Espaço público e habitação social
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II SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA
ESPAÇO PÚBLICO
26 A 30 DE SETEMBRO DE 2005
ESPAÇO PÚBLICO E HABITAÇÃO SOCIAL
BARBOSA, Patrícia Bruder (1); SILVA, Beatriz Fleury (2)
(1) Graduanda em Arquitetura e Urbanismo, UEM; (2) Arquiteta, Mestre em
Engenharia Urbana, Docente do Curso de Arquitetura e Urbanismo, UEM.
RESUMO
O presente trabalho consiste na discussão sobre a importância da apropriação dos
espaços públicos em áreas residenciais, mais especificamente nos bairros de classes
menos favorecidas. É necessário que a cidade seja novamente concebida como um local
de reuniões, de contato social e criação coletiva. Logo, acredita-se que a integração do
espaço público para com o privado nestas áreas pode incentivar a sociabilidade dos
moradores de um determinado bairro, e consequentemente trazer contribuições à
paisagem urbana, bem como o incentivo a defensibilidade, ou seja, o aumento da
segurança pública através de mecanismos da própria morfologia urbana.
Mas como fazer para que o espaço público nas áreas residenciais se torne de fato um
espaço de convivência? Buscando respostas e contribuições a tal questionamento, o
texto se propõe a examinar as formas com que o desenho urbano e a arquitetura podem
estimular uma relação rica e dinâmica entre a rua e a habitação, através de uma
transição cuidadosa e não imediata entre interior e exterior, público e privado. A escolha
pela ênfase em bairros de interesse social, por sua vez, está na preocupação em
proporcionar a esta população específica melhores condições de vida, com qualidade
urbana, e ao mesmo tempo com baixo custo, o que não vem sido considerado na maioria
dos conjuntos desta natureza, desde a extinção dos IAPs, na década de 60.
ABSTRACT
The present text consists in the discussion about the importance of urban public spaces
appropriation in residential areas, more specifically in low lace neighbourhoods. Its
necessary to conceive the city as a rendezvous again, of social contact and collective
creation. Then, it’s possible to believe that the integration of public and private spaces
in these areas may encourage the sociabilization of people and consequently bring
contributions to the urban landscape and the incentive to the defensable city, what
means the urban security rise through urban morfology mechanisms.
In fact, how can we turn public spaces of residential areas into collective spaces?
Seeking for answers and contributions to this question, the text proposes to examine
ways of the urban design and architecture that could stimulate a rich relationship
between the street and habitation, through a careful and not immediate transition
between exterior and interior, public and private. The choice for the emphasis in social
interest neighbourhoods has been made because of the worry to put up better living
conditions, with urban quality and at the same time with low costs to this specifically
population, which hasn’t been considered in most housing schemes of this nature, since
the extinction of IAPs, in sixties.
INTRODUÇÃO
A proposta do presente trabalho surge com a preocupação quanto à péssima qualidade
de espaços urbanos dos muitos conjuntos habitacionais implantados para a população de
baixa renda no Brasil atualmente. Na maioria desta produção tem se esquecido da
importância da contextualização da moradia no meio urbano, isto é, da comunicação do
espaço interno da casa para com as ruas e demais espaços públicos da cidade. O
resultado é a não identificação e, conseqüentemente a não apropriação destes espaços
por esta população específica.
Sabe-se que pessoas de diferentes classes sociais e culturas se relacionam com o espaço
público de maneiras diferentes, mais ou menos intensamente. Em especial, a população
de baixa renda possui menos oportunidades de lazer. Para esta, o espaço público deve
receber tratamento adequado não somente por se constituir como cenário para a vida
comunitária, mas também a fim de suprir necessidades funcionais e de recreação (LAY,
2000).
As relações de vizinhança na cidade contemporânea são muito determinadas ainda
pelas diferenças entre classes sociais. Nos bairros operários, a limitação de
oportunidades, a pobreza e o isolamento relativos, a insegurança e o medo acabam
por fortalece-las e torna-las parte fundamental da trama de relações familiares. Nos
bairros de classe média, as relações entre vizinhos são mais seletivas e pessoais, já
que o maior poder aquisitivo faz diminuir a necessidade de ajuda mútua e aumentar
a necessidade individual de espaço (SERPA, 1996).
Diante de tais problemas e necessidades, busca-se a priori a compreensão de como o
espaço público tem sido encarado na habitação social em nosso país ao longo da
história, desde os cortiços e vilas operárias aos assentamentos promovidos atualmente,
atendo-se ao período de produção dos Institutos de Aposentadorias e Pensões, em que as
vanguardas modernas exerceram grande influência. Em seqüência às primeiras
considerações, julga-se necessária a conceituação dos termos habitação e espaço
coletivo considerados no presente estudo, bem como a explanação da importância que
há na apropriação de espaços públicos em áreas residenciais para baixa renda.
Finalmente, são propostas algumas estratégias a fim de incentivar a utilização dos
espaços públicos em bairros residenciais de baixa renda através do desenho e do
planejamento urbanos, objetivando trazer contribuições ao tema e fomentar maiores
discussões e estudos a respeito. O objetivo principal, no entanto, é a conscientização por
parte de arquitetos e urbanistas quanto ao seu papel diante da problemática habitacional
brasileira, que não deve consistir no “mero suficiente”, como critica ZEIN (2004), mas
em uma produção que promova a própria democratização da cidade, permitindo que
esta população também tenha acesso a moradias dignas, com qualidade de espaço
urbano.
1. RELAÇÕES DO ESPAÇO PÚBLICO PARA COM O PRIVADO NA
HABITAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA
A primeira crise habitacional do país, no final do século XIX, trouxe o alto investimento
na construção de cortiços. Em especial, o cortiço corredor se tratava de um quarteirão
com uma área livre em seu interior, para a qual se abriam as portas e janelas de cada um
dos cômodos enfileirados. O espaço coletivo acontecia neste corredor estreito, de
aproximadamente três ou quatro metros de largura, aonde eram realizadas atividades de
serviços e sanitárias por todos os moradores. Tratava-se de habitações insalubres, sem
ventilação ou iluminação adequadas, foco de muitos surtos epidêmicos (BONDUKI,
1998).
Diante da preocupação quanto à proliferação de doenças, o Estado passou a intervir na
produção da habitação operária quase que exclusivamente com uma visão sanitarista,
através do controle da produção do espaço urbano com a legislação urbanística, dos
planos de saneamento básico e de estratégias de controle sanitário. Devido aos
incentivos concedidos pelo Estado neste período, vilas operárias passaram a ser
construídas, ora por empresas e industrias com o intuito de manter o operário próximo
ao local de trabalho, ora por investidores particulares, que por sua vez constituíam a
grande maioria. Segundo BONDUKI (1998), assim como nos cortiços, nas vilas
operárias também era comum a abertura de uma via de penetração nos quarteirões, para
o melhor aproveitamento dos terrenos. Contudo, este espaço era mais intensamente
utilizado nas vilas particulares, em que não havia o controle dos patrões (Fig. 1 e 2).
Criava-se, assim, um espaço de circulação semi-público envolvido por fileiras de
casas “porta-e-janela”, onde se desenvolviam atividades coletivas: brincadeiras de
crianças, áreas de lavar e secar roupas, rodas de cantorias e bate-papo, festas de São
João. As reduzidas dimensões das moradias e a identidade étnica reforçavam a
sociabilidade e o uso deste espaço público. Já nas vilas de empresas, este espaço semi-
público é mais controlado pelas regras definidas pelo patrão (BONDUKI, 1998, p.60).
Figuras 1 e 2. À esquerda, vila empresarial e, à direita, cortiço-corredor, ambos localizados em São Paulo
(BONDUKI, 1998, p. 60).
A partir da década de 30, com a intervenção direta do Estado na produção de habitações
coletivas, as relações do espaço público para com o privado nos conjuntos habitacionais
foi bastante alterada, devido às influências do movimento moderno, bastante discutido
nos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM). A própria visão de
cidade foi modificada neste período. Para o urbanismo ortodoxo, de acordo com
JACOBS (1965), a rua passou a ser considerada um lugar ruim para o ser humano.
Buscava-se a extinção da rua, a substituição do pedestre pelo automóvel, a superação da
distinção entre público e privado. De acordo com HOLSTON (1993), a rua-corredor das
cidades pré-industriais foi superada nos modelos modernistas, uma vez que havia a
separação imediata do espaço interno das casas para com as ruas, feita através das
fachadas. A comunicação destes dois espaços distintos era feita somente por meio de
portas e janelas, e a rua poderia ser considerada como uma extensão das salas. A nova
concepção de cidade, em contrapartida, buscava a retirada das pessoas das ruas, e uma
nova maneira de se morar: as grandes áreas livres deveriam ser utilizadas para recreação
e contemplação, como foi o caso do modelo de cidade-jardim-vertical, de Le Corbusier.
A habitação coletiva passou a ser, no início do século XX, um dos principais objetos de
projeto na arquitetura e no urbanismo. No II e III CIAM foram discutidos a habitação
mínima e a industrialização e racionalização não apenas na construção, mas também em
um novo modo de morar. Não havia, portanto, a preocupação na compreensão do modus
vivendi de cada região, mas sim em estabelecer novos padrões de comportamento. Uma
utopia social foi construída, em que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a
própria sociedade. Tal ideologia não foi comprovada na cidade de Brasília, em que os
grandes espaços livres se tornaram de todos e de ninguém ao mesmo tempo. Segundo
HOLSTON (1993), Brasília não tem esquinas, nem praças ou calçadas, o que provocou
a interiorização dos encontros sociais e o isolamento dos moradores.
Apesar do equivoco, um tanto quanto determinista, devemos levar em consideração o
contexto histórico em que tais propostas surgiam, e por terem trazido o tema da
habitação como um dos principais objetos de estudo para o arquiteto, bem como sua
articulação para com os planos urbanísticos. De acordo com BONDUKI (1998), muitos
dos conjuntos habitacionais produzidos a partir deste período pelos Institutos de
Aposentadorias e Pensões (IAPs) trouxeram inovações importantes quanto às tipologias
arquitetônicas e quanto à sua implantação no meio urbano, constituindo na maior parte
dos casos conjuntos habitacionais verticais ou mistos. Desta forma, arquitetos como
Afonso Eduardo Reidy ou Attílio Correa Lima buscaram a não distinção entre a
arquitetura e o urbanismo em seus projetos, difundindo a habitação como um conjunto
da unidade para com sua dimensão urbana (Fig. 3 e 4). Entretanto, a visão introduzida
pelo governo então vigente quanto à ação habitacional restringiu consideravelmente o
impacto de tais propostas, principalmente no que diz respeito à sua aprovação legal. Já
era necessária a revisão dos Códigos de Posturas em vigor.
Figuras 3 e 4. Croquis do arquiteto Attílio Correa Lima, Conjunto Residencial Baixada do Carmo
(BONDUKI, 1998, p.184 e 185).
Após a extinção dos IAPs, na década de 60, foram poucos os exemplos de conjuntos
habitacionais populares com qualidade urbana. O período da produção realizada pelo
Banco Nacional da Habitação (BNH) veio trazer, na grande maioria dos conjuntos, o
descaso para com os espaços públicos através de projetos padronizados de blocos de
apartamentos ou casas unifamiliares isoladas, que enfatizavam o espaço privado, com
baixa qualidade de construção. Segundo FOLZ (2003), os apartamentos não tinham
relações consistentes com o espaço semi-público do conjunto, e as casas unifamiliares
eram dispostas em quarteirões estreitos e compridos, produzindo um espaço urbano
monótono, e sem identificação por parte dos moradores (Fig. 5 e 6).
Buscando-se a redução do preço das habitações, as unidades habitacionais tiveram seu
tamanho reduzido e os conjuntos passaram a não ter tanta preocupação com espaços
coletivos, apresentando baixa qualidade de projeto, assim como de materiais
empregados. A relação desses conjuntos habitacionais com o espaço urbano deixou de
existir (FOLZ, 2003, p.26).
Figuras 5 e 6. À esquerda, Conjunto Habitacional de Vila União, em Campinas (Fonte: MORETTI, 1997,
p.19). À direita, cena do filme Central do Brasil: crítica à padronização das unidades (Fonte:
www.centraldobrasil.com.br).
É possível encontrar raras iniciativas mais recentes em que a busca pela qualidade de
moradia e sua dimensão urbana em conjuntos habitacionais de baixa renda são visíveis.
Um dos exemplos ocorreu na produção habitacional no período de gestão de Luiza
Erundina, na cidade de São Paulo, em que o conceito das antigas vilas operárias foi
resgatado, através de pátios centrais e comuns a todas as unidades do conjunto,
incentivando a sociabilidade entre os moradores (Fig. 7). Outra demonstração notável
de procura por esta qualidade se deu no Conjunto Habitacional da Universidade
Estadual de Campinas, projetado por Joan Villà, dotado de caminhos exclusivos aos
pedestres, que por sua vez integram todo o conjunto, e áreas de convívio para os
estudantes (Fig. 8).
Segundo MEYER (2001), no VIII CIAM, realizado na década de 50, a discussão sobre
os centros urbanos chegou à conclusão de que a humanização da vida nas cidades
dependia diretamente da recuperação de espaços destinados à sustentação da vida
coletiva. Afirmou-se que as cidades corriam o risco de se tornarem lugares exclusivos
do trabalho, e que o centro destas deveria garantir lugares de reunião e de consciência
cívica, espaços destinados aos pedestres e o incentivo à arte como experiência e
manifestação coletiva. Tal busca pela qualidade dos espaços públicos e o incentivo à
sociabilidade tem sido cada vez mais tema de muitos debates do urbanismo e arquitetura
atuais.
Figuras 7 e 8. À esquerda, Conjunto Heliópolis I (Fonte: BONDUKI, 1993, p.18). À direita, Conjunto
Habitacional da UNICAMP (Fonte: arquivo pessoal, 2005).
2. HABITAÇÃO E COLETIVIDADE
Pode-se perceber, através das considerações feitas até o momento, que a relação dos
espaços públicos para com os privados na habitação social brasileira sofreu várias
alterações ao longo do século XX, ora compreendendo-se a habitação como um simples
abrigo das intempéries, ora entendendo que esta também abrange o espaço urbano na
qual está inserida. Segundo MARTUCCI (apud FOLZ, 2003), a palavra habitação
designa o invólucro da casa e o morar integrados ao espaço urbano. Logo, esta não se
restringe ao espaço privado da moradia, mas ultrapassa os limites das paredes e envolve
o espaço público, devendo ser considerada parte decisiva na estruturação da cidade.
Diante de tal afirmação, compreende-se que não deve haver distinção entre os graus de
importância da arquitetura e do urbanismo – a organização de um espaço urbano e
coletivo deve ser tão importante quanto à organização interna de uma casa.
Assim, não se trata só de construir um certo número de residências para resolver o
déficit habitacional, mas, sim, de faze-lo a partir de uma concepção de cidade, de lugar
onde o múltiplo e o diverso permitam e valorizem a existência do espaço do indivíduo.
Onde seja possível se sentir “parte do bairro”, “parte da cidade”, e, ao mesmo tempo,
“encontrar seu cantinho”, sua própria escala, seu espaço de recolhimento. Poder se
“desconectar” ou se “conectar”, na medida das necessidades e dos desejos
(JÁUREGUI, 2004).
Como já mencionado, a população de baixa renda utiliza-se do espaço público para
recreação e também para suprir necessidades funcionais. Os espaços abertos, por sua
vez, devem responder a tais necessidades de maneira satisfatória. Segundo LAY (2000),
o ambiente construído pode tornar-se uma ferramenta ou um inibidor no
desenvolvimento da vida comunitária, e seu desempenho pode ser avaliado através da
observação da maneira como estes espaços são apropriados ou não pelos moradores.
Uma vez que o espaço público se caracterize por alguma forma de apropriação, este se
torna um espaço coletivo, isto é, o local em que a vida comunitária se desenrola, onde
há troca e manifestação de opiniões, onde ocorre o contato social, em que os vizinhos
podem se conhecer ou as crianças podem brincar, lócus de expressão cultural. Segundo
SOLA-MORALES (2001), os espaços coletivos têm sido, cada vez mais, espaços que
não são nem públicos nem privados, senão os dois simultaneamente.
A importância do espaço público, por sua vez, seja ele um espaço livre ou a própria rua
tradicional, está em fazer referência aos espaços privados. Este deve dar caráter urbano
aos edifícios e à arquitetura em geral, ou seja, deve converter o espaço privado em parte
do público. A boa cidade, segundo SOLA-MORALES (2001), é de fato a que consegue
dar valor público ao privado. E quando há a apropriação destes espaços, que são
acessíveis a todos, por parte dos moradores, constrói-se verdadeiros lugares urbanos, ou
coletivos, denominados por CASTELLO (2000) como urbanidade.
O projeto urbano tem o papel de incentivar a apropriação do espaço público pelos
residentes, o que significa fazer com que a população reconheça a rua, a calçada, as
praças, como seu território também. BONNES & SECCHIAROLI (apud CASTELLO,
2004) traz a definição de territorialidade como sendo o estudo pelas quais lugares e
objetos passam a fazer parte tanto da identidade das pessoas quanto dos processos
sociais nos quais elas participam. Logo, para haver a manutenção e a utilização do
espaço público nas áreas residenciais, é preciso que os moradores se sintam
proprietários deste espaço. É necessário salientar, contudo, que a presente discussão
não tem a intenção de incentivar a privatização das ruas e espaços livres – pelo
contrário, deve-se sustentar o direito de acesso aos locais públicos para toda a
população, permitindo a integração dos bairros para com a cidade.
A territorialidade, por sua vez, não possui necessariamente limites concretos, marcados
por barreiras como muros, grades ou guaritas. Sem dúvida é importante a delimitação
dos espaços privados em áreas residenciais, contudo, esta pode ser feita de maneira
tênue através de estratégias do desenho urbano, como zonas de transição do espaço
público ao privado, caracterizando áreas semi-públicas e semi-privadas. Desta forma
seria possível obter bairros que valorizam seu espaço público e edificado e,
consequentemente a própria cidade, de forma alternativa aos muros altos que têm cada
vez mais empobrecido o espaço urbano e criado a anticidade, espaço de ninguém, onde
não existe hierarquia, não existe vida, não existe expectativa de diálogo com a cidade
(YAMAKI, 2002).
3. EM BUSCA DA CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS COLETIVOS EM BAIRROS
POPULARES
O projeto urbano pode, como já citado, auxiliar na criação do sentido de territorialidade
por parte dos moradores, ampliando as possibilidades de convivência e sociabilidade
entre eles. Isto pode ser feito inclusive tirando partido das limitações dos recursos
financeiros e da maior autonomia que os municípios possuem quando se trata da
legalização de loteamentos destinados à população de baixa renda.
A primeira sugestão de projeto diz respeito à necessidade de hierarquizar e organizar os
espaços físicos socialmente, a fim de possibilitar a fácil compreensão e legibilidade do
espaço urbano. Isto pode ser feito através da criação de áreas de transição entre o espaço
privado da residência e o espaço público da cidade: territórios de uso mais ou menos
coletivo, zonas muito ou pouco marcadas por signos de privacidade, pontos de
encontro ou lugares de passagem, onde formas de sociabilidade poderão se manifestar
conforme os desejos e necessidades dos moradores (BONDUKI, 1993). Estas áreas de
transição são possíveis através da compatibilização do desenho da morfologia urbana
para com a arquitetura, evitando-se a passagem imediata entre espaços internos e
externos. Logo, alguns elementos de projeto facilitam esta comunicação, assim como
varandas, terraços, pórticos, ou mesmo soluções originais de janelas, aliados à
hierarquização das vias, a passeios destinados exclusivamente aos pedestres ou à
determinação de recuos urbanísticos mínimos, dentre outros.
A hierarquização eficaz do sistema viário, necessária a fim de evitar o trânsito de
passagem nas áreas residenciais, pode ser realizada através da utilização de uma malha
urbana mista, ou seja, fechada, porém com ruas de penetração, caracterizadas por um
alto grau de segurança ao pedestre, especialmente às crianças (Fig. 9). Segundo
MASCARÓ (2003), o traçado aberto é o que apresenta maior economia na implantação
de um conjunto, e também possibilita maior número de lotes servidos. Se combinado ao
traçado fechado, que proporciona menores custos com transportes, devido aos menores
percursos a serem percorridos, e também maior facilidade ao fornecimento de serviços
públicos, tais como coleta de lixo, distribuição de gás, entre outros, pode-se obter um
traçado urbano com menores custos de implantação e manutenção, com um maior
aproveitamento, e ao mesmo tempo garantindo um tecido urbano mais rico que
contribua para com qualificação da paisagem urbana.
As ruas interiores, em especial as sem saída, fazem com que o trânsito seja bem menor,
criando verdadeiros lugares. Os vizinhos e particularmente seus filhos tomam conta
desses espaços e desenvolvem uma vida comunitária muito mais intensa (MASCARÓ,
2003, p.44).
Figura 9: Exemplos de soluções com vias sem saída (Fonte: MASCARÓ, 2003, p.41).
Gordon CULLEN (1971) fala sobre a importância de se pensar a cidade segundo o
ponto de vista dos que se deslocam nela, valorizando o pedestre e fazendo com que a
paisagem urbana se torne agradável, dinâmica, e nos convide a descobri-la aos poucos,
através de uma caminhada pontuada por uma série de surpresas: um percurso através de
zonas de compressão e de vazio, espaços amplos ou delimitados, alternância de
situações de tensão e momentos de tranqüilidade. A diversidade de traçados e a
arquitetura em conjunto podem contribuir para a construção desta paisagem, inclusive
respeitando o meio ambiente e tirando partido da própria declividade do terreno,
diminuindo custos e sempre priorizando o bem-estar dos transeuntes.
Quanto aos espaços livres, segundo pesquisas de pós-ocupação em conjuntos
habitacionais (LAY, 2000), é importante que estes tenham proximidade para com as
unidades, em função da necessidade de supervisão dos adultos enquanto as crianças
brincam, em especial aquelas abaixo de 10 anos. Ao mesmo tempo, é interessante que
haja áreas de recreação para adultos e idosos, como canchas para jogos, servindo como
suporte às áreas destinadas à recreação infantil. Desta forma, tais áreas devem estar
localizadas em locais estratégicos dos loteamentos, a fim de permitirem boa
acessibilidade a todos os moradores e garantir sua utilização, ao contrário do que é feito
na maior parte dos projetos de assentamentos para baixa renda, em que estas constituem
as sobras do terreno, ou seja, aqueles não passiveis de aproveitamento para lotes.
Finalmente, a sustentação do movimento nas ruas e a apropriação dos espaços públicos
por parte dos moradores também são responsáveis por garantir o controle e a
fiscalização do espaço urbano de maneira natural. Estudos sobre a defensibilidade
urbana, ou seja, as habilidades que o espaço urbano possui para abrigar e proteger o
cidadão através de seus próprios mecanismos de controle (YAMAKI, 2002), mostram
que a violência urbana pode ser consideravelmente amenizada através da vigilância
natural dos próprios moradores (SERPA, 1996). Segundo JACOBS (1961), as ruas
vivas podem ser resgatadas desde que possuam infra-estrutura para receber pessoas de
toda a cidade, bem como para servir aos próprios moradores. Os edifícios por sua vez,
oferecendo uma estrutura suporte, devem estar voltados para estas, garantindo os “olhos
da rua”. Isto seria possível, segundo a autora, através de uma combinação de usos
eficiente e diversificada, que garanta o movimento destes espaços também no período
da noite.
O momento é de repensar as nossas cidades não sob o enfoque da privacidade, da
criação de novas barreiras, mas sim da reorganização da comunidade e de
reabilitação dos espaços públicos, tendo como uma das hipóteses a defensibilidade
(YAMAKI, 2002).
CONCLUSÕES
Embora seja possível o projeto urbano de qualidade para áreas de interesse social, a
maior parte dos conjuntos habitacionais produzidos recentemente em nosso país ainda é
vitima da monotonia dos espaços públicos, sem variedade arquitetônica ou de traçados
urbanos e com áreas livres e institucionais mínimas exigidos pela legislação – na
maioria das vezes insuficientes para sanar as necessidades dos moradores e condenadas
aos piores terrenos dos loteamentos.
Através do estudo realizado foi possível perceber que o espaço público nos
assentamentos desta natureza podem ser qualificados e apropriados através da
hierarquização dos espaços, a começar pelo sistema viário, pela construção de uma
paisagem urbana com qualidade e que valorize o pedestre, pelo posicionamento
estratégico das áreas livres e pelo tratamento adequado destas, bem como pela
miscigenação de usos, incentivando a movimentação nas ruas e consequentemente o
controle e fiscalização naturais destas.
Portanto, cabe ao arquiteto e urbanista o emprego adequado das muitas estratégias que o
desenho urbano oferece, sendo que aqui foram citadas somente algumas delas, sempre
levando em consideração o modus vivendi de cada região e culturas diferentes, a fim de
incentivar a vida em comunidade nos conjuntos habitacionais, garantindo
simultaneamente a privacidade e individualidade dos moradores. É possível conceder
também à esta população o morar com qualidade urbana.
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