Espaço público e habitação social

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II SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA ESPAÇO PÚBLICO 26 A 30 DE SETEMBRO DE 2005 ESPAÇO PÚBLICO E HABITAÇÃO SOCIAL BARBOSA, Patrícia Bruder (1); SILVA, Beatriz Fleury (2) (1) Graduanda em Arquitetura e Urbanismo, UEM; (2) Arquiteta, Mestre em Engenharia Urbana, Docente do Curso de Arquitetura e Urbanismo, UEM. RESUMO O presente trabalho consiste na discussão sobre a importância da apropriação dos espaços públicos em áreas residenciais, mais especificamente nos bairros de classes menos favorecidas. É necessário que a cidade seja novamente concebida como um local de reuniões, de contato social e criação coletiva. Logo, acredita-se que a integração do espaço público para com o privado nestas áreas pode incentivar a sociabilidade dos moradores de um determinado bairro, e consequentemente trazer contribuições à paisagem urbana, bem como o incentivo a defensibilidade, ou seja, o aumento da segurança pública através de mecanismos da própria morfologia urbana. Mas como fazer para que o espaço público nas áreas residenciais se torne de fato um espaço de convivência? Buscando respostas e contribuições a tal questionamento, o texto se propõe a examinar as formas com que o desenho urbano e a arquitetura podem estimular uma relação rica e dinâmica entre a rua e a habitação, através de uma transição cuidadosa e não imediata entre interior e exterior, público e privado. A escolha pela ênfase em bairros de interesse social, por sua vez, está na preocupação em proporcionar a esta população específica melhores condições de vida, com qualidade urbana, e ao mesmo tempo com baixo custo, o que não vem sido considerado na maioria dos conjuntos desta natureza, desde a extinção dos IAPs, na década de 60. ABSTRACT The present text consists in the discussion about the importance of urban public spaces appropriation in residential areas, more specifically in low lace neighbourhoods. Its necessary to conceive the city as a rendezvous again, of social contact and collective creation. Then, it’s possible to believe that the integration of public and private spaces in these areas may encourage the sociabilization of people and consequently bring contributions to the urban landscape and the incentive to the defensable city, what means the urban security rise through urban morfology mechanisms. In fact, how can we turn public spaces of residential areas into collective spaces? Seeking for answers and contributions to this question, the text proposes to examine ways of the urban design and architecture that could stimulate a rich relationship between the street and habitation, through a careful and not immediate transition between exterior and interior, public and private. The choice for the emphasis in social interest neighbourhoods has been made because of the worry to put up better living

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II SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA

ESPAÇO PÚBLICO

26 A 30 DE SETEMBRO DE 2005

ESPAÇO PÚBLICO E HABITAÇÃO SOCIAL

BARBOSA, Patrícia Bruder (1); SILVA, Beatriz Fleury (2)

(1) Graduanda em Arquitetura e Urbanismo, UEM; (2) Arquiteta, Mestre em

Engenharia Urbana, Docente do Curso de Arquitetura e Urbanismo, UEM.

RESUMO

O presente trabalho consiste na discussão sobre a importância da apropriação dos

espaços públicos em áreas residenciais, mais especificamente nos bairros de classes

menos favorecidas. É necessário que a cidade seja novamente concebida como um local

de reuniões, de contato social e criação coletiva. Logo, acredita-se que a integração do

espaço público para com o privado nestas áreas pode incentivar a sociabilidade dos

moradores de um determinado bairro, e consequentemente trazer contribuições à

paisagem urbana, bem como o incentivo a defensibilidade, ou seja, o aumento da

segurança pública através de mecanismos da própria morfologia urbana.

Mas como fazer para que o espaço público nas áreas residenciais se torne de fato um

espaço de convivência? Buscando respostas e contribuições a tal questionamento, o

texto se propõe a examinar as formas com que o desenho urbano e a arquitetura podem

estimular uma relação rica e dinâmica entre a rua e a habitação, através de uma

transição cuidadosa e não imediata entre interior e exterior, público e privado. A escolha

pela ênfase em bairros de interesse social, por sua vez, está na preocupação em

proporcionar a esta população específica melhores condições de vida, com qualidade

urbana, e ao mesmo tempo com baixo custo, o que não vem sido considerado na maioria

dos conjuntos desta natureza, desde a extinção dos IAPs, na década de 60.

ABSTRACT

The present text consists in the discussion about the importance of urban public spaces

appropriation in residential areas, more specifically in low lace neighbourhoods. Its

necessary to conceive the city as a rendezvous again, of social contact and collective

creation. Then, it’s possible to believe that the integration of public and private spaces

in these areas may encourage the sociabilization of people and consequently bring

contributions to the urban landscape and the incentive to the defensable city, what

means the urban security rise through urban morfology mechanisms.

In fact, how can we turn public spaces of residential areas into collective spaces?

Seeking for answers and contributions to this question, the text proposes to examine

ways of the urban design and architecture that could stimulate a rich relationship

between the street and habitation, through a careful and not immediate transition

between exterior and interior, public and private. The choice for the emphasis in social

interest neighbourhoods has been made because of the worry to put up better living

conditions, with urban quality and at the same time with low costs to this specifically

population, which hasn’t been considered in most housing schemes of this nature, since

the extinction of IAPs, in sixties.

INTRODUÇÃO

A proposta do presente trabalho surge com a preocupação quanto à péssima qualidade

de espaços urbanos dos muitos conjuntos habitacionais implantados para a população de

baixa renda no Brasil atualmente. Na maioria desta produção tem se esquecido da

importância da contextualização da moradia no meio urbano, isto é, da comunicação do

espaço interno da casa para com as ruas e demais espaços públicos da cidade. O

resultado é a não identificação e, conseqüentemente a não apropriação destes espaços

por esta população específica.

Sabe-se que pessoas de diferentes classes sociais e culturas se relacionam com o espaço

público de maneiras diferentes, mais ou menos intensamente. Em especial, a população

de baixa renda possui menos oportunidades de lazer. Para esta, o espaço público deve

receber tratamento adequado não somente por se constituir como cenário para a vida

comunitária, mas também a fim de suprir necessidades funcionais e de recreação (LAY,

2000).

As relações de vizinhança na cidade contemporânea são muito determinadas ainda

pelas diferenças entre classes sociais. Nos bairros operários, a limitação de

oportunidades, a pobreza e o isolamento relativos, a insegurança e o medo acabam

por fortalece-las e torna-las parte fundamental da trama de relações familiares. Nos

bairros de classe média, as relações entre vizinhos são mais seletivas e pessoais, já

que o maior poder aquisitivo faz diminuir a necessidade de ajuda mútua e aumentar

a necessidade individual de espaço (SERPA, 1996).

Diante de tais problemas e necessidades, busca-se a priori a compreensão de como o

espaço público tem sido encarado na habitação social em nosso país ao longo da

história, desde os cortiços e vilas operárias aos assentamentos promovidos atualmente,

atendo-se ao período de produção dos Institutos de Aposentadorias e Pensões, em que as

vanguardas modernas exerceram grande influência. Em seqüência às primeiras

considerações, julga-se necessária a conceituação dos termos habitação e espaço

coletivo considerados no presente estudo, bem como a explanação da importância que

há na apropriação de espaços públicos em áreas residenciais para baixa renda.

Finalmente, são propostas algumas estratégias a fim de incentivar a utilização dos

espaços públicos em bairros residenciais de baixa renda através do desenho e do

planejamento urbanos, objetivando trazer contribuições ao tema e fomentar maiores

discussões e estudos a respeito. O objetivo principal, no entanto, é a conscientização por

parte de arquitetos e urbanistas quanto ao seu papel diante da problemática habitacional

brasileira, que não deve consistir no “mero suficiente”, como critica ZEIN (2004), mas

em uma produção que promova a própria democratização da cidade, permitindo que

esta população também tenha acesso a moradias dignas, com qualidade de espaço

urbano.

1. RELAÇÕES DO ESPAÇO PÚBLICO PARA COM O PRIVADO NA

HABITAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA

A primeira crise habitacional do país, no final do século XIX, trouxe o alto investimento

na construção de cortiços. Em especial, o cortiço corredor se tratava de um quarteirão

com uma área livre em seu interior, para a qual se abriam as portas e janelas de cada um

dos cômodos enfileirados. O espaço coletivo acontecia neste corredor estreito, de

aproximadamente três ou quatro metros de largura, aonde eram realizadas atividades de

serviços e sanitárias por todos os moradores. Tratava-se de habitações insalubres, sem

ventilação ou iluminação adequadas, foco de muitos surtos epidêmicos (BONDUKI,

1998).

Diante da preocupação quanto à proliferação de doenças, o Estado passou a intervir na

produção da habitação operária quase que exclusivamente com uma visão sanitarista,

através do controle da produção do espaço urbano com a legislação urbanística, dos

planos de saneamento básico e de estratégias de controle sanitário. Devido aos

incentivos concedidos pelo Estado neste período, vilas operárias passaram a ser

construídas, ora por empresas e industrias com o intuito de manter o operário próximo

ao local de trabalho, ora por investidores particulares, que por sua vez constituíam a

grande maioria. Segundo BONDUKI (1998), assim como nos cortiços, nas vilas

operárias também era comum a abertura de uma via de penetração nos quarteirões, para

o melhor aproveitamento dos terrenos. Contudo, este espaço era mais intensamente

utilizado nas vilas particulares, em que não havia o controle dos patrões (Fig. 1 e 2).

Criava-se, assim, um espaço de circulação semi-público envolvido por fileiras de

casas “porta-e-janela”, onde se desenvolviam atividades coletivas: brincadeiras de

crianças, áreas de lavar e secar roupas, rodas de cantorias e bate-papo, festas de São

João. As reduzidas dimensões das moradias e a identidade étnica reforçavam a

sociabilidade e o uso deste espaço público. Já nas vilas de empresas, este espaço semi-

público é mais controlado pelas regras definidas pelo patrão (BONDUKI, 1998, p.60).

Figuras 1 e 2. À esquerda, vila empresarial e, à direita, cortiço-corredor, ambos localizados em São Paulo

(BONDUKI, 1998, p. 60).

A partir da década de 30, com a intervenção direta do Estado na produção de habitações

coletivas, as relações do espaço público para com o privado nos conjuntos habitacionais

foi bastante alterada, devido às influências do movimento moderno, bastante discutido

nos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM). A própria visão de

cidade foi modificada neste período. Para o urbanismo ortodoxo, de acordo com

JACOBS (1965), a rua passou a ser considerada um lugar ruim para o ser humano.

Buscava-se a extinção da rua, a substituição do pedestre pelo automóvel, a superação da

distinção entre público e privado. De acordo com HOLSTON (1993), a rua-corredor das

cidades pré-industriais foi superada nos modelos modernistas, uma vez que havia a

separação imediata do espaço interno das casas para com as ruas, feita através das

fachadas. A comunicação destes dois espaços distintos era feita somente por meio de

portas e janelas, e a rua poderia ser considerada como uma extensão das salas. A nova

concepção de cidade, em contrapartida, buscava a retirada das pessoas das ruas, e uma

nova maneira de se morar: as grandes áreas livres deveriam ser utilizadas para recreação

e contemplação, como foi o caso do modelo de cidade-jardim-vertical, de Le Corbusier.

A habitação coletiva passou a ser, no início do século XX, um dos principais objetos de

projeto na arquitetura e no urbanismo. No II e III CIAM foram discutidos a habitação

mínima e a industrialização e racionalização não apenas na construção, mas também em

um novo modo de morar. Não havia, portanto, a preocupação na compreensão do modus

vivendi de cada região, mas sim em estabelecer novos padrões de comportamento. Uma

utopia social foi construída, em que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a

própria sociedade. Tal ideologia não foi comprovada na cidade de Brasília, em que os

grandes espaços livres se tornaram de todos e de ninguém ao mesmo tempo. Segundo

HOLSTON (1993), Brasília não tem esquinas, nem praças ou calçadas, o que provocou

a interiorização dos encontros sociais e o isolamento dos moradores.

Apesar do equivoco, um tanto quanto determinista, devemos levar em consideração o

contexto histórico em que tais propostas surgiam, e por terem trazido o tema da

habitação como um dos principais objetos de estudo para o arquiteto, bem como sua

articulação para com os planos urbanísticos. De acordo com BONDUKI (1998), muitos

dos conjuntos habitacionais produzidos a partir deste período pelos Institutos de

Aposentadorias e Pensões (IAPs) trouxeram inovações importantes quanto às tipologias

arquitetônicas e quanto à sua implantação no meio urbano, constituindo na maior parte

dos casos conjuntos habitacionais verticais ou mistos. Desta forma, arquitetos como

Afonso Eduardo Reidy ou Attílio Correa Lima buscaram a não distinção entre a

arquitetura e o urbanismo em seus projetos, difundindo a habitação como um conjunto

da unidade para com sua dimensão urbana (Fig. 3 e 4). Entretanto, a visão introduzida

pelo governo então vigente quanto à ação habitacional restringiu consideravelmente o

impacto de tais propostas, principalmente no que diz respeito à sua aprovação legal. Já

era necessária a revisão dos Códigos de Posturas em vigor.

Figuras 3 e 4. Croquis do arquiteto Attílio Correa Lima, Conjunto Residencial Baixada do Carmo

(BONDUKI, 1998, p.184 e 185).

Após a extinção dos IAPs, na década de 60, foram poucos os exemplos de conjuntos

habitacionais populares com qualidade urbana. O período da produção realizada pelo

Banco Nacional da Habitação (BNH) veio trazer, na grande maioria dos conjuntos, o

descaso para com os espaços públicos através de projetos padronizados de blocos de

apartamentos ou casas unifamiliares isoladas, que enfatizavam o espaço privado, com

baixa qualidade de construção. Segundo FOLZ (2003), os apartamentos não tinham

relações consistentes com o espaço semi-público do conjunto, e as casas unifamiliares

eram dispostas em quarteirões estreitos e compridos, produzindo um espaço urbano

monótono, e sem identificação por parte dos moradores (Fig. 5 e 6).

Buscando-se a redução do preço das habitações, as unidades habitacionais tiveram seu

tamanho reduzido e os conjuntos passaram a não ter tanta preocupação com espaços

coletivos, apresentando baixa qualidade de projeto, assim como de materiais

empregados. A relação desses conjuntos habitacionais com o espaço urbano deixou de

existir (FOLZ, 2003, p.26).

Figuras 5 e 6. À esquerda, Conjunto Habitacional de Vila União, em Campinas (Fonte: MORETTI, 1997,

p.19). À direita, cena do filme Central do Brasil: crítica à padronização das unidades (Fonte:

www.centraldobrasil.com.br).

É possível encontrar raras iniciativas mais recentes em que a busca pela qualidade de

moradia e sua dimensão urbana em conjuntos habitacionais de baixa renda são visíveis.

Um dos exemplos ocorreu na produção habitacional no período de gestão de Luiza

Erundina, na cidade de São Paulo, em que o conceito das antigas vilas operárias foi

resgatado, através de pátios centrais e comuns a todas as unidades do conjunto,

incentivando a sociabilidade entre os moradores (Fig. 7). Outra demonstração notável

de procura por esta qualidade se deu no Conjunto Habitacional da Universidade

Estadual de Campinas, projetado por Joan Villà, dotado de caminhos exclusivos aos

pedestres, que por sua vez integram todo o conjunto, e áreas de convívio para os

estudantes (Fig. 8).

Segundo MEYER (2001), no VIII CIAM, realizado na década de 50, a discussão sobre

os centros urbanos chegou à conclusão de que a humanização da vida nas cidades

dependia diretamente da recuperação de espaços destinados à sustentação da vida

coletiva. Afirmou-se que as cidades corriam o risco de se tornarem lugares exclusivos

do trabalho, e que o centro destas deveria garantir lugares de reunião e de consciência

cívica, espaços destinados aos pedestres e o incentivo à arte como experiência e

manifestação coletiva. Tal busca pela qualidade dos espaços públicos e o incentivo à

sociabilidade tem sido cada vez mais tema de muitos debates do urbanismo e arquitetura

atuais.

Figuras 7 e 8. À esquerda, Conjunto Heliópolis I (Fonte: BONDUKI, 1993, p.18). À direita, Conjunto

Habitacional da UNICAMP (Fonte: arquivo pessoal, 2005).

2. HABITAÇÃO E COLETIVIDADE

Pode-se perceber, através das considerações feitas até o momento, que a relação dos

espaços públicos para com os privados na habitação social brasileira sofreu várias

alterações ao longo do século XX, ora compreendendo-se a habitação como um simples

abrigo das intempéries, ora entendendo que esta também abrange o espaço urbano na

qual está inserida. Segundo MARTUCCI (apud FOLZ, 2003), a palavra habitação

designa o invólucro da casa e o morar integrados ao espaço urbano. Logo, esta não se

restringe ao espaço privado da moradia, mas ultrapassa os limites das paredes e envolve

o espaço público, devendo ser considerada parte decisiva na estruturação da cidade.

Diante de tal afirmação, compreende-se que não deve haver distinção entre os graus de

importância da arquitetura e do urbanismo – a organização de um espaço urbano e

coletivo deve ser tão importante quanto à organização interna de uma casa.

Assim, não se trata só de construir um certo número de residências para resolver o

déficit habitacional, mas, sim, de faze-lo a partir de uma concepção de cidade, de lugar

onde o múltiplo e o diverso permitam e valorizem a existência do espaço do indivíduo.

Onde seja possível se sentir “parte do bairro”, “parte da cidade”, e, ao mesmo tempo,

“encontrar seu cantinho”, sua própria escala, seu espaço de recolhimento. Poder se

“desconectar” ou se “conectar”, na medida das necessidades e dos desejos

(JÁUREGUI, 2004).

Como já mencionado, a população de baixa renda utiliza-se do espaço público para

recreação e também para suprir necessidades funcionais. Os espaços abertos, por sua

vez, devem responder a tais necessidades de maneira satisfatória. Segundo LAY (2000),

o ambiente construído pode tornar-se uma ferramenta ou um inibidor no

desenvolvimento da vida comunitária, e seu desempenho pode ser avaliado através da

observação da maneira como estes espaços são apropriados ou não pelos moradores.

Uma vez que o espaço público se caracterize por alguma forma de apropriação, este se

torna um espaço coletivo, isto é, o local em que a vida comunitária se desenrola, onde

há troca e manifestação de opiniões, onde ocorre o contato social, em que os vizinhos

podem se conhecer ou as crianças podem brincar, lócus de expressão cultural. Segundo

SOLA-MORALES (2001), os espaços coletivos têm sido, cada vez mais, espaços que

não são nem públicos nem privados, senão os dois simultaneamente.

A importância do espaço público, por sua vez, seja ele um espaço livre ou a própria rua

tradicional, está em fazer referência aos espaços privados. Este deve dar caráter urbano

aos edifícios e à arquitetura em geral, ou seja, deve converter o espaço privado em parte

do público. A boa cidade, segundo SOLA-MORALES (2001), é de fato a que consegue

dar valor público ao privado. E quando há a apropriação destes espaços, que são

acessíveis a todos, por parte dos moradores, constrói-se verdadeiros lugares urbanos, ou

coletivos, denominados por CASTELLO (2000) como urbanidade.

O projeto urbano tem o papel de incentivar a apropriação do espaço público pelos

residentes, o que significa fazer com que a população reconheça a rua, a calçada, as

praças, como seu território também. BONNES & SECCHIAROLI (apud CASTELLO,

2004) traz a definição de territorialidade como sendo o estudo pelas quais lugares e

objetos passam a fazer parte tanto da identidade das pessoas quanto dos processos

sociais nos quais elas participam. Logo, para haver a manutenção e a utilização do

espaço público nas áreas residenciais, é preciso que os moradores se sintam

proprietários deste espaço. É necessário salientar, contudo, que a presente discussão

não tem a intenção de incentivar a privatização das ruas e espaços livres – pelo

contrário, deve-se sustentar o direito de acesso aos locais públicos para toda a

população, permitindo a integração dos bairros para com a cidade.

A territorialidade, por sua vez, não possui necessariamente limites concretos, marcados

por barreiras como muros, grades ou guaritas. Sem dúvida é importante a delimitação

dos espaços privados em áreas residenciais, contudo, esta pode ser feita de maneira

tênue através de estratégias do desenho urbano, como zonas de transição do espaço

público ao privado, caracterizando áreas semi-públicas e semi-privadas. Desta forma

seria possível obter bairros que valorizam seu espaço público e edificado e,

consequentemente a própria cidade, de forma alternativa aos muros altos que têm cada

vez mais empobrecido o espaço urbano e criado a anticidade, espaço de ninguém, onde

não existe hierarquia, não existe vida, não existe expectativa de diálogo com a cidade

(YAMAKI, 2002).

3. EM BUSCA DA CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS COLETIVOS EM BAIRROS

POPULARES

O projeto urbano pode, como já citado, auxiliar na criação do sentido de territorialidade

por parte dos moradores, ampliando as possibilidades de convivência e sociabilidade

entre eles. Isto pode ser feito inclusive tirando partido das limitações dos recursos

financeiros e da maior autonomia que os municípios possuem quando se trata da

legalização de loteamentos destinados à população de baixa renda.

A primeira sugestão de projeto diz respeito à necessidade de hierarquizar e organizar os

espaços físicos socialmente, a fim de possibilitar a fácil compreensão e legibilidade do

espaço urbano. Isto pode ser feito através da criação de áreas de transição entre o espaço

privado da residência e o espaço público da cidade: territórios de uso mais ou menos

coletivo, zonas muito ou pouco marcadas por signos de privacidade, pontos de

encontro ou lugares de passagem, onde formas de sociabilidade poderão se manifestar

conforme os desejos e necessidades dos moradores (BONDUKI, 1993). Estas áreas de

transição são possíveis através da compatibilização do desenho da morfologia urbana

para com a arquitetura, evitando-se a passagem imediata entre espaços internos e

externos. Logo, alguns elementos de projeto facilitam esta comunicação, assim como

varandas, terraços, pórticos, ou mesmo soluções originais de janelas, aliados à

hierarquização das vias, a passeios destinados exclusivamente aos pedestres ou à

determinação de recuos urbanísticos mínimos, dentre outros.

A hierarquização eficaz do sistema viário, necessária a fim de evitar o trânsito de

passagem nas áreas residenciais, pode ser realizada através da utilização de uma malha

urbana mista, ou seja, fechada, porém com ruas de penetração, caracterizadas por um

alto grau de segurança ao pedestre, especialmente às crianças (Fig. 9). Segundo

MASCARÓ (2003), o traçado aberto é o que apresenta maior economia na implantação

de um conjunto, e também possibilita maior número de lotes servidos. Se combinado ao

traçado fechado, que proporciona menores custos com transportes, devido aos menores

percursos a serem percorridos, e também maior facilidade ao fornecimento de serviços

públicos, tais como coleta de lixo, distribuição de gás, entre outros, pode-se obter um

traçado urbano com menores custos de implantação e manutenção, com um maior

aproveitamento, e ao mesmo tempo garantindo um tecido urbano mais rico que

contribua para com qualificação da paisagem urbana.

As ruas interiores, em especial as sem saída, fazem com que o trânsito seja bem menor,

criando verdadeiros lugares. Os vizinhos e particularmente seus filhos tomam conta

desses espaços e desenvolvem uma vida comunitária muito mais intensa (MASCARÓ,

2003, p.44).

Figura 9: Exemplos de soluções com vias sem saída (Fonte: MASCARÓ, 2003, p.41).

Gordon CULLEN (1971) fala sobre a importância de se pensar a cidade segundo o

ponto de vista dos que se deslocam nela, valorizando o pedestre e fazendo com que a

paisagem urbana se torne agradável, dinâmica, e nos convide a descobri-la aos poucos,

através de uma caminhada pontuada por uma série de surpresas: um percurso através de

zonas de compressão e de vazio, espaços amplos ou delimitados, alternância de

situações de tensão e momentos de tranqüilidade. A diversidade de traçados e a

arquitetura em conjunto podem contribuir para a construção desta paisagem, inclusive

respeitando o meio ambiente e tirando partido da própria declividade do terreno,

diminuindo custos e sempre priorizando o bem-estar dos transeuntes.

Quanto aos espaços livres, segundo pesquisas de pós-ocupação em conjuntos

habitacionais (LAY, 2000), é importante que estes tenham proximidade para com as

unidades, em função da necessidade de supervisão dos adultos enquanto as crianças

brincam, em especial aquelas abaixo de 10 anos. Ao mesmo tempo, é interessante que

haja áreas de recreação para adultos e idosos, como canchas para jogos, servindo como

suporte às áreas destinadas à recreação infantil. Desta forma, tais áreas devem estar

localizadas em locais estratégicos dos loteamentos, a fim de permitirem boa

acessibilidade a todos os moradores e garantir sua utilização, ao contrário do que é feito

na maior parte dos projetos de assentamentos para baixa renda, em que estas constituem

as sobras do terreno, ou seja, aqueles não passiveis de aproveitamento para lotes.

Finalmente, a sustentação do movimento nas ruas e a apropriação dos espaços públicos

por parte dos moradores também são responsáveis por garantir o controle e a

fiscalização do espaço urbano de maneira natural. Estudos sobre a defensibilidade

urbana, ou seja, as habilidades que o espaço urbano possui para abrigar e proteger o

cidadão através de seus próprios mecanismos de controle (YAMAKI, 2002), mostram

que a violência urbana pode ser consideravelmente amenizada através da vigilância

natural dos próprios moradores (SERPA, 1996). Segundo JACOBS (1961), as ruas

vivas podem ser resgatadas desde que possuam infra-estrutura para receber pessoas de

toda a cidade, bem como para servir aos próprios moradores. Os edifícios por sua vez,

oferecendo uma estrutura suporte, devem estar voltados para estas, garantindo os “olhos

da rua”. Isto seria possível, segundo a autora, através de uma combinação de usos

eficiente e diversificada, que garanta o movimento destes espaços também no período

da noite.

O momento é de repensar as nossas cidades não sob o enfoque da privacidade, da

criação de novas barreiras, mas sim da reorganização da comunidade e de

reabilitação dos espaços públicos, tendo como uma das hipóteses a defensibilidade

(YAMAKI, 2002).

CONCLUSÕES

Embora seja possível o projeto urbano de qualidade para áreas de interesse social, a

maior parte dos conjuntos habitacionais produzidos recentemente em nosso país ainda é

vitima da monotonia dos espaços públicos, sem variedade arquitetônica ou de traçados

urbanos e com áreas livres e institucionais mínimas exigidos pela legislação – na

maioria das vezes insuficientes para sanar as necessidades dos moradores e condenadas

aos piores terrenos dos loteamentos.

Através do estudo realizado foi possível perceber que o espaço público nos

assentamentos desta natureza podem ser qualificados e apropriados através da

hierarquização dos espaços, a começar pelo sistema viário, pela construção de uma

paisagem urbana com qualidade e que valorize o pedestre, pelo posicionamento

estratégico das áreas livres e pelo tratamento adequado destas, bem como pela

miscigenação de usos, incentivando a movimentação nas ruas e consequentemente o

controle e fiscalização naturais destas.

Portanto, cabe ao arquiteto e urbanista o emprego adequado das muitas estratégias que o

desenho urbano oferece, sendo que aqui foram citadas somente algumas delas, sempre

levando em consideração o modus vivendi de cada região e culturas diferentes, a fim de

incentivar a vida em comunidade nos conjuntos habitacionais, garantindo

simultaneamente a privacidade e individualidade dos moradores. É possível conceder

também à esta população o morar com qualidade urbana.

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