Escrita Teatral Um azar do caraças Personagens

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1 Escrita Teatral Um azar do caraças Personagens: João dos Anzóis, meia-idade, vulgar Fagundes, meia-idade, donjuanesco Ana Boa esposa de João dos Anzóis, mais ou menos da idade do marido, olhos escuros, profundos, corpo de modelo, rosto atraente, cabelo castanho, pintado Maria dos Prazeres namorada de Fagundes, idade indefinida mas mais jovem que o namorado, corpo de vime, rosto gaiato, olhos de gata, loira Cenário: Divisão de casa pode ser uma garagem ou divisão de arrumos com vários apetrechos de pesca (canas, boias, redes, caixas de anzóis, etc.) espalhados pelo chão; vários móveis em desuso; sobre uma mesa encosta à parede, uma gaiola com um canário e um rádio ligado; uma porta que dá para o interior principal da habitação e uma pequena janela, por onde entra a luz, virada para o quintal da moradia. I Acto Cena I (João dos Anzóis e Fagundes) (Cinco minutos sem falas, só gestos: João dos Anzóis e Fagundes preparam os apetrechos para uma pescaria a realizar no dia seguinte. Na gaiola, um pintassilgo canta ima melodia triste; na rádio ouve-se os Vampiros de Zeca Afonso). Vampiros José Afonso No céu cinzento sob o astro mudo Batendo as asas Pela noite calada Vêm em bandos Com pés veludo Chupar o sangue Fresco da manada Se alguém se engana com seu ar sisudo E lhes franqueia As portas à chegada Eles comem tudo Eles comem tudo Eles comem tudo E não deixam nada [Bis] A toda a parte Chegam os vampiros Poisam nos prédios Poisam nas calçadas Trazem no ventre Despojos antigos Mas nada os prende Às vidas acabadas São os mordomos Do universo todo Senhores à força Mandadores sem lei Enchem as tulhas Bebem vinho novo Dançam a ronda No pinhal do rei Eles comem tudo Eles comem tudo Eles comem tudo E não deixam nada No chão do medo Tombam os vencidos Ouvem-se os gritos Na noite abafada Jazem nos fossos Vítimas dum credo E não se esgota O sangue da manada Se alguém se engana Com seu ar sisudo E lhe franqueia As portas à chegada Eles comem tudo Eles comem tudo Eles comem tudo E não deixam nada Eles comem tudo Eles comem tudo Eles comem tudo E não deixam nada (Cala-se a voz do Zeca; emudece o pintassilgo; o tilintar da cana, dos carretos e outros utensílios para a pescaria quebra o silêncio monótono dos gestos, compassados umas vezes, descompassados, outras). …………

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Escrita Teatral Um azar do caraças

Personagens:

João dos Anzóis, meia-idade, vulgar Fagundes, meia-idade, donjuanesco Ana Boa – esposa de João dos Anzóis, mais ou menos da idade do marido, olhos escuros, profundos, corpo de modelo, rosto atraente, cabelo castanho, pintado Maria dos Prazeres – namorada de Fagundes, idade indefinida mas mais jovem que o namorado, corpo de vime, rosto gaiato, olhos de gata, loira Cenário: Divisão de casa – pode ser uma garagem ou divisão de arrumos – com vários apetrechos de pesca (canas, boias, redes, caixas de anzóis, etc.) espalhados pelo chão; vários móveis em desuso; sobre uma mesa encosta à parede, uma gaiola com um canário e um rádio ligado; uma porta que dá para o interior principal da habitação e uma pequena janela, por onde entra a luz, virada para o quintal da moradia.

I Acto Cena I (João dos Anzóis e Fagundes) (Cinco minutos sem falas, só gestos: João dos Anzóis e Fagundes preparam os apetrechos para uma pescaria a realizar no dia seguinte. Na gaiola, um pintassilgo canta ima melodia triste; na rádio ouve-se os Vampiros de Zeca Afonso).

Vampiros José Afonso

No céu cinzento sob o astro mudo

Batendo as asas Pela noite calada

Vêm em bandos Com pés veludo

Chupar o sangue Fresco da manada

Se alguém se engana com seu ar sisudo

E lhes franqueia As portas à chegada

Eles comem tudo Eles comem tudo

Eles comem tudo E não deixam nada [Bis]

A toda a parte Chegam os vampiros

Poisam nos prédios Poisam nas calçadas

Trazem no ventre Despojos antigos

Mas nada os prende Às vidas acabadas

São os mordomos Do universo todo

Senhores à força Mandadores sem lei

Enchem as tulhas Bebem vinho novo

Dançam a ronda No pinhal do rei

Eles comem tudo Eles comem tudo

Eles comem tudo E não deixam nada

No chão do medo Tombam os vencidos

Ouvem-se os gritos Na noite abafada

Jazem nos fossos Vítimas dum credo

E não se esgota O sangue da manada

Se alguém se engana Com seu ar sisudo

E lhe franqueia As portas à chegada

Eles comem tudo Eles comem tudo

Eles comem tudo E não deixam nada

Eles comem tudo Eles comem tudo

Eles comem tudo E não deixam nada

(Cala-se a voz do Zeca; emudece o pintassilgo; o tilintar da cana, dos carretos e outros utensílios para a pescaria quebra o silêncio monótono dos gestos, compassados umas vezes, descompassados, outras).

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(Passaram os cinco minutos. Quebrando a insipidez dos gestos, ouve-se um trautear…)

João dos Anzóis – (trauteando) Eles comem tudo Eles comem tudo Eles comem tudo E não deixam nada …. Eles comem tudo Eles comem tudo Eles comem tudo E não deixam nada Fagundes – (levantando a cabeça)

- Estás muito revolucionário, caramba. E dizes tu que eu é que sou revolucionário. Vê-se…. A cantar Zeca Afonso… Quem diria!, ahn? João dos Anzóis – Revolucionário, eu? Está mesmo a ver-se não está… E logo eu… Figas canhoto! Fagundes – Então, explica lá porque é que estás a repetir os versdos finais da canção do Zeca. João dos Anzóis – (Parando o que está a fazer, e olhando o companheiro de fainas…)

- Fácil. Muito fácil de explicar. Pensa…

(criando clima de “suspense”)

- Quantas vezes já fomos à pesca? Fagundes – Sei lá. Mais que muitas… João dos Anzóis – E quanto a pescaria? Farta? Suficiente? Sofrível? Má? Péssima? Fagundes – (pensando ou fingindo que pensa…)

- Fazes cada pergunta... Pescamos mais para nos divertir que para apanhar peixe. Por isso…. (rindo…)

… só temos trazido peixe em quantidade quando o compramos… João dos Anzóis – (rindo… rindo…)

- às vezes nem ao local da pesca chegamos… É tão fácil a gente perder-se, não é?

(rindo, rindo, gargalhando com gosto)

- Lembras-te?!... de… Fagundes - (atalhando a temida peroração…) - Não mudes de assunto. Quero saber por que é que estás a ‘traulitar’… (ri-se)

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… a trautear os versos do Zeca Afonso. Tu que nem gostas dele… João dos Anzóis – Ah! Ele é isso. Já podias ter dito… (Fagundes faz um gesto de quem vai falar...)

… sim, sim, não foi bem o que perguntaste mas é o que queres saber… Pois, no meu desafinado cantarolar do

Eles comem tudo Eles comem tudo Eles comem tudo E não deixam nada

estava a pensar nos peixes que amanhã, se, obviamente lá chegarmos, (volta a rir-se com gosto)

vão mais uma vez comer as iscas e… e dar à sola. E, claro, mais uma vez regressaremos de mãos a abanar… Isto, repito, se chegarmos junto do pesqueiro. Até nos podemos perder pelo caminho mais uma vez, não é? (Gargalha de novo)

Fagundes – (Acompanhando as gargalhadas) - Claro, claro. Até podemos encontrar alguma patuscada… alguma matança com umas febrinhas fresquinhas de comer e chamar por mais. João dos Anzóis - … e com uns tintóis a parecer bem… Fagundes – Pois… (João dá um grito)

João dos Anzóis – Ai!!! Ai!!! Merda para isto, já espetei um anzol no dedo. Que gaita! Fagundes – Um anzol? João dos Anzóis – Sim, porra. E não sai. Tenho de o cortar. Esta merda dói mesmo. Fagundes – Está empatado? João dos Anzóis – (cada vez mais irritado e doído) Empatado, encastoado ou seja lá que porcaria for faz alguma diferença? Que raio de pergunta… Se estivesses com as dores com que eu estou… (João, com um esgar no rosto, levanta-se e dirige-se para a porta da divisão e grita)

- Ana, ó Ana, anda cá. Rápido, rápido! Ai este meu dedo, ai este meu dedo…

(duas mulheres aparecem, apressadas)

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Cena II (João dos Anzóis, Fagundes, Ana Boa e Maria dos Prazeres) (De olhos arregalados, inquiridores)

Ana Boa – Que é lá isso, homem? Parece que estás para parir. Que bicho te mordeu? João dos Anzóis – Traz a caixa dos primeiros socorros. Enfiou-se-me um anzol no dedo. E traz, também, um alicate para cortar o raio do anzol. Que chatice! Só a mim… Ai! Ai! Ai… ai… ai….! Fagundes – (Com ar de gozo)

- Quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão. Há tanto tempo a mexer em anzóis e… nem um anzol sabes empatar… Maria dos Prazeres – (Intervindo na conversa) - Olha quem fala! Anzóis que tu digas ter empatado, fui eu quem o fez, ou, então, já foram comprados prontinhos... As tuas mãos não têm jeito para essas coisas…

(Sorrindo com brejeirice….)

- … nem para essas nem para outras… Fagundes – Francamente… Maria dos Prazeres – (com riso sacana)

- Francamente é uma pessoa sincera que, de vez em quando, diz uma mentirinha, não é? (volta a rir-se com gosto)

Ana Boa – (Pondo ordem na conversa)

- Deixem-se dessas coisas, que nós não queremos saber disso. Não é verdade, João? João dos Anzóis – (Com ar sofredor)

- Quero lá saber se é assim ou assado. Quero é que te mexas e vás buscar o material para me tirar o anzol e desinfectar o dedo. Isso, sim, isso é que me importa neste momento… Ana Boa – Pronto, homem, pronto. Com esse ar até parece que vais parir!...!

(E com um ar entre dó e gozo, enfática)

- Coitadinho do bébé… Coitadinho… Como sofre… (Ana Boa sai de cena)

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Cena III (João dos Anzóis, Fagundes e Maria dos Prazeres) Maria dos Prazeres – Ó João, que fizeste à Ana? Ou… o que não fizeste… Ela parece que não está lá muito bem-disposta contigo… Há gato, ou gata…, não?!!? João dos Anzóis- Não. Não há nada de negativo, nem cão nem gato nem gata, nada, tenho a certeza. Antes pelo contrário… Ela é perfeita. Ou quase… pois também tem telhas… Maria dos Prazeres – Sim… se tu o dizes… Ela é, pois, é. E tu? Olha que… nem tudo o que parece é…

(Intervindo)

Fagundes – Ouve lá, menina, a vida é deles, não é? Já te disse várias vezes que o casamento é uma soma de afectos, uma subtracção de liberdades, uma multiplicação de problemas e uma divisão de bens... Por isso… João dos Anzóis – Sim, na verdade, é tudo isso. Mas também é estabilidade com alguma instabilidade à mistura… E quanto a divisão de bens… nem sempre… Há quem enfie cada barrete. Como dizia o Fócrates, a vida, por vezes, é uma soda… E não passa disso. Maria dos Prazeres – É! E como dizia o outro, se não puderes ajudar, atrapalha! O importante é participar. E eu continuo a pensar se… vale a pena casar… Fagundes – Olha lá, minha menina, já te disse que o homem é superior à mulher porque duas cabeças pensam melhor do que uma; o pior é quando estão em desacordo; e, pior ainda, se são as três. Portanto, que não se te metam coisas na cabeça… Certo, certinho, certíssimo? (Pensando ter descoberto algo importante)

João dos Anzóis – Não me digam que… (Cala-se ao ver Ana Boa)

Cena IV (João dos Anzóis, Fagundes, Ana Boa e Maria dos Prazeres)

(Regressa Ana, trazendo nas mãos um pequeno alicate e uma caixa de primeiros socorros. Começa a tratar da mão do marido. Enquanto isso sucede)

Ana Boa – Não me digam que… o quê? Que é que tem estado para aqui a passar-se, a ser dito nas minhas costas? Espero que nada de mal… Eu até nem tenho segredos… Fagundes – Nada de especial… Apenas a curiosidade de uma solteira que quer saber como é a vida de casada…

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João dos Anzóis – Curiosidade feminina… Bem, à curiosidade das mulheres devia era chamar-se curiosidade fêmea ou de fêmea, uma curiosidade divagante, ácida, viperina… Ana Boa – (virando-se para Maria dos Prazeres) - Como se tu não soubesses… Olha, se Maomé não vai à montanha é porque tem a praia mais perto… ou lhe apetece mais. Fruto proibido… Maria dos Prazeres – (Como se não tivesse ouvido ou dado importância a Ana Boa) - Anda daí. Já trataste do “aleijadinho”, coitadinho… coitadinho… Vamos é pôr a nossa conversa em dia para outro lado enquanto eles acabam de organizar as coisas. Amanhã é dia de madrugar… e eu ainda quero… (Saem as duas, enquanto João dos Anzóis e Fagundes aprontam o material que vão levar. Volta a ouvir-se o pintassilgo. Só gestos, sem palavras. Na rádio ouve-se Luís Góis a cantar “É preciso acreditar”)

É preciso acreditar Luís Góis

É preciso acreditar, É preciso acreditar que o sorriso de quem passa é um bem para se guardar que é luar ou sol de graça que nos vem alumiar com amor alumiar É preciso acreditar, É preciso acreditar que a canção de quem trabalha é um bem para se guardar Que não há nada que valha a vontade de cantar a qualquer hora cantar

É preciso acreditar, É preciso acreditar que uma vela ao longe solta é um bem para se guardar que se um barco parte ou volta passará no alto mar E que é livre o alto mar É preciso acreditar, É preciso acreditar Que esta chuva que nos molha é um bem para se guardar que sempre há terra que colha um ribeiro a despertar para um pão por despertar.

Fim do I acto

(Cai o pano. Devagarinho e a rir)

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II Acto

(O mesmo cenário e as mesmas personagens) Cena I (João dos Anzóis e Fagundes)

(Regressados da pescaria, começam a arrumar as canas e outros apetrechos de pesca numa prateleira. Demoram tempo e tempo. O pintassilgo trina com alegria. O rádio está mudo.)

João dos Anzóis - (parecendo sair de uma situação letárgica)

- Bem, lá viemos mais uma vez sem nada. Somos mesmo os reis do azar. Ou sou eu. Porra, ainda cá estou a pensar naquela cena da truta… Fagundes – (sorrindo)

- Aquilo foi mesmo surrealista. Ainda estou a pensar como foi possível. E afinal, não apanhaste a truta mas apanhaste outro peixe… João dos Anzóis - (rindo com gosto) - As trutas são mesmo umas safadas… Devem aprender com certas pessoas. Com certeza fiz-lhe um beim em tê-la apanhada. Ela devia estar com o peixito atravessado na garganta. E foi no peixito que o anzol se espetou… Fagundes - … quando a tiraste da água, a truta sacudiu-se com desespero, foi-se… foi-se… e tu ficaste com o peixito no anzol. Deu-me cá uma vontade de vir… Foi mesmo surrealista… João dos Anzóis – Vontade, uma ova. Riste-te e bem. A bandeiras despregadas. Caramba. Deu-me cá uma gana… de atirar a merda da cana para o meio do rio… Fagundes – Para um pescador a sério seria uma situação caricata. Mas nós aproveitamos as pescarias apenas para quebrar a rotina da semana. Que diabo, uma pessoa a fazer sempre a mesma coisa, cada dia da semana, dá em maluco…

(Silêncio. Silêncio… Ambos parecem pensar…)

João dos Anzóis – (Como se saísse de um sono profundo, letárgico)

- Quando eu era jovem, pensava que o dinheiro era a coisa mais importante do mundo. Hoje tenho a certeza. Fagundes – Hum! Essa merda vem a propósito de quê? Que pensas dessa maneira já toda a gente sabe. E às vezes até nem dás pelo que se passa à tua volta. Mas muita gente pensa da mesma maneira. Isso de dizer que o dinheiro não dá felicidade… João dos Anzóis – E não dá mesmo. Fagundes – Se não dá, porque queres ter cada vez mais? João dos Anzóis – Amigo, sigo a opinião de Pitigrilli: o dinheiro não dá a felicidade, dizia ele; mas acrescentava: principalmente quando é pouco.

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(Reflectindo)

- Não tenho muito mas dá para me safar no meio desta crise… Fagundes – (interrompendo)

- Por falares em crise… Preciso de conversar contigo sobre um assunto… João dos Anzóis – (Como se não tivesse ouvido) - É giro. Apesar do que penso ser o meu bem-estar económico e familiar – pena não ter descendentes – é quando vou pescar que me sinto melhor. Nem sempre vais comigo – tens outros afazeres – mas contigo, com outro amigo, ou só, o ritual da pesca alivia-me a mona. (Pára uns segundos…) - … É preparar o material, é levantar cedo, é pensar se dá ou não dá, é, talvez e sobretudo, as histórias com que nos confrontamos… Olha esta última… Há cada coisa…

(Voltando a ensimesmar, de cabeça baixa)

Gosto da gente do Alentejo. E parece que a minha carripana também. Mal se apanha a trabalhar, lá vira ela o focinho para o Alentejo. E lá vamos nós. A calma daquelas pessoas contagia-me, faz-me bem. Fagundes – (rindo)

- Está uma pessoa sem saber por onde ir, semiperdida… João dos Anzóis – (rindo também)

- Desta vez fomos para longe… Fagundes – (Com ar prazenteiro)

- Pois é, há coisas do diabo: encontrar dois compadres à sombra de um chaparro e acabar na bebedeira com eles… (Aparece Ana Boa com ar receoso…)

Cena II (João dos Anzóis, Fagundes e Ana Boa) Ana Boa - (Intrometendo-se na conversa e olhando interrogativamente para Fagundes)

- Estão a falar em bebedeira ou ouvi mal? Fagundes – Não, ouviste bem. Vê lá tu que íamos perdidos pelo meio de um montado de sobro sem saber que rumo tomar quando nos demos de caras com dois sujeitos a descansar à sombra de um chaparro. Depois de lhes dar a salvação, pergunto eu: - “Eh, amigos, este caminho vai para onde”? Saindo da molenguice, pergunta um ao outro: “Eh compadre, podemos dizer-lhes?”. Ainda molenga, responde o outro: “Claro,

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compadre, isso não é segredo”. Pois então fiquem os senhores a saber, diz o primeiro, que este caminho não vai para parte alguma pois precisamos dele cá! João dos Anzóis – Claro que desatámos na galhofa e palavra puxa palavra fomos com eles ajudar numa tosquia. Ana Boa – E que tem isso a ver com a bebedeira? João dos Anzóis – Tosquiar dá cá uma trabalheira que nem queiras saber… Ainda por cima, com um calor de rachar, fomos molhando o bico, comendo uns nacos de carneiro grelhado e… zás. Como o chão parecia fugir-me debaixo dos pés, pensei para comigo: “Se não puderes ajudar, atrapalha; o importante é participar”. E assim fiz. Atrapalhei mais que ajudei… mas participei… Ana Boa – Deves ter feito uma linda figura… Fagundes – (piscando o olho para Ana)

– Fizemos todos. Mas o melhor, ou o pior nem sei bem, aconteceu no fim da tosquia. Então não é que o dono do rebanho pega no par de cornos do carneiro, que tinha sido sacrificado a bem da comezaina, entrega-o a um empregado e manda-o ir colocá-lo à porta de um compadre… Ana Boa – (corando) - Que animal! – Isso é lá coisa que se faça? E depois? Fagundes – (Olhando de soslaio para João dos Anzóis)

- Então… Dormimos lá… Ana Boa – Onde dormiram pouco me importa… Os compadres zangaram-se ou já andavam zangados? João dos Anzóis – (A ficar incomodado com a conversa) - No dia seguinte, cedinho, que a gente queria pescar pela fresca, o ti Manel – era este o nome do dono do rebanho – pediu-me para, antes de rimos para o pesqueiro, que por sinal era ali bem perto, ir com ele a casa do compadre Joaquim, aquele à porta de quem o empregado havia arrumado os chifres, para se justificar. E lá fui com ele… Ana Boa – (virando-se para Fagundes)

- E tu não foste? Fagundes – (Encavacado) - Não, mas contaram-me… João dos Anzóis – (Com pressa de acabar o assunto)

- O compadre Joaquim bateu à porta da casa e apareceu logo o ti Manel todo sorridente. Quando o compadre Joaquim começou a justificar o acto com a bebedeira – até porque tinham sido sempre amigos e nada justificava o acto – o presenteado não

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o deixou continuar e atirou-lhe com esta: - “Ó compadre, isso não tem importância nenhuma. Quando abri a porta e me dei com o presente, chamei a minha Maria e disse-lhe, Ó Maria, anda cá ver, anda. Então não é que o nosso compadre Jaquim mandou cortar o cabelo à escovinha”… (Encolhendo os ombros)

Trocaram mais umas palavras de amizade e… viemos embora. Ambos deviam saber do que falavam. (Mudando o rumo da conversa)

Depois, eu e aqui o Fagundes fomos à pesca. Tenho a certeza de que deixámos lá bons amigos. Quando lá voltarmos… Ana Boa – Pensas voltar lá? João dos Anzóis – Claro. E o Fagundes com certeza que vai comigo. A não ser que nos aconteça alguma desgraça. Ana Boa – Desgraça?

(Ouve-se um toque de campainha)

- É a campainha da porta. Vou ver quem é… (Sai ligeira…)

Cena III – (João dos Anzóis e Fagundes) Fagundes - (pouco à vontade, começando a falar) - Sabes, João, como aprendemos lá na tosquia, a vida é como um corno: quanto mais cresce mais entorta. João dos Anzóis – (parecendo não ter ouvido)

- É giro. Ainda cá estou a pensar no compadre Joaquim. Como diz o povo, foi à lã e ficou tosquiado. Sucede. Se não fosse o vinho… (Parecendo falar só para ele)

- um dia em que não pudeste ir comigo – nesse dia foi o Bastos! – em Évora estava uma noite triste, morrinhenta. Como estava desagradável passearmos pela cidade, ficámos a tomar café no bar do hotel. Aquilo era só fumo e vapor no ar. As pessoas quase não falavam. Nisto abre-se a porta e entra um indivíduo com uns tantos pares de cornos pendurados ao pescoço – de carneiros e de bois – e pergunta para o geral da gente: - “Alguém quer um par de cornos?”. Esperou um pouco, e como ninguém respondeu, disse: “Bem me parecia que toda a gente já está servida…”. Deu as boas

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noites e foi-se. E toda a gente ficou impávida e serena. Foi a primeira vez que senti o Alentejo a sério… Fagundes – E tu? Como reagiste? E o Bastos? João dos Anzóis – Como não conhecíamos o tipo, não nos pareceu que nos englobasse… Aliás, não englobava ninguém. Foi uma maneira simpática de se meter com as pessoas… Algumas talvez até suas amigas… (E num aparte)

Que raio de maneira de manifestar a amizade… Fagundes – (Com ar receoso…) - Sabes, há muito que ando para te falar de um assunto… Mas por este ou por aquele motivo, vai passando, passando… João dos Anzóis – (a arrumar uma caixa de anzóis)

- Zangaste-te com a tua namorada? Já era azar… O teu divórcio não foi pacífico e custou-te caro. Se não te tenho ajudado… A esta é só pores-lhe os trapos à porta, e que se governe… Já tinha reparado que as coisas não andam a correr muito bem entre ambos… Fagundes – Não é isso; é mais complicado… João dos Anzóis – Os amigos são para as ocasiões… Vê lá… (Ana boa, que chega, interrompe a conversa)

Cena IV – (Ana Boa, Fagundes e João dos Anzóis) Ana Boa – João, deixei na sala um sujeito que quer falar-te. Quis trazê-lo comigo mas respondeu-me que era exclusivamente contigo, e a sós… O melhor é ires lá ver o que é que ele quer… Está com cara de poucos amigos! Fagundes – (Virando-se para João dos Anzóis) - Queres que vá contigo? João dos Anzóis – Não, obrigado. Eu vou só! Não faço mal a ninguém, dificilmente alguém me quererá fazer mal… Fagundes – Nunca se sabe, João, nunca se sabe. Às vezes fazemos mal sem darmos por isso, e, depois não há retorno… João dos Anzóis - Sem problemas. Vou só. (Sai João dos Anzóis)

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Cena V – (Fagundes e Ana Boa) (Há um olhar cúmplice entre Fagundes e Ana Boa)

Ana Boa – Enfim, sós. Já falaste com o João? Fagundes – (A medo)

- Não… Não consegui. Quando chegaste, estava a tentar, mas ele desviou sempre a conversa. Quando lhe disse que tinha uma coisa para lhe contar, desviou a conversa e falou da Maria. Pensa que o meu “problema” é ela…

Ana Boa – (Ríspida) - Mas isto não pode continuar assim. Ou falas tu ou falo eu. Escolhe. Já não aguento mais o segredo. Fagundes – Tem calma! Havemos de resolver o assunto… Vem cá, vem para os meus braços. (Puxa Ana)

- Sabes que é a ti que quero. E é contigo que quero viver o resto dos meus dias. (Fagundes beija Ana na boca, no pescoço, no rosto. Beijos longos e apaixonados)

Ana Boa – (Olhando para a porta)

- Cuidado!... Pode aparecer alguém… (Ana fica lívida: à porta está Maria dos Prazeres que assistiu a parte final da cena)

Cena VI – (Maria dos Prazeres, Ana Boa e Fagundes) (Maria dos Prazeres, em passo elástico, entra em cena a gritar)

Maria dos Prazeres – (Furibunda, olhos lançam raios de ódio; aquietam-se depois para desprezo)

- Com que então, andavas a trair-me, hem? Meu porco de merda. E tu, minha vaca, a traíres o teu marido, que te tem dado sempre tudo? És nojenta. Trocá-lo por um crápula como este gajo… Que nojo. Fagundes – (A não gostar do rumo da conversa)

- Mas não te tens queixado… Maria dos Prazeres – Ai não não tenho. Só que o tenho feito só para mim! Não vales nada como homem! (Quase possessa)

- Tenho vivido contigo porque julgava que podia modificar-te. E como não sou muito sequiosa… Aí a pantera é melhor que eu? Cabrões! Vigaristas. Vou já dizer ao João! Ele tem de saber quem tem e quem mete em casa. Ordinários!

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(Em passo apressado chega João dos Anzóis que, ao longe, ouvira a gritaria. Na mão, bem visível, traz umas folhas de papel tipo A4)

Cena VII – (João dos Anzóis, Fagundes, Ana Boa e Fagundes) João dos Anzóis – (Com ar perplexo)

- Afinal que gritaria vem a ser esta, Maria? Olha que estás em minha casa… Ana Boa – Não é nada. A Maria está zangada com o Fagundes… Fagundes – Eu há pouco quis dizer-te… Maria dos Prazeres – (Fula, cada vez mais fula. Toda ela treme, como um vime ao sabor do vento.

Os olhos semeiam fogo e ódio)

- Não é nada? Então eu apanho-vos aos beijos e a dizerem que não podem viver um sem o outro e ainda têm a lata de dizer que não é nada? (Ofegante)

- João, eu apanhei-os aos beijos. E não era na face. Eles são amantes… E têm andado a fazer de ti manso! Corno manso, homem. E tu és uma pessoa honesta, caramba. Não o merecias. Nem eu, que tenho andado a aturar este merdoso a ver se o ajudava a endireitar-se. E é assim que este bardamerda me paga. E a ti… Se não fosses tu, se não o tivesses ajudado, a esta hora estaria na pildra. A ti, que o tratas como um irmão… Caramba! Trair-te com a tua mulher, João, não é de homem. João dos Anzóis – (Ainda semi-incrédulo) - É verdade, Ana? É mesmo verdade? Ana Boa – É João, é. Apaixonámo-nos. Sempre que ele te dizia não poder ir à pesca contigo era para ficar comigo. E, claro, temos estado sempre que há oportunidade. Tínhamos combinado dizer-to hoje. E o Fagundes quis fazê-lo. (Pondo um ar triste)

- Desculpa… Ninguém manda no coração… João dos Anzóis – (Dissimulando o rancor, em voz fria) - Não, na verdade ninguém manda no coração e… menos ainda… no corpo. Principalmente se se é uma desavergonhada… que estás sempre com dor de cabeça… Fagundes – (Armado em forte) - João, não te admito… João dos Anzóis – Na minha casa – na minha casa, repito – faço e digo o que bem quero e me apetece. Por isso, bico calado.

(Virando-se para Ana Boa)

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- Por isso, linda menina, pega neste gajo e desapareçam os dois. Rápido. Levas o que tens vestido e bonda. Ele que te sustente os vícios e os caprichos. Daqui não levas mais nada. (Gritando)

- JÁÁÁÁÁÁÁÁ!!!!!... (Fagundes e Ana Boa, arrogantes, preparam-se para sair)

- Ó troca-tintas, ouve lá. Lá ou cá tanto faz. Lembras-te de uma noite em que nos perdemos na estrada e fomos dar a uma quinta de uma viúva ainda relativamente jovem e muito jeitosa a quem passaste horas a fazer olhinhos de carneiro mal morto? Lembras-te? Fagundes – (Encabulado)

- Lembro, claro que lembro… Tu também a olhaste bem… João dos Anzóis – Deu-nos de jantar, falou-nos da quinta mas, para não dar pasto às más-línguas, mandou-nos ir dormir para o celeiro … Verdade?!!?... Fagundes – Sim, é verdade… Mas a que propósito vem isso agora? João dos Anzóis – (Sorrindo, trocista)

- E durante a noite, apanhaste-me a dormir e foste ter com ela à cama… Fagundes – (Mais afoito) - Sim, é verdade. Mas volto a perguntar: - A que despropósito vem isso? Eu só estava a começar o namoro aqui com a Maria… ainda nem era coisa séria… João dos Anzóis – (Ignorando a pergunta)

- E fizeste-te passar por mim, não é verdade? Deste-lhe o meu nome, morada e tudo o mais, não foi? … Fagundes – Sim, é verdade… Podia tê-la engravidado ou coisa parecida, e seria uma chatice… se ela viesse à minha procura. Se fosse à tua, tu safavas-te. Como sempre… João dos Anzóis – (Impante e cínico)

- Pensaste bem. Por causa disso, acabei de receber um advogado… Fagundes - (Entre o ansioso e o medroso)

- Assunto grave? João dos Anzóis – (Enigmático)

- É que essa viúva morreu…

(Olham todos para ele, de olhos esbugalhados. João dos Anzóis, de sorriso enigmático, aponta

para os papéis que conservava na mão)

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e nomeou-me seu herdeiro universal… Ana Boa – (Com uma espécie de gula a brilhar nos olhos, esperta...) - Mas então… eu também… João dos Anzóis – (Cínico) - … com a cláusula de incomunicabilidade. Por isso, minha menina, tira daí o sentido… Tiveste um azar, um azar do caraças!

(Arrogante, mandão)

- Vá, toca a mexer. Toca a andar. Rápido, rápido. Tudo para a rua. Já. Já. Víspere! Andeca! Chulos, traidores! Putéfia! (Olhando para Maria)

- Tu, se quiseres, podes ficar… Não me apetece comemorar sozinho…

Fim do II e último acto Cai o pano vagarosamente.

O pintassilgo continua mudo. Do rádio sai a voz de

Fernando Machado Soares Fado da Mentira

Fiz uma cova na areia

Pr’a enterrar minha mágoa Entrou por ela o mar todo Não encheu a cova d’água

Ninguém conhece no rosto O que a nossa alma inspira A vida é gosto e desgosto

Mentira, tudo mentira

José Querido FLUC

Mestrado em Estudos Artísticos ESCRITA TEATRAL