A IDEIA DA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE NACIONAL ATRAVÉS DA CANÇÃO ÍNDIOS, DE LEGIÃO URBANA: UMA...

22
A IDEIA DA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE NACIONAL ATRAVÉS DA CANÇÃO ÍNDIOS, DE LEGIÃO URBANA: UMA ANÁLISE Ana Cecília Tiburtius Franco Universidade Federal de Pernambuco INTRODUÇÃO Este trabalho propõe-se a realizar um exame crítico do processo de tentativa de construção de uma identidade de caráter nacional através do Romantismo, assim como através das várias correntes artístico-intelectuais que contribuíram por meio de expressões culturais para o estabelecimento de um panorama político-social atual deste país. Para tanto, como forma de auxílio ao entendimento do dito exame, ter-se-á a análise da letra da canção Índios, da banda Legião Urbana. 1. EMBASAMENTO TEÓRICO 1.1. Colonização O costume de sobrepujar um povo, seus valores e crenças / costumes em relação a outro remonta aos primórdios da civilização, em que um dado grupo, por meio do cultus, seja como forma de cultivar a terra ou ainda cultuar os mortos / antepassados, busca estabelecer–se em novas paragens para não só usufruir do que a terra pode oferecer através do cultivo / plantio (segundo uma perspectiva econômica), mas também para se ter um vínculo (solo, aporte) para o estabelecimento de uma memória coletiva que deve ser mantida / cultivada e que, através da cultura (conjunto de prática, técnicas, símbolos e valores, a incluir a linguagem), deve ser repassada às novas gerações com o intuito de firmar “um estado de coexistência social”. (BOSI, 1992).

Transcript of A IDEIA DA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE NACIONAL ATRAVÉS DA CANÇÃO ÍNDIOS, DE LEGIÃO URBANA: UMA...

A IDEIA DA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE NACIONAL ATRAVÉS DACANÇÃO ÍNDIOS, DE LEGIÃO URBANA: UMA ANÁLISE

Ana Cecília Tiburtius Franco Universidade Federal de Pernambuco

INTRODUÇÃO

Este trabalho propõe-se a realizar um exame crítico doprocesso de tentativa de construção de uma identidade decaráter nacional através do Romantismo, assim como atravésdas várias correntes artístico-intelectuais quecontribuíram por meio de expressões culturais para oestabelecimento de um panorama político-social atual destepaís. Para tanto, como forma de auxílio ao entendimento dodito exame, ter-se-á a análise da letra da canção Índios, dabanda Legião Urbana.

1. EMBASAMENTO TEÓRICO

1.1. Colonização

O costume de sobrepujar um povo, seus valores ecrenças / costumes em relação a outro remonta aosprimórdios da civilização, em que um dado grupo, pormeio do cultus, seja como forma de cultivar a terra ouainda cultuar os mortos / antepassados, buscaestabelecer–se em novas paragens para não só usufruir doque a terra pode oferecer através do cultivo / plantio(segundo uma perspectiva econômica), mas também para seter um vínculo (solo, aporte) para o estabelecimento deuma memória coletiva que deve ser mantida / cultivada eque, através da cultura (conjunto de prática, técnicas,símbolos e valores, a incluir a linguagem), deve serrepassada às novas gerações com o intuito de firmar “umestado de coexistência social”. (BOSI, 1992).

Dentro dessa perspectiva, enquadra-se a expansãocolonialista europeia que, à época do séc. XVI,fundamentava-se numa concepção europeizante desuperioridade segundo a qual haveria nações detentorasnão só de uma estrutura de produção industrial, mastambém de outros fatores (com respaldo científico,inclusive: superioridade de raça, de clima, de situaçãogeográfica...) que deveriam se sobrepor a outras,fornecedoras de matérias-primas e outros materiais. Daí,então, de onde surgiria o colonialismo e, por tabela,aquilo que Nelson Werneck Sodré (1984) cunharia de“ideologia do colonialismo”, estabelecida através da“transplantação cultural”, ou seja, o puro decalque, nosâmbitos político e artístico, dos moldes externos, emque se daria, consequentemente, uma desvalorização dolocal, nativo.

Essa desvalorização seria a própria motivação de sedesconsiderar a cultura indígena local do Novo Mundo,sendo, no caso das terras brasileiras, um retrato dosistema colonial de produção baseado na geração deriquezas e trabalho escravo / servil. Vale ressaltarque, durante o período inicial da colonização, o ato doescambo realizado entre índios e europeus teria sido ummodo encontrado pelo colonizador de obter a riquezalocal (o pau-brasil, de cuja madeira era extraída umatinta muito utilizada na época para tingir tecidos) doíndio em troca de objetos de menor valor, assim tirandodos povos indígenas o que, de fato, eles não possuíam.Para os colonizadores, ainda que oferecesse um customenor em relação às especiarias do Oriente, ainda assima extração do pau-brasil, dentro do sistema do comércioultramarino, contribuía para a balança comercialfavorável das metrópoles, num conjunto de ideias epráticas econômicas conhecido por Mercantilismo (ARRUDA;PILETTI, 2003).

O caráter essencialmente extrativista dos recursosnaturais (pau-brasil, basicamente) da colônia pela

metrópole portuguesa se manteve nas primeiras décadas dacolonização, período em que a terra de Vera Cruz erasistematicamente invadida por saqueadores oriundos deoutras metrópoles europeias, daí a construção defeitorias (algumas francesas, aliás) ao longo da costa.Como forma de manter o monopólio e garantir a hegemoniaeconômica sobre estas terras, o governo de Portugaldecide enviar uma expedição para uma colonizaçãoefetiva, mas apenas algumas décadas após a primeiravinda, por volta de 1530.

Ainda em relação ao mencionado anteriormente, segundopercebe-se a sobreposição de uma cultura perante aoutra, tem-se o que afirma Bosi (1992): “cultura supõeuma consciência grupal operosa e operante quedesentranha da vida presente os planos para o futuro”,ao que acrescenta:

O presente se torna mola, instrumento, potencialidadede futuro. Acentua-se a função da produtividade querequer um domínio sistemático do homem sobre amatéria e sobre outros homens. Aculturar um povo setraduziria, afinal, em sujeita-lo ou, no melhor doscasos, adaptá-lo tecnologicamente a um certo padrãotido como superior. (BOSI, 1992, p. 17)

Tem-se, assim, a sujeição da cultura indígena (tidacomo inferior) a uma outra, europeia (dita superior),cabendo a esta ser preservada e perpetuada, a sermantida num “estado de coexistência social” através daeducação. Num primeiro momento da colonização lusitananas Américas, a educação se dá por meio dos membros daCompanhia de Jesus que, se de início direcionavam osaber que detinham à catequização dos nativos,posteriormente seriam subjugados à pressão dosbandeirantes e à força do Exército colonial, restandoapenas a opção de prover educação humanística a jovensde famílias abastadas. (BOSI, 1992, p. 25).

Vale destacar que o caráter cristianizador da expansãoportuguesa encontraria nos bandeirantes, isto é, nos

próprios portugueses, um ponto de embate frontal ecruel, tendo estes e os jesuítas travado grandesdisputas pelo índio, fosse para exterminá-lo ouconvertê-lo ao Cristianismo. Sobre isso, afirma Anchietaserem os portugueses os maiores inimigos da catequese,tendo ocorrido incidentes já no primeiro século decatequização, como no relato da fuga dos índios de SãoTomé:

Subitamente se alvoroçou toda aquela gente de SãoTomé, e andava tão revolta que parecia andar oDemônio entre eles. Pregavam pelas ruas: “Vamo-nos,vamo-nos antes que venham estes Portugueses”. Vendo oPadre Gaspar Lourenço tal alvoroço, fê-los ajuntar,falando a eles, dando-lhes a entender quão mal faziamem deixar a igreja por mentiras que lhes diziam, eeles chorando respondiam: “Não fugimos da igreja nemda tua companhia, porque, se tu quiseres, ir conosco,viveremos contigo no meio desses matos ou sertão, quebem vemos que a lei de Deus é boa, mas estesPortugueses não nos deixam estar quietos, e se tu vêsque tão poucos que aqui andam entre nós tomam nossosirmãos, que podemos esperar, quando os mais vierem senão que a nós mulheres e filhos farão escravos?”,mostrando alguns deles os perigos e açoites que emcasa de Portugueses tinham recebido, e isto diziamcom muitas lágrimas e sentimento. (BOSI, 1992, p. 32)

À revelia de embates sociais e agitações como descritoacima, ainda por muito tempo por boa parte da Históriado país haveria a tentativa de afirmação de umaidentidade de caráter nacional, em especial através demanifestações artístico-intelectuais, persistindo até osdias atuais.

1.2. Romantismo

Amplo e diverso, o Romantismo é levado em consideração aextremos opostos, pois se por um lado ele é confundido commeras manifestações literárias, por outro são vistascaracterísticas românticas na totalidade da História daCivilização. Considerado como a busca de novos valores por

meio da quebra de um padrão estático vigente e resultado derebelião e inconformismo, o Romantismo seria, na realidade,um movimento cultural situado historicamente e só como talpode ser entendido. (BORNHEIM, 2005).

Assim, conforme afirma Coutinho (1978) e para fins deelucidação neste trabalho, tem-se o Romantismo como ummovimento estético-poético peculiar de um estilo de vida ede arte dominante da cultura ocidental, tendo prevalecidoentre a metade do século XVIII e a metade do século XIX.Inspirado num retorno ao passado medieval e nos moldesvigentes então, realizou-se em contraposição a um modeloneoclássico setecentista.

Em oposição ao racionalismo do período anterior,neoclassicista, o Romantismo vai passar a exaltar aimaginação e o sentimento, a individualidade subjetiva, emque o sujeito romântico busca o relativismo em vez doabsolutismo, tendendo a idealizar a realidade, e nãoreproduzi-la.

Por razões de natureza didática, tendo-se em vista ofoco deste trabalho ser a ulterior análise da letra dacanção Índios, seguem, abaixo, apenas algumas dascaracterísticas elencadas por Coutinho (1978) como traçospeculiares do Romantismo:

Escapismo. Desejo de fuga para um mundo ideal(izado),feito à imagem e semelhança das emoções e dos desejosdo indivíduo, conforme a própria imaginação deste;

Fé. Para o indivíduo romântico, seria a fé, e não arazão, que comandaria o espírito;

Retorno ao passado. Voltando-se para a natureza evolvendo ao passado, o romântico idealiza umacivilização diferente da atual;

Exagero. Em busca de uma realidade utópica, buscafugir para um mundo de perfeição e sonho em um lugarlongínquo, no passado ou o futuro;

Culto da natureza. Exaltada no Romantismo, a Naturezatorna-se paisagem preponderante, exótica (exotismo),um lugar de refúgio, resguardado da civilização, puro

porque intocado pela sociedade. Vale frisar, nestetópico, a ideia do “bom selvagem” de Rousseau, cujaconcepção merece um tratamento a parte:

Em oposição ao pensamento cartesiano que encerra ainterioridade do indivíduo no cogito, Rousseau defende anatureza, isto é, o sentimento interior, como fator básicoda vida individual. Para Rousseau, a razão estariasubjugada ao sentimento, sendo inferior a este, e não maispautaria a natureza como algo externo, objetivo ematematizado tal como preconizado pelos enciclopedistas. Anatureza, então, deveria ser compreendida a partir dainterioridade e seria isenta à mácula humana, estranha eanterior à cultura, divinamente pura, podendo daí revelar oAbsoluto. Amalgamado a essa natureza interior e sem contatocom a civilização externa, o indivíduo primitivo deRousseau não prescindiria da cultura (BORNHEIM, 2005).

No Brasil, o Romantismo assumiu um caráter peculiarnacionalista sob forma de Indianismo, sendo mesmo umatendência universal daquele. O índio, que remonta àconcepção de indivíduo à imagem e semelhança do europeusegundo os enciclopedistas, é também retratado de formaidealizada tanto na literatura quanto na política jesuítas(SODRÉ, 1984), daí tendo o nativismo brasileiroestabelecido o índio como símbolo de independênciaespiritual, política, social e literária.

Em se tratando do âmbito literário, com respeito àquestão política de uma nação que visava firmar a suaautonomia, pode-se dizer que se encontram traços de críticasocial atrelada à questão indígena já no Quinhentismo comos registros jesuítas de Pe. Anchieta. No Romantismo comomovimento literário propriamente dito no Brasil, destacam-se Gonçalves Dias na poesia e José de Alencar na prosa,cabendo ao segundo maior prevalência em termos de tentativade formação de uma identidade nacional.

Defensor de uma linguagem tipicamente romântica nosentido de estar desatrelada de amarras formais, em queprevalece o uso de uma linguagem libertada, simples, sem

ênfase, ainda que rica, Alencar desvincula da línguanacional a ideia de reprodução de uma outra, europeia,lusitana, sendo o seu romantismo “pelo menos lógico, aotentar ao mesmo tempo uma nova linguagem de um novo idealde criação literária” (SODRÉ, 1984, p. 33).

Para Helena (2006), a busca pela construção de um idealnacional em Alencar ganha maior relevância:

Tematizar a articulação da vida selvagem, aindividualidade pretérita e, a partir dela, representar oBrasil, como eu social, foi o desafio que José Alencartomou a seu cargo. Suas obras, que por vezes surpreendempela perspicácia disfarçada de histórias palatáveis, dãoforma e conteúdo à representação do país nascente, buscandoconstruir a “memória” do cidadão que ocuparia o lugar dasmitologias da origem, na construção da história pátria.Preside esta empresa a intenção de dizer o que era serbrasileiro no século XIX. (HELENA, 2006, p. 91).

Essas mesmas características românticas de desapego àsformas estruturais e busca de uma identidade próprianacional seriam posteriormente resgatadas no movimentomodernista cujo expoente máximo foi a Semana de ArteModerna de 22. Nessa época, de acordo com Nicola (2003), onacionalismo adquire diversos aspectos, os quais que melhorse alinham com a proposta de outrora do Romantismo são:volta às origens; pesquisas de fontes quinhentistas; buscade uma língua tipicamente nacional, “brasileira”;valorização do índio verdadeiramente brasileiro. Tem-se,ainda, o nacionalismo crítico, consciente, alinhado com asesquerdas da época, que procurava denunciar a realidadebrasileira de então. Mário de Andrade chegaria a se referira José de Alencar “como um irmão de cruzada” (SODRÉ, 1984,p. 32).

1.3. Identidade

O conceito básico que se tem de memória é a deexperiências particulares, individuais, íntimas, adquiridaspor meio da experiência de cada indivíduo. Contudo,conforme já atestava Halbwachs nos idos dos anos 20/30, a

memória “deve ser entendida também, ou sobretudo, como umfenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômenoconstruído coletivamente e submetido a flutuações,transformações, mudanças constantes.” (POLLAK, 1992).

Se situarmos a afirmação acima dentro do que foramencionado anteriormente na referência ao cultus, temos quecada há memórias que são mantidas em detrimento de outras,pois se há colonização e sobreposição de um povo perante ooutro, que dizer da memória do povo subjugado, a sermantida em um momento de alterações tão drásticas devalores e parâmetros como os vividos atualmente?

Em relação a isso, afirma Hall (1992): “[...] as velhas identidades, que por tanto tempo

estabilizaram o mundo social, estão em declino, fazendosurgir novas identidades e fragmentando o indivíduomoderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assimchamada "crise de identidade" é vista como parte de umprocesso mais amplo de mudança, que está deslocando asestruturas e processos centrais das sociedades modernas eabalando osquadros de referência que davam aos indivíduos umaancoragem estável no mundo social.”

Dentro dessa perspectiva, há que se considerar o casodos indígenas no século XX, em pleno fenômeno deglobalização, que vêm a própria memória coletiva, que se jánão era enaltecida (muito pelo contrário, eramarginalizada, não fossem as diversas manifestaçõesartístico-intelectuais e político-sociais - como o casodos irmãos Villas-Boas - que buscassem preservá-la),esmiuçada por valores que, se já não são reconhecidos pelospróprios colonizadores como própria deles, que dirá de suaspróprias?

As supostas “crises de identidade”, então, seriam umfator a mais a contribuir para desestruturação de umideário de afirmação perante a sociedade, o que pode terlevado à grande onda de suicídios ocorrida por volta dosanos 80 na região de Dourados (MS), pois já que não sereconhecem mais como índios, os descendentes dos povosnativos se deparam com uma sociedade marcadamente

europeizante, fundada sob os moldes de uma perspectivahistórica eurocentrista, que, por questões etnológicas,dificilmente jamais os aceitará como indivíduos brancos.

De sua parte, a sociedade dos “brancos” no mais dasvezes só vai tomar conhecimento da existência dasverdadeiras condições de vida dos povos indígenas na (pós-)modernidade quando há relatos de eventos que denotam algumgrau de psicopatologia social (no caso, o suicídio). É oque ocorre, por exemplo, no relado presente no artigoSuicídio entre povos indígenas: um panorama estatístico Brasileiro(Oliveira; Neto, 2002) do caso do grupo dos Sorowahá, vistocomo “a situação mais crítica já descrita”.

Esse grupo étnico, afastado das vias de navegação,ainda vivia da agricultura de subsistência, caça, pesca ecoleta (Kroemer, 1985 apud Oliveira; Neto, 2002) por voltados anos 70, tendo permanecido isolado até o fim destadécada, quando, enfim, foram "foram localizados pelasnotícias de conflitos com sorveiros [...] que haviaminvadido seu território". (Oliveira; Neto, 2002).

Recentemente, a questão da carta de ameaça de suicídiocoletivo dos Guarani-Kaiowá que ganhou notoriedade ao sernoticiada nas redes sociais mais populares do país (Twittere Facebook) levou uma gama de usuários de diversas contas(como são chamados os espaços que cada pessoa possui emtais redes cibernéticas) passar a se designar,nominalmente, “Guarani-Kaiowás”, ao que alude a jornalistaEliane Brum em seu artigo “Sobrenome: “Guarani Kaiowa”(27/11/2012), no qual questiona a verdadeira motivação por trásdessa iniciativa: “A questão é mais complexa do que pode parecera princípio: afinal, o que é ser ou o que torna alguém umalguém? O que seria, por exemplo, ser brasileiro e o que tornaalguém brasileiro? No caso das redes sociais, o que significariaeste “Sou Guarani Kaiowa”?”.

Se analisada sob a óptica da teoria do ‘Uncanny’ (tambémconhecido pelo termo em alemão Unheimlich,), a questão suscitadapelo “evento Guarani-Kaiowá” poderia ser analisada conforme umnovo prisma - já que se por uncanny entende-se aquilo que seria“o oposto do que é familiar”, a suscitar uma sensação de

desconforto ao se sentir ao mesmo tempo atração e repulsa por um‘objeto’ a um mesmo tempo familiar e estranho – segundo o qual“brancos” e índios representariam os dois lados de uma mesmasociedade, na qual, se por um lado há uma classe muito bemestabelecida, firmada em moldes europeus que para estas terrasforam transplantados, que, ainda assim, busca uma conexão maiorcom o próprio solo que habita, de outro há uma verdadeira naçãonativa à procura de afirmação dos próprios valores, em que amemória e cultura de seus povos sejam preservadas para geraçõesvindouras ou o que vier a existir delas.

2. ANÁLISE DA CANÇÃO

Escrita por Renato Russo, vocalista da banda LegiãoUrbana, a canção ‘Índios’ foi lançada em 1986, no disco denome Legião Urbana – Dois. Seguindo a tendência românticado grupo, a canção, como o próprio título já sugere, sevolta para a questão indígena segundo uma perspectiva emconformidade com o Indianismo, tema recorrente noRomantismo brasileiro.

De modo a melhor servir ao propósito deste trabalho deanálise crítica de questão social tendo-se por base o

aporte teórico apresentado acima, a interpretação da cançãose dará por vezes através de determinado número de versose, por outras, até mesmo por meio de estrofes. Assim, deforma didática, facilitando a compreensão da interpretação,por parte do leitor.

“Quem me dera, ao menos uma vez”:Frase imprecativa, denota o desejo do eu-lírico em

idealizar a realidade que vive. Presente em boa parte dacanção como o início das estrofes desta, a repetição desteverso serve para acentuar a ideia da vontade de se quererver realizado o desejo do eu-lírico;

“Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem/Conseguiu me convencer que era prova de amizade/Se alguém levasse embora até o que eu não tinha.[...]Esquecer que acreditei que era por brincadeira/Que se cortava sempre um pano-de-chão/De linho nobre e pura seda.”

Neste trecho, percebe-se uma clara referência àprática de escambo realizada entre nativos e colonizadores,em que o eu-lírico, apresentando-se na posição do indígena,deixa a entender, como muitos historiadores chegam asugerir, que o ato de troca de objetos, entre os nativos,pressupunha o estabelecimento de uma relação de amizade.

Há que destacar o ressentimento de se descobrir não sóa diferença de valores entre os objetos permutados comotambém os valores que são conferidos a eles (do indígena éretirado o que ele suponha não possuir de fato, os bensnaturais ou, ainda: é retirado absolutamente tudo doindígena, deixando-o mais desfalcado do que de fato elejamais poderia estar, pois de si foi tirado aquilo que elesequer detinha / possuía), a indicar a falta deconsideração e atenção por parte do colonizador ao tratarcom o indígena;

“Explicar o que ninguém consegue entender

Que o que aconteceu ainda está por vir E o futuro não é mais como era antigamente”

De início, o índio se vê atônito diante da chegada degente com vestes, costumes e falar diferentes dos seus adesembarcar de construções (naus) jamais vistas por eleantes (não consegue explicar aquilo que ninguém entende).

Mais tarde, dá-se o início da colonização e o nativovê, num primeiro momento, a dizimação de seus própriospovos para, em seguida, ver extinguir-se a própria cultura,sobrepujada por uma outra, dita superior, a qual deverá serrepassada de maneira dominante às futuras gerações. Se acultura tira das entranhas do presente o futuro, tal comoafirma Bosi, o indígena, então, já não vê, desde o primeiroinstante da colonização, o seu futuro, pois a culturaeuropeia estabelece o seu “presente” naquele dado momento;

“Provar que quem tem mais do que precisa ter Quase sempre se convence que não tem o bastante ”

O Mercantilismo era um protótipo do sistema econômicocapitalista, em que a balança comercial das entãometrópoles europeias deveria estar sempre favorável parasi. Era o acúmulo primitivo de capital, na realidade feitoatravés do acúmulo dos recursos naturais extraídos dascolônias. Como deteria maior poder econômico a metrópoleque detivesse o maior número de recursos acumulados, quantomais um país europeu pudesse deter recursos para si,melhor;

“Fala demais por não ter nada a dizer”O colonizador, ao querer conferir legitimidade à

colonização, ao utilizar como desculpa a expansão marítimae o dever de expansão da fé cristã do império português, naverdade estaria se favorecendo de argumentos vazios parajustificar os atos vis que então realizaria para acumularriquezas para a metrópole;

“Que o mais simples fosse visto Como o mais importante ”

Valorização do ideal romântico de vida simples, tambémcaro aos árcades. Poderia ser também interpretado como umavalorização do culto à natureza, pois se a natureza seriaum local puro, intocado pelas máculas da sociedade, emblemada vida simples, em harmonia com a natureza, que o índiolevava antes da chegada dos colonizadores, o trecho entãodenotaria o desejo do indígena em querer retornar ao estilode vida levado antes da chegada do colonizador, num desejode retorno ao passado. Desejo este porque mesmo da vontadepelo eu-lírico da existência de uma civilização diferentedaquela atual;

“Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente”Um dos tipos de objeto mais utilizado pelos

colonizadores para realizar trocas com os nativos quando daprática do escambo, o espelho, neste caso, serviria como ummeio de veicular a ideia do uncanny (unheimelich), pois aoposicionar o espelho com o intuito de querer ver a própriaimagem refletida (e, metaforicamente, a imagem da realidade“ideal” na qual estaria inserido), o nativo apenasconseguiria visualizar a imagem de um outro, com quemcompartilharia primordialmente a condição humana, mas doqual se distinguiria fundamentalmente em razão dos anseiosque procurasse ver realizados, os quais, para o indígena,seria a destruição de um sonho de projeção da própriacultura no futuro, a submissão do próprio povo perante umoutro, destrutivo, doentio em sua ganância por terras eacúmulo de riquezas.

“Entender como um só Deus ao mesmo tempo é trêsE esse mesmo Deus foi morto por vocêsSua maldade, então, deixa Deus tão triste.”

Numa clara referência à catequização jesuíta do inícioda colonização para a conversão do gentio ao Cristianismo,à qual se seguiu o horror da perseguição dos portuguesesbandeirantes (vide o relato da fuga de São Tomé,anteriormente), responsáveis por resgatar os índios paraque estes voltassem a realizar o trabalho escravo / servil

a que eram subjugados pelos colonizadores mais abastados, otrecho também remete à grande culpa judaico-cristã de terlibertado Barrabás em vez de Jesus, ao lavar as mãos comoassim o fizera Pôncio Pilatos (“E esse mesmo Deus foi morto porvocês”).

“Eu quis o perigo e até sangrei sozinhoEntendaAssim pude trazer você de volta pra mimQuando descobri que é sempre só vocêQue me entende do início ao fim.”

Numa livre interpretação, pode-se considerar o trechoacima uma menção ao espaço de tempo inicial em que acolônia esteve sem uma ocupação efetiva dos colonizadores(de 1500 a 1530) até quando se dá um retorno definitivo,motivado muito mais por questões econômicas, políticas esociais eurocentristas que mesmo pela vontade dedesenvolvimento das terras e do povo colonizados.

É importante destacar os dois últimos versos do trecho(“Quando é sempre só você / Que me entende do início ao fim”), nosquais o eu-lírico se vale de ironia para ressaltar como é,sobretudo, a perspectiva europeizante que prevalece, pois anarrativa de descoberta de novas terras e a descrição dospovos indígenas que nelas habitavam se dá por meio deregistros feitos pelos colonizadores segundo um ponto devista próprio deles.

“E é só você que tem a cura pro meu vícioDe insistir nessa saudade que eu sintoDe tudo que eu ainda não vi.”

Em consonância com o trecho anterior, este aindamantém o tom de ironia em que se tem subentendida amotivação da afirmação da superioridade europeia pelasubmissão de povos nativos a suas metrópoles.

Ressalte-se, também, a desilusão do eu-lírico no papeldo indígena em perceber que a memória a ser cultivada paraas gerações vindouras não seria a de seu povo, daí a

sensação de ter perdido algo que estaria por vir, pois oseu presente não permite uma projeção para o futuro.

“Acreditar por um instante em tudo que existeE acreditar que o mundo é perfeitoE que todas as pessoas são felizes.”

Num misto de exagero utópico e escapismo, o eu-líricobusca tentar acreditar em um mundo à imagem e semelhança desuas emoções.

“Fazer com que o mundo saiba que seu nomeEstá em tudo e mesmo assimNinguém lhe diz ao menos obrigado.”

Pode-se interpretar o pronome demonstrativo masculino“seu” como uma alusão ao Deus cristão, assim permitindoentender que o trecho se trata de uma referência ao poderde onipresença que é atribuído a esse Deus e a revelação,pelo eu-lírico, do desejo de querer fazer a sociedade tomarciência (ou, ao menos, ratificar a crença) desse poder.

Realizando um contraste com a primeira parte dotrecho, o eu-lírico demonstra descontentamento eressentimento com a realidade que vive, ao levar àcompreensão de que falta à sociedade valores comocordialidade. Vale lembrar que a cordialidade seria umacaracterística típica do homem medieval, modelo para osromânticos.

“Como a mais bela triboDos mais belos índiosNão ser atacado por ser inocente.”

Tem-se, aqui, a concepção do bom selvagem de Rousseau,inerente à ideia de realidade idealizada do eu-lírico.

“Tentei chorar e não consegui.”Ainda representando a figura do indígena, o eu-lírico

deixa subentendida a ideia de que estaria num estadoemocional de completo desespero, daí a vontade de verterlágrimas e não realizá-la.

Numa livre interpretação, seria aceitável dizer queesse estado emocional seria decorrente de uma “crise deidentidade”, situação que remete aos tempos atuais, poisse, no desenrolar de toda a História deste país, o nativonão viu a valorização, de fato, de sua cultura, muito menosse dará agora, já que mesmo os colonizadores não têmcerteza da sua própria, dada a globalização. Importantefrisar que uma “crise de identidade” poderia ser tida comoum dos fatores para levar ao suicídio, infelizmente, umaprática comum entre os indígenas brasileiros.

CONCLUSÃO

Diante de tudo quanto fora exposto até aqui, somoslevados a crer que a construção de uma identidade nacionalperpassa todo o imaginário daqueles que buscam refletirquanto à validade da legitimação cultural de um povo, emespecial o seu.

Assim, portanto, tem-se que, ainda que o Brasil careçade iniciativas que procurem valorizar de fato o local,ainda que de algum modo transplantado para estas terras edaquele modo classificado, as manifestações artístico-intelectuais bem como as político-sociais mostram-sealinhadas com a aspiração da construção de um futurosedimentado em realizações presentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARRUDA, J. J. de A.; PILETTI, N. Toda a História: História geral e História do Brasil. 12. ed. São Paulo: Ática, 2003.

BORNHEIM, Gerd. Filosofia do Romantismo. In: GUINSBURG, J. (Org.). O Romantismo. São Paulo: Perspectiva: 2005.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

COUTINHO, Afrânio. O movimento romântico. In: ______. Introdução à literatura no Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: civilização brasileira, 1978.

BRUM, Eliane. Sobrenome: “Guarani Kaiowa”. Disponível em: < http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/11/sobrenome-guarani-kaiowa.html>. Acesso em: 18 abr.2013, 19:55:12

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro.11. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006. 102 p. Disponível em: < http://www.germe.net.br/uniesp/textos/seminarios/Freud/IDENTIDADE-POS-MODERNIDADE.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2013, 18:18:42

HELENA, Lucia. A solidão tropical: o Brasil de Alencar e damodernidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006.

NETO, Francisco Lotufo; OLIVEIRA, Cleane S. de. Suicídio entre povos indígenas: um panorama estatístico brasileiro. Revista Psiquiatria Clínica, São Paulo, n. 30 (1), p. 4-10,2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rpc/v30n1/20583.pdf>. Acesso em: 22 mar. 2013, 14:07:06

NICOLA, José de. Literatura brasileira: das origens aos nossos dias. São Paulo: Scipione, 2003.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Tradução: Monique Augras. Edição: Dora Rocha. Estudos Históricos, Riode janeiro, vol. 5, n. 10, p. 200-212, 1992. Disponível em:< http://reviravoltadesign.com/080929_raiaviva/info/wp-gz/wp-content/uploads/2006/12/memoria_e_identidade_social.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2013, 18:30:46

SODRÉ, Nelson Werneck. A ideologia do colonialismo: seus reflexos no pensamento brasileiro. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1984.

______. História da literatura brasileira: seus fundamentoseconômicos. 6. ed. Rio de Janeiro: civilização brasileira, 1976.

Uncanny. Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Unheimlich>. Acesso em: 18 abr. 2013, 19:32:48

ANEXO

Índios(Renato Russo)

Disco: Legião Urbana - DoisGravadora: EMI Music (Brasil)Nº catálogo: 31C 064 422961Formato: Vinil, LP, 33 RPMPaís: BrasilLançamento: 1986Gênero: RockEstilo: Rock; pós-punk Créditos: Produtor - Mayrton Bahia

Quem me dera, ao menos uma vez

Ter de volta todo o ouro que entreguei a quemConseguiu me convencer que era prova de amizadeSe alguém levasse embora até o que eu não tinha.

Quem me dera, ao menos uma vez

Esquecer que acreditei que era por brincadeiraQue se cortava sempre um pano-de-chãoDe linho nobre e pura seda.

Quem me dera, ao menos uma vezExplicar o que ninguém consegue entenderQue o que aconteceu ainda está por virE o futuro não é mais como era antigamente.

Quem me dera, ao menos uma vezProvar que quem tem mais do que precisa terQuase sempre se convence que não tem o bastanteFala demais por não ter nada a dizer.

Quem me dera, ao menos uma vezQue o mais simples fosse vistoComo o mais importanteMas nos deram espelhos e vimos um mundo doente.

Quem me dera, ao menos uma vezEntender como um só Deus ao mesmo tempo é trêsE esse mesmo Deus foi morto por vocêsSua maldade, então, deixa Deus tão triste.

Eu quis o perigo e até sangrei sozinhoEntendaAssim pude trazer você de volta pra mimQuando descobri que é sempre só vocêQue me entende do início ao fim.

E é só você que tem a cura pro meu vícioDe insistir nessa saudade queeu sintoDe tudo que eu ainda não vi.

Quem me dera, ao menos uma vezAcreditar por um instante em tudo que existeE acreditar que o mundo é perfeitoE que todas as pessoas são felizes.

Quem me dera, ao menos uma vezFazer com que o mundo saiba que seu nomeEstá em tudo e mesmo assimNinguém lhe diz ao menos obrigado.

Quem me dera, ao menos uma vezComo a mais bela triboDos mais belos índiosNão ser atacado por ser inocente.

Eu quis o perigo e até sangrei sozinhoEntendaAssim pude trazer você de volta pra mimQuando descobri que é sempre só vocêQue me entende do início ao fim.

E é só você que tem a cura pro meu vícioDe insistir nessa saudade queeu sintoDe tudo que eu ainda não vi.

Nos deram espelhos e vimos ummundo doenteTentei chorar e não consegui.