Evolução cultural e Bíblia
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UNIVER SID ADE DE L ISBO A
FAC ULDA DE DE LETR AS
Ciências da Cultura – Comunicação e Cultura
Evolução cultural e Bíblia:
A tradição do texto escrito
Porfírio José S. Pinto
Seminário de Pós-Graduação:Tópicos de Cultura e Comunicação:
Comunicação e Evolução Cultural
Professor José Pinto de Lima1.º Semestre 2012/2013
1
Introdução
A descoberta do alfabeto foi, sem dúvida, um marco importante na evolução cultural da
humanidade. Com isso não queremos dizer – como há alguns anos se afirmava – que foi um
grande «progresso», porque seria menosprezar aquelas sociedades que tem um sistema de escrita
diferente do alfabético, mas nem por isso se podem considerar menos evoluídas (pensemos na
escrita chinesa, que não é alfabética).
Todavia, quando usamos o termo «alfabetização», estamos a remeter para o uso do
«alfabeto» como instrumento de instrução e escolarização de grandes franjas da sociedade.
«Alfabetizar» é sinónimo de «escolarizar», de aquisição de um conjunto de conhecimentos na
«escola», e nomeadamente da propagação do ensino da leitura. A invenção da tipografia terá,
certamente, ajudado a tomar consciência de que essa «escolarização» estaria ao alcance de
muitos. Mas talvez esse processo de «democratização» da literacia tenha começado muito tempo
antes, na Antiguidade, quando o alfabeto começou a seu usado mais largamente, substituindo os
antigos sistemas de escrita cuneiforme e hieroglífico, muito mais complexos devido ao número
de signos utilizados, e que exigiam uma maior «profissionalização» dos intervenientes: os
escribas. Este processo terá ocorrido a partir de meados do primeiro milénio, antes da nossa era,
constituindo uma autêntica «revolução textual» na Mesopotâmia (Assíria, Babilónia, Pérsia), na
bacia mediterrânica (Grécia, Egito, Roma), mas também em Israel/Judá.
Neste nosso ensaio vamos abordar dois momentos de «revolução textual» relacionados
com a Bíblia. O primeiro, seguindo a sugestão de William M. Schniedewind, situar-se-ia durante
o século VII a.C., no reino de Judá: sob o impulso cultural neoassírio – na origem da primeira
grande biblioteca da Antiguidade – teria surgido, durante o reinado de Josias, a maior parte da
literatura bíblica (e, nomeadamente, a Tora e a chamada historiografia deuteronomista).
O segundo momento de «revolução textual» aconteceria alguns séculos mais tarde, sob a
influência da política cultural ptolomaica. Em Alexandria, no seio de uma comunidade judaica
vigorosa, dava-se início à tradução, para grego, da Bíblia hebraica (a começar pela Tora, a lei
fundamental do Judaísmo). Por seu turno, na Palestina, surgiam escolas literárias importantes,
3
como deixam entender os livros do Qohélet e de Ben Sira, que, para além do ensino da lei
judaica e da história israelita, se começam a preocupar também com a dimensão trágica da vida,
à maneira dos gregos (senão vejam-se os livros dos Provérbios, de Job, o Cântico dos Cânticos
ou o próprio livro do Qohélet)! Neste contexto, os textos antigos são também objeto de
veneração e de transmissão especial, sendo copiados profusamente, como vieram a revelar os
«manuscritos de Qumran», onde encontramos textos ou parte de textos bíblicos provenientes de
vários lugares da Palestina.
Na conclusão abordaremos ainda, de maneira suscinta, a questão da «textualização» numa
sociedade fundamentalmente oral.
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A evolução do alfabeto e a origem da Bíblia
Origem do alfabeto
Hoje, parece não restarem dúvidas de que o alfabeto linear foi «descoberto» no Levante1,
por indivíduos que falavam uma língua semita ocidental e que faziam parte do aparato
administrativo egípcio, pertencendo, portanto, a uma elite que havia aprendido a escrita
hieroglífica egípcia (Rollston 2010).
Os primeiros vestígios são da primeira metade do segundo milénio: as duas inscrições
encontradas em Wadi el-Holl (c. 1850 a.C.), no deserto tebano, e as inscrições de Serabit el-
Khadem (entre 1700 a 1650 a.C.), no Sinai (Figuras 1 e 2). Este «protocananeu» está
testemunhado, posteriormente, em pequenas inscrições em objetos diversos, encontrados em
Láquis, Nagila, Gezer, Siquém ou Tel el-Hesi.
A sua aparência pictórica2 inicial ganha uma forma linear por volta de 1400 a.C.
(Whisenant 2008: 147).
Difusão do alfabeto no Levante
Embora tenha sido descoberto no início do segundo milénio, só mil anos mais tarde o
alfabeto ganha realmente importância, e, com a adoção do aramaico como língua franca, pelos
monarcas neoassírios (séc. VIII a.C.), se tornou verdadeiramente imprescindível3, contribuindo
para o progressivo abandono da escrita cuneiforme, poucos séculos mais tarde.
Em meados do segundo milénio, contudo, simultaneamente com o uso «oficial» do
cuneiforme babilónico (acadiano), o reino de Ugarite desenvolveu um alfabeto próprio – o
alfabeto cuneiforme (Figura 3) – com o qual produziu uma literatura local extraordinária. Não
1 Neste trabalho usamos o nome Levante para a região que os antigos egípcios chamavam de Kinahnu
(Canaã: provavelmente, em referência ao uso da púrpura na região, e que se manteve no termo grego Phoiniké, isto é, Fenícia), e que corresponde ao que os arqueólogos hoje chamam de «Siro-Palestina» (parte da Síria, Líbano, Israel, Palestina, até ao Negueve/Sinai).
2 As inscrições mais antigas do alfabeto protocananeu são de natureza pictográfica e empregam o princípio comummente chamado «acrofónico», que era também utilizado na escrita hieroglífica para transcrever os nomes estrangeiros.
3 «Foi precisamente durante o período neoassírio, quando um império com escrita cuneiforme atingiu o auge da sua extensão geográfica e da sua força militar, que o uso do alfabeto linear em documentos conheceu um acréscimo expetacular» (Sanders 2004: 33; minha tradução).
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esqueçamos que, entre 1500 e 1200 a.C., o reino de Ugarite constituiu uma «plataforma»
comercial importante para todo o Médio Oriente, sendo disputado pelas grandes potências da
época: o Egito e o Hatti (na Anatólia). Pelo porto de Minet el-Beida circulavam o cobre
proveniente do Chipre, a cerâmica micénica, o grão egípcio ou ainda a madeira libanesa. O
acadiano era a língua franca, na época, para as comunicações interestatais. Sob o impulso estatal,
porém, o ugarítico serviu como meio de afirmação cultural do reino, representando o que se
poderia chamar de verdadeira «revolução do vernáculo» (Sanders 2004: 26).
Ora, o colapso da «civilização cananeia», no início do séc. XII a.C., com a destruição de
Ugarite, esteve na origem de uma «disrupção» na região do Levante, que no entanto não afetou
todas as áreas da mesma maneira. As cidades-estado costeiras (que viriam a formar, mais tarde, a
Fenícia) depressa recuperaram do choque, fomentando o comércio com o Egito (cf. O relato de
viagem de Wenamum ou o Onomasticon de Amenemope) e lançaram-se na colonização do Chipre
(Whisenant 2008: 129). Por seu turno, a retirada do Egito do sul do Levante levou também à
emergência de «Estados secundários»: Israel, Judá, Amon, Moab, Edom; enquanto mais a norte,
surgiam os reinos aramaicos (Joffe 2002). Uma das «tecnologias» que contribuiu para a
emancipação destes novos Estados foi, sem dúvida, o alfabeto linear. Se nos séculos XI/X, o
protocananeu4 era omnipresente, por todo o Levante, pouco a pouco começam a surgir alfabetos
locais: o fenício, o hebreu, o arameu, etc.
Com o fim de Ugarite, a região levantina perdeu o seu principal centro de aprendizagem da
prática escribal, baseada na tradição do sistema de educação babilónico5. Mas, deste reino semita
ficou, provavelmente, o exemplo do uso vernacular da língua (escrita), como criador de
«identidade» (Sanders 2004). Ao contrário do acadiano e do alfabeto cuneiforme, escritos em
tabuinhas, os primeiros exemplos de escrita linear encontram-se em cacos (óstracos) e flechas,
um pouco por todo o lado, em Canaã, ou ainda, à maneira egípcia, em inscrições casuais (os
graffiti)6.
A primeira região a fazer um uso extensivo do alfabeto linear foram as cidades-estado
4 Neste momento (séc. X), ainda é difícil distinguir diferentes alfabetos: o famoso Calendário de Gezer
(Figura 4) era fenício ou hebraico? É difícil responder (cf. Sanders 2004: 55). No século seguinte, porém, o alfabeto fenício já está bem estabelecido, e o hebreu é usado mesmo em território moabita (cf. Estela de Mecha, rei de Moab; Figura 5); quanto ao aramaico, o seu uso monumental é testemunhado pela Estela de Tel Dan (provavelmente do rei Hazael de Aram-Damasco; Figura 6).
5 A Correspondência de Amarna (Figura 7) testemunha o uso intensivo do acadiano na comunicação «oficial» interestatal. Os escribas desses pequenos reinos levantinos eram, provavelmente, formados em Ugarite (como alguns séculos antes, os escribas de Haçor o foram no reino de Mari). Em Meguido foram descobertos fragmentos da Epopeia de Gilgamesh, uma das obras fulcrais dessa formação.
6 Os graffiti egípcios, embora sejam uma escrita casual, «não oficial», são obra de elites, e correspondem a um uso cúltico e militar (Figura 8) (Whisenant 2008: 149).
6
fenícias (entre Biblos e Aco ou Acre). As inscrições de Biblos e Tiro sugerem um uso oficial
(propaganda real) e cultual (túmulos). Curiosamente, nesta região, não se encontraram óstracos,
como sucederia depois em Israel, por exemplo! Isso pode dever-se à introdução da escrita em
tinta sobre o papiro (Whisenant 2008: 156).
Esta proeminência da Fenícia nos séculos X/IX, terá gerado um novo processo de
emulação de elites, que teve influência no desenvolvimento dos Estados «étnicos» da Idade de
Ferro, nomeadamente Israel, Amon e Moab (Joffe 2002; Knauf 2000). Vários indícios apontam
para esta influência das cidades-estado fenícias: o reino de Israel era aliado da cidade-estado de
Sídon (tendo o rei Acab casado com uma princesa desta cidade); vestígios arqueológicos
monumentais revelam que a influência das cidades fenícias chegava até Moab, na Transjordânia.
Não é de estranhar, portanto, que, entre 925 e 550 a.C., aumente drasticamente o número
de testemunhos epigráficos no sul do Levante, o que corresponde à emergência dos pequenos
Estados e à afirmação das suas elites, «copiando» as elites fenícias.
«Revolução textual» e origem da Bíblia
No seu livro How the Bible Became a Book, W. Schniedewind defende a existência de uma
«revolução textual», no final do séc. VII, no reino de Judá:
Com a emergência da literacia e o florescimento da literatura, deu-se uma revolução textual nos dias do
rei Josias. Esta constituiu uma das mais profundas revoluções culturais da história humana: a afirmação da
ortodoxia dos textos (Schniedewind 2004: 91; tradução minha).
Esta «revolução» de que fala Schniedewind havia sido preparada, nos dois séculos
precedentes, pelo aparecimento de condições sociopolíticas favoráveis ao desenvolvimento da
«literacia», até à sua «democratização», no final do séc. VII. Efetivamente, estas condições são
confirmadas pelas descobertas arqueológicas e epigráficas: a rápida urbanização de Jerusalém, a
emergência de uma burocracia governativa e o desenvolvimento económico, proporcionado pela
entrada do pequeno reino de Judá na economia global neoassíria7. Tudo isso favoreceu,
certamente, o desenvolvimento da literacia e o aparecimento da literatura bíblica.
7 Este grande desenvolvimento acontece no final do séc. VIII. Com a queda de Samaria, em 722, uma boa parte dos israelitas (isto é, a população do Reino do Norte) refugia-se no sul, e particularmente em Jerusalém, que conhece um crescimento impressionante. Entre estes refugiados, havia certamente funcionários do reino de Israel (escribas e sacerdotes) que foram incorporados à administração de Judá, e trouxeram consigo as tradições orais e literárias de Israel. Isto possibilitou a redação dos primeiros textos bíblicos (a partir de tradições orais) já durante o reinado de Ezequias (715-687 a.C.).
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Desde a sua descoberta, no final do quarto milénio, na Suméria, a escrita sempre foi um
instrumento poderoso, reservado a uma elite religiosa (templo) e administrativa (palácio), que
permitiu sucessivamente o aparecimento de cidades-estado e impérios. «A escrita é,
primeiramente, uma atividade do Estado» (Schniedewind 2004: 35). Mas os primeiros sistemas
de escrita – o cuneiforme e o hieroglífico – são sistemas complexos, que usam centenas ou
mesmo milhares de signos, fazendo com que a literacia estivesse reservada a escribas
profissionais, que se exercitavam em escolas controladas pelo templo ou pelo palácio.
A descoberta do alfabeto veio «simplificar» as coisas, tornando a literacia mais acessível.
«O alfabeto tem o poder de democratizar a escrita e fazer possível que a literacia se desenvolva
para além das classes escribais» (Schniedewind 2004: 38). É claro que isso não foi imediato.
Durante o segundo milénio, os grandes impérios continuaram a impor o cuneiforme como escrita
«oficial». Porém, em meios semitas ocidentais – como é o caso de Ugarite – observamos que o
«alfabeto», ainda que seja tão-somente o cuneiforme ugarítico, serviu para veicular expressões
culturais locais (Sanders 2004). Mas, depois do colapso do sistema económico do Bronze Tardio,
c. 1200 a.C., as novas entidades «nacionais» emergentes vão usar cada vez mais o alfabeto linear
para se afirmarem politicamente.
«A escrita é uma demonstração de poder, mas é também um recurso para a comunicação
internacional» (Schniedewind 2004: 43). Neste processo de difusão e afirmação do alfabeto
linear, o império neoassírio veio dar um contributo decisivo: ao adotar o aramaico como língua
franca do império e ao estabelecer um sistema económico urbano e global, os monarcas
neoassírios criaram as condições para o acréscimo da literacia no Médio Oriente8.
W. Schniedewind está convencido que a maior parte da literatura bíblica surgiu neste
contexto, no final do século VII, e apresenta três argumentos:
1) A produção literária judaica teria começado já durante o reinado de Ezequias (cf.
Provérbios 25,1), altura em que os refugiados do Reino do Norte trouxeram consigo as antigas
tradições israelitas, a que haveria de juntar a elaboração de textos relacionados com a dinastia
davídica reinante (que virá a constituir o coração da chamada literatura «deuteronomista») e
outros escritos sapienciais e proféticos.
2) A democratização da literacia, durante o reinado de Josias, grande impulsionador de
reformas políticas e religiosas, inspiradas no «livro da Lei» descoberto no templo de Jerusalém
(que seria a identificar com o «Código Deuteronomista»; cf. Deuteronómio 12-26). Seria o
8 Não deve ser um mero acaso histórico o facto da primeira grande biblioteca no mundo ser obra dos monarcas neoassírios, Senaquerib e Assurbanipal, em Nínive.
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periodo da finalização da Tora e de grande parte da literatura deuteronomista, bem como dos
profetas clássicos de Israel e outra literatura sapiencial (Provérbios e Salmos).
3) O período persa dificilmente podia ser propício ao desenvolvimento de literatura
bíblica, já que Judá perdeu grande parte da sua população e o hebraico deixou de ser falado,
sendo substituído pelo aramaico, que continua a ser a língua franca do império persa. Deste
período, haveria pouca literatura, facilmente identificável pela grande influência do aramaico no
seus autores (por ex.: Esdras, Neemias, Crónicas, Daniel e Ester) (Schniedewind 2006).
Embora reconhecendo ter havido uma grande atividade literária no final do período
monárquico, em Judá, a maioria dos especialistas bíblicos tem muitas reservas quanto ao
argumento principal de Schniedewind, acusando-o de sobrevalorizar a «textualização» no antigo
Israel – isto é, no período pré-exílico – e o «esvaziamento» literário do período persa9, visto
tradicionalmente (no quadro da teoria documentária) como o período da edição da Tora, e da
redação dos chamados «textos sacerdotais» (Carr 2005b).
Em relação à «revolução textual» de que fala Schniedewind, a crítica de David M. Carr vai
mais longe: a haver realmente uma «revolução textual», esta acontece mais no período greco-
romano (sécs. IV a.C. a II d.C.), do que no «antigo Israel». Esta, porém, diz respeito não tanto à
elaboração dos livros bíblicos, mas à sua transmissão (Carr 2005b: 11-13). Disso nos ocupamos
na segunda parte deste nosso ensaio, sublinhando a importância das descobertas do Mar Morto:
os manuscritos de Qumran.
9 A leitura do livro de W. Schniedewind dá-nos, claramente, a ideia de que ele desafia, põe em causa a interpretação tradicional, bem como recentes desenvolvimentos que apontam o final da época persa e início do período helenista como o momento de elaboração de muitos dos livros bíblicos. Schniedewind cita, concretamente, o livro de Philip Davies, In Search of “Ancient Israel” (1992), como o exemplo mais eloquente desta tendência, à qual se opõe (Schniedewind 2004: 18), e, talvez por isso mesmo, exagerando a importância da textualização do final do séc. VII a.C.
9
A tradição dos textos escritos: a «Bíblia» de Qumran
Desde a Antiguidade que se conhecem várias «versões» dos textos bíblicos hebraicos (ou
seja, o Antigo Testamento cristão): o chamado «Texto Masorético»10 (o texto hebraico
autorizado), a «Septuaginta»11 (a tradução grega da Bíblia hebraica e, no concernente apenas à
Tora, o «Pentateuco Samaritano».
Até meados do séc. XX, a relação entre estes vários textos era explicada do seguinte modo:
segundo uma antiga tradição, testemunhada pela Carta de Aristeias, Fílon de Alexandria, Flávio
Josefo e o Talmude, teria existido uma cópia standard da Bíblia, guardada no templo de
Jerusalém, que era colocada ao uso dos copistas; a Septuaginta e o Pentateuco Samaritano
dependiam desse texto arquétipo, bem como o Texto Masorético posterior. As diferenças textuais
entre as várias versões dever-se-iam, portanto, a opções de tradução (e à própria idiossincrasia
dos tradutores), bem como a escolhas teológicas próprias, ou seja, a um trabalho editorial com
um claro cariz ideológico (o Judaísmo helenista) e, até, com propósitos tendenciosos (a teologia
sectária samaritana) (Marcos 2000: 69; Barrera 1998: 297s).
A descoberta dos manuscritos de Qumran, a partir de 1947, vieram alterar completamente
esta visão. Os manuscritos bíblicos ali encontrados revelam que não havia apenas uma única
cópia autorizada da Bíblia, que seria reproduzida pelos copistas, mas uma grande variedade de
versões, e todas elas autorizadas: encontraram-se manuscritos de tipo «protomasorético» (que são
a maioria), mas também de tipo «septuagintal» ou «protossamaritano», ou ainda de tipo
«qumrânico» (mais próximo dos textos masoréticos, mas com características próprias).
Hoje é mais que evidente que muitos dos manuscritos de Qumran não foram copiados ali,
mas provêm de vários lugares da Palestina, tendo sido depois guardados nas grutas em torno do
Mar Morto, não se sabe muito bem porquê. E, em relação aos manuscritos de origem qumrânica,
tudo indica que se reportam unicamente ao período entre 50 a.C. e 68 d.C. (Barrera 1998: 285s;
Lange et al. 2012: 9).
10 Ver nota 15.11 Também chamada Bíblia dos «Setenta» (LXX), porque, segunda a lenda, teria sido traduzida em
Alexandria por setenta sábios judeus.
10
A Septuaginta
Segundo Natalio Fernández Marcos, «a Septuaginta é o maior contributo cultural do
Judaísmo helenista e, sem dúvida, aquele que teve maior impacto na civilização ocidental»
(Marcos 2007: 271). Ela constitui, com efeito, o maior corpus de tradução da Antiguidade e,
através do Cristianismo, a sua influência ultrapassou amplamente os limites do Judaísmo.
Para que essa tradução acontecesse foi necessário que se reunissem algumas condições
culturais que a favoreceram, e que são irrepetíveis:
a) a expansão do helenismo e o prestígio do grego koiné como nova língua franca, e língua
literária;
b) a política cultural ptolomaica;
c) a criação da grande biblioteca de Alexandria;
d) o esplendor do Judaísmo helenista.
A sua tradução terá começado cerca de 275 a.C., com a tradução da Tora (que viria a
chamar-se «Pentateuco», isto é, «os cinco rolos»), e prolongou-se até por volta do ano 150 a.C.
(para os demais livros)12, a partir de manuscritos hebraicos muito antigos, que refletem estádios
editoriais anteriores ao Texto Masorético (Tov 2003: 138).
Tal como é confirmado pelos manuscritos de Qumran, a Septuaginta não é apenas uma
«interpretação» autorizada do texto standard da Bíblia Hebraica, supostamente guardado no
templo de Jerusalém. As diferenças entre o texto da Septuaginta e o Texto Masorético não têm
nada a ver com escolhas de tradução ou opções teológicas, mas devem-se ao facto de se tratar de
uma tradução fidedigna de um outro texto hebraico, anterior ao Texto Masorético (e mais curto),
de que se encontraram excertos em Qumran. Esta Vorlage da Septuaginta, como lhe chamou D.
Barthélemy, era uma versão dos textos bíblicos, que não era aceite pelos promotores do texto
«protomasorético»13 (o texto que originaria o Texto Masorético e era guardado, provavelmente,
no templo de Jerusalém) (Tov 2003: 138), mas considerado um texto autorizado pelos copistas
12 A Septuaginta incorpora ainda outros livros (ou partes de livros) que foram excluídos do cânon judaico. Pensou-se que isso era devido ao facto de ditos livros terem sido escritos diretamente em grego, mas isso não é verdade. Em Qumran, por exemplo, encontraram-se fragmentos do livro de Tobit em hebraico (pelo que existia uma versão hebraica), e o livro de Judite também deve ter tido uma versão hebraica ou aramaica (que explicam a presença de muitos «semitismos» no texto).
13 Em En Gedi, foram encontrados fragmentos da Septuaginta, que revelam que houve, no séc. I a.C., tentativas de rever o texto grego, de modo a aproximá-lo da versão «protomasorética» (Marcos 2000: 72). Posteriormente, depois que dos cristãos se apropriaram da Bíblia Grega, alguns judeus levaram a cabo novas traduções em grego, mais conformes ao Texto Masorético: nomeadamente, Áquila, Símaco e Teodócio (em relação a este, discute-se se seguiu o texto hebraico ou se fez apenas uma revisão da Septuaginta, a partir do hebraico).
11
dos manuscritos encontrados em Qumran, ao mesmo nível que o próprio texto grego (a tradução
dos Setenta) ou o texto «protomasorético» (Tov 2008: VI, 1s).
Em Qumran descobriram-se não só fragmentos da Bíblia Grega (a Septuaginta) – e que são
um testemunho de recensão textual judaica, muito anterior à cristã –, mas também de um texto
hebraico distinto do Texto Masorético, e que teria estado na base da tradução grega (a sua
Vorlage) (Marcos 2000: 71ss), e, por isso, por vezes chamado «septuagital». Se em relação aos
textos do Pentateuco, as diferenças com o Texto Masorético são marginais (têm a ver com a
ordem dos textos em Êxodo 35-40 e nalgumas passagens do livro dos Números), outros livros
revelam claramente a presença da Vorlage (concretamente, os livros de Samuel, os livros dos
profetas Jeremias e Ezequiel, ou ainda os livros sapienciais dos Provérbios e Job). Nestes
últimos, o texto da Septuaginta é, em geral mais breve do que o do Texto Masorético,
provavelmente sinal de um estádio editorial anterior ao Texto Masorético (Barrera 1998: 318-
321; Tov 2003: 138).
O Pentateuco Samaritano
Durante muito tempo, no Ocidente, o Pentateuco Samaritano era tido como irrelevante para
os estudos de crítica textual. Aliás, apenas era conhecido por citações de autores antigos!
Quando se tornou conhecido na Europa, em 1616 – trazido por Pietro delle Valle, que o
havia obtido num mercado de Damasco –, o seu impacto foi grande, sendo incluído de imediato
em duas Bíblias Poliglotas: na de Paris (1645) e na de Londres (1654-57). A sua afinidade com a
Septuaginta levou Jean Morin a considerá-lo mais fiável que o Texto Masorético, e a proclamar
simultaneamente a autenticidade da Septuaginta14. Esse debate só viria a terminar quando
Genesius publicou o seu estudo linguístico sobre o Pentateuco Samaritano, em 1815, mostrando
que este estava repleto de leituras secundárias, em relação ao Texto Masorético.
As descobertas de Qumran vieram explicar diferentemente a relação entre o Texto
Masorético, a Septuaginta e o Pentateuco Samaritano. Em primeiro lugar, o estudo desses textos
mostrou que o Pentateuco Samaritano deve ser situado no início do período asmoneu, ou seja, no
início do séc. II a.C. (Barrera 1998: 297). (Aliás, estes textos, juntamente com os papiros de Wadi
Daliyeh, bem como as escavações em Siquém e Garizim mostram que foi também nesta altura
14 Nesta altura, estava-se em pleno debate acerca do texto original da Bíblia, depois que o papa Clemente VIII, em 1592, declarava que apenas o cânon da Septuaginta e o texto da Vulgata eram verdadeiramente decisivos para a vida e a fé da Igreja (Católica).
12
que nasceu a «seita» samaritana, e não antes, como se acreditava, influenciados pelo testemunho
de Flávio Josefo.)
Entre o Pentateuco Samaritano e o Texto Masorético existem cerca de 6000 variantes. Mas
só um terço destas variantes (1900) encontram um paralelo na Septuaginta, e, em geral, são
passagens pouco importantes – no seu todo, o Pentateuco Samaritano concorda mais com o Texto
Masorético que com a Septuaginta. A maior parte das variantes (4100) são próprias ao
Pentateuco Samaritano (desenvolvimentos de carácter teológico).
Como dissemos, o texto do Pentateuco Samaritano é mais curto que o Texto Masorético (e,
por isso, a «afinidade» com a Septuaginta). Porém, as passagens próprias do Pentateuco
Samaritano refletem a teologia samaritana: Garizim como o lugar escolhido por Deus; o décimo
mandamento do Decálogo, que é uma glosa própria samaritana; e outras variantes de carácter
cultual (Barrera 1998: 298).
Alguns dos manuscritos encontrados em Qumran foram qualificados de «protos-
samaritanos» (4QpaleoExodm e 4QDeutn), porque partilham importantes dados com o Pentateuco
Samaritano e se afastam do Texto Masorético (ver estudo em detalhe em Tov 2008: VI; Kartveit
2009: 263-295). Provavelmente, estes manuscritos deveriam ser qualificados de «reescritura
bíblica» (ver infra), e não «manuscritos bíblicos» propriamente ditos, embora sejam, certamente,
Escritura autorizada quer para os membros da comunidade samaritana, quer para quem os levou
para Qumran (Tov 2008: VI, 15).
O Texto Masorético
Antes da descoberta dos manuscritos de Qumran, os manuscritos bíblicos conhecidos mais
antigos – com o texto hebraico – remontavam aos séculos IX e X d.C.: El Cairo Codex (895) e
Aleppo Codex (980). Estes manuscritos, contendo já as anotações para a vocalização do texto
(segundo o sistema de Tiberíades), transmitiam o texto fixado pelos masoretas, nos séculos
precedentes15.
O Texto Masorético tem por base uma forma textual que se tornou dominante no final do
15 O termo massora(h) significa «cadeia» ou «tradição» e refere-se a um procedimento técnico que consiste num sistema de notas críticas sobre a forma exterior do texto bíblico, visando a preservação exata não só da ortografia das palavras, como da sua vocalização e acentuação, para facilitar quer a leitura pública, quer o estudo privado. O texto bíblico assim conservado é chamado «Texto Masorético». A sua fixação, porém, começou ainda antes da nossa era, provavelmente ainda antes do período asmoneu (os textos «protomasoréticos» de Qumran) (Barrera 1998: 272-278).
13
séc. I a.C., e sobreviveu às guerras judaicas (66-73 e 132-135 d.C.). Essa forma é amplamente
testemunhada em Qumran (textos «protomasoréticos»), em discrepância com outros textos, que
já mencionamos: o grupo de textos «protossamatinanos» e a Vorlage da Septuaginta.
O modo como o Texto Masorético acabou por se impor é ainda objeto de debate entre os
especialistas (cf. Lange et al. 2012):
1) Arie van der Kooij e Emanuel Tov defendem a opinião tradicional do texto standard,
cuidadosamente guardado no templo de Jerusalém, onde a elite sacerdotal se opunha à
pluralidade textual do Judaísmo do Segundo Templo (testemunhada, precisamente, em Qumran).
Mas cada um destes autores apresenta nuances diferentes. Van der Kooij defende que havia um
texto das Escrituras judaicas que era transmitido sob a supervisão dos chefes dos sacerdotes, e
que está refletido, com algumas mudanças menores, nos textos «protomasoréticos» de Qumran.
Tov, por seu turno, aponta quatro fases no desenvolvimento do Texto Masorético: na primeira,
fala da existência de um depósito de cópias no templo de Jerusalém, onde eram guardadas e
multiplicadas (por ex.: os textos «protomasoréticos» de Qumran); numa segunda fase, entre 200
a.C. e 135 d.C., é fixado o Texto Masorético, eliminado as demais cópias; na terceira fase, entre
135 e o séc. VIII, os masoretas dão consistência ao texto consonântico; na última fase, e até ao
final da Idade Média, o texto adquire a forma que hoje conhecemos e recebe uma vocalização,
introduzida pelos masoretas.
2) Eugene Ulrich (o editor dos textos bíblicos de Qumran) e Sidnie W. Crawford são mais
céticos em relação à «proto-história» do texto masorético, sublinhando sobretudo a variedade de
textos do Judaísmo do Segundo Templo. Ulrich defende que o Texto Masorético é,
simplesmente, e por mero acaso, o único texto hebraico da Bíblia que sobreviveu às duas guerras
judaicas16, e não é nem «o texto do templo de Jerusalém» nem um texto «estandardizado»
conscientemente. E Crawford afirma que é «anacrónico» falar de Septuaginta, Pentateuco
Samaritano e Texto Masorético em relação a Qumran e ao Judaísmo do Segundo Templo.
Segundo ela, todos estes textos são resultado de duas tradições escribais: uma conservadora e
outra revisionista que, posteriormente, deram origem a essas diferentes versões bíblicas. O Texto
Masorético começou a ser formado apenas no séc. II d.C., com textos provenientes de meios
conservadores (por exemplo, a Tora), e outros de círculos revisionistas (por exemplo, Jeremias).
Uma coisa é certa, a descoberta dos manuscritos de Qumran vieram mostrar a existência de
uma grande variedade de formas textuais da Bíblia, durante o período grego-romano, algo que
16 Os fragmentos bíblicos encontrados em Massada ou nos lugares da revolta de Bar Kochba são do proto-masorético (Tov 2003: 139, nota 56).
14
era inimaginável há um século atrás. Não havia, provavelmente, um único texto normativo, mas
vários, que deram origem às várias versões da Bíblia: a versão grega da Septuaginta, a versão
samaritana do Pentateuco e, finalmente, no Judaísmo rabínico, o Texto Masorético17.
Reescritura da Bíblia
As descobertas de Qumran revelaram ainda um outro tipo de literatura, que os especialistas
chamam de «reescritura da Bíblia»18. São novas criações literárias, interligadas ou imbricadas nos
textos bíblicos, e que constituem como que um desenvolvimento dos textos precedentes (Tov
2008: VI, 2). Alguns desenvolvem as narrativas do Pentateuco, como o Genesis Apocryphon ou
os Jubileus; outros a Lei sinaítica, como o Rolo do Templo; outros ainda a historiografia israelita,
como o livro bíblico das Crónicas, que tem a sua continuidade no Pseudo-Fílon ou nas
Antiguidades Judaicas de Josefo19 (Zahn 2012).
Uma questão que ainda não tem resposta, é saber se os autores dos textos – ou os seus
leitores – os consideravam «textos bíblicos» autorizados ou não, ou seja, de que modo eles os
valorizavam. Ao classificá-los, hoje, como textos de «reescritura bíblica», nós estamos a excluí-
los dessa categoria: a dos textos com autoridade religiosa; mas será que era assim há dois mil e
duzentos anos? O cânon da Bíblia Hebraica só viria a ser estabelecido, definitivamente, no final
do séc. I ou inícios do séc. II d.C. Qumran faz ainda parte do período de alguma «fluidez» no que
diz respeito ao cânon da Bíblia Hebraica (Schenker 2009).
Segundo Molly M. Zahn, há três elementos fundamentais na consideração da «reescritura
bíblica» como género próprio (Zahn 2012):
1) O facto de se tratar de uma nova obra literária, e não uma simples cópia de um livro
bíblico, com uma ou outra glosa;
17 A seguir às descobertas do Mar Morto, Frank M. Cross propôs uma teoria «geográfica» da origem das diversas versões, que hoje está completamente ultrapassada. Segundo ele, o Pentateuco e os livros históricos adquiriram a sua forma final durante o exílio na Babilónia (séc. VI a.C.), sendo depois «canonizados» no regresso à Palestina. Emergiram, então (no séc. V), várias versões, a partir desses primeiros textos: uma versão dos textos foi levada para o Egito, onde conheceu um desenvolvimento local, sendo o texto que está na base da tradição da Septuaginta; pela mesma época, na Palestina, os samaritanos desenvolviam o seu Pentateuco, a partir do mesmo texto; finalmente, um terceiro texto era desenvolvido na Babilónia, tendo sido trazido no período dos Macabeus, e que deu origem ao Texto Masorético (Barrera 1998: 293s).
18 O termo em inglês – rewritten Bible ou (ultimamente) rewritten Scripture – foi introduzido por Geza Vermes, ainda nos anos 1960, para referir a literatura qumrânica aparentada à Bíblia.
19 A lista poderia ser alargada aos casos de reescritura profética, poética e sapiencial, como o Pseudo-
Ezequiel, as Palavras das Luminárias e os Salmos não canónicos. De todos os modos, aqui apenas são considerados livros, porque existem muitos outros fragmentos encontrados que também respondem a este critério de classificação, e não como «manuscritos bíblicos» (Tov 2008: VI, 2).
15
2) Esta nova obra literária apresenta uma (re-)interpretação de determinada(s) passagem(s)
bíblica(s);
3) Esta nova obra situa-se na mesma «cadeia de tradição», ou no mesmo tipo de
«linguagem», da obra original.
O elemento mais decisivo parece ser o terceiro. Os autores destes textos, que
reinterpretavam textos anteriores, queriam certamente que os seus textos fossem lidos «do
mesmo modo» que aqueles que estavam na base da reescritura: se reinterpretava a Tora (como o
Rolo do Templo, por exemplo), que fosse lido como torah (instrução, lei). Deste modo, a nova
obra literária passava a fazer parte do mesmo discurso autorizado. «Podemos pensar a reescritura
da Bíblia como um género que serve, interpretativamente, para refazer (atualizar, corrigir)
determinadas tradições precedentes, reformulando uma porção substancial dessa tradições no
contexto de uma nova obra, que se coloca ela própria no mesmo discurso [cadeia de tradição] em
que se situa o texto escriturístico que ela reescreve» (Zahn 2012).
16
Conclusão
No decurso do nosso trabalho, evocámos dois momentos importantes na criação e
transmissão dos textos bíblicos, momentos esses que foram qualificados pelos autores estudados
como momentos de «revolução textual». W. Schniedewind situava essa «revolução textual» – que
ele relacionava com a criação/redação dos textos bíblicos – no século VII a.C., em Judá, já que
esse processo de textualização foi acompanhada por uma «canonização» dos mesmos, fazendo
deles «textos sagrados», com autoridade para o «povo de Deus», e por isso transmitidos, depois,
com grande cuidado e veneração. David M. Carr, pelo contrário, embora reconhecendo a
importância do período pré-exílico para a elaboração escrita de muitas tradições bíblicas, prefere
situar essa «revolução textual» mais tarde, no período greco-romano, e relacioná-la não tanto
com a fase de criação dos textos em si mesmos, mas com a da sua transmissão, tal como é
testemunhado pelos manuscritos de Qumran (produzidos entre meados do séc. III a.C, e até c. 68
d.C.20), mas também pela tradução grega da Bíblia hebraica, a Septaginta (textos traduzidos entre
275 e 150 a.C.).
Dando muita importância à oralidade (Carr 2005a) – e classificando, precisamente, as
sociedades antigas como sociedades fundamentalmente orais –, David Carr concebe os antigos
escribas como sendo, simultaneamente, intérpretes (performers) da tradição estabelecida e
autênticos autores, que não se limitam a preservar uma antiga tradição (ou texto), como também
a recriam continuamente. Com efeito, observa o autor, os copistas antigos não são meros
«copistas» à maneira medieval, reproduzindo literalmente antigos textos, mas são sobretudo
transmissores de conteúdos e de sentidos, sendo a cópia uma nova re-presentação dos originais
(Ibid., 4-8). Isso poderia explicar a multiplicidade de textos e de versões que encontramos em
Qumran – não esqueçamos que, na sua maioria, não são textos «copiados» ali, mas provêm de
vários lugares da Palestina –, com variantes mais ou menos importantes, mas também com textos
mais longos (como no Texto Masorético) ou mais curtos (Septuaginta e Pentateuco Samaritano),
ou até, como vimos, com obras completamente novas (do tipo «reescritura bíblica»).
20 Embora, como dissemos, os textos produzidos em Qumran mesmo, sejam datados apenas do período entre 50 a.C. e 68 d.C.
17
Por outro lado, em Qumran também existem vestígios do trabalho de «correção» de textos
(o escriba que corrige o seu próprio manuscrito ou que faz anotações à margem, para corrigir o
manuscrito de um outro), que encontramos mais tarde no Judaísmo rabínico (na massorah), com
a clara preocupação da fixação do texto transmitido, para que seja o mais conforme possível ao
original. De qualquer modo, esta preocupação, que conduzirá ao Texto Masorético que hoje
conhecemos, não impede que consideramos aqui o papel «criador» dos escribas antigos.
18
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Anexo: Figuras
Figura 1: Wadi el-Holl: Inscrição 1 Figura 2: Inscrição de Serabit el-KhademFonte: http://www.usc.edu/dept/LAS/wsrp/ Fonte: http://www.codex99.com/information/wadi_el_hol/inscr1_draw.jpg typography/11.html
Figura 3: Alfabeto cuneiforme ugaríticoFonte: http://en.wikipedia.org/wiki/
Ugaritic_alphabet
Figura 7: Carta de Amarna (séc. XIV a.C.) Figura 4: Calendário de Gezer (séc. X a.C.)Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Amarna_letters Fonte: http://www.sentircristiano.com/arqueologia/
arq-36-ElreinodeDavid-mitoorealidadhistoricaIV.html
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Figura 5: Estela de Mecha (séc. IX a.C.) Figura 6: Estela de Tel Dan (final do séc. IX a.C.)Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Mesha_Stele Fonte: http://www.bible-history.com/archaeology/
israel/tel-dan-stele.html
Figura 8: Inscrições de Kuntillet 'Ajrud (início do séc. VIII a.C.)Fonte: http://www.matrifocus.com/LAM04/spotlight.htm
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