História, Memória e Testemunho

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Universidade Federal de São Paulo Professor: Dr. Henry Burnett Avaliação: História, Memória e Testemunho Bianca Molinas Guida Filosofia – Vespertino 8º Termo.

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Universidade Federal de São PauloProfessor: Dr. Henry Burnett

Avaliação:

História, Memória e Testemunho

Bianca Molinas GuidaFilosofia – Vespertino

8º Termo.

Guarulhos2013

Memória, Benjamin, Testemunho.

Nunca há um documento da cultura que não seja, aomesmo tempo, um documento da barbárie.

(Benjamin, W. 2005, p. 70)

Duas grandes questões permeiam o pensar de Benjamin: a

discussão da narração e da história, consequentemente da

memória, e as transformações das práticas artísticas, da

função do artista e da função da obra de arte, na

modernidade e na contemporaneidade. Com efeito, a questão

da narração desemboca na de nossa apreensão do passado e do

futuro: como podemos transformar nosso presente histórico.

Walter Benjamin. Filósofo vítima do nazismo.

A crítica à relação com o passado, por Benjamin, se

resume ao apontamento da interpretação e análise limitadas

da história pelo homem moderno, podendo ser aplicado também

ao contemporâneo, onde a memória não é mais um instrumento

de realização de uma tradição narrativa, que permite uma

retomada da experiência, ou seja, é uma crítica ao silêncio

e desaparecimento da testemunha.

É imprencindível, para que se compreenda o cerne da

crítica, a ideia da reitificação do homem, que o desvia da

experiência individual para então sufocá-lo na coletividade

da história nacional, neutralizando a possibilidade da

construção de uma experiência coletiva através do que

Adorno chamaria mais tarde de Indústria Cultural.

Nela, o progresso transforma toda a cultura em

propaganda e o sujeito se vê incapaz de diferenciar-se,

reduzindo-se então à massa. A comercialização da cultura

seria uma afronta à memória, uma vez que converte todo

sentido real de história em espetáculo e entretenimento.

Em suas teses Sobre o conceito de história (1940), Benjamin

diz ser um “perigo” tomar o passado como um simples fato

consumado. A admissão da história como algo acabado e

imutável, a história dos vencedores, direcionaria a

humanidade à ruína.

Articular o passado historicamente não significaconhecê-lo “tal como ele propriamente foi”.[...]O perigo ameaça tanto o conteúdo dado da tradiçãoquanto os seus destinatários. Para ambos o perigoé único e o mesmo: deixar-se transformar eminstrumento da classe dominante. Em cada época épreciso tentar arrancar a transmissão da tradiçãoao conformismo que está na iminência de subjugá-la.

Mas por que levaria à ruína da humanidade admitir a

história como a dos dominntes?

Ora, a história, para Benjamin, é aquela que deve dar

esperanças para as gerações seguintes, reconhecendo seus

opressores. E é com o testemunho, com a memória das

gerações passadas, na intrínseca da história de um povo e

sua identidade, que poderia nos ajudar a não repetir as

atrocidades do passado. Nas palavras de Jeanne Marie

Gagnebin: “somente esta retomada reflexiva do passado pode

nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar

esboçar uma outra história, a inventar o presente.”

Para Benjamin, o presente não está morto pelo passado.

A história da opressão se apresenta repetidamente quando

há, pelo sujeito, a identificação afetiva com o dominante,

pois é uma forma que lhe garante um lugar privilegiado no

presente. O assentimento individual a um determinado

procedimento, confabulando a escolha e a liberdade.

E é, portanto, assim que Benjamin vê: “Todo aquele

que, até hoje, obteve a vitória, marcha junto no cortejo de

triunfo que conduz os dominantes de hoje [a marcharem] por

cima dos que, hoje, jazem por terra.” (Benjamin, Tese VII).

Nessa ilusão de liberdade, a esperança daqueles que

precisam da história para a possibilidade de revolução do

presente, é condenada.

A partir daí, a memória descaracteriza-se da vida,

para então, aparecer numa concepção determinista do tempo e

da história como um mero instrumento de auxílio para a

reafirmação da história como hábito. Não precisamos mais da

atividade do lembrar aqui. É a volta ao passado, trazendo

suas significaçãoes em termos de acontecimentos, para

justificar o presnte atual, ou para garantir, de forma

absurda, a ideia da possibilidade de reconstruir o

presente. “Assim, o lembrar do passado torna-se uma

acumulação de dados, fardo que pesa nos ombros dos homens

vivos de hoje e pode até impedi-los de agir com

inventividade e liberdade.” (Gagnebin, p. 63)

Benjamin pretende salvar do passado não a imagem

eterna da vitoriosa e, também falsa, história, justamente o

contrário, quer o algo frágil, porém verdadeiro, aquilo

mesmo que está sempre sendo negligenciado, ignorado,

entretanto, salvamente este não por compaixão, mas para que

a importância daquele que ficou para trás seja reconhecida

dentro da história. Ele quer uma desconstrução das versões

oficiais da narrativa, ou seja, uma memória sempre ativa

que permitiria o despontar de novas lembranças para uma

nova história.

Rembrandt, Tímoteo e sua avó, 1648. A tradição nos é transmitida pela linguagem,assim como tudo que sabemos da história que nos antecede e que dá sentido a

nossa chegada nesta vida.

O filósofo francês, Paul Ricoeur, também partilha

deste intuito, pois diz que, antes de tudo, temos para com

nossos antepassados, uma dívida que pagaríamos através da

retomada e transformação de seus anseios.

Entretanto, outro fator crucial, motivo também do

declínio do testemunho, é a dificuldade de expressão dos

próprios sobreviventes. A incapacidade de assimilar à

experiência à linguiagem para o legado narrativo. O choque

que separa a memória do acesso ao simbólico coeso.

O choque (trauma para Freud) esvazia o sujeito de

experiência, pois sem tornar-se inteligível (acima de tudo,

um saber social e socializável), dotado de um sentido

possível de ser transmitido, é a mera vivência. Numa

realidade onde o progresso capitalista sufoca o indivíduo

com as constantes transformações, torna-se cada vez mais

difícil estabelecer identificações para uma ação, assim, a

tradição como narrativa de conhecimento perde rapidamente a

validade dentro do amontoado de vivências. Dessa forma, o

indivíduo é obrigado a acomodar abruptamente os

acontecimentos, e é nesse sentido que o efeito de choque é

a manifestação de uma degradação da própria experiência. Em

seguida, o indivíduo é levado a “contentar-se com pouco”,

com o inédito sempre no solo devastado do presente.

ANGELUS NOVUS, Paul Klee, 1920. Em Sobre o conceito de história, Benjamin descreve atela, com o anjo "que parece querer afastar-se de algo que ele encara

fixamente.”

Diante de um mundo cada vez mais destituído de

significações humanas, cujas sustentações estão na

experiência, a arte responde desumanizando-se, pensada

somente no âmbito matemático e lógico. Por fim, a arte

moderna (atual) expõe a pobreza de experiência.

O choque, em termos gerais, diz respeito (na estética

e arte) a uma sensibilidade moderna, em contrapartida, a

modernidade (no que se refere à experiência) torna as

pessoas cada vez mais indiferentes ao efeito, ou seja, o

choque converge para uma expectativa, assim, um público

acostumado a se chocar é um público menos propenso a

reconsiderar seus valores.

No excepcional testemunho do italiano Primo Levi, sob

o título É isto um homem?, é narrado todo o ocorrido, desde

sua deportação ao campo de Auschwitz, em 1944. Fala sobre

seu recorrente sonho enquanto estava no campo: numa reunião

familiar, tenta contar seu sofrimento, mas sempre é

ignorado. “Por quê? Por que o sofrimento de cada dia se

traduz, constantemente, em nossos sonhos, na cena sempre

repetida da narração que os outros não escutam?” (Levi.

1988, p. 60).

Judeus no campo de concentração de Buchenwald, Alemanha, abril de 1945. Ozakhor hebraico, “lembra-te”, significa lembrar dos mortos e das esperanças não

cumpridas que eles tiveram em vida.

O genocida sempre visa a total execução do grupo

inimigo para impedir narrativas do terror e qualquer

possibilidade de vingança e, também procuram apagar as

evidências de seus crimes. Isto assombra o sobrevivente

como testemunha, pois na situação onde todos deveriam

morrer, um sentimento de culpa se instaura no sobrevivente,

a sensação de impossibilidade de tal fato ter ocorrido,

emerge com a encoberta dos locais e marcas de atrocidades,

para então, consolidar-se na frase: “não foi verdade.” A

narrativa, portanto, seria este desafio de restabelecer a

interação com aqueles que carregariam a função de ouvinte.

A dificuldade de um rearranjo da memória para a

significação linguística tem como base gradativa o efeito

do choque de acordo com o tipo de envolvimento no

acontecido. Levi parece compreender essa gradação na

introdução de Os afogados e os sobreviventes (1990), onde aponta

as limitações do testemunho: “a história do Lager foi

escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu

próprio, não tatearam seu fundo. Quem o fez não voltou, ou

então sua capacidade de observação ficou paralisada pelo

sofrimento e pela incompreensão.” (Levi. 1990, p. 5)

Em última instância, o trauma (usando o termo de

Freud) é caracterizado por ser uma memória de um passado

que não passa. Para o sobrevivente, sempre restará esse

estranhamento do agora, pois há a lacuna deixada pela

atrocidade que, a memória, muitas vezes, nega-se a

preencher.

É com esse esforço de valorização das tradições orais,

da procura por testemunhar a história dos derrotados, que

inseriríamos os sobreviventes novamente na memória da

história. A esperança da criação de uma nova história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008.

BENJAMIN, Walter. Teses. São Paulo: Brasiliense, 1985.

GAGNEBIN, Jeanne Marrie. O enigma do passado. Ricoeur e a “justa memória”. Ed. Duetto. São Paulo. nº 11. pp. 44-49.

GAGNEBIN, Jeanne Marrie. Walter Benjamin. Memória, história e narrativa. Ed. Duetto. São Paulo. nº 7. pp. 58-67

LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1988.

LEVY, David. A identidade narrativa. Conhecer o si-mesmo é narrar sua história. Ed. Duetto. São Paulo. nº 11. pp. 50-57.

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