da enumeração de híbrida feição, entre a narração e a descrição, onde os vários elementos constituem informação diegética, elencada enumerativamente e de forma mais ou menos dispersa. Um exemplo desta opção discursiva da enumeração ocorre no episódio da procissão de penitência que sucede aos festejos do Entrudo, marcando assim o início da Quaresma católica.

A voz narrativa descreve então, minuciosamente, os participantes activos (aqueles que desfilam, sobretudo homens) e os passivos (que assistem, mais mulheres, às janelas). O espectáculo da longa procissão quaresmal, com destaque para a descrição dos castigos corporais dos penitentes que

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se flagelam, é uma alegoria satírica da dimensão hipócrita desses pretensos actos penitenciais, já que a denúncia vai directa para a intencionalidade sexual, de tonalidade sado-masoquista, que preside a todo o cerimonial, só na aparência religioso.4

A sarcástica estocada final remata a sequência descritiva, de forte pendor visualista, como outras vezes acontece. Segue-se a descrição do processo de identificação dos amantes (homens) por parte das mulheres (amadas e/ou seduzidas) que assistem ao espectáculo de violência física e sexual — atente-se na analogia animalesca do homem com o touro em cio. Sob aparência de contrição, mas antes indisfarçada antevisão “gozo” ou prazer permitido, o elenco das várias cores das fitinhas dos machos que desfilam constitui o sinal para as manifestações lúbricas de tão singular procissão e futuros encontros íntimos:

Presas no alto gorro ou na própria disciplina, levam fitinhas de cores, cada um a sua, e se a mulher eleita que à janela anseia de angústia, de piedade pelo ama, dor sofredor, se não também de gozo a que só muito mais tarde aprenderemos a chamar sádico, não souber, pela fisionomia ou pelo vulto, reconhecer o amante na confusão dos penitentes, dos pendões, do povinho derramado em pavores e súplicas, do vozear das ladainhas, do bambear desacertado dos pálios, dos cabeceamentos bruscos das imagens, adivinhará ao menos pela fitinha cor-de-rosa ou verde, ou amarela, lilás, se não vermelha ou cor do céu, é aquele o seu homem e servidor, que lhe está dedicando a vergastada violenta e que, não podendo falar berra como o toiro em cio, mas se às mais mulheres, da rua, e a ela própria, pareceu que faltou vigor ao braço do penitente ou que a vergastada foi em jeito de não abrir lanho na pele e rasgões que cá de cima se vejam, então levanta-se do coro feminil grande assuada, e possessas, frenéticas as mulheres reclamam força no braço, querem ouvir o estralejar dos rabos do chicote que o sangue corra como correu o do Divino Salvador, enquanto latejam por baixo das redondas saias, e apertam e abrem as coxas segundo o ritmo da excitação e do seu adiantamento. (Saramago 1982: 29)

4 Cerimónia religiosa assim introduzida: “Vai sair a procissão de penitência. Castigámos a carne pelo jejum, maceremo-la agora pelo açoite. Comendo pouco purificam-se os humores, sofrendo alguma coisa escovam-se as costuras da alma. Os penitentes, homens todos, vão à cabeça da procissão, logo atrás dos frades que transportam os pendões com as representações da Virgem e do Crucificado. [...] Lisboa cheira mal, cheira a podridão, o incenso dá um sentido à fetidez, o mal é dos corpos, que a alma, essa, é perfumada.” (Saramago 1982: 28).

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A profusão de elementos do quadro tem alguma relação, por contraste com as naturezas-mortas da pintura holandesa, criações temáticas à sombra do tópico barroco da vanitas: elementos aparentemente desconexos, mas unidos por um objectivo, a denúncia da efemeridade da vida humana (cf. 289). No quadro saramaguiano, a transitoriedade da existência parece inverter os valores, levando a multidão dos católicos à fruição sensorial do instante que passa, incluindo os prazeres do corpo, tão aparentemente martirizados pelos jejuns, abstinências e outras práticas mortificatórias. Numa palavra, estamos diante da denúncia satírica do espectáculo barroco e religioso da penitência pública, levando o narrador a rematar judicativa e provocatoriamente diante da pintura desta assumida hipocrisia social:

Está o penitente diante da janela da amada, em baixo na rua, e ela olha-o dominante, talvez acompanhada de mãe ou prima ou aia, ou tolerante avó, ou tia azedíssima, mas todas sabendo muito bem o que se passa, por experiência fresca ou recordação remota [...]. Parou a procissão o tempo bastante para se concluir o acto, o bispo abençoou e santificou, a mulher sente aquele delicioso relaxamento dos membros, o homem passou adiante, vai pensando, aliviadamente, que daqui para a frente não precisará vergastar-se com tanta força, outros o façam para gáudio doutras. (Saramago 1982: 29-30)

Não falta sequer, no remate desta sequência descritiva em registo de gradação crescente, a provocatória analogia com o relaxamento que sucede ao clímax do acto sexual. O “pecado omnipresente” surge disfarçado de devoção abençoada pela igreja católica, aproveitando o narrador o ensejo para declarar, ironicamente, que as carnes maltratadas pelo jejum e abstinência quaresmais terão de esperar pela “libertação pascal”. Porém, as “solicitações da natureza” não podem esperar, e as mulheres não resistem à tentação de se entregar a amantes ocasionais nas suas devoções da Quaresma nas igrejas de Lisboa, num jogo de pseudo-devoção e de aparências, permitido por “maridos cucos”, num consensual teatro de fingimento e impostura.

Em outros casos, a enumeração aparece mais acentuadamente estática e descritiva, quase se confinando à acumulação de elementos, como na cena da cerimónia da bênção da primeira pedra do Convento, em 1717:

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Foi a pedra principal benzida, a seguir a pedra segunda e a urna de jaspe, que todas três iriam ser enterradas nos alicerces, e depois foi tudo levado em procissão, de andor, dentro da urna os dinheiros do tempo, ouro, prata e cobre, umas medalhas, ouro, prata e cobre, e o pergaminho onde se lavrara o voto, deu a procissão uma volta inteira para mostrar-se ao povo que ajoelhava à passagem, e, tendo constantemente motivos para ajoelhar-se, ora a cruz, ora o patriarca, ora el-rei, ora os frades, ora os cónegos, já nem se levantava, bem poderemos escrever que estava muito povo de joelhos. [...] Levava o patriarca a pedra principal, ajudado pelos cónegos, e outros destes a pedra segundeira e a urna de jaspe, atrás el-rei e o geral da Sagrada Ordem de S. Bernardo, como esmoler-mor, e que, por o ser, levava o dinheiro. (Saramago 1982: 135)

O recurso às formas linguísticas ‘e’ ou ‘ora’ denuncia o registo enumerativo. Depois de elencar os objectos exigidos pelo longo cerimonial da bênção, enumeram-se os elementos usados nas “cerimónias de estilo e de estado” (cf. 135). E logo de seguida, pinta-se o cenário em que se desmonta a construção provisória onde tiveram lugar os festivos acontecimentos. De facto, procedimento semelhante ocorre na pintura do que sucede após essa cerimónia, no momento de desmontar o ‘teatro’ da bênção:

Ao outro dia, depois de el-rei partir para a corte, deitou-se abaixo a igreja sem ajudado vento, apenas chovia água que Deus a dava, puseram-se a um lado as tábuas e os mastros para necessidades menos reais, andaimes, por exemplo, ou tarimbas, ou beliches, ou mesa de comer, ou rastos de tamancos, e os panos, tafetás ou damascos, as velas dos navios, cada um tornou ao seu natural, as pratas para o tesouro, os fidalgos para a fidalguice, o órgão para outras solfas, e os cantores, os soldados a luzir semelhantes paradas, só ficaram os arrábidos de olho alerta, e sobre a pedra cavada, cinco metros de pau crucificado, a cruz. (Saramago 1982: 136)

Porém, a enumeração mais típica é a que se constitui através da adição de elementos descritivos, como na pictórica e visualista cena da procissão do Corpo de Deus (hipotipose), acentuando a ideia do excesso e da exuberância, neste caso das manifestações exteriores de pseudo-religião, logo após uma breve contextualização em jeito de exórdio:

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É então que começa a sair a procissão. Vêm à frente as bandeiras dos ofícios da Casa dos Vinte e Quatro, primeiro que todas a dos carpinteiros, representando S. José, que desse ofício foi oficial, e as mais insígnias, grandes painéis, cada um com seu santo figurado, feitos de damasco brocado e com bordaduras de ouro, e tão excessivos de tamanho que são precisos quatro homens para sustentá-los, revezando-se com outros quatro, folgando ora uns ora outros ainda bem que não está vento, é ao compasso da andadura que balouçam os cordões de ouro e seda, e as borlas do mesmo metal, suspensas das pontas refulgentes das varas. Atrás vem a imagem de S. Jorge, com todo o seu estado, os tambores a pé, os trombeteiros a cavalo, rufando uns, outros soprando, rataplã, rataplã, tataratará, tá, tatá […]. (Saramago 1982: 149)

Este é apenas o começo da longa descrição dos intervenientes, das imagens dos santos, dos objectos, das vestimentas, etc. — trombetas e tambores, bandeiras e estandartes, cavalos, timbaleiros e trombeteiros, o rol das irmandades, enfim, pessoas que assistem à passagem da procissão, com “a roupinha de ver ao Senhor”. E após algumas intromissões judicativas do narrador — da alusão intertextual ao conhecido soneto de Nicolau Tolentino (“Vai, mísero cavalo lazarento”) até à corrosiva ironia sobre o uso do corpo (cf. 150) —, a descritiva enumeração continua a desenhar o colorido da procissão barroca, desta vez servindo-se da breve enumeração onomástica (dos nomes dos que desfilam), da enumeração das suas vestimentas e respectivas cores, do fastidioso inventário das várias irmandades presentes.

Como se constata, tudo conflui para a ideia de excesso e de exuberância, através de um somatório sequencial de várias enumerações, séries homológicas correlacionadas entre si pelo grande cenário e espectáculo da procissão do Corpo de Deus (termo geral que liga semanticamente as várias enumerações), acentuando também a ideia de uma sociedade rígida e ostensivamente hierarquizada:

[…] porque já da capela real estão saindo as irmandades, homens e mulheres aos milhares, postos por ordem de pertença e de sexo, aqui não se misturam evas com adões, olha lá vai António Maria, e Simão Nunes, e Manuel Caetano, e José Bernardo, e Ana da Conceição, e António da Beja, e trivialmente José dos

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Santos, e Brás Francisco, e Pedro Caim, e Maria Caldas, tão variados são os nomes como as cores, capas vermelhas, azuis, brancas, negras e carmesins, opas cinzentas, murças castanhas, e azuis e roxas, e brancas e vermelhas, e amarelas, e carmesins, e verdes, e pretas, como pretos são alguns dos irmãos que passam, o pior é que esta fraternidade, mesmo indo na procissão, não chega aos degraus de Nosso Senhor Jesus Cristo [...]. Que faz aqui este cabra, essa é a grande dificuldade das irmandades de cor, por enquanto vão saindo estas, é o que se pode arranjar, a de Nossa Senhora da Doutrina, a de Jesus Maria, a do Rosário; a de S. Benedito, o que come pouco e anda gordito, a de Nossa Senhora da Graça, a de S. Crispim, a da Madre de Deus de S. Sebastião da Pedreira, que é onde moram Baltasar e Blimunda, a da Via Sacra de S. Pedro e S. Paulo, outra também da Via Sacra, mas do Alecrim, a de Nossa Senhora da Ajuda, a de Jesus, a de Nossa Senhora da Lembrança, a de Nossa Senhora da Saúde, sem ela como haverá de ter virtude Rosa Maria, e a Severa que virtude teria, e vem depois a irmandade de Nossa Senhora da Oliveira, à sombra da qual Baltasar um dia comeu, a de Santo António das Franciscanas de Santa Marta, a de Nossa Senhora da Quietação das Flamengas de Alcântara, a do Rosário, a de Santo Cristo e Santo António, a de Nossa Senhora da Cadeia, a de Santa Maria Egipcíaca; fosse Baltasar soldado da guarda real e seria esta a sua irmandade de direito, pena não haver a dos manetas […]. (Saramago 1982: 151-152)

Porém, apesar de longa, não se pense que a enumeração termina aqui, com a habitual ironia. Ela prolonga-se muito mais na pena cronística do narrador saramaguiano, que apesar do excesso do inventariado, confessa que não terá tido a capacidade para ver ou reparar em tudo (tópico do indizível). O importante é atentarmos em significativos aspectos formais. Repare-se, por exemplo, como a gramática da enumeração tanto se constrói através de formulações assindéticas, em que a sucessão dos elementos é feita através do uso da vírgula. Numa opção mista, também se opera através do polissíndeto, gerando um efeito de manifesto ênfase pelo uso reiterado da copulativa ‘e’, com ou sem vírgula. Em outras passagens, o efeito cumulativo é reforçado pelo uso do artigo que antecede cada um dos elementos inventariados (por exemplo, a interminável sucessão de irmandades).

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Como vemos também neste fragmento, uma das marcas da prosa de Saramago é que as enumerações podem frequentemente ser pontuadas pela ironia corrosiva do narrador, que não se limita a registar a acumulação, antes as vai enxertando com breves comentários críticos, sob a forma de juízos, de provocações ao leitor; mas também de exercícios prolépticos, estabelecendo violento contraste entre o passado (da evocação) e o presente (da leitura) e, implicitamente, desafiando o olhar crítico do paciente leitor, pois em Saramago não há enumerações gratuitas ou neutras.

Como sugerido, a enumerativa e fastidiosa descrição da procissão do Corpo de Deus, a 8 de Julho de 1719, prolonga-se, gerando mesmo um efeito de real perante a magnificência de tal espectáculo. Retome-se o quadro no momento em que, depois das irmandades, passam os frades das mais diversas ordens religiosas, com o narrador manifestamete enfastiado:

[…] não vi, não reparei, frades eram, terceiros de S. Francisco de Jesus, capuchinhos, religiosos de S. João de Deus, franciscanos, carmelitas, dominicanos, cistercienses, jesuítas de S. Roque e de Santo Antão, com tantos nomes e cores se esvai a cabeça e a retentiva […]. (Saramago 1982: 153)

E na mesma interminável estratégia cumulativa, segue-se outra enumeração dos luxos e das modas da primeira metade de Setecentos, no olhar fotográfico do narrador-cronista:

[…] é a altura de comer o farnel trazido ou o alimento comprado, e enquanto se vai comendo vai-se falando do que já passou, as cruzes douradas, as mangas de bofes, os lenços brancos, as casaca compridas, as meias altas, os sapatos de fivela, os tufos, as toucas, as saias rodadas, os mantos de fantasia, as golas de renda, os casaquinhos, só os lírios do campo não sabem fiar nem tecer e por isso estão nus, se Deus quisesse que assim andássemos teria feito homens liliais, as mulheres felizmente já o são, mas vestidos lírios, Blimunda vestida ou não, que pensamentos são esses, Baltasar, que lembranças pecadoras, se agora vem a cruz da igreja patriarcal, e depois dela a comunidade da congregação das Missões, e a do Oratório, e a multidão inúmera. do clero das paróquias, oh senhores, tanta gente cuidando de salvar-nos as almas e elas ainda por achar, não cuides tu, Baltasar, que por seres soldado, ainda que inválido, és da freiria destes que passam, figuras cento e oitenta e quatro da ordem militar

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de Santiago da Espada, figuras cento e cinquenta da ordem de Aviz, e outras tantas da ordem de Cristo, isto são freires que escolhem os que hão-de ser seus irmãos, além de não querer Deus nos seus altares animais com defeito, maxime se são de sangue vulgar, por isso deixe-se ficar Baltasar onde está, a ver passar a procissão, os pajens, os cantores, os cubiculários, os dois tenentes da guarda real, um, dois, com prima farda, diríamos hoje de gala, e a cruz patriarcal levando ao lado as virgas rubras, os capelães de varas levantadas e molhos de cravos nas pontas delas, ai o destino das flores, um dia as meterão nos canos das espingardas, os meninos de coro, a basílica de Santa Maria Maior, que é sombreiro, e também a basílica patriarcal, ambas de gomos alternados, brancos e vermelhos, se daqui a duzentos ou trezentos anos começam a chamar basílicas aos chapéus-de-chuva […]. (Saramago 1982: 153-154)

Mais uma vez, a enumeração é enriquecida por farpas críticas da voz narrativa, optando resolutamente por uma focalização interventiva; e também por disfarçadas citações intertextuais de matriz bíblica (“só os lírios do campo não sabem fiar nem tecer e por isso estão nus”), questionando com isso a ideia de pureza dos corpos, vestidos ou nus; e ainda pelas recorrentes prolepses irónicas (“se daqui a duzentos ou trezentos anos começam a chamar basílicas aos chapéus-de-chuva”). Toda esta sucessão de enumerações culmina com o “cortejo do patriarca”, acompanhado de sua majestade o rei D. João V, debaixo do rico pálio dessa monumental procissão, momento em que assistimos a dois memoráveis monólogos interiores dos protagonistas do poder temporal e intemporal (cf. 155-6).5

5 Esse momento de suprema carnavalização paródica do trono e do altar (cf. 279) é ainda precedido de mais uma sequência enumerativa: “Quando ficará pronta a minha basílica de Mafra, pensa el-rei que vem aí atrás a segurar a uma vara do pálio, mas antes passou o cabido, primeiro os cónegos diáconos de dalmática branca, depois os presbíteros com planetas da mesma cor, enfim as dignidades, com amito e formálio; que saberá o povo destes nomes, da mitra conhece a palavra e o feitio, que tanto está no cu da galinha como na cabeça dos cónegos, cada um destes assistido por três familiares de sua casa, um de tocha acesa, outro levando o chapéu, ambos trajados à cortesã, e o caudatário pega na cauda e veste simarra e cota, e agora sim, agora começa o cortejo do patriarca, vêm primeiramente seis fidalgos parentes dele com tochas acesas, depois o beneficiado assistente com o báculo, mais um capelão com a naveta do incenso, atrás dos acólitos gingando turíbulos de prata lavrada, e dois mestres de cerimónias, e doze escudeiros também levando tochas.” (154-155).

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3. Semântica e ideologia da enumeração

Para usar uma imagem recorrente da prosa de Saramago, a enumeração típica é uma procissão barroca constituída por uma listagem de elementos semanticamente associados. No caso do MdC, esta técnica reveste-se de várias funcionalidades. Do ponto de vista dos modos de representação, e com vista a tipologia discursiva simples, ora temos uma enumeração diegética ou narrativa, menos frequente; ou uma enumeração pictórica ou descritiva, muito mais reiterada.

Raramente aparece associada à funcionalidade da recapitulatio; antes é utilizada amiúde como processo de detalhar as partes das coisas (partitio); e, deste modo, como forma de sublinhar os excessos, as hierarquias e os formalismos da sociedade barroca do Portugal setecentista, sob o augusto domínio régio. Recorrendo à mesma terminologia retórica, a enumeração saramaguiana é indissociável da reflexão crítica típica da peroratio, podendo funcionar como prova de argumentação, através da intensificada acumulação de elementos ou de exemplos.6

Diante da magnitude da empresa decretada por D. João V e executada por milhares de homens conduzidos à força para o estaleiro da construção, a voz narrativa do MdC poderia facilmente ceder ao topos da indizibilidade (cf. Eco 2009: 49), argumentando não lhe ser possível descrever todos os pormenores de tão grande empreendimento. Muito pelo contrário, o seu espírito combativo e de denúncia, não silencia, nem sugere alusivamente, antes mostra e pinta enfaticamente a crueza de tamanha exploração humana, ao serviço da megalomania do monarca. Por exemplo, quando a voz narrativa se detém a enumerar os infindáveis apetrechos que vão para Pêro Pinheiro, a fim de se conseguir o transporte da grande pedra, num gigantesco carro comparado a uma nau da Índia, o propósito é o de reconhecimento e celebração da gesta heróica do trabalho:

Em Pêro Pinheiro se construíra o carro que haveria de carregar o calhau, espécie de nau da Índia com rodas, isto dizia quem já o tinha visto em acabamentos e igualmente pusera os olhos, alguma vez na nau da comparação. Exagero será, decerto, melhor é julgarmos pelos nossos próprios olhos, com todos estes homens

6 Cf. Lausberg 1980, II: 136-137 e Perelman & Olbrechts-Tyteca 1989: 281, 365 e seguintes..

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que se estão levantando noite ainda e vão partir para Pêro Pinheiro, eles e os quatrocentos bois, e mais de vinte carros que levam os petrechos para a condução, convém a saber, cordas e calabres, cunhas, alavancas, rodas sobressalentes feitas pela medida das outras, eixos para o caso de se partirem alguns dos primitivos, escoras de vário tamanho, martelos, torqueses, chapas de ferro, gadanhas para quando for preciso cortar o feno dos animais, e vão também os mantimentos que os homens hão-de comer, fora o que puder ser comprado nos lugares, um tão numeroso mundo de coisas carregando os carros, que quem julgou fazer a cavalo a viagem para baixo, vai ter de fazê-la por seu pé, nem é muito, três léguas para lá, três para cá, é certo que os caminhos não são bons, mas tantas vezes já fizeram os bois e os homens esta jornada com outros carregos, que só de pôr no chão a pata e a sola logo vêem que estão em terra conhecida, ainda que custosa de subir e perigosa de descer. (Saramago 1982: 241-242)

E quando, excepcionalmente, não é possível ao narrador saramaguiano a enumeração exaustiva — como no elenco dos nomes dos muitos milhares de trabalhadores de Mafra, recorre então à técnica da amostra simbólica, seguindo a ordenação do letras do alfabeto. Como expressamente exarado, o “alfabeto da amostra” tem um objectivo em vista — “torná-los imortais”, pois não é possível detalhar todas as suas existências. Isso acontece também a pretexto do transporte épico da grande pedra para a varanda da bênção (o monobloco de 31 toneladas), levando a voz narrativa a insistir na ideia de imortalização dos heróis, afinal os humilhados e ofendidos da História, que era imperioso resgatar neste memorial:

Daqueles homens que conhecemos no outro dia, vão na viagem José Pequeno e Baltasar, conduzindo cada qual sua junta, e, entre o pessoal peão, só para as forças chamado, vai o de Cheleiros, aquele que lá tem a mulher e os filhos, Francisco Marques é o nome dele, e também vai o Manuel Milho, o das ideias que lhe vêm e não sabe donde. Vão outros Josés, e Franciscos, e Manuéis, serão menos os Baltasares, e haverá Joões, Álvaros, Antónios e Joaquins, talvez Bartolomeus, mas nenhum o tal, e Pedros, e Vicentes, e Bentos, Bernardos e Caetanos, tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar lhes vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais,

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pois aí ficam, se de nós depende, Alcino; Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados, porventura nem todos estes nomes serão os próprios do tempo e do lugar, menos ainda da gente, mas, enquanto não se acabar quem trabalhe, não se acabarão os trabalhos, e alguns destes estarão no futuro de alguns daqueles, à espera de quem vier a ter o nome e a profissão. (242)7

Como dissemos, há a natural tentação de a enumeração poder ser perspectivada como procedimento retórico típico de uma estilística ou estética barrocas, acentuando a ideia de abundância, de exuberância, de formalismo, próprios de uma sociedade cortesã, regida e coarctada por múltiplos códigos de conduta. Porém, mais do que uma forma de transmitir a cor local de uma época, ou do que construção ilustrativa da exuberância barroca, a enumeração saramaguiana não tem horror do vazio, nem pretende desencadear no leitor meros efeitos de trompe-l’oeil, frequentes na pintura barroca. Os propósitos são bem outros: ora desmonta a ostentação dos poderosos, ora eleva a dignidade dos humildes, acertando as contas com certa visão ou narrativa da História. Uma das passagens mais exemplares é a do monólogo do monarca, obcecado em gastar no “seu” convento as enormes somas do ‘seu’ dinheiro, que lhe vinha sobretudo das ‘suas’ minas no Brasil:

Medita D. João V no que fará a tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema riqueza, medita hoje e ontem meditou, e sempre conclui que a alma há-de ser a primeira consideração, por todos os meios devemos preservá-la, sobretudo quando a podem consolar

7 A imortalização dos trabalhadores de Mafra, através da estratégia da amostra alfabética, é reforçada através de outra enumeração, irónica e grotesca, dos não nomeados e com perfil pouco adequado à estereotipada ideia de heróis literários: “De quantos pertencem ao alfabeto da amostra e vão a Pêro Pinheiro, pese-nos deixar ir sem vida contada aquele Brás que é ruivo e camões do olho direito, não tardaria que se começasse a dizer que isto é uma terra de defeituosos, um marreco, um maneta, um zarolho, e que estamos a exagerar a cor da tinta, que para heróis se deverão escolher os belos e formosos, os esbeltos e escorreitos, os inteiros e completos, assim o tínhamos querido, porém, verdades são verdades, antes se nos agradeça não termos consentido que viesse à história quanto há de belfos e tartamudos, de coxos e prognatas, de zambros e epilépticos, de orelhudos e parvos, de albinos e de alvares, os da sarna e os da chaga, os da tinha e do tinhó, então sim, se veria o cortejo de lázaros e quasímodos que está saindo dá vila de Mafra, ainda madrugada, o que vale é que de noite todos os gatos são pardos e vultos todos os homens” (242-3).

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também os confortos da terra e do corpo. [...] encomendem-se à Europa, para o meu convento de Mafra, pagando-se, com o ouro das minhas minas e mais fazendas, os recheios e ornamentos, que deixarão, como dirá o frade historiador, ricos os artífices de lá, e a nós, vendo-os, aos ornamentos e recheios, admirados. De Portugal não se requeira mais que pedra, tijolo e lenha para queimar, e homens para a força bruta, ciência pouca. Se o arquitecto é alemão, se italianos são os mestres dos carpinteiros e dos alvenéus e canteiros, se negociantes ingleses, franceses, holandeses e outras reses todos os dias nos vendem e nos compram, está muito certo que venham de Roma, de Veneza, de Milão e de Génova, e de Liège, e da França, e da Holanda, os sinos e os carrilhões, e os candeeiros, as lâmpadas, os castiçais, os tocheiros de bronze, e os cálices, as custódias de prata sobredourada, os sacrários, e as estátuas dos santos de que el-rei é mais devoto, e os paramentos dos altares, os frontais, as dalmáticas, as planetas, os pluviais, os cordões, os dosséis, os pálios, as alvas de peregrinas, as rendas, e três mil pranchas de pau de nogueira para os caixões da sacristia e cadeiral do coro, por ser madeira muito estimada para esse fim por S. Carlos Borromeu, e dos países do Norte navios inteiros carregados de tabuado para os andaimes, telheiros e casas de acomodação, e cordas e amarras para os cabrestantes e roldanas, e do Brasil pranchas de angelim, incontáveis, para as portas e janelas do convento, para o solho das celas, dormitórios, refeitório e mais dependências, incluindo as grades dos espulgadoiros por ser incorrompível madeira, não como este rachante pinho português, que só serve para ferver as panelas e sentar-se nele gente de pouco peso e aliviada de algibeiras. (228-229)

Na amarga ironia do narrador saramaguiano, as misérias atávicas do Portugal setecentista não estavam seguramente à altura, nem deviam obscurecer os merecimentos de monarca tão iluminado... E fazendo jus ao velho complexo congenial à cultura portuguesa — o que é estrangeiro é que é bom; o que é nacional, não tem qualidade —, tudo é importado e bem pago, a partir de vários países da Europa.

Como adiantado, a enumeração também é artifício retórico para acentuar a ideia de exaustividade (mais ou menos alucinatória), acumulação descritiva, o excesso ou o lado hiperbólico de determinada situação. E

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na escrita reivindicativa de Saramago, a técnica enumerativa pode servir-se da construção anafórica, de cunho popular (“ele é..., ele é...”), como elemento enfático para salientar os elementos que compõe a enumeração:

Desde que na vila de Mafra, já lá vão oito anos, foi lançada a primeira pedra da basílica, essa de Pêro Pinheiro graças a Deus, tudo quanto é Europa vira consoladamente a lembrança para nós, para o dinheiro que receberam adiantado, muito mais para o que hão-de cobrar no termo de cada prazo e na obra acabada, ele é os ourives do ouro e da prata, ele é os fundidores dos sinos, ele é os escultores de estátuas e relevos, ele é os tecelões, ele é as rendeiras e bordadeiras, ele é os relojoeiros, ele é os entalhadores, ele é os pintores, ele é os cordoeiros, ele é os serradores e madeireiros, ele é os passamaneiros, ele é os lavrantes do couro, ele é os tapeceiros, ele é os carrilhadores, ele é os armadores de navios, se a vaca que tão dócil se deixa mungir não puder ser nossa, ou enquanto nossa não puder vir a ser, ao menos deixá-la ficar com os portugueses, que em pouco tempo estarão a comprar-nos, fiado, um quartilho de leite para fazerem farófias e papos-de-anjo, Querendo vossa majestade repetir, é só dizer, avisa madre Paula. (229-230)

Ao mesmo tempo, a enumeração saramaguiana é também manifestamente uma construção imbuída de um espírito paródico e carnavalesco, pelo efeito cómico-burlesco que lhe está associado; o excesso e a provocação sempre acabam por subverter convicções, fazer sorrir ou pensar. Atente-se no desfile das estátuas de santos encomendados para Mafra, onde a enumeração está claramente ao serviço da parodia sacra, com o recurso a insinuações mais ou menos provocatórias.

A expressividade da passagem é enriquecida por vários procedimentos estilísticos, do registo irónico à construção anafórica. Afinal, na perspectiva baktiniana sobre a paródia carnavalesca (cf. Bakhtine, 1987: 64, passim), e na sequência de outras inversões paródicas de milagres, dogmas, sacramentos, rituais e mistérios do catolicismo, Saramago opera uma inversão do sério e do oficial, uma assumida profanação do elevado e do sagrado — uma “paródia da beatitude eterna dos santos” (Bakhtine 1987: 333) —, através do sarcasmo pretensamente demolidor da ideia de santidade que essas estátuas simbolizam:

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À frente, por serem de maior grandeza corporal e portanto lhes caber justa capitania, vão S. Vicente e S. Sebastião, ambos mártires, embora do martírio daquele não se veja outro sinal que a simbólica palma [...]. Logo a seguir vêm as damas, três graças preciosas, a mais bela de todas Santa Isabel Rainha da Hungria, que morreu na idade de vinte e quarto anos apenas, e depois Santa Clara e Santa Teresa, mulheres muito apaixonadas, que em fogo interior arderam, é o que se presume das suas acções e palavras, quanto mais presumiríamos se soubéssemos de que é feita a alma das santas. Quem bem chegado vem a Santa Clara é S. Francisco [...]. Se este é o lugar que realmente melhor conviria a S. Francisco, por ser, de todos os santos que vão nesta leva, o de mais feminis virtudes, de coração manso e alegre vontade, também em lugar certo vêm S. Domingos e Santo Inácio, ambos ibéricos e sombrios, logo demoníacos [...]. É evidente, para quem conheça estas polícias, que S. Francisco vai sob suspeita. Mas, nisto de santidades, há-as para todos os gostos. Quer-se um santo dedicado ao trabalho da horta e ao cultivo da letra, temos S. Bento. Quer-se outro de vida austera, sábia e mortificada, avance S. Bruno. Quer-se ainda outro para pregar cruzadas velhas e reunir cruzados novos, não há melhor que S. Bernardo. Vêm os três juntos, talvez por parecenças de rosto, talvez porque as virtudes de todos, somadas, fariam um homem honesto […]. (Saramago 1982: 319-320)

As enumerações abarcam também o tema da comida, em registo frequentemente de denúncia (da pobreza dos humildes), mas também de tonalidade grotesca, quando refere a refeição pantagruélica de sua majestade; ou, noutra passagem, a “caganeira tão geral” que se abateu sobre os trabalhadores de Mafra, fruto da má alimentação (cf. 287). Assim, ao assistir à celebração festiva de mais um auto-de-fé no Rossio, o povo satisfaz-se com pouco; já a D. João V, nem o “churrasco” da carne humana dos condenados lhe retira apetite, bem visível diante da variedade da mesa da Inquisição:

E sendo o calor tanto, vão-se refrescando os assistentes, com a conhecida limonada, o geral púcaro de água, a talhada de melancia, que não seria por irem morrer aqueles que se consumiriam estes. E se o estômago pede recheio mais substancial, não faltam aí os tremoços e os pinhões, as queijadas e as tâmaras. E se o estômago pede recheio mais substancial, não faltam aí os tremoços e os

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pinhões, as queijadas e as tâmaras. El-rei, com os infantes seus manos e suas manas infantas, jantará na Inquisição depois de terminado o auto de fé, e estando já aliviado do seu incómodo honrará a mesa do inquisidor-mor, soberbíssima de tigelas de caldo de galinha, de perdigões, de peitos de vitela, de pastelões, de pastéis de carneiro com açúcar e canela, de cozido à castelhana com tudo quanto lhe compete, e açafroado, de manjar-branco, e enfim doces fritos e frutas do tempo. Mas é tão sóbrio el-rei que não bebe vinho, e porque a melhor lição é sempre o bom exemplo, todos o tomam, o exemplo, o vinho não. (Saramago 1982: 51)

Um dos tópicos que mais concentra a zombaria sarcástica do narrador saramaguiano é a descrição dos rituais marcados pelo protocolo, como inversão paródica de uma sociedade rigidamente hierarquizada. O formalismo excessivo desses rituais têm automática correspondência no efeito ridicularizador das enumerações da voz narrativa. Assim, por exemplo, quando o rei visita a rainha para a necessária ‘função’ semanal:

Que espere. Por enquanto, ainda el-rei está a preparar-se para a noite. Despiram-no Os camaristas, vestiram-no com o trajo da função e do estilo, passadas as roupas de mão em mão tão reverentemente como relíquias de santas que tivessem trespassado donzelas, e isto se passa na presença de outros criados e pajens, este que abre o gavetão, aquele que afasta a cortina, um que levanta a luz, Outro que lhe modera o brilho, dois que não se movem, dois que imitam estes, mais uns tantos que não se sabe o que fazem nem por que estão. Enfim, de tanto se esforçarem todos ficou preparado el-rei, um dos fidalgos rectifica a prega final, outro ajusta O cabeção bordado, já não tarda um minuto que D. João V se encaminhe ao quarto da rainha. O cântaro está à espera da fonte. (13).

A um excesso responde o narrador de Saramago com outro excesso. O narrador saramaguiano não suporte este abuso de ‘continências’. Trabalhando no açougue em Lisboa, Baltasar assiste à cena do cerimonial da entrega do barrete cardinalício, associa o poder temporal e o intemporal, pois quase tudo se passa “entre os degraus do altar e os degraus do trono” (279):

[...] ver chegar o cardeal D. Nuno da Cunha que vai receber o chapéu das mãos de el-rei, acompanha-o o enviado do papa numa liteira toda forrada de veludo carmesim com passamanes

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de ouro, dourados também os painéis, e ricamente, com as armas cardinalícias de um lado e do outro, traz um coche de respeito, que não leva ninguém dentro, só o respeito, mais uma estufa para o estribeiro e para o secretário doméstico, e também o capelão que leva a cauda quando a cauda tem de ser levada, e vêm dois coches castelhanos a deitar por fora capelães e pajens, e à frente da liteira doze lacaios, que somando a isto tudo os cocheiros e liteireiros é uma multidão para servir um cardeal só, quase íamos esquecendo o criado que lá vai adiante com a maça de prata, lembrou a tempo, feliz povo este que se regala de tais festas e desce à rua para ver desfilar a nobreza toda, que primeiramente foi a casa do cardeal buscá-lo, depois o vem acompanhando até ao paço. (84)

A cena prolonga bastante mais, com a pintura dos gestos codificados pelo rígido protocolo para esta cerimónia, numa prosa marcada pela enumeração e pela ironia, e terminando no litúrgico “Te Deum” e no desabado do narrador: “[...] louvado seja Deus que tem de aturar estas invenções” (85).

Ao mesmo tempo, a enumeração saramaguiana é forma discursiva enfática de acentuar a crítica social, através do uso de uma técnica que gera o efeito de vertigem ou de saturação, propondo através dela a visão de um mundo desequilibrado, falho de harmonia e de justiça. A 22 de Outubro de 1730, justamente quando el-rei faz anos, tem lugar a cerimónia da sagração da basílica de Mafra, em interminável cerimonial religioso a que assiste quer a fidalguia em lugar destacada, quer o povo anónimo, mais afastado, naturalmente:

Não se descrevem tantas maravilhas, Álvaro Diogo não viu tudo, Inês Antónia tudo confundiu, Blimunda foi com eles, parecia mal não ir, mas não se sabe se sonha, se está acordada. Eram quatro da manhã quando saíram de casa para apanharem um bom lugar no terreiro, às cinco formou a tropa, ardiam archotes por toda a parte, depois começou a amanhecer, bonito dia, sim senhores, Deus cuida bem da sua fazenda, agora se vê o magnífico trono patriarcal, ao lado esquerdo do pórtico, com as suas cadeiras e dossel de veludo carmesim, com guarnições de ouro, o chão coberto de alcatifas, um primor, e numa credência

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a caldeirinha e o hissope, mais os restantes instrumentos, já se armou a procissão solene que dará a volta à igreja, elrei vai nela, atrás os infantes e a fidalgaria, conforme as suas precedências, mas o principal da festa é o patriarca, benze o sal e a água, atira água benta às paredes, porventura não foi tanta quanta devia de ser, ou não cairia Álvaro Diogo de trinta metros daqui a poucos meses, e depois vai bater por três vezes com o báculo na porta grande do meio, que estava fechada, às três foi de vez, é a conta que Deus fez, abriu-se a porta e entrou a procissão, pena temos nós de que não entrem Álvaro Diogo e Inês Antónia, e também Blimunda, apesar do nenhum gosto, veriam as cerimónias, umas sublimes, outras tocantes, umas de derrubar-se prostradamente o corpo, outras de sublimar-se aceleradamente a alma [...]. (350-351)

É óbvia a tonalidade ridicularizadora de todo o cerimonial da sagração da basílica, ritual religioso destituído de significado para o narrador saramaguiano, que insiste na sua minuciosa descrição enumerativa com o intuito de dessacralizar, pelo excesso e pelo risível, toda a linguagem verbal e gestual desta festa religiosa:

[...] por exemplo, estar o patriarca escrevendo com a ponta do báculo, em montes de cinza dispostos no pavimento da igreja, os alfabetos grego e latino, parece mais obra de bruxedo, eu te talho e retalho, do que ritual canónico, como é também o caso de toda aquela maçonaria que além está, ouro moído, incenso, cinza outra vez, sal, vinho branco numa garrafa de prata, cal e pó de pedra numa bandeja, uma colher de prata, uma concha dourada, sei lá que mais, não faltam hieroglifos, gatimanhos, passos e passes, para lá e para cá, óleos santos, benzimentos, relíquias dos doze apóstolos, doze, e nisto se passou a manhã e grande parte da tarde [...] bastam-lhe os gestos compassados da mão, de cima para baixo, da esquerda para a direita, o anel faiscante, os ouros e os carmesins resplandecentes, as alvas cambraias, o retumbar do báculo sobre a pedra que veio de Pêro Pinheiro, lembram-se, vede com ela sangra, milagre, milagre, milagre, aquele foi o último gesto, tirar o calço, retirou-se o pastor com o séquito, as ovelhas já se levantaram, a festa continuará, oito são os dias da sagração e este é o primeiro. (351-352)

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Fig. 3 – Extra-texto da Basílica de Mafra (Prado, 1751)

Como se constata abundante e eloquentemente, a enumeração saramaguiana não se confunde com a enumeração caótica, meramente ilustrativa ou decorativa. Este tipo de aglomeração de elementos não é comparável a um “estilo de bazar” (Spitzer 1955: 240 e 295 e seguintes);8 nem muito menos se confunde com a fútil e elegante coquetterie, ditada pela “paixão do pormenor”, do requinte e do ornamental, dos refinamentos ou do luxo (cf. N’Diaye 1987).

Definitivamente, em Saramago, a enumeração não significa atracção pelos pequenos mundos dos pormenores, da profusão e do acessório ou de horror ao vazio, tão típico da estética barroca, do rococó e de outras tendências posteriores, como a prosa de Marcel Proust. Em MdC, a enumeração partilha da mesma funcionalidade crítico-ideológica de re-visão da História — é preciso repetir, pelo excesso, as circunstâncias dos trabalhos e dos dias, para que fique gravado na memória: “[...] é causa da sua reiteração não consentir que esqueçamos” (Saramago 1982: 239).

8 Recorde-se, entre outros trabalhos de diversos autores, o mesmo Leo Spitzer consagrara um estudo sobre La Enumeración en la Poesia Moderna.

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Assim, a opção saramaguiana constitui uma forma de sublinhar o importante através do excesso; de realçar a injustiça através da denúncia das desigualdades; de chocar o leitor através do contraste entre os detentores do poder e os que são objecto directo da sua exploração, de acordo com a ideologia marxista. Numa palavra, a enumeração não surge como virtuosismo retórico, mais ou menos vistoso, mas antes como construção grávida de sentido. O aparente furor do pormenor e do ornamental não revela miopia de visão, mas antes uma forma crítica de percepcionar o mundo, movida por uma ética de compromisso e de denúncia.

Afinal, é no pormenor e no infinitamente pequeno, nos detalhes aparentemente insignificantes (de uma acção, de uma personagem ou de uma multidão, de um cenário ou de um objecto) que tantas vezes se compõe a real imagem de um quadro, se esconde a ligação significativa entre os elementos e se revela a verdade das coisas. É precisa a acumulação de detalhes para realçar a impressão do conjunto. Ao contrário do que se poderia pensar, a adição de pormenores não obnubila a visão, antes revela o que poderia passar despercebido — os pormenores espelham a vida em toda a sua intimidade, inteireza e realismo.

Insista-se, a enumeração equivale a um modo de percepção e de representação do mundo. “Deus está nos pormenores”, ou nos detalhes, diz a conhecida frase atribuída ao designer e arquitecto alemão Ludwig Mies van der Rohe. Há quem duvide da paternidade da afirmação e evoque a formulação “le bon Dieu est dans le détail”, atribuída a Gustave Flaubert. Uma coisa é certa, Saramago reescreveria a frase, talvez deste modo bem mais laico: a verdade está nos pormenores. Até porque o citadíssimo aforismo já conheceu também a variante: “the Devil is in the details”. Mais do que defesa do perfeccionismo, a frase pode ser lida como apologia do detalhe.

A impressão de amontoado caótico de várias enumerações pode espelhar uma certa visão da vida e do mundo (mundo em desordem, mundo-às-avessas, etc.). Neste sentido, a enumeração, aparentemente desordenada, tem uma certa lógica, ao expressar uma vida sem sentido, violentamente desumanizada, atravessada pela falta de valores (igualdade, fraternidade, solidariedade, etc.). E quando o narrador escreve o contrário, invectivando as atitudes e a mundividência do tonto monarca, não esconde uma ironia corrosiva:

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O mundo está de uma tal harmonia, que parece, ao menos nesta sala, reflexo desse espelho de perfeição que é o céu. Cada gesto aqui feito é nobre, porventura divino na sua gravidade e pausa, e as palavras dizem-se como partes duma frase que não tem pressa de acabar nem motivo para acabar-se. (278)

Por outras palavras, veiculando esta mundividência, a escrita de Saramago denuncia uma sociedade escandalosamente sumptuária, ao mesmo tempo que idealiza um mundo mais igualitário e harmónico, sem hierarquias e falsidades, um mundo assente no poder da verdade e do amor, do conhecimento e do sonho, afinal a utopia da modernidade marxista.

Por conseguinte, a breve análise ilustrativa precedente comprova a ideia de que a enumeração não se reduz a um mero artifício retórico-estilístico vazio de sentido, a uma acumulação repetitiva típica da enumeração barroca. À imagem das amplas funcionalidades cometidas à descrição,9 longe de se confinar a uma mera função informativa ou decorativa (estética) sobre as personagens, o espaço e o tempo, a enumeração saramaguiana comporta uma função mathésica — de valorização de saberes específicos —, nem sempre separável de uma função de atestação ou mimésica, criadora do efeito de real.

Ao mesmo tempo, a enumeração saramaguiana comporta uma função semiósica ou hermenêutica, ao contribuir para a construção do sentido, através do fornecimento de informantes e índices (retrospectivos e prospectivos), na conhecida terminologia de Barthes, fundamentais para o trabalho da interpretação. Deste modo, a singularidade da enumeração saramaguiana impede-a de ser vista como um estático ou gratuito ornamento barroco; ou de desempenhar uma função dilatória em relação ao desenvolvimento da diegese.

Em síntese, a enumeração saramaguiana integra-se dinamicamente no programa de re-leitura crítica e paródica da história do Portugal joanino, operando assim como estratégia de coesão e de reforço semântico-ideológico. Na pena do narrador do Memorial do Convento, é preciso ver para crer; é imperioso sublinhar como forma de realce; é necessário o excesso sumptuário de uma época através do excesso descritivo e pictórico. É também desta dimensão representativa e mimética que se constrói o memorial aos humilhados e ignorados da História.

9 Cf. Hamon 1993 e Gervais-Zanninger 2001: 83-96.

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Mulher e utopia em José Saramago – a representação da Blimunda em Memorial do Convento

Burghard Baltrusch

“Deus quando quer, não precisa de homens, embora não possa dispensar-se de mulheres”

(Saramago 1982: 17)

Em geral, a obra de José Saramago não cultiva discursos, modelos ou estruturas patriarcais. Ao contrário, criou um elenco inumerável de figuras de mulheres fortes, sábias, donas da sua sexualidade e serenamente superiores aos seus parceiros masculinos, sejam elas protagonistas ou figuras secundárias. Pensemos só na Gracinda Mau-Tempo de Levantado do Chão, que impõe a sua vontade ao esposo, o que o narrador comenta com um “Já não há quem segure as mulheres” (Saramago 1980: 310). Ou na Lídia de O Ano da Morte de Ricardo Reis, cuja coerência abala os privilégios de género e de classe nos quais se apoia o heterónimo protagonista. Ou na Maria Sara da História do Cerco de Lisboa que, invertendo a distribuição tradicional dos papéis dos géneros, orienta o protagonista na sua procura de uma nova perspectiva sobre a História. Ou naquele duplo Joana Carda e Maria Guavaira d�A Jangada de Pedra, onde o risco de Joana Carda divide o mundo entre o espaço patriarcal e um mundo novo regido pela

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heterogeneidade das mulheres (cf. A. P. Ferreira 2007), enquanto a meada de Maria Guavaira simboliza a origem e o tecer deste novo tempo. Ou na Maria de Magdala d’ O Evangelho segundo Jesus Cristo, na mulher do médico cego em Ensaio sobre a Cegueira, etc. Em geral, as figuras de mulheres na obra de Saramago podem ser vistas como representação de “estratégias de subversão de qualquer uma lei fundamentada na hegemonia do significante” patriarcal (A. P. Ferreira 2007: 98), e ao qual se contrapõe uma significação nova, fundamentada na “jouissance ou fruição poética” (ibid.), chamemo-la feminina ou materna. A questão é, até que ponto se estará a construir aqui uma idealização ou uma utopia?

Não pretendo questionar aqui a coerência das figuras femininas na obra de Saramago, dentro de uma estratégia de subversão daqueles discursos de poder que privilegiam os mitos de paternidade e de racionalismo humanista sobre a linguagem poética ou o inconsciente. A questão que coloco vai dirigida ao problemático, e talvez inevitável, essencialismo que estas figuras ainda possam estar a esconder. Ou seja, pergunto-me até que ponto se estão a repetir estereótipos da mulher ou até que ponto ainda se apresentam resquícios de uma estética e de um discurso androcêntricos.1 Em relação à obra saramaguiana, faltam ainda estudos que enquadrem a respectiva representação da mulher neste espaço escorregadiço que vai desde o antiquíssimo desejo masculino de fixar a mulher numa identidade estável e estabilizadora (cf. Owens 1985), até às tentativas contemporâneas de extinguir a diferença de género nos sistemas (auto)representativos do sujeito.2 As seguintes citações ilustram esta discrepância. A primeira provém de um clássico modernista na sua avaliação das figuras de mulheres inventadas por homens, enquanto a segunda representa uma perspectiva mais actual, ampla e heterogénea sobre a escrita de autoria feminina na segunda metade do século XX:

1 Uma primeira versão, em alemão, deste trabalho foi publicada em Lange & Smolka (2000: 171-191); outra, em língua portuguesa, actualizada e substancialmente aumentada, na Luso-Brazilian Review (2012, 2, 207-231), a cujos editores agradeço a licença concedida para poder, revisar e actualizar, novamente, este estudo.2 Cf. por exemplo Irigaray 1990, ou também certas correntes ‘pós-feministas’ actuais, embora estas sejam contraditórias entre si.

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1. “some of the most famous heroines [...] represent what men desire in women, but not necessarily what women are in themselves” (Woolf 19). 2. “Unlike the masculinist sublime that seeks to master, appropriate, or colonize the other, I propose that the politics of the feminine sublime involves taking up a position of respect in response to incalculable otherness” (Freeman 1995: 11).

Este estudo centrar-se-á na figura de Blimunda, porque Memorial do Convento pode ser considerado um dos romances mais emblemáticos na obra do Nobel português, completamente canonizado no contexto da narrativa portuguesa moderna, e sobre o qual já se elaboraram mais de duas dezenas de manuais de apoio à leitura em português, destinados ou ao ensino secundário ou ao universitário. Além disso, a Blimunda já foi caracterizada, em numerosas ocasiões, como “personagem única na literatura portuguesa” (Reitor 1999: 188) ou “talvez a mais fascinante figura feminina da ficção de Saramago” (Berrini 1998: 147). Porém, todas estas leituras institucionalizadas ou evitam uma análise da questão do género ou perpetuam velhos clichés (tal como o ‘eterno feminino’, por exemplo). Também para a maioria dos respetivos estudos académicos ainda é parcialmente válido o que Luís de Sousa Rebelo deixou escrito em 1983 no seu prólogo ao Manual de Pintura e Caligrafia:

A originalidade de Saramago neste livro [...], na fusão da cultura popular e erudita e na extrema subtileza da sua escrita, passou praticamente desapercebida à grande maioria da crítica. [...] esta surdez singular a um discurso tão cheio de ressonâncias da nossa tradição literária e oral, onde se misturam os ecos e as fórmulas da crónica, do sermão e da poesia lírica, não deixa de ser inquietante. [...] É difícil encontrar-lhe precursores. (22-23)3

A esta apreciação da originalidade da escrita saramaguiana devemos acrescentar ainda o tratamento da questão do género e da representação da mulher, especialmente no contexto da literatura escrita por homens.

3 Cf. também Venâncio, embora não incida na questão do género: “Ainda hoje, passados mais doze anos, não existem os aprofundados estudos que ele ali sugeria: o dos pontos de fratura com as escritas do passado, o do reatamento da arte de contar ibérica.” (2000: 68).

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Em Memorial do Convento (cit. MdC), o trabalhador Manuel Milho conta uma história alegórica, sempre à noite, durante o transporte de uma enorme pedra para as obras do convento, a “mãe das pedras”, de Pero Pinheiro a Mafra. A história termina com uma afirmação libertária e de aparente desconstrução do género: “homem e mulher não existem, só existe o que forem e a rebelião contra o que são, e a rainha declarou, eu Rebelo-me contra o que sou” (Saramago 1982: 255).

Em sentido figurativo, a história trata, também, de uma viagem iniciática ao mundo da submissão das mulheres às imposições ideológicas e normativas de uma sociedade classista e patriarcal, inserida na grande narrativa da libertação do ser humano que representa MdC: uma rainha visita um ermitão em busca de uma resposta à sua ânsia de saber como se pode ser mulher sem ter que ser, simultaneamente, rainha. A mensagem dialéctico-materialista e a figura de uma rainha autocrítica e revolucionária, que se quer liberar dos estereótipos da sua classe social, demonstram, de maneira paradigmática, como a questão do género na obra de Saramago sempre se encontra inserida num contexto político-ideológico. As/Os protagonistas dos seus romances estão sujeitos a um programa ético-político concreto (no qual representam uma crítica da sociedade/cultura), dão-nos a entender que o processo revolucionário tem de ser construído no interior do sistema de repressão e assumem, inevitavelmente, uma certa cumplicidade com o próprio sistema. Neste sentido, a mensagem da parábola de Manuel Milho podia ser, também, uma adaptação (atualizadora) da célebre consignação de Simone de Beauvoir, “on ne nait pas femme : on le devient” (1950: 13), indicando-nos que a emancipação das personagens do romance fica, afinal, inconclusa.

Contudo, é importante notar que esta mulher-rainha, que toma a iniciativa revolucionária, fica relegada a uma história dentro da história de MdC. Isto é extensível ao conjunto da obra de Saramago, na qual a representação do processo histórico da emancipação das mulheres ou é uma metonímia (cf. Ferreira 225), ou é uma alegoria (Walter Benjamin) da experiência de libertação de uma coletividade humana que as transcende. Por isso, a parábola de Manuel Milho, com final aberto, será contada no contexto de uma viagem iniciática de um grupo de homens (e de classe operária).4

4 A história acaba sem se averiguar “se o ermitão chegou a fazer-se homem e se a rainha chegou a fazer-se Mulher”, ao que João Pequeno reage perguntando: “Como é que um boieiro se faz

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De uma forma exemplar, em MdC o par Blimunda-Baltasar representa uma transgressão sociocultural que ultrapassa o seu tempo. Blimunda toma parte nas decisões, tem consciência da sua participação e da importância do seu trabalho e torna-se ateia durante a sua procura de Baltasar. Ela age e reage respondendo ao instinto, embora também se mantenha dentro de certos padrões imagéticos: usa o sangue da perda da virgindade para marcar, qual sacerdotisa pagã, uma cruz sobre o peito do homem, com os dedos médio e indicador, que também são usados nas bênçãos dos sacramentos; quando acorda, precisa cegar as suas capacidades videntes comendo pão, enquanto em jejum vive o mundo num estado de clarividência sobrenatural, o que possibilitará a obtenção das vontades, o combustível mágico que faz voar a passarola. Estes elementos fazem de Blimunda a alegoria de uma sabedoria telúrica e cósmica, segundo a qual tudo se transforma, seja a realidade material ou as vontades imateriais das pessoas.5

Contudo, alguns estudos mitificam-na, contrariamente ao propósito crítico e ateu da narrativa, tratando de salvar uma suposta mensagem cristã:

Blimunda tem a pureza de alma da Virgem Maria. A Virgem é cheia de graça e Blimunda é cheia de vontade. (Reitor 1999: 187)

Ao jejuar, Blimunda resgatou Baltasar e, com ele, a alma do povo português. (ibid.: 189)

Completo, o nome Blimunda de Jesus aponta para uma fraternidade primitiva, metonimizada, principalmente, na relação com Baltasar, perfazendo o sincretismo que une o cristianismo inicial à bruxaria do insigne feiticeiro. E é sob esta perspectiva que sobressai o lugar de espírito santo. O espaço ocupado por Blimunda na trindade é o da revelação, porque desvelador das mentiras dos homens. (Villardi 1992: 660)

Chama a atenção que a imensa maioria dos estudos sobre MdC continuam a obviar o facto de Blimunda se inspirar numa personagem Real, uma circunstância que foi indicada já em 1996, paralelamente, por Ana Paula Arnaut e Giulia Lanciani (cf. também Caragea 2003 e A. P. Arnaut 2006). Embora a documentação seja escassa e todavia mal aproveitada, as fontes

homem, e Manuel Milho respondeu, Não sei. Sete Sóis [...] disse, Talvez voando” (Saramago 1982: 264).5 A retenção da vontade de Baltasar, no momento da sua morte, também se apresenta como uma variante da fertilidade telúrica, como se fosse uma alegoria da maternidade e da própria vida.

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históricas, que Saramago reelaborou, oferecem aspectos contextualizadores importantes. O modelo da Blimunda era Dorotheia Maria Roza Brandão Ivo, oriunda de Lagos, que se casou em 1724 com o comerciante francês Pierre Baptiste Pedegache, uma mulher que já chegou a ser mitificada pelos seus primeiros cronistas. A sua figura salta à fama em 1738, quando outro cidadão francês, o viajante Charles Fréderic de Merveilleux, publica as suas Mémoires instructifs pour un voyager dans les divers états de l’Europe, nas quais relata que a “Madame Pedegache” conseguia

ver o corpo humano, bem como o dos animais por dentro e outrossim o interior da terra a uma grande profundidade [...] Existe em Lisboa e nos arredores um grande número de poços que foram abertos por indicação desta mulher, que garantia onde e a que profundidade se encontrava a água abundante [...] e sempre se verificou com exata precisão qualquer das suas previsões [...] O mesmo direi em relação à faculdade que tem esta senhora de ver no corpo humano as obstrusões que se formam nas partes nobres ofendidas quando as pessoas se desnudam na sua presença (apud Chaves 1984: 162-165).6

Porém, a recepção deste fenómeno a nível europeu ainda não foi estudado. A modo de exemplo, podemos deixar constância que a tradução ao alemão da obra de Merveilleux (Lehrreiche Nachrichten für einen Reisenden in verschiedene europäische Staaten) se realiza ainda no mesmo ano da sua

6 Também na Descrição da Cidade de Lisboa (1730), o autor anónimo relata detalhadamente as habilidades sobrenaturais de “uma rapariga portuguesa que […] nasceu com uns olhos que bem pode dizer-se de lince; possui desde a mais tenra idade o dom de ver no interior do corpo humano bem como as entranhas da terra. Aparentemente os seus olhos são como os do comum dos mortais, apenas muito grandes e verdadeiramente belos. Ela vê no corpo humano os abcessos e outras incomodidades e muitas vezes fica indisposta por ver o corpo das pessoas atacadas de doenças venéreas. Ela vê a formação do quilo, sua distribuição e distingue a circulação do sangue. Nunca se engana, em mulheres grávidas de mais de sete meses, no sexo do fruto que trazem no seu ventre. A sua vista penetra a terra no lugar onde há nascentes que ela descobre a uma profundidade de trinta ou quarenta braças, sem recurso a vara; diz com precisão o curso da água, a profundidade a que se encontra a nascente e distingue as cores e variedade das camadas de terra que existem sob a superfície. Este dom maravilhoso só o usufrui enquanto está em jejum; contudo, já lhe aconteceu depois da sesta, ter momentos de visão mais penetrante do que de manhã e então ter visto nos corpos através dos trajos o que ordinariamente não descobria através da pele. Estes momentos felizes são, porém, muito raros. [...] O Rei [D. João V] e os homens entendidos estão convencidos que não há impostura nestas manifestações e tanto assim é que Sua Majestade lhe fez mercê, antes dela casar, do dom, que não é muito vulgar em Portugal, e do hábito de Cristo para seu marido [...]” (apud Chaves 1984: 47-48).

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publicação na França. Em 1772, o Abbé Roubaud relata a história de Dorotheia Maria Roza no Mercure de France e, em 1777, os seus dotes hidroscópicos até serão debatidos na Introduction aux Observations sur la Physique, sur l’Histoire et sur les Arts da Academia de Ciências em Paris, que só suspendeu um encontro já marcado por não se poder financiar a viagem. As suas faculdades geoscópicas são referenciadas, um ano mais tarde, na Minerologia Cornubiensis de William Pryce e, em 1817, a sua história ainda será apresentada como assunto de grande atualidade no Edinburgh Magazine (vol. II), onde é apresentada como um “female Esculapius.” A partir do ano seguinte, e até finais do século XIX, esta história empregar-se-á, até, como referência destacada em numerosos textos sobre o mesmerismo, também chamado magnetismo vital (cf., por exemplo, Passavant 1837: 80).

Indivíduos, dos quais se dizia terem poderes semelhantes, e que não tinham a sorte de se encontrar sob protecção régia, foram normalmente perseguidos pelo Santo Ofício, o que, curiosamente, não acontecia com Dorotheia Maria Roza. A Descrição da Cidade de Lisboa refere ainda como perde a “sua singular faculdade” nas mudanças de quarto de lua (apud Chaves 1984: 48), oferecendo um outro paralelismo com Blimunda. No seu livro Amusement periodique (1751), o escritor Francisco Xavier de Oliveira, o Cavaleiro de Oliveira, um crítico da religião e dos costumes do seu tempo, cuja efígie foi queimada num dos últimos auto de fé que se celebraram em Portugal, afirma ter conhecido pessoalmente essa mulher e ter presenciado algumas das suas façanhas (apud Caragea 2003: 110).

A figura de Blimunda representa, assim, uma transcriação mitificadora de uma mulher portuguesa real do século XVIII, cuja fama se estendera rapidamente por toda a Europa. Saramago nem sequer precisava de sincretizar as fontes, uma vez que estes, na sua grande maioria, coincidem até nos detalhes (cf. Caragea 2003). Também o enorme interesse científico (cf. Bach 1810: 205) e parapsicológico (cf. [Anónimo] 1845: 197), que a Mme Pedegache suscitou ao longo dos séculos XVIII e XIX, favoreceu a construção da personagem, uma vez que confirma a sua polivalência como figura tanto histórica como também paranormal ou sobrenatural.

Entre os muitos detalhes históricos documentados, embora por vezes inverosímeis, que Saramago aproveita ao longo do MdC para transformá-los em mitos e alegorias, a Doroteia Maria Roza Ivo e a passarola talvez sejam os mais emblemáticos dentro do seu discurso revolucionário. A intenção

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não é só uma desconstrução da imagologia histórica através daquilo que o autor denominou “reinvenção da História”, centrando-se em aspectos ou pessoas que a historiografia tradicionalmente silenciou e fazendo valer um impulso ético e uma utopia social. Além da revisitação crítica da imagologia histórica, dá-se, também, uma revalorização do marco androcêntrico do tempo histórico:

[...] a História é e sempre foi escrita pelos vencedores porque uma história escrita pelos vencidos seria completamente diferente. E mais, a História é escrita de um ponto de vista masculino, se o fosse de um ponto de vista feminino também seria completamente diferente. (Saramago & Silva 2008: 367)

Com a sua tentativa de desideologização e de reescrita, tanto ética como irónica, da História e dos seus auto- e heteroestereótipos, MdC constrói uma percepção e designação intencional da mulher como Outro e, simultaneamente, um sublime feminino.

Neste contexto, a estética de recepção joga um papel decisivo: a realidade e o valor do mundo humano são iluminados, questionados e ironizados a partir de distintas perspectivas, incluindo o fantástico, o mítico e o utópico. A citação de Marguerite Yourcenar na epígrafe do romance relega a “epistème” (Foucault), a estrutura cognitiva desta realidade, ao enigmático, ao impossível: “Eu sei que caio no inexplicável quando afirmo que a realidade, esta noção tão flutuante, o conhecimento mais exacto possível das coisas, é o nosso ponto de contato e a nossa única via de acesso às coias que ultrapassam a realidade” (Yourcenar & Galey 1980: 60, trad. minha). Esta ideia desconcertante — no sentido de quanto mais nítida for a percepção, mais irreal se torna a realidade — exemplificar-se-á, depois, na forma de representação dos dois casais antagónicos: D. João V / D. Maria Ana Josefa vs. Baltasar / Blimunda. A minúcia detalhada e barroca da descrição do casal real — dos seus pensamentos, sentimentos e sonhos — contrasta com a dignidade atemporal e a economia severa da relação do encontro de Blimunda e Baltasar.7 Cumprindo o anexim da epígrafe, o/a leitor/a sentirá a relação do primeiro par como artificial e quase irreal, enquanto a dos segundos adquire, apesar dos poderes sobrenaturais

7 Neste sentido, cf. também a função da enumeração em Martins, neste volume.

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relatados, uma aura de imediato e de naturalidade. Porém, a naturalidade e espontaneidade no relacionamento de Blimunda e Baltasar conduz, também, a noções de idealização e estereotipização, tal como se deduz da continuação da já referida citação de Yourcenar, que Saramago não incluiu na epígrafe: “O dia, no qual saímos de uma certa realidade muito simples, fabulamos, caímos na retórica ou no intelectualismo morto” (ibid.: 60, trad. minha). Neste sentido, seria inevitável que alguma “retórica” ou algum “intelectualismo morto” também acompanhassem, ainda que seja em segundo plano, a mise en scène de Blimunda.

Para a análise do discurso que constrói a figura de Blimunda e da representação da mulher na obra de Saramago podemos partir, então, de duas caracterizações concretas:

1. Em MdC, Blimunda responde à pergunta de Baltasar, como ela soube que Sebastiana Maria de Jesus, sua mãe, queria saber o nome dele, quando a levaram a ser açoitada durante o auto de fé: “Sei que sei, não sei como sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizeste, vieste e não perguntaste porquê” (Saramago 1982: 56). Os poderes sobrenaturais fazem dela um ser mítico mais do que humano e, assim, despertam a curiosidade de Baltasar. A frase é o contraponto libertário da promessa institucional que, logo no início de MdC, deu Frei António de S. José ao rei D. João V: “Sei, não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais que responder” (Saramago 1982: 14). O que num caso é desmascarado como mentira pela ironia do próprio narrador, torna-se ritual pagão e sacralização profana no outro. Blimunda aparece, até, como uma espécie de oráculo da verdade autoral, impedida de ser questionada, ironizada ou relativizada.8 Saramago procura proteger a aura misteriosa e mítica de Blimunda da dogmatização, que implicaria a sua sucessiva destruição, e é por isso que a comunicação entre Blimunda e Baltasar funciona, basicamente, à margem da linguagem.9

8 Saramago cultiva esta aura do misterioso também nos paratextos (cf. por exemplo Saramago & Reis 1998: 107).9 Cf. também a dicotomia conceitual do silêncio “expressivo” vs. “repressivo” em Grossegesse 1999: 71 e seguintes.

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2. Além desta caracterização literária e indirecta, encontra-se nos paratextos, produzidos pelo próprio autor, uma segunda caracterização da mulher, mais directa e ideologicamente marcada:

No caso dos meus romances, os personagens femininos são aqueles que eu mais quero, que eu prefiro. Os homens, nesses romances, são sempre, ou quase sempre, não diria pobres diabos, mas gente menor... [...] A força está nas mulheres... Claramente nas mulheres. Isto não é uma atitude feminista, deve-se ao facto de eu crer que elas são realmente fortes, que têm muito para dar. E porque eu gosto muito delas... Acho que, para não cair na frase [...] do Aragon, aquela famosa “la femme est l´avenir de l´homme” — que é uma coisa mais vazia do que à primeira vista se possa pensar ou dizer —, eu penso que elas têm mais autenticidade e mais generosidade que nós. Valem mais que nós, homens. Na verdade, daquilo que é substancial e essencial na vida, aprendi pouco com homens e aprendi muito com as mulheres. Não por idealizações. É o ser humano inteiro, aquilo que elas são... Bom, algumas, eu sei, não são nada disto... (Saramago & Viegas 1989: 19)

A contradição fica em evidência: De facto, idealizam-se as mulheres (“o ser humano inteiro”) e cria-se um mito do feminino que em MdC acaba por alcançar uma forma tanto aitiológica (Blimunda perde os seus dons “quando muda o quarto da lua”, Saramago 1982: 78), como também antropogónica (Blimunda capta e conserva as vontades dos moribundos) e adquire, até, uma forma cosmogónica, uma vez que Blimunda é identificada com a própria terra (cf., por exemplo, ibid.: 357). A autointerpretação, que Saramago nos oferece, alude a uma experiencia imediata da realidade através de uma consciência mítica, ou seja, a uma representação pré-literária da mulher. A realização literária do mito, porém, separa a imagem do pensamento, a experiência da reflexão. E o pensamento pós-mítico reduz a narração primária do mito e conceitualiza-a de maneira auto-reflexivo através do símbolo. Por isso, dá-se em Saramago uma constante preocupação por desideologizar (“isto não é uma atitude feminista”) e por desidealizar (“não por idealizações”), o que contrasta com uma confiança quase absoluta na superioridade universal da mulher (“o ser humano inteiro”). Contudo, a sua literarização em MdC torna este discurso relativizador mais difuso, tal como acontece noutra interpretação, posterior, que Saramago fez da sua personagem:

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Essa senhora [Blimunda] fez-se a si própria. Nunca a projectei para ser assim ou assim... Foi no processo da escrita que a personagem se foi formando. E ela surge, surgiu-me, com uma força que a partir de certa altura me limitei a... acompanhar. Aquele sentimento pleno da personagem que se faz a si mesma é a Blimunda. Mas, é curioso, só no fim me apercebi de que tinha escrito uma história de amor sem palavras de amor... Eles, o Baltasar e a Blimunda, não precisaram afinal de as dizer... E no entanto, o leitor percebe que aquele é um amor de entranhas... Julgo que isso resulta da personagem feminina. É ela que impõe as regras do jogo... Porquê? (sorriso) Porque é assim na vida... A mulher é o motor do homem. (Pausa) Se você vir, os meus personagens masculinos são mais débeis, são homens que têm duvidas, são personagens masculinos com complexos... As mulheres, não.” (Saramago & Avillez 1991)

Nesta personagem que se “fez a si própria” podemos reconstruir a idealização pré-literária da mulher, cuja identificação telúrica persistirá, até, na ópera Blimunda de Azio Corghi, cujo título fora proposto pelo próprio Saramago:

For example, when the Passarola rises in the air the composer inserts between the links of the madrigal chorus a Brazilian folk song (from Father Bartolomeu’s native land), Ofulû lorêlê ê [Song of Oxalá]: a song of African provenance and totemic character which symbolizes the reproductive power of nature and adapts well to the association proposed by Saramago between the land and the female body (“Terra, mia Terra, ti riconosco”, Act Two, Scene X). (Seminara 1999: 170)

Em MdC, o mito pré-literário da mulher aparece como a saudade de uma imagem subconsciente, não reflexiva, irracional, unitária e poética do mundo, perante uma civilização racional, logocêntrica e patriarcalmente diferenciada. Assim, a mitopoese de Saramago, que transforma a mulher em alegoria da terra, corre o risco de ser malentendida como uma alegoria falogocêntrica (Derrida). O jogo de forças entre os diferentes níveis da oralidade, fingidos através da “omnisciência periodicamente limitada” (Prevedo 1984: 40), dos excursos metanarrativas e metalinguísticos e do processo de reescrita da História reproduz, de uma forma literariamente

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complexa, o contraste entre a polissemia infinita da écriture e a parole autoritária e semanticamente restritiva (Derrida 1967, 64). Embora a “especificidade da escrita se produza devido à ausência do pai” (Derrida 1972: 86, trad. minha), podemos observar em MdC uma diegese oralizante, com a sua parole paternal omnipresente, que revela que “o pai duvida da e vigia sempre a escrita” (ibid.: 64, trad. minha).10 Vejamos somente 3 exemplos do âmbito do próprio romance:

1. Na ordem do procedimento representativo dos pares antagónicos, MdC parte sempre da figura masculina, que é a primeira que se introduz, respeitando, assim, a hierarquia social tradicional. 2. Dentro do respectivo modo de representação da relação dos géneros, as vozes narrativas partem, igualmente, da perspectiva masculina hierarquizante (aristocracia–proletariado, homem–mulher; embora estes também estejam a transmitir valorizações mediante o emprego de ironia e escárnio, referindo-se ao casal real, e, posteriormente, mediante marcas de dignidade e sublimidade, ao referir-se a Blimunda e Baltasar).3. Entre as apresentações dos casais (cap. 1 e caps. 4-5) encontra-se intercalado um capítulo que encena a relação desigual dos sexos no século XVIII, através da transição do carnaval à quaresma (Saramago 1982: 35-47). As motivações e excessos de ambas festividades confundem-se de tal maneira que as libertinagens carnavalescas se reflectem nas luxúrias hipócritas das procissões de penitência, compostas exclusivamente de homens que nelas participam por masoquismo para o “gáudio” sádico das mulheres. É a única vez no ano que a mulher é livre, diz-nos o narrador, e evoca uma bacanal carnavalesca, denunciando ou simplesmente deixando-se levar pelos mais variados adjetivos estereotípicos da mulher — histérica, lasciva, luxuriosa, vampírica (Saramago 1982:

10 Em relação a esta supervisão paternal, pensemos também nas concepções narratológicas saramaguianas que sucessivamente foram substituindo o narrador pelo autor (cf. Saramago & Reis 1998: 13, 97s) ou, até, o enorme número de paratextos que, ao longo dos anos, têm vindo a condicionar, retroactivamente, a recepção da obra. Assim, desde o início da publicação dos Cadernos de Lanzarote em 1994 (em continuação dos trabalhos ensaísticos desde 1986) os comentários auto-reflexivos, que Saramago tem vindo a realizar, tornaram-se cada vez mais filosóficos incluindo, até, resquícios da ideia de uma obra de arte total (cf. Baltrusch, “A ‘nova Mensagem’ ...”, neste volume).

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29-30). Com a submissão momentânea, o homem garante-se a continuidade da hierarquia patriarcal para o resto do ano. O relato emocional da mulher falsamente liberta — que, podendo ir sozinha à igreja durante a quaresma, aproveita para, “entre duas igrejas”, das sete que há de visitar, “encontrar-se com um homem” (Saramago 1982: 30) — é contraponteado com a história de João Elvas sobre a mulher grávida assassinada e misoginamente despedaçada (Saramago 1982: 46). Blimunda funciona como contraimagem destas mulheres presas nos costumes da sociedade e, apesar disso, também será reduzida a alegoria e envolvida em contradições. Ela é aparentemente livre para escolher o homem que deseja, ainda que lho tivesse sido sugerido pela ligação espiritual com a mãe e da sua autoridade matriarcal (Saramago 1982: 109-110).

Talvez possamos dizer que presenciamos aqui resquícios involuntários de uma heteroestereotipia da mulher, isto é, de um mito feminino condicionado por uma estética masculina.

Lembremos, por exemplo, a controvérsia que se deu dentro dos estudos feministas em torno às teses de Jacques Lacan. Lacan partia de um sujeito que não é autónomo mas profundamente dividido e postulou a função simbólica do falo como significante primário que representaria a sua união perdida com a mãe (cf. Lacan 1966). A partir dos anos 80, Luce Irigaray criticou esta concepção como pensamento “falocêntrico”, ao qual opôs a contraimagem de uma necessária genealogia feminina (1993). Blimunda e a mãe têm esta relação genealógica que Irigaray denominaria pré-edipal (ibid.: 13-14), marcada por uma comunicação pré-verbal. Nos termos de Kristeva (1989), tratar-se-ia de uma forma comunicativa que antecede as funções semióticas (lógicas) e simbólicas (sintácticas) da língua do Pai, as quais seriam transformados numa reconstruída genealogia de mulheres com habilidades que ultrapassam os códigos patriarcais.

Contudo, uma análise ginocrítica de Blimunda tem de partir de uma questão com a qual também foram confrontadas as hipóteses de Irigaray e Kristeva: Em que medida o romance MdC estará a reduzir a Blimunda (e com ela a comunicação das mulheres) a uma expressividade pré-verbal? Ou seja, até que ponto estará a colocar a comunicação das

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mulheres fora da linguagem, uma vez que Blimunda fala muito pouco ao longo do romance? Ou será que esta forma de expressão/comunicação silenciosa pretende prevenir a função predicativa ou paterna da linguagem, a fim de “tornar possível uma linguagem diferente” das “condições auto-referenciais” do discurso patriarcal (Irigaray 1990: 135, trad. minha)? Tudo indica que Saramago estava à procura de uma nova linguagem fora dos domínios patriarcais, através de uma expressão poética que nos pudesse mostrar “what is heterogeneous to meaning (to sign and predication): instinctual economies, always and at the same time open to biophysiological sociohistorical constraint” (Kristeva 1989: 146).

Mas o problema reside na retórica de mitificação de uma Blimunda misteriosamente perfeita: na sua beleza enigmática enquanto jovem, nos seus olhos constantemente a mudarem de cor, nos seus poderes sobrenaturais, na sua sabedoria natural ou intuitiva, na sua capacidade de omnivisão, antevisão e de entendimento profundo das coisas. Os mitos femininos ocidentais costumam ser o legado de uma historiografia patriarcal e androcêntica e raras vezes são produzidos e transmitidos por uma genealogia feminina (cf. Larrington 1992). Neste sentido, também a ‘feminidade’ de Blimunda poderia estar deduzida, em última instância, de “um papel, uma imagem, um valor que os sistemas de representação masculinos impõem às mulheres” (Irigaray 1990: 138, trad. minha), com outras palavras, uma estética condicionada por uma imagologia androcêntrica.

Vejamos mais exemplos: O motivo da virgindade de Blimunda está impregnado de uma simbologia patriarcal, uma vez que a persignação com o sangue da desfloração não lhe confere somente uma aura telúrica e panteisticamente ancestral: “Sangue de virgindade é água de batismo” (Saramago 1982: 78), afirma ela, mas a referência implícita à castidade (Blimunda é virgem enquanto Baltasar já esteve com outras mulheres), à união com o esposo/Deus, ao privilégio do Deus-macho de fecundar a terra paradisíaca e, indiretamente, à tradicional demonstração do poder patriarcal, são contextos imagológicos que acompanham este acto de pesada simbologia, por muito que Saramago trate de apagar os vestígios com outras marcas alegóricas. Também os poderes “naturais” de Blimunda, o seu status de continuadora de uma linhagem quase-matriarcal de mulheres,

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portadoras daquilo que Saramago chama o “outro saber” (ibid.: 65), deificam-na. Tal como a música, à qual ela está tão intimamente associada, Blimunda representa uma espécie de ‘mãe nossa que na terra estais’, elevada a categoria de um subversivo contradiscurso histórico.

Mas a contextualização da sua personalidade maravilhosa, e teluricamente divina, nem sempre consegue evitar o paralelismo com imagens forjadas por uma estética patriarcal, como é o caso da Virgem Maria: Blimunda “engravida espiritualmente recebendo dentro de si a vontade de Baltasar” (cf. Real 1995: 57 e Saramago 1982: 357). Porém, o modelo estereotípico da mulher passiva é invertido, dado que é Blimunda quem deseja e controla o acto de receber, contraposto à concepção imaculada. Além disso, Baltasar será, de certa forma, sepultado dentro de Blimunda no final do romance. Mas esta inversão do tópico da passividade feminina, que funciona, à primeira vista, como crítica ao modelo canonizado, também pode ser visto como renovação de outro estereótipo que é o acto de redenção do homem pela mulher, ou, como uma reescrita do “eterno feminino” goethiano. Esta possibilidade de leitura essencialista e tradicionalista foi rejeitada pelo próprio Saramago, numa afirmação que contradiz outras anteriores (cf. Saramago & Viegas 1989 ou Saramago & Avillez 1991):

Não gostaria nada de que a minha atitude perante as mulheres, tanto as de carne e osso como as que vão aparecendo nas histórias que conto, fosse de veneração, no sentido quase religioso em que a palavra muitas vezes é usada. […] De todo o modo, quero deixar claro que não me entusiasmam nada certos lugares-comuns como o ‘eterno feminino’ ou ‘sonho inspirador’, que mais me parecem reflexos ‘marianos’. (Saramago in Berrini 1998: 240)

Apesar da intenção antifundacional aqui expressa, persiste uma certa tendência utópica e de idealização da mulher que se consolida nos romances posteriores a MdC e que reaparece, por exemplo, na descrição da relação entre Maria Madalena e Jesus em O Evangelho segundo Jesus Cristo (Saramago 1991: 283).

Muito provavelmente, não foi intenção de Saramago construir um novo mito da mulher. Mas além dos aspectos imagológicos, estéticos e semióticos subjacentes que nos indicam uma mitopoese involuntária ou inconsciente, também chama a atenção o facto de a grande maioria das e dos intérpretes de MdC ter praticado uma recepção de Blimunda que aponta

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nesta direcção. Um exemplo seria Miguel Real, um crítico com bastante projecção desde os anos 90. Em Narração, Maravilhoso, Trágico e Sagrado em MdC de JS, editado na colecção Cadernos “O Professor” da Caminho, o que lhe garante uma divulgação e influência importantes, deduz-se de MdC uma “teoria positiva do sagrado” (Real 1995: 76), de índole teleológica: “corpo, sonho, procissão e milagre constituem-se como elementos de um composto cuja unidade e cujo sentido exprimem [...] a previsível finalidade para que caminha o mundo [...].” (ibid.: 83). Segundo Real, Blimunda transforma-se, até, numa “nova Nossa Senhora“ (95), radicalizando-se, assim, todos os indícios de idealização que se possam deduzir do romance. É certo que o estado e a igreja do século XVIII desenvolveram uma “praxe protocolar [...] para dominarem a sociedade” (84), porém, no romance desideologiza-se esta praxe num primeiro momento, para que esta, depois, possa ser reconstruída no espaço secular através da “força natural” de Blimunda (Saramago 1982: 129), revestida por uma aura profana. Esta apologia tanto directa quanto indirecta de Blimunda produz-se mediante analogias pagãs e cristãs. Ela faz parte da trindade terrestre, representando nela a parte do espírito santo (o elemento mais abstracto) e o padre Bartolomeu Lourenço até adverte que “talvez seja ela a que mais perto estaria de ser parte numa trindade não terrenal” (ibid.), enquanto Domenico Scarlatti chega a identificar Blimunda e Baltasar com o casal desigual Vénus e Vulcano (ibid.: 168).

O facto de Blimunda falar pouco — e que induz a dúvida, se se trata do estereótipo cultural-patriarcal do homem eloquente e da mulher falta de eloquência ou da tentativa de construir uma nova linguagem sem condicionamentos androcênticos —, este silêncio tão “expressivo” (Grossegesse 1999: 71) contrasta com um dos postulados mitopoéticos do narrador de MdC: “Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita” (Saramago 1982: 115). E quando Blimunda comunga a hóstia sagrada em jejum irá, depois, sentar-se com Baltasar debaixo de uma árvore, lembrando-nos, pela força da imagística, a Eva arrastando Adão para o pecado original. Naturalmente, assistimos aqui a uma subversão da imagem sagrada, ao revelar Blimunda a profanidade da essência da hóstia. Porém, o marco imagístico, profundamente patriarcal, permanece. Saramago costuma explicar esta cumplicidade inevitável com o sistema com a sua educação na memória cultural católica, apesar de se ter tornado ateu. Mas em relação a Blimunda, concretamente em relação à

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sua recepção pela crítica, estas cumplicidades com a imagologia instituída pelo poder patriarcal poderiam ser entendidas como uma debilitação da força e coerência subversivas e, em última instância, da pretensão do texto de construir uma imagem igualitária entre homens e mulheres.

Estes e outros lugares comuns da imagologia patriarcal pesam como um fardo rico sobre a idealidade da relação igualitária e utópica entre Blimunda e Baltasar. Por isso, devíamos discordar de Real de que seja oportuno estilizar Blimunda como “a mulher liberta do futuro” ou a “nova mulher” (Real 1995: 66). E também não é tão evidente que Blimunda possa ser caracterizada como expressão de uma “poética” que transcenda por completo as “projecções patriarcais de santa e bruxa”, com a intenção de construir uma “utopia feminina fundamentada no telúrico, diametralmente oposta àquela da ‘mulher santa’, inserida numa ideologia de estado católico-conservadora” (Grossegesse 1999: 75).

Por um lado, existe a possibilidade que esta não tenha sido a intenção de Saramago, se tomarmos em conta as rectificações feitas neste sentido na entrevista dada a Berrini em 1998. E, em segundo lugar, porque na retórica e na imagística de uma idealização, cuja construção discursiva MdC não consegue evitar, sobrevivem co-significados de um campo simbólico logocêntrico, religioso e patriarcal. Apesar de toda a tentativa de “mudar a ordenação dos factos” da História (Saramago & Silva 2008: 368), e da história das mulheres em especial, e apesar de todas as inovações discursivas, MdC mão chega a neutralizar por completo que continuam a fixar “a mulher numa identidade estável e estabilizadora” (Owens 1985: 85-86).

Neste sentido, é também elucidativo contextualizar estes processos na tentativa de identificação entre autor e personagens literárias que Saramago começou a desenvolver em diferentes paratextos desde meados dos anos 90:11 “Também eu [...] sou a Blimunda e o Baltasar de Memorial do Convento, em O Evangelho segundo Jesus Cristo não sou apenas Jesus e Maria Madalena, ou José e Maria, porque sou também o Deus e o Diabo que lá estão” (Saramago 1997a: 195). A isto acresce a aversão do autor a permitir adaptações cinematográficas destes dois livros em concreto (embora o tenha permitido no caso de A Jangada de Pedra e do Ensaio sobre a Cegueira), uma reluctância que se deve a uma razão muito específica:

11 Cf. também Baltrusch, “A nova Mensagem...”, neste volume.

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[...] enquanto eu às vezes digo, no caso da adaptação ao cinema, não quereria ver as caras das minhas personagens, no caso do teatro não me importo, isso não me choca. Mas provavelmente eu não aguentaria ver a Madonna, para dar um exemplo bastante disparatado, a representar a Blimunda ou a Maria Madalena, num filme. (Saramago & Reis 1998: 106)

Por um lado, nota-se aqui uma resistência à iconização da ficção e do próprio imaginário. Mas também se entrevê o medo do criador de o seu (contra-)mito — que, em certa medida, também é um discurso de poder alternativo — poder ser profanado por um dos meios exegéticos mais poderosos da actualidade e cuja reprodutibilidade técnica estaria a ameaçar a aura do valor poético da figura de Blimunda. A rejeição de uma quimérica Madonna como incarnação de Blimunda não está isenta de uma certa ironia, se tivermos em conta que a cantora norte-americana fora apontada, em várias ocasiões, como uma daquelas artistas que intencionalmente desestabilizaram e mudaram a iconografia feminina. Precisamente o seu “revamping of styles” (Schultz 1992: 89-91) representaria um hibridismo alheio à formação ou manutenção da aura do mito ou da obra de arte desde uma perspectiva fundacional ou essencialista. Apesar das numerosas tentativas de relativização, Saramago hesita, inconsciente e/ou inconfessadamente, em desprender-se completamente das tentações de uma mitogonia feminina.12

A transcendência do mito também se poderia observar a partir da recepção iconográfica da figura de Blimunda em diferentes paratextos, a qual todavia não tem sido analisada de forma pormenorizada. Além das imagens de mulheres presentes nas capas de diferentes traduções,13 um dos exemplos mais importantes seria a adaptação do romance no libretto e na encenação da ópera de Azio Corghi. Após a estreia no (teatro) Scala de Milano (20 de maio de 1990), surgiram os mais variados paratextos que, como acontece num estudo musicológico de Graziella Seminara, perpetuam uma epistemologia androcêntrica: “Corghi and Saramago […]

12 Neste sentido, também é notável que o autor destaque, no contexto da sua obra, precisamente as figuras de Blimunda e de Maria Madalena, um facto que poderia indicar que nelas se encontra resumida a sua imagem (ideal) da mulher.13 É também interessante notar a tradição androcêntrica que se manifesta nas traduções que se comercializam nos EUA e no Reino Unido, onde o título antepõe o nome de Baltasar ao de Blimunda (Baltasar and Blimunda).

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make of Blimunda and of all women the depositary of men’s dreams” (1999: 171) ou, também, o carácter mítico-telúrico de Blimunda (ibid.: 170). Até o facto de a cantora Kathia Lytting, escolhida para representar a Blimunda na estreia, ter estado grávida, e ter dado, posteriormente, este nome à sua filha, contribuiu para inúmeras interpretações mitificadoras nos paratextos.14 Outros indícios relacionados com a recepção iconográfica seriam as formas de representação de Blimunda nas adaptações dramáticas de MdC,15 além de muitas outras formas de adaptação.

Existem, assim, múltiplas evidências de que a idealização de Blimunda e a mitopoese de um modelo feminino utópico são constitutivos da reinvenção discursiva que pratica a obra saramaguiana e que persiste, também, na recepção. Conforme a já referida sobreposição subversiva do autor ao narrador, esta instauração de um ideário pessoal como novo mito estaria relacionado com a desmitificação das instâncias narrativas.16 Porém, é interessante notar que estas técnicas narrativas, e também as do teatro épico, não se aplicam à construção da figura de Blimunda, cujo caráter não evolui, mas sim ao resto das personagens. Contra uma certa corrente da criação literária portuguesa, “toda encharcada de monólogos” (Lourenço 1978: 17-18), a obra de Saramago procura tornar difusas as fronteiras entre as instâncias autoral, narradora e leitora, como se houvesse um constante diálogo transtextual e transdiscursivo. Este propósito reforça a aspiração de descrição totalizadora do romance (Saramago & Reis 1998: 138) com uma mensagem política veiculada através da confabulação de ética e estética.17

14 Cf. a reportagem de Maria João Avillez em O Público (9/5/1991): “O escritor olha Kathia Lytting no palco e emociona-se: «Ela tem o temperamento e a voz duma diva... É uma wagneriana...». A soprano é bela e jovem e sedutora. Há um ano, quando pela primeira vez cantou «Blimunda», estava grávida. Viveu com tanta intensidade o seu personagem que disse a si própria que se lhe nascesse uma filha teria o mesmo nome. «Assim foi, assim é: nasceu uma menina, chama-se Blimunda...», recorda, sorrindo, José Saramago” (Saramago & Avillez 1991).15 Sirva como exemplo a encenação móvel que ao longo do ano 2007 esteve em cena no próprio Convento de Mafra e na qual a Blimunda, que não conseguiu destacar entre os caracteres masculinos, ficou reduzida a valores maternais, consoladores e de redenção. Esta encenação, aliás, não estava isenta de ironia, porque a Câmara Municipal de Mafra votou ainda em 1993 contra uma proposta para que fosse atribuída a Saramago a medalha de ouro do Concelho, alegando que “estragou o nome de Mafra” e que MdC era “um livro reprovável a todos os títulos” (cf. Saramago 1994: 24).16 Cf. Saramago & Reis 1998: 97.17 Cf. também Baltrusch, “A ‘nova Mensagem’...”, neste volume.

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Entre os diferentes problemas suscitados por esta intenção est/ética, destaca-se a questão do mito feminino que a obra saramaguiana promove com grande insistência: Seja uma tentativa de representação do feminino, ou a alusão a um feminino irrepresentável, ou a um sublime feminino, sempre se está a partir de uma noção que evoca aspectos essencialistas. A representação da mulher no imaginário literário saramaguiano oscila entre a idealização trovadoresca e a caracterização materialista do neo-realismo, sempre á procura de um novo humanismo. Enquanto categorização (involuntária), esta utopia pós-moderna expressa tanto uma profunda admiração (“valem mais que nós, homens”) como também a confissão pessimista da derrota do androcentrismo (“os homens são [...] gente menor”). Como idealização universalizante e categórica representa, porém, um problema de recepção estética e histórica: a obra de Saramago costuma questionar as categorias da historiografia tradicional — por exemplo a oposição entre natureza e cultura (como no caso das forças sobrenaturais de Blimunda), entre família e trabalho (como no caso do trabalho de Blimunda e Baltasar na “passarola”), etc. Mas enquanto a historiografia feminista tem insistido,18 em paralelo com o conjunto dos estudos de género, que uma suposta ‘essência feminina’ ficou proscrita e que a noção ‘a mulher’ foi substituída no século XX pela perspectiva plural ‘das mulheres’,19 Saramago continua a evocar noções que poderiam ser considerados essencialistas, por exemplo, através da boca do Padre Bartolomeu de Gusmão: “estou que a mulher é uma só no mundo, só múltipla de aparência, por isso se escusariam outros nomes” (Saramago 1982: 145), impondo à Blimunda uma racionalidade paternal ‘ilustrada’:

18 Cf. Françoise Thébaud que fala da necessidade de uma “história da história das Mulheres”, cujas “tensões [...] se encontram neste propósito de afirmar, simultaneamente, a vontade de explorar os territórios do feminino — e até «a consciência feminina» — como também a necessidade de uma história relacional que possa contribuir à reescrita da história geral” (1998: 56, trad. minha).19 Tomando em conta a sua diversidade de condições sociais e históricas das mulheres “o singular deve ser proscrito, por causa da sua conotação com uma essência feminina, de uma figura quase atemporal e mesmo de uma condição imutável”. Além disso, “«a» Mulher desvaneceu, assim, para dar passo «às» Mulheres na sua diversidade, uma diversidade de condições sociais, de idades, de religiões..., uma diversidade de contextos históricos” (Thébaud 1998: 94, trad. minha).

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[…] e tu és Blimunda, diz-me se precisas de Jesus, Sou cristã, Quem o duvida, perguntou o padre Bartolomeu Lourenço, e rematou, Bem me entendes, mas dizer-se alguém de Jesus, crença ou nome, não é mais que vento da boca para fora, deixa-te ser Blimunda, não darás outra resposta quando fores perguntada. (ibid.)

Irigaray até diria que “mulher” é um nome ao qual não se pode conferir identidade, uma ideia que também guia as tentativas de Freeman quando trata de definir um “sublime feminino”:

At stake in the notion of the feminine sublime is the refusal to define the feminine as a specific set of qualities or attributes that we might call irreducible and unchanging. [...] The appeal to a «feminine sublime» is not to a specifically feminine subjectivity or mode of expression, but rather to that which calls such categories into question. (1995: 9)

As teorias que assentaram a noção do sublime no século XVIII (Burke, Kant e Schiller) partem de uma polarização dos géneros e de um ideário dualista da dominação da natureza que reflectem as posições estereotipadas associadas a homens e mulheres através das antinomias cultura-natureza, alma-corpo, racionalidade-emoção, força-fraqueza, etc. O feminino, associado por Kant à beleza e à natureza, não teria acesso ao sublime que, por sua vez, se caracterizaria pela capacidade de superação do belo, do corpo e da natureza, ergo, o princípio masculino. Existem numerosos estudos que confirmam como a interacção entre racionalização e imaginação do sublime ao longo dos séculos se tornou uma alegoria das relações dos sexos no sistema patriarcal (cf. por exemplo Freeman 1995: 72 ou Zylinska 1998 e 2001). Embora as valorizações absolutas tenham sido relativizadas, a codificação estética dos géneros de Kant continua a funcionar, até, na obra de um autor tão insuspeito de querer perpetuá-las, como o seria Saramago — um exemplo seria a dicotomia estabelecida entre o Pe. Bartolomeu Lourenço (como alegoria da razão) e Blimunda (como alegoria da natureza).

Apesar disso, a construção de Blimunda também inclui o elemento decisivo que Freeman (1995), e outras autoras, evocam como condição da existência de um sublime feminino: Uma relação ética e responsável para com o outro (cf. Zylinska 2001, 13-14), na qual o sujeito não busca a

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identificação ou a categorização do outro, ao aceitar, pura e simplesmente, a sua diferença (cf. também Cornell 1991: 48). Esta reavaliação do sublime (patriarcal), que os estudos de género empreenderam nas últimas duas décadas, parte, em muitos casos, da noção ou do acto da dádiva. Há uma definição da dádiva como condição do sublime em The Gift of Death de Jacques Derrida que é perfeitamente aplicável à figura de Blimunda:

On what condition does goodness exist beyond all calculation? On the condition that goodness forget itself, that the movement be the movement of the gift that renounces itself, hence a movement of infinite love. Only infinite love can remove itself and, in order to become finite, become incarnated in order to love the other, to love the other as a finite other. (1996: 50-51)

Esta importância da morte como premissa da vida e do amor está presente em muitas afirmações e actos de Blimunda e, também, nas suas poucas intervenções com carácter filosófico, como aquela que profere quando, à noite, ficou a observar, com Baltasar, as recém-chegadas estátuas dos santos no convento: “O pecado não existe, só há morte e vida, A vida está antes da morte, Enganas-te, Baltasar, a morte vem antes da vida, morreu quem fomos, nasce quem somos, por isso não morremos de vez” (Saramago 1982: 331). A consciência que Blimunda tem da morte está legitimada de uma forma “singular” e “insubstituível” pela experiência que adquiriu ao capturar as vontades dos mortes. Em relação a isso, podemos colocar novamente em paralelo as continuações das respectivas passagens em The Gift of Death e no MdC:

This gift of infinite love comes from someone and is addressed to someone; responsibility demands irreplaceable singularity. Yet only death or rather the apprehension of death can give this irreplaceability, and it is only on the basis of it that one can speak of a responsable subject, of the soul as conscience of self, of myself, etc. We have thus deduced the possibility of a mortal’s accession to responsibility through the experience of his irreplaceability, that which an approaching death [...] gives him. But the mortal thus deduced is someone whose very responsibility requires that he concern himself not only with objective Good but with a gift of infinite love, a goodness that is forgetful of itself. (Derrida 1996: 50-51)

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No que diz respeito ao amor que Blimunda sente por Baltasar, a força da sua singularidade tende a apagar o próprio sujeito. Como já acontecera com a sua sabedoria ‘natural’ e telúrica, a origem desta singularidade justifica-se através de uma genealogia feminina e maternal — como se deduz da continuação das suas reflexões na cena no convento:

E quando vamos para debaixo da terra, e quando Francisco Marques fica esmagado sob o carro da pedra, não será isso morte sem recurso, Se estamos falando dele, nasce Francisco Marques, Mas ele não o sabe, Tal como nós não sabemos bastante quem somos, e, apesar disso, estamos vivos, Blimunda, onde foi que aprendeste essas coisas, Estive de olhos abertos na barriga da minha mãe, de lá via tudo. (Saramago 1982: 331)

Assim, a experiência da sua insubstituibilidade, como premissa da sua responsabilidade altruísta para com o outro, provém-lhe destes três acontecimentos fundamentais: da sua capacidade de visão (signo supremo da sua pertença a uma genealogia feminina), do seu amor20 abnegado por Baltasar (que também fora legitimado desde a genealogia feminina) e do contacto com a morte (da mãe e através da experiência de recolha das vontades).

Podíamos continuar a justificar, a partir deste discurso filosófico, a coerência interna da figura de Blimunda e a sua adaptação às definições de um sublime feminino e de uma genealogia de antecessoras modélicas que proporcionam os estudos de género mais recentes. Contudo, não devemos perder de vista que a sua construção continua a transportar, também, uma caracterização da mulher como “ser humano inteiro”, hipotecada com o estereótipo da ‘pureza’ feminina e da função do feminino como redenção do masculino, e nem é preciso lembrar que estes ideais perpetuam também discursos de poder históricos. No capítulo final de MdC, a própria Blimunda assume esta capacitação da mulher para salvar o mundo: “Não era raro que falando sobre isto com outras mulheres as deixasse pensativas, afinal, que faltas são essas nossas, as tuas, as minhas, se nós somos, mulheres, verdadeiramente o cordeiro que tirará o pecado do mundo” (Saramago 1982: 354), enquanto o narrador completa este discurso tão político-agitador como bíblico: “no dia

20 No sentido antiracionalista de “there are no sublime objects, only sublime feelings” (Lyotard 1993: 126).

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em que isto for compreendido vai ser preciso começar outra vez tudo” (ibid.). Cristo é aqui substituído pela mulher, entendida como entidade universal, para salvar o mundo e oferecendo um recomeço da História, supostamente liberta do patriarcalismo. Mais tarde, quando Blimunda retém a vontade de Baltasar, veremos novamente a imagem da mulher que supera a morte e cuja dádiva à humanidade é a mensagem de uma vida como fenómeno exclusivamente telúrico e sempre associado ao corpo feminino e/ou maternal. E, finalmente, é de notar, também, que a ironia, tão característica do estilo saramaguiano, nunca se aplica à figura de Blimunda.

Coloca-se, então, uma série de questões finais: Será o feminino ou, até, o sublime feminino de Blimunda “um papel, uma imagem, um valor, que se impõe às mulheres através dos sistemas de representação masculinos” (Irigaray 1990: 138, trad. minha)? Será que o discurso crítico do romance, em relação ao género, é, afinal, só uma máscara ou uma redução do feminino, tendo em conta as suas imensas diversidades e potencialidades? Ou seria excessivo esperar de um autor português, que nasceu a princípios do século XX, que lograsse uma escrita feminista, pós-colonial e pós-estruturalista, para subverter aquilo que Toril Moi denominara a “male phalogocentric logic” e que consiga “[to] split open the closure of the binary opposition and revel the pleasures of open-ended textuality” (Moi 1985: 108)?

De um ponto de vista historiográfico da literatura, continua a haver resquícios de estereótipos na construção das figuras de mulheres na obra de Saramago, embora possamos constatar um importante processo de subversão, de inovação, sobretudo em relação às obras dos restantes autores canonizados no século XX em Portugal. Há uma clara intenção compensatória e de reabilitação histórica, social e política da mulher na escrita saramaguiana que contribuiu substancialmente para a revalorização da representação da mulher na história da cultura e literatura portuguesas.21 A reencenação da

21 No contexto de estudos de referência que vão desde O Falso Neutro de Maria Teresa Horta (1985) até à crítica da historiografia literária portuguesa de Chatarina Edfeldt (2006), a revalorização da mulher, empreendida por Saramago, adquire uma importância central dentro da literatura portuguesa de autoria masculina na segunda metade do século XX. Segundo o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, “a transformação emancipatória não tem teleologia nem garantia” (1997: 238) e a sua definição de um novo socialismo utópico aproxima-se do idealismo que motivou a escrita de Saramago: “será ecológico, feminista, antiprodutivista, pacifista e antirracista. Quanto mais profunda for a desocultação das opressões e das exclusões, maior será o número de adjectivos” (ibid.).

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História em MdC constrói um sublime feminino memorável que se mantém intacto, apesar da excessiva objetivação e reificação do conceito e da alegoria da mulher que transporta o sujeito idealizado Blimunda. Não obstante, Blimunda continua a ser uma das figuras literárias femininas e uma das utopias de igualdade mais impactantes no contexto da literatura europeia do século XX — pelo menos no que diz respeito à literatura de autoria masculina.

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O Conto da Ilha Desconhecida: possibilidades imaginárias

Rosângela Divina Santos Moraes da Silva

Neste estudo objetivamos uma exegese d’O Conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago. Nossos fundamentos residem na teoria crítica do imaginário preconizada por Gilbert Durand (1997) em As Estruturas Antropológicas do Imaginário, tendo por base o “estruturalismo figurativo” (Turchi 2003: 22), no qual a imagem se constitui em potência dinâmica, haja vista a trajetória antropológica dos símbolos.

Ressaltamos que esse trajeto antropológico se define pela conexão de dois pares contrapostos, mas conciliáveis: o subjetivo e objetivo. No pólo subjetivo, sobressai a natureza humana enquanto, no outro, estão as manifestações culturais. A respectiva interligação entre esses pares dá-se a partir da relação mítica, sendo o mito aqui entendido como um sistema primordial dinâmico de imagens articuladas em três categorias do aparelho simbólico: os esquemas (“schèmes”),1 os arquétipos e os símbolos.

Nessa perspectiva antropológica, o imaginário torna-se o ponto dinâmico e equilibrante “da totalidade das imagens produzidas pelo homem” (Turchi 2003: 23). Estas imagens constantes organizam-se e potencializam-

1 Para Gilbert Durand, os esquemas prevalecem aos arquétipos, sendo estes considerados substantivações dos primeiros. Neste sentido, os arquétipos são imutáveis.

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se em duas constelações simbólicas básicas: os regimes diurno e noturno, nos quais se englobam as estruturas.2 Enquanto, no primeiro regime, estão as estruturas esquizomorfas em que se associa a dominante postural; no segundo, temos uma subdivisão das estruturas em místicas e sintéticas, sendo a primeira ligada à dominante reflexa da digestão e a segunda à copulativa.

Partindo dessas premissas teóricas, procuramos delinear algumas constelações imagéticas diurnas e noturnas com que O Conto da Ilha Desconhecida foi estruturado, tendo em vista seus desdobramentos simbólicos e referenciais míticos. Neste sentido, o respectivo conto é visto como uma reação metafísica contra a implacabilidade brutal do tempo, consequentemente da morte. Esta reação é desencadeada simbolicamente pela atitude do homem ao manter-se firme à porta do Paço Real até conquistar um barco para nele empreender uma viagem sem volta, rumo à ilha desconhecida. Para tanto, corrobora a figura ambivalente da mulher da limpeza. Esta assume para si a tarefa de acompanhá-lo naquela viagem, conduzindo-o à face de Cronos, ou melhor, a seu destino mortal.

Organização ficcional e imagética

Se tomarmos o referido conto do ponto de vista de sua estrutura narrativa, veremos que o enredo se apresenta de forma simplificada; o tempo e espaço não são bem delimitados. A história inicia-se com a inusitada postura de um homem que exige falar ao rei, à porta das petições do palácio, contrariando o costume burocrático régio delegado à mulher da limpeza de atender aos populares perguntando-lhes o que queriam. Conforme estivesse de maré, ela despachava sim ou não, pois o rei passava todo o tempo à porta dos obséquios.

Após ser recepcionado e advertido pela mulher da limpeza, o homem deita-se “ao comprido do limiar” (Saramago 1978: 10), recusando-se dali sair, enquanto não fosse recebido pelo próprio rei. Depois de ponderar

2 Ressaltamos que Durand não concebe a estrutura como Lévi-Strauss, mas semelhante ao entendido por Lupasco. Assim, estrutura é uma forma plena de sentido, que implica um dinamismo organizador. Além disso, Durand estabelece uma estreita conexão entre as dominantes reflexas às estruturas dos regimes do imaginário, valendo-se dos estudos (reflexologia) da Escola de Leningrado, tendo como ponto de apoio as teorias de Betcherev sobre os gestos humanos. Para uma melhor compreensão do assunto, ver a introdução de Gilbert Durand (1997: 20-48) e o primeiro capítulo de Literatura e antropologia do imaginário de Maria Zaira Turchi (2003, sobretudo 13-31).

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aquele comportamento insólito e as possíveis complicações dele decorrentes, o monarca dirige-se à porta do palácio e surpreende-se ao saber que aquele súdito isolente desejava um barco para ir à busca da ilha desconhecida. Embora a ideia da viagem fosse considerada estapafurdia, o rei concede-lhe o barco.

Na sequência, o homem segue rumo ao porto, recebendo o barco do capitão. No entanto, as chaves da caravela são dadas à mulher da limpeza que, após passar pela porta das decisões do palácio para nunca lá mais voltar, resolve limpar barcos dali por diante, seguindo o homem em sua última jornada. Encarregada das baldeações e dos asseios, a mulher vai à caravela, dando início às respectivas vistoria e limpeza enquanto o homem sai à procura de tripulação. Ao retornar sozinho e cabisbaixo, porque ninguém o quis o acompanhar naquela viagem, à procura do impossível, o homem diz à mulher que descanse. Os dois conversam sobre a existência da ilha desconhecida, depois sobem ao castelo da popa para comerem do farnel trazido por ele (um pão, queijo duro, de cabra, azeitonas, uma garrafa de vinho). Depois descem à coberta para dormir cada um para um lado. O homem sonha durante toda a noite. Acordam abraçados, “confundidos os corpos”. Depois, mal o sol nascera, eles “foram pintar na proa” o nome do barco e pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma” (Saramago 1999b: 39).

Eixos simbólicos

O percurso simbólico pode ser organizado em torno de dois eixos fundamentais. No primeiro, há a conquista do barco a partir da determinação heroica do homem à porta das petições. Subsequentemente, esta ação é ratificada pela mulher da limpeza que, numa determinação inexorável, decide abandonar o palácio para daquele instante passar a limpar barcos, auxiliando o homem a empreender aquela viagem, considerada por todos uma aventura humana impossível. No segundo eixo, temos o agrupamento de imagens em três níveis distintos: o rito do último banquete, a preparação onírica e o enfrentamento da morte. Após a ceia, homem e mulher descem à coberta. Entretanto, somente o homem vive a experiência da viagem onírica, tornando-se o homem do leme, do cavername-floresta. Pelo sonho, reabilita-se metaforicamente a promessa do recomeço, a continuidade

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da vida além-túmulo. Ou melhor, o cavername-floresta-casa torna-se a possibilidade simbólica da vitória sobre as teias nefastas do tempo pelo homem do leme. Neste sentido, a narrativa constitui-se em um aparato simbólico denso e complexo, em que podemos perceber um emaranhado de imagens diurnas quanto noturnas, as quais passaremos a analisar.

Imagens diurnas

Logo no início da narrativa, o esquema ascensional da verticalização faz-se presente com a figura do rei, seu poderio monárquico e sua soberania. Imagem consubstanciada no poder, na coroa e no cetro, sendo aquele soberano o indivíduo efetivamente capaz de conceder o objeto de transcendência (o barco) ao homem que bate à porta das petições do palácio. Entretanto, o comportamento daquele rei diverge-se do esperado, o que nos leva a contrapó-lo àquela imagem positiva cristalizada no imaginário coletivo, sobretudo português, do “chefe de estado” zeloso com os interesses de seu povo. Vale relembrar que o arquétipo do soberano é simbolizado caricatamente por indivíduo que adora receber obséquios, não sendo nada pragmático, cuidadoso e justo. O monarca, deste conto, somente faz o que lhe compete, enquanto soberano, quando é coagido, pressionado pela aclamação popular. Assim, podemos afirmar que, nesta conduta negligente da realeza, há uma descaracterização da luz e da elevação, condensadas “no simbolismo da auréola e da coroa”, tendo em vista que estas “seriam as cifras manifestas da transcendência”, próprias da simbólica religiosa ou política, de que aquele rei miticamente deveria dispor (Durand 1997: 151).

É interessante notar que este rei goza de todas as prerrogativas de ter o poder, mas não conota a simbologia do salvador, do messias, do enviado por Deus para estabelecer o paraíso terrestre onde reinariam a paz e a justiça. Isso se justifica pelo fato de ele (o rei), como já o dissemos, ficar sentado à porta dos obséquios, recebendo presentes e não atender aos interesses coletivos e sociais, o que ratifica a desconstrução do mito messiânico do monarca, soberando benevolente, cônscio de sua responsabilidade e função sociais. Vejamos uma passagem identificadora de respectiva ambivalência simbólica:

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À primeira vista, quem ficava a ganhar com este artigo do regulamento era o rei, dado que, sendo menos numerosa a gente que o vinha incomodar com lamúrias, mais tempo ele passava a ter, e mais descanso, para receber, contemplar e guardar os obséquios. À segunda vista, porém, o rei perdia, e muito, porque os protestos públicos, ao notar-se que a resposta estava a tardar mais do que o justo, faziam aumentar gravemente o descontentamento social, o que, por seu turno, ia ter imediatas e negativas consequências no afluxo de obséquios. (Saramago 1999b: 11)

Em suma, vemos que o monarca se apresenta sob dois aspectos matizados, evidenciando uma dualidade funcional da soberania. Ao mesmo tempo em que ele representa o arquétipo do ordenador monárquico do grupo, com prerrogativas ascensionais, do chefe político – soberano monarca – que comanda com “mão de justiça’’, ele adquire nova simbologia pela sua atitude narcisista de ficar ocupado apenas em receber obséquios, ter seus desejos satisfeitos e sua indisposição para atender aos seus súditos à porta das petições. Eis mais um exemplo dessa ambivalência:

Perante uma tão iniludível manifestação de vontade popular e preocupado com o que, neste meio-tempo, já haveria perdido na porta dos obséquios, o rei levantou a mão direita a impor silêncio e disse, Vou dar-te um barco, mas a tripulação terás de arranjá-la tu, os meus marinheiros são me precisos para as ilhas conhecidas. (Saramago 1999b: 6-17)

Essa perspectiva simbólica é ratificada e reforçada pela presença das estruturas esquizomorfas, da dominante postural de caráter diairético, pois, a soberania real é desafiada heroicamente pelo homem diante de toda a população que, em coro uníssono, clama ao rei que lhe conceda (ao homem) o barco – objeto único de que ele necessitava para fazer a viagem em busca de si mesmo e, consequentemente, de realizar sua travessia da vida para as veredas da morte. Vejamos a narrativa:

Contudo, o caso do homem que queria um barco, as coisas não se passaram bem assim. Quando a mulher da limpeza lhe perguntou pela nesga da porta, Que é que tu queres, o homem, em lugar de pedir, como era o costume de todos, um título, uma condecoração, ou simplemente dinheiro, respondeu, Quero falar ao rei, Já sabes que o rei não pode vir, está na porta dos

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obséquios, respondeu a mulher, Pois então vai lá dizer-lhe que não saio daqui até que ele venha, pessoalmente, saber o que quero, rematou o homem, e deitou-se ao comprido no limiar. (Saramago 1999a: 11).

Sob esse ponto de vista, evidencia-se um traço peculiar do projeto estético saramaguiano de que todo e qualquer assunto, fato, ideologias, preconceitos podem e devem ser passíveis de discussão, o que implica uma nova perspectiva crítica que coloca na berlinda dialética não só os fatos históricos, mas os mitos fundadores das civilizações ocidentais, a própria existência humana, os preceitos bíblicos tão profundamente enraizados na memória coletiva entre tantos outros exemplos.

Na realidade, o propósito do autor é o de contrabalançar as representações acríticas das forças hegemônicas institucionalizadas, colocando-as em cheque. Mas com que sentido e intenção, o autor faria uso desse recurso estético da desconstrução mítica, sobretudo da historiografia oficial, no contexto globalizante de sua obra? Sem dúvida, não é uma tentativa de alterar o passado, mas de recuperar, no passado, pelos elementos ficcionais, aqueles fatores prenunciadores de uma vida futura, quer no âmbito político, social, religioso, quer no plano cultural e ideológico, demonstrando “um influxo deletério das estruturas de poder do Estado e do catolicismo sobre a identidade nacional” (Praxedes 2008: 1).

Outro aspecto significativo das obras de Saramago é a construção do universo ficcional sob a ótica dos fracos, dos humilhados, dos marginalizados que surgem como massa anônima, como é o caso do protagonista da Ilha, da mulher da limpeza, do capitão portuário, da tripulação. Não nos esqueçamos de que é, sobretudo a mulher, identificada unicamente por sua função ocupada no palácio, quem joga na lançadeira o fio do discurso. Segundo Leyla Perrone-Moisés (1997), Saramago atraído, como tantos grandes romancistas, desde o século XIX, pela tarefa de fazer o inventário do mundo, mas céptico quanto a essa possibilidade, opta pela subversão individual contra a opressão das autoridades catalogadoras, pela desordem da vida contra a ordem da morte.

Tanto o homem que exige o barco quanto a mulher da limpeza representam essa subversão individual ao poder hegemônico, pois aquele enfrenta o rei exigindo-lhe o que precisa para ir ao encontro da Ilha

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desconhecida, enquanto a mulher abandona o palácio para conduzi-lo (o homem) ao seu destino. Esta mulher é o eixo condutor das ações dentro do ambiente real, cuja revelação ocorre pela fresta da porta das petições, assim como alinhava a narrativa fora daquele ambiente ao dirigir-se ao porto:

Pensou ela que já bastava de uma vida a limpar e a lavar palácios, que tinha chegado a hora de mudar de ofício, que lavar e limpar barcos é que era a sua vocação verdadeira, no mar, ao menos, a água nunca lhe faltaria. O homem nem sonha que, não tendo ainda sequer começado a recrutar os tripulantes, já levava atrás de si a futura encarregada das baldeações e outros asseios, também é deste modo que o nosso destino costuma comportar-se connosco […]. (Saramago 1999b:18-19)

Embora suavizada, essa inserção do elemento feminino na narrativa é outra referência ao regime diurno, tendo em vista que, com o desenrolar do enredo, a mulher da limpeza será associada à maré – símbolo noturno, o que retomaremos mais tarde ao abordar as estruturas do regime noturno. É a ambigüidade da simbologia da personagem feminina que permite inseri-la nos dois regimes da imagem. No caso da representação diurna, a mulher, além da limpeza, tinha também à sua responsabilidade alguns trabalhos menores de costura no palácio, como “passajar as peúgas dos pagens” (Saramago 1999b: 14). Desse ato de coser depreende-se o mito de Aracne tecendo os destinos dos seres humanos num longo tapete da vida. A transformação de Aracne pela Deusa Atena em aranha remete-nos ao isomorfismo do animal terrificante, personificado na mulher da limpeza. Sob esse aspecto, a mulher-aranha simboliza a genitora maléfica cujo filho manteve preso nos fios de sua teia. O mito, desse modo, evidencia o ato da criação, o ato da tecelagem, mecanismo divino ou demoníaco, que implica, em contrapartida, a morte.

Esse duplo aspecto, que converge no símbolo aracnídeo, exprime, metonimicamente, o poder divino, a crueldade celeste: a do destino. Isso vem reforçar a imagem da feminilidade fatal e teriomorfa, pois a mulher da limpeza é, simultaneamente, “ligadora” e senhora dos laços. Entenda-se, que nos referimos ao aspecto primordial do elemento de ligação, de caráter negativo em que “o elemento que liga é a imagem direta das ‘ligações’ temporais, da condição humana ligada à consciência do tempo e à maldição

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da morte [...]” (Durand 1997: 107). Esse simbolismo é puramente negativo, tendo em conta que a mulher da limpeza encerra “o tema da feminilidade terrível” em que “o fio é a potência mágica e nefasta da aranha, [...], da mulher fatal e feiticeira” (Durand 1997:108).

Relacionada com o ato de costurar da mulher da limpeza, surge uma outra epifania do imaginário, agora, noturno – o símbolo cíclico no trabalho que ela realiza de linha e agulha ao coser as peúgas dos pajens. Essa função de coser é retomada por ela ao verificar o estado das costuras no paiol das velas. Neste sentido, linha e agulha constituem-se em formas isomórficas do “fuso” e da roda, com as quais as fiandeiras fiam o destino, tornando-se, assim, “atributos das Grandes Deusas, especialmente de suas teofanias lunares” (Durand 1997: 321).

De acordo com Durand (1997), os instrumentos e os produtos da tecitura e de fiação são universalmente simbólicos do devir, em que o simbolismo da fiandeira deve-se ao movimento rítmico e ao esquema de circularidade. O que importa, no caso, é que o fuso e o fio, tecido e destino, pelo movimento de circularidade por eles sugeridos, tornar-se-ão talismãs contra o destino. Essa sobredeterminação benéfica do tecido evidencia seu caráter de ligação tranqüilizante, como símbolo da continuidade: “O círculo, onde quer que apareça será sempre símbolo da totalidade temporal e do recomeço” (Durand 1997: 323).

Tudo isso ratifica a importância da presença feminina no conto, sua simbologia antiteticamente valorizada, no caso, de ter ela o poder de atar e desatar o fio do destino. Ao ceder a sua cadeira de palhinha ao Rei para que ele pudesse conversar com o homem que fora lhe tirar do sossego real, a mulher aparece, mais uma vez, como manipuladora do destino humano. Ora, o fato de o rei ocupar o mesmo espaço (cadeira) destinado à mulher da limpeza, significa que todos nós estamos em condições de igualdade diante da vida e da morte. Contudo, é a morte que nos nivela equitativamente quer queiramos ou não.

Essas duas figuras rei e mulher de limpeza relacionam-se com as simbologias que Gilbert Durand propõe acerca da majestade e do poder que assenta no “chefe religioso” e ao mesmo tempo que pode conferir, através da verticalização, da projeção ascensorial a passagem de um estado para outro. O rei possui o cetro enquanto a mulher detém o gládio.

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Assim, a mulher da limpeza constitui-se em um elemento, imprescindível, de passagem entre o homem e o rei, entre a vida e a morte, consequentemente de um regime a outro, pois é ela a mediadora que abre a porta das petições, conferindo-lhe a significação, uma vez mais, de elo, de passagem de um estágio de vida para outro:

[...] A mulher da limpeza, [...], entreabria a porta das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres. [...] E por que não estás tu no palácio do rei a limpar e abrir portas, Porque as portas que eu realmente queria já foram abertas e porque de hoje em diante só limparei barcos. (Saramago 1999b: 6 e 31)

Ainda em presença do regime diurno, no cenário do porto, surgem as gaivotas e os ninhos que representam um aspecto teriomorfo dentro da narrativa. Esse simbolismo ocorre quando as gaivotas precipitam-se furiosas, de goelas abertas sobre a mulher como quisessem devorá-la. Eis a passagem em que isso se dá:

[…] ainda não tinha acabado de atravessar a prancha que ligava a amurada ao cais e já as malvadas estavam a precipitar-se sobre ela aos guinchos, furiosas […]. Não sabiam com quem se metiam. A mulher da limpeza pousou o balde, meteu as chaves no seio, firmou bem os pés na prancha, e, redemoinhando a vassoura como se fosse um espadão dos tempos antigos, fez debandar o bando assassino. (Saramago 1999b: 23-24).

Neste caso, as gaivotas, em sua agitação e crueldade devoradora reportam-nos ao símbolo eterno de Cronos, de sua face maléfica: o caminho sem retorno – a morte. O terror diante da temporalidade, da morte é aplacado pela mulher da limpeza que faz “debandar o bando assassino” com uma vassoura. Esta é o isomorfismo do gládio que é empunhado para combater o horror e o temor diante da mudança da morte devoradora sugerida pelo simbolismo animal.

Imagens noturnas

Sob o signo da conversão e do eufemismo, as estruturas místicas do regime noturno evidenciam-se nas imagens dos ninhos espalhados pelo barco, revelando a outra face de Cronos, em que os terrores humanos eufemizam-se,

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e a morte terrível torna-se morte serena: “Foi só quando entrou no barco que compreendeu a ira das gaivotas, havia ninhos por toda parte, muitos deles abandonados, outros com ovos, e uns poucos gaivotinhos de bico aberto, à espera de comida” (Saramago 1999b: 24).

A partir dessa inversão de valores do imaginário em que a antítese cede lugar à antífrase, diante do bifrontismo de Cronos, é que abordarei a imagem noturna, cuja figuração dos ninhos pode ser tomada de exemplo. Corrobora com esta representação simbólica da inversão imaginária (gaivotas-ninho) o que Bachelard afirma em A poética do espaço (2000): o ninho assim como a concha caracterizam imagens primordiais que despertam a primitividade humana. Desse modo, ele retoma a ideia de associação entre o aconchego, calor maternal que o ninho e a concha indicam — o retorno à infância, a uma realidade alada, perfeita, cósmica de que o barco (caravela ) fará a estrutura ontológica.

A associação do ninho à caravela não é aleatória, pois aquele, “como toda imagem de repouso, de tranqüilidade, associa-se imediatamente à imagem da casa simples” (Bachelard 2000: 110). No caso do conto, o barco será esta morada simples e benfazeja do homem e da mulher da limpeza. Ou seja, a caravela tornar-se-á o berço-sepulcro que o homem tanto deseja. Além disso, a partir da conquista do barco, há uma alternância entre a postural digestiva e copulativa do regime noturno da imagem. A figuração do pássaro áptero, ainda novo e sempre ninho, reforça essa alternância e que, segundo Durand (1997), deve ligar-se a um complexo sexualizado de incubação.

Neste sentido, notamos que a libido é assimilação de um impulso fundamental, intermediário entre a pulsão cega e vegetativa em que se confundem desejo de eternidade e processo temporal, ou seja, que submete o ser ao devir e ao desejo de eternidade. Se, a princípio, esse desejo de eternidade está ligado à agressividade, à negatividade das imagens terrificantes do tempo e da morte, a libido (invertendo o regime afetivo das imagens da morte, das trevas) associa-se à face agradável do tempo. Nesse caso, o “aspecto feminino e materno da libido é valorizado e os esquemas imaginários vão infletir para a regressão e, a libido, sob esse regime, transfigurar-se-á num símbolo materno” (Durand 1997: 197).

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No conto, a figura feminina desempenha essa inversão simbólica, uma vez que, nessas constelações, o processo de eufemização intensificar-se-á até a antífrase em que o grande soberano (no caso o Rei) e único do imaginário religioso da transcendência será substituído pela ambivalência da feminilidade nefasta das grandes Deusas. Estas, simultaneamente, conservam resquícios feminóides terrificantes e serão protetoras do lar, benéficas, dotadas de maternidade como ocorre à mulher da limpeza.

Sob esse aspecto, entendendo que, no regime noturno, a vida é uma face da morte, podemos confirmar o valor bem aventurado da mulher da limpeza, a virgem mãe, tão plena de bondade e aconchego diferente da mulher fatal do regime diurno. É ela, uma mulher onisciente, mulher-anjo, poderosa, conhecedora do palácio (abre as portas) e do barco (tem as chaves). Esse arquétipo da grande mãe — uma mulher materna para qual convergem os desejos humanos — liga-se, em várias culturas, ao lago, às águas, ao mar. O mar é, então, o abrigo, o elemento embalador. Na inversão dos valores diversos, as imagens aquáticas suavizam os temores e a amargura, transformando-a em embaladora e em repouso. “A água transporta-nos, a água embala-nos, a água adormece-nos, a água devolve-nos a uma mãe [...]” (Durand 1997: 234).

Tal simbologia é ratificada desde o início do conto, quando a mulher é associada à maré. Assim, as metáforas aquáticas que povoam a obra de Saramago: barco, mar, chuva, a lavagem da coberta, a água aberta do porão, enfim toda a imagística das águas é reabilitada pelo autor, submetida ao arquétipo supremo, ao símbolo da mulher. A constelação materna e aquática orienta-se pelo esquema da descida em que se dá uma realização simbólica do retorno ao ventre materno. À Grande Mãe — uma mulher materna —regressam os desejos da humanidade, o que comprova a inversão dos valores diurnos e perfeito isomorfismo dos símbolos engendrados pelo esquema da descida. Agora, o retorno à Grande Mãe vem inverter e sobredeterminar a valorização da própria morte e do sepulcro, representados pela mulher da limpeza e pelo sepulcro-berço – o barco.

Sob o isomorfismo do retorno, da morte e da morada, reúne-se o simbolismo da intimidade, isto é, o desejo de voltar ao centro, a uma raiz, o que é resgatado pela simbologia da Ilha e sua insularidade em que a ilha é sinônimo de exílio, de morte, “imagem mítica da mulher, da

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virgem, da mãe” (Durand 1997:240). Tanto o homem quanto a mulher da limpeza buscam esse retorno à infância, ao centro, ao ventre materno que analogicamente são associados à preparação para outro degrau. Ou seja, a travessia para as veredas da morte, o que evidencia o mito do eterno retorno que, ao anular a oposição entre a morte e a vida, o ser e o devir, abre caminho para uma nova imortalidade.

Os símbolos da intimidade do regime noturno são os mais expressivos neste conto. O navio-casa, a caravela-berço-fúnebre é um habitat, antes de ser meio de transporte, é uma ilha em miniatura, onde o tempo suspende o seu curso. A aproximação entre a segurança do embalar materno e o fechamento seguro do barco é um sentimento recorrente no homem que quer o barco, sendo o regime diurno da imagem combatido por ele ao se sentir íntimo de seu túmulo bem preparado e desejado. Isso constitui-se na antífrase do destino mortal. O homem domina o medo da morte ao reconciliar-se com ela.

A preparação ritualística para a conquista da eternidade tem continuidade com a noite enluarada e benfazeja. Esta traz o banquete em que se saboreia a noite e a beleza da mulher — elementos típicos do regime místico, evidenciando com isso, as sobredeterminações digestivas e alimentares. Há um rito simbólico, próprio da liturgia eucarística. Na realização do banquete: o pão, elemento primordial do alimento; o vinho-sangue ritualístico são a preparação e purificação do espírito para viver ‘outra vida’.

Em Durand (1997), o arquétipo da bebida sagrada e do vinho associa-se, no esquema místico, ao isomorfismo das valorizações sexuais e maternais do leite em que este e o vinho artificial se confundem na juvenil fruição dos místicos. O alimento e a bebida natural, mesmo que primitivos, depressa se decantam, psicologicamente falando, em bebida e alimento puros, apenas com qualidades arquetípicas e míticas: “a fantasia alimentar, reforçada pelas imagens trazidas da tecnologia das bebidas fermentadas e alcoolizadas, conduz-nos aonde vai dar a digestão” (Durand 1997: 261-262).

Outro aspecto relevante dentro do regime noturno da imagem é a presença do mito da sereia (serpente que se desdobra no final do conto como trepadeira) estando associada à partida, cuja mulher da limpeza, uma vez mais, prepara o homem do barco para fazer a travessia e conhecer

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o mundo dos mortos. O canto da sereia — divindade infernal — é de agouro do noturno místico como também a sincronia musical do noturno sintético, pois o canto é dirigido aos dois, portanto a sereia-serpente é um elo de passagem entre a vida e a morte, já que aquela, ao desdobrar-se em serpente, torna-se animal do mistério de além-túmulo, símbolo de uma revelação ou do mistério: o da morte vencida pela promessa do recomeço, ou seja, a serpente é simultaneamente guardiã, obstáculo, receptadora de todas as vias da imortalidade. Assim, a sereia-serpente ocupa um lugar positivo dentro do conto em que o herói vence a morte, pois é ela o enigma do oráculo que o destino deve vencer, ultrapassar.

O ronco da sereia, ao baloiçar das águas, resgata a dominante copulativa. Esse canto da mulher-sereia (antes anjo-condutor) encanta, seduz e leva à morte, pois é através da afinidade da música, especialmente rítmica (ronco da sereia do paquete), da dança (baloiçar das águas) das artes do fogo (acender das velas) que se explicita a constelação musical da sexualidade, perceptível na tentativa das figuras homem e mulher de se encontrarem na prática da arte do amor, de vida e de morte.

É por meio do ronco que se deflagra o movimento cíclico do ondular das águas, cuja “lua é, assim, simultaneamente a medida do tempo e promessa explícita do eterno retorno” (Durand 1997: 294), uma vez que o ato de reacender os dois cotos de velas remete-nos para isomorfismo sexual ligado ao fogo. Em se tratando do mito do eterno retorno, observa-se que há uma transformação gradual da mulher-anjo em mulher-sereia quando da descida dela e do homem do barco à coberta, o que sugere a descida ao túmulo — devidamente preparado por ela para acolhê-lo em seu eterno sepulcro-berço. É pertinente ressaltar a relação que, no conto, se faz entre a mulher, a sereia, a lua e a serpente (trepadeiras), pois a serpente é a epifania por excelência, no Bestiário da lua, do tempo e do devir agrolunar, sendo o animal que mais se aproxima do simbolismo cíclico do vegetal, o que em muitas culturas a acopla às árvores. Nesse caso, a busca do devir faz-se por símbolos da tríade agrolunar, em que os contrários se reúnem.

No conto, por exemplo, essa tríade simbólica manifesta-se pelo sonho do homem da caravela que, em seu berço-sepulcro, vê-se solitário, distante da mulher da limpeza, uma vez que a passagem para outra vida é ele quem o fará. Isso se comprova quando este herói diz aos demais tripulantes que o

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ofício de navegar em direção à Ilha Desconhecida era só para ele, revelando que para o ser humano seguir seu caminho e destino não há companhia, a viagem é única e solitária. É por isso que, ao ser abandonado pela tripulação, ele permanece em silêncio e aliviado, pois lhe restaram as árvores, as flores, os trigos e as trepadeiras (serpente-sereia) como garantias da renovação do ciclo vital. Tudo isso está metaforizado na caravela-floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, na qual, não se sabe como, começaram a cantar pássaros, o que nos remete a Bachelard que afirma ser a floresta um mistério de um espaço para “além do véu [...], ou seja, um verdadeiro transcendente psicológico” (2000: 191, cursivo nosso).

Ainda em face dessa imagística onírica, o bestiário lunar, coelho-lebre, patos, galinhas e outros animais que surgem “espalhados pela coberta” (Saramago 1999b: 34) resgatam o mito bíblico de Noé e sua arca, como metáfora do renascer periódico, da imortalidade ou da fecundidade inesgotável, enfim, da doçura resignada ao sacrifício, no rito de passagem: Além desses elementos simbólicos — garantia de renascimento — podemos entrever outros, por exemplo, as três velas triangulares quando a caravela está em alto mar, como também o brotar de inúmeras plantas, dentro do barco, que seriam transplantadas ao chegarem à Ilha.

É dentro desse contexto de devaneio noturno que ocorrerá a travessia da vida para a morte do homem do barco que, agora em seu sonho, torna-se o homem do leme, isto é, a alma que rema o barco conduzido pelo barqueiro dos infernos – Caronte:

Tinha-lhe desejado felizes sonhos, mas foi ele quem levou toda a noite a sonhar. Sonhou que a sua caravela ia no mar alto, com as três velas triangulares gloriosamente enfunadas, abrindo caminho sobre as ondas, enquanto ele manejava a roda do leme e a tripulação descansava à sombra. (Saramago 1999a: 33-34)

Neste universo onírico, revela-se “um estado de alma tão particular em que o devaneio coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito” (Bachelard 2000: 189). Com isso, a caravela sonhada remete-nos para a isomorfia da taça, cuja descida o homem do leme não deseja. O sonho, nesse caso, é uma preparação para o devir.

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Tudo isso configura a mudança de direção que a narrativa sofre a partir do sonho, em que a aceitação da morte dar-se-á pela distribuição, tanto dos tripulantes quanto dos animais, pelo homem do leme, agora barqueiro dos infernos que os dará como pagamento, isto é, serão elementos de troca para que ele (o homem) possa transcender e merecer a outra vida. Observemos a seguinte passagem:

Podeis ir-vos, disse o homem do leme, acto contínuo saíram em correnteza, primeiro as mulheres, depois os homens, mas não foram sozinhos, levaram com eles os patos, os coelhos e as galinhas, levaram os bois, os burros e os cavalos, e até as gaivotas, uma após outra, levantaram voo e se foram do barco transportando no bico seus gaivotinhos, proeza que não tinha sido comentida antes, mas há sempre uma vez. (Saramago 1999b: 37-38)

Com essa atitude, o homem do barco pela substituição sacrificial, permite, pela repetição, a troca do passado pelo futuro, a domesticação de Cronos. É por cujo “sacrifício que o homem adquire direitos sobre o destino e possui, com isso, uma força que obrigará o destino e, em conseqüência, modificara a ordem do universo segundo a vontade humana” (Durand 1997: 311).

Considerações finais

No plano do imaginário, o sonho traz a morte benfazeja, com contornos de ressurreição. O teor litúrgico e messiânico está presente nos “grãos das pequenas searas”, “das árvores de fruto”, no “coelho-lebre”, ligado à lua, cuja ambivalência simbólica se deve aproximar do cordeiro cristão, animal doce e inofensivo, emblema do messias lunar, do Filho. Entretanto, podemos inferir que ao homem compete a responsabilidade do mundo que cria, num processo de dessacralização da história divinamente legitimada. Assim, “desde que a viagem à ilha desconhecida começou que não se vê o homem do leme comer, deve ser porque está a sonhar, e se no sonho lhe aparecesse um pedaço de pão ou uma maçã, seria um puro invento, nada mais” (Saramago 1999b: 38).

Dessa forma, na tentativa de harmonizar os contrários, surge no final do conto o arquétipo andrógino na fusão dos corpos do homem e da mulher ao amanhecer no “cavername”, em que o “símbolo do filho

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conserva a valência masculina ao lado da feminilidade da mãe celeste [...]” (Durand 1997: 300). À paixão e à ressurreição do Filho liga-se a ação tripla do tempo: vida, morte e ressurreição, e ao drama alquímico, cuja referência é direta à divina trindade: Pai, Filho e Espírito Santo, sendo que a morte e a ressurreição revelam a instabilidade do presente que morre e renasce perpetuamente, isto é, a certeza do devir: o vencer a morte. Daí a prova sacrificial por que passou o homem do barco dentro do esquema agrolunar: sacrifício, morte, túmulo, ressurreição.

Assim, em sua caravela-casa, o homem do leme empreende sua descida e “pela hora do meio-dia, com a maré, a Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma” (Saramago 1999b: 62), pois todo ser humano é uma ilha em busca de si próprio, do além-mar, em busca de sua transcendência cósmica.

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O labirinto da memória: a Guerra Civil de Espanha em O Ano da Morte de Ricardo Reis

Ângela Maria Pereira Nunes

Em 1986, dois anos, portanto, após a publicação de O Ano da Morte de Ricardo Reis, Clara Rocha escreve, num artigo publicado no Diário de Notícias por ocasião do cinquentenário do início da Guerra Civil de Espanha, que era “relativamente escassa a produção literária portuguesa inspirada pela Guerra Civil de Espanha” (C. Rocha 1986: XVIII) comparativamente até com outras literaturas nacionais. Clara Rocha enuncia brevemente as razões para esta circunstância: “A censura, a dificuldade de obter o passaporte, e o mais que se sabe foram certamente as causas de uma relativ [sic] impotência para a acção e a criação nessa específica circunstância histórica e nesse particular domínio temático” (C. Rocha 1986: XVIII). Clara Rocha, que se centra neste artigo essencialmente na obra de Miguel Torga, referenciando ainda José Gomes Ferreira e autores neo-realistas, nomeadamente Manuel da Fonseca, não faz, à época, alusão a O Ano da Morte de Ricardo Reis, romance que foi primordialmente lido numa perspetiva eminentemente de parodização do universo pessoano e só num plano secundário como ‘romance histórico’.

O cinquentenário da Guerra Civil de Espanha veio, de facto, reavivar em larga escala a memória da Guerra Civil espanhola em Portugal. Artigos como o de Clara Rocha no Diário de Notícias ou de César Oliveira (1986)

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no Jornal de Letras — em que o historiador reflete sobre o papel de Jaime Cortesão na Guerra de Espanha — são exemplos do exercício de memória levado a cabo por ocasião do cinquentenário da Guerra. Em 1987, surge ainda uma antologia sobre A Guerra Civil de Espanha na Poesia Portuguesa, compilada por Joaquim Namorado, onde este refere explicitamente o papel de Portugal, num capítulo intitulado “Como uma lâmina de arrepio no sangue” (Namorado 1987: 11-14), denotando muito bem o tom de amargura ainda presente 50 anos após o início da Guerra de Espanha:

Portugal esteve no centro da conspiração contra a jovem República espanhola: primeiro, acoitando os exilados reaccionários, generais rebeldes, políticos da direita, financeiros descontentes, que se reuniam com as autoridades portuguesas, diplomatas alemães e italianos credenciados em Lisboa e enviados pessoais de Hitler e Mussolini, estabelecendo contactos com a 5.ª coluna que se organizava no interior de Espanha; depois, dando aos revoltosos toda a espécie de apoio, financeiro, em géneros alimentícios que enviava para a Andaluzia como “sobras de Portugal”, em material de guerra, desembarcado de navios alemães em portos portugueses por soldados do nosso exército, permitindo o trânsito de tropas franquistas por território nacional, criando um corpo de intervenção, os “viriatos”, comandado por oficiais do exército português no activo. O governo de Salazar participou também na farsa da “não-intervenção”, uma mascarada que serviu apenas para isolar os republicanos espanhóis, deixando as mãos livres aos aliados de Franco. Com as polícias e o exército, fechara a nossa fronteira aos que procuravam refúgio entre nós, entregando aos franquistas os que eram apanhados, muitos dos quais foram imediatamente fuzilados. (Namorado 1987: 13-14)

A memória do ano de 1936, e concretamente a memória da Guerra Civil de Espanha em Portugal, não seria, em 1983, ano da escrita de O Ano da Morte de Ricardo Reis, e como se depreende destas palavras de Joaquim Namorado, publicadas em 1987, de todo pacífica. O papel do conflito espanhol na consolidação e fascização do Estado Novo foi ao invés do papel que o Estado Novo desempenhou no conflito espanhol bastante mais evidenciado. O historiador Walther L. Bernecker, que, em 1991, aponta para a escassez de estudos sobre o papel de Portugal no conflito espanhol, expressa alguma perplexidade, mencionando a importância que o Estado Novo teve na fase inicial do alzamiento, essencialmente através da disponibilização de

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armas, alimentos e créditos (Bernecker 1991: 77-78). Muito embora, já em 1982, Arnaldo Madureira tivesse apontado, no seu estudo sobre os “Factores Externos na Consolidação do Salazarismo nos Anos Trinta”,1 para a importância do regime salazarista na vitória de Franco, não se seguiram, no imediato, estudos mais aprofundados sobre este tema. Mas se os estudos historiográficos acerca do papel de Portugal no conflito espanhol tardaram, a memória dos acontecimentos da Guerra Civil também esteve, citando a historiadora Iva Delgado, “morta” e só começa a “despertar” nos anos 90:

Quer do lado português, quer do lado espanhol, a lembrança destes acontecimentos [da Guerra Civil de Espanha] continua viva nas populações. Esteve “morta” durante algum tempo para agora começar a despertar. Apesar da passagem de sessenta anos parece haver, a nível de várias regiões portuguesas e espanholas, um reacordar para o desejo de querer saber o que se passou, uma vontade de recolha dessa informação directa das últimas testemunhas vivas. (Delgado 1999: 25)

Nos anos 90 foram, de facto, realizados alguns estudos e recolhas de informações diretas de testemunhas vivas nas zonas fronteiriças, nomeadamente um estudo efetuado em 1994 na zona raiana de Barrancos. Este estudo recolhe vários testemunhos que se afiguram como bastante reveladores das causas do ‘adormecimento’ da memória da Guerra de Espanha na população portuguesa:

Naturalmente muito reservados, os naturais desta região [...] dificilmente prestam declarações sobre matéria tão melindrosa e ainda tão presente, como foi a Guerra Civil de Espanha. Foram eloquentes as perguntas-tipo postas às entrevistadoras durante a recolha: “Se eu falar tiram-me a reforma?”, “Se eu contar o que sei e se a guarda vier a saber vêm prender-me?” ou ainda “Não posso contar porque os filhos de muitos homens que andaram mal ainda são vivos [...]”. (Ferreira 1996: 41)

1 “Reforçando este apoio [conjugação de esforços existente entre portugueses e espanhóis para a consolidação da situação portuguesa e alteração da realidade espanhola] deve aproveitar-se a ocasião para referir que a vitória das forças fascistas na guerra civil de Espanha é também fruto daquela aliança. Quando a 18 de Julho de 1936, Franco lançou o seu manifesto de Las Palmas em que exaltava uma nova ordem a estabelecer depois da vitória, sabia que podia contar com o apoio do Estado português. E na verdade é que este não lhe faltou. Desde o envio de legiões de “voluntários”, aos géneros alimentícios, passando pela repressão exercida sobre os elementos republicanos que procuravam refúgio em Portugal, até ao auxílio prestado, em várias localidades do País, à preparação da guerra, [...] foi através de Portugal que foi enviada a maior parte do auxílio alemão” (Madureira 1982: 170-171).

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Embora escassa, é através da literatura que o papel dos portugueses no conflito espanhol merece um tratamento mais precoce e abrangente em termos de construção de memória coletiva, ocupando a poesia lugar cimeiro, até porque os primeiros romances portugueses que abordam a temática da Guerra Civil de Espanha — anteriores a O Ano da Morte de Ricardo Reis — não puderam, por razões óbvias, ser publicados, pelo menos não sem sujeições a censura, antes do 25 de Abril, nomeadamente Cerromaior de Manuel da Fonseca e Sinais de Fogo de Jorge de Sena. E como refere Maria Isabel Nunes dos Santos: “Miguel Torga constitui, aliás, excepção ao conseguir publicar durante a Guerra Civil de Espanha, pois conseguiu publicar O Quarto Dia da Criação do Mundo — valendo-lhe esta publicação três meses de prisão — entre Novembro de 1939 e Fevereiro de 1940. Nos anos 40, [...] surgem alguns poemas dispersos em revistas literárias e alguma — pouquíssima — ficção onde o tema é subrepticiamente abordado, com os artifícios necessários para escapar à Censura” (I. Santos 1996: 16-17).

Não deixa de ser interessante lembrar, neste contexto, que, após o 25 de Abril, as obras literárias sobre os anos da ditadura tardaram, e que foi a memória de uma outra guerra, a da Guerra de África, que a partir do romance Os Cus de Judas de António Lobo Antunes, de 1979, se tornou tema privilegiado de muitos autores portugueses — tendo os escritores de alguma forma participado direta ou indiretamente nessa guerra. Não foi este o caso da maior parte dos autores que escreveram sobre a Guerra Civil de Espanha durante o séc. XX, e que pertenciam grosso modo a uma geração mais velha. José Saramago não constitui exceção, tendo a ideia da escrita de O Ano da Morte de Ricardo Reis surgido após a Revolução do 25 de Abril e depois de iniciada já a transição da ditadura espanhola para a democracia, em 1978 (Saramago 1984: 2). É também digno de referência que alguns romances portugueses dos últimos anos denotam um interesse renovado pela memória do papel dos portugueses na Guerra Civil de Espanha, nomeadamente História Fantástica de António Portugal de Artur Portela (2004), Rio das Flores de Miguel Sousa Tavares (2007), A Vida num Sopro de José Rodrigues dos Santos (2008), O Rei do Volfrâmio de Miguel Miranda (2008), o Rio Homem de André Gago (2010) e, para mencionar o lançamento mais recente, de setembro de 2011, Cartas Vermelhas de Ana Cristina Silva. Produções cinematográficas e televisivas como, por exemplo, A Raia dos Medos de 1999 (guião da autoria de Francisco Moita Flores) acompanham de alguma forma o interesse e tematização da Guerra Civil dos últimos anos em Espanha.

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Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, o papel dos portugueses na Guerra Civil de Espanha é indubitavelmente um dos temas-chave para a análise da intenção autorial: o heterónimo pessoano, que após a morte de Fernando Pessoa, regressa a Lisboa, a 29 de dezembro de 1935, proveniente do Brasil, é confrontado com um país em que o Estado Novo se consolida, nomeadamente através da criação das milícias fascistas portuguesas, e em que a repressão aumenta acentuadamente perante o cenário de grande instabilidade política na vizinha Espanha e da ameaça “vermelha” sentida por parte do regime salazarista — o que fará com que o próprio Ricardo Reis venha, nas palavras de José Saramago, a ser “alvo da curiosidade” (Saramago [1983]: 7) da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. A figura de Ricardo Reis, tal como foi concebida por Fernando Pessoa, é, portanto, aproveitada por José Saramago para a encenação de uma tragédia gerada pelo conflito entre a filosofia inerente a Ricardo Reis, o estoicismo e epicurismo do discípulo de Horácio, e a (des)ordem do mundo no ano de 1936. Esse conflito que culmina na morte de Ricardo Reis, desde logo anunciada no título do romance, assenta na atitude contemplativa de Ricardo Reis que sofre, ao ser confrontada com os acontecimentos históricos deste ano, nomeadamente com a Revolução dos Marinheiros de 8 de setembro de 1936, intimamente ligada à Guerra Civil de Espanha, alterações que levam Ricardo Reis a assumir a responsabilidade da derrota dos marinheiros e a seguir Fernando Pessoa, deixando assim Lisboa e o mundo (A. Nunes 2003).2 Estas ideias já se encontram presentes nos textos preparatórios do romance que José Saramago doou, em vida, à Biblioteca Nacional (Arquivo da Cultura Portuguesa Contemporânea da Biblioteca Nacional de Lisboa: Espólio de José Saramago) — textos anteriores, portanto, à própria escrita do romance:

Dizer que RR vem confrontar-se com o seu país é dizer coisa nenhuma. O problema é o do conflito que será necessário criar. E conflito não significa necessariamente, luta. O conflito, provavelmente, estabelece-se pela negativa. RR é, de algum

2 O presente artigo retoma sucintamente alguns dos pontos e referências essenciais já publicados num capítulo da tese de doutoramento de 2002 (publicada em 2003, em língua alemã), sobre O Ano da Morte de Ricardo Reis (Nunes 2003), no que concerne a abordagem do tema da Guerra Civil de Espanha em O Ano da Morte de Ricardo Reis, dando-lhes, no entanto, novo enquadramento e desenvolvimento investigatório que pretende marcar o início de investigação científica — perfeitamente distinta da tese de doutoramento — sobre a Memória da Guerra Civil de Espanha em Portugal.

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modo, uma personagem negativa (desistente é talvez mais correcto), a sociedade negativa é – como sair daqui? O livro começa com um levantamento revolucionário (Brasil) e termina com outro (Portugal). Será isto um sinal? Entre um e outro, que está? O último ano de uma vida, a incubação de uma gerra [sic] geral em que vão morrer dezenas de milhões de vidas, após o ensaio da guerra civil espanhola. As tensões estão na própria situação política e social. A questão está no modo como se estabelecerá a tensão (nova) resultante da entrada de RR. […] Ricardo Reis transfere para si próprio a responsabilidade da derrota dos marinheiros, e, como um romano da antiguidade, suicida-se? Curiosa ideia. (Saramago [1983]: 3-7)

A ficção romanesca engendrada à volta da figura de Ricardo Reis e das suas leituras das notícias dos jornais, que correspondem mormente a anotações ipsis verbis das notícias do jornal O Século de 1936, desempenha o papel de um fio condutor no labirinto da própria história europeia e mundial do ano de 1936 “tal como a fez o historiador” (Saramago 1990: 18): invasão das tropas italianas na Etiópia, ocupação da Renânia pelas forças armadas alemãs, deflagrar da Guerra Civil de Espanha. Numa breve conversa que tive com José Saramago, em 2001, sobre o trabalho de pesquisa em periódicos de 1936, que o autor efetuou, em 1983, na Biblioteca Nacional (Saramago [1983]), José Saramago mencionou a perplexidade que sentiu ao verificar que os jornais noticiaram muito pouco os acontecimentos na vizinha Espanha e no mundo em vésperas da segunda Guerra Mundial. No romance, o narrador aponta para esta situação da seguinte forma:

Não se cuide que estas notícias aparecem assim reunidas na mesma página de jornal, caso em que o olhar, ligando-as, lhes daria o sentido mutuamente complementar e decorrente que parecem ter. São acontecidos e informados de duas ou três semanas, aqui justapostos como pedras de dominó […]. (Saramago 1984: 82)E:[...] lidos foram e tornados a ler estes dessangrados jornais de Lisboa, (Saramago 1984: 119)

Este trabalho de pesquisa e a utilização dos factos exatamente como eles foram reportados no jornal O Século do ano de 1936, evidencia, antes de mais, que o romancista “escolheu, para a sua ficção, os caminhos da História”

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(Saramago 1990: 17). Foram muitas as ocasiões em que José Saramago teve oportunidade de expor as suas ideias sobre o tema da “história como ficção e da ficção como história”.3 No contexto da relação do autor com a história é, sem dúvida, muito relevante e de destacar o artigo intitulado “História e Ficção”, publicado no Jornal de Letras, Artes e Ideias, em 1990, em que José Saramago — que, como se sabe, recusou várias vezes a categorização dos seus romances como “romances históricos” — evidencia o seguinte:

Parece indiscutível que o historiador tem de ser, em todos os casos, um escolhedor de factos. Mas cremos ser igualmente pacífico que, ao escolher, abandona deliberadamente um número indeterminado de dados, em nome de razões de classe ou de Estado, ou de natureza política conjuntural, ou ainda em função e por causa das conveniências duma estratégia ideológica que necessite, para justificar-se não da História, mas duma História. [...] A História [...] tal como a fez o historiador, é o primeiro livro, não mais que o primeiro livro. [...] Restará sempre, contudo, uma grande zona de obscuridade, e é aí, segundo entendo, que o romancista tem o seu campo de trabalho. (Saramago 1990: 18, negritos meus)

A visão da história é, como se depreende da leitura do artigo e como refere o próprio Saramago, muito semelhante à da escola dos historiadores franceses dos Annales e da Nouvelle Histoire de um Georges Duby, Pierre Nora ou Jacques Le Goff: uma visão da história e da historiografia que questiona, portanto, a posição do historiador, que o exorta a fundamentar a necessidade do seu trabalho e que questiona o próprio objeto da historiografia. Objeto este que deixa de se confinar às grandes personagens e resumos de grandes e importantes acontecimentos históricos para se voltar para uma abordagem do quotidiano, a história de baixo, passando a incluir aspetos da sociedade que até então não eram considerados pela historiografia. Esta é também a historiografia que reclama para si os caminhos do literário (Duby e Lardreau, 1980). Saramago aponta, neste artigo, duas possibilidades para um aproveitamento da matéria histórica no romance:

3 Assim, por exemplo, em Saramago (1994: 54): ”Universidade Nova. Os temas do costume: a história como ficção, a ficção como história, e ainda o tempo como um imenso ecrã onde todos os acontecimentos se vão inscrevendo, todas as imagens, todas as palavras, o homem de Auschwitz ao lado do homem de Cro-Magnon [...].”

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Duas serão as atitudes possíveis do romancista que escolheu, para a sua ficção, os caminhos da História: uma, discreta e respeitosa, consistirá em reproduzir ponto por ponto os factos conhecidos, sendo a ficção mera servidora duma fidelidade que se quer inatacável; a outra, ousada, leva-lo-á [sic] a entretecer dados históricos não mais que suficientes num tecido ficcional que se manterá predominante. Porém, estes dois vastos mundos, o mundo das verdades históricas e o mundo das verdades ficcionais, à primeira vista inconciliáveis, podem vir a ser harmonizados na instância narradora. (Saramago 1990: 17)

O papel do autor, segundo esta outra atitude possível do romancista — ousada e deliberadamente pouco fiel aos factos conhecidos — consiste em recorrer à possibilidade de completar a história através da ficção:

Creio que o que subjaz a esta inquietação é a consciência da nossa incapacidade final para reconstruir o passado. E que, por isso, não podendo reconstituí-lo, somos tentados — sou-o eu, pelo menos — a corrigi-lo. Quando digo corrigir, corrigir a História, não é no sentido de corrigir os factos da História, pois essa nunca poderia ser tarefa de romancista, mas sim de introduzir nela pequenos cartuchos que façam explodir o que até então parecia indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido [...] se a leitura histórica, feita por via do romance, chegar a ser uma leitura crítica, não do historiador, mas da História, então essa nova operação introduzirá, digamos, uma instabilidade, uma vibração, precisamente causadas pela perturbação do que poderia ter sido, quiçá tão útil a um entendimento do nosso presente como a demonstração efectiva do que realmente aconteceu. (Saramago 1990: 18, negrito meu)

Deste modo, o aproveitamento da figura de Ricardo Reis na ficção de José Saramago, (figura igualmente pertencente à ficção e à história), desempenha duas funções: por um lado, reenvia-nos — desde logo através do título do romance — para uma tradição literária e para o papel da arte, e mais concretamente da literatura, na vida humana; por outro, a história imaginada remete para uma história que poderia ter sido corrigida (Ricardo Reis não morre em novembro de 1935 como Fernando Pessoa).

Como facilmente se pode comprovar, as epígrafes do romance, citações pessoanas, comportam esta dupla funcionalidade: “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo” (Saramago 1984: 10), citação

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da obra de Ricardo Reis, que será repetidamente utilizada no romance; “Escolher modos de não agir foi sempre a attenção e o escrupulo da minha vida” (Saramago 1984: 10), uma citação do semi-heterónimo pessoano e autor do Livro do Desassossego, Bernardo Soares; e, por fim “Se me disserem que é absurdo fallar assim de quem nunca existiu, respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer cousa onde quer que seja” (Saramago 1984: 10), uma citação poetológica do próprio Fernando Pessoa. Poder-se-ia até afirmar que em O Ano da Morte de Ricardo Reis não são as epígrafes que constituem, enquanto paratextos, um comentário do romance (Genette), mas que é, sim, o romance que constitui um comentário às epígrafes. Esta ideia também se encontra subjacente a algumas afirmações proferidas por José Saramago, como, por exemplo, nos Discursos de Estocolmo:

Muito, muito tempo depois, o aprendiz [José Saramago], já de cabelos brancos e um pouco mais sábio das suas próprias sabedorias, atreveu-se a escrever um romance para mostrar ao poeta das Odes alguma coisa do que era o espectáculo do mundo nesse ano de 1936 em que o tinha posto a viver os seus últimos dias: a ocupação da Renânia pelo exército nazista, a guerra de Franco contra a República espanhola, a criação por Salazar das milícias fascistas portuguesas. (Saramago 1999: 24)

Das três epígrafes do romance, José Saramago irá debruçar-se de modo muito particular sobre a citação da Ode de Ricardo Reis do Projecto de 1914: “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo”, citação que serve de leitmotiv a toda a narrativa. A atitude apolítica do poeta fictício, cristalizada neste verso, causou — desde sempre — grande rejeição por parte de José Saramago que pretende, sem dúvida, “desmascarar” Ricardo Reis e com ele toda a literatura e arte não empenhada em causas políticas ou sociais:

O livro O Ano da Morte de Ricardo Reis quer ser muito isso: [...] Pretende mostrar a esse homem, que teve essa declaração, a que apetece chamar monstruosa, que afinal de contas se [...] ser espectador do espectáculo do mundo constitui a sabedoria, então, meu caro Ricardo Reis, em 1936, aí tens o espectáculo do mundo e agora diz-me se ser espectador disto é ser-se sábio. (Saramago & Alves 1994)

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As citações de Fernando Pessoa e o próprio título do romance O Ano da Morte de Ricardo Reis não apontam, portanto, meramente para o universo pessoano, e para a temática da filosofia horaciana do heterónimo Ricardo Reis, mas são sobretudo representações da ficcionalidade da história. E é particularmente com a terceira epígrafe do romance, citação em que a ténue linha que divide o ser e o parecer se dilui: “não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer cousa onde quer que seja” (Saramago 1984: 10), que a falta de capacidade probatória — quer da história quer da ficção — é posta a priori em evidência, o que remete o leitor do romance, desde logo, para a ficcionalidade da história enquanto mera construção cultural. E, no entanto, todos os acontecimentos do ano de 1936 em O Ano da Morte de Ricardo Reis são consubstanciados por citações do jornal O Século: notícias que servem para introduzir os comentários do narrador. Neste comentador irónico que repetidamente compara o Fascismo de Mussolini em Itália, o Nacional-Socialismo de Hitler na Alemanha, e o Estado Novo de Salazar em Portugal, reconhece-se o narrador autorial, que, deste modo, manifesta claramente a sua opinião no que diz respeito à sua posição ideológica e à questão da categorização historiográfica do regime do Estado Novo enquanto regime fascista, e não tão-somente enquanto regime meramente autoritário,4 e ao seu papel nomeadamente na Guerra Civil de Espanha. No entanto, e como os textos preparatórios claramente revelam, José Saramago teve a preocupação de não imprimir uma ideologia marcadamente comunista ao romance e muito menos de lhe incutir uma posição de militância:

Nota (e importante). Não esquecer que F[ernando] P[essoa] era anticomunista, e que não há qualquer razão para presumir que RR o não fosse também. Lembro que RR nem republicano conseguira ser. Portanto, a vinda dele para Portugal não pode ser uma espécie de estrada de Damasco, uma revelação de ocultos

4 Cf. também Pinto (1992: 19): Quando, a partir dos finais dos anos 70, se iniciaram os contactos entre os estudiosos portugueses e a investigação internacional sobre o fascismo, o debate não foi fácil. A maioria dos trabalhos sobre o tema, independentemente das escolas teóricas (inclusive a marxista), tendiam a excluir Salazar e o seu regime dos ‘fascismos’. Alguns portugueses, pelo contrário, achavam que era notória má vontade, eventualmente provocada pela ignorância, a não inclusão do ‘Estado Novo’ na família. Percorriam-se as obras sobre o fascismo europeu e referências a Portugal não se viam ou apareciam demarcadas, na categoria dos regimes ‘autoritários’. A ignorância empírica era certamente um dos factores, mas o principal era de natureza teórica e permaneceu.

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valores de “esquerda” em geral e do comunismo em particular. Aqui, o regime fascista. Mas FP não era salazarista, nem democrata era também. Os acontecimentos de 1936 (ascensão do nazismo, consolidação do fascismo português, guerra de Espanha, vitória da Frente Popular em França, desenlace da guerra da Etiópia) vão certamente dividir RR entre repulsões contrárias. E este é que é o bico-de-obra. RR suicida-se, mas porquê? Por não ser capaz de se decidir? Por não entender? Pelo choque provocado pela revolta dos marinheiros? Por verificar que nada tem que ver com este mundo? (Saramago [1983], cx. 2: 7)

O aproveitamento da figura pessoana em O Ano da Morte de Ricardo Reis — numa altura em que, como o próprio Saramago (1990) refere, a figura de Fernando Pessoa era simplesmente incontornável no panorama da atualidade cultural em Portugal (aproximação do cinquentenário da morte, centenário do nascimento de Fernando Pessoa) — tem como função responder perentoriamente à questão do compromisso cívico e político da arte em geral e da literatura em concreto. As questões da memória dos acontecimentos históricos e da necessidade de uma arte empenhada em causas políticas e sociais são, portanto, centrais no romance. Em várias ocasiões Saramago clarifica esta sua intenção:

Será sábio quem se contenta com o espectáculo do mundo? Como se vê logo, continuo a malhar no pobre Ricardo Reis, que não tem nenhuma culpa da supina inépcia que o Pessoa o obrigou a escrever. O meu objectivo era falar do compromisso na literatura, melhor dizendo do compromisso cívico e político [...] do autor com o tempo em que vive. (Saramago 1995b: 234-235)

Trata-se, no entanto, de assinalar também a responsabilidade de todos os que assistiram ao espetáculo do mundo, nomeadamente de 1936, sem nada fazer, como meros observadores, ainda que não se achassem sábios por isso, quais minotauros encarcerados num labirinto. A Lisboa de O Ano da Morte de Ricardo Reis surge, por isso, como uma representação labiríntica e a própria história do ano de 1936 se apresenta também como um labirinto de sendas que se bifurcam, segundo a metáfora de Jorge Luis Borges. O labirinto é consensualmente considerado um símbolo de iniciação, uma metáfora do conhecimento, de si e do mundo, um jogo, no qual se procura um caminho verdadeiro, oculto entre outros caminhos sugeridos, mas falsos. O labirinto em O Ano da Morte de Ricardo Reis é, no entanto, e

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principalmente, um modelo de interpretação do conflito entre a memória dos acontecimentos tal como são extraídos dos periódicos de 1936, por um lado, e da memória do autor/narrador dos próprios acontecimentos históricos, bem como da memória do heterónimo pessoano, por outro: Ricardo Reis surge como um modelo de articulação da desorientação num mundo labiríntico, bem como da necessidade de descoberta do próprio mundo e da urgência de tomar posições e de trilhar os próprios caminhos nesse mesmo mundo. A tessitura híbrida de O Ano da Morte de Ricardo Reis, minuciosamente arquitetada como verdadeiro “mosaico de citações” (Kristeva 1974: 64) de textos literários e não-literários, resulta ela própria numa narrativa labiríntica e polifónica que veicula uma sensação generalizada de desorientação. O motivo do espelho, e do jogo de espelhos, intimamente ligado ao do labirinto, permite, não só a expansão do espaço e do tempo, como também a inversão da ficção em realidade e da realidade em ficção (cf. Nunes 2003). É na alternância destes dois planos que irrompe um alto-relevo labiríntico que, como concebido por Jorge Luis Borges, exorta o leitor a desvendar o enigma dos acontecimentos de 1936, nomeadamente dos acontecimentos relacionados com a Guerra Civil de Espanha e do que esta conjuntura específica significou para Portugal. É aqui que a instância narradora, irónica comentadora dos acontecimentos históricos do ano de 1936, trava o conflito entre o espetáculo do mundo e Ricardo Reis, instituído como seu mero espetador, encetando um diálogo com o leitor. José Saramago recorre em O Ano da Morte de Ricardo Reis a outros tópicos intimamente ligados ao labirinto. Entre outros, são essencialmente de destacar os motivos do caminho (errado), da teia, da rede, do novelo e do espelho (Nunes 2003: 130).

A memória é comparada a “pedaços de espelho partido” (Saramago 1984: 172), incapazes de recuperar o passado visto que do que se diz e sente apenas são “conservados na lembrança alguns fragmentos, não iguais, não complementares, não capazes de reconstituir o discurso inteiro, o deste lado” do espelho (Saramago 1984: 171). Saramago recorre ainda a tópoi associados ao tema do labirinto que convocam inequivocamente um submundo dantesco – enquanto representação de Lisboa e do mundo nesse ano de 1936: os motivos do dilúvio, da morte e do jogo (de xadrez) que José Saramago, evocando mais uma vez a obra de Fernando Pessoa associa à guerra da Etiópia, citando a ode de 1916 de Ricardo Reis “Os Jogadores de

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Xadrez” (Nunes 2003: 252-264), e à Guerra Civil de Espanha embutindo versos, em parte, desconstruídos do poema “O Menino da Sua Mãe”5 no corpo do texto saramaguiano (Saramago 1984: 383-384) sobre o massacre de Badajoz (Nunes 2003: 270-272).

O motivo do espelho encontra-se por sua vez intimamente ligado ao do outro eu, radicado, desde logo, no aproveitamento das personae pessoanas. A figura do Minotauro — que aliada ao tema do jogo de xadrez, do labirinto, do morto de braços estendidos no tabuleiro labiríntico (a preto e branco), à técnica de montagem, etc., evoca Guernica de Picasso (Nunes 2003: 270-271) — surge no romance enquanto alter ego do ser humano. Todos estes temas são simultaneamente metáforas borgesianas anunciadas desde logo pelo livro fictício The god of the labyrinth: metáforas do medo, do beco sem saída, que remetem, no entanto, de igual forma para o infinito e a universalidade que o próprio labirinto quer aqui representar: quando Ricardo Reis chega à Lisboa do ano de 1936, a bordo do Highland Brigade, do navio fantasma, a própria cidade surge como uma topografia labiríntica do horror: cinzenta, triste, suja. O Highland Brigade “é a lamentável barca de Caronte. O barco escuro no soturno rio” (Saramago [1983]: 7). Esta Lisboa labiríntica e este romance — enquanto labirinto, balizado pela citação direta de um verso d’Os Lusíadas no início do romance e pela desconstrução da citação do mesmo verso d’Os Lusíadas no fim do romance —6 pretendem também ser representação de toda a memória cultural da nação: O Ano da Morte de Ricardo Reis constitui com todas as citações e jogo de citações, simultaneamente um acervo de memória coletiva e é fonte de criação da mesma. No jogo labiríntico da verdade e da mentira, da história e da ficção, a principal intenção do autor é a de exortar o leitor a tomar uma atitude perante os acontecimentos históricos descritos no romance, a assumir a responsabilidade perante a história:

Nada é mentira e nada é verdade no livro. O livro deixa talvez o leitor sem saber onde põe o pé, onde é que está o ponto sólido –não no livro que espero que tenha algum mas na própria reacção do leitor à obra. Espero que na última página se sinta desorientado, sinta que tem que fazer qualquer coisa… (Vale 1984: 3)

5 Poema que também serve para uma referência proléptica (1961) à Guerra de África (Saramago 1984: 383, cf. Nunes 2003: 138-40).6 Labirinto que tem como centro a estátua de Camões em Lisboa, onde os passeios de Ricardo Reis invariavelmente findam.

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Labirínticos são ainda os jornais em que Ricardo Reis se vai informando acerca do que decorre no mundo, jornais cujas sendas de notícias, anúncios publicitários, etc., vão sendo percorridas por Ricardo Reis e enunciadas e comentadas ironicamente pela instância narradora, escolhedora de factos desse ano de 1936. Notícias que possibilitam a confrontação de Ricardo Reis com o mundo exterior e que representam um fio de Ariadne, uma estruturação cronológica dos acontecimentos do ano de 1936 tal como estes foram noticiados, essencialmente, pelo jornal O Século. Merece particular atenção do narrador o anúncio publicitário de Freire Gravador diversas vezes descrito no romance enquanto publicidade labiríntica representando o próprio universo com “a face de Deus, de seu mais comum nome chamado Freire Gravador” (Saramago 1984: 372). Trata-se de um anúncio de facto publicado em várias edições do jornal O Século do ano de 1936: É particularmente através deste anúncio que a instância narradora estabelece diretamente a relação entre o mito do labirinto, leitmotiv do romance, e os acontecimentos históricos que são noticiados no jornal O Século. A ligação estreita entre este anúncio labiríntico e a figura de Miguel de Unamuno, bem como do seu papel na Guerra Civil de Espanha, é instituída por Ricardo Reis que

desenha no Freire Gravador uma barbicha, faz do monóculo luneta, mas nem por estas artes de máscara consegue que se assemelhe àquele Don Miguel de Unamuno que num labirinto se perdeu também, e donde […] só consegui sair às vésperas de morrer. (Saramago 1984: 373)

A construção labiríntica constitui-se ela própria como um elemento estruturante do discurso narrativo do romance e não são, portanto, só os passeios de Ricardo Reis por Lisboa e as notícias dos jornais transcritas para o romance que surgem como representações labirínticas: A tessitura híbrida da narrativa, com as mais variadíssimas citações de diversas obras literárias, resulta num enquadramento labiríntico da ação e do próprio discurso narrativo (Nunes 2003: 127-130), com que José Saramago pretende veicular a sensação das mais diversas bifurcações do labirinto da memória cultural, e que, simultaneamente, pretende “asfixiar” o leitor, exortando-o a assumir uma atitude:

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Há uma sobrecarga [de informação] evidente no Ricardo Reis, mas essa é voluntária, porque a minha intenção foi, por assim dizer, quase “asfixiar” o leitor sob aquela massa de notícias que por sua vez estão a sufocar o Ricardo Reis. (Saramago & Vasconcelos 2010: 21)

O anúncio labiríntico do Freire Gravador simboliza ainda, por um lado, a inalterabilidade dos acontecimentos históricos, por outro, a simultânea impossibilidade de representação historiográfica linear, remetendo-nos mais uma vez para a ficcionalidade da história enquanto construção cultural: “A conclusão, certa ou errada, a que cheguei, é que, em rigor, a história é uma ficção. Porque sendo uma seleção de factos organizados de certa maneira para tornar o passado coerente, é também a construção de uma ficção” (Saramago, 1990).

O aproveitamento do tema do labirinto nas suas principais dimensões permite ainda uma leitura político-ideológica. São variadíssimas as passagens de O Ano da Morte de Ricardo Reis em que as semelhanças estruturais dos regimes fascista em Itália, nacional-socialista na Alemanha e o Estado Novo de Salazar nesse ano de 1936, são colocadas em evidência através, essencialmente, de comentários irónicos do narrador. Neste âmbito, é particularmente posto em destaque o papel destes três países e respetivos regimes no desenrolar do conflito em Espanha, nomeadamente o de Portugal. Pois, apesar da supramencionada preocupação de Saramago em não subordinar esta obra à matriz ideológica comunista, subjaz — como não poderia deixar de ser — a todos os comentários do narrador, a posição ideológica do autor. É no ano de 1936, em muito devido ao desenvolvimento dos acontecimentos na vizinha Espanha, que o Estado Novo se consolida e aproxima, a vários níveis, dos regimes fascista em Itália e nacional-socialista na Alemanha. Sendo o ano de 1936 o tempo em que decorre a ação de O Ano da Morte de Ricardo Reis, a Guerra Civil de Espanha não poderia ser senão um dos temas principais para o romancista que “escolheu, para a sua ficção, os caminhos da História” (Saramago 1990: 17). Tendo a Revolta dos Marinheiros de 8 de Setembro de 1936 sido o acontecimento escolhido para fechar a obra, torna-se evidente (dada a intenção dos marinheiros de entrar no conflito bélico espanhol) que o papel desempenhado por Portugal na Guerra Civil de Espanha é a chave-mestra da intenção autorial.

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Da teia dos acontecimentos do ano de 1936 em O Ano da Morte de Ricardo Reis, são essencialmente destrinçáveis os seguintes pontos e formas principais de referência direta aos acontecimentos históricos da Guerra Civil de Espanha com ligação estreita ao papel desempenhado por Portugal no conflito:

1. Refugiados falangistas espanhóis em Portugal. Menção a 50 mil refugiados entre fevereiro e agosto de 1936 em Portugal, nomeadamente no Hotel Bragança (Saramago 1984: 152 e 274). Referências irónicas ao tratamento de importância que é dado aos falangistas em Portugal ao longo do romance (p. ex. Saramago 1984: 253). Menção à morte, por acidente da avioneta em que seguia o general Sanjurjo – refugiado no Monte Estoril (Saramago 1984: 364-365) que “queria entrar clandestino em Espanha para chefiar um movimento monárquico” (Saramago 1984: 361). Participação de falangistas espanhóis na manifestação da Praça de Touros do Campo Pequeno com que é feita referência à relação causa-efeito da situação em Espanha e da fascização do Estado Novo em Portugal perante esta situação, nomeadamente no que diz respeito à criação da Legião Portuguesa (Saramago 1984: 385-389), etc.

2. Refugiados de esquerda espanhóis em Portugal: denúncia da entrega às autoridades espanholas e consequente morte, nomeadamente em Badajoz (Saramago 1984: 253); comparação com o tratamento dos falangistas e denúncia, portanto, do papel supostamente de não-intervenção por parte de Portugal: “é esta a tradicional hospitalidade portuguesa, se um dia chegarem a fugir alguns dos outros entregá-los-emos às autoridades que farão a justiça que entenderem” (Saramago 1984: 253).

3. Refugiados de esquerda portugueses em Espanha. Breve menção através das notícias. Ricardo Reis lê: “que foram enviadas armas soviéticas aos refugiados portugueses em Espanha” (Saramago 1984: 256).

4. Revolução dos Marinheiros de 8 de Setembro de 1936, organizada pelo movimento de marinheiros que planeava apoderar-se dos navios de guerra e ir unir-se às forças navais dos republicanos

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espanhóis: “A ideia é irem para Angra do Heroísmo, libertar os presos políticos […] e esperar que haja levantamentos aqui, E se não os houver, Se não houver, seguem para Espanha, vão juntar-se ao governo de lá” (Saramago 1984: 396).

5. Legionários portugueses no Tércio (Badajoz). Breve menção: “o Tércio obrou maravilhas, tanto no combate à distância como na luta corpo a corpo, tendo sido particularmente assinalada, e levada à ordem, a valentia dos legionários portugueses da nova geração” (Saramago 1984: 382).

Estas referências são mormente veiculadas pelos meios de comunicação de massa:

a) Notícias dos jornais O Século e Diário de Notícias relativas aos acontecimentos em Espanha, a partir de 30.12.1935, sendo Lídia a personagem que vai desacreditar a veracidade de algumas notícias veiculadas pelos jornais concernentes à Guerra: “Estás tu aí a chorar por Badajoz, e não sabes que os comunistas cortaram uma orelha a cento e dez proprietários, e depois sujeitaram a violências as mulheres deles […], Não acredito, Está no jornal, eu li, Não é do senhor doutor que eu duvido, o que o meu irmão diz é que não se deve fazer sempre fé no que os jornais escrevem” (Saramago 1984: 379-380).

b) Notícias das telefonias: “Badajoz foi bombardeada” (Saramago 1984: 379); referência a uma locutora espanhola no Rádio Clube Português (Saramago 1984: 379) que lê as notícias em espanhol bem como outros falangistas: “E porque a luta é comum e igual o inimigo, foram falangistas espanhóis ao Rádio Clube Português, foram deitar fala ao país inteiro” (Saramago 1984: 385).

Da teia dos acontecimentos associados à Guerra Civil de Espanha, não podemos deixar de destacar ainda dois pontos centrais em O Ano da Morte de Ricardo Reis:

1. Simulacro de ataque aéreo (Saramago 1984: 328-334) que ocorreu, de facto, em Lisboa e que é associado ao teatro de guerra do inimigo rojo: “decidiu o governo da nação […] explicar aos moradores como deverão proceder e proteger as vidas em caso de

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bombardeamento aéreo, sem contudo levar a verosimilhança ao ponto de identificar o inimigo possível, mas deixando nos ares a suspeita de que seja o hereditário, isto é, o castelhano agora rojo” (Saramago 1984: 328).2. O papel de Miguel de Unamuno no conflito: “mas de Miguel de Unamuno, que nós admirávamos, ninguém ousa falar, é como uma ferida vergonhosa que se tapa, dele só se guardaram para edificação da posteridade aquelas palavras quase derradeiras suas com que respondeu ao general Milan d’Astray, o tal que gritou na mesma cidade de Salamanca, Viva la muerte […] valeu a pena ter vivido Miguel de Unamuno o tempo suficiente para vislumbrar o seu erro” (Saramago 1984: 370-371). É a Miguel de Unamuno que cabe ainda o papel de atribuição de culpa direta à passividade dos portugueses perante a Guerra Civil de Espanha: “Eis-me aqui, homens de Portugal, povo de suicidas, gente que não grita Viva la muerte, mas vive com ela” (Saramago 1984: 390).

Sobre estes acontecimentos históricos, o narrador tece, como já observámos, comentários irónicos em que, por um lado, o papel dos portugueses na Guerra Civil de Espanha e, por outro, a importância do conflito espanhol na fascização do Estado Novo são naturalmente evidenciados:

De Tetuão agora que já chegou o general Milan d’Astray, veio nova proclamação, Guerra sem quartel, guerra sem tréguas, guerra de extermínio contra o micróbio marxista [...]. Seria impossível que estes bons ventos de Espanha não produzissem movimentos afins em Portugal. (Saramago 1984: 384)

O massacre de republicanos na praça de touros de Badajoz, descrita em O Ano da Morte de Ricardo Reis como labirinto em que morrem “minotauros vestidos de ganga”, é das passagens mais pungentes deste romance de Saramago:

O general Mola proclamou, Chegou a hora do ajuste de contas, e a praça de touros abriu as portas para receber os milicianos prisioneiros, depois fechou-se, é a fiesta, as metralhadoras entoam, olé, olé, olé, nunca tão alto se gritou na praça de Badajoz, os minotauros vestidos de ganga caem uns sobre os

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outros, misturando os sangues, [...] quando já não restar um só de pé irão os matadores liquidar, a tiro de pistola, os que apenas ficaram feridos, e se algum veio a escapar desta misericórdia foi para ser enterrado vivo. De tais acontecimentos não soube Ricardo Reis senão o que lhe disseram os seus jornais portugueses, [...] o resto soube-o por Lídia. (Saramago 1984: 383)

É imediatamente a seguir ao massacre da praça de touros de Badajoz que Ricardo Reis vai assistir à manifestação numa outra Praça de Touros, a do Campo Pequeno, que irá culminar na criação da Legião Portuguesa, evidenciando, assim, uma vez mais, o papel dos portugueses que, no decorrer da Guerra Civil de Espanha, entregaram aos falangistas muitos dos republicanos que vinham procurar refúgio nas regiões fronteiriças de Portugal, sabendo que os enviavam para a morte certa, sendo alguns imediatamente fuzilados (Namorado 1987: 14). Finda a manifestação na Praça de Touros do Campo Pequeno, Ricardo Reis lê a notícia que anuncia que — para além da ajuda portuguesa — os falangistas também poderão contar com a alemã e a italiana no combate “ombro com ombro contra o inimigo comum” (Saramago 1984: 391).

Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, Saramago opta por não referir portugueses que ajudaram refugiados republicanos espanhóis, escondendo-os, etc., sob pena de eles próprios poderem vir a ser presos, como acontece na maior parte de outros romances portugueses sobre a Guerra Civil de Espanha. É esta lacuna provavelmente também um indício da intenção autorial de evidenciar a corresponsabilização dos portugueses no desfecho do conflito bélico: A crítica à posição apolítica de Ricardo Reis, ponto de partida da escrita de O Ano da Morte de Ricardo Reis, estende-se, portanto, a uma crítica não só àqueles que fizeram parte ativa da coreografia fascista — na Mocidade Portuguesa, na Legião Portuguesa, etc., — como ainda a todos os que tiveram uma atitude contemplativa perante os acontecimentos do ano de 1936, nomeadamente os da Guerra Civil de Espanha. Porém, José Saramago não pretende unicamente exortar o leitor a tomar uma atitude: O autor vê na sua escrita também uma tentativa de exorcizar a sua própria culpa, a da sua atitude contemplativa, como ele refere na entrevista de outubro de 1984 ao Jornal de Letras, por ocasião do lançamento de O Ano da Morte de Ricardo Reis:

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Talvez haja em mim um lado contemplativo, talvez afinal de certo modo o conflito entre acção e contemplação seja meu e tenha tentado exorcizar isso por entreposta pessoa, por entreposta figura, por entreposto poeta. E como o Ricardo Reis me acompanha desde os dezanove anos talvez tudo isso afinal signifique muito mais do que parece no que toca às motivações profundas do autor. (Saramago 1984: 2)

Não deixa de ser interessante referir, neste âmbito, que o autor português mais estudado no contexto da Guerra Civil de Espanha, Miguel Torga — também ele mero observador (que não interveio, portanto, no conflito armado) —, confessa de forma avassaladora, pouco antes de Saramago dar esta entrevista ao Jornal de Letras, o arrependimento que essa omissão lhe provoca. Assim, a 14 de agosto de 1984, Miguel Torga escreve no seu Diário:

Último episódio televisivo de uma série sobre a Guerra Civil de Espanha. […] Que remorsos de não ter ido arder no primeiro holocausto que o fascismo perpetrou! Todos os da minha geração que não se bateram numa das frentes daquele fratricídio expiatório ficaram a mais no mundo. (Torga 2011: 155)

Em outubro de 2009, por ocasião do lançamento do seu romance Caim, José Saramago referiu que o livro seguinte abordaria o tema da indústria e do comércio de armamento e disse ter procurado, em vão, um episódio que pensava ter lido em L’Espoir, de marxist, ou em For Whom the Bell Tolls, de Hemingway, passado na Guerra Civil de Espanha, sobre “um morteiro que não rebentou e que tinha um papel dentro, escrito, em português, que dizia: ‘Esta bomba não rebentará’” (Cordeiro, 2011). Era esse episódio, passado numa outra ficção sobre a Guerra Civil de Espanha, o impulso inicial para o novo livro em que pretenderia, uma vez mais, defender a necessidade de uma arte empenhada em causas políticas e sociais.

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José Saramago: “Cadeira” ou a queda de Salazar

Isabel Araújo Branco

No conto “Cadeira” — incluído em Objecto Quase (1978) e escrito em seis dias, em Novembro de 1976, segundo Fernando Gómez Aguilera (2008) — encontramos uma leitura profunda do significado simbólico e prático da queda da cadeira do ditador português António de Oliveira Salazar em Agosto de 1968. Esta é uma reflexão literária sobre a ditadura, a ideologia fascista e o estado do País ao longo das suas quase cinco décadas de duração, mas também sobre o império português, então quase a desaparecer.

Comecemos pelo primeiro parágrafo do conto, marcado por uma discussão semântica a propósito da cadeira. Uma cadeira pode ou não desabar não tendo asas? O autor tem ou não liberdade poética para a deixar desabar? Contudo, este rigor não se aplica ao homem que nela se senta. Esse “desabe, sim” (Saramago 1978: 13), mesmo sem abas. Porquê? Percebemos pelo texto que merece uma grande queda e essa só é possível com uma palavra bem aplicada, porque as palavras, mesmo se formam grupos, “nunca dizem o mesmo, por mais que se queira” (Saramago 1978: 13). Simples seria o mundo em que tudo começado por palavras fosse sucessivamente reduzido por homologia, até à onomatopeia e daí ao silêncio, comenta o narrador. Mas não o é. E quem cai da cadeira é caracterizado como “tombante ou cadente”, acrescentando o narrador que estas são “palavras de ressonância heráldica” (Saramago 1978: 13). Estes

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adjectivos dão o mote à caracterização da personagem ao longo do texto, uma figura sinistra que arrasta atrás de si uma violência imensa. Nunca é nomeado pelo nome, sendo aludido como “o velho” ou o ocupante da cadeira.

“O que foi perfeito deixou de o ser” (Saramago 1978: 13), lemos no segundo parágrafo do texto. Com efeito, Salazar foi visto por alguns sectores da sociedade como o homem ideal para o País, bem como a “cadeira” que o suportou. Esse objecto pode ser visto precisamente como símbolo da base de sustentação do ditador ao longo das décadas em que exerceu o seu poder, primeiro como ministro das Finanças (1926, 1928 e 1932) e depois enquanto presidente do Conselho de Ministros (entre 1932 e 1968). A cadeira corresponde, assim, aos grupos económicos, militares, políticos e religiosos que apoiaram e permitiram a existência durante 48 anos da ditadura. Como refere Fernando Rosas em O Estado Novo nos Anos Trinta. 1926-1938,

dois grandes blocos sociais apoiaram a instauração da Ditadura Militar em 1926 e depois o advento do Estado Novo. De um lado, […] os médios e grandes interesses económicos da indústria, do comércio e da agricultura. […] Um outro bloco […] era o que podemos agrupar genericamente sob a designação dos interesses intermédios. Uma vasta gama de pequenos industriais, comerciantes e agricultores à beira da ruína provocada pela crise económica, a que se juntavam o pequeno funcionalismo, os empregados — a pequena burguesia urbana. (Rosas 1986: 116).

Na sua recente História de Portugal, Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro analisam outro grupo de apoio e salientam que “Salazar contou com a hierarquia da Igreja, que seria chefiada desde 1930 por um seu amigo íntimo, o cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira, e com os activistas leigos dos movimentos católicos” (Ramos et al. 2009: 629), acrescentando ainda que “sem Carmona ou a Igreja, Salazar não teria chegado onde chegou” (ibid.: 629).

A cadeira é uma peça de um sistema com outros elementos mais complexos, “robustos patriarcas que são as mesas, os aparadores, os guarda-roupa ou pratas ou louças, ou as camas” (Saramago 1978: 14). Todos eles fazem parte do universo da mobília — ou do poder. Onde vemos “mesas” podemos ler “grupos económicos”, onde temos “aparadores” podemos assumir “hierarquia da Igreja”. A face do regime — Salazar — é, pois, apenas uma peça e não a mais importante ou vigorosa.

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“O que foi perfeito deixou de o ser”, líamos no conto. Nesta frase não sabemos se o narrador considerou alguma vez esta cadeira perfeita. O autor não, mas não devemos confundir autor e narrador, mesmo que José Saramago insista para que o façamos. Por exemplo, no ensaio “O autor como narrador”, reitera a sua convicção de que “a figura do narrador não existe e que só o autor exerce função narrativa real na obra de ficção” (Saramago 1997a: 38), sustentando que o narrador é apenas “uma personagem mais de uma história que não é a sua” (Saramago 1997a: 41). Mas, dizíamos, não vamos misturar autor e narrador. Ainda assim, sendo este narrador manifestamente irónico, arriscamo-nos a afirmar que não acreditou nunca na perfeição da cadeira, que essa convicção pertencia a outros, a certa opinião pública, maioritária ou minoritária. Contudo, mesmo para esses, os tempos mudam e a sua percepção da ditadura altera-se devido às “razões” ou ao “tempo” (Saramago 1978: 14).

Mais à frente comprovamos que o narrador toma partido contra Salazar: “Cai, velho, cai.” (ibid.: 1999b: 26). De seguida faz referência às vítimas da Guerra Colonial: “[…] farás o pino como o não foi capaz de fazer aquele rapaz na praia, que tentava e caía, só com um braço porque o outro lhe tinha ficado em África.” (ibid.: 26-27) Mas o narrador afirma também que é “testemunha” (28) e assume que não foi neutral “enquanto assistimos a esta longa queda” (31), à queda de Salazar. No final, o ditador é o “inimigo vencido” (33) que, ao abrir os olhos, consegue ver o narrador.

Mas regressemos à cadeira. De que é feita? Pode ter como matéria-prima qualquer madeira, à excepção do pinho (“por ter esgotado as virtudes nas naus das Índias e ser hoje ordinário”, Saramago 1978: 14), da cerejeira (“por empenar facilmente”, ibid.: 14) e da figueira (“por rasgar à traição”, 15). Deste modo, o pinho é associado pelo narrador à expansão marítima portuguesa, sendo madeira boa para as antigas embarcações, mas que aí deixou as suas virtudes. O império está prestes a deixar de existir (poderíamos dizer “a desabar”, seguindo as palavras do narrador no primeiro parágrafo) e, se alguma coisa teve de bom, perdeu-a e tornou-se ordinário, como o pinho. Como sabemos, “ordinário” tem o sentido de ‘comum’, mas muitas vezes é utilizado de forma pejorativa, isto é, como ‘grosseiro’, ‘reles’ ou ‘vulgar’. Ter-se-á transformado o império português em algo ordinário?

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Em 1968, quando Salazar cai da cadeira, as guerras pela independência já tinham estalado há vários anos em Angola, Guiné e Moçambique. “A África é o complemento natural da Europa, necessário à sua vida, à sua defesa, à sua subsistência. Sem a África, a Rússia pode desde já ditar ao Ocidente os termos em que lhe permite viver” (Salazar apud Brandão 2008: 50), afirmava o ditador em 1956, na abertura do IV Congresso da União Nacional. Seguindo esta concepção, quando os povos africanos manifestam vontade de se tornar independentes, o governo português não cede e mantém-se nos territórios, resistindo às guerrilhas armadas e mantendo violentos conflitos que envolveram uma média anual de 105 mil homens entre 1961 e 1973 e que mataram quase nove mil militares portugueses e deixaram feridos ou mutilados 28 mil.1

Cerca de um por cento da população portuguesa foi mobilizada para a guerra. Segundo António Costa Pinto, este valor foi excedido apenas por Israel e corresponderia ao recrutamento de 2 milhões e meio de norte-americanos para a guerra do Vietname, em vez dos 500 mil de facto mobilizados (Pinto, 2001: 48). Como comenta Costa Pinto:

Mesmo que, em termos comparativos, o número de mortos tenha sido relativamente baixo, o seu impacto na população foi forte e agravou-se sobretudo com a longa duração da guerra e a invisibilidade de qualquer solução de compromisso a prazo. […] a guerra e o seu cortejo de violência marcaram duravelmente a sociedade portuguesa. (Pinto, 2001, pp. 52-53)

Este período foi igualmente marcado pela forte emigração por motivos económicos e políticos (em particular, a fuga ao serviço militar e à guerra): cerca de um milhão 525 mil pessoas emigraram para França entre 1960 e 1974, registando-se também valores elevados de emigração para a Alemanha, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Suíça.2 Em 1968, o desânimo já se tinha instalado nas tropas portuguesas, como os próprios homens do regime reconheciam. No ano anterior, Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros, escrevia:

1 Dados de João Paulo Guerra (1994) e de António Costa Pinto (2001), com base em informações oficiais e de destacados militares.2 Informações de João Paulo Guerra.

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Em 1960, a geração nova, atingida pelo deflagrar da luta, mergulha na mística colectiva e sente-se motivada pela aventura africana; mas é outro o estado de espírito da geração de hoje; e na verdade o ambiente familiar e social que os novos jovens encontram é também adverso. (apud Vaz, 1997: 256)

O império estava, pois, prestes a desabar.

Passemos para o segundo tipo de madeira excluído no conto, a cerejeira. Esta é sem dúvida uma referência ao já citado Manuel Gonçalves Cerejeira, cardeal patriarca de Lisboa entre 1929 e 1971, e apoiante incondicional da ditadura, como vimos. Afirmava o cardeal num discurso emitido na Emissora Nacional, em 1940, a propósito da Concordata assinada entre o Vaticano e Portugal:

Honra e glória ao Estado Novo que, no ano jubilar da Nação portuguesa, institui uma ordem nova na qual se firma a paz e harmonia da Igreja e do Estado, pelo reconhecimento dos direitos daquela e pelos legítimos interesses deste. (apud Torgal 2009: 441)

Este apoio reflectia a sua opinião pessoal, mas também as posições da esmagadora maioria da hierarquia eclesiástica. Aliás, muitas vezes governo e Igreja misturavam-se. Basta recordar os cartazes colados nas escolas de todo o País com a frase “Deus, Pátria, Família”, o lema do Estado Novo. Nas palavras de Luís Reis Torgal,

a ideia de Pátria funde-se aqui com o patriarcalismo duma cristandade rústica, com um nacionalismo bíblico alimentado ao borralho, com a celebração duma Providência zelosa dos magnificentes desígnios da grei. (Torgal, 1989: 181)

A religião católica

encarada numa perspectiva tradicionalista, foi elemento de importância primordial no travejamento ideológico do Estado Novo, não apenas enquanto apoiou directamente as suas teses, mas também enquanto contribuiu para aquela ética de obediência que o poder exigia dos cidadãos. (Ibid. 181)

Também em relação à Guerra Colonial, a Igreja Católica portuguesa se manteve ao lado do regime, embora se registassem atitudes de activa oposição entre padres e outros membros nas colónias, em especial em Moçambique. Mas tratava-se de corajosas excepções. Em 1961, Custódio

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Alvim Pereira, arcebispo de Lourenço Marques (actual Maputo), defendia em carta pastoral: “As independências africanas contemporâneas trazem quase todas o cunho da revolta e do comunismo. […] A Mãe-Pátria tem direito de se opor à independência” (apud Guerra 1994: 347). No mesmo ano, o cardeal Traglia, enviado do Papa à peregrinação de 13 de Maio, abençoou os “soldados portugueses que neste momento servem Deus e a Pátria nos territórios do Ultramar” e sustentou que a Igreja “não pode ser neutral perante esta luta” (ibid. 347). Religião e poder estavam, pois, misturados. E a cadeira de onde Salazar caiu não podia ser, portanto, de cerejeira.

Avancemos para o último tipo de madeira excluído no conto, a figueira. Aqui encontramos uma referência ao episódio bíblico, em que Cristo é entregue às autoridades por um dos seus apóstolos, Judas. Em troca recebeu trinta moedas de prata, correspondente ao valor de um escravo. Arrependido, mais tarde devolve o dinheiro e enforca-se numa figueira. Segundo a tradição ocidental, Judas e a figueira são, pois, símbolos da traição. Na narrativa, esta árvore não serve como matéria-prima da cadeira “por rasgar à traição” (Saramago 1978: 15), ou seja, por nascer sem autorização e assim sobreviver e se enraizar — como uma revolução, como o 25 de Abril, que se dará seis anos depois.

A cadeira, afinal, é de mogno e foi escolhida, não para o corpo que nela se senta, mas para combinar com o resto da mobília. Isto significa que não importa quem é o chefe, a cara, mas sim que essa figura saiba agir em conformidade com os interesses e características do seu ambiente, os interesses oligárquicos dos grupos que a sustentam. O mesmo é dizer que Salazar é apenas a figura mediática e oficial que, na verdade, não é servida, mas antes serve aqueles que o sustentam. Está lá por eles, não são aqueles que existem por ele. No entanto, é uma posição confortável, como assegura o narrador, “agradável e repousante” (Saramago 1978: 16). A fraqueza do mogno é o caruncho. E o próprio leitor o poderá comprovar mordendo este tipo de madeira — o mesmo é dizer que qualquer um pode tentar carcomer a cadeira do poder para que esta se desfaça.

Como lemos no início do segundo parágrafo, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” (Saramago 1978: 14). Esta frase é retirada do conhecido soneto de Luís Vaz de Camões3 e é, igualmente, uma forma de

3 “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança; / Todo

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intertextualidade com o 25 de Abril e a popular canção de José Mário Branco, composta com base no poema quinhentista e uma das composições mais fortemente associadas ao período revolucionário. No conto, a referência à Revolução não é feita, pois, de qualquer maneira. É uma forma poética que remete para a literatura portuguesa, um dos seus mais importantes autores e a reflexão sobre o devir histórico, não só através do próprio poema, mas acima de tudo para a perspectiva histórica de transformação social e política em Portugal ao longo dos séculos.

O narrador conta “a história do que foi porque está acontecendo”, não outra possível, porque “o certo é bem melhor, principalmente quando muito se esperou pelo duvidoso” (Saramago 1978: 15). Muitas esperanças na queda do regime não se concretizaram, como a ideia de que o próprio regime se reformaria com Marcelo Caetano ou deputados jovens eleitos pelo único partido legal, a Acção Nacional Popular, como Francisco Sá Carneiro, João Mota Amaral ou Francisco Pinto Balsemão. Estes planos correspondem ao incerto que não se concretizou. O certo é apenas o 25 de Abril.

A origem do caruncho que fez a cadeira cair é discreta, desconhecendo-se o percurso dentro da madeira e a data do seu início. Trata-se da passagem de testemunho entre as várias “gerações que se alimentaram deste mogno até ao dia da glória, nobre povo nação valente” (Saramago 1978: 17). O caruncho é, portanto, o povo português, geração atrás de geração contribuindo para o fim do regime, até 1968, mas também 1974, ano da queda definitiva desta cadeira integrada no conjunto da mobília que é a ditadura. É essa luta silenciosa e anónima que torna este povo e este país merecedores dos adjectivos do hino nacional republicano, um “nobre” e o outro “valente”. Os túneis que abre dão “a uma câmara mortuária” (ibid.: 18), como as das pirâmides egípcias, onde encontramos não o cadáver do faraó, mas o de Salazar e da ditadura. No momento da queda, mesmo os que não contribuíram para ela, são cúmplices, pois “espectadores da queda nada fazemos nem vamos fazer para a deter e assistimos juntos” (19).

o mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas qualidades. // Continuamente vemos novidades, / Diferentes em tudo da esperança; / Do mal ficam as mágoas na lembrança, / E do bem, se algum houve, as saudades. // O tempo cobre o chão de verde manto, / Que já coberto foi de neve fria, / E em mim converte em choro o doce canto. // E, afora este mudar-se cada dia, / Outra mudança faz de mor espanto: / Que não se muda já como soía.” (Camões 1977: 45).

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O coleóptero vingador deixa o anonimato no oitavo parágrafo. É Anobium, no cimo do seu cavalo Malacara, comparado pelo narrador a personagens reais e de ficção e a actores dos filmes de Far West. Este é apenas um elemento na corrente de resistentes anónimos, continuador daqueles “que tiveram tarefa menos gloriosa, ridícula até” (ibid.: 19) e que não puderam “chegar ao ajuste de contas final” (ibid.: 20). Nesta passagem ecoa claramente o refrão da Internacional: “Bem unidos façamos, / Nesta luta final, / Duma Terra sem amos / A Internacional.”4 São as pedras invisíveis que formam os alicerces desta empresa de resistência prestes a tornar-se vitoriosa:

O Anobium vencedor é o último elo da cadeia de anónimos que o precedeu, em todo o caso não menos felizes, pois viveram, trabalharam e morreram, cada coisa em sua hora, e este Anobium que sabemos fecha o ciclo, e, como o zangão, morrerá no acto de fecundar. (Saramago 1978: 20)

O bicho-da-madeira sofre um processo de personificação, numa estratégia narrativa para que o insecto simbolize a luta (clandestina ou não) dos resistentes antifascistas e proporcionar uma certa identificação do leitor. Mais à frente o narrador afirma que, ao pôr-do-sol, costuma “recobrar forças e roer com vigor novo” (ibid.: 23), como os cowboys heróicos.

Salazar, por seu lado, é caracterizado como um velho e “falso devoto que se mancomunou” (ibid.: 23) com a hierarquia eclesiástica. O narrador duvida da sua humanidade pela aparência, mas acima de tudo pelo seu comportamento. Vejamos a descrição da sua face, ao cair: “Tem o rosto comprido, o nariz adunco e afiado como um gancho que fosse também navalha”, lábios quase sumidos que se parecem com “dois rebordos de carne ou larvas pálidas”. O pescoço apresenta uma “barbela” (Saramago 1978: 24) à semelhança dos touros. Os seus pés são bifurcados — como os da dama pé-de-cabra, da lenda recolhida por Alexandre Herculano —, o que mostra que ele é o diabo ou tem um pacto com ele. E, tal como o mafarrico, Salazar é aquele que “afligiu” (ibid.: 25) os aflitos. Quando cai, fica como “um cágado virado de barriga para o ar” (26), “uma espécie de gato reumático” (27). Como conclui então o narrador, “a mosca já está fechada” (28).

4 Apud <www.pcp.pt/letra-e-partitura-de-%C2%AB-internacional%C2%BB>, último acesso: 10.07.2011).

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Se se verifica um processo de personificação do bicho-da-madeira, registamos igualmente um processo de animalização de Salazar através da adjectivação e da comparação. O narrador retira-lhe, assim, a sua humanidade e mostra o monstro que é. Além disso, Salazar é rodeado por seres piores que hienas ou abutres. Estes animais são úteis, porque “limpam de carne morta as paisagens dos vivos” (Saramago 1978: 29), mas quem rodeia o ditador, pelo contrário, alimenta-se “do seu corpo morto e putrefacto” e vai-se reconstituindo “em morte e putrefacção” (ibid.: 29).

Temos, portanto, no conto uma leitura simbólica da ditadura, do poder e do contrapoder: de um lado, o diabólico aparelho que sustenta Salazar e os interesses que ele representa e defende; do outro, os anónimos resistentes que corroem o sistema instalado, de forma paulatina e silenciosa, mas simultaneamente eficaz, tão bem sucedidos que conseguirão fazer cair não apenas o ditador, mas o próprio regime, substituindo-o pela democracia.

Quase no fim do conto, o narrador aproxima-se da janela, admira e comenta a paisagem e traz para dentro tanta luz que é como se Salazar desaparecesse. Diz-lhe: “é como se não estivesses” (Saramago 1978: 27). É a luz da vida que ofusca a escuridão, as trevas, o malévolo representado pelo ditador. É a luz do futuro, aquela que os “tempos que mudam” estão prestes a impor. Porque, como dizia o autor José Saramago em entrevista, “no interior de cada país está o seu destino” (Astorga em Gómez Aguilera, 2010: 106). No interior de Portugal, está a resistência silenciosa, anónima e efectiva, capaz de vencer a sombra.

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Sobre a convergência do espaço literário, cultural e político como questionador de uma identidade social

em José Saramago

Raquel Baltazar

O compromisso social das obras de José Saramago actualiza a problemática do conceito de identidade através de um discurso alegórico e inquietante. As obras integram sistemas de vigilância e de controlo institucional bem como domínios económicos impessoais que mantêm os sujeitos isolados física e psicologicamente ou envolvidos em práticas de sobrevivência.

Assim, a obra Levantado do Chão (1980) concretiza o paradoxo metaficcional da consciencialização do homem sobre a sua alienação sócio-política. Uma obra de repressão centrada na ditadura de Salazar que se transforma em intérprete social de um espaço em reestruturação e recuperação da identidade nacional a partir da ruptura do sistema agrário e do despertar ideológico. A Caverna (2000) é uma metáfora do capitalismo como estrutura governante no tempo da globalização. Através da figura de um Centro que desencadeia desejos exacerbados de ordem capitalista é retratada uma sociedade que aniquila a introspecção ideológica em virtude de uma realidade ilusória. As personagens são encantadas por espaços distópicos contemporâneos, por um falso progresso e por uma modernização desigual e desintegradora. A análise de Ensaio sobre a

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Cegueira (1995a) completa esta viagem da identidade social a partir de um exercício de autognose na forma de literatura de denúncia, em que ocorre o resgate da experiência humana através de situações de epidemia, cativeiro e tortura. Esta obra permite discutir a anulação da identidade como elemento fundamental para a construção de uma ideologia em que o leitor desempenhará um papel importante na descodificação da verdade histórica e social.

Martins assinala a reflexão política e ideológica reconhecida ao discurso pós-moderno, na tentativa de reescrita da própria História. Nesta obra é revelado que, em Levantado do Chão, a atemporalidade e a subversão dos acontecimentos passados reestruturam a

consciencialização do oprimido face à a-naturalidade dessa imobilidade que o confina à miséria e à alienação, incitando à recuperação da temporalidade pela reescrita da sua história, pessoal e colectiva, num contexto que já não o ignora nem subjuga, mas que dele depende. (Martins 2005: 29)

Em Levantado do Chão os sujeitos vivem num tempo ausente de justiça e em privação física e psicológica. Através da construção de um espaço rural emblemático, a obra expressa de forma documental diversas vertentes da realidade portuguesa: personagens que não obedecem a uma tipologia, mas que se enquadram numa representação social estruturada com indivíduos alienados da realidade política por imposição ideológica do Estado, do Latifundiário e da Igreja. O indivíduo sobrevive expondo a elevação humana do «bicho da terra» (Saramago 1980: 73) a partir de uma posição narratológica que oferece a possibilidade de uma reescrita múltipla do passado, em que “tudo isto pode ser contado de outra maneira” (Saramago 1980: 14).

Na história de um Portugal rural reconfigurado na sobrevivência de uma família alentejana desde o princípio do século XX até meados da década de setenta, Levantado do Chão focaliza eventos como a Implantação da República em 1910, a I Guerra Mundial, a Guerra Civil espanhola, a ascensão do Estado Novo e a Revolução dos Cravos de 1974. O narrador reforça a inexistência de reverberação dos acontecimentos históricos na vida dos personagens:

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Ganhavam os homens doze ou treze vinténs, e as mulheres menos de metade, como de costume. Comiam ambos o mesmo pão de bagaço, os mesmos farrapos de couve, os mesmos talos. A república veio despachada de Lisboa, andou de terra em terra pelo telégrafo, se o havia, recomendou-se pela imprensa, se a sabiam ler, pelo passar de boca em boca, que sempre foi o mais fácil. O trono caíra, [...] o latifúndio percebeu tudo e deixou-se estar […] entre o latifúndio monárquico e o latifúndio republicano não se viam diferenças e as parecenças eram todas. (Saramago 1985: 33-34)

Os acontecimentos históricos surgem como paralelos à vida dos sujeitos ficcionais e em que apenas a comemoração livre do Dia do Trabalhador emerge com uma força restauradora e catalisadora de sentimentos guardados durante gerações. José Saramago procede a uma desconstrução e sobretudo questionamento do discurso institucionalizado pela história e apresenta uma produção literária de carácter ideológico e universalizante. Neste romance estão presentes várias gerações de sofrimento da família Mau-Tempo: um primeiro momento de resignação pela opressão política e económica, um tempo de questionamento, mudança e coragem e um período de luta que leva à elevação da condição do trabalhador:

Cansamo-nos a trabalhar de noite e de dia, quando há trabalho, e não aliviamos o nosso castigo na vida faminta, cavo uns bocaditos de terra quando mos dão para cultivar, e até altas horas, e agora é um geral desemprego, o que eu queria era saber porque são estas coisas assim e se vai ser assim até morrermos todos, não há justiça se uns têm tudo e os outros nada. (Saramago 1980: 212 )

Ana Paula Arnaut menciona que estes “esquecidos” (2002a: 21) representam metonimicamente heróis sem nome resgatados da sua condição humilde e que se levantam do chão a partir de uma proposição ideológica que integra os limites da compreensão histórica associados às lutas políticas e identitárias. Em Levantado do Chão, o relatar do passado surge como uma recuperação por um lado de um tempo incompleto: “[t]odos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos […] não acabaríamos nunca mais” (Saramago 1980: 59), para além de imperfeito: “[p]assaram cinco dias, que teriam tanto para contar como quaisquer outros, mas estas são debilidades do relato, às vezes tem de saltar por cima do tempo” (ibid.: 252) ou imaginado:

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[i]magine-se que nos perdíamos agora a decifrar e explicar a expressão destes olhos, não chegaria a história ao fim, ainda que tudo isso, o que parece pouco e o que parece de mais, da mesma história faça parte, maneira tão boa como outra que o seja de contar. (ibid.: 103)

Em entrevista a Carlos Reis, Saramago refere que a “arrumação caótica” justifica a atemporalidade histórica e discursiva, “um tempo simultaneamente linear e labiríntico, instável, movediço, tempo com as suas leis próprias, um fluxo verbal que transporta uma duração […] fluindo e refluindo como uma maré entre dois continentes” (Saramago & Reis 1998: 135). Este romance de Saramago torna-se em peça angular de uma visitação ciente e irónica da História e actualiza o questionamento da realidade para uma tomada de consciência ideológica. A necessidade de reorganizar o passado por intermédio do ficcional reside na capacidade de reinscrever, reactivar, relocalizar e ressignificar esse mesmo passado.

Jorge Fernandes da Silveira (1988) faz referência a uma LEI na imagem da Santíssima Trindade – Latifúndio, Estado e Igreja, e da força do latifúndio a partir de uma sucessão irónica de Bertos (Lamberto, Angilberto, Floriberto, Norberto, Gilberto, Adalberto). Tal como o narrador de Levantado do Chão professa, esta sequência satírica representa o domínio intemporal das elites: “é o mesmo que dizer latifúndio e dono dele” (Saramago 1980: 196). A imagem de aparente anulação da identidade surge pela repetição abusiva de um eco que se perpetua como figura de poder subjugador e que manifesta a continuação da autoridade nas mãos dos mesmos latifundiários: “Estes homens e estas mulheres nasceram para trabalhar, são gado inteiro ou gado rachado […], a crescer de qualquer maneira” (ibid.: 327). Como tal, é necessário que venham a ser “perfeitos instrumentos de cava e ceifa, de monda e serventia geral” (327). Segundo a denominada LEI, “[o] povo fez-se para viver sujo e esfomeado […]. É preciso que este bicho da terra seja bicho mesmo” (73), posição que provoca o aprisionamento físico e que impossibilita a liberdade psicológica e ideológica.

O narrador utiliza uma recorrente animalização para reforçar este posicionamento e descreve os trabalhadores como: “animais de pernas e braços” (71), “canzoada” (72), “bicho da terra” (73), “bichos estranhos” (108), “cavalos” (119), “macacos” (166), “coelhos do latifúndio” (290), “cães” (313), “porcos” (320), “formigas” (325). A desumanização dos indivíduos está associada à anulação da identidade como elemento para o

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aprisionamento ideológico. Segundo o narrador, “[h]á quem defenda que sem o nome que temos não saberíamos quem somos, é um dito que parece perspicaz e filosófico” (ibid.: 208). A abolição onomástica ou a substituição por um nome que visa comparar o sujeito a situações de animalidade é outro modo de escravização física e emocional. Para além das personagens adquirirem designações de animais, a estes por seu turno são-lhes atribuídas características que lhes permitem testemunhar as injustiças cometidas “forçara a rapariga que fora só por água à fonte, à vista de pássaros de plumagem que não variou, olhando lá de cima os dois a debater-se na verdura, quantas vezes isto já foi contemplado pelas aéreas criaturas desde o princípio do mundo” (ibid.: 61). Outras criaturas que aparecem como espectadoras das atrocidades, dos interrogatórios e dos assassinatos cometidos pela Polícia Internacional de Defesa do Estado Português (PIDE) são as formigas que presenciam a tortura de Germano Santos Vidigal (personagem verídica a quem é dedicada a obra juntamente com José Adelino dos Santos).

Agora mesmo caiu um dos homens, fica ao nível das formigas, não sabemos se as vê, mas vêem-no elas, e tantas serão as vezes que ele cairá, que por fim lhe terão decorado o rosto, a cor do cabelo e dos olhos, o desenho da orelha, o arco escuro da sobrancelha, a sombra tão branda da comissura da boca, e de tudo isto mais tarde se farão longas conversas no formigueiro para ilustração das gerações futuras, que aos novos é útil saberem o que vai pelo mundo. […] Lavra grande indignação entre as formigas, que assistiram a tudo, ora umas, ora outras, mas entretanto juntaram-se e juntaram o que viram, têm a verdade inteira, até a formiga maior, que foi a última a ver-lhe o rosto, em grande plano, como uma gigantesca paisagem, e é sabido que as paisagens morrem porque as matam, não porque se suicidem. […] Holmes está morto e enterrado, tão morto como Germano Santos Vidigal, tão enterrado como não tarda que este esteja, e sobre estes casos hão-de passar os anos e há-de pesar o silêncio até que as formigas tomem o dom da palavra e digam a verdade, toda a verdade e só a verdade. (ibid.: 169-176)

Esta história é metonimicamente a de muitos torturados e assassinados pela PIDE e que desta forma se encontra resgatada do esquecimento através da reestruturação da memória num claro paralelismo entre a flagelação da vítima e a crucificação de Jesus Cristo.

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As personagens “levantam-se” do chão progressivamente e envolvem-se em lutas físicas e psicológicas por melhores condições de vida como a defesa do aumento de salário porque estão a acabar “os tempos da conformação” (Saramago 1985: 328). Assim, o tema da identidade está presente ao longo da narrativa através da anulação das características que definem a humanidade, não só pelo nome, mas na redução do ser humano a animal pela escravização física e psicológica e ao estado de apatia geral que conduz ao apagamento civilizacional. Estamos perante um estudo da anulação identitária que ajuda a compreender os mecanismos repressivos e ideológicos na modernidade onde podemos enumerar a fome, a miséria e a tortura como aparatos que inibem o sujeito de obter uma consciencialização da situação social e política.

O romance A Caverna (2000) complementa esta análise e revela-se uma obra de epifania em que aparece representada uma sociedade que aniquila a introspecção ideológica em virtude de uma realidade ilusória e instável. A aquisição de bens, produtos ou riqueza cega os indivíduos e afasta-os de qualquer pensamento racional ou crítico sobre a sociedade ou método de governação. Os sujeitos modernos experienciam uma falsa concepção de pertença a um espaço materializado na posse e na capacidade de obtenção de um produto comercial.

A acção decorre por um lado ao redor da olaria, do lugar que fixa o trabalho ao lar como universo identitário. O tempo à volta do forno é lento e de aprendizagem, um processo moroso que se arrasta tal como a cozedura dos vários objectos:

Já se tinha visto como o barro é amassado aqui da mais artesanal das maneiras, já se tinha visto como são rústicos e quase primitivos estes tornos, já se tinha visto como o forno lá fora conserva traços de inadmissível antiguidade numa época moderna. (Saramago 2000: 147)

Por outro lado, surge o Centro, lugar anónimo, “um edifício gigantesco, quadrangular, sem janelas na fachada lisa, igual em toda a sua extensão” (ibid.: 17). Esta estrutura não contempla unicamente o espaço público, mas a esfera do privado através de janelas envidraçadas e montras que circundam todos os lugares,

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quarenta e oito andares acima do nível da rua e […] dez pisos abaixo dela. […] a largura das fachadas menores é de cerca de cento e cinquenta metros, e a das maiores um pouco mais de trezentos e cinquenta […] salvo erro, omissão ou confusão, um volume de nove milhões cento e trinta e cinco mil metros cúbicos, mais palmo menos palmo, mais ponto menos vírgula. (Saramago 2000: 101)

O Centro funciona como microcosmos da cidade globalizada, metáfora do mundo moderno em que a permanente alteração da estrutura aprofunda a impessoalidade do edifício e acentua o processo de incomunicabilidade com os sujeitos. Novas construções e ampliações funcionam como uma máquina em ininterrupta expansão comercial. Para o Centro, “o melhor agradecimento está na satisfação dos nossos clientes, se eles estão satisfeitos, isto é, se compram e continuam a comprar, nós também o estaremos” (ibid.: 130).

Na estrutura comercial existe uma lógica de poder bem delimitada, na medida em que as leis de mercado se autorregulam numa dialéctica de domínios entre a governação e o poder político e em que “as configurações hierárquicas se definem e se mantêm por e para serem escrupulosamente respeitadas, e nunca ultrapassadas ou pervertidas” (ibid.: 131-132). Segundo o protagonista, o Centro é conhecedor de todos os mecanismos de persuasão e domínio, como acontece com o segredo da abelha que reconhece e controla:

[P]ossivelmente o segredo da abelha reside em criar e impulsionar no cliente estímulos e sugestões suficientes para que os valores de uso se elevem progressivamente na sua estimação, passo a que se seguirá em pouco tempo a subida dos valores de troca, imposta pela argúcia do produtor a um comprador a quem foram sendo retiradas pouco a pouco, subtilmente, as defesas interiores resultantes da consciência da própria personalidade, aquelas que antes, se alguma vez existiu um antes intacto, lhe proporcionaram, embora precariamente, uma certa possibilidade de resistência e autodomínio. (Saramago 2000: 240)

A estrutura comercial apresenta um carácter opressor e esquizofrénico no controlo dos seus habitantes, de forma a provocar uma alienação emocional a partir de estímulos que levam à aquisição de bens. Um espaço labiríntico e paradoxal, catalisador de experiências humanas, porque “são os gostos

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do Centro que determinam os gostos de toda a gente” (ibid.: 42). Este gigante complexo para além de satisfazer as necessidades dos sujeitos, recria artificialmente experiências naturais como chuva, vento e neve para os seus clientes nunca terem necessidade de sair da estrutura. A partir de “cinquenta e cinco volumes de mil e quinhentas páginas de formato a-quatro cada um que constituem o catálogo comercial do Centro” (309), os compradores têm uma escolha diversificada que proporciona mais de oitenta anos de ócio consecutivo. A dificuldade de satisfazer a totalidade dos desejos por ausência de tempo ilimitado é um dos estímulos da sociedade de aquisição de bens a partir da disseminação de uma ideologia consumista.

Um número quase infinito de actividades contribui para a alienação dos indivíduos dos seus deveres morais, políticos e ideológicos para a satisfação do mercado capitalista. Aqueles que não se enquadram no sistema encontram-se em “bairros de excluídos” ou em “barracas” (ibid.: 16), uma vez que a relação entre o Centro e os seus habitantes é de total dependência através da utilização do consumismo como forma de aprisionamento. Ou seja, seres excluídos para a periferia, desempregados de uma função social e responsáveis pelo seu próprio fracasso, sendo considerados marginalizados, uma vez que o Centro funciona como a materialização da relação dos sujeitos com a sociedade. Numa fase inicial, a estrutura comercial opta por reduzir para metade a aquisição dos objectos da olaria e só mais tarde termina o vínculo contratual, situação que confronta o oleiro com a ausência de trabalho e a desvalorização da sua condição de trabalhador útil: “Não se trata de orgulho […] é mais complicado do que o orgulho, é outra coisa, uma espécie de vergonha” (34). Cipriano Algor é obrigado a reaprender a sua maestria na modelação de bonecos como um acto de sobrevivência e que funciona como metáfora da geração divina.1

1 Cf. “Ia medir-se com o barro, levantar os pesos e os alteres de um reaprender novo, refazer a mão entorpecida, modelar umas quantas figuras de ensaio que não sejam, declaradamente, nem bobos nem palhaços, nem esquimós nem enfermeiras, nem assírios nem mandarins, figuras de que qualquer pessoa, homem ou mulher, jovem ou velha, olhando-as, pudesse dizer, Parecem-se comigo. E talvez que uma dessas pessoas, mulher ou homem, velha ou jovem, pelo gosto e talvez a vaidade de levar para casa uma representação tão fiel da imagem que de si própria tem, venha à olaria e pergunte a Cipriano Algor quanto custa aquela figura de além, e Cipriano Algor dirá que essa não está para venda, e a pessoa perguntará porquê, e ele responderá, Porque sou eu” (Saramago 2000: 152-153).

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A epígrafe que acompanha a obra, retirada do Livro VII de A República de Platão (“Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros, são iguais a nós”, ibid.: 9) e a descoberta da própria Caverna de Platão nas fundações do Centro concretizam o significado alegórico do romance. O romance torna-se desta forma num espaço de reflexão e de questionamento, de travessia para outra margem através da amplificação da reflexão filosófica. Esta obra funciona como uma metáfora do obscurecimento da razão pautada pela desactualização acelerada das estruturas tradicionais e da injustiça das práticas financeiras onde é apresentada uma reflexão sobre os anseios e as ilusões do indivíduo para a construção de uma consciência social. A Caverna de Platão, imagem de ensinamento e revelação, ao ser descoberta nas fundações do Centro e explorada como atracção turística, funciona como a transformação da epifania em bem comercial.

Numa era marcada pela fragmentação do tempo e do espaço, a desactualização das estruturas tradicionais e dos modelos estéticos e éticos, o exacerbamento do individualismo e o ideal revolucionário no capitalismo, o sujeito encontra-se prisioneiro de um momento de descoincidência temporal e de um espaço eterno, ausente de concretização física devido aos aparatos tecnológicos que multiplicam a sua presença virtual. O desenvolvimento destes novos núcleos de poder reestrutura o conceito de identidade e questiona as bases do pensamento ideológico da modernidade. Nesta obra, a junção do decorrer do tempo moderno, impositor de uma ideologia económica a uma atitude de descoberta activa por parte do sujeito humilde transformado em herói reconfigura a leitura da condição humana.

De forma a continuar a análise da identidade social em Saramago, Ensaio sobre a Cegueira (1995a) ajuda a clarificar a imagem da condição do sujeito na modernidade. Este romance é um resgate da experiência humana face a situações de epidemia e clausura e discute as tentativas de anulação da identidade como elemento fundamental para a construção de uma nova ideologia. O carácter universal da reconfiguração do espaço, a visível incomunicabilidade e a geografia ficcional constituem o lugar de reflexão ideal para a temática da identidade social. A obra funciona como um relato visceral do comportamento humano em situação extrema de encarceramento, a via-sacra carnal de uma realidade que ultrapassa as fronteiras geográficas, visto ser fruto das severas consequências de um tempo e espaço desigual

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e desintegrador. A compreensão das estruturas de aprisionamento físico e psicológico permite o desenvolvimento de um discurso, não só das questões identitárias, mas das relações entre integração e desintegração, e das diferentes análises da repressão social, política e ideológica.

O apagamento das categorizações, através da privação dos elementos básicos para o suporte vital, associados à anulação onomástica, a configuração de um espaço abstracto e a incomunicabilidade das estruturas de poder político e económico que se materializam em comportamentos repressivos, contribuem para a reflexão sobre os aspectos identitários. Esta elasticidade temática permite uma leitura universal dos condicionamentos do sujeito na actualidade e, desta forma, a utilização do vocábulo “ensaio” enquadra-se dentro deste questionamento social. Esta composição expositiva foca uma grande amplitude de temas baseados na interpretação, informação e explicação tendo uma forte componente persuasiva associada ao estado ético e estético visando reflectir uma perspectiva filosófica e crítica. O escritor português apresenta uma imago mundi da ausência de liberdade, da luta pela sobrevivência que aniquila e subjuga a vida dos indivíduos. Ensaio sobre a Cegueira é lugar de abjecção, de degradação das relações humanas entre cenários de barbárie que transformam a existência em animalidade e em que surge uma perspectiva aterradora para todos os sujeitos que pretendem sair da escuridão.

Esta obra é uma reescrita das questões do ser em que a cegueira surge como metáfora da incapacidade do sujeito reconhecer os mecanismos de controlo físico e psicológico. A duplicidade surge através de conceitos como os de cegueira em oposição à lucidez, visão e escuridade, consciência e inconsciência, humanidade e desumanidade. Outra das questões presentes prende-se com a articulação de um comportamento paradoxal relativamente à institucionalização da cultura do medo, a partir de personagens representativas de um pronome colectivo. Como é descrito, “O medo cega […] já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos” (Saramago 1995a: 131). O propósito ensaístico sugere a análise da condição humana numa cidade onde se propaga a cegueira, fazendo do leitor um participante activo, além de testemunha: “Penso que todos estamos cegos. Somos cegos que podem ver, mas que não vêem” (ibid.: 310). Todas as imagens de descrição

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da cegueira equivalem a chamadas de atenção para a particularidade da enfermidade, associadas não só à brancura, mas a esta duplicidade de significado, “[s]e os meus olhos estão perfeitos, como diz, então por que estou eu cego” (23).

No decorrer da narrativa surge de forma persistente o carácter binário da epidemia, “mas quem nos diz a nós que esta cegueira branca não será precisamente um mal do espírito” (90), “Estar cego não é estar morto, Sim, mas estar morto é estar cego” (111), “a cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança” (204), “estes cegos não o são apenas dos olhos, também o são do entendimento” (213), “o pior cego foi aquele que não quis ver” (283). Como medida de prevenção, as autoridades resolvem isolar todos os contaminados pela epidemia brancosa num manicómio

murado em todo o seu perímetro, ainda tem a vantagem de se compor de duas alas, uma que destinaremos aos cegos propriamente ditos, outra para os suspeitos, além de um corpo central que servirá, por assim dizer, de terra-de-ninguém. (Saramago 1995a: 46)

A irónica autorização do ministro que dá “carta branca” ao transporte dos cegos para o manicómio é complementada pela mobilização de soldados enviados para controlar a área transformando progressivamente o espaço numa estrutura prisional. O isolamento começa desde um estado inicial a apresentar contornos de exclusão física acentuado pela degradação do ambiente, sem canalizações básicas e fornecimento de água. A integração gradual de vários elementos alienadores reconfigura o espaço e recria progressivamente uma instabilidade na identidade dos sujeitos, já deformada pela cegueira (como a ausência de contacto com o exterior, de cuidados médicos e com a falta de bens essenciais e comida).

A decisão da mulher do médico em confirmar a sua cegueira, mesmo sem o estar, unicamente para acompanhar o marido, define o carácter da protagonista do romance. Esta visionária que relembra a Blimunda em permanente jejum (numa apropriação da personagem de Memorial do Convento), conseguirá ver o “pavor” (Saramago 1995a: 90), o “horror” (97) e o “caos” (244) de tudo o que irá testemunhar, “[d]e que me serve ver.

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Servira-lhe para saber do horror mais do que pudera imaginar alguma vez, servira-lhe para ter desejado estar cega, nada senão isso” (152). O cenário transforma-se rapidamente num ambiente de degradação física salientando a desorientação dos sujeitos (cf. 167).

A identificação entre os cegos dentro do manicómio é baseada nas profissões que cada um desempenhava, funcionando como elemento categorizador, ou seja, uma reivindicação do espaço interior a partir de uma posição exterior. A anulação da identidade ocorre lentamente devido ao afastamento civilizacional e à degradação das condições de vida:

[t]ão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembramos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir-nos os nomes, nenhum cão reconhece outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que lhe foram postos, é pelo cheiro que identifica ou se dá a identificar, nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo-nos pelo ladrar, pelo falar, o resto, feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não existisse, eu ainda vejo, mas até quando. (Saramago 1995a: 64)

Com a propagação da cegueira “centenas de casos todos iguais, todos manifestando-se da mesma maneira, a rapidez instante, a ausência desconcertante de lesões, a brancura resplandecente do campo visual” (ibid.: 122) e com a entrada de inúmeros cegos no manicómio, a mulher do médico profetiza que “o inferno prometido vai principiar” (72). A representação metafórica de que “[o] mundo está todo aqui dentro” (102) concretiza a universalidade da cegueira. Episódios de animalidade surgem enquadrados na necessidade de sobrevivência em que a sujidade e o odor de putrefacção, a ausência de moralidade e a conduta sexual de indivíduos com contornos de selvajaria transformam rapidamente o espaço num primitivismo absoluto (cf. 136).

A mulher do médico encontra-se numa posição dupla que lhe permite questionar a sua própria identidade a partir de uma análise interior e da observação e perspectivação do exterior. Esta personagem apresenta uma densidade única que integra ao mesmo tempo uma carga emocional complexa e uma simplicidade ausente de inveja, vaidade ou ciúmes. Ao

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ser responsável por seis personagens que compreendem o primeiro cego e a sua mulher, a rapariga dos óculos escuros, o rapaz estrábico, o velho da venda preta e o seu marido, o grupo funciona como um conjunto de sete elementos, representação simbólica da universalidade. Este número como a unidade da perfeição caracteriza não só este grupo de sujeitos plurais como a quantidade de mulheres cegas que vai satisfazer sexualmente os contaminados de uma camarata do manicómio, em troca de alguma comida que estes tinham roubado. Como o milagre da multiplicação dos pães e peixes na totalidade do número sete, estas mulheres terão de se sacrificar para sobreviver e alimentar os outros que ficaram na respectiva camarata:

Durante horas haviam passado de homem em homem, de humilhação em humilhação, de ofensa em ofensa, tudo quanto é possível fazer a uma mulher deixando-a ainda viva […] o corpo subitamente desconjuntado, as pernas ensanguentadas, o ventre espancado, os pobres seios descobertos, marcados com fúria, uma mordedura num ombro, Este é o retrato do meu corpo, pensou, o retrato do corpo de quantas aqui vamos. (Saramago 1995a: 178).

Uma das personagens femininas consegue provocar um fogo na camarata que se propaga posteriormente e permite a saída dos cegos para o exterior, altura em que se revela que todos os habitantes da cidade estão cegos. Este espaço vem a revelar-se um cenário mais pavoroso do que o anterior com a progressiva acumulação de lixo nas ruas (cf. ibid.: 251). Os sete elementos do grupo empreendem uma viagem de reconhecimento da destruição, dor, angústia e desespero fora do manicómio, os quais só a mulher do médico pode testemunhar. A constatação de uma humanidade transformada em animalidade associada a um primitivismo absoluto é reposta no final com a restituição da visão.

O apagamento das categorizações identitárias, através da privação dos elementos básicos para o suporte vital devido à cegueira associados à anulação onomástica, a configuração de um espaço abstracto e a incomunicabilidade das estruturas de poder contribuem para a reflexão sobre os aspectos identitários. Esta elasticidade temática permite uma leitura universal dos condicionamentos do sujeito na modernidade, na linha proposta por Maria Alzira Seixo:

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A marca da modernidade em Saramago continua intacta, sobretudo na capacidade interventora da sua escrita e na construção modularmente elaborada e reflectiva dos seus textos [...] o que permanece agora, hoje, é […] que a intervenção social torna-se de novo necessária e imprescindível à sua intenção actuante. (1999: 126-127)

O aparecimento de interrogantes da identidade na sociedade moderna ocorre devido a alterações institucionais, de acordo com a proposta de Anthony Giddens (1991). Os aspectos ‘micro’ da sociedade que correspondem ao sentido da identidade pessoal estão relacionados com os aspectos ‘macro’ que compreendem a figura do Estado, de empresas capitalistas multinacionais ou mesmo da própria globalização. Em sociedades que aniquilam o pensamento ou a livre ideologia, que distraem os indivíduos com prazeres mundanos ou que os mantêm presos a lutas pela sobrevivência, os elementos micro são ultrapassados pelos macro. Através de um falso conceito de liberdade, os seres humanos vivem encurralados numa posição que os afasta da realidade. Tendo como base de interpretação a análise das descontinuidades da modernidade de Anthony Giddens, é possível fazer uma leitura das obras de José Saramago em estados definidos que marcam o desenvolvimento da modernidade: a ruptura do estado agrário (em Levantado do Chão), a emergência do capitalismo (n’A Caverna) e a imposição do poder militar e dos riscos que se levantam de um sistema de vigilância (em Ensaio sobre a Cegueira).

José Saramago resgata a questão da identidade pessoal como entendimento dos fundamentos sociais. Os textos referidos são retratos de uma modernidade fragmentada por uma globalização inacabada e contribuem para uma melhor compreensão do mundo contemporâneo. Numa vertente multidisciplinar, interdiscursiva e intersemiótica evidenciam a convergência do espaço literário, cultural e político como definidores de uma identidade social e assim apelam a uma tomada de consciência de carácter histórico e teórico.

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“Vale mais ser romancista, ficcionista, mentiroso” – realidade e ficção no romance

A Viagem do Elefante de José Saramago

Yvonne Hendrich

Que pode ser mais inverosímil do que a realidade?(Fiódor M. Dostoiévski)

A confiar nas fontes históricas,1 o arquiduque Maximiliano da Áustria e a sua comitiva chegaram a Viena na primavera de 1552 com um cortejo realmente pomposo.2 A atenção da população vienense caiu sobre uma criatura que se destacava majestosamente da multidão: um imponente elefante macho indiano que ficou conhecido para a posteridade pelo nome de Solimão.3

1 Em particular, Oettermann (1982), Halbritter (2002) e Opll (2004, 2005) contribuiram decisivamente para a investigação dos documentos. 2 Segundo um poema em homenagem a Maximiliano, a comitiva já deve ter chegado no início de março de 1552 a Viena, mas o cortejo festivo só teve lugar no dia 7 de maio (cf. Opll 2004: 234-236, 246-248; Halbritter 2002: 196-197).3 O elefante deve ter nascido na província de Kerala, sudoeste da Índia, provavelmente em 1540, porque uma fonte contemporânea de 1552 fala de 12 anos de idade (Opll 2004: 243). Desconhece-se a data exata da sua chegada a Lisboa, provavelmente em 1550 ou 1551.

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Fig. 1: Medalhão comemorativo com inscrição, Michael Fuchs, Viena, 1554

Como presente da corte de D. João III a seu primo, o arquiduque Maximiliano da Áustria, rei da Boémia, genro do imperador Carlos V4 e membro da Casa de Habsburgo, o elefante viajou no verão de 1551 de Lisboa até Valladolid, onde foi entregue a Maximiliano, o seu novo dono. Em seguida, no seu caminho de Espanha via Génova, Trento e Innsbruck até Viena, o elefante e o séquito arquiducal atravessaram em pleno inverno os Alpes, seguindo literalmente as pegadas dos elefantes de Aníbal.

Se bem que o paquiderme indiano como bicho de raro e exótico aspeto causasse, nos meados do século XVI, sem a menor dúvida, admiração e espanto incrédulo ao longo do seu itinerário, a verdade é que este tipo de presentes com quatro patas, oferecidos pela coroa portuguesa a soberanos

4 No âmbito da política dinástica da Casa de Habsburgo, Maximiliano (1527-1576) casou em Valladolid em 1548 com a sua prima Maria, a filha mais velha do imperador Carlos V, que era, ao mesmo tempo, seu tio e sogro. De 1549 a 1551, Maximiliano foi governador em Espanha; em 1549 foi designado e em 1562 coroado Rei da Boémia. Em 1564 foi eleito e coroado como Imperador Maximiliano II do Sacro Império Romano da Nação Germânica. Exerceu os seus cargos até à morte em 1576 (cf. Opll 2004: 240-241; Ernst 1899: 346).

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europeus e, certamente, com intenções diplomáticas e políticas, eram já uma tradição. Em 1514 e 1515 tinham sido enviadas ao Papa Leão X, em Roma, delegações portuguesas que levavam consigo um elefante e um rinoceronte de proveniência indiana. Mas, lamentavelmente, foi só o elefante que alcançou o seu destino de boa saúde.5 O rinoceronte, que a caminho de Roma perdeu, infelizmente, a vida nas ondas tormentosas do Mar Mediterrâneo, só chegou empalhado ao seu destinatário. Mas através de uma gravura em madeira, datada de 1515, realizada por Albrecht Dürer, o célebre artista de Nuremberga, alcançou fama póstuma (Hendrich 2007: 264-270).

Fig. 2: “Rhinocerus”, gravura (madeira), Albrecht Dürer, Nuremberga, 1515

Todavia, o elefante Solimão chegou a Viena são e salvo e em perfeita consciência na primavera de 1552. Lá morreu um ano e meio depois. Desconhece-se a causa exata da morte (Reitterer 2005: 334-335; Opll 2005: 337-338), pois, como Saramago constata de modo lacónico no epílogo do seu romance A Viagem do Elefante, publicado em 2008,

5 Segundo relatos contemporâneos ele ainda chegou a gozar de grande popularidade em Roma, conhecido pelo nome Annone (Hanno, em alemão) (cf. Barbas 2000: 103-109; Rodrigues/Devezas 2008: 49-50; Oettermann 1982: 104-109).

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[…] ainda não era tempo de análises de sangue, radiografias de tórax, endoscopias, ressonâncias magnéticas e outras observações que hoje são o pão de cada dia para os humanos, não tanto para os animais, que simplesmente morrem sem uma enfermeira que lhes ponha a mão na testa. (Saramago 2008: 257)

Como Saramago nos faz saber no prólogo deste livro, ele foi convidado em 1999 para uma comunicação na Universidade de Salzburgo pela leitora portuguesa Gilda Lopes Encarnação. Durante o jantar no restaurante do hotel com o curioso nome “O Elefante” viu um friso de pequenas esculturas de madeira postas em fila das quais a primeira mostrava a Torre de Belém e a última representava Viena (cf. Saramago in Cordeiro 2008).

As figuras traçavam um itinerário por vários países europeus e Saramago averiguou que se tratava da rota de um elefante indiano levado de Lisboa para Viena nos meados do século XVI. Saramago destaca que, sem este acaso, o “livro não existiria. […] Pressenti que podia haver ali uma história e fi-lo saber a Gilda Lopes Encarnação” (Saramago & Silva 2008: 7).

Fig. 3: Hotel Elefant, Salzburgo

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No seu romance — ou conto, como o próprio autor prefere designá-lo —6 José Saramago reinventa, com muita ironia e com relatos de diversos acontecimentos absurdos e grotescos, o percurso do elefante Salomão-Solimão, conduzido pelo seu cornaca (ou mahut, isto é, tratador) Subhro, por terra e mar, por planícies e montanhas de Portugal até à Áustria.7

Nós, como leitores, estaríamos quase dispostos a acreditar que a viagem de Lisboa até à metrópole austríaca poderia ter ocorrido mais ou menos desta maneira, se não fossem os anacronismos e comentários irónicos de um narrador, imiscuindo-se constantemente, que nos recordam a todo o momento a metaficção historiográfica8 da narrativa:

O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo delas. (Saramago 2008: 35)

Mais uma vez, na A Viagem do Elefante de Saramago, a realidade e a ficção aparecem como uma unidade indissolúvel, mais uma vez desvanece-se a fronteira entre a realidade historicamente comprovada e a ficção literária, ou melhor, a imaginação do romancista,

a quem haverá que perdoar certas liberdades em nome, não só do seu direito a inventar, mas também da necessidade de preencher os vazios para que não viesse a perder-se de todo a sagrada coerência do relato. (Saramago 2008: 226-227)

A conceção poetológica que Saramago nos apresenta, portanto, fica clara e leva-nos, a esta afirmação: O escritor não só tem licença para mentir, ele até tem a obrigação de o fazer para preencher as lacunas que a história (isto é, a suposta ‘realidade histórica’, transmitida pela historiografia e pelo discurso histórico), criticada como seletiva e preconceituosa, deixa para trás. Por isso, “vale mais ser romancista, ficcionista, mentiroso” (Saramago 2008: 227).

6 “[...] porque lhe falta o que caracteriza em primeiro lugar um romance: uma história de amor — o elefante não conhece uma elefanta no caminho — e conflitos, crises [...]”, argumentou Saramago numa entrevista em novembro de 2008 (in Cordeiro 2008). 7 Sem dúvida alguma, o elefante deixou algumas marcas. Existe um conto infantil da escritora alemã Margret Rettich (“Soliman, der Elefant”, de 1984). Em 2007, o realizador suiço Karl Sauer traça no filme documentário, intitulado Rajas Reise (A viagem de Raja), o itinerário histórico do elefante no contexto dos problemas de migração e desenraizamento.8 “Historiographic metafiction shows fiction to be historically conditioned and history to be discursively structured, […]” (Hutcheon 2004: 120).

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Segundo Linda Hutcheon, a metaficção historiográfica é uma das fulcrais caraterísticas do romance pós-moderno:

Historiographic metafiction [...] is self-conscious about the paradox of the totalizing yet inevitably partial act of narrative representation. […] It traces the processing of events into facts, exploiting and then undermining the conventions of both novelistic realism and historiographic reference. It implies that, like fiction, history constructs its object, that events named become facts and thus both do […]. This is the paradox of postmodernism. The past really did exist, but we can only know it today through its textual traces, its often complex and indirect representations in the present: documents, archives, but also photographs, paintings, architecture, films, and literature. (Hutcheon 2004: 75)

As questões que devem ser discutidas neste contexto das conceções pós-modernas de ficção e de história são as seguintes: Podemos falar, em relação ao passado, de uma “realidade histórica” ou existe a história só através do discurso e das interpretações dos historiadores? E qual a quantidade de ficção contida na própria história? Neste sentido, para podermos comparar o elefante Solimão da ‘realidade histórica’ com o Solimão na ficção voltemos às fontes históricas inicialmente mencionadas e à questão da sua credibilidade.

Na realidade, o nosso paquiderme existiu sem dúvida alguma. É um facto verídico que caminhou de Lisboa, via Valladolid até Barcelona, onde embarcou em direção a Génova, passou por Verona e Trento, atravessou os Alpes e chegou a Viena (Stagno 2004: 120-122; Pánek 1990: 69). As principais paragens do séquito foram as seguintes: Lisboa, Castelo Rodrigo,9 Valladolid, Barcelona, Savona, Génova, Milão, Cremona, Mântua, Verona, Trento, Bolzano, Bressanone, Innsbruck, Wasserburg, Mühldorf, Passau, Linz e finalmente Viena. Os testemunhos não abundam —“[o]s dados históricos sobre a existência deste elefante cabem numa página” (Saramago

9 “As autarquias das paragens [scil. em Portugal] por onde andou [...] o elefante do livro de José Saramago, estão apostadas em fazer do percurso do paquiderme uma rota turística. [...] Carlos Condesso, vereador de Cultura da autarquia de Figueira de Castelo Rodrigo, contou que as restantes autarquias das paragens [...] — Lisboa, Fundão, Pinhel, Belmonte, Sabugal e Constância — ‘já mostraram interesse’ em aderir à rota idealizada por aquela autarquia [...]. O próximo passo […] é estender a rota até Espanha, dado que no livro o elefante segue caminho para o país vizinho” ([Anónimo] 2011).

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in Vitória 2008) —, mas a rota e as povoações por onde Solimão e os seus acompanhantes passaram são documentadas por fontes escritas (relatos contemporâneos de legados e crónicas citadinas), assim como por fontes epi- e iconográficas (inscrições, epígrafes, frescos, relevos em pedra e placas comemorativas, gravuras tipográficas) que permitem uma recapitulação quase completa do itinerário (Oettermann 1982: 109-116; Halbritter 2002: 192-196; Opll 2004: 242-251; Heiss 2002: 16-22).

Fig. 4: Fachada do Hotel Elephant em Bressanone (Brixen), Tirol do Sul

Além disso, para lá do restaurante em Salzburgo já referido, onde Saramago fez a descoberta decisiva para a génese da sua obra, existem várias localidades gastronómicas no Tirol do Sul italiano e na Áustria, cujos nomes fazem referência a um elefante.10

10 Na fachada do hotel “Elephant” em Bressanone (Brixen), Tirol italiano, existe uma pintura que mostra o elefante com acompanhantes humanos (cf. Fig. 4). Ao lado da pintura encontra-se a seguinte inscrição: “Als man zalt 1551 [ou é um erro ou é devido ao calendário juliano] Jar den 2. tag Januari fürwar was dieses thier Elephandt in Teutschland unerkant alhie durchgfürt worden. Zu eren des großmächtigsten Fürsten und Herrn Maximilian zu Behmen Kunigreich Ertzherzog zu Oesterreich etc.” (cit., Heiss 2002: 21). A crónica de Hall de 1303 a 1572 no Tirol também menciona o paquiderme: “Hochgedachter Maximilian hat auch mit im pracht aus Hispania ain elephanttn, ist 12 schuech hoch gewesen und zwen zendt, ainer

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Após a morte de Solimão em Viena, em dezembro de 1553,11 os seus restos mortais foram aproveitados. Dos seus ossos foi feita uma cadeira com uma inscrição gravada no assento que dá informações sobre a origem, o peso e o caminho percorrido pelo elefante e, também, como mostram diversas gravuras e brasões, sobre o facto de a cadeira ter mudado várias vezes de dono.12 Ainda antes da dissecação, já o arquiduque Maximiliano tinha mandado esfolar o bicho, preparar a pele e colocar dentes em gesso. Mais tarde o nosso Solimão empalhado foi parar ao gabinete de curiosidades do arquiduque Albrecht V da Baviera, cunhado de Maximiliano, em Munique. Em 1928, o elefante foi transferido para o Museu Nacional da Baviera em Munique. Porém, não resistiu ao clima extremamente húmido na cave onde tinha sido posto a salvo, durante a Segunda Guerra Mundial, junto com outros artefactos e animais preparados.13

Estas são, portanto, as fontes e as provas evidentes e, literalmente, palpáveis. Mas em que medida podemos de facto acreditar no passado em termos de ‘realidade histórica’? Como já foi dito, o elefante ficou historicamente conhecido por Solimão (Soliman em alemão). No início de A Viagem do Elefante, ao chamá-lo Salomão, Saramago cria uma paranomásia que alude à alteração do nome, ordenada por Maximiliano mais tarde na narrativa, de Salomão para Solimão. Em relação ao nome de Solimão as fontes secundárias falam de uma alegada carta de D. João III a seu primo Maximiliano, na qual tinha proposto, supostamente, a forma Solimão (Soliman). A intenção era imitar o nome do sultão otomano Süleyman I, para humilhá-lo e, simbolicamente, torná-lo escravo do arquiduque ao levá-lo para Viena, a cidade que o sultão não conseguiu conquistar (Denkel 1980; Hubert/Kraft 1994: 31; Halbritter 2002: 191; Opll 2004: 242-243).

eeln lang und maussfarb” (cit., Schönherr 1867: 120). A inscrição na gravura repoduzida na Fig. 5 diz: “K.M D(er) KINIG ZV PEHAM HAT AVSS / ISPANIA IN DAS TEISHS LAND / GEFIERT AIN HELFANT IST ZV WASS / ERBURG ANKHOMEN AVF DEN 24 / IANVARI IM 1552 IAR” (apud Opll 2004: 245).11 Em 1554, Maximiliano mandou fazer um medalhão comemorativo que mostra o elefante montado por um homem vestido com um traje quinhentista (cf. Fig. 1).12 Desde os finais do século XVII, a cadeira encontra-se na coleção do convento e colégio Kremsmünster na Áustria (Opll 2004: 255-258; Heiss 2002: 19).13 O inventário do museu regista a saída final, ou melhor, a eliminação dos restantes resíduos orgânicos, no dia 28 de novembro de 1950. Consta que tinham sido feitos sapatos dos restos da sua pele (Opll 2004: 255).

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Fig. 5: O Rei da Boémia, Maximiliano da Áustria e o elefante Solimão em Wasserburg (24.01.1552), gravura em madeira

de Michael Minck

Porém, quanto à origem do nome e à existência da carta é necessário que tenhamos fortes dúvidas. Muito provavelmente trata-se de um truque ideológico de um cronista esperto e imaginativo que tivesse achado oportuno associar, em deturpação parodística, precisamente o nome do inimigo figadal de Habsburgo com o paquiderme indiano. No entanto, o leitor tende a atribuir essa ideia a Saramago, mas como vimos, a ironização do nome do sultão otomano baseia-se em fontes históricas, embora sejam provavelmente inventadas:

Que solimão é esse, perguntou, enxofrado, o rei, ainda não tem lá o elefante e já lhe quer mudar o nome, Solimão o magnífico, meu senhor, o sultão otomano, Não sei o que faria eu sem si, senhor secretário. (Saramago 2008: 29-30)

Por outro lado, a transformação absurda do nome próprio do cornaca de pele escura — Subhro, que é uma figura inventada por Saramago apesar de, com certeza, ter havido tratadores reais, como mostram as gravuras — cujo nome significa “branco” em bengali, num altamente estereotipado

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“Fritz”, para aproximar o nome impronunciável do tratador bengali ao mundo teutónico e aos seus hábitos linguísticos, não é derivado de nenhum incidente histórico, mas nasceu, única e exclusivamente, do repertório saramaguiano de jogos de palavras ironizantes:

Então o arquiduque maximiliano disse, O teu nome é custoso de pronunciar, […] passarás a chamar-te fritz, Fritz, repetiu com voz dorida subhro, Sim é um nome fácil de reter, além disso há já uma quantidade enorme de fritz na áustria, tu serás mais um, mas o único com um elefante. (Saramago 2008: 152-153)

Nesse contexto, isto é, em relação às dúvidas referentes à origem do nome “Solimão” e àquela carta, temos de voltar à nossa questão do início. Quanta ficção ou, melhor dito, quanta subjetividade, seletividade e intertextualidade contém realmente a história, ou seja, a historiografia e o discurso historiográfico?14

Saramago analisou a problemática inerente à relação entre história e ficção no ensaio “História e ficção” de 1990 (Saramago 1990) onde assume claramente a sua posição perante a ligação entre historiografia/história e ficção. Consciente do debate académico acerca desse assunto, Saramago retoma-o através da sua técnica metanarrativa:

Duas serão as atitudes possíveis do romancista que escolheu, para a sua ficção, os caminhos da História: uma, discreta e respeitosa, consistirá em reproduzir ponto por ponto os factos conhecidos, sendo a ficção mera servidora duma fidelidade que se quer inatacável; a outra, ousada, levá-lo-á a entretecer dados

14 A historiografia não é só influenciada subjetivamente, mas também muito suscetível a erros provocados por falta de conhecimento ou de atenção. Numa crónica vienense da primeira metade do século XVIII é descrita “a casa dos elefantes” (Elefantenhaus am Graben) em Viena e mencionado um fresco com uma inscrição em latim que se referia à chegada de Maximiliano e a do elefante em 1552: “[...] Anno M. D. LII” (Küchelbecker 1732: 765). Por baixo da inscrição encontrava-se um poema em alemão: “Dieses Thier heißt ein Elephant, [...] Als man zehlt 1552 Jahr” (apud Giese 1962: 14). Hoje o fresco já não existe, porque foi caiado em 1789. Aqueles versos em alemão também são citados por Küchelbecker, mas indicando, erroneamente, o ano de 1525: “Als man zehlt 1525. Jahr” (Küchelbecker 1732: 765). Talvez seja devido a esta troca de algarismos (1525 em vez de 1552), provavelmente uma gralha na impressão, que Solimão chegou a ser erradamente atribuído ao imperador Maximiliano I (1459-1519) e não ao imperador Maximiliano II (Immervoll 1982: 62-63).

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históricos não mais que suficientes num tecido ficcional que se manterá predominante. Porém, estes dois vastos mundos, o mundo das verdades históricas e o mundo das verdades ficcionais, à primeira vista inconciliáveis, podem vir a ser harmonizados na instância narradora. (Saramago 1990: 19)

Em A Viagem do Elefante, o narrador Saramago mostra-se mais uma vez extremamente descontente e cético em relação à história, cujo caráter subjetivo e seletivo ele critica. Também se queixa que a história reivindique um ilusório direito à veracidade:

Uma coisa que custa trabalho a entender é que o arquiduque maximiliano tenha decidido fazer a viagem de regresso nesta época do ano, mas a história assim o deixou registado como facto incontroverso e documentado, avalizado pelos historiadores e confirmado pelo romancista, a quem haverá que perdoar certas liberdades em nome, não só do seu direito a inventar, mas também da necessidade de preencher os vazios para que não viesse a perder-se de todo a sagrada coerência do relato. No fundo, há que reconhecer que a história não é apenas selectiva, é também discriminatória, só colhe da vida o que lhe interessa como material socialmente tido por histórico e despreza todo o resto, precisamente onde talvez poderia ser encontrada a verdadeira explicação dos factos, das coisas, da puta realidade. (Saramago 2008: 226-227)

Será que a nossa ideia do passado, da assim chamada ‘realidade histórica’, não passa de uma interpretação subjetiva? A este respeito o historiador alemão Reinhart Koselleck afirma que todos os acontecimentos historicamente investigados, averiguados e apresentados vivem da ficção do facto, enquanto a própria realidade já é passada:

Die Faktizität ex post ermittelter Ereignisse ist nie identisch mit der als ehedem wirklich zu denkenden Totalität vergangener Zusammenhänge. Jedes historisch eruierte und dargebotene Ereignis lebt von der Fiktion des Faktischen, die Wirklichkeit selber ist vergangen. (Koselleck 1990: 567)

A história, portanto, é suposta como ‘verdadeira’ meramente na medida em que nos é transmitida como ‘realidade histórica’: quer através da seleção subjetiva de historiógrafos, supostamente objetivos, que, em geral,

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estão submetidos às ideologias oficiais,15 quer através da perceção subjetiva e seletiva e do discurso de historiadores demasiado interpretativos que, na verdade, se obrigam a seguir métodos críticos, mas, no entanto, estão sempre sujeitos ao espírito, às escolas e tendências da respetiva época. “Parece indiscutível que o historiador tem de ser, em todos os casos, um escolhedor de factos. [...] Esse historiador, na realidade, não se limita a escrever História: faz a História.” (Saramago 1990: 19).

Pierre Barbéris, escritor e crítico literário francês, divide o termo “história” em três categorias: HISTÓRIA como a ‘realidade histórica’, História como a interpretação científica e o discurso dos historiadores e história como a narrativa, o mito, a fábula no sentido de uma história fictícia (Barbéris 1991: 9-13; Marinho 1999: 27-29). Na verdade, porém, a HISTÓRIA e a História dificilmente podem ser desentrelaçadas, porque a transmissão de ocorrências históricas através das fontes não pode ser considerada como desligada do discurso dos historiadores: “Die Geschichtsschreibung existiert nur durch ihren Diskurs” (Duby & Lardreau 1982: 49). Aquilo que nós consideramos história apresenta-se como uma conglomeração e um sistema relacionatório de acontecimentos, factos, notícias, fontes, obras canónicas de palavras e frases verídicas e de metódos e teorias de perceção e ensinamento institucionalizados:

‘Geschichte’ als temporale Fassung von ‘Wirklichkeit’ aktualisiert das Realismus-Problem auf erkenntnistheoretischer wie ästhetischer Ebene. Es verschärft die Problemstellung, insofern im Geschichtsbegriff Anspruch auf relevantes und sanktioniertes Wirklichkeitswissen mitschwingt. ‘Geschichte’ stellt sich als eine ‘gewisser gemachte’ Wirklichkeit dar. (Aust 1994: 7)

A história é apenas o reflexo da própria imagem que cada sociedade constrói do passado histórico, a história é relativa. Cada época, cada sociedade cria a sua ‘Antiguidade’, a sua ‘Idade Média’, o seu ‘Renascimento’, etc.

Escusado será dizer que a “realidade histórica sonhada”, a ilusão positivista da objetividade e do suposto construto da verdade histórica, foram ultrapassadas há muito. A diferenciação aristotélica entre o historiógrafo

15 Nesse contexto merece ser mencionado que, em relação ao desenvolvimento da historiografia portuguesa, as fronteiras entre a apresentação de factos históricos verificados e a focalização subjetiva e seletiva já foram transgredidas em Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara.

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(aquele que conta o que aconteceu) e o poeta ou ficcionista (aquele que conta o que poderia acontecer ou poderia ter acontecido) também se tornou obsoleta. Portanto, a história e a ficção têm mais em comum do que nós pensamos. O historiador francês Georges Duby descreve a história sobretudo como uma espécie de arte que dá prazer e pode divertir, embora admita que ela tem cumprido, ao longo dos tempos, uma considerável função ideológica:

Para que serve a história? A história é, antes de tudo, um divertimento: o historiador sempre escreveu por prazer e para dar prazer aos outros. Mas também é verdade que a história sempre desempenhou uma função ideológica, que foi variando ao longo dos tempos. (Duby 1994: 16)16

Também o historiador norte-americano Hayden White considera qualquer representação do passado embebida por aspetos ideológicos:

We may say, then, that in history […] every representation of the past has specifiable ideological implications […]. Interpretation thus enters into historiography in at least three ways: aesthetically (in the choice of a narrative strategy), epistemologically (in the choice of an explanatory paradigm), and ethically (in the choice of a strategy by which the ideological implications of a given representation can be drawn for the comprehension of current social problems) (White 1987: 69-70).

Segundo as teorias de White no contexto da análise historiográfica orientada por categorias críticas literárias, no fundo, até também Klio romanceia. Qualquer representação historiográfica, portanto, está necessariamente sujeita a categorias e coerências poetológicas, isto é, qualquer representação historiográfica é inevitavelmente narrativa mesmo onde finge não ser (White 1986: 64-122; Grossegesse 2009: 34-35; T. Silva 1989: 23-29). Já na historiografia, portanto, ocorre uma certa ficcionalização da história. Sendo assim, torna-se, às vezes, difícil distinguir a história da ficção.

Tanto a narração ficcional como também a historiografia se servem de meios literários. Mas enquanto a primeira os aplica conscientemente, a historiografia ignora-os ou nega o seu uso:17

16 Para Duby, a história é uma arte literária: “Ich halte die Geschichtswissenschaft vor allem für eine Kunst, eine essentielle literarische Kunst” (Duby & Lardreau 1982: 49).17 “Sowohl historische Dichtung als auch Geschichtsschreibung bedienen sich literarischer

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Historiographic metafiction, like both historical fiction and narrative history, cannot avoid dealing with the problem of the statues of their ‘acts’ and of the nature of their evidence, their documents. […] Nevertheless, it also realizes that we are epistemologically limited in our ability to know that past, since we are both spectators of and actors in the historical process. […] Historiography and fiction, […] constitute their objects of attention; in other words, they decide which events will become facts. (Hutcheon 2004: 122)

Sem dúvida alguma, A Viagem do Elefante pode-se considerar um romance saramaguiano de metaficção historiográfica, convencionalmente chamado de romance histórico pós-moderno, embora o próprio autor rejeitasse a designação de “romance histórico” por razões de limitação definidora de critérios literários (Saramago 1990: 17-18; Arnaut 2002a: 297). Caraterísticas descritas como inerentes à estratégia narrativa da metaficção historiográfica pós-moderna (Hutcheon 2004; Marinho 1999: 37-43; Arnaut 2002a: 295-321) que se manifestam em A Viagem do Elefante são: a reinvenção da história através da sua imitação paródica, o diálogo conscientemente estabelecido entre narrador e leitor, a oscilação da voz da narração e, de enorme importância, a autorreferencialidade e autorreflexividade sobre a construção da textura narrativa:

Nestas estruturas incluir-se-iam quer os mais directos e ostensivos comentários do narrador sobre o processo de construção da narrativa, quer intromissões ou manipulações de índole mais subreptícia mas que, de qualquer modo, e na medida em que também elas interrompem a linearidade do fluxo narrativo, chamam a atenção para o facto de que, efectivamente, se trata de uma ficção. Em qualquer dos casos, o recurso a estas estratégias obriga o leitor a experienciar e a desmistificar activamente o que na ficção realista tradicional é simplesmente reflectido, melhor seria dizer o que é premeditadamente escondido e, por isso, passivamente recebido. (Arnaut 2002a: 239-240)

Mittel. Während der historische Roman diese Mittel bewusst anwendet, übersieht sie die Historiographie häufig oder leugnet ihre Verwendung” (Grimm 2008: 57).

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Em A Viagem do Elefante, a história, isto é, os antecedentes históricos, serve como plano de fundo, bastante lacunar, que precisa de ser completado. Destacada por inúmeros anacronismos e comentários, às vezes bastante abstrusos, a intromissão do narrador ocorre de uma maneira óbvia e com grande frequência:

Pena que no século dezasseis a fotografia ainda não tivesse sido inventada, porque então a solução seria facílima, bastaria inserir aqui umas quantas imagens da época, sobretudo se captadas de helicóptero, e o leitor teria todos os motivos para conisderar-se amplamente compensado e reconhecer o ingente esforço informativo da nossa redacção. (Saramago 2008: 240)

Através da permanente intervenção metahistoriográfica, o narrador Saramago, abrangendo panoramicamente cinco séculos, entrelaça conscientemente a matéria histórica com reflexões sobre os meios de representação ficcionais:

No fundo, será, como se num filme, desconhecido naquele século dezasseis, estivéssemos a colar legendas na nossa língua para suprir a ignorância ou um insuficiente conhecimento da língua falada pelos actores. Teremos portanto neste relato dois discursos paralelos que nunca se encontrarão, um, este, que poderemos seguir sem dificuldade, e outro que, a partir deste momento, entra no silêncio. Interessante solução. (Saramago 2008: 40)

Em A Viagem do Elefante, Saramago, na pele do narrador heterodiegético, cria a ilusão da história diretamente vivida através do ponto de vista de focalização de Subhro, literalmente sentado nas costas do elefante, ao mesmo tempo que a interrompe constantemente com intervenções anacrónicas e comentários metanarrativos, para depois destruir essa ilusão:

Fiction and history are narratives distinguished by their frames […], frames which historiographic metafiction first establishes and then crosses, positing both the generic contracts of fiction and of history. […] The interaction of the historiographic and the metafictional foregrounds the rejection of the claims of both ‘authentic’ representation and ‘inauthentic’ copy alike, and the very meaning of artistic originality is as forcefully challenged as is the transparency of historical referentiality. (Hutcheon 2004: 109-110)

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Debruçando-se detalhadamente sobre a relevância do papel de Subhro na narrativa — claramente o segundo protagonista, depois do elefante — o narrador Saramago, afinal, chega à conclusão que, sem Subhro, o caminho de Salomão-Solimão, com certeza, teria tomado outro rumo:

Embora a fritz não lhe reste outro remédio que deixar-se levar por solimão, temos de reconhecer que esta leccionadora história que vimos contando não seria a mesma se outro fosse o guia do elefante. Até agora, fritz tem sido personagem decisiva em todos os momentos do relato, dos dramáticos e dos cómicos, arriscando o próprio ridículo sempre que foi achado conveniente para o bom tempero da narrativa, ou apenas tacticamente aconselhável. (Saramago 2008: 227)

Onde a suposta ‘realidade histórica’, quaisquer que sejam as razões, apresente lacunas, o romancista tem de ajudar a preenchê-las,18 como também o sugere Saramago em A Viagem do Elefante. Tanto pode entrar em diálogo com a entorpecida história institucionalizada e questioná-la, como pode também quebrar as suas estruturas estratificadas e penetrá-la com elementos bem doseados do irónico, do grotesco e do absurdo. Ele pode (ou melhor, tem mesmo de), como defende Saramago no seu artigo “História e ficção”, ultrapassar a linha que separa o concreto do possível, o verosímil do improvável para reescrever a história:

Quando digo corrigir o Passado não é no sentido de emendar os factos da História (não poderia ser essa a tarefa de um romancista), mas sim, se se me permite a expressão, introduzir nela pequenos cartuchos que façam explodir o que até aí parecera indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido. (Saramago 1990: 19; Saramago 1996: 185).

No seu caminho de Lisboa para Viena, Salomão-Solimão e Subhro-Fritz têm de passar por diversas situações peculiares, as quais permitem — como expressão do discurso metaficcional — ao narrador revelar e caricaturar as fraquezas humanas e criticar os abusos comerciais da Igreja. Com uma

18 Duby também destaca as lacunas que a história apresenta: “Riesige Löcher, die die Geschichtsschreibung nie mehr wird stopfen können. […] Und damit kommt die Phantasie ins Spiel. Sobald ich nämlich versuche, Lücken zu schließen, Brücken zu schlagen, Brüche auszugleichen und gewissermaßen die Zwischenräume dieses Nicht-Gesagten, dieses Schweigens auszufüllen, indem ich mir mit dem behelfe, was ich weiß” (Duby & Lardreau 1982: 39).

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calma verdadeiramente digna de um elefante o paquiderme suporta todas as humilhações das quais a transformação de Salomão em Solimão, decretada pela autoridade habsburguesa, embora apagando a última referência à prudência tipicamente inerente a um elefante, seja uma das menos graves.

Assim, por exemplo, quando os aldeões de uma povoação onde o séquito pára para repousar, se manifestam junto do padre com a afirmação demasiado ousada de que Deus é um elefante, o zeloso servo do Senhor só sabe tirar-se de apuros tomando medidas drásticas. E decide fazer um exorcismo. Mas a ação falha lastimosamente. O que se deve menos ao facto do económico sacerdote ter salpicado a cabeça de Solimão com água profana em vez de água benta, mas mais à precisa patada com a qual o elefante se defende do golpe de ataque do padreco (Saramago 2008: 79-87).

Saramago faz o cornaca Subhro, numa mistura de ingenuidade com esperteza instintiva e prudência hindu, desmascarar as hipocrisias da Igreja Católica — e fá-lo tirar certamente as palavras da boca. À pergunta, se era cristão, Subhro responde com desarmante honestidade:

[…] mais ou menos, Que quer isso dizer na realidade, és ou não és cristão, Baptizaram-me na índia quando eu era pequeno, E depois, Depois nada, respondeu o cornaca com um encolher de ombros, Nunca praticaste, Não fui chamado, senhor, devem ter-se esquecido de mim, Não perdeste nada com isso, disse a voz desconhecida que não foi possível localizar, mas que, embora isto não seja crível, pareceu ter brotado das brasas da fogueira. (Saramago 2008: 71-72).

Porém em Pádua, Solimão e Subhro não conseguem escapar à instrumentalização pelo Poder e pela Igreja. Em tempos de grande controvérsia religiosa (causada pelo teimoso frade de Wittenberg), a Igreja Católica anseia de facto por um milagre. O grotesco culmina quando Solimão, dirigido por Subhro, se ajoelha à porta da basílica de Santo António em Pádua — gesto que é imediatamente celebrado como milagre pelas autoridades religiosas. E como se isso não fosse suficiente, o espertalhão do cornaca começa a explorar o negócio lucrativo com pêlos do elefante para mezinhas curativas. Nesse contexto, Saramago tira ironicamente partido de Maximiliano ter sido considerado pelos historiadores um protestante “disfarçado” ou um “católico de compromisso” (Hopfen 1895; Vacha 1993: 159).

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O comércio de indulgências iniciado por Subhro deixa o arquiduque muito desconfortável e com o desabafo: “ah lutero, lutero, quanta razão tinhas” (Saramago 2008: 200). Saramago fá-lo finalmente condenar o falso milagre do elefante como descarado e intolerável, e proibir a comercialização dos pêlos com propriedades alegadamente curativas.

No fim da viagem, quando Solimão chega triunfalmente a Viena, cai-lhe uma rapariga diante das patas grossas. O paquiderme enlaça com a tromba o corpo da menina, levanta-a e, sob grande aplauso, entrega-a nos braços da mãe assustada. Esta cena é tão grotesca, para não dizer digna de um filme, que o leitor é tentado a atribui-la mais uma vez ao ideário de Saramago. Mas aí, o autor recorre, realmente, a uma lenda já existente em torno da chegada do elefante a Viena (Opll 2004: 248; Oettermann 1982: 114). Ele destaca numa entrevista que o leitor não pode abster-se de considerar essa cena uma ideia da sua autoria:

Curiosamente, há um facto real que narro e que pode surpreender o leitor, levando-o a pensar que, enfim, é outra invenção minha. Refiro-me ao episódio [...], em que o elefante salva uma criança. Isso sim, é histórico. Aconteceu. Como vou inventando tudo, o leitor pode chegar ali e pensar: aqui está mais uma invenção do Zé Saramago! (Saramago in Vitória 2008)

Como vimos, a linha que separa a história (ou melhor, aquilo que consensualmente é considerado e transmitido pela historiografia como “realidade histórica”) da ficção é extremamente ténue, e muitas vezes, desvanece-se. Contudo não se pode negar que a história seja considerada como “aquilo que realmente aconteceu”, e não só em relação aos acontecimentos, mas também aos motivos, razões e consequências (Aust 1994: 6; Grimm 2008: 66-67). A história está sempre submetida a uma certa veracidade. Mas para a ficção, isso é de importância secundária. Na metaficção historiográfica nem parece adequado aplicar a dicotomia dos termos veracidade e falsidade.19 Para a ficção a história serve, na verdade, como fornecedora de material e fonte de inspiração, mas ao contrário da história, e, no interesse da estética da narrativa, ela é independente, isto é, não necessita de importar-se com a verificação dos factos:

19 “Die gesicherte Erkenntnis historischer Tatsachen und ihre ‘objektive’ Darstellung erscheint aus literarischer Sicht eher zweitrangig, die künstlerische Qualität des Erzählens dagegen zentral” (Grimm 2008: 58).

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Der historische Roman hat von Anfang an Bedürfnisse erfüllt, welche die Geschichtsschreibung unbefriedigt lassen musste. […] Diesen Mangel macht sich der historische Roman zunutze, indem er die Lücken in der Überlieferung mit erfundenen Details, Handlungen und Dialogen auffüllt und mit reiner Fiktion mischt. […] der postmoderne Geschichtsroman [überschreitet] dabei ohne wissenschaftliche oder künstlerische Skrupel die Grenzen zwischen dem Wahrscheinlichen und dem Unwahrscheinlichen, dem Möglichen und dem Unmöglichen, historischer und fantastischer Dichtung. (Grimm 2008: 212-213).

Sem escrúpulos nem remorsos, o romancista não precisa de se sentir preso a critérios histórico-científicos e pode dar largas à sua imaginação e à sua liberdade criadora.

“Este livro é um livro de invenção contínua” (Saramago in Vitória 2008), como diz Saramago sobre A Viagem do Elefante, e isso não só por causa das fontes pouco abundantes; a mera reconstrução e descrição historicamente coerente e correta do itinerário do elefante, evidentemente não é a intenção do autor.

Em verdade vos direi, em verdade vos digo que vale mais ser romancista, ficcionista, mentiroso. Ou cornaca, apesar das descabeladas fantasias a que, por origem ou profissão, parecem ser atreitos. (Saramago 2008: 227)

Em A Viagem do Elefante, através das intromissões metanarrativas, a suposta objetividade e imparcialidade da historiografia/história é questionada e levada ao absurdo. Porém a questão da problematização da relação entre os métodos da historiografia e a metaficção historiográfica como medium de autorreflexividade e autorreferencialidade desempenha uma função menos relevante do que nos romances “de focalizações radicalmente opostas às da História oficial” (Marinho 1999: 233), como em História do Cerco de Lisboa (Grossegesse 2009: 100-101), onde o simples, mas significativo aditamento do modesto advérbio “não” (Saramago 1989a: 50) iria virar do avesso a versão tradicional da História do Cerco de Lisboa no século XII, ou como em Memorial do Convento, onde a história (re)construída dá voz “a uma focalização tão heterodoxa quanto subversiva” (Marinho 1999: 237).

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O itinerário comprovado da rota do elefante através da Europa constitui a estrutura básica para a árdua viagem de Solimão, “sendo a primeira [figura] por natural primazia e obrigado protagonismo” (Saramago 2008: 36), que segundo Saramago deve ser visto como “metáfora da vida humana”:

Quando uma pessoa se põe a pensar no destino do elefante — que, depois de tudo aquilo, acaba de uma maneira quase humilhante, aquelas patas que o sustentaram durante milhares de quilómetros são transformadas em objectos, ainda por cima de mau gosto —20 no fundo, é a vida de todos nós. Nós acabamos, morremos, em circunstâncias que são diferentes umas das outras, mas no fundo tudo se resume a isso. (Saramago in Cordeiro 2008)

Como já foi mencionado, a história como suposta ‘realidade do passado’ nem sempre deve ser tomada à letra na narrativa. O mesmo se aplica, muitas vezes, às autointerpretações dos escritores em relação às próprias obras. Mas nesse caso, é legítimo concordar com as palavras do autor em interpretar o itinerário do elefante Salomão-Solimão como representação metafórica da vida de cada um.21

O que importa, na verdade, é a viagem, motivo constante nas obras de Saramago. No fundo, o itinerário do elefante pode-se considerar uma espécie de peregrinação em terras europeias na qual a realidade e a ficção se entrelaçam admiravelmente, guiada pelo cornaca Subhro com um toque de pícaro, com um tom de ingénua ironia.

Todos nós temos de percorrer um caminho tão árduo como o de Solimão. Todos nós temos de ultrapassar obstáculos tão difíceis como os Alpes foram para Solimão. E no fim dessa viagem todos nós chegaremos ao mesmo destino ao qual Solimão chegou: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam (O Livro dos Itinerários)” (Saramago 2008: 11).

Mas disso nem a ficção — para nem falar da história — nos poderá livrar.

20 Com os “objectos de mau gosto” Saramago refere-se a “recipientes, […], para depositar as bengalas, os bastões, os guarda-chuvas e as sombrinhas de verão” (Saramago 2008: 257) que alegadamente foram feitos dos restos de Solimão. Disso não existem provas, mas para o elefante e a sua viagem, i.e., a moral da história (no sentido de narrativa), é, sem dúvida, irrelevante: “Como se vê, a Salomão não lhe serviu de nada ter-se ajoelhado” (Saramago 2008: 257).21 Talvez a interpretação como metáfora humana também possa ser relacionada com o facto de Saramago ter sido hospitalizado durante três meses em 2007, tendo chegado a pensar que não terminaria o livro que já tinha começado (cf. Saramago in Cordeiro 2008).

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Índice de ilustrações

N.° 1: Medalhão comemorativo com inscrição, Michael Fuchs, Viena, 1554. <http://www.puls11.at/texty/historisches_elefant_bild2_hi.png>, último acesso: 20.02.2013.

N.° 2: “Rhinocerus”, gravura (madeira), Albrecht Dürer, Nuremberga, 1515.Sammlung-Otto-Schäfer-II, Schweinfurt, Inv.-Nr. D-273 (Hendrich 2007: 267).

N.° 3: Hotel Elefant, Salzburgo. <http://aviagemdoelefante.com/files/hotel.png>, último acesso: 20.02.2013.

N.° 4: Fachada do Hotel Elephant em Bressanone (Brixen), Tirol do Sul. <http://www.suedtirolnews.it/uploads/pics/hotel-elephant.jpg>, último acesso: 20.02.2013.

N.° 5: Gravura em madeira, Michael Minck, Wasserburg/Inn, 1552. <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/1c/Soliman.1.jpg>, último acesso: 20.02.2013.

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Nationale und koloniale Identitäten im historischen Roman:José Saramago A Viagem do Elefante

Verena-Cathrin Bauer

Im Jahr 1551 schickte Dom João III, König von Portugal, einen indischen Elefanten auf den Weg nach Österreich. Das Geschenk für Erzherzog Maximilian, den zukünftigen Kaiser des Heiligen Römischen Reiches, gelangte nach Jahren einer beschwerlichen Reise, im Zuge derer ein Großteil Portugals, Spaniens und Italiens durchquert werden musste, 1552 schlussendlich nach Wien. Der Anblick des exotischen Tieres hinterließ Spuren, die noch heute sichtbar sind: Entlang der Marschroute verweisen die Bezeichnungen von Herbergen, Hotels und Restaurants, die den Namen Elefant oder Zum Elefanten tragen, noch immer auf die Reise des exotischen Tiers. Entlang des Weges, den der Hofstaat des Erzherzogs einschlug, in den italienischen Städten Bozen und Brixen sowie in Salzburg, wird so die Erinnerung an den Dickhäuter bewahrt, den es so weit von seinem Geburtsort verschlagen hatte.

Mit dem Roman A Viagem do Elefante kreierte José Saramago nicht nur ein fiktionales Monument dieser kuriosen Anekdote aus dem 16. Jahrhundert, sondern er analysierte auch die historischen Beziehungen zwischen verschiedenen europäischen Ländern. Besonderes Augenmerk liegt auf dem Ausgangspunkt und dem Ziel der Reise des Elefanten — Portugal

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und Österreich. Zum ersten Mal wurde der Autor in Salzburg mit den Relikten dieser österreichisch-portugiesischen Geschichte konfrontiert. Das Restaurant Der Elefant stellt ein Fries aus kleinen Holzfiguren aus, das die Stationen der Reise wiedergibt: Beginnend mit einer Miniatur des Torre de Belém bis zur finalen Etappe, symbolisiert durch den Stephansdom in Wien. Im 16. Jahrhundert war die Reise von exotischen Tieren zwar selten, aber kein einzigartiges Ereignis. Einerseits war der Austausch von Tieren, die aus den Kolonien nach Europa gebracht wurden, eine übliche Geste zwischen den Königshäusern. Andererseits kann der Elefant nicht allein als Geschenk betrachtet werden. Für Erzherzog Maximilian stellte er auch eine Möglichkeit dar, durch die Ausstellung des seltenen Tieres seinen Ruf zu mehren und Reichtum und Macht in mehreren Ländern auszustellen. Abseits der Nutzung des Tieres zu Repräsentationszwecken hatte die Reise weitere ideologische Implikationen. In einem Europa, das von der Reformation zerrissen war, konnte die Präsentation des Elefanten durch einen katholischen Souverän auch im Kontext der Gegenreformation gesehen werden.

Historische Beziehungen zwischen Österreich und Portugal

Die Beziehungen zwischen Portugal und Österreich bzw. dem Haus Habsburg entwickelten sich zuerst durch die Logik dynastischer Verbindungen und Hochzeiten. Der Ausgangspunkt dieses Beziehungsgeflechts lässt sich im späten Mittelalter mit der Heirat von Dona Leonor (1436-1467), Tochter von Dom Duarte, mit Kaiser Friedrich III. (1415-1493) festmachen. Die Auswirkungen dieser Verbindung sollten aber nicht beide Länder gleichermaßen betreffen — hervorzuheben ist eher, dass aus dieser Ehe Maximilian I. (1459-1519) hervorging, der 1508 Kaiser des Heiligen Römischen Reiches wurde und mit dem Beinamen „der letzte Ritter“ in die Geschichte einging. Die Heirat von Maximilians Sohn Philip I. (Felipe I) mit der Tochter der Reyes Católicos, Johanna I. (Juana I) von Kastilien brachte Philipp die Königswürde über Kastilien und Léon ein. Maximilian I. folgte sein Enkel Karl V. (Carlos V) auf dem Thron des Heiligen Römischen Reiches nach, der gleichzeitig die spanische Königswürde innehatte — ein Fakt, das die zwei geographisch weit voneinander entfernten Gebiete vor allem in der Periode der Fremdherrschaft Portugals zwischen 1580 und

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1640 in politischer Hinsicht näher zusammenrücken ließ. 1524 heiratete Dona Catarina de Áustria (1507-1578), eine Schwester Karls V., Dom João III, den Nachfolger Dom Manuels (1469-1521), der seinerseits eine dritte Ehe mit einer weiteren Schwester Karls V., Dona Leonor de Áustria (1498-1558), einging. Im Gegenzug nahm Karl V. eine Tochter Dom Manuels aus der Ehe mit Maria von Aragón, Isabella von Portugal (1503-1539) zur Frau. Diese und noch folgende Verbindungen aus dem engeren Familienkreis sollten aber nicht nur zu immer komplexeren Verbindungen zwischen den Königshäusern führen, sondern zogen auch die Krise der portugiesischen Thronfolge nach dem Tod Dom Sebastiãos nach sich. Andere Verbindungen von Bedeutung waren beispielsweise die von Dom João V und Dona Maria Anna Josefa von Österreich im 17. und die von Dom Pedro I und Maria Leopoldina von Österreich im 18. Jahrhundert. (cf. Caetano 2002: 25-34)

Unüblich waren, auch aufgrund der geographischen Lage, kriegerische Auseinandersetzungen zwischen beiden Ländern. Dafür wäre es, wie Saramago in A Viagem do Elefante ironisch anmerkt, notwendig gewesen, einen Ort in Frankreich zu mieten, der von beiden Gebieten gleich weit entfernt sei (cf. Saramago 2008: 141).

A Viagem do Elefante als historischer Roman

Gemäß der Eigenschaften des Genres des historischen Romans1 etabliert Saramago in A Viagem do Elefante ein konstantes Spiel zwischen Fakt und Fiktion. Von der ersten Seite an spinnt Saramago das metafiktionale Spiel zwischen diesen angeblich oppositionellen Polen, vermischt historische Persönlichkeiten und dokumentierte Ereignisse mit literarischer Vorstellungskraft:2 „Metafictional novels tend to be constructed on the principle of a fundamental and sustained opposition: the construction of a fictional illusion (as in traditional realism) and the laying bare of that illusion“ (Waugh 1996: 6). Während in der akademischen Historiographie oft nur Ereignisse auf Ebene der politischen Eliten fokussiert werden, liegt das Potential des historischen Romans darin, den Konstruktionscharakter historischer Schriften und Überlieferung aufzudecken. Durch Prozesse

1 Auch wenn er das Genre im Grunde ablehnte (cf. Saramago 1990).2 Cf. dazu auch Hendrich in diesem Band.

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der Dekonstruktion beziehungsweise der Dezentralisierung können auch marginalisierte Stimmen in fiktionalisierter Form in die literarische Erinnerungsarbeit integriert werden, im Gegenzug geraten die Bedingungen und die Fehlbarkeit positivistischer Historiographie in den Fokus expliziter oder impliziter Kritik (cf. Nünning 1999). Die implizite Erzählinstanz von A Viagem do Elefante — und damit vermutlich auch der empirische Autor — geben konstant ihre Einstellung dem Wert der Historiographie gegenüber preis:

No fundo, há que reconhecer que a história não é apenas selectiva, é também discriminatória, só colhe da vida o que lhe interessa como material socialmente tido por histórico e despreza todo o resto, precisamente onde talvez poderia ser encontrada a verdadeira explicação dos factos, das coisas, da puta realidade. Em verdade vos direi, em verdade vos digo que vale mais ser romancista, ficcionista, mentiroso. (Saramago 2008: 227)

In der Notwendigkeit, Ordnung in eine Fülle an Informationen zu bringen, wird anhand der Erwägung, was denn nun historisch von Interesse sein kann, eine Wahl getroffen. Diese Wahl schließt automatisch alles, was zum betreffenden Zeitpunkt nicht als Teil der Historie angesehen wird, aus und verstellt somit den Zugang zu einer vielleicht komplexeren, aber doch realitätsnäheren Vision der Vergangenheit. Doch nicht nur die Selektion der Fakten, sondern auch ihr Arrangement üben Einfluss auf das Bild der Geschichte aus, wie es durch die Historiographie vermittelt wird. Bezüglich des Nexus zwischen Geschichte und Fiktion scheint eine Erwähnung der Kritik von Hayden White an der Historiographie des 19. Jahrhunderts unumgänglich zu sein. In Metahistory versucht White aufzuzeigen, dass selbst Historiker sich bei der Verfassung historischer Analysen literarischer und fiktionalisierender Techniken bedienen. Der Prozess des emplotment, der Selektion und Einbettung von Fakten in eine kohärente Erzählung, bringt — bewusst oder unbewusst — eine ideologische Orientierung seitens des Autors mit sich (White 2008; White 1978).3

Vor allem in postmodernen Romanen ist eine evidente Fiktionalisierung der Vergangenheit zu finden — eine virtuelle Vergangenheit, die oft durch Prozesse der Metafiktionalisierung durchbrochen, dekonstruiert

3 Cf. dazu auch Hendrich in diesem Band.

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und neu interpretiert wird, während gleichzeitig die Strukturen der Narration thematisiert und offengelegt werden. In der impliziten Kritik historiographischer Methoden werden so neue Perspektiven auf vergangene Ereignisse kreiert. Diese Texte — wie A Viagem do Elefante — erlauben eine Revision der Geschichte und lenken das Augenmerk auf Ereignisse oder Figuren, die sonst von offiziellen historiographischen Diskursen ausgeschlossen blieben. Während im metahistoriographischem Roman die Kritik an den Mechanismen der Geschichtsschreibung und Diskursbildung explizit aufscheinen kann, so scheint eine Beurteilung der Fiktion nach Richtlinien der historischen Exaktheit zumindest mühevoll:

The interaction of the historiographic and the metafictional foregrounds the rejection of the claims of both “authentic representation” and “inauthentic copy” alike, and the very meaning of artistic originality is as forcefully challenged as is the transparency of historical referentiality. (Hutcheon 1988: 110)

So ist es eben nicht nur die offensichtliche Kritik Saramagos am gegenwärtigen Verhältnis zur Vergangenheit, sondern auch das Spannungsfeld zwischen der Imagination der Vergangenheit und dem konstanten Bruch im Register der Sprache, die dem Leser eben diese Vergangenheit vorgaukeln will, die in A Viagem do Elefante die Brücke zwischen einer kuriosen Begebenheit in der österreichisch-portugiesischen Geschichte und Entwicklungen und Tendenzen der Gegenwart schlägt:

O passado é um imenso pedragal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo delas. (Saramago 2008: 35)

Doch nicht nur die auto-estrada bildet einen sprachlichen Fremdkörper in der historischen Illusion, auch konstante Vorgriffe auf Konzepte und Entwicklungen, die in einer Chronologie erst lange nach dem 16. Jahrhundert anzusiedeln sind, laden den Text sowohl mit einem historischen Bewusstsein als auch einer aktuellen sozialen und politischen Prozessen gegenüber kritischen Energie auf, die über die gefällige Episode, die den Kern des Romans ausmacht, hinausgeht. So arbeitet Saramago in A Viagem do Elefante nicht ein einschneidendes Ereignis der Vergangenheit auf, um es aus anderer

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Perspektive in neuem Licht erscheinen zu lassen, wie es für viele Werke des postmodernen historischen Romans typisch ist. Stattdessen entfaltet er anlässlich der Reise eines Elefanten und seines Hüters ein Panorama an Fragen, die eben nicht nur die Interpretation der Geschichte thematisieren – auch wenn diese nicht minder von Bedeutung sind, wenn man etwa an die Rolle Österreichs in einem kolonialen Zusammenhang denkt. Selbst wenn Österreich generell nicht als Teil der ehemaligen Kolonialmächte angesehen wird, so war es doch Teil eines kolonialisierenden Europas und bedarf einer näheren Evaluierung seiner Position in diesem System, wie die Erzählung Saramagos nahelegt. Im Bezug auf gegenwärtige Diskurse rund um den Begriff der Identität verwundert es dann auch nicht, wenn Saramago nicht nur Begriffe wie ‚Nation‘ ins Spiel bringt, sondern auch der Verweis auf die „comunidade europeia“ (Saramago 2008: 24) in einem historischen Roman über das 16. Jahrhundert nicht fern liegt.

Koloniale Identität(en) in A Viagem do Elefante

In A Viagem do Elefante führt Saramago die Perspektive des cornaca, des Elefantenhüters, in den historischen Diskurs ein: Subhro, ein Inder, der zusammen mit dem Elefanten Salomão nach Lissabon gelangte. Es wird seine Stimme sein — die eines Subalternen, der weit entfernt von seiner Familie, seiner Kultur und seiner Muttersprache leben muss — die den Elefanten auf der beschwerlichen Reise führen wird. Seine Eindrücke sind es auch, die dem Leser entlang des Textes durch den Erzähler dargeboten werden. Subhro dient als Zentrum der Narration, und auch, wenn der Elefant im Titel des Romans aufscheint, so ist es doch der Mahut, dessen Lebensgeschichte in den Vordergrund tritt. Als fiktive Figur verfügt er über Fähigkeiten, die für eine Figur seiner sozialen Klasse wenig glaubwürdig wirken: Er spricht exzellentes Portugiesisch und scheint lesen zu können. Es ist möglich, diese Charakterisierung als intentionalen Anachronismus zu lesen, eine Technik, die typisch für den ironischen Stil Saramagos ist. Andererseits unterstreichen diese Eigenschaften die Unterschiede bezüglich des sozialen Prestiges des Mahuts in seinem Heimatland und im Land der Kolonialmacht und subvertieren vorgefasste Auffassungen der Kultur des Subkontinents heute und im 16. Jahrhundert.

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In Lissabon erlebt Subhro die typische Existenz eines Kolonialisierten in einem fremden Land: Er besetzt einen marginalisierten Raum in der portugiesischen Gesellschaft, in der seine Erfahrungen von Exotismus und Hybridität zwischen Eigen- und Fremdkultur geprägt werden. Die Hybridität von indischer und portugiesischer Kultur erstreckt sich auf alle Aspekte seines Lebens: die Sprache, die Religion und seine Position in der Hierarchie des königlichen Hofes. In ihrer Gesamtheit wird seine Identität durch die erzwungene örtliche Veränderung von Indien nach Portugal geprägt. Von sich selbst sagt er, dass er schon nicht mehr Inder sei, doch bekräftigt er zugleich, dass „ter vindo de Portugal não faz de mim português“ (Saramago 2008: 217). Im Bezug auf die Sprache kann Portugiesisch als erste bzw. zweite Fremdsprache des Mahut betrachtet werden, während Bengali bzw. Hindi als Muttersprachen gelten können. Es scheint nicht schwierig, sich die Befremdung eines Menschen mit Wurzeln auf dem indischen Subkontinent vorzustellen, der abrupt wiederum mit dem Leben in einem anderen Land, einer unbekannten und fremd klingenden Sprache, wie es das Deutsche für ihn sein muss, konfrontiert wird. Die Reise von Portugal nach Österreich fordert von Subhro einen weiteren Akt der Assimilation, insofern die Ankunft in Portugal den ersten markiert. Diese Doppelung des erzwungenen Assimilierungsprozesses lässt sich am besten über die Veränderungen des Namens „Subhro“ nachvollziehen — eine Bezeichnung, die „weiß“ bedeutet: „Esqueci-me do significado do nome do cornaca, como era ele, estava perguntando o rei, Branco, meu senhor, subhro significa branco, ainda que não pareça” (Saramago 2008: 34). In Portugal schlägt Dom João zuerst die Namensänderung zum traditionellen portugiesischen Namen „Joaquim“ vor. Kurz darauf entscheidet Erzherzog Maximilian aber, dass „Fritz“ der perfekte Name für einen portugiesisch sprechenden Inder in Wien sei. Auch der Name des Elefanten ist vor dem europäischen Hochadel nicht sicher: Aus dem „Salomão“ des weisen biblischen Königs wird im Laufe der Reise „Solimão“ — Süleyman, vordergründig eine Anspielung auf die erste Wiener Türkenbelagerung.4 Des Weiteren kann darin aber auch ein Verweis auf den gebürtigen Afrikaner Angelo Soliman gesehen werden, der im 18. Jahrhundert in Wien zu Berühmtheit gelangte (cf. Blom & Kos 2011).

4 Cf. dazu auch Hendrich in diesem Band.

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Im Bezug auf die religiöse Positionierung Subhros erschafft die koloniale Hybridität eine Mischung aus Christentum und Hinduismus. Subhro definiert sich selbst „mais ou menos“ (Saramago 2008: 73) als Christ, vermutlich, um mit den missionarischen Bestrebungen der Portugiesen konform zu gehen, sieht sich aber auch mehr oder weniger als Hindu. Auffällig ist vor allem sein Bewusstsein über die Relativität religiöser Konzepte. Da religiöse Praxen und Auffassungen nur in der Form von Texten in die Gegenwart gelangen, sind auch sie dem Kreislauf von Analyse und Interpretation unterworfen und können nur paraphrasierend erklärt werden. Hier kann der Bogen zurück zu dem von Saramago in A Viagem do Elefante vermittelten Geschichtsbild gezogen werden, das den Prinzipien der Offenheit und der konstanten Neuinterpretation nahesteht (cf. Eco 1973).

[…] Cuidado, que está aí a inquisição, para teu bem não te metas em terrenos pantanosos, Se chego a viena, não volto mais, Não regressas à índia, perguntou o comandante, Já não sou indiano, Em todo o caso vejo que do teu hinduísmo pareces saber muito, Mais ou menos, meu comandante, mais ou menos, Porquê, Porque tudo isso são palavras, e só palavras, fora das palavras não há nada, Ganeixa é uma palavra, perguntou o comandante, Sim, uma palavra que, como todas as mais, só por outras palavras poderá ser explicada, […]. (Saramago 2008: 73)

Eine Weiterführung der Untersuchung der kolonialen Identität in A Viagem do Elefante führt zu einer Positionierung des Mahut innerhalb der sozialen Hierarchien im Roman: Zum einen nimmt er, sowohl in der portugiesischen als auch in der österreichischen Gesellschaft, eine subordinierte Stellung ein: Er wird vom Hof vergessen, bis Dona Ana Catarina sich an den Elefanten erinnert und die Idee einer Schenkung an Erzherzog Maximilian vorbringt. Zudem ist er weder Mitglied einer Gemeinschaft noch in der Position, irgendeine Art politischen Einflusses auszuüben oder selbst über sein Leben zu bestimmen. Indessen ist er eigentlich längst unersetzlich geworden, verfügt er doch als einziger über das unentbehrliche Wissen der artgerechten Pflege des Elefanten.

Der Exotismus eines Inders in Europa wird im Zuge der Reise immer offensichtlicher. Nicht nur das exotische Tier zieht faszinierte Blicke auf sich, sondern auch der Mann, der auf dem Dickhäuter thront.

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Das Zusammenspiel der erzwungenen Assimilation und das Bewusstsein, eine Attraktion zu sein — mehr Objekt als Subjekt, ein Kuriosum, das vorgeführt und angestarrt wird — scheinen das Schicksal von Fritz zu sein:

É certo que Fritz não conhecia o refrão clássico que diz que para viver em roma haverá que tornar-se romano, mas, embora, não se sentisse nada inclinado a ser austríaco em áustria, cria ser aconselhável para sua ambição de viver uma existência sossegada dar o menos possível nas vistas do vulgo, mesmo tendo que apresentar-se aus olhos da gente cavalgando um elefante, o que, porém, logo de entrada, já fazia dele um ser excepcional. (Saramago 2008: 185)

Der Diskurs über koloniale Räume führt in postkolonialen Forschungen zwangsweise zu einem Verweis auf Homi K. Bhabhas Konzepte der Hybridität und des third space:

[…] a problematic of colonial representation and individuation that reverses the effects of the colonialist disavowal, so that other ‘denied’ knowledges enter upon the dominant discourse and estrange the basis of its authority — its rule of recognition. (Bhabha 1994: 114)

Versteht man Hybridität in diesem Sinne, dann lässt sich dieser Prozess vor allem in der Beziehung Subhros zum Kommandanten der Kompanie feststellen, die den Elefanten bis Valladolid begleiten soll. Die Begegnung zweier so unterschiedlicher Weltbilder führt zu einer gegenseitigen Wertschätzung und Exploration der Kultur des jeweils anderen und bewegt den Kommandanten beim Abschied vom Mahut zu folgender Aussage: „Ter partilhado as horas com este homem foi uma das mais felizes experiências da minha vida, talvez porque a índia saiba algumas coisas que nós desconhecemos […]” (Saramago 2008: 157). Die Konfrontation mit dem Anderen, mit einer zu einer portugiesischen christlichen Existenz so grundlegend konträren Lebenswelt, führt nicht nur zur Erweiterung des Gedankenhorizonts, sondern kreiert auch das Potential zur Hinterfragung und Reevaluierung der eigenen kulturellen Position. Die Kollaboration der beiden — die Kompetenz des Kommandanten als Führungskraft und die des Mahut als Reiter des Elefanten — sichert des Weiteren den Erfolg der ersten Etappe der Reise innerhalb der Grenzen Portugals.

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Das Motiv der Reise lässt sich so auch als Zwischenstadium, als transitorisches Moment, ausmachen, das eine poröse Durchlässigkeit der Kulturen und den gegenseitigen Austausch erst möglich macht — eine ebenso temporäre wie ephemere Utopie, die nach einer Phase der Bewegung mit dem Erreichen des Reiseziels ihr Ende finden und stagnieren muss. Hier scheint es interessant, eine Parallele zu einer weiteren Überlegung Bhabhas im Kontext der Möglichkeiten der Hybridität zu ziehen. Diese wird, so Bhabha, erst über migratorische und transnationale Strömungen der Dislozierung möglich: „[…] there is a return to the performance of identity as iteration, the re-creation of the self in the world of travel, the resettlement of the borderline community of migration” (Bhabha 1994: 9).

Der Raum, in dem Fragen der Identität verhandelt werden können, ist der Zwischenraum; sind die „interstices — the overlap and displacement of domaines of difference“ (Bhabha 1994: 2), die „in-between spaces“ (Bhabha 1994: 1), die sich nicht nur zwischen zwei Figuren wie dem Mahut und dem Kommandanten auftun können. Unter dem Zwischenraum kann man auch die Reise verstehen, die sich zwischen den fixierten Polen von Ausgangspunkt und Ziel erstreckt. Das Moment der Migration ist es auch, das die Perspektive des Elefantenhüters Subhro prägt und so einen differenzierten Blick auf die europäische Gesellschaft — den portugiesischen Hof, den Reisetrupp der Soldaten, den italienischen Klerus, den österreichischen Adel — zulässt. Als Außenseiter, der die Konventionen und die als essentialistisch präsentierten sozialen Konstruktionen nicht als natürlich empfindet, richtet der Roman den Fokus so auf Definitionen der kulturellen Identität, deren Eigenarten mit einem Perspektivwechsel aus dem Gebiet des Natürlichen und Traditionellen in das Gebiet des Absurden übergehen.

Verfolgt man den Begriff der Hybridität auf Ebene der Erzählung in A Viagem do Elefante weiter, stellt sich heraus, dass der Text ebenfalls aus parallelen und überlappenden Elementen besteht, die ihn zwischen Vergangenheit und Gegenwart, zwischen Obsessionen des 16. und Problematiken des 21. Jahrhunderts situieren. Die Linie, die über Jahrhunderte der europäischen Geschichte gezogen werden kann, fixiert somit nicht Anfang und Ende — die zeitliche Situierung der Erzählung und den zeitlichen Kontext der Niederschrift des Romans durch den Autor — sondern auch die Prozesse, die sich zwischen diesen beiden Punkten vollzogen haben.

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Doch die Möglichkeit der interkulturellen Kommunikation im Roman ist nur von kurzer Dauer: Kaum finden Mahut und Kommandant zu einer zögerlichen Freundschaft, steht ihnen auch schon der Abschied bevor. Die Utopie eines third space bleibt so nur transitorisch. Die innigste Beziehung, die dem zu wiederholten Ortswechseln gezwungenen Mahut zugestanden wird, ist die zu seinem Schützling, dem Elefanten, den er auf allen Stationen der Reise — von Indien nach Portugal, von Portugal über Spanien und Italien nach Österreich — begleiten muss. Die Utopie ist so vielleicht in der Beziehung zwischen Mensch und Tier zu finden, der vollkommenen Harmonie zwischen dem Elefanten und seinem Hüter. Doch ist diese Utopie die Folge einer erzwungenen Heimatlosigkeit, die zwei Wesen auf einen fremden Kontinent verschlagen hat und die die bedingungslose Kooperation der beiden erst zur absoluten Notwendigkeit macht, um gegenüber einer feindlich gesinnten oder ihre Bedürfnisse ignorierenden Außenwelt als Einheit auftreten zu können. Diese einsame Utopie, die den Mahut und den Elefanten von ihrer Umwelt trennt, drückt sich auch in ihrer Sprache aus, die eine Konstante in einer sich immer wieder ändernden Umgebung ist:

Vertia as palavras para dentro da orelha, um sussuro ininteligível, que tanto podia ser híndi como bengali, ou uma linguagem só dos dois conhecida, nascida e criada em anos de solidão, que solidão foi, mesmo quando a interrompiam os gritinhos dos fidalgotes da corte de lisboa ou as galhofas do populacho da cidade e arredores, ou antes disso, na longa viagem de barco que os trouxe a portugal, as chufas dos marinheiros. (Saramago 2008: 143)

Nationen als Stationen einer Reise: Portugal, Spanien, Österreich

Vom kolonialisierten Subjekt Subhro soll nun der Blick auf die Verhandlung des Konzepts der Nation in A Viagem do Elefante gelenkt werden. In einer der bekanntesten Analysen zu diesem Thema definiert Benedict Anderson die Nation als erfundenes, imaginiertes Konstrukt, das erst durch soziale Praxen an Realität gewinnt und sich so das Mäntelchen des Essentialistischen umlegen kann:

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[…] I propose the following definition of the nation: it is an immagined political community — and imagined as both inherently limited and sovereign. It is imagined because the members of even the smallest nation will never know most of their fellow members, meet them, or even hear of them, yet in the minds of each lives the image of their communion. (Anderson 2006: 5-6)

Der intrinsisch artifizielle Charakter der Nation, die im Kern auf der Idee einer Gemeinschaft von sich selbst in Relation zu ihrer räumlich-geographischen Begrenzung und Souveränität beruht, ändert, wie die politischen Entwicklungen der letzten 200 Jahre gezeigt haben, nichts an ihrer realen Sprengkraft. Wenn die Entwicklung der europäischen Nationalismen aber als Prozess betrachtet werden, dessen Anfänge grob im 19. Jahrhunderts zu verorten sind, wie kann dann im Zusammenhang von A Viagem do Elefante von Nationen gesprochen werden? Zahlreiche Ereignisse und historische Umwälzungen, die heute für die portugiesische kulturelle Identität als absolut grundlegend vorausgesetzt werden, sind Mitte des 16. Jahrhunderts noch nicht passiert: Dom Sebastião kam noch nicht bei der Schlacht um Alcácer Quibir ums Leben, Portugal hatte noch nicht die 60 Jahre andauernde Fremdherrschaft durch die spanische Linie der Habsburger durchlebt und so seine Identität nicht in der Ablehnung des Anderen, in diesem Falle Kastiliens, behaupten können. Oder, wie Saramago zu fragen scheint, kann man überhaupt über ein Portugal ohne saudade sprechen? Hierzu heiβt es im Roman:

Embora já esteja a ser notada por aqui certa fermentação de emoções na trabalhosa constituição de uma identidade nacional coerente e coesa, a saudade e os seus subprodutos ainda não foram integrados em portugal como filosofia habitual de vida, o que tem dado origem a não poucas dificuldades de comunicação na sociedade em geral, e também a não poucas perplexidades na relação de cada um consigo mesmo. (Saramago 2008: 95)

Im Essay History as social memory spricht der Historiker Peter Burke die Beziehung von Erinnerung und Amnesie im Bezug auf die Identitätsbildung einer Nation an. Vor allem negative Erfahrungen — also militärische und politische Niederlagen — schneiden sich tief in das Selbstbild einer Nation ein:

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Die Sieger haben die Geschichte vergessen. Sie können sich’s leisten, während es den Verlierern unmöglich ist, das Geschehene hinzunehmen; diese sind dazu verdammt, über das Geschehene nachzugrübeln, es wiederzubeleben und Alternativen zu reflektieren. (Burke 1991: 297)

Nimmt man die oben genannten Begebenheiten als Beispiel dafür, so scheint noch deutlicher zu werden, welch komplexe Aufgabe es ist, von einem heutigen Standpunkt aus in einem historischen Roman über eine angeblich homogene portugiesische nationale Identität zu schreiben. Dieser geistesgeschichtliche Wandel kann anhand eines Textauszugs aus Viagem do Elefante nachvollzogen werden, in der eben nicht über die Rechtfertigung als Nation argumentiert werden kann, sondern die Macht des Königs evoziert wird. Noch stärker tritt aber das Land bzw. das Vaterland in den Vordergrund, und damit auch die Landschaft, die als einender Faktor im Streit um zwei Rinder (miss-)braucht werden kann:

Parece que não ouviste que estou aqui em nome do rei, não sou eu quem te está a pedir o empréstimo de uma junta de bois por uns dias, mas sua alteza o rei de Portugal. Ouvi, meu senhor, ouvi, mas o meu amo. Não está, já sei, mas está o seu feitor que conhece os seus deveres para com a pátria, A pátria, senhor, Nunca a viste, perguntou o comandante lançando-se num rapto lírico, vês aquelas nuvens que não sabe aonde vão, elas são a pátria, vês o sol que umas vezes está, outras não, ele é a pátria, vês aquele renque de árvores donde, com as calças na mão, avistei a aldeia nesta madrugada, elas são a pátria, portanto não podes negar-te nem opor dificuldades à minha missão, […]. (Saramago 2008: 61)

Darüber hinaus verläuft die Zuordnung von Identität immer über das kontrastierende Konzept der Alterität: Portugal definiert sich nicht aus sich selbst heraus, sondern in Abgrenzung zu Spanien und zu Österreich; Länder, die hauptsächlich durch Stereotypen repräsentiert werden. So ist Spanien trocken und dürr, gezeichnet durch die konstante Gefahr von Banditen und den unberechenbaren und arroganten Charakter der Kastilier. Noch schlimmer, so der Konsens, könnten nur Österreicher sein: „Com estes espanhóis nunca se sabe, desde que têm um imperador parece que andam com o rei na barriga, e muito pior ainda seria se em

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vez de virem os espanhóis viessem os austríacos […]“ (Saramago 2008: 111). Unterlaufen und subvertiert werden diese Allgemeinplätze durch die spielerische Auflösung der verschiedenen Ebenen der Narration, zwischen Diegese, Digression und Kommentar, die eben diese vorgefassten Meinungen übertreibend ins Lächerliche ziehen, um so die diskursiven Mechanismen, die sie bedingen, zu entlarven.

In “O (meu) iberismo”, einem Text, den José Saramago 1988 im Jornal de Letras veröffentlichte, erläutert der Autor ebenfalls die Notwendigkeit der von Feindschaft geprägten Beziehungen zu Spanien, die zu einer Affirmation der portugiesischen Identität führen konnte. Gleichzeitig betont er entschieden seine Vision einer vereinten iberischen Halbinsel. Dieses utopische politische und kulturelle Konstrukt, welches er unter dem Begriff des Iberismus zusammenfasst, charakterisiert er als

evidência de uma possibilidade de uma relação nova que sobrepusesse ao diálogo entre estados, formal e geoéstrategicamente condicionados, um encontro contínuo entre todas as nacionalidades da Península, assente na busca de harmonização dos interesses, no privilegiamento das permutas culturais, na intensificação do conhecimento […]. (Saramago 1988: 32)

Obwohl Saramago die Zugehörigkeit der iberischen Halbinsel zur Europäischen Union zurückzuweisen schien, ist die Idee des Iberismus nicht als rein separationistisch anzusehen. So spricht er sich gleichzeitig für eine Intensivierung der Beziehungen zu Lateinamerika und Afrika aus, Kontinente, die sowohl durch spanische als auch portugiesische Eroberungs- und Kolonialisierungsbestrebungen einschneidend verändert wurden und nun durch die gemeinsamen Sprachen mit Europa verbunden werden. Das Potential einer ‘Trans-Iberität’ erkennt Saramago in der Möglichkeit, den reinen Iberismus der Ursprungsländer zu überwinden und aus der geteilten Geschichte zwischen der Halbinsel und anderen Kontinenten eine gemeinsame Zukunft zu erschaffen. Kritisch anzumerken ist hier, dass die von Saramago als positiv beschriebenen Ähnlichkeiten Folge der iberischen Expansion und des gewaltsamen Verlusts einer Vielzahl an indigenen Sprachen und Kulturen sind. Darüber hinaus ignoriert der Begriff „trans-ibericidade” (Saramago 1988: 32) die Gegenseitigkeit des kulturellen Austauschs zwischen den Ländern Lateinamerikas und der iberischen Halbinsel und

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fokussiert stattdessen wieder die Rolle der ehemaligen Kolonialherren. Das Konzept der Trans-Iberität zieht sich etwa auch als übergreifende Metapher durch den Roman A Jangada de Pedra (Saramago 1986), in dem sich die iberische Halbinsel — ausgenommen das britische Gibraltar — von Europa ablöst, um schlussendlich zwischen Lateinamerika und Afrika zur Ruhe zu kommen, um die geographische Positionierung Portugals und Spaniens mit der kulturellen und sprachlichen in Einklang zu bringen.

Als letzter Kontakt zwischen zwei Identitätskonzeptionen — zwischen zwei Nationalitäten, wenn man so will — soll an dieser Stelle noch einmal der Bogen zu den österreichisch-portugiesischen Beziehungen im Roman gespannt werden. Schon die erste Begegnung von Portugiesen und Österreichern zeigt, dass es nicht real existierende Kontroversen sind, die beide voneinander trennen, sondern die Sorge um das öffentliche Auftreten und den Schein, den es zu wahren gilt. Der sich anbahnende Konflikt zwischen den Soldaten in Valladolid, der durch die Überführung des Elefanten Solimão in die Hände der Österreicher auszubrechen droht, wird schon durch eine Kleinigkeit abgewendet: Die polierten Rüstungen der Österreicher glänzen stärker im Licht der Sonne und sind somit ein deutliches Zeichen ihrer Überlegenheit. Andere ‘Fakten’, die die Vorsicht der Portugiesen vor den unberechenbaren Österreichern rechtfertigen, betreffen deren zweifelhafte Einstellung zur portugiesischen Küche. Weitere Zuschreibungen umfassen die größere militärische Disziplin und einen frenetischen Katholizismus. Der Militarismus, der Eindruck von Effizienz, Ordnung und straffem Drill ist wieder ein Zeichen der Überlappung der temporalen Ebenen, eine Vorausdeutung auf die größten Konflikte des 20. Jahrhunderts: „Aqui, em viena de áustria, cultiva-se a disciplina e a ordem, há algo de teutónico nesta educação, como o futuro se encarregará de explicar melhor“ (Saramago 2008: 253). Generell wird deutlich, dass es schwer fällt, überhaupt von Österreich zu sprechen — nicht nur, weil es zum Teil mit Deutschland zusammenzufallen scheint, sondern eben, weil diese ‚Staaten‘ bis zu ihrem heutigen Erscheinungsbild noch zahlreiche Transformationen durchmachen sollten.

Die Charakterisierung Österreichs als Hochburg des Katholizismus bedingt sich zum einen aufgrund der engen Beziehungen zum ebenso katholischen Spanien, zum anderen durch die Herrschaft der Habsburger in beiden Ländern. Inwiefern dies einen Unterschied zum ebenso katholischen

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Portugal darstellen mag, sei dahingestellt. Von Interesse ist aber, dass nicht nur in A Viagem do Elefante eine höchst religiöse österreichische Königin auftaucht. Dona Catarina schlägt so den Elefanten als Präsent an Erzherzog Maximilian vor. In Memorial do Convento (Saramago 1982) ist es Dona Ana Josefa, die mit der Kirche kollaboriert, um so die Errichtung des Convento de Mafra sicherzustellen.

Zusammenfassend lässt sich feststellen, dass A Viagem do Elefante verschiedene Zugänge zum Themenkomplex rund um Identität und Alterität findet, die eben nicht nur wegen ihrer Sicht auf vergangene Ereignisse, sondern wegen ihrer Relevanz für aktuelle Diskussionen bedeutend sind. Einerseits spricht Saramago die Entwicklung nationaler Identitäten über das das Moment des kollektiven Gedächtnisses an: Im stetigen Wechsel zwischen den zeitlichen Ebenen dekonstruiert er dieses Gedächtnis aber im Hinweis darauf, dass es nicht nur Ergebnis verschiedener diskursiver Praxen der Verbreitung und Übermittelung von Information ist, sondern auch Resultat einer geschichtlichen Entwicklung und somit weder natürlich noch unveränderlich. Zum anderen deutet er auf die Notwendigkeit von Alteritätskonzepten zur Ausbildung der eigenen Identität hin, die wiederum auf ihre Gültigkeit hinterfragt wird. Indem sich Saramago dieser bisher relativ unbekannten Episode der österreichisch-portugiesischen Geschichte annimmt, gelingt es ihm aber auch, in einem Werk, welches primär von der Lust am Fabulieren und erst dann von den kritischen Intentionen Saramagos geprägt zu sein scheint, positive Räume zu öffnen, die einen differenzierten Blick auf das Andere kreieren und die Möglichkeit eines Austauschs zwischen verschiedenen Kulturen schaffen. So ist das Motiv der Reise, das allein durch den Titel des Romans eine herausragende Position einnimmt, nicht nur Hintergrund für mögliche Entwicklungen, sondern auch Motor der friedlichen Begegnung mit anderen Kulturen.

Autores e autoras

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Ana Paula Arnaut (http://www1.ci.uc.pt/illp/tec_superior/index7.html) é professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde é membro do Centro de Literatura Portuguesa e integra o projecto de investigação “Figuras da Ficção”. A sua investigação centra-se, sobretudo, no romance português contemporâneo e no pós-modernismo na literatura portuguesa. Começando com Memorial do Convento – história, ficção e ideologia (1996), publicou numerosos estudos sobre a obra de José Saramago. Entre as suas publicações mais recentes destacam Post-Modernismo no romance português contemporâneo. Fios de Ariadne - Máscaras de Proteu (2002), José Saramago (2008), Entrevistas com António Lobo Antunes (1979-2007) - Confissões do Trapeiro (2008) e António Lobo Antunes - A Crítica na Imprensa (2011).

Raquel Baltazar é doutoranda do Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa, onde também é membro do projecto Diálogos Ibéricos e Ibero-Americanos. É professora de Língua Portuguesa na Universidade Técnica de Lisboa e de Língua Inglesa no Instituto Superior de Novas Profissões. Fez o mestrado em Estudos Hispânicos na Universidade de Edimburgo sobre a obra de José Saramago e foi leitora do Instituto Camões nesta universidade de 2002 a 2006. Organizou a conferência Going Caribbean, New Perspectives on Caribbean Literature and Art na Universidade de Lisboa em Novembro de 2009 e publicou Os Gaiatos, um estudo introdutório da Língua Portuguesa.

Burghard Baltrusch (http://uvigo.academia.edu/BurghardBaltrusch) é professor da Faculdade de Filologia e Tradução da Universidade de Vigo, onde lecciona literaturas lusófonas. A sua investigação centra-se nas obras de Fernando Pessoa e José Saramago, nas poesias galega e portuguesa da actualidade e na teoria da tradução. É membro do projecto interuniversitário POESP (Poesia no espaço público) e do Grupo de Análise e de Estudo da Literatura e de Tradutologia (GAELT). Publicou os livros Bewußtsein und Erzählungen der Moderne im Werk Fernando Pessoas (1997), Kritisches Lexikon der Romanischen

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Gegenwartsliteraturen (com W.-D. Lange et al.), Soldando Sal (com G. Pérez Durán, 2010), Non-Lyric Discourses in Contemporary Poetry (com I. Lourido, 2011) e Lupe Gómez – Estudos e traducións (2013).

Verena-Cathrin Bauer (http://www.ifk.ac.at/index.php/fellowlist/items/83) formou-se em Estudos Portugueses e Literatura Comparada na Universidade de Viena, onde prepara uma tese de doutoramento sobre “Intermediale Erinnerungskonstruktionen: Erinnerungskultur und Film im Kontext des portugiesischen Kolonialkriegs”. Além de ser tradutora e colaboradora de jornais, publicou estudos sobre Clarice Lispector, Lídia Jorge e coeditou o volume Entdeckungen und Utopien. Die Vielfalt der portugiesischsprachigen Länder. Akten des 9. Deutschen Lusitanistentags (com K. Sartingen, 2013).

Isabel Araújo Branco (http://www.fcsh.unl.pt/faculdade/docentes/1701) é licenciada em Estudos Portugueses e em Ciências da Comunicação, mestre em Literatura Comparada (Universidade Nova de Lisboa) e em Estudos Contemporâneos da América Latina (Universidad Complutense de Madrid). Actualmente é docente na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde prepara o seu doutoramento sobre as relações literárias entre as literaturas hispano-americanas e portuguesa. É membro do Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos (Universidade Nova de Lisboa) e do projecto Diálogos Ibéricos e Ibero-Americanos (Centro de Estudos Comparatistas, Universidade de Lisboa). Publicou vários estudos sobre a obra de José Saramago.

Yvonne Hendrich formou-se em História, Estudos Germanísticos e Romanísticos na Johannes Gutenberg-Universität Mainz e na Universidade Nova de Lisboa; doutorou-se em 2006 na Universidade de Magúncia, onde ensina na actualidade cadeiras de estudos culturais portugueses, literatura e língua portuguesas. Os seus principais âmbitos de investigação são as relações entre Alemanha e Portugal desde o séc. XV, a emigração portuguesa e o romance histórico. Entre as suas publicações conta-se Valentim Fernandes – Ein deutscher Buchdrucker in Portugal um die Wende vom 15. zum 16. Jh. und sein Umkreis (2007).

Ana Paula Ferreira (http://spanport.umn.edu/people/staffprofile.php?UID=apferrei) é professora do Departamento de Estudos Espanhóis e Portugueses na Universidade de Minnesota. A sua investigação centra-se nas questões de nação, raça, género e pós-colonialismo nas literaturas portuguesa, brasileira e africana lusófona, sobre as quais publicou numerosos artigos em revistas e capítulos de livros. Entre os seus livros contam-se Alves Redol e o Neo-Realismo Português (1992), A Urgência de Contar: Contos de Mulheres, Anos Quarenta (2001), Fantasmas e Fantasias Imperiais no Imaginário Português Contemporâneo (com M. C. Ribeiro, 2003), Para Um Leitor Ignorado: Ensaios sobre O Vale da Paixão e Outras Ficções de Lídia Jorge (2009).

José Cândido de Oliveira Martins (<http://www.braga.ucp.pt/resources/documents/FACFIL/cvdocentes/jcandido.html>) é professor da Faculdade de Filosofia

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da Universidade Católica Portuguesa, onde lecciona Teoria da Literatura, Literatura Portuguesa, Comunicação e Argumentação e coordena cursos de 2º Ciclo (Mestrado) e de 3º Ciclo (Doutoramento) em Literatura Portuguesa. Entre outros livros, publicou Teoria da Paródia Surrealista (1995); Naufrágio de Sepúlveda. Texto e Intertexto  (1997);  Para uma Leitura da Poesia de Bocage (1999); Para uma Leitura da Poesia Neoclássica e Pré-Romântica  (Lisboa, 2000); Fidelino de Figueiredo e a Crítica da Teoria Literária Positivista (2007); Viajar com... António Feijó (2009). Co-organizou diversos volumes de ensaios, com destaque para Padre António Vieira – Colóquio (2009); Leituras do Desejo em Camilo Castelo Branco (2010); Estética e Ética em Sá de Miranda (2011) e Pensar a Literatura no Séc. XXI (2011).

Ângela Maria Pereira Nunes (<http://www.fb06.uni-mainz.de/portugiesisch/159.php>) é professora e coordenadora da área de Estudos Portugueses da Faculdade de Tradução, Línguas e Culturas da Johannes Gutenberg-Universität Mainz/Germersheim, onde se doutorou em 2002. Desenvolveu e publicou trabalhos de investigação sob uma perspectiva luso-alemã, nas áreas da Literatura, Cultura, e Tradução Literária, nomeadamente sobre as primeiras traduções de Fernando Pessoa para alemão (de Paul Celan), traduções para alemão de José Saramago e o livro Vergangenheitsbewältigung im interkulturellen Transfer: zur Aufarbeitung europäischer Geschichte in José Saramagos O Ano da Morte de Ricardo Reis (2003).

Rosângela Divina Santos Moraes da Silva é mestra em Literatura e especialista em Leitura e Produção de Textos pela Universidade Federal de Goiás e especialista em Docência Universitária pela Universidade Salgado de Oliveira/GO. Foi bolsista da Fundação para a Ciência e Tecnologia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde é doutoranda em Línguas e Letras Modernas. Integra o grupo de pesquisadores de crítica hecdótica (Círculo Fluminense) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Fernando Venâncio é professor emérito da Universidade de Amsterdão. Entre as suas publicações académicas contam-se Estilo e Preconceito. A Língua Literária em Portugal na Época de Castilho (1998), José Saramago: a luz e o sombreado (2000) e Ensaios Literários de 2002. Traduziu do neerlandês a colectânea de poesia Uma Migalha na Saia do Universo (1997) e Um Almoço de Negócios em Sintra de Gerrit Komrij (1999). Colabora como cronista e crítico literário em várias publicações, de que se destacam o JL, a revista Ler, Colóquio/Letras, o Expresso e a colectânea Maquinações e Bons Sentimentos (2002). Como ficcionista, publicou Um Selvagem ao Piano (1987), Os Esquemas de Fradique (1999) e El-rei no Porto (2001), Quem Inventou Marrocos: Diários de Viagem (2004) e Último Minuete em Lisboa (2008).

Bibliografia

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Bibliografia activa de José Saramago e entrevistas

Saramago, José (1968). “Quem gosta deste mundo?”, Seara Nova, Outubro, 338.— (1971). Deste Mundo e do Outro. Lisboa: Caminho.— (1973). A Bagagem do Viajante. Lisboa: Caminho.— (1977). Manual de Pintura e Caligrafia. Lisboa: Caminho.— [1978] (51999). Objecto Quase. Lisboa: Caminho.— (1980). Levantado do Chão. Lisboa: Caminho.— (1982). Memorial do Convento. Lisboa: Caminho.— [1983]. [Manuscrito] N45. Espólio de José Saramago. Lisboa: Arquivo da Cultura

Portuguesa Contemporânea da Biblioteca Nacional de Lisboa.— [1984] (141998). O Ano da Morte de Ricardo Reis. Lisboa: Caminho.— & Miguel Bayón (1985). “Fernando Pessoa: El poeta de las mil caras” [entrevista],

Cambio 16 731, 2.12.1985, 154.— & Nicole Guardiola (1985). “José Saramago: ‘La felicidad es posible’” [entrevista],

El País [suplemento literário], 22.9.1985, 8.— (1986). A Jangada de Pedra . Lisboa: Caminho.— & Clara Ferreira Alves et al. (1986). “A facilidade de ser ibérico” [entrevista],

Expresso, 8.11.1986, 36-39.— & Inês Pedrosa (1986). “A Península Ibérica nunca esteve ligada à Europa”

[entrevista], Jornal de Letras, Artes e Ideias, 10.11.1986, 24-26.— & Henry Thorau (1987). “Der Name des Klosters” e “Wortlos ist die Liebe”

[entrevista], in Die Zeit 5, 23.01.1987, 49.— 1988. “O (meu) Iberismo”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias 330, 31.10.1988, 32.— (1989a). História do Cerco de Lisboa. Lisboa: Caminho.— (1989b). “Sobre a invenção do presente”, Jornal de Letras, Artes e Ideias 347,

28.02.1989, 45; reeditado em “O tempo e a História”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 27.01.1999, 5.

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— [1989d] (2010). “Gosto do que este País fez por mim”, in J. C. Vasconcelos 2010.

— & Francisco José Viegas (1989). [entrevista], Ler 6, 15-21.— (1990). “História e ficção”, Jornal de Letras, Artes e Ideias 400, 6.03.1990, 17-

20.— (1991). O Evangelho segundo Jesus Cristo. Lisboa: Caminho.— & Maria João Avillez (1991). “Antevisão de Blimunda”, O Público, 9.05.1991,

disponível em <http://static.publico.clix.pt/docs/cmf/autores/joseSaramago/antevisaoBlimunda.htm>, último acesso: 8.11.2011.

— (1993). “La ilusión democrática”, Revista de Occidente 148, 21-34.— (1994). Cadernos de Lanzarote. Diário I. Lisboa: Caminho.— & Clara Ferreira Alves (1994). [entrevista, vídeo], realização de João Mário

Grilo, produção de Isabel Colaço, Lusomundo Audiovisuais.— (1995a). Ensaio sobre a Cegueira. Lisboa: Caminho.— (1995b). Cadernos de Lanzarote. Diário II. Lisboa: Caminho.— (1996). Cadernos de Lanzarote. Diário III. Lisboa: Caminho.— (1997a). Cadernos de Lanzarote. Diário IV. Lisboa: Caminho— (1997b). “O autor como narrador”, Ler 38, 36-41; reeditado em “O autor está

no livro todo”, Ler 93, 2010, 28-30.— (1997c). “De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz”, O

Público, 8.12.1998, 4-7; reeditado em Jornal de Letras, Artes e Ideias 736, 16.12.1998, 10-13.

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Índice temático-onomástico

307

Arnaut, Ana Paula: 15 n., 19, 31, 32, 40, 44 n., 45, 50, 127, 133, 159, 229, 254

Arnaut, António: 51Ashcroft, Bill: 21, 93Astorga, Antonio: 225ateu: 159, 170Atlântico: 12, 39, 57 n.Aust, Stefan: 252Áustria / austríaco: 245, 247, 248 n.,

263, 264, 265, 267, 268, 269, 270, 271, 272, 273, 275, 276, 277, 278

Avillez, Maria João: 169, 173Bach, Friedrich Christian: 161Bachelard, Gaston: 190, 194Bagagem do Viajante, A: 48Bakhtine, Mikhail: 130, 147Baltrusch, Burghard: 9, 20, 22, 53,

68 n., 69, 71 n., 155, 166 n., 173

Bandarra, António Gonçalves Annes: 55

Baptista-Bastos, Armando: 96, 98Barbas, Helena: 243 n.Barbéris, Pierre: 252barroco: 128, 130, 133, 134, 137,

139, 143, 145, 154Barthes, Roland: 154Batista, Abel Barros: 67 n.Bayón, Miguel: 65 n.Beauvoir, Simone de: 158

25 de Abril: 56, 76, 200, 222, 223Adorno, Theodor W.: 14África/africano: cf. também colonial;

21, 39, 53, 57 + n., 58, 59, 76, 77, 80, 81, 82, 83, 85, 86 + n., 88, 89, 90, 91, 92, 200, 209 n., 219, 220, 221, 222

Alberto, Carlos: 63alteridade: 16, 78, 79, 89, 91, 275,

278; (o outro) 16, 32, 60, 78, 79, 89, 90, 162, 176, 177, 209

Alves, Clara Ferreira: 64Amaral, João Mota: 223América/americano: 16, 33, 34, 35,

37, 38, 39, 53, 57 + n., 58, 75 n., 78, 80 n., 91 n., 92, 172, 220, 253; (novo mundo) 34-38

Anderson, Benedict: 273; 274Andrade, Oswald de: 37, 38androcentrismo/androcêntrico: cf.

também estética; discurso; 27, 71 n., 72, 156, 162, 168, 170, 172 + n., 174

Ano da Morte de Ricardo Reis, O: 24, 47, 62 n., 63, 64 + n., 65 n., 66, 116, 117, 118, 119, 155, 197, 198, 200, 201 + n., 202, 204, 205, 206, 207, 208, 209 + n., 210, 211, 212, 213, 214, 215, 216

Antunes, António Lobo: 200Aragon, Louis: 164Armbruster, Claudius: 58 n.

308

Carvalho, Paulo de: 93Cassirer, Ernst: 60, 61Castilho, António Feliciano de: 107

n., 114Caverna, A: 25, 46, 47, 106, 116,

117, 118, 119, 123, 227, 232, 233, 234 n., 240

Cerejeira, Manuel Gonçalves: 218, 221

Chaves, Castelo Branco: 160 + n., 161

Chevalier, Jean: 51 n., 52Coelho, Latino: 99Coelho, Rogério Mendes: 34, 35Colombo, Cristóvão: 35, 36 + n., 37,

80 n.colonialismo / colonial: cf. também

discurso, história, utopia; 21, 26, 56, 57 + n., 59, 61, 65 n., 71, 75, 77, 79, 81, 83-92, 221, 271; (anti-colonial) 21, 75, 77, 80, 84, 85, 88-92; (guerra) 77 n., 219, 221; (pós-colonialismo) 7, 20, 21, 56-59, 68, 72 + n., 73 + n., 75, 76, 78-80, 85, 88, 89, 91-93, 178, 268, 269, 270, 271, 273, 276, 277, 282

comunismo / comunista: 13, 206, 207, 211, 213, 222

Conto da Ilha Desconhecida, O: 23, 48, 181, 182, 183, 185, 186, 187, 189, 190, 194, 195, 196

Corbett, Thomas J.: 79Cordeiro, Ana Nunes: 216, 244, 245

n., 260 + n.Corghi, Azio: 165, 172Cornell, Drucilla: 176Cortesão, Jaime: 198Costa, Horácio: 76, 77, 79Dambré, Denis: 83d’Astray, Milan: 214Davies, Mark: 102, 116, 119“De como a a personagem foi mestre

e o autor seu aprendiz”: 56, 57, 61, 67, 72

Benjamin, Walter L.: 74 + n., 79, 81, 82 + n., 86, 92, 158, 198

Berrini, Beatriz: 157, 169, 171Betcherev, Vladímir: 182 n.Bhabha, Homi K.: 26, 61 n., 271,

272Bíblia / bíblico: cf. também mito; 33,

34 + n., 37, 47, 128 n.,142, 177, 186, 194, 221, 222: 33, 34 n.; (Génesis) 37; (Jardim do Éden) 34, 36, 37, 48; (Livro de Daniel) 33 n.

Bloch, Ernst: 5, 9, 14, 16Blom, Philipp: 269Boorstin, Daniel J.: 34Borges, Jorge Luis: 14, 24, 63, 129,

207Branco, Isabel Araújo: 24, 39 n., 129

n., 217Branco, José Mário: 223Burke, Peter: 175, 274, 275Caderno, O: 43, 96; (O Caderno 2)

16, 20, 74, Cadernos de Lanzarote: 16, 20, 67,

74, 96, 166 n.; (Diário I) 109, 173 n.; (Diário II) 207; (Diário III) 40, 256; (Diário IV) 171

Caetano, Manuel: 132, 139, Caetano, Marcelo: 223 Caetano, José A. Palma: 265Caim: 47, 48 n., 49, 50, 74, 89, 96,

117, 118, 119, 120, 123, 216Calafate, Pedro: 54 + n., 55Camões, Luís de: 25, 63, 64 + n.,

65, 72, 112, 115, 209 n., 221, 222, 223 n.; (Os Lusíadas) 55, 64, 65, 209

Caragea, Mioara: 161Cardoso, Egidio: 85 n.Carlos V: 242 + n.Carmona, António Óscar Fragoso:

218Carneiro, Francisco de Sá: 223Carrilho, Maria: 88Carroll, David: 17 n.Carvalho, Mário de: 95

309

Dürer, Albrecht: 243Eco, Umberto: 68 n., 129, 143, 270Edfeldt, Chatarina: 178 n.Encarnação, Gilda Lopes: 244Engels, Friedrich: 13, 14Ensaio sobre a Cegueira: 15, 25, 42,

49, 77 n., 110, 114, 115, 116, 117, 118, 122, 123, 156, 171, 227, 228, 235, 236, 237, 238, 239, 240

Ensaio sobre a Lucidez: 42, 43, 47, 106, 116, 117, 118, 120, 123

enumeração: 127, 128, 129 + n., 130, 131, 132, 133, 134, 135, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 145 + n., 146, 147, 148, 150, 152, 153, 154

Estado Novo: 24, 62 n., 64, 65, 198, 201, 206 + n., 211, 212, 214, 218, 221, 228

Estébanez Calderón, Demetrio: 131estereótipo / estereotipização: 163,

167, 169, 170, 175estética: cf. também ideologia; 15

+ n., 17, 54, 59, 62 n., 69, 70, 99, 100, 106, 107, 108, 154, 253; (androcêntrica/patriarcal) 23, 156, 167, 168, 169; (barrroca) 130, 133, 134, 145, 152, 258; (e ética) 20, 61, 67, 71, 173, 174, 235, 236; (histórica) 15 n., 174; (mito) 186; (narrativa) 258; (recepção) 162, 174; (saramaguina) 17, 186; (sublime) 175

Estrada Vargas, Graciela: 58 n.ética: cf. também estética; ideal;

utopia; 10, 16, 20, 53, 56, 59 + n., 60, 61, 63, 67, 69, 70, 71, 72, 78, 79, 89, 90, 153, 158, 162, 173, 174, 175, 221, 235, 236, 253

Europa / europeu: 12, 16, 20, 26, 37, 39, 53, 54, 56, 57 + n., 58, 59, 60 + n., 62, n. 63, 65, 71, 72, 76, 80, 81, 82, 88, 146,

Delgado, Iva: 199democracia / democrático: 10, 15 +

n., 53, 57, 68, 71, 76, 79, 200, 207, 225

Denkel, Norbert: 248Dennett, Daniel C.: 59 n.Derrida, Jacques: 72, 165, 166, 176Deste Mundo e do Outro: 48Deus: 37, 47 n., 49, 50 + n., 55 n.,

111, 141, 142, 147, 150, 151, 153, 155, 168, 171, 184, 210, 221, 222, 257

deusa: 64, 187, 188, 191devir: 190, 193, 194, 196, 223discurso / discursivo: cf. também

ideologia; (androcêntrico/patriarcal) 23, 71 n., 155, 156, 168; (colonial/eurocêntrico) 60; 87; 271; (crítica do d.) 20, 55, 71 + n., 173, 178, 240, 267, 276, 278; (cultural/literário) 17, 63, 64, 65, 69, 70, 92; (estético) 17; (de poder/político) 13, 14, 15, 23, 61, 63, 71, 156, 172, 177; (histórico/historiográfico) 169, 229, 245 + n., 246, 250, 252, 267, 268; (identitário) 268; (ibérico) 59; (filosófico) 177; (narrativo) 129, 131, 134, 135, 143, 150, 157, 163, 171, 210, 227, 230, 255, 256; (pós-moderno) 61, 62 n., 228; (saramaguiano) 14, 20, 53, 55, 59, 67; (tradutológico) 16; (utópico) 9, 11, 173

divindade / divino: 49, 50, 55, 154, 169, 187, 193, 196

Discursos de Estocolmo: 48, 186, 194D. João III: 242, 248Dostoiévski, Fiódor M.: 241D. Quixote: 9, 10, 11, 13, 14, 98Duby, Georges: 203, 252, 253 + n.Dulci, Luiz: 9 n.Durand, Gilbert: 23: 181 + n., 182

n., 184, 188, 190, 191, 192, 193, 195, 196

310

172, 186, 200, 202, 204, 106, 245, 251, 254, 258, 259, 266, 267; (metaficção) 25, 26, 80, 227, 245 + n., 246, 254, 255, 256, 258, 259, 265, 266, 267; (realidade) 24, 25, 39, 62, 69, 208, 219, 245, 251, 260, 265; (utopia) 19, 61

Flaubert, Gustave: 153Flores, Francisco Moita: 200Fonseca, Manuel da: 197, 200Fontanier, Pierre: 132Foucault, Michel: 60 n., 162Fourier, Charles: 13Franco, Francisco / franquismo: 198,

199 + n, 205Freeman, Barbara Claire: 157, 175Freire, Maria da Graça: 210, 211Frye, Northrop: 62 n.Gago, André: 200Galeano, Eduardo: 9 n.Galey, Matthieu: 162Garrett, João Baptista Leitão de

Almeida: 60, 96, 97, 98, 99, 108

género: (desconstrução) 158; (diferença) 32, 155, 156, 157 + n., 166, 175; (estética) 175; (estudos de g.) 174, 176, 177; (feminino) 38, 84, 85, 155; (humano) 32 n.; (linguístico) 122; (literário) 21, 67, 68 + n., 75, 76, 133, 178; (masculino) 84

Gervais-Zanninger, Marie-Annick: 154 n.

Giddens, Anthony: 240Giese, Ursula: 250 n.Gillis, John R.: 61globalização / global: 13, 14, 40, 53,

58 n., 59 + n., 186, 227, 233, 240

Gómez Aguilera, Fernando: 20, 39, 42, 53, 96, 97, 98, 105, 217, 225

Gómez-Montero, Javier: 55 n.

147, 160, 161, 179, 202, 220, 243, 244, 260, 263, 264, 268, 269, 270, 272, 274, 276, 277; (Portugal) 57, 59, 65

Evangelho segundo Jesus Cristo, O: 49, 62 n., 115, 116, 117, 118, 156, 169, 171

exotismo: 242, 269Fanon, Franz: 84fascismo / facista: 24, 54, 65, 79, 199

n., 201, 205, 206 + n., 207, 211, 214, 215, 216, 217, 224; (nacional-socialismo) 206, 211

feminino: cf. também mulher; 84, 156, 162, 167, 168, 169, 172, 174 + n., 177, 178, 187, 188; (figura/personagem) 47, 48 + n., 156, 157, 164, 165, 179, 187, 191, 239; (género) 32, 46, 85; (mito) 23, 71 n., 157, 164, 167, 168, 169, 172, 173, 174, 177, 190; (sublime) 23, 157, 162, 175, 177, 178, 179; (utopia) 171

feminismo / feminista: 23, 32 n., 156, 164, 167, 174, 178 + n.

Ferreira, Ana Paula: 16 n., 20, 73, 74 n., 80 n., 114 n., 116, 119, 134, 156, 158

Ferreira, Fernando Eduardo Rodrigues: 199

Ferreira, José Gomes: 197Ferreira, Maria Luísa Ribeiro: 32 n.Ferreira, Michael: 102Ferreira, Patrícia Isabel Martinho: 97 n.ficção / ficcional: cf. também história;

(científica) 120; (figura/personagem) 20, 67, 219, 224, 229, 266, 268; (histórica/historiográfica) 24, 26, 69, 70, 202, 203 + n., 204 206, 209, 211, 230, 246, 250, 253, 256, 258, 263, 266; (literária) 21, 22, 41, 48, 57, 67, 69, 71, 102, 108, 111, 114, 116, 120, 127, 129, 130, 157,

311

69, 70, 71 n., 107, 129 + n., 130, 158, 174, 197, 203 + n., 204, 206, 209, 211, 246, 250, 252, 253 + n., 254 + n., 255, 256, 259, 265, 267, 268, 275; (filosofia) 54 n., 55, 223, 246; (ideologia) 12, 253; (da língua) 9, 10, 21, 115, 116, 121, 124, 125, 133; (da mulher) 23, 158, 161, 162, 168, 171, 174 n., 178; (político-social) 13, 14, 24, 39, 53, 197, 201, 208, 210, 223, 228; (portuguesa) 44, 55 + n., 63, 65, 66, 154, 228, 264; (posthistoire) 63; (presente/realidade) 16, 26, 63, 66, 186, 245, 248, 251, 252, 255, 256, 258 + n., 260, 267; (religião) 23, 40, 195; (tradução) 15, 78; (utopia) 16, 26

História do Cerco de Lisboa: 26, 47, 54, 69, 101, 103, 104, 106, 110, 115, 116, 117, 118, 155, 259

“História e ficção”: 24, 62, 63, 66 n., 69, 70, 202, 203, 207, 211, 250, 251, 252, 254, 256, 265 n.

historiografia / historiográfico: cf. também ficção; 20, 25, 26, 50, 58, 61, 62, 63, 69, 70, 71, 112, 168, 174, 178 + n., 186, 199, 203, 206, 211, 245, 250 + n., 252 n., 253, 255, 259, 265, 266, (historiador) 21, 24, 26, 34, 35 n., 62, 69, 80, 109, 112, 125, 146, 198, 199, 202, 203, 204, 246, 251, 252, 253, 257, 266, 274

Hitler, Adolf: 198, 206Holanda, Sérgio Buarque de: 34, 35,

36, 37, 146Homem Duplicado, O: 45, 47, 116,

117, 118, 119, 120, 123Honwana, Bernardo: 89Horácio: 201

Gonçalo Monteiro, Nuno: 218Grimm, Florian: 254, 258 + n., 259Grossegesse, Orlando: 55 n., 58 n.,

63 n., 163, 170, 171, 253, 259 Guardiola, Nicole: 64 + n., 65, 67guerra: 92 n., 198, 212; (Civil de

Espanha) 24, 197, 198, 199, 200, 201 + n., 206, 209, 210, 211, 212, 213, 214, 215, 216, 228; (colonial) 77 n., 200, 208, 209 n., 219, 220, 221; (g. mundial) 202, 228, 248

Guerra, João Paulo: 220, 222Guerra, Ruy: 38Gusmão, Bartolomeu Lourenço de:

47, 49, 128, 170, 175Gutkoski, Cris: 10 n.Gyasi, Kwaku: 82Halbritter, Roland: 241 n., 247, 248Hallward, Peter: 75 + n., 82Hamon, Philippe: 154 n.Heiss, Helmut: 247 + n., 248Hemingway, Ernest: 216Hendrich, Yvonne: 25, 45 n., 241,

243, 261, 266 n., 269 n.Herculano, Alexandre: 25Hesíodo: 129hibridismo / híbrido: 24, 26, 135,

172, 208, 210, 269, 270, 271, 272

história / histórico: cf. também discurso; ficção; imaginário; 14, 15n., 16, 22, 24, 49, 62 + n., 63 + n., 69 + n., 70, 77, 121, 144, 145, 152, 154, 155, 162, 165, 171, 178, 202, 203, 204, 211, 228, 230, 252, 266; (colonial) 79, 85; (cultural) 55, 57 n., 58 + n., 98; (discurso/poder) 15, 20, 23, 57, 62, 63, 69, 70, 71, 121, 125, 127, 162, 169, 174 n., 177, 203, 207, 229, 230, 240, 245, 246, 250, 251, 252, 255, 256, 259, 266, 268; (europeia) 26, 57, 202; (ficção) 24, 25, 26, 68,

312

nacionalista) 24, 25, 121, 171, 217, 221, 228; (identitária/social) 25, 32, 39, 43, 46, 48 n., 59, 114, 158, 164, 228, 230, 232, 236; (marxismo/comunismo) 12, 89, 153, 211; (realidade/história) 16, 152, 203, 206; (saramaguiana) 15, 70, 72 n., 77, 186, 211, 266; (utopia) 14, 235, 240

Igreja: 35, 218, 221, 222, 228, 230, 256, 257

imagético / imaginário: (capacidade/concepção) 20, 23, 42, 56, 59, 63, 74 n., 164, 181, 182 n., 190; (cultural/histórico) 20, 53, 60, 61, 62, 64, 65, 67, 69, 72, 159, 184, 267; (imagologia) 20, 54, 55, 56, 57, 59, 71, 162, 168, 169, 171; (literário) 175, 182, 188, 191, 194, 195, 245, 259; (metafísico) 20, 33, 34, 35, 55, 191; (nacional/português) 15, 25, 54, 55, 56, 63 + n., 64, 65, 66, 72, 204, 229, 273, 274; (político) 21, 75, 236; (sujeito) 165, 170, 171, 172, 174; (utopia) 11, 12, 13, 16, 56, 57 n., 59, 60, 63, 129

Immervoll, Gertrude: 250 n.Intermitências da Morte, As: 38, 39,

40 + n., 47, 116, 117, 118, 119, 123

Internacional, A: 77, 224Irigaray, Luce: 156 n., 167, 168, 175,

178ironia / irónico: 68 n., 69, 70, 132,

139, 140, 141, 142, 145 + n., 146, 147, 150, 153

Ivo, Dorotheia Maria Roza Brandão: 103, 160, 220

Jameson, Fredric: 13Jangada de Pedra, A: 13, 15, 38, 39,

46, 47, 57, 59, 65, 77 n., 115, 117, 118, 155, 171, 277

Joffily, Bernardo: 10 n., 13

Horta, Maria Teresa: 178 n.Hubert, Walter: 248humanismo: 20, 31, 43, 63, 71, 72,

156, 174Hume, David: 59 n.Huntington, Samuel: 59 n.Hutcheon, Linda: 15, 26, 62 n., 245

n., 246, 254, 267iberismo / ibérico: cf. também

identidade; sonho; (cultural) 57 + n., 58, 59, 60, 61, 63, 71, 114, 148, 276; (identitário) 38, 58; (imagológico) 20, 54, 97; (linguístico) 21, 22, 98, 111, 115, 126; (literário) 57, 157 n.; (onírico) 39, 126; (Península Ibérica) 16, 21, 39, 57, 58, 59, 276, 277; (transiberismo/ibericidade) 15 n., 16 n., 20, 22, 26, 53, 58 + n., 59, 60, 61, 63, 65, 72 + n., 276, 277; (utópico) 58, 97, 111

ideal / idealização: 31, 34, 71, 164; (amor) 163, 171; (ética, religiosa) 52, 78; (figura/personagem) 24, 163, 170, 173; (humanidade/mundo) 50, 154, 235; (mulher) 156, 163, 164, 165, 169, 171, 172 n., 174; (sociedade) 19, 32, 33, 52, 79, 127, 178 n., 235, 246 n.; (sujeito) 23, 179, 218

identidade / identificação: cf. também iberismo; 15 n., 16, 20, 25, 26, 38, 54, 57 + n., 60, 61, 62, 65, 67, 69, 70, 86, 88, 93, 171, 186, 227, 228, 229, 230, 232, 235, 236, 237, 238, 239, 240, 263, 268, 269, 270, 272, 274, 275, 276, 277, 278

ideologia / ideológico: (discursiva/sistémica) 15, 25, 50, 63, 127, 162, 164, 170, 227, 249, 252, 233; (colonial/racista) 86, 90, 91; (cultural/literária) 15 + n., 21, 22, 92, 128, 134, 154, 186, 211, 229, 235, 264; (fascista/

313

Marques, Francisco: 144, 177Martins, José Cândido de Oliveira:

127, 228Marx, Karl / marxismo: 12, 13, 14,

32, 88, 89, 153, 154, 206 n., 214, 216

materialismo / materialista: 20, 55, 62, 65, 72, 158, 174

Matos, Patrícia Ferraz de: 87Maximiliano da Áustria: 25, 45, 241

+ n., 242 + n., 247 n., 248, 249, 250 n., 251, 257, 263, 264, 269, 270, 278

Mayor Zaragoza, Federico: 9 n.memória: (cultural/colectiva) 20, 24,

39, 56, 57, 61, 65, 71, 72, 83, 170, 186, 200, 209, 210, 274; (histórica) 109, 110, 152, 197, 198, 199, 207, 208, 231, 274

Memorial do Convento: 22, 23, 27, 47, 49, 109, 116-119, 127, 128 + n., 129-134, 136 + n.-144, 148, 149, 152, 154, 155, 157-159 + n., 161-171, 173 + n., 174, 176, 177, 179, 237, 259, 278

Mendonça, António Pedro Lopes de: 99

Merveilleux, Charles Fréderic de: 160

messias / messiânico: 55 + n., 59, 184, 195

Miranda, Miguel: 200mitificação / mito: (bíblico) 35 n.,

194; (cultura/história) 60, 71, 161, 186, 252; (imaginário/teoria) 23, 71 n., 156, 164-169, 172, 174; (literatura) 63, 66, 67, 172, 173, 210; (des/mitificação) 54, 56, 62 + n., 64, 68, 159, 160, 161, 168, 173; (mitopoese) 165, 169, 170; (mulher) 23, 71 n., 156, 164, 165, 167, 168, 169, 172, 174; (nação/Portugal) 56, 64, 65 + n., 121

Kant, Immanuel: 17, 175Kosellek, Reinhart: 251Kraft, Richard: 248Kristeva, Julia: 167, 168, 208Küchelbecker, Johann Basilius: 250

n.Lacan, Jacques: 167“La ilusión democrática”: 49, 169Lanciani, Giulia: 159Lange, Wolf-Dieter: 156 n.Laranjeira, Pires: 89Lardreau, Guy: 203, 252, 253 n.,

256 n.Larrington, Carolyne: 168Lausberg, Heinrich: 131, 143Levantado do Chão: 25, 43, 45 + n.,

46, 66, 117, 118, 119, 155, 227, 228, 229, 230, 240

Lévi-Strauss, Claude: 182linguagem: 57 n., 74, 75, 81, 82,

89, 96, 151, 163, 268, 269; (androcêntrica) 168; (cultural/ideológica) 61, 65, 87, 90, 269, 276; (narrativa) 98, 103, 108, 112, 134, 267, (oral) 82, 88; (poética) 156; (utópica) 82, 168, 273, 276, 277

Lope de Vega y Carpio, Félix: 134Lopes, Fernão: 252 n.Lopes, João Marques: 97Lourenço, Eduardo: 55, 56, 57 + n.,

60 + n., 63 n., 65, 173lusofonia / lusófono: 76, 92Lyotard, François: 177 n.Lytting, Kathia: 173 n.Machado, José Pedro: 31 n.Machado, Júlio César: 99Madonna: 172Madureira, Arnaldo: 199 + n.Mannheim, Karl: 14Manual de Pintura e Caligrafia: 17,

43, 44 + n., 46, 116, 117, 118, 157

Marinho, Maria de Fátima: 252, 254, 259

Marques, António Henrique de Oliveira: 58

314

142, 143, 144, 145, 149, 157, 158, 159, 166, 173, 182, 184, 185, 187, 189, 195, 208, 210, 219, 222, 224, 232, 237, 245, 246, 248, 250, 252, 253, 254, 255, 256, 258, 259, 260 + n.

N’Diaye, Catherine: 152Nóbrega, Pe. Manoel da: 37 + n., 38

n.Nogueira, Alberto Franco: 220Nunes, Ângela Maria Pereira: 24,

201 + n., 208, 209 + n., 210Nunes, Simão: 132, 139Nünning, Ansgar: 266“O autor como narrador”: 67Objecto Quase: 24, 99, 116, 117,

182, 217, 218, 219, 222, 223, 224, 225

Ocidente / ocidental: 16, 35, 59 + n., 60, 104, 121, 168, 186, 220, 222

Oettermann, Stephan: 241 n., 243 n., 247, 258

Oliveira, César: 197Oliveira, Francisco Xavier de: 161Oliveira Martins, José Cândido de:

22, 127“O (meu) Iberismo”: 26, 57 n., 58,

61, 276Opll, Ferdinand: 241 n., 242 n.,

243, 247, 248 + n., 258Orth, Ernst Wolfgang 60 n.OULIPO: 129Owen, Robert: 13Owens, Craig: 156, 171Oyono, Ferdinand: 21, 76, 80, 82,

83, 84 + n., 85, 86 + n., 87, 90, 91, 92, 93

Pánek, Jaroslav: 246paraíso: cf. também Bíblia; utopia;

10, 33, 34, 35, 36 + n., 37, 184 paródia / paródico: 127, 130, 134,

142 + n., 147, 149, 154Pascoaes, Teixeira de: 54Passavant, Johann Carl: 161Pedegache, Pierre Baptiste: 160, 161

modernidade / modernismo: 15 + n., 20, 56, 58, 60, 62 n., 63, 68 + n., 71 n., 127, 154, 156, 113, 127, 227, 232, 233, 235, 239, 240, 246, 254, 259, 266, 268

Moi, Toril: 86 n., 178Moisés: 34Molina, César Antonio: 58 n.Monteiro, Cristiana Sofia dos Santos

Pires: 39 n.Monteiro, Luís Sttau: 107More, Thomas: 10, 11, 12, 14mulher: cf. também idealização;

mito; utopia; 23, 24, 32, 39, 46, 48, 47, 49, 50, 85 n., 109, 110, 132, 135, 136, 137, 139, 141, 144, 148, 155, 156, 157, 158, 160 + n., 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 174, 175, 177, 178 + n., 179, 182, 183, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 195, 213, 229, 230, 234 n., 237, 238, 239

Mumford, Lewis: 33Mussolini, Benito: 198, 206nação / nacional: cf. também

imaginário; (estereótipo/símbolo) 26, 58, 121; (ideário/concepção) 12, 26, 59, 60, 61, 65, 71, 72, 90, 93, 129, 146, 213, 221, 223, 268, 273, 274, 275; (identidade/consciência) 26, 60 n., 61, 62 n., 78 n., 88, 186, 227, 272, 274, 277, 278; (imaginário/pensamento) 15, 54, 55, 57, 63, 64, 65, 66; (memória) 64, 209; (nacionalismo) 45, 54, 58, 121, 206, 211, 221, 223

Namorado, Joaquim: 198, 215narrativa / narrativo: cf. também

discurso; 15, 20, 24, 25, 26, 40, 53, 63, 65, 66, 67, 68, 71, 70, 72, 80, 81, 96, 98, 111, 127, 128, 129, 131, 134, 135,

315

providencialismo: cf. também imaginário; 54, 55, 56, 58, 59, 61

Pryce, William: 161Quental, Antero de: 99Ramonet, Ignacio: 9 n.Ramos, Rui: 218realidade: cf. também história; ficção;

26, 66, 159, 162, 163, 164, 245, 246, 248, 251, 252, 256, 258

Real, Miguel: 54, 56, 59, 60, 62, 66, 169, 170, 171

Rebelo, Luís de Sousa: 157recepção: 160, 162, 166 n., 169,

171, 172, 173Reis, Carlos: 10 n., 67 + n., 68 + n.,

69 + n., 163, 166 + n., 172 + n., 173, 174, 230

Reitor, Mónica: 157, 159Reitterer, Hubert: 243religião / religioso: 60, 128, 129 + n.,

136 + n., 137, 138, 141, 150, 151

resistência: 14, 15, 16, 92, 172, 224, 225, 233

retórica / retórico: 129, 130, 131, 133, 134, 143, 153, 154

Rettich, Margret: 245 n.Reuter, Edward Byron: 91 n.revolução / revolucionário: 16, 19,

53, 63 n., 89, 91, 92, 127, 158, 200, 201, 202, 212, 223, 228

Ribeiro, Álvaro: 54Ribeiro, Raquel: 58 n.Rocha, Iraci Simões da: 14 n., 15, 197Rohe, Ludwig Mies van der: 153Rorty, Richard: 59 n.Rosas, Fernando: 218Saint-Simon, Henri de: 13Salazar, António de Oliveira /

salazarismo: 24, 65 n., 198, 199, 205, 206 + n., 211, 217, 218, 219, 220, 222, 223, 224, 225

Santiago, Adriana: 10

Pequenas Memórias, As: 48Pereira, Alvim: 222Perelman, Chaim: 143Perrone-Moisés, Leyla: 186Pessoa, Fernando: 20, 24, 54, 55,

62 n., 64 + n., 65 + n., 66, 72, 113, 201, 204, 205, 206, 207, 208; (Ricardo Reis) 24, 47, 62 n., 63, 65, 66, 67, 116, 117, 118, 119, 155, 197, 198, 200, 201 + n., 202, 204, 205, 206, 207, 208, 209, 210, 211, 212, 213, 214, 215, 216

Pinto, António Costa: 220 + n.Pinto Balsemão, Francisco: 223Pires, José Cardoso: 60 n., 64 n., 95,

100, 106, 107, 108, 109, 110Platão: 10, 12, 31, 32 n., 235poética / poético: 68, 81, 88, 133,

156, 165, 168, 170, 171, 172, 190, 217, 223,

Portela, Artur: 106, 108, 200Portugal: cf. também colonial;

Europa; história; 19, 22, 25, 39, 54, 55 n., 56, 57, 60 n., 65, 74 n., 76, 79, 88, 96, 97, 99, 111, 112, 120, 126, 127, 143, 146, 160 n., 161, 197, 198, 199 + n., 200, 201 n., 202, 206 + n., 207, 208, 211, 212, 214, 221, 223, 225, 245, 246 n., 263, 264, 269, 271, 273, 274, 275, 277, 278

pós-colonialismo / pós-colonial: cf. colonialismo; utopia

pós-modernismo / pós-moderno: cf. também discurso; 15, 20, 61, 62 n., 63, 68 n., 71, 72, 127, 174, 228, 246, 249, 254, 259, 266, 268

Prado, S. José do: 129 n., 130, 135, 152

Praxedes, Walter.: 186Prevedo, Elvira S.: 165Proença, Raul: 54Proust, Marcel: 152

316

sujeito: 23, 32, 33, 43, 62, 66, 83, 130, 156, 167, 175, 177, 179, 228, 229, 231, 232, 233, 234, 235, 236, 237, 238, 239

Süleyman I: 248Tarasti, Eero: 14Tavares, Miguel Sousa: 200teatro épico: 68, 71, 173Thébaud, Françoise: 174 n.third space: 26, 271, 273Thorau, Henry: 62“Todo son traducciones, todos somos

traductores”: 17Todos os Nomes: 46, 47, 100, 117,

118, 120Tolentino, Nicolau: 139Torga, Miguel: 95, 108, 197, 200,

216Torgal, Luís Reis: 221tradução: 14, 16 + n., 17 20, 21, 73

+ n., 75, 76, 77 + n., 78 + n., 79, 80 + n., 81, 82 + n., 83, 86, 87, 89, 90 + n., 91, 92, 112, 114 + n., 134, 160; (cultura) 15, 43, 68, 75, 92, 172 + n.; (tradutologia) 16, 17, 20, 32, 73, 74, 75, 79, 82, 89; (utopia) 17, 37, 40, 42, 93

Traglia, Luigi: 222Turchi, Maria Zaira: 181, 182 n.Turk, Huntington: 59 n., 60 + n.Unamuno, Miguel de: 65, 210, 214universalismo / universal: (consciência

/epistemologia) 12, 60, 65, 69, 236, 239; (cultura/sociedade) 55, 60, 67, 82, 83, 88; (mulher) 23, 164, 174, 178; (humano/humanismo) 24, 51, 52, 72; (literatura) 20, 40, 71, 209, 229, 235, 239

Urrutia, Jorge: 58 n.utopia / utópico: cf. também

discurso; ideologia; tradução; (conceito/teoria) 10, 11, 12, 13, 14, 16, 19, 31 + n.; (cultura/identidade) 20, 61, 71, 272, 273; (discurso) 9, 10, 11, 14,

Santos, Jorge: 77 + n.Santos, José Rodrigues dos: 200Santos, Maria Isabel Nunes dos: 200São Jorge: 139São Lucas: 34 n., 49São Mateus: 34 n.Saraiva, António José: 55, 56, 57 +

n., 63Sarmiento de Gamboa, Pedro: 58sátira / satírico: 127, 132, 137Sauer, Karl: 245 n.Savio, Roberto: 9 n.Schiller, Friedrich: 175Schönherr, David: 248 n.Schultz, Irmgard: 172sebastianismo: 55Seixo, Maria Alzira: 77 n., 127Seminara, Graziella: 165, 172Sena, Jorge de: 107, 200Senghor, Léopold Cédar: 90, 91Sérgio, António: 54Silva, Agostinho da: 54, 55 n., 59,

60 n.Silva, Ana Cristina: 200 Silva, Teresa Cristina Cerdeira da: 253Silva, Marisa Corrêa: 58 n.Silva, Rosângela Divina Santos

Moraes da: 23, 181Silveira, Jorge Fernandes da: 230Smolka, Eva-Maria: 156 n.socialismo / socialista: 12, 13, 14, 77,

178 n.sociedade: 12, 14, 19, 20, 31, 32, 38,

39, 41, 47, 50, 52, 53, 65, 127, 139, 143, 145, 149, 154, 158, 167, 170, 202, 203, 218, 220, 227, 232, 234, 240, 252, 274

sonho: 20, 21, 22, 31, 37, 39, 52, 67, 93, 104, 110, 115, 154, 162, 169, 170, 183, 193, 194, 195; (ibérico) 22, 39, 126

Spitzer, Leo: 152 + n.Stagno, Laura: 246sublime: 23, 151, 157, 166, 175, 176,

177 n.; (feminino) 23, 157, 162, 174, 175, 177, 178, 179

317

Venuti, Lawrence: 78, 79, 89, 92Vespúcio, Américo: 12Viagem do Elefante, A: 25, 26, 45

+ n., 47, 117, 118, 119, 122, 123, 124, 241, 243, 244, 245, 248, 249, 250, 251, 254, 255, 256, 257, 258, 259, 260 + n., 263, 265, 266, 267, 268, 269, 270, 271, 272, 273, 274, 276, 277, 278

Vidal-Noguet, Pierre: 58Vidigal, Germano Santos: 231Viegas, Francisco José: 164, 169Vieira, Pe. António: 55Villardi, Raquel: 159Virgílio: 55Vitória, Ana: 247, 258, 259Waugh, Patricia: 265Welsch, Wolfgang: 63, 72White, Hayden: 62 n., 253, 266Woolf, Virginia: 157Young, Robert J. C.: 73, 79Yourcenar, Marguerite: 162, 163Zurara, Gomes Eanes de : 252 n.Zylinska, Joanna: 175

16, 17, 19, 21, 26, 42, 55, 93 + n., 273; (distopia) 12, 40, 43, 227; (espaço/lugar) 39, 41, 43, 75; (espiritual ) 20, 34, 35, 50, 52; (estética) 20, 67; (ética) 20, 61, 63, 67; (filosofia) 5, 9 + n., 10, 13 14 16, 32 + n., 33, 39, 40, 46, 54, 93; (histórica) 26; (iberista) 58 + n., 59, 65, 97, 276; (língua) 22, 98, 111, 126; (literatura) 11, 12, 15, 21, 33 + n., 38, 41, 59, 129; (mulher) 22, 71, 156, 169, 171, 173, 179; (novo mundo) 37, 38, 56; (política/social) 12, 13, 14, 15, 17, 42, 52, 58, 59, 61, 154, 162, 171, 178 n., 179; (pós-colonial) 21, 26, 56, 72, 75, 92, 93; (pós-moderna) 174; (ser humano/humanismo) 41, 43, 46, 48, 56, 72, 162, 273; (técnica narrativa) 22, 41, 129; (tradução) 20, 75

Vale, Francisco: 25, 209Vasconcelos, José de: 91Vasconcelos e Sousa, Bernardo: 218Vasconcelos, José Carlos: 40, 211Venâncio, Fernando: 21, 82 n., 95,

109, 122, 157 n.

 

The iBroLiT series | A colección iBroLiT      

iBroLiT is a peer reviewed book series founded by the GAELT research group at the University of Vigo. The library aims to stimulate research in Ibero- Romance cultures and literatures. It is located at the methodological crossroads between literary and translation studies among other (sub)disciplines. This transdisciplinary conception is thought to approach the many different forms and manifestations of Ibero-Romance cultural phenomena, with a special focus on Galician and Lusophone Studies, along with the related gender and translatological aspects.

 

The Contemporary Literature Studies (LiCo), the Medieval Studies (MedS) and the Translatology Studies (TranS) subseries are specific publication channels within iBroLiT to optimize its function as a forum for the Ibero-Romance contemporary literature and translation research community.

 

     

iBroLiT é unha colección creada polo Grupo de investigación GAELT da Universidade de Vigo, dentro dos estándares da revisión por pares. O seu obxectivo principal é estimular a investigación no eido dos estudos literarios iberorrománicos, dos estudos de tradución e da intersección entre ambos, xunto con outras (sub)disciplinas. A súa concepción transdisciplinar tenta aproximar as diferentes formas e manifestacións de fenómenos culturais iberorrománicos, con especial atención ao galego, a lusofonía e os estudos de tradución.

 

Estudos de Literatura Contemporánea (LiCo), Estudos Medievais (MedS) e Estudos de Tradutoloxía (TranS) son as tres subseries mediante as cales se artella iBroLiT e que pretenden constituír un punto de encontro da comunidade investigadora no campo da literatura iberorrománica e da tradutoloxía.

 

Information for authors | Información para autoras/es      

The series welcomes submissions in English, French, Galician, German, Portuguese or Spanish language. Book proposals can be sent to the acquisition editor, Teresa Bermúdez Montes ([email protected]), and will be submitted to a peer review process. More information at <http://gaelt- uvigo.blogspot.com>.

A colección está aberta a propostas de edicións en inglés, francés, galego, alemán, portugués e español. As propostas enviaranse á responsable da coordinación editorial, Teresa Bermúdez Montes ([email protected]) e serán sometidas a un proceso de revisión por pares. Máis información en <http://gaelt-uvigo.blogspot.com>.

      

Coming soon | No prelo  

 

X. Bieito Arias Freixedo: “Per força de foder”. O sexo nas cantigas de escarnio galego-portuguesas (MedS, vol. I).

Manuela Palacios González: Us & Them: Women Writers’ Discourses on Foreign-ness in Irish and Galician Literature (LiCo, vol. V).

Mônica Heloane Carvalho de Sant’Anna: Presenças e novas representações do corpo e da mulher: uma (re)visão na obra de Maria Teresa Horta (LiCo, vol. VI).

Teresa Bermúdez Montes & Mônica Heloane Carvalho de Sant’Anna (eds.): Letras escarlate. A representación da menstruación e do corpo feminino na literatura contemporánea (LiCo, vol. VII).

Ana Acuña (ed.): Letras nómades. Experiencias da mobilidade feminina na literatura galega (LiCo, vol. VIII).