ESCRITA DO SUDOESTE

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A ESCRITA DO SUDOESTE O texto que se segue é um extrato do meu pouco divulgado “O Outro Lado da História”, livro publicado em 2009 pela C. M. de Odemira. Nele abordo um conjunto de questões relacionadas quer com a origem da língua portuguesa 1 , quer com a toponímia e seu significado, quer com a chamada “escrita do sudoeste”. O que reproduzo de seguida é apenas um extrato do capítulo que nesse livro dedico ao tema “escrita do sudoeste”. O texto que apresento é assim apenas a cópia do original que então publiquei sem que tenha sequer alterado a ortografia original. “Diz-se, e tenho-o como certo, que nada é difícil de compreender se for bem explicado. No entanto, quando as explicações que nos dão divergem em muito daquilo que são os nossos modos costumeiros de perceber o real, ainda que consigamos entender a mensagem, teremos sempre dificuldades em a aceitar. Explicar a decifração que faço da escrita do Sudoeste conta cumulativamente com estas duas dificuldades: por um lado não é fácil transmitir o emaranhado de deduções que em forte interdependência permitiram determinar o valor fonético dos símbolos usados, a lógica de leitura sem individualização de palavras e o significado das expressões num dialeto desconhecido – faltará a arte de tornar simples e facilmente compreensível, o que é pela sua natureza complicado; por outro lado, provavelmente ninguém estará preparado, em circunstância alguma, por exemplo, para aceitar a evidência de as sequências das inscrições do Sudoeste não compreenderem palavras separadas, mas antes contínuos sem individualização de vocábulos – seja qual for a explicação que nos forneçam para este facto incontornável, teremos sempre dificuldade em a aceitar. Assim, a tarefa que agora empreendo – a de explicar de uma forma acessível a todos a decifração da escrita do Sudoeste – é só por si um desafio. Confesso que pensei ainda dar as traduções como simples sequências de palavras que os autores apenas não se teriam dado ao trabalho de separar. Seria mais credível apresentar uma única proposta de tradução para cada inscrição, proposta simples, em que as palavras escritas fossem lidas como nas escritas actuais. Seria mais fácil de aceitar, mas estaria mais longe da verdade. 1 - Donde mais tarde, em 2013, tenha vindo a nascer o “A Origem da Língua Portuguesa”, uma edição da “Chiado” igualmente pouco divulgada.

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A ESCRITA DO SUDOESTE O texto que se segue é um extrato do meu pouco divulgado “O

Outro Lado da História”, livro publicado em 2009 pela C. M. de Odemira. Nele abordo um conjunto de questões relacionadas quer com a origem da língua portuguesa1, quer com a toponímia e seu significado, quer com a chamada “escrita do sudoeste”. O que reproduzo de seguida é apenas um extrato do capítulo que nesse livro dedico ao tema “escrita do sudoeste”.

O texto que apresento é assim apenas a cópia do original que então

publiquei sem que tenha sequer alterado a ortografia original.

“Diz-se, e tenho-o como certo, que nada é difícil de compreender se

for bem explicado. No entanto, quando as explicações que nos dão divergem em muito daquilo que são os nossos modos costumeiros de perceber o real, ainda que consigamos entender a mensagem, teremos sempre dificuldades em a aceitar. Explicar a decifração que faço da escrita do Sudoeste conta cumulativamente com estas duas dificuldades: por um lado não é fácil transmitir o emaranhado de deduções que em forte interdependência permitiram determinar o valor fonético dos símbolos usados, a lógica de leitura sem individualização de palavras e o significado das expressões num dialeto desconhecido – faltará a arte de tornar simples e facilmente compreensível, o que é pela sua natureza complicado; por outro lado, provavelmente ninguém estará preparado, em circunstância alguma, por exemplo, para aceitar a evidência de as sequências das inscrições do Sudoeste não compreenderem palavras separadas, mas antes contínuos sem individualização de vocábulos – seja qual for a explicação que nos forneçam para este facto incontornável, teremos sempre dificuldade em a aceitar. Assim, a tarefa que agora empreendo – a de explicar de uma forma acessível a todos a decifração da escrita do Sudoeste – é só por si um desafio. Confesso que pensei ainda dar as traduções como simples sequências de palavras que os autores apenas não se teriam dado ao trabalho de separar. Seria mais credível apresentar uma única proposta de tradução para cada inscrição, proposta simples, em que as palavras escritas fossem lidas como nas escritas actuais. Seria mais fácil de aceitar, mas estaria mais longe da verdade. 1 - Donde mais tarde, em 2013, tenha vindo a nascer o “A Origem da Língua Portuguesa”, uma edição da “Chiado” igualmente pouco divulgada.

Poderia igualmente omitir as dúvidas que ainda tenho, dar como certo aquilo que o não é, assumir numa pose absoluta, certezas que não existem e possivelmente nunca virão a existir. Aceita-se melhor uma ideia desse modo. Sei que para dar credibilidade ao que pensamos não há como afirmá-lo peremptoriamente. Dito, seja o que for, de forma absoluta e determinada, ganha contornos de verdade inquestionável e segura, ainda que o não seja. Mas quanto a mim, o tempo das verdades e certezas indiscutíveis esvaiu-se com a adolescência, ao mesmo tempo que a formação académica em Geografia ajudou a encarar a ciência e o conhecimento que dela nasce como algo de naturalmente incerto e discutível, sem que isso seja drama ou sinal de menos valia: mesmo sobre o mundo actual, que todos podemos conhecer em pormenor, a interpretação dos factos é controversa e discutível; sobre o passado remoto, como é o caso do assunto que aqui trato, onde faltam a todos os níveis os elementos para reflexão e análise, não estranho nem temo afirmar a insegurança.

Por isso não se espere um discurso afirmativo e peremptório a omitir dúvidas e esconder problemas. Nada disso. Não pretendo vender uma ideia, convencer os outros da minha verdade, e assim, é natural que fique desapontado quem gosta de receber verdades feitas sobre as quais não necessita de exercer pensamento crítico. Mas as coisas são como são, e o que busco é acima de tudo fazer luz sobre a chamada “escrita do Sudoeste” e sobre o povo que a utilizou, e estou consciente que o caminho que agora rasgo ainda não atinge em pleno esse objectivo.

Não significa isto que desacredite o meu próprio trabalho. Estou convicto que os princípios que enuncio, as traduções que faço, e as conclusões que tiro, têm fundamento e são essenciais para compreender a nossa História antiga. Haverá contudo muito trabalho pela frente de quem queira aprofundar esse conhecimento, trabalho esse que poderá ainda corrigir parte daquilo que hoje penso, melhorar, ir mais longe… Como anexos destas páginas encontrará o leitor um conjunto de materiais que permitirão a qualquer um, não só exercer a crítica sobre aquilo que defendo, como ainda avançar no conhecimento destes assuntos. Fica o desafio.

ALGUMA INFORMAÇÃO FUNDAMENTAL

Infelizmente, mesmo para quem esteja regularmente familiarizado com a nossa História antiga poderá ser novidade o facto de ter existido no território que hoje é o Alentejo e o Algarve, antes da conquista romana da Península Ibérica, um povo sobre o qual sabemos pouco, mas que entre outros aspectos peculiares tinha o de possuir escrita. Sabemo-lo porque apareceram algumas dezenas de pedras com inscrições por todo este território, relacionáveis com a chamada “Idade do Ferro”, o que remete o início da sua produção para datas tão recuadas como a primeira metade do primeiro milénio antes de Cristo. São chamadas “Estelas Epigrafadas do Sudoeste”, e contêm textos em língua e alfabeto desconhecidos que permaneceram até hoje indecifradas, apesar dos esforços que têm sido feitos no sentido de conseguir a sua compreensão.

Ao longo de muitos anos tenho-me debruçado sobre esta escrita, comparado os símbolos que nela surgem com os de outros alfabetos antigos e tentado determinar o seu valor fonético. De início achei-a indecifrável, posto que não se conhecendo nem o valor fonético dos símbolos nem a língua na qual foram utilizados, seria realmente impossível atingir a sua decifração. No entanto, após algumas leituras de Moisés Espírito Santo, em que com rara lucidez se relacionam expressões do falar popular e topónimos com línguas semitas antigas, e depois de eu próprio ter verificado qual a língua falada nos nossos campos antes do português actual, passei a dispor da possibilidade de decifração: se a língua usada fosse algo como o ugarítico, o acádio, ou o hebraico antigo, então “só” faltaria determinar o valor fonético dos símbolos e o mecanismo de leitura de sequencias sem palavras individualizadas, o que, embora complexo, passaria a ser possível. Esta escrita antiga tem algumas características peculiares e estranhas aos nossos hábitos. Em primeiro lugar a escrita apresenta-se num contínuo de símbolos sem separação entre aquilo a que nós chamamos palavras. Por outro lado, pode desenvolver-se indiferentemente da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita. Em relação ao primeiro problema, adiante explicarei com algum detalhe porque se pode escrever sem separar palavras, e porque isso não constitui problema na língua usada na época. Em relação ao sentido em que se desenvolve a escrita, hoje já tenho dificuldade de não o achar fácil e intuitivo. No entanto lembro-me de no início ter dificuldade de determinar o sentido de leitura, sobretudo nos fragmentos curtos das inscrições. Assim, para quem não se tenha detido a observar com algum detalhe as inscrições, direi que a orientação dos

símbolos determina o sentido da leitura. Por exemplo, quando o símbolo está nesta posição a leitura desenvolve-se da direita para a esquerda, se o

mesmo símbolo está na posição inversa a leitura desenvolve-se no sentido oposto. Depois de alguma prática esta variação torna-se tão intuitiva que o leitor passa a seguir a sequência de leitura sem sequer reparar em que sentido está a ler. Ao longo deste trabalho, para facilitar a compreensão ao leitor, farei transcrições sempre em sequência de leitura da esquerda para a direita, muito embora mantenha os símbolos na sua forma mais usual (que seriam lidos da direita para a esquerda). O caminho que levou à decifração desta escrita foi longo e complexo, e uma explicação detalhada dos métodos e raciocínios envolvidos conduziria a um texto fastidioso e desinteressante para a maioria esmagadora das pessoas, pelo que direi apenas o essencial para se compreender os mecanismos de leitura e os textos.

Há efectivamente todas as razões para admitir que a língua usada nas estelas epigrafadas do sudoeste seja aquilo a que damos a designação genérica de “fenício”: os “fenícios” foram os grandes navegadores e comerciantes mediterrâneos da antiguidade; foram eles que inventaram os primeiros alfabetos; entre nós há ainda hoje, passados milhares de anos, expressões e nomes que só fazem sentido efectivamente em línguas daquele grupo.

Estes povos tinham línguas ou dialectos bastante próximos. A

comparação que se me oferece mais fácil para nós portugueses é a que se verifica hoje entre a nossa própria língua e o castelhano, o galego, ou o catalão: são línguas diferentes, mas têm uma base comum que nos permite comunicar sem uma aprendizagem prévia (e desde que haja alguma vontade). Assim o acádio ou acadiano, conhecido de textos cuneiformes desde o século XXX a. C., o assírio-babilónico, que é basicamente a língua acádia sob o domínio dos impérios Babilónico, neo-Babilónico e Assírio (famosa sobretudo por escritos como o “Código de Hamurabi”, entre outros) no século XIII a. C., o ugarítico, que nos ficou preservado em placas de argila gravadas em cuneiforme na cidade de Ugarit, entre os séculos XV e XIII a. C., e o hebraico antigo, língua do Antigo Testamento, são tão próximas que por vezes os especialistas têm dificuldade de as distinguir nos textos originais da época.

O que de mais comum existe entre elas são as consoantes, sobretudo na escrita, uma vez que os sons vocálicos nem sequer eram representados (e serão por isso mesmo mal conhecidos). Alguns exemplos ajudarão a perceber melhor a situação2: Hry (ugarítico) – conceber Âru - (here) (assírio-babilónico) – engravidar, estar grávida Haru (acádio) – tomar uma mulher Hrh (hebraico antigo) – conceber, estar grávida

Bny (ugarítico) – construir, criar Banu (acádio) – construir, procriar Banu (assírio-babilónico) – edificar, procriar Bnh (hebraico antigo) – construir, constituir família Zpn (ugarítico) – ocultar-se Şpn (hebraico antigo) – esconder Spn – (hebraico antigo) – esconder, encobrir

D’s (ugarítico) – pisar Dis (hebraico antigo) – pisar Dasu / Dwš (acádio) – pisar

É claro que também existem palavras que não têm correspondência em todas as línguas, ou que mais provavelmente, embora pudessem existir, não foram usadas nos textos escritos que nos dão testemunho dessas línguas, e por isso mesmo não surgem hoje nos nossos dicionários das mesmas. Em castelhano chama-se “zorro” ao que nós chamamos de “raposa”, no entanto também existe em português a palavra “Zorra” com o mesmo sentido, embora surja quase só como regionalismo em algumas áreas do país... Ora um dicionário do português construído apenas na base de alguns textos provavelmente não apresentaria a palavra “zorra”, muito embora ela efectivamente exista na nossa língua.

É por isso provável que para encontrar sequências coerentes nas inscrições do sudoeste se tenha por vezes que recorrer a termos de mais que uma língua, não porque não existissem os termos equivalentes em todas elas, mas antes porque o léxico conhecido de qualquer delas é relativamente pobre. Agrava a incerteza da tradução, o facto de cada uma destas

2 - Salvo indicação em contrário, todos os significados das línguas semitas antigas que refiro ao longo deste trabalho são retirados do “Dicionário de Fenício-Português”

línguas/dialectos terem tido a sua própria evolução no tempo. O português do século XV é evidentemente diferente do usado no século XXI, tanto no léxico como na grafia da língua. Para ilustrar esta ideia vejam-se alguns termos retirados do português dos séculos XVI e XVII: “matto” – mato; “aabobras” – abóboras; “senteyo” – centeio; “tynham rosado” – tinham rossado; “he” – é; etc.3 .Também se compreende que por exemplo o ugarítico do século XIII a.C. seja algo diferente da língua falada e escrita por povos da mesma região no século IX ou VIII a.C.

Para explicar melhor o funcionamento destas línguas transcrevo do

“Dicionário de Fenício Português” de Moisés Espírito Santo, p. 87, um texto que penso ser bastante claro:

“Nas línguas europeias, os vocábulos são códigos aos quais se atribui

uma significação; os vocábulos homófonos têm significações autónomas. A língua é um código de significações. Se permutarmos os fonemas dos vocábulos pai, campo e os associarmos de outra forma, as novas formas deixam de ter relação com os vocábulos anteriores. No Fenício antigo é diferente. A ideia reside no fonema. Cada fonema encerra um conceito, um “embrião de ideia” relativamente abrangente; dois ou três fonemas (a que alguns chamam raiz) circunscrevem a ideia: o alef (a) traduz a ideia genérica de “origem”; O beth (b), a de “entrar, introduzir”; o reṦ (r), “relação” (…) É como se os fonemas associando-se em vocábulos produzissem as coisas. Porque um vocábulo é a associação de dois ou três “embriões” e estes são por natureza vagos, os vocábulos hebraicos são pluri-semânticos; um vocábulo parece significar coisas muito diferentes; digo parece, mas só enquanto está isolado; em determinado contexto os vários significados podem ser complementares.”

Colocam-se variadíssimos problemas na descodificação desta escrita,

uma vez admitida a língua em que foram escritos, sendo os mais relevantes os seguintes:

1 - para que serviam as pedras inscritas; 2 - como ler sequências sem palavras individualizadas; 3 - valor fonético dos símbolos; 4 - questões de tradução e interpretação.

3 - Exemplos retirados de Magalhães, J. Romero – O Algarve económico 1600 – 1773 …

Tentarei expor da forma mais sumária possível o essencial sobre estes assuntos.

PARA QUE SERVIAM AS PEDRAS INSCRITAS A escrita, uma vez descoberta e dominada por uma comunidade, deve ter servido em todas as situações em que se tornasse útil. É certo que a maior parte dos escritos tenha sido realizada sobre materiais perecíveis, o que inviabilizou a sua conservação até aos nossos dias, tendo-se preservado apenas alguns dos que foram gravados em pedra ou outro material durável. É o caso das pedras inscritas geralmente conhecidas por “estelas epigrafadas do Sudoeste” que têm sido classificadas como estelas funerárias. À força de se repetir a ideia (com maior ou menor convicção) de que teriam servido de lápides funerárias, e à falta de melhor explicação para a sua função original, tem-se vindo a consolidar esta tese. No entanto terá vantagem repensar o assunto, tanto mais que não será de menor importância para conseguir entender a sua mensagem.

Estácio de Veiga4, em 1891, referindo-se a sepulturas da Idade do

Ferro descrevia o achado de várias pedras inscritas na necrópole da Fonte Santa (Bensafrim – Lagos) do seguinte modo:

“As pedras com inscripções peninsulares acham-se em todo aquele

campo; pois ellas é que formam os flancos ou os topos de algumas sepulturas, tendo os letreiros apontados para dentro; o que tem permitido a sua conservação.”

Embora não conheça exaustivamente as circunstâncias em que foram

achadas todas as pedras inscritas, várias delas que foram encontradas em necrópoles são fragmentos nalguns casos claramente utilizados como mero material de construção. Beirão5, em 1990 descrevia o achado de duas pedras com caracteres gravados na necrópole de Pardieiro (Odemira) sendo uma delas um fragmento usado como material de construção de uma sepultura que aquele autor data do século VII a.C., enquanto que uma outra servia de tampa de cista6 tendo a face inscrita virada para o interior da

4 - ESTÁCIO DA VEIGA, Sebastião Philippes M. – Antiguidades Monumentaes do Algarve

5 - Epigrafia da I Idade do Ferro do Sudoeste da Península Ibérica. Novos Dados Arqueológicos. 6 “Cista” é o nome dado a uma sepultura antiga constituída por uma cova forrada por quatro lajes laterais e uma “tampa” igualmente de pedra.

sepultura. Muitas outras destas inscrições foram achadas descontextualizadas, embora com frequência próximo de necrópoles.

Observando atentamente as lajes que se mantêm bem conservadas,

pode ver-se que todas elas têm cerca de um terço da sua superfície sem qualquer inscrição, o que sugere claramente que foram concebidas com a finalidade de serem cravadas no solo, e de modo algum a sua função como elemento de estrutura de uma cista é compatível com esta característica.

Será necessário ter em conta alguns detalhes para melhor entender

este problema. Por um lado uma laje, inscrita ou não, é algo de apreciado pelas populações rurais. Cortá-la de uma pedreira e carregá-la, é trabalho penoso e demorado, logo, sempre que uma laje de boa qualidade fosse encontrada no campo, mais cedo ou mais tarde seria utilizada como soleira de porta, acesso a um poço, manjedoura para gado, pedra de lavar roupa nas ribeiras, ou… elemento de uma sepultura… Isto deve ter acontecido ao longo de milhares de anos de uma forma sistemática até que as pedras inscritas que estavam à superfície foram sendo degradadas e desaparecendo. Por outro lado a maior parte das rochas disponíveis no Baixo Alentejo e Algarve são xistos relativamente brandos e que desfolham com facilidade, pelo que a sua conservação seja difícil, e ajude a explicar a raridade das inscrições.

É ainda importante ter em conta que no que se refere ao Bronze final

e Ferro inicial, dizer-se que um achado foi realizado perto de uma necrópole implica dizer-se igualmente que o mesmo achado estaria perto de um povoado, uma vez que sistematicamente as necrópoles são contíguas aos povoados que as originaram. O que acontece com frequência é detectar uma necrópole com facilidade e ter sérias dificuldades para descobrir o povoado correspondente, o que nem sequer é motivo para admiração: com a fortíssima erosão que ocorreu em milénios (que transformou o Baixo Alentejo e parte do Algarve em terra de solos esqueléticos) conservou-se o que estava enterrado profundamente, enquanto que tudo o que estivesse à superfície foi sendo varrido, reutilizado e desfeito.

Por outro lado é seguramente um erro imaginar todas as construções

da época realizadas de forma a deixar vestígio arqueológico significativo. Pelo contrário, a maioria delas seria certamente constituída de materiais perecíveis – cabanas, choças, etc. – com estrutura de madeira e cobertura de junco, palha ou outros materiais. Leite de Vasconcelos descreve muitas habitações deste tipo sobretudo no litoral. Cita por exemplo a descrição de um tal Padre Carvalho que ainda no século XIX se referia a Olhão com as

seguintes palavras: “Tem 300 vizinhos, que moram em casas de cana cobertas de palha”.7 Ainda hoje, no século XXI há quem habite no Alentejo em casas de taipa e chão de terra batida. Depois de abandonada uma destas casas, e passado pouco tempo, nada resta dela para além de umas quantas lajes irregulares dispersas e fragmentos de telha de canudo. Depois de lavrada repetidamente, a terra onde assentou um povoado constituído por cabanas ou mesmo por casa de taipa, nada mostra do passado, a não ser raros cacos cerâmicos.

Isto ajuda a perceber por que motivos há uma percentagem

relativamente grande de pedras inscritas relacionáveis com sepulturas, mas também ajuda a perceber que essas pedras não serão obrigatoriamente estelas funerárias, sendo certamente antes pedras reutilizadas na construção de sepulturas, mas que originalmente tiveram qualquer outro fim.

Deve ainda, e por fim, pôr-se a questão: que situação, que mensagem,

justificaria o esforço de cortar, transportar e gravar uma laje? Não certamente uma mensagem feita para servir durante um curto período, porque nesse caso teria sido usada uma tinta sobre qualquer superfície disponível. Apenas consigo imaginar que esse esforço se justificasse para transmitir uma mensagem com a função de durar pelo menos anos, se manter imóvel no mesmo local e à vista de quem passasse, mas quanto ao conteúdo exacto de cada uma das inscrições, só mesmo a sua tradução o poderá clarificar caso a caso.

COMO LER SEQUÊNCIAS SEM PALAVRAS INDIVIDUALIZADAS

Para além das diferenças que se encontram nos símbolos, o que de mais estranho tem a escrita do Sudoeste, é o facto de existirem sequências contínuas onde não se individualizam palavras. Para nós, portugueses do século XXI é quase irresistível a tentação de individualizar palavras em “regime de exclusividade”, ou seja, onde estiver uma palavra não poderá estar uma outra. Custa-nos mesmo conceber a ideia de uma sequência contínua de símbolos poder ter várias leituras, até porque na nossa língua e nas demais que conhecemos, bem como no sistema de escrita que dominamos, tal ser realmente impossível.

7 Vasconcelos, J. Leite, Etnografia Portuguesa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983

No entanto, por muita confusão que nos possa fazer, não há dúvida que as inscrições são sequências de símbolos sem qualquer tipo de separação que possa ser interpretada como individualizadora de palavras, como se exemplifica a seguir, e como se poderá observar nas reproduções que apresento ao longo do texto e nos anexos.

A palavra absolutamente individualizada é de algum modo uma

entidade artificial. Basta para entender isso, observar a dificuldade que as crianças têm em separar correctamente as palavras numa frase que escrevam. Julia Kristeva diz mesmo8: “Compreende-se que a palavra, concebida como entidade indivisível e de valor absoluto, se torne suspeita aos olhos dos linguistas e deixe de ser, hoje em dia, o apoio fundamental da reflexão sobre o funcionamento da linguagem. É cada vez mais necessário afastá-la da ciência da linguagem. Martnet escreve com razão que ‘a semiologia (a ciência dos signos), tal como a deixam entrever certos estudos recentes, não tem nenhuma necessidade da palavra. E não se imagine que os semiólogos estejam a pensar, de facto, na ‘palavra’ quando escrevem ‘signo’. Alguns talvez pensem de preferência em ‘frase’ ou ‘enunciado’, sem esquecerem nunca, aliás, que o – r – de pagará também é um signo”.

A mesma autora, referindo-se no geral à escrita consonântica das

línguas semitas, explica9: “Nestas línguas, a raiz de uma palavra, isto é, o seu elemento constante que possui o sentido global e não depende da função sintáctica, é representada pelas consoantes dessa palavra. A raiz QTL, que possui o sema ‘matar’, em hebreu, pode pronunciar-se QeTóL, ‘matar’, QôTéL, ‘matando’, QâTúL, ‘morto’, QâTaLun, ‘nós matámos’. Compreendemos pois como é que uma escrita pode funcionar eficazmente, sem criar confusões, marcando apenas a raiz consonântica decomposta nos seus elementos componentes.” (Tal como na maioria das escritas semitas antigas, a escrita do SW é fundamentalmente consonântica, o que uma vez mais dificulta as traduções. Se numa inscrição surgisse a sequência QTL saberíamos que teria um significado próximo de “matar”, mas teria que se deduzir pelo contexto se o seu significado seria “ser morto”, “ter morrido”, “estar a matar”, etc.).

Foi referido que nestas línguas antigas cada som individual

corresponde a um pequeno leque de ideias/sensações base, e que com a

8 - Júlia Kristeva, “História da Linguagem”, Edições 70, Lisboa, 2003 9 - idem

junção de sons se vão obtendo ideias cada vez mais específicas. Por isto mesmo a sons parecidos associam-se ideias parecidas, e o acrescentar um som a um vocábulo conduz à especificação do seu sentido. Isto acontece, julgo eu, pelo facto de se tratar de línguas ainda muito “puras”, no sentido em que tinham ainda recebido poucas influências de outras línguas com origens diferentes, e não eram, ao contrário das línguas europeias modernas, crioulos. Mais uma vez recorro a um exemplo: quando nós em português nos referimos ao lugar onde uma pessoa se pode sentar temos um enorme leque de termos com origens bem diferentes – cadeira, sofá, assento, banco, maple, mocho, puf, etc.. Não é portanto fácil na nossa língua associar uma sequência de sons à ideia do objecto em que nos sentamos, ou ao acto de nos sentarmos. Nestas línguas “arcaicas” tal ainda é possível.

O exemplo que se segue corresponde a uma sequência que existe em

quatro das inscrições, e que estudei com particular cuidado, e que ajuda a perceber o funcionamento da leitura destas línguas:

TEXTO � N.º da ESTELA

TRANSLITERAÇÃO

25

WARSANWḤ

51

WARSANWḤ

61

WARSANḤW

?

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WARSANḤW Tome-se como exemplo as seguintes sequências para uma análise cuidada: WARṦANḤW WARṦANWḤ

Veja-se quais as palavras que se podem constituir a partir desta sequência em ugarítico e em hebraico antigo:

W – e, mas, para que, de modo que (ugarítico) W – e, mas, então (hebraico) W A R – vir (ugarítico) A R – luz, brilhar, iluminar (ugarítico) H R - monte, montanha, serra (ugarítico e hebraico) A R Š - desejar, pedir (ugarítico) A R Ş – país, território, terra (...) (hebraico) R Ş H - ter satisfação, agradar-se de, gostar de, pagar, saldar (...) (hebraico) Š- - pois, que, porque (…) (hebraico)

Š N10 - mudar, partir, correr (ugarítico) Š N H - mudar, modificar-se, repetir, fazer de novo, fazer pela segunda vez (hebraico) A N - onde quer que seja, onde, eu (ugarítico)

H N - aqui (ugarítico) HNH - aqui, para cá (hebraico) NWH - atingir o objectivo; permanecer; louvar (hebraico) NWH/NAWH – lugar de residência, habitação… (hebraico) NWḤ - assentar-se, estabelecer-se, descansar, repousar… (hebraico) ḤW - prostrar-se, estar vivo, reviver, viver (...) (ugarítico) ḤWH - prostrar-se, inclinar-se, adorar, informar (...) (hebraico)

Vejamos agora algumas combinações sequenciais possíveis a partir destas palavras11:

10

Nota: Š N – Mudar, partir, correr (ugarítico)

Š N H – Mudar, modificar-se, repetir, fazer de novo, fazer pela segunda vez (hebaico)

(Traduzo este “mudar” no sentido de “fazer de novo”. Deve ser visto como o nosso “mudar de casa” – não seria

propriamente alugar um apartamento num prédio de uma avenida de Lisboa – mas antes apropriar-se de terra,

construir casa, etc.)

11 - O leitor poderá (e deverá) facilmente confirmar as traduções que apresento, bastando para isso consultar o Dicionário de Fenício Português de M. Espírito Santo.

W A R - vir (ugarítico)

Š N - mudar, partir, correr (ugarítico) Š N H - mudar, modificar-se, repetir, fazer de novo, fazer pela segunda vez (hebraico)

ḤW - prostrar-se, estar vivo, reviver, viver (...) (ugarítico) ḤWH - prostrar-se, inclinar-se, adorar, informar (...) (hebraico) Vir /mudar-se / viver W - e, mas, para que, de modo que (ugarítico) A R Š - desejar, pedir (ugarítico) H N - aqui (ugarítico) ḤW - prostrar-se, estar vivo, reviver, viver (...)( ugarítico) De modo que / pedir / aqui / viver W - e, mas, para que, de modo que (ugarítico) A R Š - desejar, pedir (ugarítico) A N - onde quer que seja, onde, eu (ugarítico) ḤW - prostrar-se, estar vivo, reviver, viver (...)( ugarítico) E / pedir / onde / viver W - e, mas, para que, de modo que (ugarítico) A R Š - desejar, pedir (ugarítico)

Š N - mudar, partir, correr (ugarítico) ḤW - prostrar-se, estar vivo, reviver, viver (...) (ugarítico) De modo que / pedir / mudar-se / viver W - e, mas, para que, de modo que (ugarítico)

H R - monte, montanha, serra (ugarítico e hebraico) Š N - mudar, partir, correr (ugarítico) Š N H - mudar, modificar-se, repetir, fazer de novo, fazer pela segunda vez (hebraico)

ḤW - prostrar-se, estar vivo, reviver, viver (...) (ugarítico) De modo que / serra / mudar-se / viver

Há ainda a hipótese de onde em princípio se deve ler um “Ṧ” poder igualmente ler-se um “Ṣ”, uma vez que as sibilantes sofrem permutas com grande facilidade: W - e, mas, para que, de modo que (ugarítico) A RŞ - país, território, terra (...) (hebraico) A N - onde quer que seja, onde, eu (ugarítico) ḤW - prostrar-se, estar vivo, reviver, viver (...)( ugarítico) De modo que / território / onde / viver W - e, mas, para que, de modo que (ugarítico) A RŞ - país, território, terra (...) (hebraico) H N - aqui (ugarítico) ḤW - prostrar-se, estar vivo, reviver, viver (...) (ugarítico) De modo que / território / aqui / viver W - e, mas, para que, de modo que (ugarítico) A R Š - desejar, pedir (ugarítico) H N - aqui (ugarítico) NWḤ - assentar-se, estabelecer-se, descansar, repousar… (hebraico) E / pedir / aqui / estabelecer-se

W A R - vir (ugarítico) Š- - pois, que, porque (…) (hebraico) NWḤ - assentar-se, estabelecer-se, descansar, repousar… (hebraico) Vir / pois / estabelecer-se Apesar de, como se viu, as várias leituras possíveis da mesma sequência serem geralmente concordantes, não me parece que o leitor da época necessitasse de percorrer repetidas vezes a mesma sequência para dela realizar várias leituras. Será mais provável que de uma só leitura retirasse a ideia síntese, o que para nós será mais difícil. Retomemos o exemplo anterior como base de trabalho e tentemos realizar uma leitura de síntese de ideias.

W - para que, de modo que (ugarítico) W A R - vir (ugarítico) A RŞ - país, território, terra (...) (hebraico) W + W A R + A RŞ = W A RŞ

Portanto W A RŞ pode ser a aglutinação de W + W A R + A RŞ transmitindo a ideia de “De modo que + vir + território”.

Continuando: A RŞ - país, território, terra (...) (hebraico) RŞH - ter satisfação, agradar-se de, gostar de, pagar, saldar (contratar, conseguir pagando) (hebraico) A RŞ + RŞH = ARŞH - território + contratar

Logo, W A R + A RŞ + RŞH = WA RŞH = “De modo que + vir + território + contratar”. Há também a hipótese de: W + WAR + A R Š + Š N + N Ḥ W = W A R Š N Ḥ W = “De modo que + vir + pedir + mudar + viver”. Ou de: W + WAR + A R Š + ŠA + HN + Ḥ W = W A R Š A Ḥ W = “De modo que + vir + pedir + que + aqui + viver”. Ainda de: W + WAR + A R Š + ŠN +HN + NWḤ = “De modo que + vir + pedir + mudar + aqui + estabelecer-se”.

Parece mesmo poder haver algo como a fusão de duas palavras, um género de “aglutinação interna”. A N - onde, onde quer que seja (ugarítico) H N - aqui (ugarítico) Š N - mudar, partir Š N + H N = Š H N - mudar + aqui (ugarítico) Š N + A N = Š A N - mudar + onde quer que seja (ugarítico)

Portanto: W + WAR + A R Š + ŠHN + Ḥ W = W A R Š N Ḥ W = “De modo que + vir + pedir + mudar + aqui + viver”.

O que importa reter daquilo que se referiu anteriormente, é que se percebe o porquê de não existir separação entre palavras – efectivamente nesta língua e neste sistema de leitura tal não seria necessário, uma vez que

quase todas as leituras possíveis a partir de uma sequência contínua conduzem a ideias próximas. Julgo também ter ficado claro que estas línguas semitas antigas, pelas suas características se coadunam perfeitamente com o tipo de inscrições encontradas nas estelas do Sudoeste.

Penso que se percebe por que motivo não havia necessidade de separar os vocábulos. Ainda assim, e porque me parecia difícil a leitura de uma sequência de palavras em contínuo, ensaiei com algumas dezenas de pessoas a experiência de ler a seguinte frase: OMARCOVAIAMARAMARIA

Todos leram, após breves hesitações naturais em quem não está habituado a ler palavras sem separação: O MARCO VAI AMAR A MARIA

No entanto ninguém leu um outro grande conjunto de palavras que igualmente se podem construir nesta sequência, repare-se: OMARCOVAIAMARAMARIA O MAR AR ARCO COVA VAI VAIA AI IA AMA MAR MARA ARA RAMA AMA MAR AR RIA

Considero este exemplo interessante para perceber melhor o fenómeno da leitura numa situação como a que se apresenta nas inscrições do Sudoeste. Parece que o nosso cérebro selecciona apenas as palavras que fazem sentido no conjunto e descarta “automaticamente” todas as outras que não fazem sentido nesse conjunto.

É fundamental perceber este fenómeno para compreender que aquilo que é simples para um falante/leitor da língua, se torna um enorme quebra cabeças para quem a não domine e tente traduzir com base num dicionário. A título de exemplo curioso refiro que dei a ler esta mesma frase a uma jovem ucraniana (falante aceitável do português), que de imediato leu “o marcova...” “Marcova” é um nome próprio em ucraniano ou russo, mas o interessante é a busca automática que o conjunto olhos/cérebro faz no sentido de encontrar a representação de sons/ideias familiares.

Daqui se pode retirar como conclusão lógica que, muito embora as leituras de sequências contínuas de símbolos na escrita do Sudoeste sejam muitas vezes concordantes, o leitor da época descartaria em “automático” as leituras possíveis e não concordantes com o sentido geral e com o contexto. Na sequência vista anteriormente (WARṦANḤW) a palavra “AR” – “luz, brilhar, iluminar” (ugarítico), se existisse no léxico dos falantes locais, seria por certo descartada da leitura, tal como nós fazemos ao ler o português sem separação de palavras. Parece-me ainda que o leitor faria a leitura da síntese das ideias representadas pela síntese/fusão/aglutinação das palavras.

VALOR FONÉTICO DOS SÍMBOLOS Ainda antes de começar a explicar como cheguei ao valor fonético dos

símbolos usados na escrita do Sudoeste quero chamar a atenção do leitor para o facto de, muito antes de eu desenvolver as minhas investigações, terem já sido apresentadas propostas para o valor fonético desses símbolos, bem como propostas de tradução das inscrições. As propostas de tradução apresentadas até hoje, do meu ponto de vista não são credíveis, e o valor fonético dos símbolos, obtido apenas por comparação com outros alfabetos antigos, não é convincente. Por mim, tenho como seguro que não se pode com propriedade e segurança clarificar o valor fonético dos símbolos utilizados, enquanto se não conseguir obter o traduções coerentes e lógicas, e com isso clarificar em que língua foram os textos escritos. Não quero no entanto deixar passar a oportunidade de enaltecer aqui o mérito de todos

que o tentaram, pelo esforço, espírito inconformista e a vontade de descobrir que demonstraram. 12 Após esta breve observação inicial, passemos ao assunto.

Determinar o valor fonético dos símbolos de um alfabeto é tarefa

realmente complicada. Se entre os povos e escritas do Mediterrâneo tivesse havido mais constância no valor dos símbolos, esse trabalho estaria facilitado. Não é o caso: o mesmo símbolo teve valores fonéticos diferentes ao longo do tempo na mesma língua, e variou de valor fonético de língua para língua. Esta situação cria um verdadeiro caos quando se pretende por comparação com outros alfabetos do primeiro milénio a. C. determinar o eventual valor fonético dos símbolos usados na escrita do Sudoeste. (ver anexos).

É usualmente apresentado como argumento contra a possibilidade de

a língua usada nas inscrições do Sudoeste ser “fenícia” o facto aparentemente lógico de os alfabetos Fenício e do Sudoeste serem diferentes. De facto, quando os portugueses levaram a escrita para as suas colónias levaram e mantiveram o alfabeto usado em Portugal, e outra coisa não faria sentido. Parece portanto natural que se os fenícios tivessem colonizado o Sudoeste da Península Ibérica, tivessem trazido o seu próprio alfabeto que utilizariam para representar a sua própria língua, como faziam na distante costa do Mediterrâneo oriental.

Será necessário ter maior abertura de espírito para pensar que nem

tudo o que faz sentido no século XXI faria igual sentido no primeiro milénio a. C.. Sabemos que Cartago foi originalmente uma colónia fenícia e que a sua língua seria o “fenício”. Contudo o alfabeto de Cartago, tal como o de el-Hofra são diferentes do alfabeto fenício e diferentes entre si. O mesmo acontece com os alfabetos da Grécia antiga, desnecessariamente diferentes uns dos outros… Parece que ao contrário do espírito “normalizador” e “generalizador” dos últimos séculos, reinava a vontade de criar diferenciação entre as regiões, diferenciação essa que se manifestava em códigos de escrita diferentes, e que possivelmente teria as suas vantagens sobre as quais apenas poderemos especular.

No entanto, quem conheça os alfabetos mais antigos do Mediterrâneo

encontrará de imediato semelhanças entre muitos dos símbolos da escrita do Sudoeste e os equivalentes desses alfabetos primordiais. Não valerá a

12 - Na bibliografia deste trabalho poderá o leitor encontrar referências a autores e obras em que se tenta atingir o valor fonético dos símbolos e em que se tentam traduções das inscrições.

pena por isso referir que cedo admiti que símbolos como os que durante muitos séculos e em povos de línguas diferentes serviram para representar o “R”, o “N” ou o “Ḥ”, tenham tido na escrita do Sudoeste igual valor.

Os problemas sérios e realmente difíceis de resolver surgem em

relação aos símbolos que apenas aparecem neste alfabeto, sendo inexistentes nos demais alfabetos antigos, nos símbolos que tiveram valor variável ao longo do tempo e de cultura para cultura, e nos símbolos que surgem tão raramente que se torna quase impossível determinar com segurança o seu valor. Vejamos um caso.

Este é sem dúvida o símbolo usado frequentemente na escrita do sudoeste de mais difícil decifração. Foi grafado em várias formas, algumas das quais bastante diferentes da mais comum aqui representada esquematicamente, e só se reconhece que seguramente se trata de um mesmo símbolo com aspecto diferente por se encontrar na mesma posição de sequências idênticas. A chave para o conhecimento do seu valor fonético encontra-se na estela nº 2 (em anexo). Esta estela tem um alfabeto diferente do mais comummente representado nas estelas do Sudoeste e sem dificuldade se pode perceber que é muito próximo do Púnico e Neo-Púnico. Na ausência deste símbolo no alfabeto Púnico ou Neo-Púnico, o gravador optou por um símbolo que pudesse ser lido pelos conhecedores de qualquer dos alfabetos e aglutinou um S da maioria dos alfabetos europeus e um ł do alfabeto Púnico ou Neo-Púnico mantendo a legibilidade para quem dominasse apenas o alfabeto do Sudoeste. Não querendo desde já tirar as conclusões históricas que devo fazer depois de desenvolver as traduções, não posso deixar de chamar a atenção para o facto que daqui ressalta: o alfabeto usado no Sudoeste foi, pelo menos durante algum tempo, contemporâneo destes alfabetos. Isto não significa no entanto que todas as inscrições sejam do mesmo período. Pelo contrário, parece-me que o mais plausível seja que estas inscrições se tenham desenvolvido por um largo período de tempo, sendo a estela n.º 2 das mais tardias. Isso explicaria o motivo pelo qual se tentou neste caso uma grafia que permitisse a leitura pelos utilizadores de ambos os alfabetos – sinal evidente que o do Sudoeste estava localmente bem estabelecido.

O valor fonético mais provável deste símbolo será apreciado mais à

frente, no entanto adianto desde já que deve corresponder a uma dupla consoante pronunciada de uma só vez (como por exemplo acontece no português com o “x” na palavra “sexo” – ks) com um valor que corresponde ao “JD” acádio, ao “ṦT” ugarítico ou “ṢB” ugarítico e hebraico.

Seria longo e fastidioso explicar aqui os processos lógicos pelos quais

fui chegando ao valor fonético de cada um dos símbolos. Mais útil será expor de forma breve os princípios gerais que utilizei. O primeiro passo foi o de construir uma grelha com a reprodução de todas as estelas constantes do anexo da tese de doutoramento de Caetano de Melo Beirão. Alinhadas as sequências vê-se facilmente que símbolos aparentemente diferentes não passam muitas vezes de representações graficamente distintas de um mesmo símbolo (por vezes também expressões diferentes para a mesma ideia), o que reduz desde logo o número de símbolos a ter em conta.

A partir de um pequeno número de símbolos que pela constância do

seu valor fonético nos alfabetos antigos admiti terem igual valor no alfabeto do Sudoeste, fui testando um a um os símbolos cujo valor desconhecia, num processo longo de anos. Se admitir que um determinado símbolo tem certo valor porque faz sentido numa sequência conhecida, então testa-se o seu sentido nas outras sequências em que surge. Se em todas elas tiver sentido admite-se provisoriamente o seu valor como certo e passa-se a estudar o valor de outro símbolo. Naturalmente que a escolha dos valores fonéticos possíveis para cada símbolo passa previamente pela análise dos alfabetos contemporâneos, sempre que isso é possível e relevante. Vejamos um exemplo de solução particularmente difícil e duvidosa por ocorrer num pequeno número de sequências:

Qual o valor do símbolo ?

Este símbolo surge em algumas inscrições:

Estela 11- … …

Estela 25a - … …

Estela 25b - …

Estela 60 - … …

Deve notar-se em primeiro lugar que surge sempre junto com o

símbolo .

Em segundo lugar deve comparar-se as sequências seguintes:

Estela 25b - …

Estela 47 - … (?)

Estela 51 -

Estela 61 -

Observando atentamente vê-se que existe a possibilidade lógica de a área final destas quatro sequências corresponder a grafias diferentes do mesmo som, ou de um som semelhante, ou serem formas diferentes de transmitir uma ideia próxima.

Por último comparem-se extractos das inscrições 48 e 60:

Estela 48 - …

Estela 60 - … … Adiante, quando tratar da proposta de tradução da estela 60, se verá que o valor do símbolo será provavelmente próximo do Ḫ ugarítico ou do Ḥ ugarítico e hebraico ( ). Se ao testar esta hipótese de valor fonético para este símbolo nas restantes situações em que surge, conduzir sempre a sequências lógicas, então pode admitir-se que realmente seja este o seu valor.

O método passa, como se vê, por uma constante interacção entre a descoberta do valor fonético do símbolo e as traduções que cria, e só se admite a descodificação depois de verificada a coerência das traduções.

De momento o valor fonético que atribuo aos símbolos mais comuns, é

o seguinte: Símbolo do

SW Nome

Ugarítico Nome

Hebraico Valor /transliteração para o alfabeto latino

‘a ‘i ‘u Alef Equivale ao Alef, ao Hê e ainda a um som

vocálico “A” usado em várias situações entre consoantes.

Bi Beth B / Ba (eventualmente também P).

? Kaph K

Di Daleth D

Ga Gimel G

Ḥu

Ḥet

Ḥet / Ḥu - “G” (semelhante ao “J” espanhol).

Ḫa _ Ḫa – Valor Hâ / Gâ aspirado – evoluiu naturalmente para o Ḥet Hebraico.

? Yod I /Y (no fim das palavras equivale por vezes

ao H hebraico e ao U acádio

? Lamed L

? Mem M

_ _ MN (?)

? Nun N

? / Wa ‘Ayin /Waw Valor variável entre o ‘Ayin (Ø), o Ô e o Wa /

Waw (sobretudo no final das palavras).

Qu Qoph Q

Ra ReṦ R

Zi Zain Z (pelo menos num caso S).

Tsadê Ṣ / S

Shin Ṧ (xe, je), mas às vezes S.

_ _ Ṧt / Şb / Jd – Símbolo sem equivalente

nestes alfabetos.

Tu / Ti Tau / Têt T / ł - Tal como as sibilantes, parece que

estes símbolos foram utilizados com valores variáveis (entre o Tau e o Têt hebraicos).

Wa / ? Waw / ‘Ayin

Valor variável entre o ‘Ayin (Ø), o Ô e o Wa / Waw. No início das palavras quase sempre“W”.

Continuam por resolver alguns problemas. Por exemplo não determinei

qual o símbolo que corresponde ao nosso valor fonético “P”. Será que foi

usado o indiferentemente para “B/V” e para “P/F”? Parece-nos impossível prescindir de qualquer das nossas consoantes na actual escrita do português. No entanto para escrever o português utilizando a pronúncia do Noroeste do país, em que “B” e “V” são indistintos, não necessitaríamos de uma das duas letras. Pode ter acontecido o mesmo no dialecto falado nesta região com os sons “P/F” e “B/V”.

Vários símbolos continuam por decifrar e à espera que a descoberta

de novas inscrições ou novos conhecimentos venham trazer luz ao seu valor. Questões de tradução e interpretação

Para além da difícil decifração do valor fonético dos símbolos

representados nas inscrições do Sudoeste, colocam-se problemas igualmente complexos na tradução desses textos tendo por base as línguas semitas antigas melhor conhecidas.

Uma das mais comuns dificuldades na tradução resulta de muitas das palavras dessas línguas serem aparentemente fortemente plurissemânticas, por exemplo:

KWN/KAN significa em hebraico antigo – “ficar firme, teso, ser estável, estar seguro, estabelecer, estar pronto; preparar, fundar; apontar, formar, dar estabilidade, fazer pontaria; tomar posição, estar firmemente fundamentado; direito, justiça”.

Quando nas inscrições do Sudoeste surge a sequência KN/KWN/KAN qual deverá ser a tradução correcta? É sobre este problema que julgo necessário pensar com cuidado para que a tradução seja o mais objectiva e correcta possível. Para explicar o que penso sobre este assunto darei alguns exemplos:

ARBH/ARUBAH significa em hebraico antigo – “abertura, janela, grade, chaminé”.

Como seria possível que esta mesma palavra significasse “chaminé” – abertura estreita e escura por onde sai o fumo - e simultaneamente “janela” ou “grade”?

A explicação parece-me simples: ARBH/ARUBAH não devia

corresponder a nenhum dos conceitos modernos de “chaminé”, “grade” ou “janela”, mas antes à abertura existente no topo das tendas e cabanas onde se cruzam obrigatoriamente os elementos da sua estrutura – daí a ideia de grade, uma abertura por onde entra a luz – associado à ideia de janela, e por onde se faz a saída de fumo – onde reside a possível tradução por “chaminé”. Provavelmente quando num texto se fala de fumo a sair pela “ARBH/ARUBAH” parecerá lógico fazer a tradução por “chaminé”; quando se disser que a luz ou o ar entra pela “ARBH/ARUBAH”, a tradução poderá ser feita por “janela”, ou “abertura”; se por exemplo se referir a existência de algo pendurado na “ARBH/ARUBAH”, parecerá lógico traduzir por “grade”. No entanto, quando surgir a expressão “ARBH/ARUBAH”, a tradução deverá em princípio andar perto deste conceito de “abertura no ponto mais alto da construção”, e não, por exemplo, de “janela”, até porque a ideia de “janela” conforme hoje a entendemos é expressa em hebraico antigo por MḤZH/MÈḤÈZAH – “janela, abertura para iluminação, vista” conceito próximo e associado a MḤZH/MAḤAZÊH – “visão”.

O mesmo se passa com muitas outras palavras. ATR em ugarítico significa “marchar, caminhar, seguir; atrás de, depois; para, por; atrás, logo; lugar, santuário, nome divino”. A síntese destes possíveis e variados significados será qualquer coisa como “procissão” – “marchar / atrás de / nome divino”, “caminhar / para / santuário”, etc., ou eventualmente “caminhar em grupo atrás de algo importante”.

Também “ŞWR” tem em hebraico antigo como significados possíveis:

“amarrar, reunir; sitiar, barricar; moldar, fundir; penha, rocha, seixo”. Parece que o conjunto pode ser algo como “molde de fundição em rocha dura”. Entretanto ŞWRH significa “desenho, planta, projecto”, o que reforça essa convicção pela introdução da “ideia da coisa” prévia à “coisa feita”, logo, molde.

Em acádio “paṣu” significa “pilar, ser branco, derreter”. Será que significa alternadamente cada uma destas ideias do português, ou significará a síntese entre elas? Repare-se que pode corresponder à sequência de operações para a transformação de minério em metal: pilar o minério até se transformar em pó branco e em seguida fundi-lo. É de observar a semelhança com o hebraico antigo “pz” – “ouro puro” e com “pṣṣ” - “esmagar, triturar, derreter”.

Tanto estes como outros exemplos que se podem encontrar, levam a

admitir que a tradução de um termo aparentemente com significações muito variadas pode ser procurada na possível síntese desses diversos significados e ainda no valor de outras palavras próximas, e não apenas num dos possíveis significados referido nos dicionários. Tomo esta ideia geral como método de forma a garantir objectividade e isenção na tradução. Compreende-se que seria muito facilitador para quem dá os primeiros passos na descoberta desta língua escrita contar como válidos os muitos significados possíveis de um termo, e usar em cada situação o que melhor se ajustasse à tradução. No entanto não me parece que assim deva ser, pese embora a dificuldade que cria a quem tenta as primeiras traduções.

Aquilo que acabo de referir não significa que as palavras mencionadas,

e muitas outras em que a variedade de significações é grande, não tenham tido efectivamente muitos significados distintos, mas antes e apenas que provavelmente na sua raiz está uma ideia genérica que acabou por se desdobrar em significações distintas. Quando por exemplo em português dizemos “banco” o seu significado pode variar muitíssimo (desde a instituição de crédito, ao banco de jardim, ao banco de genes, ao banco de pesca…), mas há sempre uma ideia genérica de algo como que parado e em reserva (dinheiro, pessoas, genes, peixe…). Quando se explora pela primeira vez um dialecto desconhecido a partir de línguas, elas próprias relativamente mal conhecidas, há situações em que não existe correspondência exacta entre as palavras conhecidas e aquelas que aqui nos surgem, e logo é necessário procurar este sentido geral para resolver situações mais complexas.

Explicado o princípio geral de que penso se deva partir (tanto mais

necessário porque não estaremos na presença de nenhuma das línguas documentadas, mas antes num dialecto próximo de todas elas) passemos a analisar algumas expressões que surgem nas estelas e tentar a sua tradução.

Nos textos das estelas do sudoeste surge com alguma frequência a

sequência que penso que corresponde a “ḤWH”, que em hebraico antigo significa “proclamar, anunciar, informar; prostrar-se, inclinar-se, adorar; acampamento, aldeia de tendas”. Este termo hebraico corresponde ao “ḤW” ugarítico, com o significado de “viver, reviver, estar vivo, deixar com vida; prostrar-se”. O “ḤWH” hebraico parece ser a atitude que um estranho deve assumir ao aproximar-se de um povoado (aldeia de tendas): informar da sua presença / prostrar-se em sinal de aceitação do poder existente (imagino que um estranho a rondar um povoado ocultando-se e com intenções desconhecidas seria tomado como perigoso e tratado em conformidade). O “ḤW” ugarítico parece conter a ideia de reiniciar vida num povoado diferente daquele de que se é originário. Lembro que enquanto o povo de Ugarit era sedentário, de carácter urbano e de algum modo “cosmopolita”, o povo hebraico era tradicionalmente nómada (daí a ideia de “aldeia de tendas”) e de carácter basicamente tribal, donde as expressões equivalentes tenham significados ligeiramente distintos. Em qualquer dos casos “ḤWH” ou “ḤW” significará genericamente “juntar-se a uma comunidade aceitando as regras que nela existem”.

Também assim a tradução de - KN ugarítico ou de KAN/KWN hebraico - representado nas inscrições do Sudoeste deve corresponder à ideia síntese de “estabelecer, construir, dispor, criar, fixo, imutável, fundar, ficar firme, ser estável, estar firmemente fundamentado, direito, justiça”. Mesmo a ideia contida em “apontar” e “fazer pontaria”, aparentemente dissonante das anteriores, efectivamente não o é. Saberá sem sombra de dúvida isso qualquer atirador de flechas: chave primeira para o sucesso do atirador é uma posição firmemente implantada no solo que permita a máxima estabilidade. Portanto também neste caso o significado é basicamente o mesmo. Pode naturalmente associar-se igualmente a fórmula do SW aos termos equivalentes do acádio ou do assírio-babilónico KANU (KWN) e KENU – “fixar, tornar estável, preparar, fazer com grande cuidado, firme, verdadeiro, durável, seguro, direito” ou mesmo KÊNU/KÊTTU - “recto, verdadeiro, legítimo, justiça, direito, verdade”. Mas mais significativa que a noção de lei e justiça, a ideia contida em KN/KWN/KAN parece ser a de “estabelecer/fundar/construir/fixar” e “ser estável/fazer com grande cuidado/estar firmemente fundamentado”. Tudo isto nos leva inevitavelmente a uma ideia genérica de “novo assentamento”, “povoado sedentário”.

Esta característica do modo de viver do povo que escreveu as estelas do SW terá passado com o tempo a ser o nome do próprio povo. Moisés Espírito Santo escreve: “Os autores da Bíblia atribuíram-lhes vários éntimos, o mais frequente é Cananitas , povo de Canaã, que correspondia durante os séculos XXXI-XXI aos habitantes do Crescente Fértil. Mais tarde os colonos que nas diversas partes do Mediterrâneo se reclamavam desta origem, e os cartagineses em particular, atribuíram-se também o étnimo Cani, Coni, Conani (isto é, Cananitas) para além de Tírios e Sidónios.”13 Relembro aqui que os autores antigos que se referiram ao povo que vivia no que é hoje o Sul de Portugal se referia a “Konii”, “Kuni”, “Keni” ou mesmo a “Kuneti” ou “Kunesi”. É possível portanto que a partir de certo momento o KN seja tomado como designação do povo e não como a característica que lhe deu o nome. Note-se por exemplo que “Algarve” provém da língua árabe com o significado de “O Ocidente”, no entanto hoje ninguém se lembra disso quando diz que mora no Algarve ou que vai ao Algarve. O “Algarve” passou simplesmente a ser o nome da região e já não a característica que deu origem ao nome.

Daqui se deduz que (ŠT / ŠTT / ŠIT) / KN tanto possa significar “fixar/ tomar posição /assentar /colocar /pôr/ base/ dominar/ desgarrar...”(com o sentido genérico de “assentar/dominar” ou “assento/domínio”) seguido de “estabelecer/fundar /construir/fixar, ser estável/fazer com grande cuidado/ estar firmemente fundamentado” , como pode significar “assentamento ou domínio” / KN – “domínio dos koni /povoado koni/ base koni”, etc.

No entanto a sequência que surge nas estelas, talvez pronunciada “NAṦBKON”, corresponde certamente às ideias expressas por várias expressões foneticamente próximas de várias línguas semitas antigas: NṢB (ugarítico) – colocar, erigir NṢB (hebraico) – colocar-se, posicionar-se, estar firme, estar pronto NṢIB (hebraico) – posto, guarnição (militar) NJD (acádio e assírio-babilónico) – colocar, abandonar, fundar, estabelecer habitação (…)

13 - Dicionário de Fenício-Português p. 11

Note-se que por exemplo a palavra “colocar” também é referida como significado das expressões ugaríticas e hebraicas ŠT / ŠTT / ŠIT, pelo que penso serem todas elas variações de uma mesma ideia base.

Estas expressões contêm as ideias de “abandonar, desgarrar, afastar”, de “pôr, colocar” e de “dominar, fixar, tomar posição, fundar, estabelecer habitação, posto ou guarnição militar”. Assim, a ideia síntese subjacente a “NAṦT” é a de “ocupar e dominar de forma permanente uma região depois de se ter abandonado uma outra”, ou seja, “colonizar”.

Sendo assim NAṦT ou NAŞB + KONI deverá ser algo como “colónia

permanente”, “posto militar permanente”, “assentamento koni”, ou qualquer das variantes que se podem encontrar ao combinar o significado das duas palavras.

A sequência mais frequente é “ŠARONAŠTKWN”. Se tentarmos a busca do seu significado, teremos: ŠR (ugarítico) – príncipe, grupo, bando, parente (...) ṦRR (ugarítico) - pequeno; acampamento; sítio, certo, seguro ŠER (hebraico) - grupo, bando ŠERU (ŠRY) (assírio-babilónico) - habitar, principiar SR (hebraico) - príncipe, chefe, líder, soberano, oficial, representante do rei (…) ŠARU (acádio) - ser eminente ŠIRU (acádio) – elevado, eminente, chefe SARRU (acádio e assírio-babilónico) - rei ZERU (acádio) – terra arável ZERU (assírio-babilónico) – semente, grão ZERU (ZR’) (acádio) – semear ŞERU (ŞḥR) – planície, campo, alto, cabeço ŞERU / ŠIRU (Şhr) (acádio) – alto, elevação, dorso

A ideia contida em deve corresponder a uma destas ideias ou, mais provavelmente a uma associação de vários dos significados por que têm sido traduzidos os termos equivalentes das línguas semitas antigas. Deve ainda ter-se em conta que a sequência “ŠR” por vezes aparece substituída

por ,ou seja, “ŠRŠ”, o que deixa admitir que se trate de fórmulas diferentes de transmitir uma ideia próxima. Veja-se que “ṦRṦ” significa “raiz, ramo, descendência” (ugarítico) ou “criar raízes, lançar

raízes” (hebraico), ou mesmo “ṦRṦW” “desterro, degredo, exclusão” (aramaico). Assim, “ŠR” deve estar mais próxima da ideia ugarítica de “grupo, bando, clã”, “pequeno; acampamento; sítio, certo, seguro”, da hebraica “grupo, bando” e da acádia de “habitar, principiar”, “terra arável, campo”, que da ideia de “príncipe, chefe”. No entanto estes conceitos, que hoje se nos afiguram como muito distintos, na época seriam entendidos como uma mesma ideia: não haveria clã sem chefe, nem chefe sem clã, e não poderia existir nenhuma destas realidades sem campos agrícolas próprios. A leitura do Antigo Testamento ajuda a perceber esta noção. É mesmo

provável que este esteja na origem da nosso vocábulo “serro” ou “cerro”. Podia corresponder na época a uma ideia de “cabeço habitado com

terras agrícolas e um chefe de clã”. Este triplo sentido de parece-me aceitável e mesmo provável, e tem continuidade no actual falar regional alentejano com o termo “monte”. A forma topográfica “monte” é associada à função de habitação rural “monte” e à sua característica se sede de exploração agrícola. Ainda hoje se diz no Alentejo, que uma pessoa é “da gente do Monte …” quando se quer dizer que essa pessoa é da linhagem de sangue do proprietário. Esta fórmula não se aplica no entanto a qualquer um, mesmo que tenha nascido no dito monte, mas apenas à linhagem do proprietário – de algum modo o “Saro” dos nossos dias. Note-se ainda que “ŤKN” em ugarítico significa “morar, morador”; “ŠKN” em ugarítico é “estabelecer-se” e em hebraico antigo é “morar, fixar residência”; “ŠAKANU”, em acádio e em assírio-babilónico” é “fixar”. Deste modo, seja qual for a separação de palavras que se faça, somos conduzidos à mesma tradução.14

A variação do final da fórmula entre KONII e KONTI será apenas e simplesmente uma variação do género. KONTI poderá ser o feminino de KONII e significar algo como povoação ou território dos KONII. Sabe-se que em hebraico antigo, enquanto o nome dos povos é masculino, o nome dos seus territórios e cidades é feminino. A mesma lógica é aceitável para a língua do Sudoeste, próxima do hebraico antigo neste e em outros aspectos. Pode mesmo admitir-se que ambas as terminações “Konii” e “Konti” sejam formas femininas de “Koni”. Esta última possibilidade é aceitável e lógica, já que ocorre numa das inscrições a forma “Konhi” que também só pode ser interpretada como uma forma feminina de “Koni”. Nas inscrições do 14 - Para alguns será preferível uma explicação “gramaticalmente correcta” que também existe: em ugarítico N + ŠT + KN será “ter-se fixado a si mesmo”, e corresponde à conjugação causativa reflexiva. Repare-se ainda que se “SR” é “príncipe”, “SRN” também é “príncipe”… a ideia reside na frase, não na palavra individual.

Sudoeste o símbolo tem no final das palavras um valor equivalente ao Y ugarítico e ao H hebraico, pelo que as terminações em “Konii”, “Konhi” e “Konti”, podem apenas ser variantes gráficas femininas de “Koni”. Se assim for, as expressões que constam das inscrições significaram em todos os casos “território dos sedentários” ou, como se diria hoje, “paisagem humanizada de uma comunidade sedentária” – terras arroteadas e limpas dos matagais impenetráveis que constituiriam a paisagem natural da época, e que seriam os locais habitados pelas comunidades sedentárias – os Koni.

Assim, as sequências finais que ocorrem na maioria das inscrições “

”, “ ”, ou formas próximas destas, devem corresponder a uma ideia genérica de “novo povoado permanente”, “colónia fixa”, “novo povoado ou colónia conii” (sedentária ou do povo sedentário), “clã morador”, “campo da comunidade sedentária”, etc. Tal como o exemplo dado no capítulo anterior, todas as leituras que se façam desta sequência, agrupando os símbolos de formas diferentes, conduzem a uma mesma ideia geral: um assentamento humano de carácter permanente, ou mais provavelmente ao território dominado militarmente por essa população. Pode inclusivamente a expressão referir-se à comunidade (ou ao seu chefe) e ao território como uma só ideia. Repare-se que hoje só distinguimos o “concelho” - unidade administrativa / território, do “conselho” – órgão de poder que dirige esse território, por um detalhe ortográfico. O caso de “RB” que surge frequentemente antes de “SR/SARO” é interessante. “RB/RAB” em hebraico antigo significa “numeroso, muito, grande, múltiplo, abundante; bastante; capitão, comandante, chefe”; “RB/REB” “arqueiro, flecha”; “RBB” ou “RBH" é “tornar-se numeroso, aumentar, engrandecer”. Na lógica anterior “RB” transmite a ideia de “comandante de numerosos homens” ou “tornar numeroso”, até porque se associa naturalmente a “RBÔ” - “dez mil; legião incontável”.

Repare-se que seria possível e mais cómodo aceitar a tradução de

“RB/SARO” por “grande/chefe”. No entanto parece-me que a tradução mais correcta terá que ser “comandante de numerosos homens/povoado sedentário” ou de “tornar numeroso/povoado sedentário”. Pode parecer irrelevante a diferença entre as duas possibilidades, no entanto do ponto de vista do conhecimento da História da época estes detalhes são importantes. A segunda hipótese de tradução conduz-nos a um ambiente de insegurança e confrontação, a uma situação em que o agregar-se a uma comunidade

militarmente forte seria importante por questões de segurança. Haveria conflitos e insegurança na época? Como se verá adiante a tradução de muitas inscrições parece apontar nesse sentido. Na estela 25 a sequência RB LA ḤH significará certamente “RB” – “comandante de numerosos homens” + “L-“ ou “LA” – (prefixo) “de” + “ḤH” – “exército, lugar de moradia…” , ou de “tornar numeroso o lugar de moradia”. Ainda na estela 25 temos um outro exemplo interessante da forma que penso ser a mais correcta de traduzir estes textos.

Q I N S é uma expressão que penso ter o significado de “estandarte”, porque: Q I N - lança N S - haste de sinalização, sinal, bandeira

QIN + NS = QI (N+N) S = QINS

“QIN” significa “lança”, mas é “lança longa” diferente de “lança curta” – “dardo” que é designado por “RMḤ” (próximo de “RMH” – “lançar, arremessar, arqueiro, enganar, iludir”). “QIN” está próximo de “QNH” – “haste, caule”. “NS” está próximo de “NŠA” (ugarítico) – “alçar, levantar, carregar com” e de “NSS” – “reunir-se em torno de um estandarte”. “QINS” será portanto “lança longa/ bandeira”, “lança longa/ haste de sinalização”, “lança longa/ sinal”, o que é o conceito de “estandarte”.

Na estela número 9 existe a sequência que descodifico como “AḤÔR”, e que em hebraico antigo significa “costas, lado ou parte posterior, atrás, para trás; ocidente, depois, mais tarde, por último, afinal”, que penso que possa ser interpretado com “extremo ocidental”. Sendo assim, “ŠT/ŠTT/ŠIT / AḤÔR” deverá significar “fixar-se no extremo ocidental”. Se admitirmos como descodificação “ŞB / AḤÔR”, teremos como tradução “alistar-se para o extremo ocidental”, o que na prática vai dar ao mesmo. “AḤÔR” seria provavelmente um dos nomes por que era conhecida esta região.

Bastarão estes exemplos para que se perceba na prática como penso

que se deve fazer a tradução do dialecto inscrito nas estelas com base nas línguas semitas antigas conhecidas. Será neste momento mais fácil ao leitor compreender as propostas de tradução de algumas das inscrições.

Há por último que ter consciência que uma tradução, seja entre que

línguas for, não pode reduzir-se a traduzir à letra sequências de palavras a partir de um dicionário. Tem que se procurar a partir de uma língua traduzir mais ideias que palavras para uma outra. Por exemplo estas línguas não têm o nosso verbo “ser” nem as preposições independentes “de, do, da, dos, das” pelo que terão que ser introduzidos no texto sempre que necessário. Por outro lado os verbos são dados no infinito, o que proporciona leituras difíceis. No entanto, por exemplo no ugarítico em muitas situações a raiz verbal não era sujeita a prefixação ou sufixação, ou seja, a forma utilizada era igual à da raiz verbal/infinito do verbo. Não se deve estranhar em demasia esta situação, dado que no inglês, língua actualmente internacional, acontece algo semelhante: quando dizemos “I go home” vemos que a tradução à letra seria “Eu ir casa”. No entanto traduzimos como “Eu vou para casa”. Será portanto necessário tentar adaptações em benefício da legibilidade do texto, o que desconhecendo o essencial da gramática deste dialecto se torna muito difícil e arriscado.

A TRADUÇÃO DAS INSCRIÇÕES Já sugeri anteriormente que as inscrições que hoje se conhecem

serão de épocas diferentes. A estela nº 2 será provavelmente do período mais recente e contemporânea de algumas moedas que apresentam inscrições em caracteres do Sudoeste e caracteres Norte africanos. Não que possa estar seguro, mas poderão ser fruto de uma forte influência cartaginesa imediatamente anterior à conquista romana da Península Ibérica, o que justificaria algumas dessas moedas ostentarem aparentemente caracteres latinos e caracteres do Sudoeste e do alfabeto púnico.

Há um grupo de inscrições que tem símbolos ainda não decifrados com

segurança, que só surge no Algarve litoral. São dele exemplos, entre outras, as estelas nº 11 e 15. Não estou em condições ainda de estabelecer uma relação cronológica entre este grupo e aquele que, mais numeroso e disseminado no território, tenho vindo a traduzir. Porque exclusivamente litoral, poderá supor-se que corresponderia a uma primeira fase de colonização. No entanto alguns dos caracteres parecem ser mais tardios, ou pelo menos são documentados caracteres semelhantes em alfabetos mais

tardios. Julgo que com a sua futura descodificação e tradução completa se poderá eventualmente obter uma ideia da cronologia relativa.

Como se viu anteriormente as várias leituras que se façam de uma

sequência contínua são geralmente coincidentes ou complementares. Para aliviar este texto da aridez da análise de várias leituras possíveis, selecciono os exemplos que me parece corresponderem às mais claras traduções, sabendo-se no entanto que existem outras possibilidades de leitura e tradução geralmente com sentidos semelhantes.

Quanto à sequência “ ”, que translitero por “S A R O N A ŠB K O N I I” (e suas variantes), farei a tradução simplificada.

Vejamos então as propostas de tradução para algumas das inscrições.

ESTELA 9

Fig. 38 – Estela n.º 9, de Beirão

________________________________________________

ṢB’ A Ḥ Ô R M D Ø S A R O N A ŠT K O N I I ŠT / ŠIT – fixar (hebraico e ugarítico) ṢB’ – recrutar, alistar (hebraico) A Ḥ - companheiro, camarada, irmão, parente (hebraico) A Ḥ Ô R - costas, ocidente, para trás, mais tarde, por último, afinal (hebraico)

ḤW - viver, estar vivo, deixar com vida, reviver, prostrar-se... (ugarítico)

Ḥ WH - prostrar-se, inclinar-se, aldeia de tendas, acampamento... (hebraico) Ø R – cidade (ugarítico) Ø R M - amontoar-se, juntar-se, tornar-se sábio, ser astuto, esperto (hebraico) M D Ø – parentesco, parente (distante) (hebraico)

D Ø – buscar, procurar; conhecimento, saber (hebraico) S A R O N A ŠT K O N I I – povoado sedentário Leitura e tradução ṢB’ – alistar, recrutar A Ḥ Ô R - costas, ocidente, para trás, mais tarde, por último, afinal (hebraico) M D Ø – parentesco, parente (distante) (hebraico) S A R O N A ŠT K O N I I – povoado sedentário

Alistar / Extremo ocidental / Parente distante / Povoado sedentário

Se em vez de fazer leituras com a justaposição de vocábulos as fizermos sobrepondo letras de vocábulos consecutivos, obtemos ideias semelhantes. A título de exemplo veja-se:

ṢB’ – alistar, recrutar A Ḥ - companheiro, camarada, irmão, parente (hebraico) A Ḥ Ô R - costas, ocidente, para trás, mais tarde, por último, afinal (hebraico) Ø R M - amontoar-se, juntar-se, tornar-se sábio, ser astuto, esperto (hebraico) M D Ø – parentesco, parente (distante) (hebraico) D Ø – buscar, procurar (hebraico) S A R O N A ŠT K O N I I – povoado sedentário

Alistar (ou fixar) / Companheiro / Extremo ocidental / Juntar-se / Parentes / Buscar / Povoado sedentário

A tradução livre que me parece mais próxima da que se faria na época

será a seguinte: “Alista-te companheiro no extremo ocidental, junta-te aos parentes, busca o povoado sedentário”.

Evidentemente que a noção de “parente distante” corresponde à nossa noção popular de “patrício” (oriundo da mesma terra, conterrâneo), o que se compreende numa lógica de imigração. Anote-se ainda que esta inscrição é proveniente de Bensafrim, Lagos, que na época seria certamente um porto importante e certamente local de desembarque de novos imigrantes.

Tal como foi explicado e, julgo eu, demonstrado, anteriormente a

leitura de sequências sem separação de palavras não constitui grande problema porque todas ou quase todas as leituras que se façam são concordantes ou complementares. Trata-se de um convite claro à fixação de emigrantes.

ESTELA 17

Fig. 39 – Estela n.º 17, de Beirão

________________________________________________________ W A R Ḥ B N I R Š H R W N A W H S A R O N A _____________ ṦT K O N I I W – e, mas, para que, de modo que (ugarítico) W – e, mas, então (hebraico) W A R - vir (ugarítico) A R Ḥ - viajante (hebraico) R Ḥ B – amplo, extenso (hebraico) Ḥ B ‘ – esconder-se, estar escondido, ocultar (hebraico) Ḥ B H – esconder (hebraico)

B- (Prefixo) – na qualidade de, de, entre, de entre… (hebraico e ugarítico) B N – de, desde, entre, dentro; filho, entender (ugarítico) B N – filho, neto, membro de um grupo, tribo ou povo (hebraico) B N H – construir, constituir família N I R – arrotear, lavrar (pela primeira vez um terreno) I R Š - obter, tomar posse I R Š H – propriedade R Ṧ - estar ou ficar arruinado Ṧ/ṦA – que, pois, porque, do qual se diz que (hebraico) H R - serra, monte R W N – construir no alto Ø N – ver, contemplar (ugarítico) N W H / N A W H – lugar de residência A Š - há, existe S A R O N A ŠT K O N I I – povoado sedentário

Veja-se um exemplo de leitura de palavras em sequência usando apenas cada letra numa só palavra. W – e, mas, para que, de modo que (ugarítico) A R Ḥ - viajante B N – filho, neto, membro de um grupo, tribo ou povo (hebraico) I R Š - obter, tomar posse H R - serra, monte N W H / N A W H – lugar de residência S A R O N A ŠT K O N I I – povoado sedentário

De modo que / Viajante / Compatriota / Obter / Serra / Lugar de residência / Povoado sedentário

Veja-se um exemplo de leitura da mesma sequência em que as mesmas

letras podem participar na formação de mais que uma palavra W A R - vir (ugarítico) A R Ḥ - viajante R Ḥ B – amplo, extenso B N – filho, neto, membro de um grupo, tribo ou povo (hebraico) N I R – arrotear, lavrar (pela primeira vez um terreno) I R Š - obter, tomar posse

I R Š H – propriedade H R - serra, monte R W N – construir no alto N W H / N A W H – lugar de residência S A R O N A ŠT K O N I I – povoado sedentário

Vir / Viajante / Extenso / Compatriota / Arrotear / Obter / Propriedade / Serra / Construir no alto / Lugar de residência / Povoado

sedentário

Outras leituras possíveis que são basicamente concordantes com esta ideia geral: convida-se o colono a vir arrotear terras agregando-se a uma comunidade já existente. É significativo que a inscrição n.º 38 transmite uma mensagem semelhante, muito embora use expressões diferentes.

ESTELA 38

Fig. 40 – Estela n.º 40, de Beirão

D B T I ? A N A K Ø R G B R B Š A Ḥ Ø S A R Ø

S A N A ṦT K O N T I D – quem, o que, o de (...) (ugarítico) B T – qualidade de um membro de um povo ou cidade (...) (hebraico) B T – casa, palácio, família (...) (ugarítico) ? A N – onde quer que seja (ugarítico) H N – aqui, este (…) (ugarítico) H N H - está aqui (...) (hebraico) A K – certamente, obviamente (hebraico) A K R / I K O R – lavrador (hebraico) K - quando, como, assim (...) (ugarítico) K W R - queimar, crestar (hebraico) Ø R G – desejar (hebraico) R G B - fome (ugarítico) G B R - realizar, conseguir, superar (...) (hebraico) B R / B A R – campo aberto (...) (hebraico) (B R ‘ – arrotear) (hebraico) R B Š - lugar de acampamento, descanso, redil (...) (hebraico) B- (Prefixo) - como (na qualidade de) (…) (ugarítico e hebraico) B Ṧ - atrasar-se, parar, afastar-se; descansar, partir, regozijar-se (ugarítico) Ṧ A – que; pois; porque; do qual se diz que (hebraico) Ş Ø H - curvar-se, inclinar-se (hebraico) Š Ḥ H - prostrar-se, fazer reverência (hebraico) Š A Ḥ / Š Ḥ - inclinado, baixo (hebraico) Ḥ W – viver, reviver, prostrar-se (...) (ugarítico) Ø Ṧ H – trabalhar, realizar, manufacturar… (hebraico) Ḥ Š R – impor e cobrar o dízimo (...) (hebraico) S A R - ficar (ugarítico) Š R / SARO - chefe, clã (...) Ṧ R Ṧ – descendência, raiz, ramo (ugarítico) criar raízes, lançar raízes (hebraico) H R – serra, monte (ugarítico e hebraico) R W Ṧ - ser pobre W – e, mas, então (hebraico); e, para que, de modo que (ugarítico) Ṧ N – mudar-se

H N – aqui, este, (…) (ugarítico) H N H - está aqui, aqui, para (...) (hebraico) N A ŠT - colónia K O N T I – sedentária/konti

Vejam-se alguns exemplos de possíveis leituras:

D – quem, o que, o de, (...) (ugarítico) B T – qualidade de um membro de um povo ou cidade (...) (hebraico) ? H N H - está aqui (...) (hebraico) K - quando, como, assim (...) (ugarítico) Ø R G – desejar (hebraico) B R / B A R – campo aberto (...) (hebraico) (B R ‘ – arrotear ) (hebraico) B- (Prefixo) – como (na qualidade de) (…) (ugarítico e hebraico) Š A Ḥ / Š Ḥ - inclinado, baixo (hebraico) Ø Ṧ H – trabalhar, realizar, manufacturar… (hebraico) S A R - ficar (ugarítico) R W N – estar no alto, construir no alto, ser altivo (hebraico) N A ŠT - colónia K O N T I – território Koni

Quem / Qualidade de membro de um povo / ? / Está aqui / Quando / Desejar / Arrotear / Como / Baixo/Inclinado / Trabalhar / Ficar /

Construir / Colónia / Território Koni Tentando uma tradução mais livre:

“Aquele que na qualidade de membro de um povo (?) está aqui, quando desejar arrotear como súbdito (deve? pode?) construir na colónia do território Koni”.

Outras leituras possíveis: D – quem, o que, o de (...) (ugarítico) B T – casa, palácio, família (...) (ugarítico) (?)

H N – aqui, este (…) (ugrítico) K W R - queimar, crestar (hebraico) G B R - realizar, conseguir, superar (...) (hebraico) B-(Prefixo) – como (na qualidade de), de, de entre (…) (ugarítico e hebraico) Š A Ḥ / Š Ḥ - inclinado, baixo (hebraico) Ḥ W – viver, reviver, prostrar-se (...) (ugarítico) S A R - ficar (ugarítico) R W Ṧ - ser pobre Ṧ N – mudar-se N A ŠT - colónia K O N T I – território Koni Quem / Casa / ? / Aqui / Queimar / Superar / Baixo / Viver / Ficar /

Mudar-se / Colónia /Território Koni D – quem, o que, o de (...) (ugarítico) B T – qualidade de um membro de um povo ou cidade (...) (hebraico) (?) H N H - está aqui (...) (hebraico) A K R / I K O R – lavrador (hebraico) K - quando, como, assim (...) (ugarítico) Ø R G – desejar (hebraico) G B R - realizar, conseguir, superar (...) (hebraico) B R / B A R – campo aberto (...) (hebraico) (B R ‘ – arrotear) (hebraico) R B Š - lugar de acampamento, descanso, redil (...) (hebraico) B Š - parar para descansar, desgarrar, deixar-se ficar (tradução livre ugarítico) Š A Ḥ / Š Ḥ - inclinado, baixo (hebraico) Ḥ W – viver, reviver, prostrar-se (...) (ugarítico) Ṧ R Ṧ – descendência, raiz, ramo (ugarítico) criar raízes, lançar raízes (hebraico) N A ŠT - colónia K O N T I – território dos konii

Quem / Qualidade de membro de um povo / ? / Está aqui / Como / Lavrador / Quando / Desejar / Realizar / Campo aberto / Baixo/Inclinado / Viver / Criar raízes / Colónia / Koneti.

D – quem, o que, o de (...) (ugarítico) B T – casa, palácio, família (...) (ugarítico) (?) H N H - está aqui (...) (hebraico) K - quando, como, assim (...) (ugarítico) Ø R G – desejar (hebraico) B R / B A R – campo aberto (...) (hebraico) (B R ‘ – arrotear) (hebraico) Ṧ A – que; pois; porque; do qual se diz que (hebraico) Ḥ W – viver, reviver, prostrar-se (...) (ugarítico) S A R - ficar (ugarítico) W – e, mas, então (hebraico); e, para que, de modo que (ugarítico) Ṧ N – mudar-se H N – aqui, este (…) (ugarítico) N A ŠT - colónia K O N T I – território koni

Quem / Família / ? / Está aqui / Quando / Desejar / Arrotear / Porque / Iniciar vida / Ficar / Mas / Mudar-se / Aqui / Colónia /

Território Koni D – quem, o que, o de (...) (ugarítico) B T – qualidade de um membro de um povo ou cidade (...) (hebraico) (?) H N H - está aqui (...) (hebraico) A K R / I K O R – lavrador (hebraico) K - quando, como, assim (...) (ugarítico) Ø R G – desejar (hebraico) G B R - realizar, conseguir, superar (...) (hebraico) B R / B A R – campo aberto (...) (hebraico) (B R ‘ – arrotear) (hebraico) R B Š - lugar de acampamento, descanso, redil (...) (hebraico) B Ṧ - parar, descansar, desgarrar (ugarítico) Š A Ḥ / Š Ḥ - prostrar-se, inclinado, baixo (hebraico) Ḥ W – viver, reviver, prostrar-se (...) (ugarítico) Ṧ R Ṧ - criar raízes, lançar raízes (hebraico) N A ŠT - colónia

K O N T I – território dos Konii

Quem / Membro de um povo / ? / Está aqui / Lavrador / Quando / Desejar / Realizar / Arroteia / Lugar de acampamento / Para ficar /

Inclinado / Lançar raízes / Colónia / Território dos Konii Outras leituras que se possam fazer com base nos métodos que

inicialmente defini, conduzirão a ideias semelhantes às aqui referidas.

ESTELA 48

Fig. 41 – Estela n.º 48, de Beirão

I R Ø H L Ḥ Ø Ş I Ø L N A ŠT K O N T Y MN Ô S A Ḥ

O R B Ş A R O Ḫ T H N Ø G Ḥ W

I R ‘ - ter medo, tributar reverência, temer (hebraico) Y R A – temer, atemorizar-se (ugarítico) I R Ø - temer, hesitar (hebraico) R ‘ - companheiro (ugarítico) R Ø H – mal, maldade, crime, desgraça; companheiro, amigo (hebraico) H L – “eis aqui, olha”, apenas, logo que (...) (ugarítico) A L – não, que não,; certamente, sem dúvida (ugarítico) A L – por causa de, referente a, em direcção a (...) (hebraico) L Ḥ - lei, tabuinha, escrito, mensagem, face, ser vigoroso … (ugarítico) Ḥ W – viver, reviver, prostrar-se … (ugarítico) Ḥ Ô Ṣ - campo, o que está fora, do lado de fora (...) (hebraico) Ø Ṣ - apressar-se, árvore, madeira, haste (ugarítico) Ø Ṣ H - conselho, máxima; árvore, madeira (hebraico) I Ø L – ser útil, levar vantagem, ter proveito (...) (hebraico) Y ‘ L – ser útil, tornar-se propício (ugarítico) Ø L – sobre, por cima; junto, na presença de; parente, congénere (ugarítico) Ø L – altura, sobre, acima, por causa de, por (…) (hebraico) L N – dormir, pernoitar, hospedar-se (ugarítico) L I N – passar a noite, pernoitar, permanecer, morar (hebraico) N A ŠT - colónia K O N T I – território Konii T I MN – Sul, meridional (hebraico) Y MN – lado direito, mão direita (ugarítico) I MN – conservar a direita, ir para a direita (hebraico) MN- (Prefixo) – indicador do agente da voz passiva (hebraico) M N Ø - reter, segurar, conter, manter afastado de, negar (hebraico) MN Ô S – refúgio (hebraico) ØW Š - vir em auxílio, socorrer, apressar-se (hebraico) S A Ḥ A R / S Ḥ R – defesa, fortificação (...) (hebraico) A Ḥ Ô R – extremo ocidental R B – chefe de numerosos homens de armas R B Š - descansar, deixar-se (ugarítico) R B Š / R E B É Š - descanso, lugar de acampamento (hebraico) B-(prefixo) - na qualidade de, como , de … (ugarítico e hebraico) B Ṣ R – ser inacessível, ser impossível (...) (hebraico) S A R - ficar (ugarítico) S A R O – príncipe, clã (...) Ḫ T – ceder, romper, ser vencido (ugarítico)

Ḥ Ṭ A – ser triturado (ugarítico) Ṭ ‘ N – atacar, trespassar (ugarítico) H N – aqui, este, “eis aqui, olha!” (Ugar.) A N – onde, onde quer que seja (...) (ugarítico) H N H – aqui, para aqui, eis, eis que (hebraico) N G Ḥ - derrubar, abater (ugarítico) Ḥ W – deixar com vida, prostrar-se (...) (ugarítico)

Exemplos possíveis de leitura: I R Ø - temer, hesitar (hebraico) H L – “eis aqui, olha”, apenas, logo que, este (...) (ugarítico) Ḥ Ô Ṣ - campo, o que está fora, do lado de fora (...) (hebraico) I Ø L – ser útil, levar vantagem, ter proveito (...) (hebraico) N A ŠT - colónia K O N T I – território Konii MN Ô S – refúgio (hebraico) S A Ḥ A R / S Ḥ R – defesa, fortificação (...) (hebraico) B Ṣ R – ser inacessível, ser impossível (...) (hebraico) Ḫ T – ceder, romper, ser vencido (ugarítico) N G Ḥ - derrubar, abater (ugarítico)

Teme / Este / Espaço exterior / Tem vantagem / Colónia / Território Konii / Refúgio / Fortificação / Ser impossível / Romper / Derrubar

No entanto, muito provavelmente a leitura que seria feita na época

seria algo próximo do que se segue:

Y R A – temer, atemorizar-se (ugarítico) R Ø H – mal, maldade, crime, desgraça; companheiro, amigo (hebraico) A L – por causa de, referente a, em direcção a (...) (hebraico) Ḥ Ô Ṣ - campo, o que está fora, do lado de fora (...) (hebraico) I Ø L – ser útil, levar vantagem, ter proveito (...) (hebraico) L N – dormir, pernoitar, hospedar-se (ugarítico) [(LIN – morar (hebraico)] N A ŠT - colónia

K O N T I – território Konii MN Ô S – refúgio (hebraico) S A Ḥ A R / S Ḥ R – defesa, fortificação (...) (hebraico) R B – chefe de numerosos homens de armas S A R O – príncipe / clã (...) B Š R – ser inacessível, ser impossível (...) (hebraico) Ḥ T – ceder, romper, ser vencido (ugarítico) H N – aqui, este, “eis aqui, olha!” (ugarítico) N G Ḥ - derrubar, abater (ugarítico)

Teme o mal referente ao exterior. Tem vantagem pernoitar/morar na colónia do território Konii, refúgio fortificado do poderoso clã impossível ser vencido aqui derrubado.”