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Escrita e ortografia A BIBLIOTECA DE LEITE DE VASCONCELOS João Paulo Silvestre Centro de Linguística da Universidade de Lisboa

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Escrita e ortografiaA BIBLIOTECA DE LEITE DE VASCONCELOS

João Paulo Silvestre

Centro de Linguística da Universidade de Lisboa

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A BIBLIOTECA DE LEITE DE VASCONCELOS

Escrita e ortografia

João Paulo Silvestre

Centro de Linguística da Universidade de Lisboa 2019

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Título | Escrita e ortografia Autor | João Paulo Silvestre Coleção | A Biblioteca de Leite de Vasconcelos Edição | Centro de Linguística da Universidade de Lisboa Capa | Livros do Legado de Leite de Vasconcelos. Biblioteca da Faculdade de Letras. ISBN | 978-989-98666-4-5

Este trabalho teve o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito da bolsa de pós-doutoramento A entrada da Linguística em Portugal, através do legado Leite de Vasconcelos da FLUL.

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Índice Introdução 6

1. Ler a memória da língua 9 1.1. Etimologia e normalização da escrita cultivada 15 1.2. O elogio do erro 16

2. O linguista e as reformas ortográficas 22 2.1. O escrutínio científico das simplificações ortográficas 23 2.2. Dos estudos fonológicos à unificação da escrita 27

3. A escrita do Estado e das instituições: a reforma de 1911 33 3.1. A comissão do Dicionário da Academia 37 3.2. Portugal e Brasil, reformas sem acordos 39

4. Fontes para a história da ortografia 43 4.1. Antologia de textos ortográficos

1. Duarte Nunes de Leão, Orthographia da lingoa portuguesa, 1576. 44 2. Bento Pereira, Regras gerays, breves, & comprehensivas da melhor

ortografia, 1666 47 3. João Franco Barreto, Ortografia da lingua portugueza, 1671 49 4. Rafael Bluteau, Vocabulario portuguez, & latino, 1712-1728 51 5. Luís Caetano de Lima, Orthographia da lingua portugueza, 1736 54 6. Bernardo Fernandes Gaio, Regras da orthografia da linguagem

portugueza, 1738 56 7. João de Morais Madureira Feijó, Orthographia, ou arte de escrever, e

pronunciar com acerto a lingua portugueza, 1739 58 8. Francisco Félix Carneiro Sotomaior, Orthographia portugueza, 1783 62 9. João Pinheiro Freire da Cunha, Breve tratado da orthografia, 1788 64 10. Francisco Nunes Cardoso, Exame critico das regras da orthografia

portugueza, 1790 67 11. Academia das Ciências de Lisboa, Diccionario da lingoa portugueza,

1793 69 12. Noções sobre a ortografia da lingua portugueza, 1807 71 13. Luís Gonçalves Coutinho, Resumo orthográfico da lingua

portugueza, 1814 73

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14. Carlos Augusto de Figueiredo Vieira, Ensaio sobre a orthographia portugueza, 1844 75

15. João António Dias, Noções geraes de orthographia da lingua portugueza, 1853 77

16. António José Vaz Velho, Opusculo sobre ortografia, 1856 80 17. José Tavares de Macedo, Elementos de orthographia portugueza,

1861 82 18. António Moniz Barreto Corte Real, Proposta de reforma

orthographica submetida á Academia das Sciencias de Lisboa, 1877 84 19. José Barbosa Leão, Colèção de estudos e documentos a favor da

refórma da ortografia em sentido sónico, 1878 86 20. José Jorge Paranhos da Silva, O idioma do hodierno Portugal

comparado com o do Brazil, 1879 90 21. José Maria Latino Coelho, Parecer apresentado á Academia Real

das Sciencias de Lisboa sobre a reforma orthographica, 1879 92 22. Agostinho de Jesus e Sousa, A orthographia phonetica confirmada

pela linguistica e biologia, 1881 95 23. José Barbosa Leão, Princípios e régras para escrever em ortografia

sónica, 1886 98 24. João Félix Pereira, Vocabulario sonico, 1888 100 25. Cândido de Figueiredo, A questão orthographica, 1887 103 26. José Leite de Vasconcelos, As lições de linguagem do Sr. Candido de

Figueiredo: anályse critica, 1893105 27. Aniceto dos Reis Gonçalves Viana, Vocabulário ortográfico e

ortoépico da língua portuguesa, 1909 109 28. António Barradas (org.), Pequeno vocabulário ortográfico, 1911 113 29. J. Teles, Gramática portuguesa, 1912 115 30. David Lopes (relator), Relatório apresentado à Assembleia Geral

sobre o convite... feito à Academia Brasileira, 1914 118 31. David Lopes (relator), Bases da ortografia que deve ser adoptada

no Dicionário da Academia, 1916 123 32. Manuel Borges Grainha, Duas portarias diferentes sobre a

ortografia nacional, 1922 127

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4.2. Marginália de Leite de Vasconcelos 131

1. Luís do Monte Carmelo, Compendio de orthografia, 1767 2. José Barbosa Leão, Elementos de gramática portugueza, 1886 135 3. Aniceto dos Reis Gonçalves Viana, Proposta de um questionário para

se formularem as regras de orthografia portuguesa uniforme, 1900 137 4. Bases para a unificação da ortografia, 1911 141

Textos na antologia (por autor) 145

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Introdução

Há pouco mais de um século o Estado estabeleceu pela primeira vez uma ortografia para a escrita e o ensino do Português. Publicações oficiais, jornais, manuais escolares mostravam à população alfabetizada uma escrita que diziam ser mais simples e moderna, reduzindo as várias possibilidades de escrita para a mesma palavra. Muitos não alteraram os seus hábitos e continuaram a escrever à antiga até ao fim dos seus dias, recusando perder a memória de graphia, hymno, solemne, charidade ou, com convicto patriotismo, portuguez.

As novas gerações aproveitaram o benefício de serem escolarizadas sob uma escrita comum, a mesma que organizava o Estado e as suas instituições.

Foi também o início de um período da História da Língua. Resolvidos alguns problemas essenciais de representação convencional da escrita, essa norma foi reproduzida nas escolas, obrigando a uma renovação das gramáticas e dos dicionários. O estudo da Língua nas suas variações inesperadas, a tentativa de uma descrição sistemática, a problematização dos limites da norma, são as consequências naturais desse momento fundador.

Passou o tempo necessário para que os testemunhos desse estado anterior desaparecessem da memória coletiva. Recriaram-se os hábitos e as relações afetivas que defendem a escrita de reformas que perturbam o aparente equilíbrio e a imagem simbólica das palavras, factos que a comunidade entende como naturais, e não como uma convenção literalmente secular.

A reforma ficou para a história como um legado do programa reformador e civilizador do primeiro governo republicano, mas na verdade não poderia resultar simplesmente de um gesto de vontade política, que convocasse um conselho de sábios para discutirem e definirem regras de escrita. A ortografia de 1911 é talvez o primeiro e mais visível efeito de uma profunda mudança nos estudos linguísticos em Portugal, que renovou ou instituiu as disciplinas indispensáveis para a fixação de uma norma escrita com bases científicas.

A renovação começou várias décadas antes e tocou as várias áreas do conhecimento da língua. Num breve espaço de anos, uma geração de linguistas

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notáveis contribuiu para a instituição de um fundo de conhecimento original e intercomunicativo. Epifânio Dias publica novas gramáticas para o ensino de língua portuguesa aos alunos dos liceus (1870) e da instrução primária (1876)1. Carolina Michaëlis de Vasconcelos inicia a sua edição do Cancioneiro da Ajuda em 1877. Adolfo Coelho ensina Linguística no Curso Superior de Letras a partir de 1878, dando conhecimento dos progressos da filologia românica, da linguística comparada e dos trabalhos essenciais que se publicavam na Europa. Em 1882, José Leite de Vasconcelos publica a primeira descrição do dialeto mirandês2. Aniceto Gonçalves Viana conclui e publica estudo de fonética e fonologia do Português contemporâneo (1883)3 e, com Guilherme Vasconcelos de Abreu, apresenta em 1885 uma proposta de reforma ortográfica, justificada com a investigação fonológica4.

Alguns destes nomes ainda estão presentes na comissão da reforma ortográfica de 1911, para rever e dar forma de lei à proposta que Gonçalves Viana tinha publicado em 1885. À mesa reúnem-se filólogos de diversos percursos e gerações, que representam as diferentes perspetivas sobre a língua no início do século XX em Portugal: Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Gonçalves Viana e José Joaquim Nunes; mas também Cândido de Figueiredo, Manuel Borges Grainha e António Gonçalves Guimarães.

A figura de Leite de Vasconcelos é bem ilustrativa da mudança de objeto científico. Intitula-se filólogo, sem que os seus interesses de investigação se relacionem com a norma gramatical, a regulação da escrita, a gramática ou a didática. O seu trabalho incide sobre o conhecimento da história passada e presente da língua portuguesa, na sua diversidade de dialetos e registos, de forma sistemática e documentada.

Leite de Vasconcelos nunca se demorou no problema da ortografia. Mas, para conhecer a história da língua portuguesa, leu, estudou e possuiu a maior

1 Augusto Epifânio da Silva Dias, Grammatica practica da lingua portugueza. Porto: Typographia do Jornal do Porto, 1870; Grammatica portugueza para uso das aulas de instrucção primaria. Porto: Livraria Moré de Francisco da Silva Mengo, 1876. 2 O dialecto mirandez: contribuição para o estudo da dialectologia romanica no dominio glottologico hispano-lusitano. Porto: Livraria Portuense de Clavel & Ca, 1882. 3 Essai de phonétique et de phonologie de la langue portugaise d'après le dialècte actuel de Lisbonne. Paris : [s.n.]. 1883. 4 A. R. Gonçalves Vianna, G. de Vasconcelos Abreu, Bases da ortografia portuguesa. Lisboa : Imprensa Nacional, 1885.

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parte dos dicionários, gramáticas e ortografias antigos e contemporâneos. Percebeu a razão de ser da ortografia etimológica, em que medida ela teve de ceder face às realidades fonológicas e diversidades dialetais, as concessões para o ensino da escrita. Percebeu também que a escrita nunca seria uniforme num país com uma população insuficientemente escolarizada. Chega aos trabalhos da comissão com uma posição conservadora, assegurando que as mudanças necessárias não perturbam uma tradição que garante a continuidade da memória escrita da língua.

Na sua biblioteca particular encontram-se os testemunhos bibliográficos que traçam a história da escrita do português e os ensaios de reformas ortográficas que foram propostos até 1911. Alguns contêm anotações manuscritas inéditas, que comprovam a leitura e o comentário informado que dedicou aos textos ortográficos, aos trabalhos científicos de Gonçalves Viana, mas também às propostas empíricas de José Barbosa Leão.

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1. Ler a memória da língua

Em várias áreas de trabalho de Leite de Vasconcelos encontra-se uma

análise atenta dos testemunhos da escrita. As tradições populares, a arqueologia, a etnografia e a filologia — amplamente entendida como o estudo da evolução das línguas — não só exigem um reconhecimento da variação da escrita no tempo e no espaço, mas também valorizam as variações sociais e os usos ainda mais particulares que formam os diversos ideoletos.

O cargo de conservador da Biblioteca Nacional, entre 1888 e 1911, deu-lhe acesso privilegiado aos documentos e fontes que permitem compreender a história da evolução da escrita do português. Mas o seu principal instrumento de trabalho é a biblioteca pessoal. Com fervor bibliófilo colecionou as obras que representam momentos de reflexão sobre a língua, seja pela gramática, seja pelo alargamento lexical e semântico de usos literários; encontram-se também os monumentos da história literária, importantes repositórios da memória lexical e semântica

É uma biblioteca muitíssimo especializada, que pôs ao seu alcance fontes que, até à recente difusão das edições digitais, apenas podiam ser consultadas na Biblioteca Nacional ou nos fundos antigos das bibliotecas universitárias. Estas fontes usuais na mesa de trabalho de Leite de Vasconcelos, por serem raras e pouco acessíveis, foram progressivamente desaparecendo da memória da língua e dos linguistas. A constituição de uma disciplina de historiografia linguística, na 2.ª metade do século XX, é no fundo um exercício de rememoração, que vem refazendo laços que se perderam por não se terem constituído cânones linguísticos.

Hoje sabemos como é pouco produtiva a discussão sobre normalização ortográfica quando os interlocutores não têm uma visão do continuum da história da escrita. As soluções ortográficas de finais do século XIX podiam ser facilmente interpretadas como um caos, mas o filólogo entendia as razões da diversidade, fosse pela confluência de diferentes tradições ortográficas, fosse pela interferência de fatores socioletais na escrita. O elemento novo, o conhecimento do funcionamento da língua pela descrição fonológica

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sistemática, era também um discurso de especialidade, confiado à competência de Gonçalves Viana e secundado pela aprovação de outros professores do Curso Superior de Letras. Mas os argumentos preponderantes eram a questão do respeito pela etimologia e as vantagens da observância das raízes latinas do português. Essa velha discussão, iniciada no século XVI, estava bem documentada nas fontes gramaticais do português que Leite de Vasconcelos tinha na sua biblioteca.

As primeiras gramáticas quinhentistas não são textos normativos, no sentido moderno da expressão. Inauguram a reflexão sobre a evolução da escrita que se vinha desenvolvendo há séculos e em que já identificavam evoluções e modificações. Os seus autores notam que a escrita sua contemporânea sofreu modificações e preocupam-se com a identidade da língua, apresentando soluções para a manutenção de uma matriz distintiva das palavras, que configure e distinga a escrita portuguesa.

A doutrina que se encontra nos textos de Fernão de Oliveira (c. 1507-c. 1581) ou de João de Barros (1496-1570) não é suficientemente sistematizada para regular as práticas de escrita dos poucos contemporâneos que os conheceram, mas estabeleceu um enquadramento para as discussões sobre a normalização e latinização nos séculos seguintes.

Na gramática de Fernão de Oliveira (1536)5, a identidade da língua e a indentidade da descrição gramatical subordinam-se à preservação das palavras e das particularidades morfológicas, bem como a um alargamento ponderado em que as novas palavras respeitam uma matriz distintiva. Neste contexto, Oliveira critica a propensão para latinizar as palavras por analogias etimologizantes, que as descaracterizam. As «nossas palavras» devem ser mantidas e os vocábulos «alheios» — introduzidos por necessidade — «como nossos os havemos de tratar, e pronunciar, e conformar ao som da nossa melodia e ao sentido das nossas orelhas» (Oliveira, 1536: C5r). São toleradas as soluções ortográficas que apresentam grafemas desnecessários, mas assentam em usos enraizados, como hum, alghum, hi, ahi, honrra, honrrado, mas merecem reprovação as grafias que contrariam a perceção segura que Oliveira

5 Fernão de Oliveira, Grammatica da lingoagem portuguesa. Em Lixboa: Germão Galharde, 1536.

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tem dos sons da língua. Só por imitação dos latinos é que não se adotam soluções de rutura, que concordariam com o sistema fonológico do português e marcariam uma justificada individualidade do código escrito. Assim, por exemplo, propõe «lingoa, qoando, porque assim me soa a mim nas minhas orelhas. E se outra cousa fazem por imitar aos latinos, não é nosso o que seguem». Por isso escreve manifico, filosofo, esprito, e não magnifico, philosopho, espirito.

Os gramáticos e ortógrafos seguintes defendem um aproveitamento explícito da tradição gramatical latina na instituição da gramática portuguesa e na normalização da língua em geral. João de Barros, que teve ao seu serviço o próprio Fernão de Oliveira como professor dos filhos, ensaia um discurso didático que Oliveira não quis explorar. Poucos anos depois, em 1540, responde à gramática indagativa com uma obra assertiva, sistematizada com uma cartinha para ensinar a ler e escrever6.

Barros percebe que o português pode ampliar-se a partir do latim, desde que não se subvertam os valores dos grafemas, enunciando a regra: «dádo que a diçam seja latina [...] logo a devemos escrever ao nosso modo» (Barros, 1540: 42). Mas, na parte da gramática consagrada ao louvor da linguagem, percebe-se o rumo que caracterizará a principal produção metalinguística até meados do século XVIII: «na comparação das línguas modernas, a melhor e mais elegante é a «que se mais conforma com a latina, assi em vocábulos como na ortografia» (ibidem: 54).

O interesse por uma gramática da língua portuguesa pouco ultrapassava a questão das partes da oração e as regras da escrita. As obras seguintes são essencialmente manuais de ortografia, em que os autores exercitam diversos graus de adesão à escrita etimológica e uma renovação programática do léxico. As discussões sobre a configuração ortográfica do Português Clássico invocam um cânone de autoridades constituído por Duarte Nunes de Leão (fl. 1530-1608), João Franco Barreto (1600-1674?) e Bento Pereira (1605-1681).

Em 1576, na Orthographia da lingoa portuguesa7, Duarte Nunes de Leão incita a imitação do latim, com a mesma determinação com que Oliveira a

6 João de Barros, Grammatica da lingua portuguesa. Olyssipone : apud Lodouicum Rotorigiu[m], Typographum, 1540. 7 Duarte Nunes de Leão, Orthographia da lingoa portuguesa. Em Lisboa : per Ioão de Barreira, 1576.

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contestava. Insiste no conceito de vocábulo corrupto, aquele que sofreu mudanças significativas em relação à palavra latina original, conotando assim negativamente as palavras que evidenciam o percurso evolutivo da língua portuguesa:

Que não somente os vocabulos Portugueses, que stão inteiros, como no Latim, mas os corruptos, no que não stiverem mudados, devem guardar a mesma orthographia. De maneira que assi como stella, dobra o .l. em Latim, assi o dobrará strella em Portugues. (Leão, 1576: 54 v.º)

Nas regras de Nunes de Leão reconhece-se a orientação ortográfica que

predominará durante o Português Clássico, bem como a distinção entre o uso culto da língua, aferido pela latinidade, e um uso vulgar que reproduz oralidade. No capítulo que prescreve a «Reformação de algumas palavras que a gente vulgar usa e screve mal» (ibidem: 69 v.º-71 v.º), são inequivocamente classificadas como erros muitas grafias que Oliveira e Cardoso preferiam, corrigidas por variantes latinizadas: experimentar, instrumento, spuma em vez de esprimentar, estormento, escuma.

A escolarização da escrita do português era incipiente e marginalizada pelo ensino do latim. A primeira aprendizagem era a leitura; a escrita era uma competência distinta, ensinada posteriormente, com custos materiais que afastavam os mais pobres. Os alunos memorizavam o alfabeto e aprendiam a identificar letras e combinações isoladas, em silabários escritos e expostos pelos professores. Após meses de repetição de palavras, poderiam ler em voz alta frases, textos formulares e orações religiosas. Para os aprendentes que não tivessem acesso a outros materiais além dos silabários ou cartinhas, a leitura era a decifração de combinações de grafemas, sem contacto com uma variedade de vocabulário, inferindo soluções ortográficas por analogia. Os que passassem para a fase da escrita imitavam as formas que encontravam registadas nos diversos impressos. Conhecer o significado de novo vocabulário e saber reproduzi-lo graficamente dependia do tipo de textos a que cada um tinha acesso.

A língua portuguesa ainda não tinha um dicionário que desse uma amostra extensiva da ortografia do vocabulário fundamental e dos neologismos. Os primeiros dicionários da língua portuguesa, de Jerónimo Cardoso (1508-1569), ainda dão testemunho de um vocabulário muito independente de soluções

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latinizantes, que encontra suficiente capacidade expressiva num fundo lexical vernáculo e resistente ao decalque das palavras latinas. No Dictionarium de 15708, a entrada em latim deixa perceber a palavra de origem culta que será introduzida e substituirá a palavra portuguesa. O termo português, à distância dos séculos, parece-nos uma solução metafórica, quando na verdade era a designação comum: craneus, o casco da cabeça; meninx, a tea do miolo; cerebrum, o miolo; intelligentia, o entendimento; mens, o sentido (cf. Cardoso, 1570, s.v.).

Mesmo quando são palavras decalcadas do latim, a ortografia reproduz as mudanças fonéticas e não procura dar a impressão visual da ortografia latina. Escreve sonorento (latim somnolentus), sotil (subtilis), sustancia (substancia), umedo (humidus) e umano (humanus).

Os dicionários de latim-português e português-latim de Bento Pereira (com o título geral de Prosodia) foram usados como livro único nos colégios dos jesuítas desde 1634 até à expulsão em 1759. Serviam facilmente para esclarecer a ortografia do português, procurando a palavra latina que traduzia um determinado termo.

A comparação entre português e latim motiva a substituição de formas lexicais mais antigas. Se Jerónimo Cardoso traduzia illuminare por alumiar, Bento Pereira aproxima-se do latim e prefere escrever illuminar. Na escrita, as formas antigas passam a ser consideradas manifestações de oralidade e nasce a oscilação entre variedade lexical e erro de representação ortográfica.

A obra de Bento Pereira, Regras gerays, breves, & comprehensivas da melhor orthografia com que se podem evitar erros no escrever da lingua Latina, e Portugueza (1666) inclui, além dos enunciados teóricos, uma série de listas prescritivas, sugerindo modificações nos hábitos de escrita. Este catálogo de grafias a evitar é um precioso testemunho da variedade do registo escrito, pois enumera grafias incorretas, mas aceitáveis, em contraste com as absolutamente condenadas.

8 Jerónimo Cardoso, Dictionarium latino lusitanicum & vice versa lusitanico latinu[m], Conimbricae: excussit Joan. Barrerius, 1570.

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Formas erradas Deus des dezcançar despeçome devino dinoyte docto doctor

Emendas Deos dez descançar despidome divino de noyte douto doutor

Formas toleradas psalmo si sinco socresto, socrestar sofrimento, sofrer solemne somana sospiros sospeytar soprir

Emendas salmo sim cinco sequestro, sequestrar soffrimento, soffrer solenne semana suspiros suspeytar supprir

A duplicação das consoantes na escrita do português torna-se um

elemento perturbador do sistema ortográfico, e Bento Pereira tenta limitar a sua aplicação, concentrando-se no princípio da fundamentação etimológica: «se as dições forem Latinas, ou deduzidas por algũa via do Latim, se ponham dobradas, ou singelas conformando-se com a Latinidade» (Pereira, 1666: 46).

João Franco Barreto (1600-c. 1674), comentador de Os Lusíadas (1663) e das Rimas (1666) de Camões, dedicou uma das suas últimas obras à ortografia, publicada em 1671. A proposta ortográfica é uma revisão do deslumbramento latinizante de Duarte Nunes de Leão, admitindo uma escrita simplificada quando os grafemas latinos podiam ser dispensados.

Ao contrário de Nunes de Leão, Barreto pôde testemunhar a acumulação de uma memória literária portuguesa. Assim, na impossibilidade de extrair das analogias latinas um sistema coerente de regras, quem não conhecer as línguas clássicas pode seguir a autoridade e o exemplo dos autores canónicos, adotando o sistema ortográfico das suas obras impressas. A ortografia é um ato individual, que reproduz atos também individuais, mas prestigiados.

João Franco Barreto reconhece vantagens aos elementos etimológicos,

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pois conferem regularidade ao sistema e podem ter função distintiva para evitar homofonias. Mas rejeita o h inicial e a introdução dos grupos ch, ph, th e y greco-latinos, sem realização oral efetiva (Barreto, 1671: 197-198, 212, 225).

Quanto à duplicação de consoantes, «os que tiverem uso e conhecimento da língua latina, poderão saber que nomes dobram, ou não dobram as letras; e os que não forem Latinos, imitando a escritura dos homens doutos» (ibidem: 180). 1.1. Etimologia e normalização da escrita cultivada

Na 1.ª metade do século XVIII os dicionários e as gramáticas ensaiam um discurso prescritivo, em que a correção das formas propostas é garantida pela analogia com o latim.

A discussão sobre as regras ortográficas reinicia-se com uma nova e ampla dicionarização do Português, devida ao padre teatino francês Rafael Bluteau (1638-1734), que vem para Portugal em 1668 e dedica os 40 anos seguintes ao estudo da língua. O Vocabulário (1712-1728) é um extenso dicionário com mais 40 mil entradas. Publicado com o mecenato de D. João V, aspira ao estatuto de padrão linguístico e símbolo de uma língua em expansão lexical. É um dicionário da língua da corte, em que se aceita pacificamente que a escrita é um fator de distinção social. De novo, o desejo de uniformização não se confunde com o conceito de universalização, porque a escrita dos indoutos não pode ser regrada, já que reproduz a oralidade, os usos descuidados e a escolarização rudimentar.

Esta norma justifica-se na tradição da memória literária, ao documentar cada uma das entradas com a citação de ocorrências em textos de autores portugueses. Apesar insistir em autores modelares como o Padre António Vieira, a diversidade de fontes deu lugar a inúmeras ortografias contraditórias. Por isso o dicionário é apenas mais uma autoridade e não uma sistematização ortográfica verdadeiramente reformadora. Mantém, à escala de um volumoso dicionário, os problemas com que Franco Barreto se deparou na sua Ortografia.

Ainda assim, Bluteau interveio pontualmente para aproximar o português aos códigos escritos de outras línguas europeias, em especial o francês e o italiano. Substituiu por s todas as grafias com ç inicial, apesar de a distinção ainda ter valor fonológico e conhecer largo uso na escrita e registo em outros

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dicionários. A autonomia linguística, que antes se afirmava pela procura de relações unívocas entre a pronúncia e a escrita, conquista-se agora pela semelhança com as línguas de cultura.

Em 1720 D. João V funda a Academia Real, orientando-a para a historiografia. Distingue-se portanto das congéneres francesa e espanhola, que se dedicam ao estudo da língua e publicam dicionários normalizadores, que resultam do trabalho colaborativo de um escol de sábios e literatos. O dicionário de Bluteau, também ele membro da Academia Real, foi tacitamente aceite pelos pares como um dicionário académico, apesar de ser um trabalho individual.

A consciência de que a ortografia de Bluteau era irregular motivou a edição da Orthographia da lingua portugueza em 1736, cujas regras foram aplicadas em todas as publicações da Academia. O autor é Luís Caetano de Lima (1671-1757), que em 1710 tinha publicado uma gramática didática de francês, em que se explorava a comparação com o português. Lima obedece a princípios que Bluteau tinha estabelecido, aperfeiçoando a convergência de soluções ortográficas estrangeiras e latinizantes, e invocando a autoridade dos textos impressos. Entre os portugueses, o Padre António Vieira é novamente modelo ortográfico preferido. 1.2. O elogio do erro

O mais influente sistema ortográfico do século XVIII não é ditado pela Academia. Encontra-se num manual didático de João Morais Madureira Feijó (1668-1741), publicado a partir de 1734 e largamente usado nos colégios jesuítas. É o primeiro dicionário concebido para a resolução expedita de dificuldades de escrita, dispensando a consulta de um complexo formulário de regras e exceções. Como se baseia na recolha lexical de Bluteau e comunga da orientação etimologizante, funciona como uma versão abreviada do grande dicionário.

Num período em que o ensino do português não está organizado pelo Estado, este manual é o primeiro modelo verdadeiramente estável da ortografia portuguesa, com pelo menos 12 edições editorialmente bem sucedidas, que sobrevivem ao fim do ensino dos jesuítas. Até à 10.ª edição, de 1824, o texto mantém-se inalterado. Tem mais duas edições, em 1839 e 1861, que procuram responder ao interesse público, como testemunha Inocêncio Silva:

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Multiplicaram-se depois as edições sucessivas, e com a indicação de mais corretas, até à décima, que é de Lisboa, 1824. Depois desta saíram ainda não sei quantas. Uma que tenho presente é de Lisboa, 1836. E o caso é, que todas se acham hoje exaustas, por modo que se trata de publicar com toda a brevidade uma, que me dizem estar no prelo. [...] [A] sua Ortografia há sido sempre a mais seguida e geral entre nós. Não conseguiram ainda desapossá-la de todo da supremacia que uma vez tomou, tantas e tão repetidas tentativas, quais foram as dos ortógrafos que no passado e presente séculos empreenderam introduzir sistemas inteiramente diversos ou modificar o método adoptado á vontade de cada, qual apoiando se para esse efeito em razões mais ou menos plausíveis, e em casos especiosas. (Inocêncio Silva, 1859: III, 422-423)

Madureira Feijó entendeu a variação de grafias como um reflexo das

diferenças dialetais e sociais que conhecia. Viveu até aos 15 anos em São Gens de Parada, Bragança, estudou em Coimbra e foi pároco de Ançã. O contributo inovador é o facto de eleger uma forma «correta», considerando um equilíbrio entre a racionalização etimológica, os usos consagrados em textos impressos e uma tentativa de superação de diferenças dialetais. Não concede ao registo dialetal de Lisboa um estatuto paradigmático, como sucedia em Bluteau ou Caetano de Lima: «se consultarmos as Províncias, acharemos que o uso introduziu em cada uma aqueles erros pátrios, que os naturais mutuamente reprovam uns aos outros, ou seja no escrever, ou seja no falar» (Feijó, 1739: 5). Cada região contribui para introduzir no sistema dificuldades de representação, que obrigam a soluções arbitradas, ou por um uso dominante, ou por uma neutralidade analógica com o latim.

Anota-se com especial pormenor a pronúncia das sibilantes na zona de Lisboa, onde se anulavam as diferenças de pronúncia dos grafemas ç/s e x/ch. Em outras zonas do país, especialmente no Norte interior, correspondiam a sons distintos. Os lisboetas incorriam por isso em muitos «erros» ortográficos, por substituírem ch por x em palavras como chave ou chuva, e por substituírem o ç inicial por s em palavras que de acordo com a pronúncia se deveriam

escrever çanefa, çapata, çapal, çapato, çapatear, çapateiro, çarça, çargaço. Leite de Vasconcelos anotou a folha de guarda do seu exemplar da edição

de 1739, destacando as informações sobre a diferença na pronúncia das sibilantes em Lisboa. «Já era como hoje», resume. À época de Feijó a pronúncia da corte começou a modelar irrevogavelmente a norma ortográfica. Bluteau, que era francês e aprendeu tardiamente o português em Lisboa, não percebe estas

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distinções e no seu dicionário decide escrever com s todas as palavras que por hábito muitos ainda escreviam com ç inicial. Noutros casos, ç/s e ch/x adquirem o estatuto de convenção ortográfica que tem de ser memorizada. A valorização do registo oral da capital exige este apagamento. Feijó, que tem da escrita uma perspetiva integradora das diversidades, não aceita que o sistema tenha de ceder a este traço específico do registo de Lisboa.

O doutíssimo Bluteau diz, que por evitar a variedade que achou no uso do Ç e do S, as reduziu todas à classe do S. E eu digo, que desta classe só podem ser bons discípulos os Interamnenses, que por vício pátrio afetam sempre a pronunciação do S, e dizem Cabesa, Sima, Simalha, etc. (Feijó, 1739: 47)

[E] só os oriundos de Lisboa a equivocam tanto com o X, que a cada palavra trocam uma por outra, porque não só pronunciam, mas também escrevem Xave, Xeminé, Xina, Xóve, Xuva. E a alguns ouvi, que lhe era tão dificultosa a pronunciação do Ch, que achando-o escrito, o pronunciam como X; e pelo contrário, onde acham X, o pronunciam como Ch. (Feijó, 1739: 52-53)

Esta descrição e as consequentes opções ortográficas vão ser repetidas em

todas as edições e encontramo-las ainda na 10.ª edição, de 1824. Esta reconhecida invariabilidade concedeu ao manual de Feijó o estatuto de autoridade, pouco abalada pelo facto de os dicionários que entretanto se iam publicando seguirem as grafias fixadas por Bluteau.

O ensino e os manuais dos jesuítas foram proibidos em 1759, mas a Ortographia de Feijó continuou a ser usada e terão existido impressões clandestinas que imitavam a edição de 1734, tal era a procura.

Em 1767, o Compendio de orthografia de Luís do Monte Carmelo (1715-1785) procurou ocupar o espaço de Feijó, mas não foi aceite. Era uma obra prescritiva, que admitia um grau de variação muito menor e sancionava as diversidades regionais como erros inequívocos. Logo na folha de rosto prometia regras «para que em todas as províncias e domínios de Portugal possam os curiosos compreender a [...] reta pronunciação» e uma lista dos «abusos da plebe», «os quais sempre se devem corrigir, ou evitar». Leite de Vasconcelos percorreu o volume para identificar as informações dialetais contidas nesta descrição meticulosa dos erros:

A plebe interamnense e trasmontana deve corrigir em comum a última sílaba om do antiquíssimo dialeto português, e dizer am no final dos vocábulos do número singular e dos verbos [...] A plebe da Beira deve corrigir muitos defeitos dos referidos no número precedente, porque também diz v.g. Aiarca, etc. Nom em lugar de Nam; Travalhar, Travalho, Travalhosa, etc. [...]. Não deve pronunciar

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sempre o ditongo ou, como oi [...] A plebe da Estremadura e Alentejo [...] não troque a sílaba Car em Cra, porque diz v.g. Carpinteiro, Cravalho, Cravâm, etc. [...] Estes são os vícios quase gerais nas províncias destes reinos, os quais a plebe contrai pela comunicação, ou ignorância, e incúria de pais e mestres. [...] Aqui também escreverei muitos vocábulos, que se ouvem entre o vulgo, quero dizer, entre pessoas graves, ainda que menos instruídas, para que o curioso leitor os passa evitar em cultas conversações, ou escritos. (Monte Carmelo, 1767: 500-502)

A arbitragem conciliadora foi substituída por uma distinção social,

anotando e reprovando os usos da plebe e vulgares. O seu dicionário dava entrada às formas erradas, seguindo-se a correção, o que o tornava um instrumento pouco prático para o esclarecimento de dúvidas. Leite de Vasconcelos, que encontra na linguagem popular «vocábulos e frases graciosas e expressivas», vê neste dicionário prescritivo um exemplo de preconceito linguístico. Na folha de guarda do seu exemplar do Compendio, Leite anotou:

Este Autor toma para tipo a pronúncia da capital — cf. passim. Ver que manda pronunciar abêlha (146), botêlho (179), etc. O Autor não faz ideia do que é a vida natural da linguagem (Em todo o caso cf. p. 421.) e sujeita tudo à autoridade gramatical, condenando a cada passo (como se pode ver nas listas) vocábulos e frases graciosas e expressivas, e substituindo palavras por outras que não sei em que se lhe avantajam, como por ex. fueiro por estadulho (p. 626). Em todo o caso tem o merecimento de haver reunido muitos factos importantes, de haver mesmo até certo ponto caracterizado os dialetos (vid. p. 500), posto que com um fim diverso daquele que a dialetologia moderna teria em vista, de dar alguma etimologia acertada, como bôda (112), Santiago (28), você (483), Santins (693), S. Gião (693), etc., de fazer uma divisão da história das línguas na p. 421. Além disso merece que o considerem, porque trabalhou e esforçou-se por ser útil ao país. Ele conhecia muito bem a linguagem popular, e mesmo a arcaica. Parece ter particularmente em vista a língua do Norte. Será do Norte? Nas regras de pronúncia mostra-se porém influenciado pela pronúncia do Sul, que é a que ele impõe, em regra.

Inocêncio informa que Luís do Monte Carmelo é de Vieira do Minho

(Inocêncio Silva, 1860: V, 309), o que explica o meticuloso confronto entre o dialeto de Lisboa — a que os demais se subordinam — e as memórias das características lexicais e fonológicas da região de onde era originário. Ainda assim, o conhecimento da fonologia da zona sul é comprovado em frequentes observações de «desvios»: maréi, macêra, lenhêro, dei (= dê), fei (= fé), mantêga, Mosés, noues, oilá, péi, peis, pixinho, roxinol... Leite percorreu as observações dialetais dispersas, elaborando um índice remissivo nas folhas de guarda do seu exemplar. Interessa-se pela localização de testemunhos lexicais, agrupando as notícias que Monte Carmelo deu sobre o «dialeto geral» e

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particularidades dos dialetos do Norte, Interamnense, Beiras, Estremadura, Alentejo e Sul. Estas formas são integradas na diacronia da evolução da palavra, não como desvios populares, mas como testemunhos de estádios anteriores ou formas divergentes.

Os dicionários ortográficos identificam formas erradas, mas não dão conta de todas as formas certas. Admite-se mais de uma grafia, desde que não contrarie a etimologia. Por exemplo, admitir ou admittir (esta mais cultivada, evocando o latim admitto), mas não ademitir.

O espaço para esta diversidade não é claro no ensino da escrita portuguesa. Nos manuais didáticos os autores refletem os seus usos particulares, autorizados pelo facto de normalmente serem professores em exercício. A aprendizagem de variantes ortográficas pode ser entendida como um caminho progressivo, em que o escrevente evolui no reconhecimento de relações etimológicas e no contacto com modelos literários merecedores de imitação. Uma escrita certa pode ser ainda mais correta.

Na biblioteca de Leite de Vasconcelos, a coleção de gramáticas e manuais didáticos é extensa. São textos prescritivos, sem testemunhos originais para a história da língua e talvez por isso não motivaram apontamentos de leitura. O confronto entre os manuais revela que a duplicação de consoantes é um dos traços mais difíceis de ensinar. Cada autor adapta as regras aos diversos públicos e a diferentes estádios de conhecimento da língua latina. Para Bernardo Gaio (1738), apenas é necessário dar regras práticas para as palavras sem etimologia clara, que duplicam por analogia; Francisco Sotomaior (1783) manda simplesmente que se siga a etimologia, sem a esclarecer; Pinheiro Feire da Cunha (1788) reconhece que algumas grafias duplas são preferidas pelos doutos e que podem ser substituídas pelas simples; Francisco Cardoso (1790) admite a simplificação nos casos em que os vínculos etimológicos já são claros.

A diferença entre manuais é mais notória a partir do século XIX, sinal da diversificação do público e dos percursos de aprendizagem. Publicam-se manuais breves, desprovidos de regras complexas e que incidem sobre vocabulário fundamental. Citando apenas as obras que constam sumária antologia de textos ortográficos (cf. 4), o manual Noções sobre a ortografia (1807) mantém os elementos etimologizantes, mas as regras não invocam o conhecimento do latim; Luís Gonçalves Coutinho (1814) simplifica as regras e

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apenas ensina um conjunto de palavras frequentes; Joaquim Ventura da Silva (1834) multiplica as regras, mas não as fundamenta na etimologia; João António Dias (1853) reconhece que não há regras fixas, apenas usos, mas que há critérios de acento que permitem identificar as palavras a representar com duplicação de consoantes.

Os manuais pensados exclusivamente para o uso nos liceus, como o de José Tavares de Macedo (1861), mantêm as referências ao latim e ao grego. Para o público geral, Gaspar Álvares Marques apresenta um dicionário ortográfico, de fácil consulta e pouca teorização introdutória9.

9 Gaspar Álvares Marques, Vocabulario orthographico da lingua portugueza ou methodo seguro de escrever correctamente todas as palavras do nosso idioma. Lisboa: Typographia Universal, 1687.

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2. O linguista e as reformas ortográficas

A diversidade de autoridades e usos, expressa em manuais didáticos, dicionários e textos impressos, era por muitos justificada com a falta de um instrumento que fosse consensualmente reconhecido como um padrão de referência. Em outras línguas europeias, um movimento consistente de normalização ocorreu após a publicação de dicionários académicos, de que são exemplos o Vocabolario degli accademici della Crusca (1623, 1691) e o Dictionnaire de l’Académie Françoise (1694). O dicionário da Academia Real das Ciências começou a ser publicado em 1793, mas só saiu o volume relativo à letra A. Ao longo do século XIX espera-se da Academia uma resolução orientadora em matéria ortográfica. Escreve António Vaz Velho em 1856:

[J]amais se atreveria Escritor algum a alterar as palavras, pelas quais ela publicasse a sua opinião sobre a definição de Ortografia [...] Há muitos anos que lamentamos esta falta, para evitar a perplexidade da escolha, de qual delas seja a melhor, em que os Mestres se acham para ensinar aos seus discípulos (Velho, 1856: 15-16).

Para a Academia, a uniformização ortográfica e a redação do dicionário

eram funções intrinsecamente relacionadas, mas que se impediram mutuamente. O plano de retomar a edição do dicionário centra-se na figura de José Maria Latino Coelho (1825-1891), secretário perpétuo da Academia, que a partir de 1870 coordena a comissão de redação. Engenheiro militar, professor de mineralogia e geologia, autor de biografias e trabalhos de índole historiográfica, Latino Coelho não apresentou uma síntese do sistema ortográfico que pretendia aplicar no dicionário, motivando as críticas de Cândido de Figueiredo, que lhe aponta as incoerências na adoção de formas ora etimológicas, ora simplificadas. Apesar do paradoxo bem notado por Figueiredo — «debalde se recomendará o uso dos doutos, que não passa de uma frase académica, visto que em Portugal não há três doutos que escrevam da mesma maneira» (Figueiredo, 1887: 5) —, cabe à Academia analisar as propostas de reforma que vão sendo publicamente apresentadas e submetidas à consideração dos académicos.

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Barbosa Leão e a Comissão do Porto são os proponentes mais ativos, defendendo o acerto da escrita pela pronúncia. A resposta da Academia, em 1879, denuncia a falta de sustentação teórica das ortografias «sónicas», mas não explicam como poderiam os próprios académicos definir uma ortografia etimológica uniforme. Percebe-se a necessidade de uma extensa reflexão lexical e prosódica que a comissão do dicionário não tem condições para realizar ou, pelo menos, desejo de patrocinar. O progresso dos estudos linguísticos traz simultaneamente uma abundância de dados e de problemas que Latino Coelho nunca resolveria.

Em 1887 constitui-se uma comissão para dar parecer acerca da ortografia do dicionário, presidida por Jaime Moniz. Cândido Figueiredo volta a contestar a ascendência de Latino Coelho, que defendia um pendor etimológico pouco criterioso. 2.1. O escrutínio científico das simplificações ortográficas

O primeiro movimento reformador com expressão surge no último quartel do século, com diferentes propostas de ortografias simplificadas, que para facilitar a aprendizagem da população analfabeta pretendem aproximar a escrita e a pronúncia. José Barbosa Leão (1818-1888) é o primeiro dos arautos desta corrente antietimológica. Leão nasceu em Paredes, Trás-os-Montes. Como Leite, concluiu a Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Seguiu a carreira militar, foi deputado, redator e diretor de vários jornais regionais. Passou os últimos anos da vida no Porto, dedicado a trabalhos sobre a língua. Em 1875 publicou, anónimo, o opúsculo Considerações sobre a orthographia portugueza 10 . Baseou-se na observação empírica para elaborar um inventário dos sons do português e propor um sistema que representasse a linguagem falada. De complexa implementação, a reforma faria refletir na escrita as variações regionais, criava grafemas novos e alterava os diversos valores dos existentes.

O opúsculo foi enviado à Academia das Ciências, repartições públicas e estabelecimentos de ensino, sem suscitar adesão. Em maio de 1877 constitui-se a Comissão do Porto, que elabora um Parecer (Leão é o relator) e o apresenta à

10 [José Barbosa Leão], Considerações sobre a orthographia portugueza. Porto : Typ. de António José da Silva Teixeira, 1875.

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Academia das Ciências 11 . A rejeição é confirmada em fevereiro de 1879, apontando as incoerências: «Daqui se tornam manifestos, evidentes, os erros que haveriam de seguir-se de levantar como regra e cânon de toda a fé em matéria de ortografia a pronúncia dos vocábulos, qual se afigura ao ouvido e parecer individual. E daqui podemos inferir um seguro fundamento para averbar de suspeição um sistema de ortografia, baseado unicamente na absoluta concordância, entre o som articulado e o caracter que o deve representar. »12

Leão continuou a publicar artigos em jornais e, em 1886, a obra Elementos de gramática portugueza, em que exemplifica a ortografia sónica. É num exemplar desta gramática, oferta do autor ao «ilustre colega» Leite de Vasconcelos, que se encontra um esboço de uma recensão do trabalho de Barbosa Leão. Os apontamentos marginais incidem sobre opções ortográficas que Leite julga inaceitáveis, na medida em que resultavam de um conhecimento parcial sobre a variedade da língua portuguesa. As incoerências e arbitrariedades de um sistema que reclamava a fidelidade à pronúncia «mais geral e racional» (p. 124) eram óbvias para Leite.

Demonstrando que Barbosa Leão esquecia propositadamente algumas variações regionais para simplificar o sistema ortográfico, argumentando que usos minoritários não devem ser representados, antes deve ser a pronúncia corrigida.

O gramático não tem direito de legislar. A sua língua é um facto natural ou histórico, que se deve aceitar como tal. Que vem a ser pronúncia racional e irracional (p. 124)? O facto fundamental é partir disto: de que entre nós não há uma língua (como por ex. em França, ou em Itália) que seja propriamente literária, sendo as outras dialetos; mas que todas as linguagens concorrem mais ou menos para formar a língua literária. O bom senso está em apurar o que deve considerar-se literário e o que deve considerar-se popular, e tomar independentes as duas ordens de linguagens; mas, assim como a língua literária é um meio termo da língua popular, assim a ortografia deve representar tanto quanto possível a pronuncia popular. Para quê banir o ch, se todo o Norte e Centro do reino o pronuncia em vez do x do Sul? Para que banir o ç, se em Trás-os-Montes (N.) e parece que no Minho, distinguem o ç do s? [anotação manuscrita na folha de rosto]

11 Reproduzido em Parecer apresentado á Academia real das sciencias de Lisboa sobre a reforma orthographica proposta pela commissão da cidade do Porto, Lisboa: Typographia da Academia, 1879. 12 Adeclaração é assinada por M. Pinheiro Chagas, A. M. Couto Monteiro e J. M. Latino Coelho (relator) e está citada em Parecer apresentado á Academia real das sciencias de Lisboa sobre a reforma orthographica proposta pela commissão da cidade do Porto, Lisboa: Typographia da Academia, 1879, p. 15.

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Com efeito não á razão satisfatória, para se escrever e quem tem de pronunciar-se i, nem para escrever o que tem de pronunciar-se u. [p. X]

— Tão mal é escrever moer como muer (pois em ambos os casos se diz mŭer)

Se todos dizem por ezenplo cápa cáza bála, não á razão para que não digão cáma cána bánha. Se por ezenplo todos no pretérito perfeito do indicativo dizem amámos, não á razão para que não digão tanbem no prezente dámos, e no do conjuntivo comámos partámos ponhámos. [p. 77]

— Não na Beira, que também são gente

não se conprende o ditongo ai de paiol, nem que a palavra réi tenha o som de ai, — o seu ditongo é igual ao de jeleia, como ao de coreio cadeia amarei. [p. 96]

— Se Leão desconhece, e despreza, a fonética provincial para que se mete a julgar?

É verdade que, ao paso que todos escrévem mui, muito, muitísimo, a maiór parte pronuncia como nazal o ditongo que na escrita aprezenta como oral; mas tanbem é verdade, que se não póde justificar uma pronúncia, que obrigaria a termos um ditongo especial para trez palavras, e que não á razão nenhuma para, p. e., não pronunciemos mui e muito, como pronunciamos fui, intuito e fortuito. [p. 97]

— Então havemos de reformar a natureza? Que não diria o Sr. Leão se soubesse que em Trás-os-Montes se pronuncia múi e múito sem nasal?

Numa avaliação geral, registada na p. 74, Leite conclui que é uma

reprodução da tradição gramatical convencional, agravada pelos erros da descrição fonológica desinformada: «Na sintaxe é deficientíssimo; limita-se quasi que a generalidades, sem expor o corpo da língua: isto prova que o

Não se enpréga a letra e a representar o ditongo ei; enpréga-se este. Escréve-se: ideia, plateia; seisto, teisto; eiceder, eicitar, etc. [p. IX]

— É uma adoção a capricho. Na Beira diz-se idâia, no Alentejo diz-se idêa.

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Sr. Leão não fez uma análise profunda do pensamento português. De mais a mais o que se aqui encontra, aparece noutras gramáticas anteriores. Não há pois novidade. Na morfologia desconhece a gramática histórica.» Sem uma descrição fonológica e dialetal rigorosas, o sistema ortográfico proposto era inaceitável: «Falta-lhe pois o espírito científico moderno, como já disse o Abreu: de que modo há de vir pois reformar a ortografia de uma língua? Que autoridade merece?»

Nos apontamentos encontramos uma síntese do pensamento ortográfico de Leite de Vasconcelos, coerente com a posição que vem a defender na comissão de 1911: deve manter-se a tradição ortográfica, que interage com a memória textual impressa (a «língua literária») e não pode ser ignorada. No caso português, esse padrão literário seguiu a pronúncia meridional. Não pretende alterar o caráter convencional da representação gráfica, salvaguardando a possibilidade de as diferentes variedades regionais se reverem na mesma grafia. Esse princípio recomenda que a ortografia geral tenha o menor número possível de elementos de notação prosódica, que por isso condicionem a leitura.

No estudo de uma reforma da nossa ortografia, devem dominar estes três princípios: o da tradição, o da fonética dos diversos pontos do país, — e dominando tudo, as leis da glotologia. Ora o Sr. Leão desprezou estes princípios, e guiou-se apenas pelo seu ouvido e pelo seu gosto. Assim desconhece as pronúncias do s, do e, das vogais intermedias (a que ele chama infinitésimas), etc.; e, ao passo que, por exemplo, escolhe para nóme, a pronúncia do Baixo-Douro, escolhe para concêlho a pronúncia da Beira, e despreza -eilho do Porto, -âlho de Lisboa, -ômo ou -ŭômo etc. Ora, escrevendo por exemplo concelho sem acento, os do Sul pronunciam -âlho, os do Porto -éilho, os da Beira -êlho; e assim respeita-se a tradição e a fonética provincial. Uma ortografia regrada e seguida é possível em países onde há uma língua literária fortemente acentuada, como a Itália, a Alemanha etc.; mas ainda assim, não se cuide que há uma fonética literária: os de Berlim pronunciam de um modo, e os de outra parte, doutro essas mesmas palavras. Ora em Portugal, a língua portuguesa literária formou-se assim - - - - [parece ter predominado na ortografia a pronúncia do Centro do reino]. Na sintaxe é deficientíssimo; limita-se quasi que a generalidades, sem expor o corpo da língua: isto prova que o Sr. Leão não fez uma análise profunda do pensamento português. De mais a mais o que se aqui encontra, aparece noutras gramáticas anteriores. Não há pois novidade. Na morfologia desconhece a gramática histórica (ex. na explicação do pelo, ama-lo, etc. p. 7; p. 10 (erro de concordância); p. 20; p. 59; p. 37; p. 47; p. 59. Na fonética: de p. VII-8; p. 72 sg. Velha divisão nas quatro partes da gramática; refutar a parte ortográfica, e mostrar qual é o sentido da etimologia.

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Nos anos seguintes, outros autores continuam a defender a implantação de sistemas sónicos. António Moniz Barreto Corte Real (1804-1888), reitor do liceu de Angra do Heroísmo, propõe, em 1877, uma reforma sem teorização congruente, mas que exemplifica numa transcrição de Os Lusíadas: «Qe eu qantu u peitu ilustre luzitanu / A qem Netunu i Marte ubedeçerãu» (Corte Real, 1877: 5).

João Félix Pereira (1822-1891), seguindo Barbosa Leão, reúne no Vocabulario Sonico... (1888) a representação gráfica para mais de 6 mil palavras segundo as regras da ortografia fonética. 2.2. Dos estudos fonológicos à unificação da escrita

Os filólogos Aniceto dos Reis Gonçalves Viana (1840-1914) e Guilherme Vasconcelos Abreu (1842-1907) estabelecem em 1885 uma ortografia reformada para aplicar na edição da Enciclopédia de ciência, arte e literatura. A justificação das suas opções surge no opúsculo Bases da ortografia portuguesa, do mesmo ano. A denominação ortografia portuguesa distancia-os das discussões sectárias entre defensores da escrita etimológica e os que propunham a escrita alinhada pela oralidade. Apoiados num sólido conhecimento de linguística histórica e na investigação fonológica de Gonçalves Viana, os autores propõem um sistema simplificado que mantém a memória da escrita enquanto elemento unificador, adaptando-a ao material sonoro da língua: eliminam os dígrafos etimológicos ch, ph, rh, th, substituem y por i, simplificam as consoantes duplas exceto rr e ss, eliminam consoantes mudas quando não pronunciadas e aumentam as aplicações da acentuação gráfica.

As situações não contempladas nas Bases seriam discutidas num congresso, que nunca chegou a ser convocado. A proposta não suscitou qualquer interesse oficial nos anos seguintes, mas Gonçalves Viana continuou a dedicar-se ao estudo de ortografia.

As instituições oficiais evitam pronunciar-se sobre a questão ortográfica. Apenas em 1897, devido à interferência das propostas de reforma no sistema de ensino, há uma referência explícita à ortografia oficial, que o legislador identifica com a «usual» — o que na prática apenas significa a recusa de reformas. Cita-se a portaria, com a ortografia original:

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Direcção geral de instrucção publica 3.ª Repartição Constando que por meio dos livros e textos destinados ao ensino se procura n'alguns estabelecimentos de instrucção publica introduzir e impor arbitrariamente, sem consulta nem auctorisação competente, systemas ou reformas de orthographia e até de prosódia portugueza e latina, e que, independentemente das rasões doutrinarias que possam fundamentar taes innovações, a propria carência de regular verificação e adopção d'ellas e os processos por que pretendem fazer-se adoptar podem produzir, e estão já produzindo, graves perturbações e embaraços á regularidade e até á boa disciplina académica: ha por bem Sua Magestade El-Rei mandar declarar ao reitor da universidade de Coimbra e aos directores das mais escolas superiores, bem como aos reitores dos lyceus e commissarios de estudos, que não podem ser permittidas e devem ser cohibidas taes innovações ou reformas no ensino official, sem prévio exame, consulta ou auctorisação das estações competentes, que o governo se reserva ouvir quando e como tenha por conveniente. Outrosim manda o mesmo augusto senhor declarar ao administrador da imprensa nacional e aos chefes das mais officinas typographicas do estado, que na composição de quasquer livros ou textos em portuguez ou latim, que n'essas officinas se fizer com o destino ao ensino publico, devem conservar e manter a orthographia usual, com inteira exclusão de qualquer systema não regularmente adoptado e reconhecido. Paço, em 20 de setembro de 1897. José Luciano de Castro. (Portaria de 24 de Setembro de 1897).

Cândido de Figueiredo, numa sessão da Academia, recorda a falta de

fundamentação teórica do regulamento de 1987: «Já o finado estadista José Luciano de Castro subscrevera uma portaria, que provavelmente não leu, e que era, realmente, de responsabilidade dum diretor geral, muito laborioso e muito honesto, mas escassamente esclarecido em assuntos de linguagem portuguesa» (Figueiredo, Actas das Assembleas Gerais, V, 1923, sessão 6-1-1916: 16)

Em 1900, o sócio correspondente Gonçalves Viana apresenta à Academia das Ciências a Proposta de um questionário para se formularem as regras de ortografia portuguesa. São 115 perguntas que procuram estabelecer consensos sobre as orientações que a reforma deveria seguir. Os académicos não colaboram na discussão; em 1901 vence a opinião de que se deve manter a ortografia usual. Cândido de Figueiredo recorda essas sessões:

[F]ormou-se nesta Academia outra comissão, incumbida de resolver a questão ortográfica, para o efeito do Dicionário e para uso académico. Lembro-me de que faziam parte dessa comissão Silveira da Mota, Sousa Monteiro, Gonçalves Viana, eu, e não sei quem mais. Logo na primeira ou segunda e última sessão se mostrou que nada de aproveitável dali saisria. Sousa Monteiro, homem de larga cultura literária e de ameno trato nas suas relações particulares, mas tradicionalista dogmático, imperativo, e cordialmente desafeiçoado a filologias e filólogos, era irredutivelmente incompatível com a rigorosa orientação científica de Gonçalves Viana, e com a nítida compreensão, que este tinha, dos verdadeiros interesses da

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língua pátria. Os dois talentosos antagonistas, exaltando-se, desceram um pouco abaixo de si próprios, trocaram expressões pouco... literárias, e a Comissão morreu à nascença, sem deixar saudades a ninguém. Vê-se portanto que a nossa Academia nada pôde fazer, para travar a marcha doida da anarquia, que avassalava e enodoava a escrita portuguesa. (Actas das Assembleas Gerais, V, 1923, sessão 6-1-1916: 13)

O questionário ortográfico foi distribuído aos sócios da Academia,

impresso com a ortografia definida por Gonçalves Viana e com espaço para registarem as respostas. Leite conservou um exemplar anotado, onde não se encontram respostas a todas as questões, mas há comentários que comprovam uma leitura meticulosa.

As primeiras perguntas são afirmações que enquadram a justificação histórica e teórica da reforma e que demonstram a falta de uniformidade, normalização e autoridade de qualquer uma das opções ortográficas em uso, sejam as do Diário do Governo ou a das edições dos autores literários contemporâneos. As respostas de Leite são as esperadas: não existe ortografia oficial, nunca existiu ortografia uniforme «rigorosa», os gramáticos e ortografias não oferecem modelos concordantes. Quanto à possibilidade de admitir uma norma fundada no uso de autores clássicos ou no dos «doutos», as respostas de Leite indicam a perceção de uma maior variação na época sua contemporânea: É uniforme a ortografia dos clássicos portugueses deste século, ou dos anteriores?

Neste século não. Nos anteriores, rigorosa, não.

Há suficiente uniformidade na ortografia dos doutos?

Na de alguns há.

A resposta é sibilina. Leite decerto encontra uma uniformidade na sua

escrita pessoal, mas não há legitimidade para transformar em norma geral o seu uso, ou o de qualquer outro académico. Essa mesma arbitrariedade não confere autoridade à variedade ortográfica presente em documentos do Estado ou às publicações da Imprensa Nacional. A conclusão pretendida é a necessidade de reformar a ortografia e uniformizá-la, o que é substancialmente diferente de selecionar para padrão um qualquer uso prestigiado em vigor, seja ele douto, oficial ou clássico.

As questões seguintes relacionam-se com a orientação teórica da reforma. Após uma pergunta aparentemente pacífica como «é, ou não, conveniente

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simplificar a ortografia portuguesa» (questão 17), enunciam-se outros postulados do programa de simplificação do uso dos grafemas alfabéticos: «é, ou não conveniente que dependa a ortografia portuguesa somente do conhecimento desta língua, estudada historicamente, sem dependência do conhecimento de outras?» (questão 19) e «Sendo na maioria dos vocábulos portugueses a sua escrita de maneira que todas as letras neles se proferem com os seus valores alfabéticos, convirá sujeitar os restantes à mesma simplicidade lógica?» (questão 20).

A simplificação pretendida não é uma redução do número de regras ortográficas, é uma simplificação da escrita eliminando os grafemas que tinha um uso enraizado, justificado pela memória etimológica das palavras, mas que duplicava o valor de outros grafemas já existentes.

Quando os vínculos etimológicos não podem ser congruentemente aplicados, Gonçalves Viana sugere uma simplificação do sistema: «No caso contrário, que leis e regras sem exceção determinarão o emprego desses vestígios etimológicos, inúteis para a leitura?» (questão 29). Os Académicos preferem nesses casos manter o uso tradicional e Leite também parece adepto da conservação de hábitos enraizados. Convirá manter o h inicial de sílaba, e em que circunstâncias? (questão 31)

[risca sílaba, emendando] palavra, quando etimológico e tradicional

A representação das sibilantes é o aspeto em que a tradição era mais

frequentemente invocada para justificar relações etimológicas pouco transparentes. Nas perguntas 46 a 50 Gonçalves Viana ilustra a complexidade de um sistema etimológico e não avança tentativas de uma simplificação inovadora: Convirá manter s entre duas vogais, com o valor de consoante sonora, casa a par de azeite, e ss e ç mediais, passo e paço; s e ç iniciais, sala e çarça? No caso afirmativo como se regulará o emprego destes diferentes símbolos, tendo-se em vista a origem deles? (questão 47)

As respostas de Leite parecem coincidir com a solução acordada em 1911.

Deve manter-se a diferenciação entre s, ç e z, exceto em posição inicial, em que

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o ç é abolido. Em posição final, em casos como simplez/simples, portuguez/português, propõe uma generalização do s. Uma concessão aos hábitos de escrita e aos vínculos etimológicos é a manutenção de sc (sciencia). No que respeita às vogais, as preferências registadas nas anotações marginais coincidem a feição que prevalecerá: Convirá, para regular a ortografia portuguesa, que as subjuntivas dos ditongos orais se escrevam sempre com i, u: pai ou pae? pao ou pau? (questão 51)

ai oi oral etc. por causa do medial painel, bairro, pai, quintais, ai!

mas: mãe, pões, exceto em mũito

[pau] com u

Leite concorda com as premissas de Gonçalves Viana que fundamentam

uma configuração própria da ortografia portuguesa, evitando elementos que obrigam ao conhecimento de outras línguas e consequentemente alteram o valor dos grafemas (por exemplo, escrevendo porte-moné e não porte monnaie). É uma visão estratégica para a fixação de um padrão insensível às variedades ultramarinas e brasileiras, que passa por, nas palavras de Gonçalves Viana, «banir as feições estrangeiradas ou caprichosas dos vocábulos peregrinos aportuguesados» (questão 93), «dar feição totalmente portuguesa aos nomes próprios, locais ou pessoais, das nossas possessões» (questão 94) e «empregar a ortografia portuguesa regularizada na escrita das línguas faladas nas nossas colónias, acrescentando-se os símbolos indispensáveis ao alfabeto» (questão 95).

Em 1901 conceito de ortografia usual foi confirmado pelo Governo. A definição continua a ser equívoca e legitimadora da variedade individual, mas é suficiente para impedir que as instituições adotem sistemas reformados que não se encontram representados em dicionários.

Tendo-se apresentado algumas duvidas de interpretação da portaria de 20 de setembro de 1897; e sendo, por isso, conveniente esclarece-la para seu inteiro cumprimento: manda Sua Magestade a Rainha, Regente em nome de El-Rei, que, pela Secretaria d'Estado dos Negócios do Reino, se declare o seguinte: define-se orthographia usual a que está exarada nos mais auctorizados diccionarios contemporâneos da lingua portuguesa e tem sido usada pelos nossos principaes auctores clássicos modernos. Os auctores que não se conformarem com esta orthographia, assim o podem declarar, sendo-lhes permittido discutir em notas succintas a orthographia que preferem. Paço, em 1 de fevereiro de 1901. Ernesto Rudolpho Hintze Ribeiro. (Portaria de 1 de Fevereiro 1901).

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Apesar da renitência da Academia, nos anos seguintes Gonçalves Viana

completa os trabalhos que comprovam a coerência do seu programa. Em 1904 publica a Ortografia Nacional: simplificação e unificação das ortografias portuguesas. Uma das conclusões: «Todas as pronunciações lejítimas devem ser representadas na ortografia comum, para que a língua escrita seja uma só» (Viana, 1904: 287). Em 1909 conclui o Vocabulário ortográfico e ortoépico da língua portuguesa, o derradeiro instrumento de consulta para o sistema ser geralmente adotado.

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3. A escrita do Estado e das instituições: a reforma de 1911

O movimento reformador do governo provisório republicano inicia um amplo programa de intervenções no sistema de ensino e na administração pública. Era o momento propício para uma normalização ortográfica decretada pelo Estado e o pretexto para uma ação legislativa surge a pedido da Imprensa Nacional. Em 17 de dezembro de 1910, José António Dias Coelho, chefe do serviço de revisão, dirige-se ao administrador geral, Luís Derouet, queixando-se da diversidade de grafias dos autores, «umas discutíveis, outras porém grosseiras e vergonhosas» que colocavam dificuldades de uniformização. Sugere que futuramente se tome por norma a Ortografia Nacional de Gonçalves Viana: «Essa obra tem o aplauso de todos os que modernamente se tem dedicado ao estudo profundo da ciência da linguagem; e a ortografia simplificada defendida naquele livro é já seguida por grande número de professores e escritores de valor, e adotada em muitos livros escolares, revistas etc.» (cit. in Bases, 1911: 3-4).

Em 14 de janeiro de 1911, Derouet escreve ao diretor-geral da Instrução Secundária e Superior, secundando a proposta. Em 15 de fevereiro de 1911, António José de Almeida, ministro do governo provisório, nomeia uma comissão encarregada de fixar as bases da ortografia para as escolas e documentos oficiais, bem como de estabelecer um vocabulário de palavras que suscitem dúvidas na escrita.

A comissão inicialmente é composta por Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos, Francisco Adolfo Coelho (1847-1919), Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925) e António Cândido de Figueiredo (1846-1925). Na primeira reunião, em 15 de março de 1911, decidem agregar à comissão José Joaquim Nunes (1859-1932), Júlio Moreira (1854-1911), Manuel Borges Grainha (1862-1925), António José Gonçalves Guimarães (1850-1919) e António Garcia Ribeiro de Vasconcelos (1860-1941). Epifânio Dias (1841-1916) é também convidado, mas declina.

A comissão procura representar a Academia, o ensino superior e liceal e a

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investigação, reconhecendo-se em alguns nomes a militância republicana. A seleção dos nomeados prometia algumas disfuncionalidades, considerando a história das relações pessoais e o facto de nem todos residirem em Lisboa.

A comissão é presidida por Adolfo Coelho, o primeiro professor de linguística geral do Curso Superior de Letras (1878). A pedagogia, o ensino da língua e o analfabetismo foram sempre objetos das suas publicações e intervenções sociais. Além das Conferências do Casino em 1871, concebeu manuais e gramáticas para o ensino liceal (A lingua portugueza. Noções de glottologia geral e especial portugueza (1881; 2.ª ed.: 1887; 3.ª ed.: 1897) e uma gramática pedagógica (Noções elementares..., 1891).

Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925) participa discretamente nos trabalhos. À época ainda não ensinava na Universidade e dedicava-se à edição de textos de literatura medieval e clássica e ao estudo da língua. Pouco interesse dedicava à língua contemporânea e já tinha adotado aos preceitos ortográficos de Gonçalves Viana desde a publicação da Ortografia Nacional.

António Cândido de Figueiredo (1846-1925) publicou numerosos textos de reflexão linguística, de orientação prescritiva. Envolvera-se numa polémica com Leite de Vasconcelos, que não lhe reconhecia rigor ou fundamentação científica. O público reconhecia-o como uma autoridade em língua portuguesa, pelas crónicas em jornais e pelo sucesso do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 1.ª ed. 1899.

José Joaquim Nunes (1859-1932), secretário da comissão, era professor de latim no Colégio Militar. Amigo pessoal de Leite de Vasconcelos e colaborador da revista Lusitana, investigava nos domínios da história da língua e gramática histórica.

António Garcia Ribeiro de Vasconcelos (1860-1941), professor da extinta Faculdade de Teologia, seria o diretor da Faculdade de Letras de Coimbra, instituída em abril de 1911. Foi um dos principais agentes da discussão sobre normalização ortográfica desencadeada na revista O Instituto 13.

13 Ribeiro de Vasconcelos dirigiu o volume 43 de O Instituto e decidiu estabelecer critérios ortográfico para a publicação dos textos. Propôs uma uniformização de orientação etimológica, mas que em todo o caso obrigaria à correção das ortografias particulares de cada autor. A imposição não foi bem recebida e a revista continuará a respeitar as variedades ortográficas dos contribuidores. A polémica ficou registada em A questão ortográfica e o Instituto de Coimbra: documentos e explicações (1896).

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Manuel Borges Grainha (1862-1925), professor de latim no ensino liceal e militante republicano, publicou uma série de trabalhos sobre reforma do ensino e analfabetismo: Instrução Primária, Secundária e Normal. Os Livros Escolares (1904); A Instrução Secundária de ambos os sexos no Estrangeiro e em Portugal (1905); O Analfabetismo em Portugal (1908) e Meios de Facilitar o Ensino das Primeiras Letras (1909)

Júlio Moreira (1854-1911), professor de línguas em colégios do Porto, publicou trabalhos dispersos sobre o léxico e sintaxe do português arcaico e registos populares, que começou a coligir em 1907 (Estudos da língua portuguesa, 1.º volume) e que Leite de Vasconcelos continuaria a publicar postumamente (2.º volume, 1913.)

António José Gonçalves Guimarães (1850-1919), reitor do Liceu Central de Coimbra, é autor de uma proposta de reforma ortográfica apresentada à Academia em 1903 (Algumas reflecsõis sobre a ortografia portuguesa, 1903).

A única proposta em discussão é a ortografia de Gonçalves Viana, que à partida recebia uma aceitação geral, mas suscitava renitências quanto à extensão da sua aplicação. Leite de Vasconcelos não deseja tomar partidos numa discussão em que as discordâncias podiam ser interpretadas como críticas ao proponente, como esclarece num testemunho de 1928:

Ainda a propósito de ortografia devo acrescentar que, conquanto eu fizesse parte da comissão, não concordo inteiramente com todas as suas conclusões; faço, por exemplo, uso do apóstrofo, pois julgo que o apóstrofo representa uma vantagem relativamente à ortografia de outros tempos mais remotos em que ele não se usava. Na comissão entravam os grandes filólogos Adolfo Coelho e Gonçalves Viana, com os quais, pelo génio exaltado de cada um, era impossível discutir de viva voz com serenidade. Ambos me tinham servido de guia em meus estudos filológicos, e eu respeitava-os muito para que devesse espedaçar armas a esgrimir com eles. Por isso, não tentei fazer prevalecer a minha modesta opinião. Demais a mais, os problemas ortográficos nunca me prenderam muito. Tenho tratado, ou ainda tenho de tratar, tantas cousas novas, que não é possível fixar-me por igual em todos os ramos da Filologia. (O Século de 10-III-28, in Vasconcelos, 1928: Aditamentos, pp. III-IV)

A comissão reúne-se semanalmente, discutindo as Bases e cada uma das 115 perguntas do Questionário. Em maio, já há notícia pública dos consensos e das concessões à proposta inicial de Viana, para evitar ruturas com hábitos enraizados. Mantém-se o h inicial, os grupos homofónicos je, ji, ge, gi e o x com o valor de cs. O Dia, 26-V-1911. Inclui uma anotação "G.V.", indicando que o

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texto é da responsabilidade de Gonçalves Viana. Os trabalhos concluem-se em 23 de agosto e o relatório é oficialmente

publicado em 12 de setembro, decretando a aplicação das novas regras em escolas e documentos oficiais, um prazo de três anos para a adaptação de manuais escolares e a rápida disponibilização de um vocabulário ortográfico a baixo preço. A comissão deverá manter-se em funções para esclarecer e resolver problemas suscitados pela reforma.

As anotações ao texto publicado das Bases para a unificação da ortografia confirmam que Leite discordou de algumas opiniões prevalecentes na Comissão. Terá acompanhado com algum distanciamento as discussões de pormenores técnicos, pois só após a aprovação do relatório apontou, no seu exemplar, incoerências na formulação de regras e seleção de exemplos.

Leite aprecia a preservação dos grafemas mudos etimológicos, mas parece-lhe ilógica a supressão do h, quando ocorre em casos homólogos aos que justificam a manutenção do c. Quando a uma qualquer palavra com h inicial, quando a etimologia o justifique, como em homem, humano, honra, hoje; mas abolido onde é erróneo, como em hontem, hir, hombro, que se escreverão ontem, ir, ombro. Quando a uma qualquer palavra com h inicial etimológico se acrescentar prefixo, superimir-se-á o h; ex: desumano, inumano, desonra, filarmónica, desistória, etc.

Porque não fica o h por analogia como na regra IX?

IX- Neste caso os vocábulos aparentados, em que essas vogais pertençam à sílaba predominante do vocábulo, conservarão, por analogia, a consoante muda; ex.; contracto, directo, excepto, adopto, caracterizar, recto, acto, em razão de activo, acção, etc.

As dúvidas de Leite incidem sobre descontinuidades que afetam a intenção

unificadora da reforma, na medida que trazem efeitos imprevistos no sistema ortográfico. Essa visão alargada do léxico e da fonologia está presente em objeções pontuais, onde adivinha problemas na correspondência dos grafemas.

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Nas Bases o grupo sc é caracterizado como um elemento etimológico com leitura equivalente a c, o que deixa em aberto a hipótese de uma leitura errada de palavras como discípulo. A grafia m em interior de palavra só é possível antes de b, p, m, alterando formas que até então tinham um uso enraizado e morfologicamente justificado, como Alemtejo, emquanto.

As analogias são especialmente escrutinadas, pois escondem incoerências fonológicas. Assim, à exceção que manda escrever recrear em face de criar, Leite acrescenta um imprevisto procrear; à analogia que prescreve desaguar como aguar, Leite responde desagoar, apontando uma evidência fonológica: «deve ser o contrário: com o, desagôa». XI. É conservado o grupo inicial sc, das seguintes palavras e seus derivados e afins, em que o s é mudo: scena, sciência, scetro, scéptico, scisma, scisão, sciático, scintilar, scelerado, e algum outro menos usual.

— e discípulo descender soa sc = xç

No Relatório destacam-se duas alterações essenciais que facilitam o

ensino da leitura e da escrita: a substituição de alguns dígrafos e grafemas etimológicos (como ph por f e y por i) e a simplificação de consoantes duplicadas. «Estas duas simplificações, sós por si, acabam definitivamente com dois dos maiores tropeços com que se encontra estorvada a escrita nacional, e que já poucos defensores conscienciosos, conscientes e autorizados lograrão obter» (Bases, 1911: 10-11). 3.1. A comissão do dicionário da Academia

Entretanto a Academia constitui uma comissão própria para definir a ortografia do dicionário, ao mesmo tempo que trata das condições para a sua redação. Leite de Vasconcelos, José Joaquim Nunes e Cândido de Figueiredo estão presentes em ambas as comissões; David Lopes é o relator. Os trabalhos propriamente ortográficos iniciam-se em março de 1911 e decorrem até 17 de fevereiro de 1916.

A atenção da comissão foi desde cedo desviada para um acordo que incluísse a Academia Brasileira de Letras, que se revelou demorado, complexo e equívoco. Em 8 de junho de 1911, João Lúcio de Azevedo (1855-1933) informa que o académico brasileiro José Veríssimo (1857-1916) declarou o interesse

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numa negociação entre as academias, aguardando-se um convite de Portugal para que a congénere brasileira participasse nos trabalhos.

O pedido apenas é discutido na sessão 4 de janeiro de 1912 e a comunicação do convite data de 17 de janeiro. A 21 de março concluem-se os trabalhos da comissão e em 18 de abril decide-se o envio do relatório para o Brasil. Na volta do correio, a 23 de maio, chega a notícia de que José Veríssimo foi nomeado delegado para as negociações, perguntando quando pode vir a Lisboa. Os académicos de Lisboa mandam dizer que será melhor esperar para depois das férias desse ano. Tão pouca urgência terá sido interpretada como um evidente e descortês desinteresse, pelo que os brasileiros preferiram nem replicar. A questão é retomada em 1914, com a apresentação de um relatório da comissão do dicionário, em que se recorda a falta de resposta da Academia Brasileira.

Leite de Vasconcelos aceitou a presidência da comissão do dicionário, se bem que a título quase honorário, pois não pretendia dedicar-lhe muito do seu precioso tempo. Essa tarefa devia caber a José Joaquim Nunes, e Leite oficiou junto do Governo para que lhe garantissem um pagamento correspondente ao trabalho regular de redator. Nunes é agregado à comissão do dicionário em 2 de julho de 1914 e inicia o trabalho de revisão dos verbetes. Após vários meses, o Governo comunica que, por questões regulamentares, apenas aceita fazer o pagamento mediante a apresentação das folhas impressas. A Academia reclama e é atendida, mas as condições para a publicação não estão asseguradas: «É bom que fique bem assente que, se a empresa da coordenação do dicionário não vai desde já por diante, é unicamente porque a Academia carece dos indispensáveis recursos para isso, e não por falta de elementos literários» (intervenção na sessão de 17 de junho de 1915, Academia das Ciências de Lisboa, Boletim da Segunda Classe, IX, 1916: 313.

Passou o tempo necessário para uma decisão da Academia Brasileira de Letras. Em novembro de 1915 e por iniciativa de José Júlio Silva Ramos (1853-1930), admite-se uma harmonização com a ortografia de Portugal.

Era a vez de a Academia de Lisboa apresentar soberanamente os critérios do seu dicionário, em que José Joaquim Nunes trabalhava há quase dois anos. A questão é suscitada na sessão de 6 de janeiro de 1916 e as conclusões da comissão são votadas no dia 11 de maio. As bases do dicionário coincidem em

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larga medida com as bases decretadas pelo Governo, mas o uso dos doutos, quando justificadamente discordante, continua salvaguardado pela seguinte moção, que é aprovada por unanimidade: «A Academia das Ciências de Lisboa não reconhece como errónea a ortografia geralmente seguida, anteriormente à que foi adotada pela portaria de 1 de Setembro de 1911» (sessão 11-5-1916, Actas das Assembleas Gerais, V, 1923: 52).

Mas a ortografia era o menor dos entraves para a conclusão do dicionário, que estaria longe de uma forma publicável. Cabe ao Governo, avisam os académicos, garantir os fundos para que a obra se complete. «Elaboradas as bases do Dicionário, demonstra a Academia a sua boa vontade em levar a cabo essa obra importantíssima. É certo que lhe faltam para isso recursos pecuniários; mas está convencido de que os poderes públicos porão termo a uma situação que tão pouco honra o país e, se assim não for, não ficará, em todo o caso, à Academia a responsabilidade do facto» (sessão 11-5-1916, Actas das Assembleas Gerais, V, 1923: 57). 3.2. Portugal e Brasil, reformas sem acordos

Na década de 70 também se apresentaram propostas de reforma no Brasil. Se em Portugal o objetivo era simplificar para facilitar a aprendizagem, no Brasil o desejo de uma distinção ortográfica expressa também a autonomia linguística e cultural.

Os primeiros trabalhos são imediatamente posteriores aos textos de Barbosa Leão e alinham pela corrente sónica. Numa seleção de textos publicados entre 1877 e 1879, encontram-se argumentos suportados pela diferença do som brasileiro. Francisco Antunes de Siqueira, no Estudo sobre a ortografia da lingua luzo-brazileira (1877), conclui: «A etimologia para falarmos e escrevermos a nosa linguagem he o som brazileiro, com que nos entendemos: e os sons adotados em nosa lingua (venhão d’onde vierem) he que devemos tirar as duvidas»14. José Jorge Paranhos da Silva, em O idioma do hodierno Portugal comparado com o do Brazil (1879), caracteriza as diferenças de vocalismo e consonantismo do Português Europeu e prescreve para o Português do Brasil grafias como atemosféra, adevogado, indiguinar. Miguel

14 Francisco Antunes de Siqueira, Estudo sobre a ortografia da lingua luzo-brazileira, Victoria : Typographia do Espirito-Santense, 1877, p.5.

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Carlos Correia de Lemos, influenciado por Comte, propõe a Ortografía pozitiva (1888), que define uma pronúncia brasileira geral e formas como cidadi, jeral, distribuissão15.

Em 1898, a Academia de Letras do Rio dirige-se à congénere portuguesa, sugerindo que os académicos brasileiros participem na discussão ortográfica sobre as normas do dicionário. Não houve convite, nem dicionário.

Em 1907, a Academia Brasileira aprova uma reforma de José Medeiros e Albuquerque, liminarmente recusada por Gonçalves Viana no seu vocabulário de 1909:

Não convém pois generalizar-se a Portugal a reforma brasileira, quando contradiga, como dêste modo contradirá, factos glóticos próprios do reino, e que pertence à história da lingua portuguesa [...] Portugal, por si, tem de manter-se no lugar que por herança lhe compete, como defensor do idioma pátrio, que criou.

Nas décadas seguintes, tendo por referência a reforma de 1911, sucedem-se

as aproximações e os desencontros: Em 1915, a Academia Brasileira aceita a reforma de 1911, mas essa decisão

é revogada em 1919. Em 1920, publicam-se em Portugal as primeiras revisões do formulário de 1911 (Portaria nº 2553, 29/11/1920), introduzindo, por exemplo, o acento grave em vogais abertas não tónicas (fàcilmente) ou repondo a grafia real, em vez de rial.

No Brasil, em 1926, sem um acordo quanto a novas regras, os académicos adotam os princípios ortográficos estabelecidos pelo filólogo Laudelino Freire para a Revista de Língua Portuguesa, que desde 1924 vinha seguindo critérios uniformes. Todavia, os académicos revogam essa decisão em 1929, por considerarem que não era a ortografia mais adequada para o dicionário que estava em preparação. Assim, regressam, com poucas alterações, às regras de aprovadas pela própria Academia Brasileira em 1907.

Em 30 de abril de 1931, estabelece-se o primeiro acordo luso-brasileiro, no sentido de as academias trabalharem em conjunto e em colaboração com os governos dos respetivos países. A Academia Brasileira, que necessitava de estabelecer regras para substituir a ortografia de 1907, aceita aplicar a ortografia

15 Miguel Lemos, Ortografía pozitiva, nóta avulsa á tradussão do Catessismo pozitivista de Augusto Comte, Rio de Janeiro : na Séde do Apostolado pozitivista do Brazil, 1888.

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portuguesa de 1911 (com a revisão de 1920), mas com a possibilidade de introduzir modificações, como a supressão de vários casos de consoantes etimológicas. A Academia de Lisboa compromete-se aceitar essas alterações, mas o regulamento publicado pelo governo português revela um conjunto reduzido de mudanças, eliminando por exemplo as grafias sciência ou dever-se-há (portaria 7117, 27/5/1931). No Brasil, em 11 de junho do mesmo ano, Laudelino Freire vê aprovada pela Academia a sua proposta de um código ortográfico, afinado pela língua e prosódia brasileiras e no sentido da simplificação etimológica. Este documento, bem como as letras a letras A e B do Vocabulário ortográfico que estava em preparação, são enviados para a Academia de Lisboa. A resposta de Portugal é negativa e a Academia Brasileira mantém as divergências, considerando-as como parte do acordo (RAL 1932: 430). Em 1933 publica-se o Vocabulário ortográfico e ortoépico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras. Com regras estabelecidas e um dicionário, o Brasil promulga-se a aplicação da ortografia reformada a partir de 1 de janeiro de 1935. Em 1940, publica-se o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, coordenado por Francisco Rebelo Gonçalves, baseado na reforma de 1911 e no acordo de 1931, mas com a manutenção das consoantes mudas. Do acordo de 1931 resultam, portanto, ortografias divergentes, consoante as modificações que cada parte faz em relação ao formulário ortográfico de 1911/1920.

Com dois dicionários publicados, a variação ortográfica torna-se evidente e pode ser comparada. Em 1943, estabelece-se a primeira convenção ortográfica entre Portugal e Brasil, que acata essencialmente o documento de 1931 e prevê reuniões futuras no sentido da convergência. Em 1945 as duas academias estabelecem o Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro, com propostas de unificação que suscitam críticas no Brasil. As alterações são entendidas como uma imposição dos académicos portugueses, pois admitem-se grafias duplas (insistindo na manutenção das consoantes mudas), simplifica-se a acentuação, abole-se o trema e os grafemas k, w e y. O governo de Portugal aprova o acordo no mesmo ano (Decreto-Lei nº 35228 , 8/12/1945) e entra em vigor em 1946. No Brasil, a lei foi publicada em 5/12/1945, mas os movimentos de opinião anti-acordo atrasaram os esforços para a implementação. A questão demora-se em discussões políticas e legais, que defendem a revogação do acordo de 1945. Em

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21 de outubro de 1955, promulga-se a lei que reintroduz o sistema ortográfico de 1943. Neste período de mais de 10 anos, desde o acordo de 1945, as divergências ortográficas entre as duas variedades acentuaram-se e enraizaram-se.

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4. Fontes para a história da ortografia

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4.1. Antologia de textos ortográficos 1. Duarte Nunes de LEÃO (fl. 1530-1608) Orthographia da lingoa portuguesa. Obra util, & necessaria, assi pera bem screver a lingoa Hespanhol, como a Latina, & quaesquer outras, que da Latina teem origem. Item hum tractado dos pontos das clausulas. / Pelo Licenciado Duarte Nunez do Lião. Em Lisboa: Per Ioão de Barreira impressor delRei N. S., 1576 [4], 78 f. ; 4º (20 cm)

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Das dições que dobram as letras. Têm para si alguns curiosos da língua espanhol, que o dobrar das letras é

escusado acerca de nós. Porque não sentimos, quando se dobram, senão o r ou s, e que tiradas estas, as outras todas se devem escrever singelas. O que é grande erro. Porque a razão, que há, para se dobrarem estas, há para se dobrarem essoutras; ainda que nem toda a orelha sinta a diferença, que há de singelas a dobradas. E quanto ao r e s, quando se dobram, quem quer o sentirá. Que assi como o som de um atambor e de uma trombeta, até os cavalos e bois o entendem e os alvoraça, mas nem por isso os moverá um instrumento de cordas (porque isso fica resguardado para os homens, que têm razão) assi nas letras há uma música oculta, e não menos delicada, que a das cordas, que (como diz Quintiliano) se não deixa sentir de todos. E ainda que, na verdade, as nossas orelhas não compreendam a diferença das letras dobradas, para conservação da origem e etimologia dos vocábulos, era necessário dobrarem-se, tomando-os nós dos Latinos, ou Gregos, assi como eles no-los dão. (p. 41r)

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(p. 69v)

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2. Bento PEREIRA (1605-1681) Regras gerays, breves, & comprehensivas da melhor ortografia, com que se podem evitar erros no escrever da lingua Latina, & Portugueza, para se ajuntar à Prosodia... approvadas por Varões peritissimos em huma, & outra lingua. Dividemse em tres partes. A primeira he das regras commuas à lingua Latina, & Portugueza. A segunda he das tocantes só à Latina. A terceyra he das tocantes só à Portugueza. Em Lisboa: Por Domingos Carneyro, 1666 [7], 81, [23] pp.; in-8.º (14 cm)

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Para escrevermos as palavras, que são juntamente Latinas e Portuguesas, e as que são Latinas aportuguesadas

As palavras que são totalmente Latinas se devem escrever totalmente com as mesmas letras: como terra, massa, syllaba. Pois é bem que assim como em todo as tomamos, com tudo que trouxerem, as conservemos.

Salvo se no nosso pronunciar mudarem o som: como coro, no Latim chorus não se há de escrever com h, choro, porque então significa pranto, e nasce do verbo chorar; nem Parocho, senão Paroco; nem charidade, senão caridade; como nem Cherubim, senão Querubim. Do mesmo modo não Monarcha, nem Monarchia, senão Monarca, Monarquia; porque o cha, cho, che, chi, tem no Português diverso som do ca, co, que, qui.

Conforme à regra geral seguiremos o dobrar das letras, quando o Latim as dobrar: v.g. poremos Aggravar, aggravo, exaggerar, exaggeraçam; porque o Latim escreve Aggravare, aggravatio, exaggerare, exageratio.

Entende-se a regra, quando as palavras são Latinas, sem mudança alguma; porque se mudarmos qualquer sílaba, ou letra, com a tal mudança as devemos escrever: v.g. tem o Latim scribo, stella, mulier, nós porque temos escrevo, estrella, mulher, lhes acrescentamos e mudamos as letras, que nelas se vem acrescentadas e mudadas.

Assim mesmo nas que tomamos e acomodamos à nossa língua aportuguesando-as, devemos escrevê-las com tal diversidade, que em todo possível lhe conservemos as letras que trouxeram: v.g. diz o Latim defensio, diremos nós, defensa, ou defensam, com s, sendo que em outras totalmente nossas pomos ç: v.g. corrença, avença. [...] As que nascem do Latim sendo aportuguesadas e já diversas no som e pronúncia, conforme a tal diversidade se devem escrever e pronunciar. (pp. 31-33)

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3. João Franco BARRETO (1600-1674?) Ortografia da lingua portugueza / Per Joam Franco Barretto. Em Lisboa: Na Officina de Joam da Costa, 1671 [16], 279 p.: [1] quadro dobr.; in-4.º (21 cm)

Cap. XLV. Se as letras se devem dobrar Atéqui dissemos das letras, que simplesmente se usam em os vocábulos

Portugueses, tratando de cada uma em particular [...] Resta dizermos agora, se essas letras se devem dobrar e as razões que para as dobrarmos pode ou não haver. Para o que é de saber que acerca dos Latinos umas se dobram por natureza das palavras, outras per derivação, outras per significação, outras per corrupção, outras per variação e outras per composição.

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As que se dobram per natureza das mesmas palavras não se podem assinar per alguma regra, porque consiste em o uso e não na arte; e assi lemos16 perguntar-se por que razão estes nomes latinos gutta e caballus têm o primeiro dous tt, e o segundo dous ll? E responde-se que isso se faz assi, porque quem os inventou os quis desse modo compor. E assi por esta razão os que tiverem uso e conhecimento da língua latina poderão saber que nomes dobram, ou não dobram as letras; e os que não forem latinos, imitando a escritura dos homens doutos; ainda que esta regra é mais para os vocábulos latinos, que para os portugueses.

Os que dobram per derivação são nomes ou verbos, que se tiram de outros, que as têm dobradas, como de terra, terreyro, terrestre, terreal, terrenho, enterro, enterrar, desenterrar, soterrar, desterrar [...] de penna, pennacho, pennugem, pennugento, etc. em os quais vocábulos se dobram as letras r, l, t, porque os primitivos de que eles se derivam dobram essas mesmas letras.

Os que dobram per significação são os diminutivos que na linguagem nossa acabam em te, porque segundo a orelha nos pede, parece, não os podemos escrever bem de outro modo, como verdette, pequenette, bonitette, azedette, tolette, diminutivos de verde, pequeno, bonito, azedo, tolo, e outros tais a que para significarmos diminuição damos esta terminação, como os latinos aos seus, as de ellus, illus, ullus: dizendo de liber, libellus: de tantus, tantillus; de parvus, parvulus, e outros semelhantes; e também os italianos em os seus dobram o t porque de Laura, disseram Lauretta, de picciolo, piccoletto, etc.

Dobram per corrupção os nomes, que estando em a língua latina de uma maneira, e com a mesma pronunciação, os fazemos nossos, mudando-os, e dobrando-lhes alguma letra, per razão de os acomodarmos a nós, como por noster, nosso; vester, vosso; ipse, esse; persona, pessoa; ursus, usso; de dicto, dicção, de dictum, ditto, e outros desta sorte. (pp. 179-181)

16 Possível referência a um trecho da obra de Álvaro Ferreira de Vera, em que se referem os mesmo exemplos (Orthographia ou modo para escrever certo na lingua portuguesa, Lisboa : Mathias Rodriguez, 1631, p. 28r).

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4. Rafael BLUTEAU (1638-1734) Vocabulario portuguez, e latino, aulico, anatomico, architectonico, bellico, botanico, brasilico... Pelo Padre D. Raphael Bluteau... Coimbra-Lisboa (8 t., 2 supl., por vários ed., 1712-1728)

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Advertências para as emendas dos dous primeiros volumes. I. Não se apontam os erros da pontuação, pela multidão deles; facilmente

os conhecerá o leitor discreto, e douto. II. Certas palavras saem quasi sempre com mais, ou menos letras, ou com

letras trocadas: v.g. Edicçaõ, por Ediçaõ, plurar, por plural, luzido, por luzidio, Salmacio, por Salmasio, accender, accezo, por acender e acezo, etc. Também os erros deste género são tantos, que as emendas deles encheriam muitas páginas. Dos artigos do e da, em lugar de do, ou ao contrário, também não se faz menção, pela razão sobredita.

Tomo V, "Erratas e emendas no prologo": [14]

Neste Suplemento, como também nos oito volumes do Vocabulário, não está a ortografia certa, porque até agora não achei no idioma português regras de ortografia tão certas, nem Autores nesta arte tão uniformes, que tenham assentado com geral aceitação, e aprovação dos Doutos, o verdadeiro modo de escrever; uns principiam a mesma dicção com H, outros com I, ou com O, ou com outra vogal; outros em alguns vocábulos usam do Y em lugar do I, outros do I em lugar do Y, outros antepõem, ou pospõem o R, ou o L às vogais de algumas palavras; finalmente na ortografia portuguesa, como na casa onde não há pão, todos gritam, e ninguém tem razão, porque até não assentarem os Doutos, como o tem feito os das outras nações, o modo com que se há de escrever, sempre haverá contendas, e não saberá o vulgo quem tem razão. Eu, que (como estrangeiro) não tenho voto na matéria, muitas vezes me achei tão confuso, que não sabendo que partido seguir, em uns vocábulos me conformei com a ortografia de uns Autores, em outros com a de outros; e o pior é que já não tem remédio esta diversidade, porque nem posso fazer outra impressão, nem já me é possível emendar o que escrevi.

(Suplemento I: «Advertências a todo o leitor»; d v)

Nem sempre a censura do pseudocrítico é insulto do criticante, ou do criticado injúria, Aqui chamo pseudocríticos aos que sem nota de ignorância, e sem malícia, fazem nas obras dos Autores uns reparos escusados, e procedidos

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da descuriosidade dos seus estudos. Alguns deles, que se governam por ortografia, ou errada, ou diferente da nossa, não acham no Vocabulário a palavra que buscam, e não advertindo a causa da falta, dão ao autor a culpa. Se (como já muitas vezes tenho representado, e com mais particularidade em um discurso, que sobre esta matéria fiz na Academia do Conde da Ericeira) se reformara a ortografia portuguesa, e se reduzira a um modo de escrever comum, senão a todos, aos zelosos da perfeição da sua língua, não haveria hoje tanta diversidade no escrever, nem tanto trabalho em buscar inutilmente palavras, de cujo significado se necessita. [...] Variedades, por não dizer ignorâncias e desconcertos, pela maior parte nascidos de se não respeitar os nomes primitivos, ou de se não guardar a analogia dos vocábulos, derivados da língua Latina, ou Grega, ou qualquer outra, que antes de nós usou deles.

(Suplemento I: «Ao leitor pseudocritico», cij r-cijr v)

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5. Luís Caetano de LIMA (1671-1757) Orthographia da lingua portugueza / Por D. Luis Caetano de Lima. Lisboa Occidental: Na Officina de Antonio Isidoro da Fonseca, 1736 [24], 217 pp.; in-8.º (15 cm)

Dir-me-ás que inutilmente procuro regular a ortografia das palavras portuguesas, indo-lhe uscar a sua origem na língua latina; porque ordinariamente as pessoas, que mais necessitam destas regras, são as que ignoram de todo aquela língua. A isto respondo em primeiro lugar que quando digo que se recorra à língua latina para regular de algum modo a ortografia das palavras, não falo senão dos que têm algum conhecimento dela. Em segundo lugar dou este conselho por não achar ortografia mais bem regulada que a que se faz por etimologiasbe derivações, ainda que seja com alguma alteração, conforme o génio das línguas. Nisto sigo o exemplo dos gramáticos italianos e

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franceses, que são os que mais se empregarão em procurar a pureza das suas línguas. Por te não cansar com muitos exemplos, te direi somente que os italianos, conforme a sua ortografia moderna, ordenada para uso do Seminário de Pádua, e impressa no ano de 1721, escrevem, v.g.

Affabilità com 2 ff de Affabilitas. Affermare de Affirmo. Affine de Affinis. Tranquillità com 2 ll de Tranquilitas. Commendatione com 2 mm de Commendatio. Sommo de Summis. Infiammazione de Inflammatio. Applauso com 2 pp de Applausus. Applicazione de Applicatio. Corregere com 2 rr de Corrigo. Letterato com 2 tt de Litteratus.

Da mesma sorte escrevem os franceses conforme a ortografia dos

dicionários da Academia Real, de Furetière, e de Richelet: Affable de Affabilis. Affectation de Affectatio. Affection de Affectatio. Affluence de Affluencia. Allegorie de Allegoria. Amollir de Mollio. Suffocation de Suffocatio. Suffisant de Sufficiens. Suggerer de Suggero. Sommaire de Summarium. Lettres de Litteras. (Prólogo, pp. [7]-[10])

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6. Bernardo Fernandes GAIO(fl. 1730-1750) Regras da orthografia da linguagem portugueza: recopiladas por Amaro de Roboredo: expostas em forma de dialogo, novamente correctas: com a Taboada exactissima de Andre do Avellar, lente de Mathematica na Universidade de Coimbra: Ampliada com algumas curiosidades pelo P. Bento da Victoria... Lisboa Occidental: Na Offic. Joaquiniana da Musica de Bernardo Fernandes Gayo, [1738] 47 pp.; in-8.º (15 cm)

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M. Como devemos, Menino, escrever as dicções, que se derivam de outras, em que se acham letras duplicadas?

D. Do mesmo modo que as primitivas, de que são derivadas: v.g. annal como anno; terrestre, como terra; pois de terra, e anno se derivam.

M. Dobram também as letras as dicções corruptas das latinas? D. Muitas, e as dobravam antigamente; o que se observava nas que tinham

letra consoante entre dous aa, ee, ie, oa, oo, tirando-a: v.g. saarar, de sanare, geerar, de generare, preegar, de praedicare, fee, de fides, moo, de mole, soo, de solus; o que também praticavam em muitas latinas, e castelhanas, que acabavam em ana, a que tiravam o n: v.g. lãa, de lana; irmãa, de hermana; e nos femininos, cujos masculinos acabavam em ao: v.g. paa, de pao; maa, de mao; respeitando a origem e línguas vizinhas. Hoje, que amamos a brevidade, não está em uso dobrar a vogal. Usamos do acento circunflexo sobre ela, que, à maneira dos gregos, nota contração de duas em uma: v.g. sârar, prêgar, gêrar; o que nos monossílabos se vê melhor: v.g. Fê, mô, sô; não havendo outra dicção, com que a que escrevemos se confunda. (pp. 5-6)

Que havendo-vos de apartar da boa ortografia, seja para a latina, descobrindo das palavras a origem; o que muito se deve atender e saber, para bem escrever a portuguesa, regulando-se racionavelmente pelo uso, e boa pronunciação. (p. 14)

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7. João de Morais Madureira FEIJÓ (1688-1741) Orthographia, ou arte de escrever, e pronunciar com acerto a lingua portugueza. / Para uso do excellentissimo Duque de Lafoens, pelo seu mestre Joaõ de Moraes Madureira Feijó, Presbytero do habito de S. Pedro, Bacharel em Theologia, e Prégador. Divide-se em tres Partes, a primeira de cada huma das letras, e da sua pronunciaçaõ. Das vogaes, e dithongos. Dos accentos, ou tons da pronunciaçaõ. A segunda de como se dividem as palavras. Da pontuaçaõ, algumas abbreviaturas, conta dos Romanos, e Latinos, Calendas, Nonas, e Idos. A terceira dos erros do vulgo, e emendas da Orthografia, no escrever, e pronunciar toda a lingua Portugueza, verbos irregulares, palavras dubias, e as suas significaçoens. Huma breve instrucçaõ para os Mestres das Escolas. Lisboa Occidental: Na Officina de Miguel Rodrigues, 1739 (1.ª ed., 1734) 553, [3] pp.; in-4.º (21 cm)

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Se havemos de imitar a ortografia latina na ortografia portuguesa? Todos os nossos Autores confessam, e devem confessar todos aqueles que

professaram a latinidade, que a nossa língua é filha da língua latina. E se perguntarmos em quê? Ou porquê? Respondem, que na similhança dos nomes, na imitação dos verbos, e na propriedade dos vocábulos. E eu acrescento, que o não é menos no som da perfeita pronunciação; tanto, que já houve curiosos que compuseram poemas inteiros, que com pouca mudança da pronunciação, já se leem em português, e já se leem em latim.

Dizem também, que a nossa língua vai subindo ao auge da perfeição: e se examinarmos donde lhe nascem estes aumentos, dirão, que é, porque esta filha cada dia se vai enriquecendo com a herança das palavras, que cada vez mais participa daquela mãe. O certo é que as prosas e poesias portuguesas que a fama canta, e todos aplaudem por singulares na locução, são aquelas que estão mais cheias de palavras latinas reduzidas com pouca diferença à pronunciação portuguesa, quais são os adjetivos, com que se elevam os períodos e se ornam as orações; como v. g. este Abc de alguns:

Augusto, arduo, ardente. Benefico, benigno, benevolo. Casto, castissimo, constante. Diffuso, disperso, diverso. Excellente, excellentissimo, extremo. Fluido, fugitivo, fluctuante. Generoso, gentil, gracioso. Heroico, honorifico, honesto. Inclito, illustre, illustrissimo. Lucente, lucido, lustroso. Magno, magnifico, malevolo. Nobilissimo, nimio, nitido. Optimo, obsequioso, obtuso. Preclaro, precioso, preterido. Quantitativo, quindenio, quanto. Regio, regnante, ruidoso. Sapientissimo, sublime, supremo.

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Tenacissimo, tenaz, tenebroso. Veridico, veloz, volante. Xantho. Zenith, zodiaco, zoilo etc. Destas e similhantes palavras há uma multidão sem número, que cada dia

estamos vertendo do latim em Português, sem mais diferença que acabarem em o as que no latim acabam em us, como sabe qualquer latino: e esta é também a diferença que há na pronunciação, que nas mais sílabas é a mesma. (pp. 6-7)

Breve instrução para os mestres das escolas de ler, e escrever.

São as escolas o primeiro berço aonde se criam inumeráveis erros assim no pronunciar, como no escrever; porque não só escrevem por traslados, que sendo na letra uma admiração da vista, pela galhardia do rasgo, são na ortografia uma torpeza da pronunciação pela fealdade dos erros; mas também aprendem a ler por cartas, em que muitas vezes mais são os erros que as palavras; e como se habituam neles, ainda que estudem latim, sempre os usam por costume.

Para se evitar este dano, seria justo que nas escolas se não ensinasse a escrever senão por traslados impressos, que já hoje se vendem nas imprensas; ou que os mestres os fizessem, e mostrassem a pessoas doutas, para examinar a sua ortografia. Também seria conveniente, que os mestres fizessem as cartas, para os discípulos aprenderem a ler; ou ao menos não lhe deixarem ler as cartas, sem primeiro as reverem, para lhes emendarem as letras que estiverem erradas.

Também os pais não devem fiar de uma mulher o primeiro ensino dos seus filhos no Abc e nomes, como se costuma nesta Corte; porque nem elas sabem se o nome está certo, ou errado, nem o soletram como o pronunciam; porque a experiência mostra, que escrevem Cramo, Frol, Mester, Pedor etc. e pronunciam Carmo, Flor, Mestre, Pedro. (p. 547)

Advertência para o uso de outras letras. Quando os meninos já estiverem mais adiantados na inteligência das

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letras, lhe advertirão que há outras, que dos latinos, e gregos passaram para o nosso uso em muitas palavras que escrevemos como eles; que é justo as saibam logo, para não errarem a sua pronunciação, e são estas Ch, K, Ph, Y.

Dizem muitos que estas letras não devem ter lugar no nosso abecedário, porque não são nossas: mas eu respondo, que também elas não eram dos Latinos, e nem por isso as lançaram fora. E não é justo que nas escolas se ignorem, pois são necessárias para os que passam para o latim, e lição dos livros, aonde as hão de achar a cada passo. E tudo o que é saber e ter notícia só pode ser escusado para quem quer ser ignorantemente sábio. (p. 552)

(p. 163)

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8. Francisco Félix Carneiro SOTOMAIOR Orthographia portugueza, ou regras para escrever certo, ordenadas para uso de quem se quizer applicar / Por Francisco Felis Carneiro Souto-Maior... Lisboa: Na Of. Pat. de Francisco Luiz Ameno, 1783 XXXI, 111, [26] pp.; in-8.º (16 cm)

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A letra T segue em tudo as regras do B. Dobra-se, quando na raiz latina é

dobrada, como: Attrahir de Attraho, Attribuir de Attribuo, etc. Porém advirta-se que na nossa escritura não se usa de ajuntamento de três consoantes, sendo uma dúplex; senão em dicções análogas com as latinas, como as do exemplo. Na nossa língua se formam as palavras umas das outras, com as partículas A, Des, Dis, In, Re, Se; e quando as palavras, a que elas se ajuntam, principiam por vogal, vale o S de Z, como já se disse; e se por consoante, acrescenta-se à partícula A outra consoante igual à da dicção; não fazendo três consoantes com a dúplex, o que não deve ser, como se advertiu. E em todas as vozes, que delas se derivarem, se conservam as dúplices; isto se entende nas palavras que não tiverem analogia com as latinas; porque então devemos buscar a fonte. Dobra-se também, quando na raiz latina há letra que nós não conservámos na pronúncia, e convertemos em T, como Ditto de Dictus, etc.; outras vezes se converte o C em I, como Effeito de Effectus, etc.; outras em U, como Douto de Doctus, etc.; e então em tais casos não se dobra o T, porque o C da raiz se converteu em outra letra. Também convertemos em T o P de Septem; e assim escrevemos: Sette; e conservámos o T dúplex em todas as vozes derivadas desta, como Settenta, Settuagesima, Settima, Setteno, etc. (pp. 59-60)

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9. João Pinheiro Freire da CUNHA (1738-1811) Breve tratado da orthografia, para os que naõ frequentáraõ os estudos, ou dialogos sobre as mais principaes Regras da Orthografia... Lisboa: Na Officina de Antonio Gomes, 1788 IV, 202 pp.; 15 cm

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Diálogo VI. Em que lugar se hão de pôr duas consoantes. P. No princípio, ou fim da palavra dobram-se as letras? R. Nenhuma palavra principia, ou acaba em letra dobrada consoante, ou

vogal: exceto as que acabam no ditongo de aã, como: Manhaã, Irmaã, etc. Cuja última sílaba por ser ditongo vale por uma só letra.

P. Onde se dobram as consoantes? Nenhuma consoante se dobra, senão em o meio das palavras entre vogais,

como: Aggravar, Affligir, Acclamar, etc. Três consoantes (como já dissemos) só se podem ajuntar sendo uma delas líquida, como o são nos presentes exemplos o l e o r.

P. Também se dobra o b, o c, o d, o f, o g, o m, o n, o p, o r, o s, o t? R. Ao uso deixamos disto a principal observância; porque neste breve

Tratado não podemos assignar regras infalíveis; porém contudo, em favor dos duvidosos principiantes, poremos em cada letra os mais usuais exemplos por modo tal que lhes confira nesta parte não pequena notícia.

P. Em que palavras se dobra o b? R. Em Abbreviar com seus derivados, que são Abbreviatura, Abbreviado,

etc. E também Abbacial, Abbade, Abbadessa, Abbadia, Sabbado, e outras poucas.

P. Em que palavras se dobra o c? R. Em algumas, como: Acceitar. Accender. Accentuar. Accelerar. Accrescentar. Acclamar. Accomodar. Accumular. Accuzar. Occazionar. Occorrer. Occupar. Occultar.

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Peccar. Seccar. Soccorrer. Succeder, etc. com seus derivados. E também: Accidental. Accidente. Acçaõ. Collecçaõ. Correcçaõ. Diccionario. Direcçaõ. Distracçaõ. Erecçaõ. Exacçaõ. Inspecçaõ. Instrucçaõ. Introducçaõ. Objecçaõ. Occidente. Protecçaõ. Refracçaõ. Satisfacçaõ. Traducçaõ. Vacca, etc. (p. 67-69)

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10. Francisco Nunes CARDOSO Exame critico das regras da orthografia portugueza mais acrescentado, e a que tambem se ajunta a Arte da mesma Orthografia conforme o Novo Systema... / Por Francisco Nunes Cardozo. Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1790 50, [1] pp.; 20 cm

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Discurso XXIII. Mostra que o dobro das letras em favor das etimologias não é contra a pronúncia, nem perde o uniforme, mas também não é erro o escrever com letras singelas.

A lei do dobro das consoantes foi seguida dos nossos Escritores, menos de alguns Modernos, porque como não embaraçava a pronúncia, não acharam nela as mesmas durezas que em outras regras.

Esta mesma razão de não ser contra a pronúncia me desobriga de tomar partido na questão; se bem que a dar nela o meu parecer seguiria o das letras singelas, porque nunca perdemos de todo as etimologias, e sempre nas palavras ficam letras que indicam a fonte, e a origem. Nestas palavras Pecado, Afecto, Aparato, e semelhantes ainda ficam raízes para se parecer com Peccatum, Affectio, Apparatus.

Não havendo pois perda total das etimologias, temos mais trabalho em escrever o dobro; e eu tenho paixão pelas letras que têm pés, ou cabeças, e por isso mais vezes as dobro por fazerem a leitura mais pronta, mas outras menos vezes as dobro.

Nenhuma nação nas suas ortografias deve desprezar de todo as etimologias, mas sim moderá-las compondo-as com a pronúncia.

As etimologias com as suas raízes dão nas palavras luz à nossa ideia, mas para isto não há precisão do dobro, porque ou dobremos, ou não, nunca perdemos a pronúncia, nem ofendemos as etimologias.

Havemos de supor que a pronúncia é rainha e que as etimologias são o seu adorno. Pelo meu sistema sei ler: Este Homem hê optimo; mas por outro não sei ler, Este Omem é otimo. Se tiro h a Homem ofendo a Etimologia; se tiro h a e parece conjunção, e se tiro p a optimo perdo a etimologia, porque as letras aspiradas não se devem perder em todos os lugares. (pp. 80-81)

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11. ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA Diccionario da lingoa portugueza / Publicado pela Academia Real das Sciencias de Lisboa. Tomo Primeiro. [Letra] A. Lisboa: Na Officina da mesma Academia, 1793 CXCIX, 543 pp.; 41 cm

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Planta do dicionário XI. Admitir-se-á por agora aquela ortografia, que mais se conformar com a

etimologia, principalmente latina, e que se estabelece na eufonia e prática dos eruditos, em quanto a Academia não recebe para seu uso um sistema ortográfico, livre de toda a variedade e ordinária inconstância. Porém como alguns ou por ignorarem a verdadeira derivação dos vocábulos, ou pelo costume de ler os nossos antigos Autores, irão buscar no Dicionário estes mesmos vocábulos segundo o modo vulgar ou antigo de os escrever, por lhes evitar embaraço, não só a cada uma das dicções se ajuntarão imediatas à definição as suas várias ortografias, mas ainda as principais se porão no lugar de alfabeto, que lhes tocar, apontando-se aqueloutro, em que conforme a ortografia recebida, se houverem colocado. Assim aprovando o Dicionário como melhor escrever: Affecto, devoção, entre, etc., meterá todavia na ordem alfabética: Affeito, devação, antre, etc. remetendo estes tais para a voz aprovada.

XII. Mas isto se fará tão somente nas dicções, em que pela mudança das letras se altera sensivelmente a pronunciação, como nas sobreditas. Aquelas porém onde a duplicação das consoantes, ou a troca das vogais não produz um tal efeito como sucede em muitas vozes, que se escreviam por e e o, em lugar de i e u, e ao contrário; ou por f e am em lugar de ph e ão, e assim a inconstante troca de ç em dous ss, ou do simples c em s, do qu em c, e do z em s, não necessitam que a seu respeito se faça expressa menção de uns tais acidentes. Outro tanto também se praticará pelo que toca às vozes, que antigamente começavam por s, e hoje se escrevem por es, e todas aquelas, a que se acrescentava ou suprimia o h antes das vogais. Em cada uma destas letras se há de especificar quais hajam sido as suas alterações e mudanças, e assim sabido em comum que os Antigos trocavam umas por outras contra o uso presente, parece escusado repetir frequentemente cousas em si acidentais, e de nenhum proveito para o principal objecto do Dicionário.

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12. Noções sobre a ortografia lingua portugueza. Lisboa: Na Typografia Lacerdina, 1807 94 pp.; 16 cm

§ 1 Noções preliminares. A pronúncia deve ser o modelo da ortografia, pois a escritura foi inventada para suprir a fala, e os sinais representativos não devem diferir da coisa representada.

§ 2 Esta pronúncia não deve ser qualquer, mas a que é autorizada pelo uso, que é o legislador exclusivo nas línguas relativamente às palavras.

§ 3 A pronúncia que deve tomar-se por modelo, é a da mais numerosa parte da corte conforme ao modo de escrever do maior número dos bons autores modernos. A corte é sempre o lugar em que se fala a língua com mais polidez e menos vícios.

§ 4 Deve contudo guardar-se a etimologia das palavras, quanto for compatível com a pronúncia. Assim escreveremos gente e não jente, tezoiro e não tizoiro, pomar e não pumar, género e não jénero, sinete e não cinete, senado e não cenado, cicuta e não sicuta, cebola e não sebola, circulo e não sirculo. Nunca porém a etimologia deve prevalecer à pronúncia; porque como a escritura foi inventada para suprir a fala, se se escrevesse de modo diverso do que se pronuncia, seria faltar ao seu fim. É especiosa a razão que dão alguns, de que não se seguindo exatamente a etimologia, não se poderiam achar as palavras nos dicionários das outras línguas. Basta a este respeito adoptar a resposta do nosso Vernei, dizendo que os ignorantes não as buscam e os sábios bem sabem a sua etimologia para buscá-las.

§ 5 Deve-se igualmente guardar a analogia, e a ordem nos vocábulos derivados.

§ 6 Não se devem pois dobrar as letras na escritura quando se não dobram na pronúncia, ou sejam as mesmas letras vogais, ou consoantes.

Assim não escreveremos RRei nem Manoell, mas Rei e Manoel; nem escritto, ditto, facca daddo, setta, gotta, mas escrito, dito, faca, dado, seta, gota; nem vaa, menhaa, mas van, menhan, ou deste modo vã, menhã, porque o til aqui supre o n; nem amallo, recebello, repartillo, etc., mas amálo, recebélo, repartílo. Todavia, por uma exceção desta regra, deve-se conservar as letras dobradas

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quando claramente se distinguem falando, como em geena, voo, enjoo, preeminencia, preencher, preexistir, etc. ou quando a pronúncia lhes dá maior força que sendo singelas, como acontece nas letras r e s; ou quando as palavras derivadas dos gregos ou latinos, ou compostas com preposições das ditas línguas não estão ainda bem naturalizadas, e só com o andar do tempo se podem ir simplificando. Não assim as palavras compostas de nomes portugueses por meio das preposições a, ante, em, en, entre, contra, des, tres, sob, ou sobre, como amansar, antever, emagrecer, engrandecer, entreconhecer, contraminar, desobrigar, trespassar, sobrescrever, sobresair. [...]

§ 7 Não se devem também amontoar letras que não se pronunciam; exceto

nas palavras derivadas de outros idiomas que ainda não estão naturalizadas. Não se escreverá pois Magdalena, Emygdio, damno, solemne, somno, columna, prompto, signal, cincto, delicto, septe, porque todos pronunciam Madalena, Emidio, dano, solene, sono, coluna, pronto, sinal, cinto, delito, sete. Escreveremos porém facto, magnifico, amnistia, fragmento, benigno, digno, incognito, signo, pacto, sectario, jactar-se, edicto, compacto, resignar, captar, pugnar, significar, indemne, omnipotente, ficto, nectar, invicto, advirto, infecto, abstracto, opção, condiscipulo, transcender, facção, nupcial, dogma, pigmeu, pragmatica, cognação, fidedigno, ignominia, magnanimo, etc. porque assim se pronunciam.

(p. 1-6)

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13. Luís Gonçalves COUTINHO (1758-1848) Resumo orthográfico da lingua portugueza / Composto, e offerecido ao Ill.mo Senhor Doutor José Telles da Silva, .../ Por Luiz Gonçalves Coutinho... Lisboa: Na Impressão Regia, 1814 [8], 118, [6], 21 pp.; in-8.º (16 cm)

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P. Temos alguma regra geral para que algumas palavras dobrem o L? R. Todos os Nomes, que acabarem em limo, ou lima dobram o l, como:

Humillimo, Facillimo, Facillima; e outras por origem, como: Adello, Adella, Allí advérbio Apollinario homem, Avelleira árvore, Bello, Bella, Camillo, Camilla, Capellão, Castello, Castella, Collar, em benefício, Chanceller, Elle, Ella, Janella, Marcellino, Martellar, Ollaria, Olleiro, Farallelo, Postillar, Sellar, Vassallo, etc., ou por formação das preposições Ad, Con, In, como: Allegar, Alludir, Collegio, Collegial, Collegir, Collecção, Collocar, Illicito, Illustrar, etc. com seus derivados.

P. Em que palavras se há de dobrar o M? R. Nas que seguirem a regra da origem, como: Gemma de ovo, Gomma,

Sommar, etc.; ou da formação com as preposições Con, In, Em, como: Commendador, Commerciar, Commissario, Commover, Commutar, Immacular, Emmudecer, etc. com seus derivados.

P. Quando havemos de escrever M, e não N? R. Sempre antes de B, P, M, se há de escrever M, e não N, como: Ambos,

Imperio, Commetter, etc. (pp. 82-83)

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14. Carlos Augusto de Figueiredo VIEIRA (1818-1849) Ensaio sobre a orthographia portugueza contendo: uma exposição, bases e regras orthograficas, abundante vocabulario, os nomes proprios, os homonymos que se distinguem pela orthographia, notas &c. / Por Carlos Augusto de Figueiredo Vieira. Porto: Typographia Commercial, 1844 223, [1] pp.; 15 cm

Foi a confeção deste vocabulário tarefa para nós mui desagradável e penosa; não só por ser trabalho árido e quase material, senão porque tendo de compreender, em mui limitado espaço, número considerável de palavras, eram graves as dificuldades que nos empeciam. Desejávamos apresentar todas as

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dicções em que pudesse haver dúvida ortográfica, mas eram numerosíssimas, e resolvemos por tanto omitir as que fossem de mais óbvia e palpável derivação. (p. 73)

[...] Nem sempre é possível seguir a regra de que ‘as palavras derivadas devem ser escritas com as mesmas letras que as suas primitivas’; cumpre porém limitar, quanto ser possa, o número das exceções. Apesar de termos seguido com cuidado os princípios adotados, poucas inovações apresentará o vocabulário, que, por isso mesmo, poderá ser consultado sem escrúpulo. A mais notável é termos escrito assafate, assouge, assoute, assucena, com ss, e não com ç: fizemo-lo por seguir a etimologia, e limitar o uso do ç, que é uma das dificuldades da nossa ortografia. Demais esta inovação influi em poucas palavras. No resto pouco se afastará o nosso vocabulário da ortografia que mais voga tem hoje.

Se alguém deixar de encontrar no vocabulário alguma palavra em cuja ortografia tenha dúvida, não sendo das que omitimos e que deixamos enumeradas, ou algum termo técnico, pode razoavelmente supor que deve ser escrita sem distintivos etimológicos, e simplesmente como a boa pronúncia indicar. (pp. 75-76)

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15. João António DIAS (1818-18--) Noções geraes de orthographia da lingua portugueza / Por João Antonio Dias.., 2.ª ed. Lisboa: Typographia de M. F. das Neves e C.ª, 1853 (1.ª ed., 1850) 32 pp.; 17 cm

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Ao leitor Estudar um tratado completo de ortografia parece-nos difícil tarefa para a

maior parte dos indivíduos. Entretanto outros se contentam com a prática, quando desta não podem colher senão ideias abstratas.

Por conseguinte para estabelecer um termo médio neste estudo importante, resolvemo-nos, pelos fins de 1850, a publicar o nosso Opusculo Orthographico, com o título de Noções Geraes de Orthographia, e nele coordenámos as regras que julgámos mais oportunas para se conseguir escrever com o maior acerto possível, sem que o seu estudo possa promover enfado, pela sua concisão, não só aos estudantes das escolas, mas aos adultos.

Tirámos tão vantajoso fruto da nossa resolução que em menos de dois anos o benigno acolhimento dos nossos concidadãos fez com que se esgotasse a edição. Por tal motivo empreendemos esta segunda. Poucas páginas aumentámos à primeira; porém são mui essenciais para o fim a que nos propomos.

(pp. 3-4) Das letras dobradas Há séculos que não está em uso entre nós dobrarem-se as letras vogais da

mesma qualidade, embora os antigos nos ofereçam os seus exemplos. Julgou-se mais útil abreviar a escrituração nas vogais dobradas, suprimindo uma e substituí-la por um acento na outra: v. g. em lugar de se dizer como antigamente — vou aa cidade, estou nuu, tenho fee em Deos etc. — escreve-se vou á cidade, estou nu, tenho fé em Deos.

Outro tanto não aconteceu ainda às letras consoantes dobradas, uma das quais se podia suprimir em tantas palavras, como em quantas elas figuram, sem lhes alterar o sentido da sua significação, ou se confundirem com outro qualquer termo, como se vê nos seguintes exemplos:

Abade por abbade Adição por addição Agravo por aggravo Admitir por admittir Contudo por enquanto temos obrigação de seguir não só a etimologia, mas

o uso.

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c, l, m, n, r, s. Não havendo regras fixas para o emprego das letras consoantes dobradas,

limitar-nos-emos a dizer somente que o c muitas vezes se conhece que dobra em consequência da pronúncia, como se observa na palavra convicção e outras.

O l dobra em muitas palavras onde ele é precedido duma vogal com um som agudo: v. g. Janella etc.

Quanto às letras m, n, é fácil conhecer-se igualmente quando dobram, pela pronúncia; assim as palavras immortal, innocente e outras muitas, deixam distinguir assaz o som dos dois mm, e dos dois nn.

(pp. 12 -13)

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16. António José Vaz VELHO (1771-1860) Opusculo sobre ortografia dividida em serões de inverno / Por Antonio José Vaz Velho. Lisboa: Imprensa Nacional, 1856 22 pp.; 23 cm

§12.º [...] Outrosfinalmente, [definem] que a ortografia ensina a falar, ler e escrever com acerto (Caetano Maldonado da Gama. O Padre D. Jerónimo, Contador de Argote. Francisco Nunes Cardoso). Não sei que isto seja definição de ortografia. A este modo de expressar chama Nuno da Cunha e Ataíde

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Gramática, o que seguiu Manuel Coelho de Sousa. Jerónimo Soares Barbosa nos diz a ortografia ensina os sinais literais, adoptados pelo uso para bem os representar. Acho-lhe a mesma impropriedade da definição antecedente. Se é, que não chamou às letras sinais literais, mas sinais na ortografia, é coisa muito diferente. As definições devem ser formadas pela natureza do objeto que se define, e não pelo uso que se faz dele.

§13.º Que maiores provas poderei eu esquadrinhar, que manifestem mais clara e visivelmente a necessidade de acudir a tão diferentes enunciados de uma definição tão simples, que mereça o eficaz remédio do voto da nossa Academia Real das Ciências de Lisboa; pois que jamais se atreveria Escritor algum a alterar as palavras, pelas quais ela publicasse a sua opinião sobre a definição de ortografia. Não me atrevo a chamar a este descuido omissão, por não ofender o melindre de tantas Notabilidades ali incorporadas, mas não deixa de se fazer assaz reparável o seu esquecimento de olhar para a precisão que temos de uma ortografia simples, correta e de fácil compreensão, satisfazendo deste modo um dever inerente às suas obrigações e Estatutos, pois o seu título assim o indica. Há muitos anos que lamentamos esta falta, para evitar a perplexidade da escolha, de qual delas seja a melhor, em que os mestres se acham para ensinar aos seus discípulos.

§14.º No mesmo embaraço se tem achado o Governo, que de quando em quando tem mandado que se ensinem nas Escolas Régias aquela ortografia que lhe apresentam inculcada pela melhor, que se não tem os defeitos das mais, tem às vezes outros maiores. E a das escolas particulares está a arbítrio da escolha dos mestres, que de ordinário não passam da que lhes ensinaram quando aprenderam, transmitindo assim uns aos outros os prejuízos que lhes ensinaram. Visto que logo nas definições de tais ciências se encontra tal confusão entre os escritores de gramática e ortografia, que a ambas dão o título de arte de escrever e falar.

(pp. 15-16)

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17. José Tavares de MACEDO (1801-1890) Elementos de orthographia portugueza / Por José Tavares de Macedo / Obra approvada pelo Conselho Geral de Instrucção Publica para uso nas Escolas, 2.ª ed. Lisboa: Typographia Universal, 1861 51 pp.; 19 cm

Estes Elementos de Orthographia Portugueza foram organizados para o

fim de se aprender a ortografia mais usada: se o autor quisesse expor o que lhe parece melhor nesta matéria, sem a menor hesitação preferiria a ortografia chamada de pronúncia, mas para que esta ortografia se pudesse adoptar

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convenientemente seria necessário fazer alguma alteração no nosso abecedário, o que só poderia fazer alguma corporação científica altamente ilustre, com anuência do Governo. No entanto cumpre seguir o mais geralmente usado.

(Prefácio) Das letras que se escrevem sem que se façam sentir na

pronunciação 33. Só se devem escrever com consoantes dobradas aquelas palavras, que

sendo derivadas de outra língua nela se escrevam com as mesmas consoantes dobradas. «Exemplo, Pallido de Pallidus, Illeso, de Illoesus: e seria erro escrever Addulação, Innundação.»

N. B.: Nesta regra não se fala dos RR e SS dobrados; porquanto estas duas letras têm motivos particulares para deverem dobrar-se no português.

34. As palavras derivadas nem sempre conservam as letras dobradas, que têm na língua donde vieram; porquanto o uso vai todos os dias diminuindo o emprego das letras dobradas: e só a observação pode ensinar as alterações, que nisto se tem feito.

(p. 23) 45. Em algumas palavras derivadas do Grego se costuma escrever Ph em

lugar de F; como em Propheta. Outros escrevem sempre F e nunca Ph. De qualquer forma que se escreva não é erro; contanto que se siga sempre o mesmo modo de escrever.

As palavras mais usuais, em que se pode escrever Ph, são as seguintes: Aphorismo. Alphabeto. Amphibio. Amphibologia. Amphiteatro. Antiphona. Aphta. Apocripho. Apostrophe. (p. 27)

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18. António Moniz Barreto CORTE REAL (1804-1888) Proposta de reforma orthographica submetida á Academia Real das Sciencias de Lisboa e varios appensos. Angra do Heroismo: Typ. Angrense, 1877 32 pp.; 24 cm

Alfabetu çoniku i çúa kurrespondencia kom u itimulojiku U alfabetu, cegunda maravilha du enjenhu humanu depois da invençãu

das linguas, kê foi a primeira, rekompostu pelus latinus, i adotadu logu por todus us povus du mundu, kujas letras embora devecem ter sido dispostas, cegundu a ordem dus orgãus kê mais influem na çua prununcia, em guturais gu,

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ku; lingó-palatais nhe, le, lhe, ne; linguó-palatais-cibilantes ce, ze; linguó-palatais-xiantes je, xe, is; linguó-palatais tremulantes rre, re; linguó-dentais de, te; dento-labiais ve, fe; labiais puras be, pe, me, reprezentam todas as vozes i artikulaçõis kê prufere a boka humana: u alfabetu, digu, nãu admite hoje alteraçãu nem nu numero, nem na ordem, nem nu aumento de novas letras, kê nãu punha em konfuzão i dezordem a kurrespondencia i harmunia das linguas i dus livrus du prezente, kom as linguas i livrus du preteritu i du futuro, ôrdenados i iskritus pur ele, cervindu até de algarismus as çúas lettras nas obras iskritas.

Izerciciu pratiku Cecem do çabio grego i du troianu As navegaçõis grandes kê fizeram Kale-ce de Alexandru i de Trajanu A fama das vitorias kê tiveram; Kê eu kantu u peitu ilustre luzitanu A kem Netunu i Marte ubedeceram Cece tudu u kê a muza antiga kanta, Kê outru valor mais altu ce alevanta (p. 5)

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19. José Barbosa LEÃO (1818-1888) Colèção de estudos e documentos a favor da refórma da ortografia em sentido sónico/ Publicada pelo Dr. José Barbóza Leão / cirurjião de brigada do Ezército. Lisboa: Imprensa Nacional, 1878. 149 pp.; 21 cm

Advertência Convencido de que não podíamos sem desdouro continuar como estamos

em matéria de ortografia, escrevi uma memória, na qual expus o nosso estado, fazendo ver que é verdadeiramente anómalo e inaceitável, e propus que saíssemos dele pela adoção da ortografia sónica, justificando este passo e

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indicando a maneira de o realizar. Publiquei anónima essa memória no fim de 1875, com o título de

Consideraçõis sobre a Ortografia Portuguesa; ofereci-a ao sr. conselheiro António Rodrigues Sampaio, ministro dos negócios do reino; e fi-la distribuir às repartições públicas e aos institutos de ensino superior, especial e secundário. Assim como fiz enviar algumas dezenas de exemplares à Academia Real das Ciências.

O meu pensamento era que a revolução que se precisava fazer, viesse de cima para baixo; porque assim, seria mais fácil e mais pronta. E para isso dirigi-me ao sr. ministro, primeiro sob o anónimo e depois pessoalmente, pedindo que exigisse de cada um dos conselhos dos liceus o seu parecer sobre a reforma proposta e sobre o modo indicado de a levar a efeito; que esses pareceres fossem publicados no Diário do Governo; e que depois se reclamasse da Academia o seu parecer como em segunda instância, sendo este publicado também no Diário. Entendia, e creio que entendia bem, que era o modo da importante questão ser convenientemente estudada o ficar devidamente esclarecida e conhecida.

Não vingou porem esta minha ideia. Opôs-se a junta consultiva de instrução pública, e o sr. ministro julgou não dever deixar de seguir o voto dela.

Tinha portanto errado o caminho; e entendi que devia mudar de rumo, a ver se o meu trabalho e sacrifícios não ficavam de todo perdidos para a causa da reforma ortográfica.

Pensei em se fazer a revolução debaixo para cima. Era empresa deveras árdua, mas animei-me a tentá-la.

No princípio do ano passado comecei a trabalhar nisso pelos meios ao meu alcance. O resultado dos esforços feitos no Porto foi o já conhecido parecer da comissão de reforma ortográfica, aprovado em reunião pública e remetido à Academia Real das Ciências por meio de representação: resultado transcendente, visto que a ideia da reforma da ortografia em sentido sónico recebeu ali uma certa sanção.

E desde então não tenho cessado de procurar fazer conhecida a reforma e as suas vantagens, nos termos propostos pela comissão do Porto; assim como a necessidade de realizá-la, e quanto antes.

Infelizmente a Academia não correspondeu à confiança que nela se

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depositou. Quis dar razão aos que, no Porto, se opunham a que o assunto fosse submetido à sua decisão, assegurando que ela não faria cousa alguma.

Com efeito, segundo adiante se verá, o procedimento da sábia corporação tira todas as esperanças: ela inspirou-se nos mesmos sentimentos que a junta consultiva de instrução pública. A aristocracia da ciência recusa-se a favorecer uma reforma, destinada a pôr a boa ortografia ao alcance de todos, a tornar a ortografia uniforme, e a uniformar também a prosódia.

Com o que tive mais uma prova de que a revolução se não faria de cima para baixo.

Foi o convencimento disso, que me levou a fazer esta publicação. (Advertência, pp. V-VI ) CONCLUSÃO

Em presença de tudo que fica exposto, parecem-me de todo o ponto lógicos os seguintes corolários:

1. É urgente dar à nossa língua uma ortografia normal. 2. Todas as considerações, e à frente delas a da necessidade de tornar fácil

ao povo aprender a ler e escrever, reclamam que se adote a ortografia sónica. 3.° Não podemos contar para isto com a Academia Real das Ciências. 4.° A norma natural a seguir é o Parecer da Comissão de Reforma

Ortográfica, que foi aceito pelo Porto e que fornece o conveniente sistema e um bom método para o levar à prática.

Ora, julgo que a razão fala pela minha boca, quanto às alterações que propus ao que se preceitua no parecer, e que por isso não deverão ser rejeitadas.

Nessa conformidade pois resumirei a sua doutrina em geral, e no tocante à ortografia normal provisória que propõe; a qual deve esperar-se que não deixará de se adotar.

(p. 135) Aí está pois, como cada um pode facilmente praticar a reforma nos seus

escritos. As regras são simples e claras: basta por tanto que haja um pouco de boa vontade, e o hábito de praticá-la será conseguido.

Por conseguinte em nome da grande causa da instrução do povo, apelo para os homens de boa vontade; apelo para os mancebos, certo de que nessa

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idade das paixões nobres há-de ser escutada a minha voz. Pregue cada um com a palavra e com o exemplo, e a importantíssima reforma será um facto.

Aí está um método da imprensa a poder levar à prática sem dificuldade. Apelo pois em particular para a gente de imprensa, porque, se ela quisesse, sem o menor esforço a nossa língua seria dentro de seis meses a primeira em perfeição ortográfica.

Em fim, ainda farei outro apelo: é ao belo sexo. Ele não estuda as línguas mortas nem sequer para fazer exame. A senhora

mais bem educada está portanto condenada pelos etimologistas a escrever sempre empiricamente. Em quanto que, adotada a ortografia sónica, poderia conscientemente escrever com toda a correção.

Apelo pois para a mulher. Ela que é amante, esposa, mãe, filha e irmã, nomes que significam o que há de mais sublime e profundo nos afetos humanos, ela que por isso tamanha influência tem em tudo, também pode aqui influir imenso.

Vou apresentar em seguida uma amostra dessa ortografia normal, que é preciso fazer agora adotar e seguir: nela estão praticadas as 23 regras. Tomo para isso algumas páginas d’um livro, que diz respeito exclusivamente à mulher, e que deve merecer-lhe a maior simpatia. Pelo que mais devo esperar que ela lhe agrade e obtenha a sua proteção.

E com o favor dos homens de boa vontade, particularmente os da imprensa e do professorado, com o da mocidade estudiosa, e com a proteção da mulher, sobretudo a professora, devo acreditar que esta publicação, que para que chegue ao conhecimento de todos, espalharei abundantemente no continente e ilhas, nas colónias e no Brasil, surta completamente o efeito que se deve desejar.

Se não for assim, paciência. Em todo o caso, terei sido fiel à minha divisa: Faze o teu dever, aconteça o que acontecer.

E continuarei a sê-lo; pois se viver e tiver a saúde precisa, antes de muito estará publicado o competente vocabulário português segundo a proposta ortografia normal provisória, e mais tarde teremos um dicionariozinho popular na mesma ortografia, — o qual poderá servir de norma, até Deus querer que a Academia publique o seu.

(pp. 140-141)

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20. José Jorge Paranhos da SILVA O idioma do hodierno Portugal comparado com o do Brazil./ Por um brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia de Lourenço Winter, 1879 22 cm

Se entendermos com Stuart Mill que duas palavras não formam uma só por serem escritas com as mesmas letras, havemos de concordar que o nosso vocabulário não é inteiramente o de Portugal.

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Tomemos para exemplo os vocábulos plutão e pelotão. Serão um só vocábulo porque em Portugal escrevem os primos pelotão, querendo mostrar conhecimento da etimologia?

Tomemos outros: sejam d’l’gado e delegado. Estes são tão diferentes, que só pelo sentido conhecemos se o de Portugal corresponde ao nosso; pois mesmo o hábito de ouvir os portugueses, não nos dá o meio de distinguir se ele corresponde antes ao adjetivo delgado.

Vamos a outro exemplo: tomemos os vocábulos bejo, como escrevem alguns poetas portugueses, e como nós pronunciamos; comparêmo-lo com bâijo, como pronunciam em Lisboa. Serão eles um e o mesmo porque se escrevem beijo em Portugal e no Brasil? Entretanto, aquele é entendido em Castela, porque se aproxima de beso, e este sê-lo-á talvez na Itália, porque se aproxima de bacio17.

Quem quiser observar, achará um grande número de vocábulos no caso destes, e quase podemos dizer como aquele naturalista alemão que citámos, quando comparava o português com o castelhano: «Quem estiver habituado18 com a diferença das pronúncias, e souber uma das línguas, entende facilmente a outra.»

17 O acento é na primeira. 18 Bem sei que o hábito vai fazer-me passar por exagerado. Paciência. Será só na cidade do Rio de Janeiro e em S. Luís do Maranhão.

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21. José Maria Latino COELHO (1825-1891) Parecer apresentado á Academia Real das Sciencias de Lisboa sobre a reforma orthographica proposta pela Commissão da Cidade do Porto. Lisboa: Typographia da Academia, 1879 20 pp.; 24 cm

A Academia não pode, em nosso aviso, deixar de render o merecido louvor aos cidadãos portuenses, que zelosos do idioma nacional, e lastimados da anarquia e confusão da sua ortografia, tomaram por encargo voluntário a empresa de evangelizar a sua pronta reformação. Está igualmente a Academia em singular

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obrigação àqueles ilustrados e diligentes cidadãos, pela sua primorosa deferência em sujeitar ao juízo desta corporação a reforma, de que se fizeram promotores. [...]

(p. 7) [...] [F]irmando-se a proposta reformação numa exata distinção dos sons

articulados portugueses, é forçoso que se veja, desde logo, quanto é profundamente científico, e ainda não de todo o ponto elucidado pelos mais célebres experimentadores na acústica fisiológica, o que se afigura fácil e elementar à Comissão reformadora.

Está feita com rigor a determinação dos sons elementares, de que se compõe a nossa linguagem portuguesa? É empresa de eruditos e filólogos, sem nenhum subsídio experimental e científico, ou trabalho de sábios consumados nas questões mais espinhosas da acústica novíssima? Foram acaso os gramáticos alemães, alheios aos processos da ciência, os que ensinaram a Helmholtz a distinguir, por exemplo, o A na pronúncia da Alemanha do Norte, da vogal do mesmo nome proferida por boca italiana ou inglesa? 19 São problemas estes porventura que possa resolver qualquer pessoa a seu próprio talante e inspiração, tomando apenas por seu guia o critério falível do ouvido ou da pronúncia individual?

E aqui se nos depara de improviso a segunda e não menos grave objeção. Dêmos que se realizou com a mais científica exação a análise dos sons articulados, e que sabemos a ponto fixo quais são os elementos da nossa língua. O princípio fundamental da ortografia fonética é a subordinação da escrita à pronunciação. A genealogia, a história, a evolução de cada palavra já não têm, não podem ter nenhum valor. O juízo individual será pois o árbitro supremo da ortografia, segundo é também soberana autoridade em assuntos de prosódia. Porque é sabido, que por única, uniforme, que seja a língua de uma nação das que têm um só idioma, são tantas pelo menos as variantes da pronúncia, quantas as regiões em que o seu senhorio se reparte, e onde as tradições, os hábitos, os costumes, as procedências etimológicas, as afinidades com os países comarcãos, imprimem à povoação um carácter provincial, distinto, autonómico moralmente. Qual será

19 Helmholtz, Die Lehre von den Tonempsindungen. (Teoria das sensações do tom) Brunswick, 1877, pag. 173.

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pois a prosódia que elegeremos como padrão para lhe referirmos a nova ortografia? A do Minho? A da Beira? A do Algarve? A de Lisboa? Mas na própria capital um ouvido mimoso e delicado, teretes et religiosæ aures, na expressão de Cícero, alcançaria vislumbrar, ainda entre gente urbana e cultivada, mais de uma diferença essencial.

À análise dos sons que não está feita, teria pois de seguir-se a fixação definitiva da pronúncia. E que esta determinação preliminar é absolutamente indispensável para a adoção de um sistema fónico de ortografia, o está denunciando a própria Comissão Portuense em seu Parecer. Tomando como postulados em muitos dos exemplos que elegeu certas maneiras de pronúncia, que não podem seguramente aquilatar-se como de boa lei pelos que se presam de bem pronunciar. As palavras escrever, espaço, effeito, estudo, e outras mais, que soam à Comissão com i inicial, pronunciam-nas os doutos, ao menos em Lisboa, com e mudo. Os vocábulos excepto e exame, que segundo o Parecer da Commissão se hão de figurar pronunciados como eiceto e izame, ninguém escrupuloso, não diremos de purismo impertinente, senão de tersa pronunciação, os receberá de boa mente com esta prosódia, que só pode caber em bocas menos afeitas a desprimores e corruptelas.

Daqui se tornam manifestos, evidentes, os erros que haveriam de seguir-se de levantar como regra e cânone de toda a fé em matéria de ortografia a pronúncia dos vocábulos, qual se afigura ao ouvido e parecer individual. E daqui podemos inferir um seguro fundamento para averbar de suspeição um sistema de ortografia, baseado unicamente na absoluta concordância, entre o som articulado e o carácter que o deve representar.

(pp. 13-15) [...] Em presença de quanto fica exposto, é o nosso parecer que a reforma

planeada pela Comissão Portuense não pode ser sancionada pelo voto da Academia.

Academia Real das Ciências, 6 de Fevereiro de 1879 M. Pinheiro Chagas, A. M. Couto Monteiro, J. M. Latino Coelho — Relator

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22. Agostinho de Jesus e SOUSA (1877-1952) A orthographia phonetica confirmada pela linguistica e biologia / Por D. Agostinho de Souza. Porto: Typographia Alliança, 1881 67 pp.; 22 cm

[...] [P]erguntamos ao sr. Latino [Coelho] se há porventura algum

princípio na moderna filosofia da natureza, quer se siga o sistema de Augusto Comte ou de Herbert Spencer, que vá de encontro20 à seguinte lei indutiva que julgamos autorizados a estabelecer [...]: É permitido eliminar na escrita todas as letras que não figuram na palavra falada a despeito do seu valor

20 [Ir de encontro, no sentido original, significando contrariar.]

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etimológico porque são órgãos sem função, sem vida, órgãos inúteis, ociosos. A física, a química, a biologia, todas as ciências da observação em uma

palavra, não procedem do mesmo modo? As leis de Ohm, a lei de Joule, a lei dos volumes de Gay-Lussac, a lei da hereditariedade, a lei da concorrência vital não são, como a lei acima estabelecida por nós, uma generalização dos factos? E se assim é, pode-se acaso censurar a Comissão portuense, como o sr. Latino deixa entrever em mais de um período do seu Parecer, escrevendo que ela estudara a questão apenas superficialmente, que deixando-se arrastar pelo princípio de simplicidade e utilidade se lhe afigurara fácil criar uma nova ortografia, e que, propondo a eliminação de letras que se não fazem sentir na pronúncia, não refletiu que com isso ia de encontro não só à etimologia, mas também às leis mais bem estabelecidas da linguística, da biologia e da sociologia?

Seguramente não. (p. 22) Ainda uma palavra sobre a etimologia, e temos concluído. Suponhamos que a reforma da ortografia no sentido fónico está realizada;

perguntamos, perder-se-á acaso a etimologia das palavras, a genealogia da língua portuguesa? Não haverá documento algum que possa orientar o linguista futuro para achar a origem latina da nossa língua?

Poderíamos responder com o sr. dr. Barbosa Leão que o Dicionário da Academia, feito segundo as indicações da Comissão portuense, conservará arquivada a etimologia de cada palavra, o que poupará ao linguista todo o trabalho que, aliás, lhe seria necessário para remontar da língua portuguesa, escrita segundo a ortografia fónica, à língua de Cícero.

Mas dêmos que ninguém se aventure à difícil tarefa de fazer um dicionário contendo adiante de cada palavra sua respetiva etimologia; os livros escritos conforme a ortografia atual não serão suficientes para empreender esse estudo?

A comparação dos livros posteriores à reforma e anteriores a ela, como os Lusíadas de Camões, reimpressos na ocasião da comemoração do terceiro centenário do grande poeta, não bastarão para nos dar a chave do enigma, o fio de Ariadna que nos conduza do português ao latim?

Quer-nos parecer que sim. Com efeito, comparando as formas português moderno objéto = ant. port., objecto = lat. objectum; aspéto = aspecto =

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aspectus, etc., o linguista concluirá que o grupo latino ct no moderno português (português posterior à reforma) se simplifica em t, e estabelecerá a seguinte equação: ct = t. Mas encontrando a palavra aspéto escrita aspeito (em poesia por exemplo) suspeitará que a lei ct = t não é geral, mas sim limitada pela seguinte ct = it. Ex.: pectus = peito; effectus = effeito; octo = oito.

Escusamos de traçar o método que revelará ao linguista futuro a origem latina da nossa língua. Mas limitamos somente a observar em geral que, fazendo o estudo comparativo do idioma português antes e depois da reforma, observará a queda de certas letras, e investigando a razão deste fenómeno chegará decerto a concluir que os portugueses nessa época não pronunciavam essas letras; notará mais a permutação de letras, o que lhe denunciará que as antigas tinham o valor fónico das novas e que por isso estas tinham substituído aquelas; notará ainda o emprego frequente de acentos, prova evidente de que, para evitar a confusão entre dois ou mais sons de uma mesma vogal se tinha recorrido aos acentos que a língua já possuía; etc.

(pp. 65-66)

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23. José Barbosa LEÃO (1818-1888) Princípios e régras para escrever em ortografia sónica. Porto: Livraria Gutenberg de António Jozé da Silva Teixeira, 1886 23 pp.; 22 cm

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O sr. dr. Jozé Barbóza Leão publicou á pouco, em ortografia sónica, um livro intitulado Elementos de Gramática Portugueza, com um apenso onde está perfeitamente justificada aquéla ortografia, da qual tem sido incansável evanjelizador. E tendo dedicado a sua óbra — Aos srs. Inspètores e Subinspètores d’Instrução Primária, e aos srs. Profesores Primários d’Anbos os Sexos —, deu a cada um d’estes um ezenplar d’éla; bem como o deu a cada um dos profesores dos 22 liceus do continente e ilhas adjacentes, e a indivíduos das suas relaçõis e outros.

Sabemos porem que muitas pesoas procurárão adqüirir esa obra, principalmente com o fim de pasar a escrever na ortografia d’éla, não o conseguindo por não ter o livro sido posto á venda. Asim como sabemos que muitísimas outras dezêjão tanbem escrever nesa ortografia, mas não o fázem, por não ter a conciência de poder fazel-o como déve ser.

Querendo pois abilitar todas esas pesoas a satisfazer os seus dezejos, e tendo obtido o consentimento do àutor, fazemos a prezente publicação; a qual consta das partes do livro, que ensínão o que élas para iso precízão saber, e que d’ele transcrevemos nesa mesma ortografia, para que a tênhão á vista.

O Editor.

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24. João Félix PEREIRA (1822-1891) Vocabulario sonico ou enumeração das principaes palavras portuguezas escriptas segundo as regras da orthographia phonetica precedido Da refutação da orthographia etymologica e seguido D’um episodio dos Lusiadas, escripto sonicamente / Por João Felix Pereira... Lisboa: Imprensa de Lucas Evangelista Torres, 1888 LXI, 274 pp.; 18 cm

Diziam abalizados professores de instrução primária, em uma representação sobre ortografia que, em 1878, dirigiram à Academia das Ciências: «A ortografia portuguesa é um caos, um verdadeiro Proteu de mil formas caprichosas, que, na escola primária, se transforma em cabeça de

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Medusa, para tormento dos alunos e desespero dos professores!»21 Nunca se proferiu sentença mais verdadeira. Com efeito, a ortografia

usual, que é a chamada ortografia etimológica, não é nem etimológica nem sónica; é uma cousa monstruosa. [...]

Além das contradições, em que os etimologistas em seus dicionários incessantemente se abismam, tornam-se mui reparáveis os descuidos, irreflexões ou inadvertências, que, de contínuo, cometem nos mesmos dicionários: pois outro nome não sei que possa ter o dobrarem letras em dicções de que eles não conhecem etimologia — accordar, caramello, fallar, panella, etc. — ou em que a etimologia, por eles admitida, não justifica semelhante duplicação — parcella (de pars), cotovello (de cubitus), etc. — deixarem de empregar, em vocábulos de etimologia desconhecida, a consoante mais apropriada — mangericão, giboia, etc., em vez de manjericão, jiboia, etc. — empregarem, em vocábulos de etimologia conhecida, consoantes não abonadas por esta etimologia — herege (de hereticus) em lugar de hereje, etc. — empregarem, em palavras de etimologia desconhecida, vogais em desacordo com a pronúncia — goraz, morrão etc., em vez de guraz, murrão etc.: — usarem, sem necessidade, em termos de etimologia desconhecida, duas consoantes em lugar d’uma — borracho, cachorro, etc., em vez de borraxo, caxorro, etc. [...]

Os descuidos, irreflexões ou inadvertências destes diferentes géneros orçam por alguns milhares.

Não são unicamente as contradições e os descuidos que assinalam a ortografia dos dicionários etimológicos. Estes são uns verdadeiros labirintos. Tudo aí é incoerência, desconformidade e confusão.

(pp. IX-XI)

Com a ortografia que propomos, introduzidas que fossem as letras, que faltam, no alfabeto usual, acabariam de vez todas as complicações ortográficas, letras nulas, dobradas ou não dobradas, cedilhos ou cedilhas, tis, tremas ou diéreses, acentos ou sinais de acentuação, sílabas de cinco letras, o ocioso u depois do g e do q, o s valendo z entre vogais, o x com cinco valores, o pífio h, que nem é letra, o aristocrático y &. 21 Esta representação era assinada pelos bem conceituados prof. Brito Freire, Costa Rodrigues, Simões Raposo, Cruz Alfaia e Lopes Pacheco.

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Em nossa ortografia, guardamos todo o possível rigor acústico. O fonetismo é a base mais sólida para uma ortografia normal: não se pode ser mais ou menos sónico. A etimologia não é base segura, por isso que se pode ser mais ou menos etimológico. Atrás vimos que, de cinco maneiras, a ortografia etimológica escreve o vocábulo que a sónica, d’uma só maneira, escreve izêntu.

Para escrever bem, segundo a ortografia sónica, dispensa-se todo e qualquer preceito, ou o único preceito é saber o abecedário e pronunciar bem as palavras.

(pp. XVI-XVII) O dr. João de Deus, no Bejense, de que era redator, em 1861, depois de

repreender o padre Macedo, por suas exigências ortográficas, diz, com muita graça:

Estou a imaginar uma virtuosa mãe a ensinar a ler a sua filha. — Pomba, venha cá; são horas de lição: que é da cartilha? Abra: diga: pê,

agá, á, ó, til. Fão. — Ouviu, minha filha? Diga outra vez; ora vamos: pê, agá, á, ó, til?...? Fão,

minha filha! pois não ouves? — Quê, mamã? — Olhe, repare a minha joia: pê, agá, á, ó, til?...? — Til, mamã. — Não, filhinha!, pois não ouves: pê, agá, á, ó, til? Fão. Jesus!, não estás

atenta! Não ouves dizer fão? — Também a mamã diz til! — Mas tudo, meu amor! Tudo faz fão. Vamos a ver outra vez; agora diga

fão. Repare: pê, agá, á, ó, til ? — Mamã! — Diga. — Mamã!! — Então não diz? — Mamã!!! Não diz, e as lágrimas já lhe estão a ferver nos olhos em borbotões. É o

horror inato ao absurdo. (p. XXXIII)

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25. Cândido de FIGUEIREDO (1846-1925) A questão orthographica. Carta ao Ill. e Ex. mo Sr. Conselheiro Jaime Moniz, presidente da commissão nomeada na Academia Real das Sciencias, para dar parecer acerca da orthographia que deverá ser adoptada no diccionario da mesma Academia / Por Candido de Figueiredo... Lisboa: Typographia Mattos Moreira, 1887 8 pp.; 21 cm

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Se bem me recordo, o respeitabilíssimo académico, o sr. Latino Coelho, numa sessão da Academia, há onze ou doze anos, anunciou que estava concluída a primeira folha do dicionário, e que, depois de impressa, seria presente à mesma Academia, para que esta se pronunciasse acerca do seu sistema de trabalho. Nessa ocasião, ousei pedir a palavra para lembrar que, antes de começar a impressão do dicionário, havia uma questão prévia a resolver — a da ortografia; que a Academia, encarregando o sr. Latino Coelho da direção do dicionário, reservara para si a competência neste assunto; e que portanto me parecia preferível resolver-se primeiro a questão, porque, da impressão da obra antes dessa resolução, poderiam resultar inconvenientes evidentes.

Além da questão ortográfica, há, para um dicionário que deve ser modelo, a questão prosódica. A pronúncia portuguesa oferece sensíveis variedades, de província para província, e até de indivíduo para indivíduo. Esta circunstância tem sido o lado mais frágil das pretensões do meu laborioso amigo o sr. Barbosa Leão, o incansável propugnador da ortografia sónica. Há muitos anos lhe dizia eu já, que ele estava trabalhando na areia, pelo menos enquanto se não resolvesse a questão prosódica. Nenhum de nós aceita como incontestável e correta a pronúncia do sr. Barbosa Leão, nem ele aceita a nossa, enquanto as autoridades competentes a não sancionem. Essa sanção pode vir do Dicionário da Academia, se nele se atender à questão prosódica.

(pp. 2-3)

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26. José Leite de VASCONCELOS (1858-1941) As lições de linguagem do Sr. Candido de Figueiredo: anályse critica / Por J. Leite de Vasconcelos, 2.ª ed. Porto: Magalhães & Moniz, 1893

A gramática do Sr. Epifânio Dias A pág. 55 das suas Lições tem o Sr. C. de F. as seguintes arriscadas

afirmações: «A gramática, ou seja de Bento ou do Epifânio, ou do Eufrásio, ensina muitas definições, nomes esdrúxulos e majestáticos.... mas.... não ensina português». Também a pág. 443 diz numa nota: «Não vou muito com o Epifânio».

A respeito da Gramática do Sr. Bento José de Oliveira, estou de acordo, porque ela não ensina português (cf. o meu opúsculo A filologia portuguesa, Lisboa 1888, pág. 44-45); a gramática do Eufrásio, que é provavelmente algum compadre do Sr. Cândido de Figueiredo, não a conheço, e portanto não a posso julgar; a respeito porém da Gramática do Sr. Epifânio Dias, sempre notarei ao Sr. C. de F. que ela ensinará um pouco mais que as Lições práticas de linguagem portuguesa...

O Sr. Cândido de Figueiredo não adquiriu ainda a noção do que é a ciência filológica; por isso, tudo lhe parece fácil de resolver, e não vê a diferença que vai de uma Gramática como a do Sr. Bento à Gramática do Sr. Epifânio. Quem deu autoridade ao A. para dizer que esta última não ensina português? Quando se faz assim uma afirmação, trazem-se provas: e, quando se trata de um professor de tão conhecidos e provados méritos científicos como é o Sr. Epifânio Dias, espera-se da parte do censor mais alguma delicadeza, pelo menos.

O Sr. Epifânio Dias não precisa de quem o defenda, nem ele por certo se incomoda muito com as acusações infundadas que lhe dirigem; todavia, já que estou escrevendo para leitores muito diversos, pede a justiça que eu rebata as asserções do Sr. Figueiredo.

Numa língua, em geral, temos de considerar três ordens de fenómenos fundamentais: os sons, as formas das palavras, e as frases; por isso o Sr. Epifânio, à semelhança do que noutras gramáticas estrangeiras (alemãs, etc.) se fazia, dividiu muito justamente a sua Gramática portuguesa em

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fonologia, morfologia e sintaxe, o que logo à primeira vista faz considerar a língua sob um aspecto geral muito diverso daquele sob o qual a víamos nas outras gramáticas.

Estas estudavam sobretudo a morfologia, a que impropriamente chamavam etimologia, pois a função da etimologia, na gramática prática, é só o estudo da formação das palavras, e não também o da sua classificação e acidentes. Nessas gramáticas, que datam já do séc. XVI, achou o Sr. Epifânio, sem dúvida, muitos materiais aproveitáveis de morfologia, mas, além dos factos que juntou de novo, ou a que destinou lugar mais conveniente, coordenou tudo com um método científico que ainda antes dele não havia sido aplicado por completo em Portugal à gramática portuguesa elementar.

Ao que nós chamamos atualmente fonologia chamavam as antigas gramáticas prosódia e ortografia; mas a ortografia não é parte essencial da gramática, pois uma língua pode ser só falada, não se escrever, e nesse caso não tem ortografia, como acontece a muitas línguas selvagens, que são aliás línguas tão perfeitas como as mais cultas que haja; e a prosódia ocupa-se particularmente do acento e da quantidade, e não pôde entrar em considerações acerca da classificação, representação e modificações dos sons. Também por este lado achou o Sr. Epifânio muitos dados nas gramáticas que o precederão; aplico, contudo, aqui o que acabo de dizer a propósito da morfologia: se há na sua gramática factos já sabidos, há outros ainda não arquivados, e a disposição é nova e mais científica, — e sempre num livro elementar o que principalmente se busca é a lógica dos factos, para que o espírito logo desde o princípio se encaminhe bem.

A sintaxe é na gramática do Sr. Epifânio uma parte quase toda nova, um trabalho muito interessante e muito copioso, onde vêm tratadas com regularidade as principais questões que se hão de exigir num livro destes, destinado aos primeiros estudos liceais.

Se o Sr. Cândido de Figueiredo não vê isto que digo, é porque não sabe, ou porque não quer: se não sabe, não venha falar ex cathedra, e com arreganho, acerca daquilo em que não está inteiramente firme; se não quer, então a sua crítica deixa de o ser, para se tornar mero palavreado oco.

Muitas vezes ouve-se dizer que a gramática do Sr. Epifânio é obscura: eu tenho ensinado por ela muitas dezenas de crianças, e nunca trecho algum

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dos estudados deixou de ser entendido; donde concluo que ou o espírito dos que asseveram isso vive ainda noutra esfera, ou que estes a não leram com serenidade e atenção.

Já se vê que não há livro nenhum sem imperfeições, e eu mesmo reconheço algumas naquele que estou elogiando; mas, se o Sr. Figueiredo era capaz de as notar com consciência, e julgava oportuno comunicá-las aos seus leitores, notasse-as francamente, e não viesse com meias palavras dizer mal em absoluto daquilo que assim o não merece.

A Gramática elementar do Sr. Epifânio Dias, até à data atual, é, no seu género, a melhor de todas as gramáticas portuguesas.

Eu sei além disso que ele (que é um espírito todo votado à ciência prática) trabalha há muitos anos numa gramática histórica, desenvolvida, da nossa língua, de que já boa parte está pronta, e em que principalmente a sintaxe, em que ele tem competência especialíssima, por ser o nosso primeiro latinista, e latinista à altura da filologia moderna, constitui um trabalho muito apreciável.

(pp. 14-17)

Dezaseis Lê-se no Sr. Figueiredo: «Diz-se geralmente desasseis e desassete, e assim

o escrevem muitos. Mas é pronúncia incorreta e escrita errónea. É deseseis ou dezeseis, e desesete ou dezesete, e desenove ou dezenove.»

Ponho de parte o ser com um s ou dois ss, e o escrever-se des- (que é absurdo) em vez de dez-, e vou só à questão de a por e. Mais uma vez o Sr. Figueiredo não alega razões. Esquecimentos! Ninharias! Pois era natural sabermos por que se há de dizer dezesete e não dezasete, etc.

Provavelmente diz-me o Autor: — 17 é composto de dez e sete. Mas então digo eu: como a conjunção e se pronuncia i, e não e, eu devo dizer dezisete, e não dezesete como o Sr. Figueiredo aconselha! Ora o que é certo é que não só a pronúncia vulgar de todo o país é com a (dezanove, dezaseis, etc., sendo pedantismo dezenove, dezeseis, etc.), mas que já em Autores antigos encontramos assim, o que eu poderia provar com centenas de textos se fosse necessário. (Em Bernardes, por ex., Nova Floresta, II, 114, dezanove; em F. M. Pinto, Peregrinações, cap. XIX, dezassete, etc. etc.)

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Esse a explica a razão por que em Lisboa se diz oito com ô, e dezoito com ó: é que dezóito não se compõe de dez + oito, mas sim de dez + a + ôito (como dezanove = dez + a + nove, dezasete = dez + a + sete), onde a + ô deu ó, como sucedeu com o arcaico maôr que deu mór. [...] Aqui está uma pequena amostra de como o método linguístico chega a resultados certos.

Não obstante isto, na Orthographia Portuguesa dos Srs. Santos Valente e Francisco de Almeida, Lisboa, 1886, dá-se menos avisadamente dezóito como erro, e manda-se sem motivo pronunciar dezôito (Ob. cit., pág. 154).

[...] A respeito das palavras dezasete e dezanove dá-se até a coincidência de ser em italiano também diciassete e diciannove. Já Diez explica estas formas italianas, como as portuguesas, por meio da preposição a, do lat. ad; também na língua valáquia as unidades se unem às dezenas por uma preposição que corresponde ao nosso a. (Vid. Diez, Grammaire des langues romanes, II, 409.)

Mais uma vez eu mostro pois ao Sr. Cândido de Figueiredo que o desconhecimento da história da língua faz dar contínuos tropeções no terreno que à primeira vista se supõe liso e macio.

(pp. 27-29)

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27. Aniceto dos Reis Gonçalves VIANA (1840-1914) Vocabulário ortográfico e ortoépico da língua portuguesa conforme a Ortografia Nacional do mesmo autor. Lisboa: Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira e C.ta, 1907 XXXVI, 943 pp.; 19 cm

Adverténcia preliminar Em 1904 publiquei a Ortografia Nacional, em que, metódicamente e com

fundamento na história da língua portuguesa, procurei minuciosamente expor os meios de simplificar e regularizar os vários modos pelos quais ela tem sido e é

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escrita, discutindo-os e reduzindo-os a um sistema único, assente em bases firmes e quanto possível inalteráveis. Recebi por essa ocasião instantes recomendações para dar a lume um vocabulário em que, evitando qualquer discussão, alfabéticamente apresentasse apenas os resultados práticos da reforma, para uso daqueles 22 que a julgassem oportuna, mas não tivessem tempo, competéncia ou paciéncia para apreciar essas bases, exercer sobre elas crítica e formar juízo seguro, pelo qual se guiassem na execução da reforma, que em globo aceitavam, porque a tinham por boa nos seus lineamentos gerais.

Fôra já intenção minha, ao ficsar essas bases e os preceitos que se deduzem delas, publicar um vocabulário, que servisse de norma na escrita de todas as palavras e formas portuguesas. Escasseava-me todavia o tempo para realizar êsse intento, como desejava, da maneira mais profícua, pontual e completa. O meu amigo Guilherme de Vasconcelos Abreu, perfeitamente senhor do método e que em todo o meu empenho me acompanhara sempre, instigou-me a que entre ambos déssemos execução à obra, a nosso ver meritória; e como ninguém mais dilijente, nem mais escrupuloso, nem mais sabedor que êle eu poderia encontrar, aceitei de boa mente a valiosa colaboração oferecida, e decidimos os dois proceder quanto antes à execução do trabalho, ficando resolvido que êle o esboçasse, colijindo ordenadamente os vocábulos e formas, já acertadas segundo o plano ortográfico mencionado, e que eu ampliaria cada inscrição ao depois, gradualmente, com os elementos de informação indispensáveis para que a obra fôsse verdadeiramente útil ao público, e lhe servisse de guia prática ortográfica, em harmonia com êste sistema.

Como nenhum de nós dispusesse de meios pecuniários suficientes para custear a publicação, dirijimo-nos à Livraria Clássica Editora, que já afoutamente dera à estampa as minhas Apostilas aos dicionários portugueses, e propusemos-lhe a edição do Vocabulário: a empresa bizarramente se prontificou a editá-lo, pelo quê lhe tributo aqui os meus agradecimentos.

No emtanto agravavam-se ao estimado e eminente professor os padecimentos que há tanto tempo o atormentavam, e de que faleceu no primeiro dia de fevereiro deste ano, deixando indelével saudade em todos aqueles que de perto conheceram e puderam devidamente apreciar tam

22 [No impresso daquelles, que é emendado com uma nota manuscrita de Viana no exemplar oferecido a Leite.]

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incansável e douto filólogo, e tam acrisolado amigo e probo cidadão. O manuscrito ficou por êle esboçado quási até o fim da letra C, e assim me foi entregue pela sua consternada família.

Forçoso é para mim agora completá-lo até essa letra, e fazer o resto, convém saber, pelo menos quatro quintas partes da obra, desajudado e sem colaboração, porque difícil fora encontrá-la em qualquer outro escritor, que não estaria bem ao facto do método, ainda quando possuísse outras condições, imprescindíveis para essa coadjuvação. Dilijenciarei, pois, que a execução da obra, agora só a mim confiada, corresponda fielmente aos princípios em que assenta e que mereceram a anuência e o aplauso das pessoas desinteressadas e competentes que a êste assunto circunspectamente, em Portugal e fora dêle, teem prestado a sua atenção, e bem assim os de todos os que entendem que devemos quanto antes regularizar a nossa escrita, como convém a um idioma possuidor de vasta e estimada literatura.

Devo ainda dizer que este sistema ortográfico despertou no Brasil eco aprovador, pois vejo que a intentada reforma, empreendida agora pela Academia Brasileira, coincide nas suas simplificações absolutamente quási com as que defendi na Ortografia Nacional; dissentindo, porém, do meu plano a douta corporação em alguns pontos, a que mais adeante me referirei; diverjéncia em que não posso em consciência acompanhá-la, pois a aceitação da sua doutrina ficaria em contradição com a esséncia do método que me guiou, isto é, a história da língua, cientificamente estudada. A minha cedéncia em tais pontos aluiria, na realidade, pelos alicerces uma importante parte construtiva do plano, resumida nos três preceitos que a pájinas 287 da Ortografia Nacional ficaram expostos, e são os seguintes, que reproduzo aqui literalmente.

«I — Tudo o que se diferença na fala tem de ser diferençado na escrita.» «II — Todas as pronunciações lejítimas devem ser representadas na escrita

comum, para que a língua escrita seja uma só.» «III — Todos os artifícios etimolójicos inúteis, ou que se não expliquem

pela evolução da língua falada, serão desterrados da escrita portuguesa, como contrários à sua expressão gráfica.»

Ora, várias alterações admitidas pela Academia Brasileira, entre elas a substituição de s a ç inicial, e a de z a s intervocálico, contradizem o II preceito; a falta de acentuação escrita desatende o primeiro, essencialíssimo.

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Não convém pois generalizar-se a Portugal a reforma brasileira, quando contradiga, como dêste modo contradirá, factos glóticos próprios do reino, e que pertencem à história da língua portuguesa, nele desenvolvida; e nenhuma das considerações que na imprensa da grande e próspera República teem aparecido, com o intento de colocar o português de Portugal na dependéncia do português do Brasil, é plausível ou aceitável, mesmo no ponto de vista filolójico, único que deve ser tido em consideração para o caso sujeito. Não o é, pelos mesmos motivos pelos quais nem o inglês dos Estados Unidos do Norte da América, nem o castelhano das várias nações de orijem espanhola, estabelecidas em todo o Continente Americano, podem servir de pauta nem dar leis ao inglês ou ao castelhano da Europa. Sôbre tam infundadas pretensões é conveniente que se tenha em atenção o que a tal respeito lúcidamente expuseram Guilherme Dwight Whitney e Jorge Perkins Marsh com relação ao inglês, e Rufino José Cuervo acêrca do castelhano, apesar de serem todos três das primeiras autoridades nesses idiomas, e todos três americanos.

A alma mater continuará a ser para o português Portugal, como para o inglês a Inglaterra, como para o castelhano a Espanha, emquanto estas nações subsistirem; e muitas, muitíssimas alterações e importantíssima evolução hão de sofrer os três idiomas nos países onde êles se orijinaram, antes que esses países desapareçam políticamente da face da terra e do desenho dos mapas.

Nem é sómente isto. Admitido mesmo num distante porvir esse aniquilamento, o espírito destas nações perduraria ainda por tempo incalculável: o latim universal era o latim de Roma, como o grego comum era o da Grécia, como o italiano literário é o da Toscana.

Sobre tais factos não há discussão possível, tam evidentes êles são. Se à Academia Brasileira apraz estabelecer um cisma ortográfico, o qual poderia evitar com uma razoável condescendéncia, que em nada influi nos princípios gerais e essenciais da reforma, Portugal, por si, tem de manter-se no lugar que por herança lhe compete, como defensor do idioma pátrio, que criou, ilustrou e continua a ilustrar e a cultivar.

O que vale, porém, para a aceitação da reforma, é que em minudéncias apenas a ortografia brasileira aprovada pela Academia diverje do plano que expus e defendi, e agora exemplifico pelo Vocabulário.

(pp. V-IX)

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28. António BARRADAS (1887-1954) Ortografia Portuguesa Oficial. Pequeno vocabulário ortográfico. / Organizado por António Barradas. Porto: Livraria Moderna, 1911 91 pp.; 14 cm

Neste esboço de Vocabulário apenas vão compendiadas as palavras que serviram de exemplificação às regras expendidas no Formulário e no Prontuário pelo douto relator sr. Gonçalves Viana.

Não que essas palavras sirvam de cabedal suficiente para todas as necessidades da consulta; mas porque, reconhecida a necessidade urgente de um vocabulário já adaptado à nova ortografia e na impossibilidade, dupla para mim, de tempo e de competência, de organizar um vocabulário completo, me pareceu que faria obra de alguma utilidade se ajeitasse por ordem alfabética esses cerca de mil vocábulos, que, por assim dizer, servirão de tipo para outros

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em cuja escrita se suscitem dúvidas. Exemplificando: procura-se saber se a palavra notabilizar tem s ou z na

sua escrita, e não se encontra esta palavra vulgar neste vocabulário, como em nenhum dos dicionários da língua portuguesa que eu conheço, mas se o consulente reflete que naquela palavra existe o sufixo -izar procura outra palavra com aquele sufixo, realizar por exemplo, que encontra.

Deseja outra pessoa saber se a palavra grácil deve ser graficamente acentuada; não a encontra. Mas encontra fácil, por onde reconhece por analogia, que aquela primeira palavra deve ter acento agudo na sílaba tónica; etc., etc.

É na verdade reduzido o número de vocábulos, reconheço-o, mas a insistência com que me tem sido pedida por alguns colegas no professorado livre a publicação rápida da obra desde que foi anunciada a sua próxima aparição obriga-me a não a adiar por mais tempo e a reservar-me para multiplicar o número atual dos vocábulos em futura edição, se esta obrinha tiver a fortuna de a ter.

À margem de cada vocábulo vão algarismos romanos ou árabes: os primeiros indicam os números do Formulário e os segundos os do Prontuário em que a palavra é citada como exemplo da regra exposta.

Assim esta obra vem prestar um serviço que o Relatório da Comissão só por si não podia prestar, e tal é: uma pessoa quer saber a escrita correta de uma palavra: procurando-a pela ordem alfabética encontra-a rapidamente o que não sucedia na consulta ao Formulário ou ao Prontuário; se desejar ainda saber as razões de escrita procurará a sua justificação na regra respetiva de um ou de outro daqueles documentos.

Com isto só, suponho já ter prestado um pequeno serviço às numerosas pessoas que, por desempenharem funções oficiais, têm de usar a ortografia oficial e ainda àquelas pessoas e entidades que, e numerosas também são elas já, voluntariamente a adotaram. À primeira categoria pertencem os professores e alunos das escolas de ensino oficial, os impressores e revisores de documentos e publicações oficiais e de obras de ensino oficial, bem como os autores estas obras, os empregados públicos, etc. À segunda categoria pertence já grande número de diários, revistas, professores e escolas de ensino particular, etc., etc.

(pp. 63-65)

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29. J. Teles Gramática portuguesa. Ortografia e pronúncia da língua portuguesa conforme as bases e regras estabelecidas oficialmente para a sua unificação, regularisação e simplificação / Por J. T. Viseu: Tipografia Central, 1912 51 pp.; 27 cm

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Depois da publicação oficial das bases para a unificação e simplificação da escrita portuguesa, estabelecidas pela comissão nomeada pela portaria de 15 de Fevereiro de 1911, reconheceu-se a necessidade de sintetizar e sistematizar essas bases, de forma a facilitar o seu estudo.

Com este fim, publicaram logo alguns periódicos umas regras ou preceitos, mas todos em número muito restrito, e que por isso, só serviram para aumentar ainda mais a diversidade de grafias já existentes, sem justificação.

Era necessário fazer aquele trabalho de sintetização com economia de texto, e de forma a reduzir, quanto possível, o número de regras e preceitos estabelecidos pela comissão, mas sem omitir nenhum deles, porque a todos é necessário atender, para uma grafia correta.

Foi isto que tivemos em vista no modesto trabalho que vamos apresentar aos leitores do Comércio de Viseu, contribuindo assim para o ensino fácil da leitura e da escrita da língua portuguesa.

Não é pois, um trabalho original senão na forma, e, para esclarecimento do

texto, introduzimos-lhe ainda algumas definições que entendemos necessárias, extraídas da excelente Gramática Portuguesa do sr. Doutor António Garcia Ribeiro de Vasconcelos, para a 3.ª, 4.ª e 5.ª classes do curso dos liceus.

(Prefácio)

Letras dobradas 66. As únicas letras que se dobram ou duplicam na escrita dos vocábulos

são as consoantes m, n, r, s, as vogais e, o, e raras vezes o a. As consoantes somente se dobram no interior dos vocábulos, quando a

pronunciação assim o exige, para lhes conservar o valor inicial, como sucede nas seguintes palavras: emmalar, ennegrecer, carro, cassa, comparadas com emanar, enervar, caro, casa.

As vogais também só se dobram no interior dos vocábulos, quando se proferem, como em coordenar, empreender, cooperar, Isaac.

O m e o n duplicam-se ainda respetivamente nos prefixos em-, en-, antes dos vocábulos começados por m ou n a que se juntam, como em emmalar de mala, emmolhar de molhar, ennodoar de nódoa, ennastrar de nastro, ennovelar de novelo.

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O r dobra-se entre vogais para lhe conservar o valor inicial forte, como já se disse em 51, e ainda se duplica quando a um vocábulo começado por esta letra se acrescenta prefixo terminado em vogal, por ficar o r entre vogais, a fim de lhe conservar também o valor inicial; ex.: carrada, carreta, carro, arrumar, farrusca; arrasar (de raso); arrostar (de rosto); prorrogar, derrogar (de rogar); corroer (de roer).

O s dobra-se entre vogais quando a pronúncia o exige para lhe conservar o valor de s surdo, e ainda quando a um radical, ou a um vocábulo, começado por s, se acrescenta um prefixo terminado em vogal, se o s se profere surdo, escrevendo se simples se é pronunciado sonoro; ex.: assistir, assombrar, assumir, ressugir, ressuscitar, pressentir, assegurar (de seguro); mas residir, presente, resumir, resignação, prosunção, etc.

(pp. 44-45)

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30. [David LOPES (relator) (1867-1942)] Academia das Ciências de Lisboa. Comissão do Dicionário. Relatório apresentado à Assembleia Geral sobre o convite para colaboração na reforma da ortografia portuguesa feito à Academia Brasileira. Lisboa: Imprensa Nacional, 1914 12 pp.; 24 cm

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Senhor Presidente e Ilustres Consócios: A vossa Comissão do Dicionário vem prestar-vos contas duma proposta

que no ano passado vos fez e que vós aprovastes. Como sabeis, o Governo Provisório da República nomeou, pelas portarias

de 15 de fevereiro e 16 de março de 1911, uma comissão que regularizasse e simplificasse a ortografia portuguesa; e as conclusões a que ela chegou foram mandadas aplicar às publicações oficiais desde 1 de setembro de 1911. Dessa comissão faziam parte alguns dos nossos consócios muito competentes na matéria, mas nesta qualidade apenas e não como académicos.

Tendo sido posta de parte em assunto da sua competência, a Academia desejou continuar os trabalhos do dicionário, havia muito tempo interrompidos, e na assembleia geral de 2 de março de 1911 elegeu a nova comissão atualmente em função. Esta comissão instalou-se em 27 de abril seguinte, e resolveu estabelecer primeiro as bases da ortografia a adotar, independentemente das da comissão oficial. A vossa Comissão terminou esta tarefa na sua sessão de 21 de março de 1912, como sabeis.

Antes, porém, que ela concluísse esta parte do seu trabalho deu-se um acontecimento que a encheu de júbilo. Na sessão da segunda classe de 8 de junho de 1911, o nosso consócio Sr. Lúcio de Azevedo propôs, por sugestão do Sr. José Veríssimo, da Academia Brasileira de Letras, um acordo entre as duas academias para a uniformização da ortografia portuguesa. Agregado à comissão, o Sr. Lúcio de Azevedo, na sessão de 20 de Junho, comunicou-lhe e leu uma carta do Sr. José Veríssimo em que este diz que um convite da nossa Academia à Academia Brasileira e julgava conveniente que ele só viesse depois de férias. Em carta, efetivamente, o Sr. Secretário da segunda classe participou ao Sr. José Veríssimo a resolução da comissão e da classe.

Aqui tendes a exposição fiel do que se passou entre a nossa Academia e a Academia Brasileira para efeito da colaboração de ambas na reforma ortográfica. Mas isto passou-se, digamos assim, na sombra, porque ao nosso convite não se respondeu até hoje, e à luz do sol só apareceu uma representação da Academia Brasileira, publicada no diário de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, no número de 3 de agosto de 1912, em que se solicita do chefe do dito Estado que não tome em consideração a representação em que o professorado primário daquele Estado pede a aprovação da reforma oficial portuguesa. Nessa

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representação, assinada pelo primeiro secretário da Academia Brasileira, cometem-se erros de facto, e põe-se em dúvida a nossa boa-fé.

Diz assim: «[...] Desde o princípio do ano de 1900, membros desta Academia, ainda em antes de conhecerem os notáveis trabalhos do eminente filólogo português Sr. Gonçalves Viana, e também depois de os conhecerem, tinham discutido pela imprensa desta cidade a questão ortográfica na nossa língua. Nesse mesmo ano foi a questão submetida à apreciação da Academia, que desde então entrou dela a ocupar-se, até que, em 17 de agosto de 1907, publicou, sob o título de Bases do Vocabulário Ortográfico, as regras em que concordara para a ortografia das suas publicações... Isto se passou quatro ou cinco anos antes que Portugal, estimulado pelo Brasil, porque é já hoje inevitável que Portugal nos procure acompanhar passo a passo, chegasse a concluir a sua reforma ortográfica. São os próprios sabedores portugueses mais empenhados na reforma que reconhecem a nossa precedência, ao menos quanto à sua realização. Verifica-o o Sr. Gonçalves Viana no seu Vocabulário Ortográfico, p. VII, e a Sr.ª D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos certifica a mesma cousa na Revista Lusitana, n.os 1 a 4 (1911). Igual verificação faz o Sr. Cândido de Figueiredo em vários escritos seus, e particularmente em seu livro A Ortografia Portuguesa. Não presumiu jamais a Academia Brasileira que o seu sistema ortográfico prevalecesse contra o que tentavam os portugueses. Sabendo que o nosso eminente compatriota Sr. Assis Brasil, então nosso representante diplomático em Lisboa, na qualidade de membro da respetiva Academia, lhe propusera que ouvisse o Brasil sobre a reforma ortográfica por ela projetada, não teve dúvida a Academia, ou antes, membros seus, de fazerem saber à Academia de Lisboa que a do Brasil teria grande satisfação em colaborar com ela numa obra da maior importância para a língua comum. Pesa-nos dizer, em desabono da Academia de Lisboa, que nem a proposta daquele nosso distinto compatrício, nem as aberturas feitas por académicos brasileiros e portugueses lhe mereceram a demonstração da sua boa cortesia para connosco. Limitaram-se, quer a Academia de Lisboa, quer a comissão

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oficial saída toda de seu seio, a nos comunicar que estavam prontas a entenderem-se connosco... depois de terem votado as suas decisões, firmado as suas reformas, estatuído as suas regras, que desde 1 de setembro do ano passado foram decretadas para toda a República e suas colónias. Os ofícios da Academia de Lisboa à Academia Brasileira, convidando-a para colaborar em resoluções definitivamente assentadas e decretadas meses antes, são respetivamente de 18 de janeiro e de 18 de maio deste ano de 1912. Parece à Academia Brasileira que, à vista destes factos, não fica bem a uma porção do Brasil, fazendo de colónia portuguesa, aceitar uma reforma que tão imediata e diretamente nos interessa, e para a qual não nos quiseram ouvir, a nós que tínhamos todo o direito de ser ouvidos, porque somos, incontestavelmente, em tudo e por tudo, a fração mais considerável da gente da língua portuguesa.

Nestes períodos transcritos tendes o motivo porque nem mesmo nos foi dado aviso de receção do ofício de convite; mas, se vos lembrais dos factos que acima vos narramos, vedes facilmente a sem-razão da Academia Brasileira. Foi em 1898 que o Sr. Assis Brasil, na sessão da segunda classe da nossa Academia de 29 de abril, propôs, ou antes indicou — assim se exprimiu ele — à Academia a conveniência duma reforma da ortografia portuguesa de acordo com a Academia Brasileira (Boletim da Segunda Classe, I, pp. 71 e 72, Lisboa, 1903). Se nesse momento outros académicos brasileiros fizeram saber à nossa Academia que a Academia Brasileira desejava colaborar com ela no estabelecimento das bases da ortografia portuguesa nós ignoramo-lo e não pudemos averiguar a verdade de tal asserção; mas tudo nos leva a crer que os desejos de colaboração assim manifestados são os do Sr. José Veríssimo, de data muitíssimo recente, como vistes. Não é, pois, verdade que àqueles desejos, apresentados há tantos anos pelo Sr. Assis Brasil e esquecidos, a nossa Academia respondesse agora com o convite do ano passado; — não é verdade que a comissão oficial se dirigisse à Academia Brasileira pedindo a sua colaboração, como nos certificámos; — não é verdade, enfim, que a dita comissão saísse toda do seio da Academia, porque, de onze vogais que a compunham, só três eram nossos consócios — os Srs. Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos e Cândido de Figueiredo — e nenhum deles foi presidente ou

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secretário dessa comissão. A comissão académica era independente da comissão oficial, e só tinha em vista estabelecer as bases da ortografia portuguesa para o seu dicionário; e, apesar de a comissão oficial ver as suas conclusões aprovadas pelo Governo, a comissão académica continuou o seu trabalho, e as conclusões a que chegou, quer concordassem, quer não, com as da comissão oficial, comunicou-as à Academia Brasileira para servirem de base de discussão para o apetecido acordo. Foi isto o que já vos dissemos.

Assim, pois, nesta malfadada questão, a nossa Academia procedeu, como vistes, correta e cordialmente; e vê agora com estranheza que houvesse quem, presumindo muito de si, tão impensadamente a acusasse de leviandade: ela que na sua existência secular tem dado provas do contrário.

(pp. 5-9)

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31. [David LOPES (relat.) (1867-1942)] ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA Bases da ortografia que deve ser adoptada no Dicionário da Academia. Relatório da Comissão do Dicionário. Lisboa: Imprensa Nacional, 1916 13 pp.; 8 cm

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Prezados Consócios A Comissão do Dicionário vem gostosamente cumprir uma parte do seu

mandato. Criada em 1911, o seu primeiro cuidado foi estabelecer as bases da ortografia que se deve adoptar no Dicionário. Terminou ela a sua tarefa no ano de 1912, assentando nas conclusões que hoje são submetidas à vossa apreciação. Só agora, porém, ela vo-las apresenta, por motivos que mais de uma vez o secretário dela vos disse neste mesmo lugar. De facto, a tentativa de acordo com a Academia Brasileira sobre esse assunto, para se conseguir em Portugal e Brasil uma mesma ortografia, foi causa dessa longa, demora.

Falhou essa tentativa, como sabeis, mas não o pensamento dela, porque em 27 de janeiro findo o nosso consócio Sr. Cândido de Figueiredo declarou, na 2.ª classe, que a Academia Brasileira, a que ele pertence, adotara integralmente a ortografia oficial do Estado português. Folgou muito com isso a vossa Comissão do Dicionário, embora fosse feito à margem dela, porque entreviu assim a possibilidade de realizar o seu pensamento de uniformização das ortografias portuguesas. E por fim as negociações para obter verba para um redator do Dicionário obrigaram ainda a maior demora.

A Comissão começou a trabalhar com fé e ardor, mas não foi sempre assim na maioria, dos seus vogais; e, como vedes, poucos são os que assinam o seu relatório. A alma dela foi o falecido consócio Gonçalves Viana. [...]

(p. 3) A comissão oficial quis fazer obra de conciliação, que pudesse ser aceita

pelo maior número. Afastou-se, por isso, dos critérios estremes, radicais. A composição dela era penhor que um critério de bom senso presidiria ao

seu trabalho. Os indivíduos que a formavam, pertencentes a diferentes graus de ensino e fora dele, não fizeram, pois, obra de paixão e de espírito de seita. De um deles sabemos nós que cedeu em muitos pontos do seu critério e escrita anterior, como confessa no relatório da comissão oficial. Esse foi Gonçalves Viana. A obra da comissão não foi pois, revolucionária, como muita gente tem pretendido: a comissão só quis simplificar e regularizar, dentro do bom senso, a ortografia portuguesa.

Um critério destes tem inconvenientes, bem o sabemos: é que por vezes parece ilógico, mas isso resultou da necessidade de fazer obra que não

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desfigurasse a fisionomia das palavras, hábitos radicados ou ainda a história da língua, como sucederia numa orientação exclusivamente sónica. Assim, manda-se escrever:

lã, mas sem, sim... louvam, mas são... pai, mas pães... [...] (pp. 10-11) O argumento da fisionomia das palavras tem algum peso para nós. A

língua não é meramente instrumento ou meio de comunicação. Falando no seio da Academia portuguesa, guardiã das boas letras pátrias, de tantos séculos de cultura portuguesa, não o podemos contestar. Mas não tem tanto como se pretende. Ele tem muito de subjetivo, de relativo, pois. Seja um vocábulo português e o mesmo castelhano, este simplificado, o outro não: ele exprime para o indivíduo português como para o espanhol a mesma ideia com a mesma força. Suponde um português igualmente conhecedor das duas línguas, ele senti-las-á igualmente bem. Seja ainda um vocábulo português em períodos diferentes da língua, a roupagem não é a mesma: deixará, porventura, de evocar com força a mesma ideia ou sentimento? Qual é o artista literário de hoje que não lê com sumo prazer as páginas belas de Fernão Lopes ou de Castanheda na ortografia do tempo? Senti-las-á menos por estarem numa escrita e sintaxe tão diferentes das que os nossos olhos estão habituados a ver?

Demais, a beleza da poesia é essencialmente musical. Ela é, pois, som mais que forma.

Assim, este argumento não nos parece decisivo. Um critério único, absoluto, fonético, esse, em verdade, seria uma máscara e não defensável; mas já vos dissemos que não é este o caso. A reforma é benigna, não altera a fisionomia das palavras. Reduz a consoante geminada a singela; suprime o h médio, mas não o inicial, se é etimológico; substitui ch por qu e c, ph por f, y por i; mantém e utiliza a consoante média que se não pronuncia, todas as vezes que ela influi no valor da vogal precedente; regulariza a acentuação gráfica, até hoje arbitrária. Não há nisto nada que possa assustar os amigos e defensores da língua portuguesa.

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Aqueles que pretendem o contrário defendem apenas um hábito velho. O que as reformas ortográficas vêm destruir são certos modos de escrever que se tornaram automáticos. A reação é natural e legítima. Não deve ser tão funda essa reforma que vá contrariar fortemente esse hábito, porque daí virá certa perturbação. É incontestável. Mas não valerá a pena provocá-la com ponderação por uma vez? Todos estão convencidos deste facto: que a ortografia portuguesa está anarquizada. Já vem isso de muito longe. Há perto de um século disse-o Garrett no seu tratado Da Educação, nestes termos: «É lástima ter que dar satisfações sobre ortografia: a ninguém mais sucede isto senão a nós que tendo uma língua formada há séculos ainda não pudemos sair da anarquia ortográfica em que vivemos.» Todos reconhecem o mal, mas não querem aplicar-lhe o remédio. Talvez valha a pena, repetimos, para bem das novas gerações. Preparar-lhes um futuro melhor é obrigação de todos nós, e se não pensarmos senão no presente faltaremos a um dever humano.

A Comissão do Dicionário conta, pois, que aprovareis as suas conclusões sobre ortografia portuguesa: mais ainda, que aprovareis integralmente a ortografia oficial e eliminareis as leves divergências que no seio da Comissão se manifestaram em dado momento.

A ortografia oficial tem já uma grande difusão. As gerações que frequentam hoje as nossas escolas aprendem a nova ortografia. Todas as publicações oficiais e muitas outras são nela escritas. A imprensa periódica adoptou-a, mais ou menos, é verdade. A Academia Brasileira perfilhou-a também, como vos dissemos. A Academia das Ciências de Lisboa não há de querer provocar um cisma na ortografia quando esta se encaminha para a sua unificação entre todos os que falam a língua portuguesa: não ficaria bem ao nosso instituto que representa na sociedade portuguesa um princípio de ordem e harmonia.

Lisboa, sala das sessões da Academia, em 17 de Fevereiro de 1916. Cândido de Figueiredo, J. Leite de Vasconcelos, José Joaquim Nunes,

David Lopes, relator.

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32. Manuel Borges GRAINHA (1862-1925) Duas portarias diferentes sobre a ortografia nacional (1911-1920) ou a comissão nomeada pelo Governo em 1911 que teve muitas sessões e a comissão nomeada pelo Sr. Candido de Figueiredo em 1920 que não teve sessão nenhuma. Lisboa: Papelaria e Tipografia Fernandes & C.ª L.da, 1922 15 pp.; 23 cm

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Porque se faz esta publicação? O sr. dr. Cândido de Figueiredo na sua já longa vida (e que ela se

prolongue muito mais é o que eu lhe desejo) dedicou-se ao ensino da linguagem portuguesa e à propaganda da simplificação da ortografia nacional, escrevendo artigos nos jornais, que depois reunia em livros sob o título de Lições de Linguagem. Publicou também um Dicionário da Língua Portuguesa e duas Gramáticas sobre a mesma língua. Com isto não só dava expansão aos seus desejos de estudos linguísticos, mas também abria margem a lucros pecuniários para a sua modesta bolsa de funcionário público do Ministério da Justiça. Dizia ele que o Estado só lhe dava para o almoço e que necessitava de obter dinheiro para o jantar.

É tão digna de respeitoso louvor esta parte económica dos seus trabalhos de escritor, como é digno de elogio o esforço gasto na sua propaganda ortográfica e linguística.

Não quer isto dizer que eu aprove incondicionalmente a sua obra, que não está isenta de falhas.

O sr. Cândido de Figueiredo era apenas bacharel em Direito e não se tinha preparado com rigorosos conhecimentos filológicos, que, quando ele começou a escrever, estavam ainda muito atrasados entre nós. Desenvolveram-se depois principalmente com as publicações de Adolfo Coelho, Gonçalves Viana e Leite de Vasconcelos.

A estes notáveis filólogos ouvi eu algumas vezes criticar algumas opiniões linguísticas e ortográficas do sr. dr. Cândido de Figueiredo.

E a prova disso está em que numa Comissão de Reforma Ortográfica, a que eles todos pertenceram, não foram aprovados certos modos de ver daquele senhor, antes rejeitados.

E do sr. dr. Leite de Vasconcelos existem até dois folhetos de crítica contra as suas apreciações linguísticas. Intitula-se o primeiro: As Lições de linguagem por Cândido de Figueiredo, Análise do dr. Leite de Vasconcelos23 . A este respondeu o sr. Cândido do Figueiredo com outro, sob o título de Tosquia de Um Gramático. E, como neste opúsculo o sr. Figueiredo em vez de linguagem serena, própria da crítica, como a do seu antagonista, empregasse uma

23 As lições de linguagem do Sr. Candido de Figueiredo : anályse critica / por J. Leite de Vasconcelos. Lisboa : Typographia do Jornal "O Dia", 1891.

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linguagem chocarreira e baixa, aquele respondeu-lhe com O Gralho Depenado, em que lhe corrige os desmandos da chocarrice e continua a crítica linguística.

(p. 1) IV Renovação da Comissão da Reforma Ortográfica e o que ela tem a

fazer Eu sou de opinião que se deve restabelecer de novo a Comissão de

Reforma Ortográfica, substituindo os vogais falecidos por outros que saibam de assuntos filológicos e de línguas mortas e vivas e, que sejam sensatos, muito mais sensatos do que caturras, para saberem apreciar as exigências da língua e as conveniências dos que escrevem e imprimem. Por isso no meu Protesto ao Sr. Ministro da Instrução eu pedia que revogasse a parte da portaria de 1920 (29 de novembro, que suprimiu a antiga Comissão).

E essa Comissão faria uma obra utilíssima se tratasse pelo menos destes três pontos:

1.º — Rever os pontos indicados na exposição que acabo de fazer sobre a minha opinião (que era também a de Adolfo Coelho), a propósito da ortografia simplificada pela imprensa jornalística.

2.° — Estudar e fixar as formas de escrever e pronunciar os tempos presentes dos verbos em ear e iar sobre as quais há ainda muitas dúvidas na nossa língua.

3.° — Estudar outros pontos, como, por exemplo, a supressão do h inicial nas palavras portuguesas onde ele se não pronuncia nem faz efeito nenhum, como em honra, humano, etc. A Comissão primitiva já o tinha feito desaparecer no meio das palavras compostas onde ele antes se escrevia. Assim resolveu que se escrevesse desonra e inumano, em vez de deshonra e inhumano, como se escrevia antes. E não o suprimiu no início das palavras por não incomodar demasiadamente os olhos dos leitores acostumados a verem na imprensa honra e humano; mas a Comissão sabia muito bem que em italiano se escreve onore e umano e que era uma contradição tirá-lo em deshonra e inhumano e deixá-lo em honra e humano.

O h em português só tem valor nos grupos ch, lh e nh, porque modifica o valor das letras anteriores c, l, n; assim tem valor em chave, telha, minha, porque se ele dali desaparecer fica cave, tela, mina que são também palavras

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portuguesas e têm uma significação completamente diferente. A propósito da supressão do h inicial também foi apresentada uma

proposta na primitiva Comissão, sobretudo depois de ela ter aprovado que se escrevesse desonra e inumano, mostrando que havia contradição em escrever honra e humano e escrever desonra e inumano.

Mas a resposta foi sempre a mesma (e talvez justificada) que não convinha incomodar demasiadamente os olhos dos leitores habituados a verem na imprensa honra, humano, homem, haver, habilitado, etc., etc.

Depois de conhecidos os resultados da Reforma Ortográfica, aceites pela experiência jornalística e literária durante dez anos, é que se pode deliberar friamente.

Eis o que penso sobre o assunto. Os jornais, o professorado e o público que resolvam o que entenderem. Lisboa, 14 de Janeiro de 1922. (p. 15)

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4.2. Marginália de Leite de Vasconcelos

1. Luís do MONTE CARMELO (1715-1785) Compendio de orthografia, com sufficientes catalogos, e novas regras: paraque em todas as Provincias, e Dominios de Portugal, possam os curiosos comprehender facilmente a orthologîa, e prosódia, isto he, a recta pronunciaçam, e accentos proprios, da Lingua ... / Composto pelo R. P. M. Fr. Luis do Monte Carmelo,... Lisboa: Na Officina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1767 [28], 772, [8] pp.; 23 cm

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2. José Barbosa LEÃO (1818-1888) Elementos de gramática portugueza / Pelo Dr. Jozé Barboza Leão. Porto: Tipografia de António Jozé da Silva Teixeira, 1886 XIV, 260 [1] pp.; 22 cm

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3. Aniceto dos Reis Gonçalves VIANA (1840-1914) Proposta de um questionário para se formularem as regras de orthographia portuguesa uniforme... apresentada á Academia Real das Sciencias de Lisboa... Lisboa: Por ordem e na Typographia da Academia, 1900 22 p.; 31 cm

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4. Bases para a unificação da ortografia que deve ser adoptada nas escolas e publicações oficiais. Relatório da comissão nomeada por portaria de 15 de fevereiro de 1911 novamente revisto pelo relator. Lisboa: Imprensa Nacional, 1911. 49 pp.; 23 cm

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Textos na antologia (por autor) Academia das Ciências de Lisboa (1793). Diccionario da lingoa portugueza. Barradas, António (1911). Pequeno vocabulário ortográfico. Barreto, João Franco (1671). Ortografia da lingua portugueza. Bases para a unificação da ortografia, 1911. Bluteau, Rafael (1712-1728). Vocabulario portuguez, & latino. Cardoso, Francisco Nunes (1790). Exame critico das regras da orthografia

portugueza. Coelho, José Maria Latino (1879). Parecer apresentado á Academia Real das

Sciencias de Lisboa sobre a reforma orthographica. Corte Real, António Moniz Barreto (1877). Proposta de reforma

orthographica submetida á Academia das Sciencias de Lisboa. Coutinho, Luís Gonçalves (1814). Resumo orthográfico da lingua

portugueza. Cunha, João Pinheiro Freire da (1788). Breve tratado da orthografia. Dias, João António (1853). Noções geraes de orthographia da lingua

portugueza. Feijó, João de Morais Madureira (1739). Orthographia, ou arte de escrever, e

pronunciar com acerto a lingua portugueza. Figueiredo, Cândido de (1887). A questão orthographica. Gaio, Bernardo Fernandes (1738). Regras da orthografia da linguagem

portugueza. Grainha, Manuel Borges (1922). Duas portarias diferentes sobre a

ortografia nacional. Leão, Duarte Nunes de (1576). Orthographia da lingoa portuguesa. Leão, José Barbosa (1878). Colèção de estudos e documentos a favor da

refórma da ortografia em sentido sónico. Leão, José Barbosa (1886). Elementos de gramática portugueza. Leão, José Barbosa (1886). Princípios e régras para escrever em ortografia

sónica. Lima, Luís Caetano de (1736). Orthographia da lingua portugueza. Lopes, David (1914). Relatório apresentado à Assembleia Geral sobre o

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convite... feito à Academia Brasileira. Lopes, David (1916). Bases da ortografia que deve ser adoptada no

Dicionário da Academia. Macedo, José Tavares de (1861). Elementos de orthographia portugueza. Monte Carmelo, Luís do (1767). Compendio de orthografia. Noções sobre a ortografia da lingua portugueza, 1807. Pereira, Bento (1666). Regras gerays, breves, & comprehensivas da melhor

ortografia. Pereira, João Félix (1888). Vocabulario sonico. Silva, José Jorge Paranhos da (1879). O idioma do hodierno Portugal

comparado com o do Brazil. Sotomaior, Francisco Félix Carneiro (1783). Orthographia portugueza. Sousa, Agostinho de Jesus e (1912). A orthographia phonetica confirmada

pela linguistica e biologia, 1881. Teles, J., Gramática portuguesa. Vasconcelos, José Leite de (1893). As lições de linguagem do Sr. Candido de

Figueiredo: anályse critica. Velho, António José Vaz (1856). Opusculo sobre ortografia. Viana, Aniceto dos Reis Gonçalves (1900). Proposta de um questionário

para se formularem as regras de orthografia portuguesa uniforme. Viana, Aniceto dos Reis Gonçalves (1909). Vocabulário ortográfico e

ortoépico da língua portuguesa. Vieira, Carlos Augusto de Figueiredo (1844). Ensaio sobre a orthographia

portugueza.