Equidade, Desenvolvimento Sustentável e Preservação da Biodiversidade: algumas questões sobre...

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EQUIDADE, DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E PRESERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE: ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A PARCERIA ECOLÓGICA NA AMAZÔNIA Deborah de Magalhães Lima Departamento de Antropologia CFCH - UFPa Belém – Pará (In: Faces do Trópico Úmido - conceitos e questões sobre desenvolvimento e meio ambiente. Edna Castro e Florence Pinton, (eds). Belém: Cejup, 1997.) A mobilização de populações locais pela defesa de recursos naturais essenciais para sua sobrevivência e a proliferação de organizações não governamentais que atuam em prol da preservação do meio ambiente são dois movimentos sociais encontrados na Amazônia hoje. Não raramente, estes movimentos se aliam, como no caso do movimento dos seringueiros e do movimento pela preservação de lagos. A essa parceria Hall (1994) chamou de "movimentos sócio-ambientais", ressaltando que a força das mobilizações locais se baseia justamente na aliança que estabelecem com organizações voltadas para a conservação produtiva da Amazônia. Em alguns casos a pressão política exercida por esses movimentos conseguiu obter respaldo governamental para legalizar suas propostas e um dos mecanismos jurídicos usados foi a criação de novas categorias de unidades de conservação, ou a redefinição de categorias já estabelecidas. A implantação de várias unidades de conservação na Amazônia se baseia em alianças deste tipo, como é o caso da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá,

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EQUIDADE, DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E

PRESERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE: ALGUMAS QUESTÕES

SOBRE A PARCERIA ECOLÓGICA NA AMAZÔNIA Deborah de Magalhães Lima

Departamento de Antropologia CFCH - UFPa Belém – Pará

(In: Faces do Trópico Úmido - conceitos e questões sobre desenvolvimento e meio ambiente. Edna Castro e Florence Pinton, (eds). Belém: Cejup, 1997.)

A mobilização de populações locais pela defesa de recursos naturais

essenciais para sua sobrevivência e a proliferação de organizações não

governamentais que atuam em prol da preservação do meio ambiente são

dois movimentos sociais encontrados na Amazônia hoje. Não raramente,

estes movimentos se aliam, como no caso do movimento dos seringueiros e

do movimento pela preservação de lagos. A essa parceria Hall (1994)

chamou de "movimentos sócio-ambientais", ressaltando que a força das

mobilizações locais se baseia justamente na aliança que estabelecem com

organizações voltadas para a conservação produtiva da Amazônia. Em alguns

casos a pressão política exercida por esses movimentos conseguiu obter

respaldo governamental para legalizar suas propostas e um dos mecanismos

jurídicos usados foi a criação de novas categorias de unidades de

conservação, ou a redefinição de categorias já estabelecidas. A implantação

de várias unidades de conservação na Amazônia se baseia em alianças deste

tipo, como é o caso da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá,

2 Deborah Lima

das diversas Reservas Extrativistas, do Parque Nacional do Jaú e da Floresta

Nacional do Tapajós.

Pela legislação federal, as unidades de conservação estão divididas

em duas categorias: as de uso direto, que compreendem vários tipos de

unidades onde o manejo sustentável é permitido, e as unidades de

conservação de uso indireto, onde a preservação é integral. Existem 112

unidades de conservação federais e estaduais na Amazônia, que cobrem

420.000 km2 ou 8,7% da Amazônia Legal (Rylands, 1995). Somadas, as

unidades de conservação de uso direto cobrem 245.910 km2, ou 4,9% da

Amazônia Legal, uma área equivalente ao Reino Unido. Isto nos dá uma

dimensão da área onde atuam ou vão atuar populações locais e

conservacionistas em parceria. Há ainda vários projetos de desenvolvimento

sustentado sendo implantados em áreas da Amazônia que não pertencem a

unidades de conservação.

A maioria dos projetos onde se dá essa parceria teve início no final

dos anos oitenta e início desta década, quando mudanças no cenário sócio-

econômico da Amazônia e o desenvolvimento de novos conceitos teóricos na

biologia da conservação contribuíram para a formação de uma conjuntura

favorável a sua implantação. O fator responsável pela formação desta

conjuntura foi o reconhecimento das consequências negativas do

desenvolvimento de empreendimentos capitalistas na Amazônia que levaram

a uma rápida devastação das florestas e a extinções localizadas de alguns

recursos naturais, pondo em risco a biodiversidade da região e ameaçando a

sobrevivência de populações locais. A construção de estradas e barragens, os

incentivos à ocupação da terra por empresas capitalistas, o crescimento da

pecuária, o crescimento das cidades e desenvolvimento da pesca comercial

que levaram a um aumento da pressão sobre estoques pesqueiros da várzea,

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afetaram diretamente populações locais e chamaram a atenção da

comunidade científica e da opinião pública nacional e internacional para a

devastação da Amazônia. Ao mesmo tempo, a decadência do sistema de

aviamento tradicional abriu espaço para a participação política das

populações locais, antes presas à patronagem (Aramburu, 1994), que se

mobilizaram para defender seus direitos sobre as áreas que ocupavam. A

aliança entre ambientalistas e populações locais também foi favorecida pela

existência de políticas de financiamento de instituições governamentais e não

governamentais do Primeiro Mundo que, seguindo novas estratégias para a

conservação, privilegiam projetos que integram conservação e populações

locais.

A proposta deste trabalho é discutir o envolvimento de populações

locais na implantação de unidades de conservação a partir de uma reflexão

sobre a experiência de Mamirauá, uma unidade de conservação que está

sendo implantada em parceria com comunidades engajadas no movimento de

preservação de lagos. Um aspecto importante a ser discutido é a concepção

de populações tradicionais presente no pensamento ambientalista e

recentemente incorporado na revisão, em andamento, do Sistema Nacional de

Unidades de Conservação (SNUC). Atendendo às demandas geradas pelo

movimento sócio-ambiental, o substitutivo em discussão propõe a criação de

novas categorias de unidade de conservação que incluem populações

humanas, cunhadas na proposta como populações tradicionais.

A generalização do conceito de populações tradicionais tende a

simplificar a diversidade de situações sociais e, mais grave, implicar em uma

expectativa de permanência da pequena produção familiar, privilegiada pelo

movimento ambientalista justamente por ser mais propícia à aceitação de

modelos de uso sustentável do que a produção capitalista. Sem uma reflexão

4 Deborah Lima

adequada, as expectativas conservadoras do modelo de uso sustentado podem

ir contra a autonomia destas populações de decidir sobre seu futuro frente às

aspirações modernas de níveis de consumo e definição de bem estar.

De fato, a parceria ecológica tem sido constituída com base na

desigualdade social. As populações pobres, no entanto, estão sendo

integradas às unidades de conservação sem que se tenha definido com clareza

a meta social a ser atingida. A única norma definida para o desenvolvimento,

entendido como melhoria das condições de vida, é restritiva - que as

atividades humanas não contrariem o objetivo de preservação da

biodiversidade. Do ponto de vista conservacionista, a permanência de

populações humanas é em si um benefício oferecido às populações, uma

concessão de risco que se troca pela aceitação política da unidade de

conservação e pela adoção de normas de uso sustentável dos recursos que

servem para amortecer o contato da fronteira das áreas de preservação total

com áreas não conservadas ao seu redor. Para as populações locais sua

inclusão envolve uma série de sacrifícios que não são divididos igualmente

com o resto da sociedade. É certo que em nenhum dos projetos em curso se

verifica coersão, pelo contrário, o diálogo e o fortalecimento político das

populações são procedimentos respeitados. Mesmo assim, não se pode deixar

de reconhecer que o comportamento econômico que se espera destas

populações, justificável em termos de um modelo ideal de adaptação humana

ao meio ambiente, não é exigido de outros segmentos sociais.

A implantação de projetos integrados implica em várias

modificações na organização social das populações, nas suas relações de

trabalho e no seu acesso e uso dos recursos. Como os recursos existentes nas

áreas destinadas à exploração humana tendem a ser comunais, é possível que

a população envolvida mantenha, internamente, uma ordem social mais

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igualitária, fundada na ausência de privilégios para o acesso aos principais

meios de produção, terra e água. A organização social que se configure, mais

ou menos igualitária, no entanto, estará inserida em uma ordem social

diversa, com a qual a população local possui laços de dependência e que

oferece ao meio urbano, e não o rural, seus maiores benefícios. É necessário,

portanto, pensar também na fronteira social deste modelo de preservação da

biodiversidade.

Outro ponto importante a discutir é que critérios são usados para

reconhecer determinados grupos sociais como populações tradicionais e

atribuir a esses grupos, excluindo de outros, o direito de permanência em

unidades de conservação. Em muitos casos, a parceria ecológica corre o risco

de se envolver em conflitos locais e ser manipulada por grupos sociais que

competem por territórios e pelo direito exclusivo ao uso de recursos naturais.1

A EXPERIÊNCIA DE MAMIRAUÁ

A Reserva de Mamirauá é a maior unidade de conservação brasileira

localizada inteiramente em área de várzea. Está situada no Estado do

Amazonas, entre os rios Japurá, Amazonas e o Auati-Paraná, uma região de

florestas inundadas que permanecem 6 meses submersas e sofrem variações

anuais de até 12 metros no nível das águas. Decretada em 1990 pelo governo

do Amazonas, possui uma área total de 11.240 km2. Desde 1991, um total de

80 pesquisadores, extensionistas e pessoal de apoio já participou de estudos e

trabalhos de extensão destinados a implantar a reserva e elaborar seu plano de

1 Ver por exemplo a discussão de Araújo (1994) sobre o conflito entre comunidades

do Lago Grande de Monte Alegre gerado por uma portaria do IBAMA que fechou uma área do lago a pescadores comerciais. As comunidades incluídas na área preservada não querem permitir a entrada de comunidades que, mesmo localizadas no lago, ficaram fora da área protegida.

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manejo.2 Este trabalho inicial está sendo feito em uma área focal de 260.000

ha, localizada entre os rios Japurá, Solimões e o paraná do Aranapu, e os

resultados alcançados servirão de base para a implantação do restante da

reserva. Além de sua importância biológica conferida pelo alto número de

espécies endêmicas, a implantação desta unidade de conservação desenvolve

uma experiência nova ao incluir as populações de residentes e usuários da

reserva no seu processo de implantação.

A criação da reserva foi baseada em uma proposta inicial

encaminhada pelo biólogo Márcio Ayres à antiga Secretaria do Meio

Ambiente (SEMA) em 1984 para a conservação de uma área menor, de

712km2, destinada a preservar duas espécies de primatas, o uacari branco e o

macaco-de-cheiro-de-cabeça-preta (Cacajau calvus calvus e Saimiri

vanzolinii). Após o Estado do Amazonas decretar a reserva com uma área

maior, que coincide com toda a distribuição do uacari branco, a Secretaria de

Meio Ambiente Ciência e Tecnologia do Estado do Amazonas (SEMACT-

Am) assinou um convênio com o CNPq e Ministério do Meio Ambiente para

a implantação da reserva. O Projeto Mamirauá foi criado com esse objetivo,

e está ligado diretamente ao CNPq, inicialmente alocado no Programa do

Trópico Úmido e atualmente na Diretoria de Institutos. Recebe apoio

financeiro e logístico de várias instituições governamentais e não-

governamentais do Brasil e exterior.3

2 Para uma descrição dos programas de pesquisa do Projeto Mamirauá, ver Lima

Ayres, Moura e Ayres, 1995. 3 As principais instituições de apoio são CNPq, Museu Paraense Emílio Goeldi,

Universidade Federal do Pará, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, SEMACT-Am, Overseas Development Administration (ODA), World Wide Fund for Nature (WWF), Wildlife Conservation Society (WCS), European Union (EEC), e Aqualung.

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Paralelamente, foi criada a Sociedade Civil Mamirauá, em 1992,

com o objetivo principal de administrar com maior flexibilidade os recursos

recebidos para implementar as atividades do projeto, além de se

responsabilizar pela manutenção a longo prazo do funcionamento da reserva.

A parceria entre uma não-governamental e instituições governamentais

combina a agilidade de manusear orçamentos com a garantia de continuidade

dada por uma instituição governamental. No caso, o CNPq assegurou

recentemente a continuidade do projeto se responsabilizando por 40% de seu

orçamento e está criando um instituto de pesquisa sobre a várzea em Tefé.

Originalmente, Mamirauá foi decretada como Estação Ecológica,

uma categoria incompatível com o modelo sendo implantado. O fato de ser

uma reserva estadual facilitou a aceitação da proposta de trabalho "irregular"

pela SEMACT, o que não aconteceria caso fosse uma unidade de

conservação ligada diretamente ao governo federal. A questão da legalidade

do modelo adotado foi resolvida este ano com a mudança para uma categoria

nova, chamada "Reserva de Desenvolvimento Sustentável" definida no

projeto de lei elaborado pelo Professor Nelson Ribeiro. Esta categoria não

obedeceu ao SNUC porque os modelos jurídicos existentes não eram

adequados à realidade de Mamirauá. O Estado do Amazonas portanto

apresentou uma inovação ao legislar autonomamente sobre unidades de

conservação.

A categoria se caracteriza essencialmente pela conjugação de três

elementos: preservação do patrimônio natural, pesquisas sobre a

biodiversidade e combate à pobreza pela promoção do desenvolvimento

sustentado. A legislação prevê a implantação gradual da reserva, sendo que

cada etapa se finaliza pela aprovação, por decreto, de um Plano de Manejo.

Assim, a primeira etapa de implantação está sendo concluída com a

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finalização da redação do primeiro Plano de Manejo, que se refere à área

focal da reserva (Projeto Mamirauá, 1996).

O MODELO

Projetos que integram conservação e desenvolvimento comunitário

(integrated conservation and development programmes ou ICDPs), também

chamados na literatura de projetos de conservação baseados na comunidade

(community based conservation ou CBC) têm gerado várias discussões sobre

as implicações da integração de populações humanas aos objetivos de

conservação da biodiversidade (Redclift, 1989; Robinson, 1993; Western &

Wright, 1994). Em todos os projetos em andamento, o conceito de

"sustentabilidade" é utilizado, principalmente após a Conferência das Nações

Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio em 1992. Com a

controvérsia decorrente do uso deste termo associado à noção de

desenvolvimento (desenvolvimento sustentado significando "crescimento

constante", o que não denota a intenção proposta), a opção de emprego do

conceito de uso sustentado de recursos naturais tem sido preferida. Não

obstante, o objetivo de promover o desenvolvimento, no sentido de promover

a melhoria de condições de vida das populações pobres que habitam a maior

parte das áreas onde estes projetos são realizados, tem sido perseguido.

Ocorre, portanto, a integração de dois conceitos, nem sempre bem

definidos: sustentabilidade e desenvolvimento, este último como condição de

eliminar a pobreza, considerada, ironicamente, como fator de depredação

ambiental. Os conceitos de sustentabilidade e desenvolvimento denotam

processos enquanto que a condição de pobreza seria o sujeito sobre o qual

estes processos agiriam. O conceito de conservação utilizado atualmente é

derivado desta integração de processos, como tem defendido seus

Equidade e Desenvolvimento Sustentável 9

proponentes mais modernos. De fato, a literatura atual sobre conservação

apresenta o envolvimento da população local como uma estratégia aceita

mundialmente. No Brasil, no entanto, ainda encontramos resistência `a

aplicação deste modelo por parte de defensores da noção ortodoxa de

preservação integral, com exclusão de qualquer interferência humana, em

órgãos ambientais do governo.

Em projetos integrados o conceito de sustentabilidade (ou

manutenção ao longo do tempo) tem sido empregado de duas formas: para

denotar a sustentação dos processos biológicos e evolutivos que se baseiam

na não interferência humana em determinadas áreas destinadas à preservação

da biodiversidade; e sustentabilidade dos recursos explorados pela população

local. Nestes projetos há várias estratégias de integração da população

humana: integração total, sem zoneamento; com zoneamento concêntrico e

definição de zonas tampão; ou, como se desenvolve no Mamirauá, mosaicos

de áreas com diferentes categorias de uso que, num certo sentido, seriam

múltiplas áreas concêntricas, com possíveis interseções. A princípio, as

populações locais devem garantir os dois princípios de sustentabilidade.

Serviriam para garantir a sustentabilidade do uso, a partir da adoção de regras

de manejo, e atuariam como vigilantes que garantiriam a sustentabilidade dos

processos evolutivos e manutenção da biodiversidade nas áreas intocadas.

Isto implica, para as populações humanas, em uma restrição do uso

livre do espaço. Este sacrifício das populações humanas em projetos

integrados só é aceito se acompanhado de um benefício utilitário concedido

em troca. Em geral, este sacrifício tem sido justificado a partir da garantia

dada à população local da manutenção seu modo de vida, por assegurar a não

extinção dos recursos naturais mais importantes para sua sobrevivência.

Portanto, uma terceira proposta de sustentabilidade se configura, que é a de

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continuidade da população ao longo do tempo. Isto implica na manutenção

do processo de reprodução da população, processo este que envolve variáveis

sociais e ecológicas. A garantia desta reprodução social requer um programa

contínuo de pesquisas e monitoramentos que integrem as ciências naturais e

sociais, como será discutido.

Sendo uma experiência recente, a presença humana em unidades de

conservação suscita muitas questões, a maioria sem respostas no momento.

Questões mais diretas envolvem o desenvolvimento de pesquisas básicas da

biologia das espécies de valor econômico, direcionadas para a definição de

critérios de sustentabilidade e regras para manejo. Há questões mais

complexas que implicam na tomada de decisões estratégicas, específicas para

cada unidade de conservação. Por exemplo, em Mamirauá a questão das

zonas de assentamento humano se depara com um problema específico da

várzea que é o fato do ambiente ser instável. A solução encontrada pela

população para sobreviver em uma área de intensa modificação

geomorfológica é mudar o local do assentamento (Lima Ayres e Alencar,

1993). A definição das áreas de assentamento humano então precisa ser

considerada temporária e revista periodicamente.

Outro aspecto importante é a densidade demográfica. Em Mamirauá,

por exemplo, a densidade demográfica atual é de 0,6 hab/km2. No presente, a

população, embora estável numericamente, mostra-se altamente móvel, ou

seja, há entrada e saída de indivíduos e famílias na área. Esta estabilidade

numérica é mantida por uma alta taxa de emigração que compensa a taxa de

crescimento da população, em torno de 4,1% ao ano. A questão se esta

situação é desejável ou não para a preservação da biodiversidade não pode

ser respondida de imediato. De qualquer modo, assegurar a densidade

demográfica que se considere ideal vai implicar em discussões avançadas

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com a população local. Este é um exemplo de questões que necessitam de

pesquisas futuras para serem respondidas.

Projetos integrados apresentam a intenção de promover a melhoria

das condições de vida da população como "retorno" por sua cota de

sacrifício e como incentivo à sua aceitação da proposta de preservação. A

razão política e ética de incluir a população humana, e não só as espécies

ameaçadas de extinção, nos trabalhos de conservação e de manutenção de

condições adequadas de reprodução e sobrevivência, é também pertinente,

mas esta extensão do conceito de natureza a ser preservada é ainda tênue. A

inclusão de populações humanas em unidades de conservação apresenta

ainda muitas ambiguidades. Ao lado da questão de conhecer e garantir a

reprodução social da população está a definição do "bem estar" desta mesma

população. Mas exatamente o que se pretende e em que áreas se tem o direito

de atuar?

Tomando como exemplo o projeto Mamirauá, sua atuação tem sido

direcionada às áreas de saúde, saneamento, e educação ambiental,

respeitando os limites da atuação da sociedade civil em relação às obrigações

do Estado. O trabalho de incentivo à participação comunitária também

contribui para a melhoria das condições de vida na medida em que respeita os

direitos da população sobre o uso do ambiente e promove o sentido de

cidadania. Há ainda trabalhos de extensão agrícola e em silvicultura, com o

objetivo de melhorar a produção, e propostas de implantação do turismo

ecológico. Reconhece-se, portanto, que a reprodução social da população não

oferece condições condizentes com os padrões modernos de bem estar social.

Quadros da reprodução como alta taxa de mortalidade infantil, baixa

escolaridade e situação sanitária precária, não representam situações

adequadas de reprodução em relação aos padrões modernos.

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Os economistas medem "bem estar" pelo consumo, que, em

sociedades inteiramente capitalistas, é medido pelo gasto monetário e

confrontado com a poupança que a população decide fazer da sua renda.

Frente a áreas onde a economia capitalista é totalitária, a situação econômica

das populações integradas a unidades de conservação apresenta

características distintas, comuns às sociedades camponesas modernas. Seu

consumo é proveniente tanto da produção direta quanto do consumo de

artigos industrializados adquiridos no mercado a partir da venda de produtos

extraídos ou cultivados nas reservas.

O aumento da renda monetária é apenas um indicador de condições

de vida, e envolve critérios subjetivos de nível de satisfação das necessidades

de consumo. Dada a prioridade de preservação da biodiversidade, também

considerada indicador de condições de vida, deverão ser atribuídos normas e

limites à exploração das espécies ameaçadas de extinção, o que talvez iniba o

crescimento da renda monetária e do consumo indireto. O tipo de reprodução

social das populações rurais da Amazônia, no entanto, facilita, por assim

dizer, a definição de limites ao volume da produção. Sendo produtores

familiares, têm sua capacidade de produção limitada pela mão de obra

familiar. Têm também uma reprodução ligada a uma circulação simples de

mercadorias, vendidas para comprar outras mercadorias. A circulação

simples tem seu crescimento limitado, enquanto que a mercantil-capitalista

apresenta possibilidades diretas de crescimento.

No momento a reprodução social destas populações é do tipo

camponesa, mas se, no futuro, os sistemas de manejo desenvolvidos pelos

cientistas obtiverem resultados positivos e elevarem a densidade dos recursos

manejados, a população poderá abandonar suas características de

campesinato e adotar novas estratégias econômicas, como pequenos

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empresários ou capitalistas. Esta possível transformação econômica poderá

ter duas implicações: requerer um maior controle e regulamentação do uso

dos recursos para evitar uma sobre exploração, ou, se o empreendimento se

tornar efetivamente organizado, pode facilitar a promoção do manejo

sustentado a partir de um interesse espontâneo de empresários “esclarecidos”

em desenvolver um gerenciamento planejado dos recursos naturais.

O MOVIMENTO DE PRESERVAÇÃO DE LAGOS

A área de várzea do Médio Solimões é formada por centenas de

corpos d’água chamados regionalmente de lagos, mas que na verdade são

pequenos canais e paranás que cortam a região. São alargados em alguns

trechos que ficam isolados na época da seca. Na cheia os cursos d'água são

interligados e há dispersão dos peixes. São estes lagos o objeto de conflitos

entre ribeirinhos e pescadores profissionais, principalmente na época seca,

quando a pesca se torna mais produtiva pela concentração de peixes nestes

lagos. A história do movimento de preservação de lagos teve início nos anos

oitenta, a partir do apoio dado pela Igreja, através da Comissão Pastoral da

Terra (CPT), para a organização do movimento. O conflito entre pescadores e

ribeirinhos é, no entanto, anterior, e seu início coincide com decadência do

sistema de aviamento.

Por ser formada por áreas anualmente alagadas, não há propriedades

privadas na várzea do Médio Solimões, classificadas pela legislação como

terras de marinha. Mesmo assim, nas chamadas feitorias, patrões

controlavam a exploração dos lagos em que comercializavam,

principalmente, pirarucu e quelônios. Com a saída dos patrões, a ocupação

humana da área se modificou. Os assentamentos passaram a se localizar

quase exclusivamente nas margens dos grandes rios, por onde passam

14 Deborah Lima

regatões, e o uso dos lagos ficou aberto para os moradores de assentamentos

próximos. Um sistema informal de definição de territórios se formou, com

cada assentamento, composto em média por oito grupos domésticos ligados

por laços de parentesco, ocupando uma área correspondente à sua demanda

por terras altas para agricultura e lagos para pesca.

Nessa mesma época o Movimento de Educação de Base (MEB)

começou a formar lideranças e, através da catequese, instituiu um sistema de

representação política com a eleição de cargos de presidente, vice-presidente,

secretário e tesoureiro. Os assentamentos que adotaram este sistema, antes

chamados vilas ou sítios, passaram a se denominar comunidades. O termo

comunidade tem, na região do Médio Solimões, portanto, a conotação de um

tipo particular de organização política ligada à Prelazia. Posteriormente, a

funcionalidade desta organização foi reconhecida por instituições

governamentais e não governamentais que atuam no meio rural e hoje ela

perdeu a conotação estreita de um movimento da Igreja. Entretanto, a

organização comunitária é mais forte nas comunidades que continuam

participando dos treinamentos e reuniões promovidos pela Prelazia.

A partir dos anos sessenta, com crescimento das cidades, houve um

aumento na demanda de peixe e os pescadores profissionais, utilizando

instrumentos que permitem um maior volume de pesca como as malhadeiras

e redes de arrastão, passaram a explorar, com vantagem, os mesmos lagos em

que os ribeirinhos pescam artesanalmente. O agravamento do conflito entre

ribeirinhos e pescadores na década de setenta motivou a CPT, da antiga

regional Amazonas/Roraima, a organizar várias reuniões entre ribeirinhos e

pescadores para tratar da questão. Os ribeirinhos justificavam sua insatisfação

não apenas por causa da competição desigual mas principalmente porque a

exploração dos lagos era excessiva, e diminuía consideravelmente os

Equidade e Desenvolvimento Sustentável 15

estoques das espécies mais importantes. Sendo o peixe tanto a principal fonte

de alimentação como de renda monetária, os ribeirinhos encararam a questão

como uma luta por sua sobrevivência. Adotaram posturas agressivas para

defender seus lagos, a exemplo dos empates dos seringueiros.

Em 1986, a Pastoral de Tefé, liderada pelo falecido Irmão Falco,

idealizou um sistema de preservação de lagos com o objetivo de garantir a

sobrevivência dos ribeirinhos, chamado “Lei da Pesca”. Em várias reuniões,

representantes comunitários foram incentivados a guardar dois lagos: um

totalmente preservado, para a procriação dos peixes, e outro para a pesca de

subsistência, chamado de lago de manutenção. Como os lagos se comunicam

na cheia devido à variação sazonal do nível d’água, a preservação dos lagos

na época seca garante o abastecimento dos lagos de manutenção das

comunidades. Foram formados comitês de pesca encarregados de vigiar os

lagos para proibir a entrada de peixeiros, porém surgiram problemas entre os

próprios moradores. Alguns comunitários não aderiram à proposta e

negociavam a entrada de peixeiros nos lagos em troca de promessas de

receber dinheiro ou bens materiais, como motor de popa, nem sempre

cumpridas. Outras vezes a comunidade mesmo decidia pescar nos lagos

preservados, enfrentando o dilema de ter que decidir entre a economia da

preservação e a necessidade da sobrevivência.

A pressão exercida pelo movimento de preservação de lagos

conseguiu sensibilizar algumas prefeituras do Médio Solimões que incluíram

listas de lagos de procriação e de manutenção nas suas leis orgânicas, mas

não alcançaram apoio legal do IBAMA para autuar invasores nem para obter

portarias que determinassem o fechamento dos lagos (como conseguiram

comunidades do Baixo Amazonas). Os pescadores profissionais,

representados pela Colônia de Pescadores de Tefé, alegam a

16 Deborah Lima

incompatibilidade entre a legislação municipal e a federal, defendendo seu

direito constitucional de ir e vir. Sem apoio legal efetivo, o movimento conta

apenas com o apoio moral de não-governamentais como a CPT e com a

perseverança de lideranças comunitárias que acreditam na eficácia do manejo

de lagos.

Na área de atuação da Prelazia de Tefé, que compreende os

municípios de Tefé, Japurá, Alvarães, Maraã, Fonte Boa, Uarini, Jutai,

Carauari e Itamarati, existem atualmente 143 lagos de preservação e 167

lagos de manutenção que envolvem diretamente 2.136 famílias (Ternus,

1996). O MEB passou a integrar as instituições de apoio ao movimento em

1992, quando criou o Grupo de Preservação e Desenvolvimento (GPD) que

agrega 35 comunidades dos municípios de Tefé, Alvarães e Maraã. Por causa

da ligação do movimento à Igreja Católica, as comunidades crentes se

mantiveram afastadas. Uma crítica ao modelo católico feita por alguns

pentecostais foi a de que o movimento promoveria a pobreza e não o

desenvolvimento por não definir uma categoria de lagos para

comercialização. Ultimamente porém, a CPT, refletindo sobre a história do

movimento, fez uma revisão da proposta original na qual sugere: a promoção

geral da preservação, a busca de apoio de instituições de pesquisa para

desenvolver sistemas de manejo que funcionem com bases científicas,

estudar alternativas econômicas, definir critérios para a comercialização

racional do peixe, instituir um sistema de rodízio dos lagos de procriação e

manutenção, e fortalecer as bases através da criação de uma associação de

preservadores nas comunidades (CPT-Amazonas,1996).

Entre as diversas não-governamentais atuando em parceria com

comunidades pela causa ambiental, a CPT talvez seja a que apresenta sua

posição ideológica com mais clareza:

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“A ação da CPT deve redefinir constantemente a compreensão de pastoral, (…) entendida como a ação da comunidade para a libertação e desenvolvimento integral da pessoa humana e da natureza; a Pastoral da Terra, solidária com as lutas de resistência e iniciativas das classes subalternas no campo busca resgatar o termo ‘Sobrevivência’ como conteúdo da construção da nova sociedade (...). A partir do resgate da Teologia da Criação e de concepções culturais-religiosas dos Povos da Floresta (…), a CPT entende a questão ecológica como a necessidade de lutar pela preservação/libertação da pessoa humana integrada e a serviço da criação (Gn. 20). A criação como ato contínuo de Deus, possui o direito universal da vida e coloca a pessoa humana como co-criador ou recriador da natureza. A luta permanente contra o caos (injustiça social e destruição ambiental), na busca da libertação integral, resgata esta dimensão recriadora da pessoa humana. Esta postura pressupõe uma profunda mudança na atual compreensão do progresso como lucro e acumulação” (CPT - A Grande Região Noroeste, 1996).

Inspirada na Teologia da Libertação, a CPT é também a instituição

que apresenta a proposta mais radical em relação à transformação da

sociedade, considerada como condição básica para se alcançar os objetivos

de conservação da natureza. Sendo sua a proposta mais utópica, talvez seja a

que mais dificuldade tenha de compartilhar seus ideais com os da população

com a qual trabalha.

A PARTICIPAÇÃO DA POPULAÇÃO EM MAMIRAUÁ

O envolvimento da população na implantação de Mamirauá,

iniciado em 1991, em muito se valeu da precedência do movimento de

preservação de lagos. O primeiro passo foi a realização de uma consulta à

população residente, que não sabia da existência da demarcação da área, para

propor sua participação. Foi somente porque houve uma resposta positiva da

maioria da população, pelo fato da reserva atender a necessidade de apoio

18 Deborah Lima

legal do movimento de preservação de lagos, que se deu continuidade aos

trabalhos.

A experiência de envolver a população de Mamirauá retrata a

dificuldade específica de implantar este modelo novo de unidade de

conservação a partir de uma proposta externa, que não partiu originalmente

de uma demanda local. A transformação de um projeto vertical em um

projeto horizontal, com a participação da população na gestão dos recursos e

na elaboração do plano de manejo, é um processo longo. O projeto Mamirauá

levou cinco anos até obter o apoio de praticamente todas as 60 comunidades

diretamente afetadas pela criação da reserva.4

A organização de um sistema para a participação comunitária foi

facilitada pela existência não só do movimento de preservação de lagos

mencionado anteriormente como também pelo fato das comunidades já terem

uma organização política formada com uma prática de discussão democrática

de seus problemas desenvolvida desde o final da década de 1960 pelo MEB.

Para facilitar o trabalho das lideranças no processo de definição de suas áreas

de preservação, as comunidades de moradores e usuários da área focal foram

agrupadas em 9 setores políticos. Cada setor tem um coordenador que

organiza reuniões bimestrais e todas as lideranças comunitárias se reúnem

anualmente em assembléias gerais.

Apesar da participação ativa de representantes comunitários na

escolha de áreas para preservação, as decisões tomadas em reuniões formais

sofreram várias mudanças e surgiram disputas entre comunidades por lagos.

4 Além da população residente, as atividades do projeto envolvem comunidades do

entorno que foram identificadas como usuárias de áreas da reserva e que dependem deste uso para realizar diversas atividades econômicas essenciais para sua sobrevivência. No total, 5.277 pessoas estão diretamente envolvidas, 1.668

Equidade e Desenvolvimento Sustentável 19

Os casos de conflito na escolha de áreas remetem a problemas políticos

internos das comunidades, relacionados com a organização social dos

povoados. Os assentamentos são formados por grupos domésticos ligados por

laços de parentesco e há casos de disputa de autoridade entre parentelas

distintas. A organização política formal implantada pelo MEB e reproduzida

pelo projeto se sobrepõe a essa organização primária. Em alguns casos a

liderança formal tem mais legitimidade na sua função de articular a

comunidade com instituições externas do que no tratamento de questões da

comunidade mesmo. Além disso, há divergência entre especializações

econômicas dos chefes de domicílios, principalmente entre os que se dedicam

mais à agricultura e os que obtêm maior parte de sua renda monetária da

pesca.

Essas divergências se refletem nas escolhas dos lagos de

preservação e no compromisso de preservá-los. Dos 616 lagos registrados na

área focal, em torno de 200 foram classificados pelas comunidades nas três

principais categorias de zoneamento (para preservação, para subsistência e

para comercialização). A disputa por alguns desses lagos, entre comunidades

vizinhas e dentro das próprias comunidades, se refere a concepções de uso

distintas e interesses econômicos contrários. Dois conflitos existentes, um

entre a Colônia de Pescadores e comunidades, e outro referente à comunidade

indígena Porto Praia, revelam a dificuldade de intervir imparcialmente,

buscando a solução compatível não com interesses particulares mas com os

objetivos da implantação da unidade de conservação.

A decisão de permitir a pesca comercial, tomada em assembléia, se

baseou no fato de que entre 10 e 20% do peixe vendido no mercado de Tefé

que moram em 23 assentamentos localizados dentro da reserva, e 3.609 usuários de 37 comunidades fora da reserva.

20 Deborah Lima

provém da área focal da reserva. Ficou acertado que a Colônia de Pescadores

negociaria com um setor, o Jarauá (ver mapa), os lagos em que pescariam e o

tipo de instrumentos de pesca permitidos. Até hoje, porém, este acordo não

foi alcançado porque a Colônia insiste em pescar nos mesmos lagos que as

comunidades. Também discutem as bases da diferenciação entre eles e os

comunitários, alegando que se estes pescam para a venda são também

pescadores e devem se registrar oficialmente como profissionais para ter

direito a comercializar o pescado. Sentindo-se marginalizados pelo

movimento de preservação, não têm comparecido às ultimas reuniões

marcadas, estacionando o processo de negociação.

Outro caso que mostra como o movimento ambientalista pode se

envolver com disputas locais por territórios e pelo direito de uso de recursos

refere-se à disputa entre a comunidade indígena Porto Praia, de descendentes

de Ticunas, e comunidades vizinhas, pertencentes ao setor Liberdade (ver

mapa). A definição da categoria de uso de dois lagos, Urucuri e Baú, tem

sido disputada por essas comunidades antes mesmo da reserva ser decretada.

Após várias negociações mediadas por extensionistas do projeto, o setor

Liberdade, formado por 13 comunidades, firmou uma aliança para uso

coletivo de alguns lagos e reservou o lago Urucuri para preservação. A

comunidade Porto Praia não obedeceu ao acordo por querer o lago Urucuri

para sua manutenção e comercialização, e invade frequentemente as áreas de

preservação do setor tanto para pescar como para extrair madeira e caçar.

O conflito se agravou com a proposta para criação da área Indígena

Porto Praia. A portaria da Funai é de 1994, posterior portanto ao decreto que

criou Mamirauá. A primeira proposta gerou muita polêmica porque a

extensão sugerida, 10% de toda a área focal, afetaria não só as comunidades

vizinhas mas também comunidades dos setores Jarauá e Horizonte.

Equidade e Desenvolvimento Sustentável 21

Atualmente Porto Praia não quer permitir o acesso das comunidades vizinhas

ao que considera sua área, mesmo que ainda não tenha sido demarcada. A

afirmação da diferença étnica dá a Porto Praia o privilégio de assegurar um

território disputado desde 1987. A revolta dos ribeirinhos se refere ao fato de

que eles foram os primeiros ocupantes da área, tendo lá chegado nas

primeiras décadas deste século, enquanto que os residentes de Porto Praia

chegaram de Fonte Boa em 1972 e agora: “querem por placa e tomar a

área”. É fato conhecido na região que os moradores de Porto Praia se

recusam a participar do movimento ecológico. A demarcação da área e

afirmação de sua identidade étnica está sendo instrumental para liberar a

comunidade do controle do movimento social de preservação.

O Projeto Mamirauá se manifestou contrário à criação da área

indígena e propôs uma revisão da proposta de criação (Reis, 1995). Existem

duas outras áreas indígenas usuárias da reserva com quem o projeto tem

trabalhado em boa parceria. A estratégia adotada pelo projeto para definição

de usuários e para mediação de conflitos tem se baseado nos seguintes

critérios: grau de dependência dos recursos da reserva, antiguidade, e,

principalmente, aceitação da proposta de preservação da biodiversidade.

IDENTIDADE E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

Para se compreender as formas específicas como se relacionam

“populações tradicionais” e grupos ambientalistas é preciso conhecer o

contexto social em que vivem e suas histórias locais. Em geral, as populações

locais têm, ao lado de uma identidade própria, uma imagem, muitas vezes

estereotípica, atribuída a elas pelos grupos sociais com quem interagem na

sociedade regional. No caso de Mamirauá, a população local apresenta duas

categorias de referência, uma, a de caboclo, usada pela sociedade para

22 Deborah Lima

identificá-los, e outra, a de pobres, que é a categoria mais abrangente com

que se identificam. O conhecimento da história do grupo e de sua noção de

identidade permite que se compreendam as intenções e expectativas que a

população de Mamirauá apresenta na sua aliança com o Projeto Mamirauá.

O termo caboclo, caa-boc, significa em tupi "aquele que vem do

mato", e era usado inicialmente por tribos do litoral para designar povos do

interior. O sentido de alteridade foi mantido tanto no uso inicial do termo

pelos colonizadores (para designar índios aldeados e a população

miscigenada), quanto no emprego atual, feito pela população urbana para se

referir à população rural. O "caboclo típico" é o habitante das margens do rio,

que usa a canoa como meio de transporte e é um grande conhecedor do

ambiente natural. A representação cultural do "típico amazônida rural" não se

limita a este simples retrato mas inclui também conceitos de valor, em sua

maioria depreciativos, do habitante ribeirinho. A "indolência" e a "preguiça"

do caboclo são elementos de um estereótipo que oferece uma interpretação

moral de sua pobreza.

Como a população "cabocla" se firmou em número e em

importância econômica nos meados do século dezenove, quando as idéias

racistas de Gobineau dominavam o pensamento social da elite ocidental e

eram copiadas pelos brasileiros, a posição social da população cabocla foi

explicada como sendo consequência do efeito deletério da mistura de raças.

Essa busca por atribuições próprias para explicar a condição social inferior

permaneceu no estereótipo do caboclo até os dias de hoje, ignorando-se o

papel das políticas coloniais que determinaram a formação de uma classe

camponesa subordinada, inicialmente por meios políticos à elite colonial, e

hoje, dadas as condições desfavoráveis de sua reprodução simples, à estrutura

Equidade e Desenvolvimento Sustentável 23

de classes que acompanha a expansão mercantil-capitalista na Amazônia

(Lima Ayres, 1992).

O retrato do caboclo, no entanto, não corresponde a uma identidade

social, e o termo é geralmente por eles rejeitado ou transferido a outras

classes e categorias sociais. Sua própria construção de identidade não lhes

confere uma noção de coletividade demarcada por uma nítida diferenciação

social, como a noção de caboclo poderia supor. Em sua fala, a categoria de

identidade mais abrangente que usam para referirem-se a si mesmos é a de

"pobre", seguida, mais recentemente, da identidade de "ribeirinho",

introduzida ao longo do trabalho de evangelização católica. Categorias menos

abrangentes, que de fato distinguem sub-grupos entre a população rural, estão

ligadas à atividade econômica ("o agricultor", "o pescador"), ao ambiente que

habitam ("vargeiro" e "terra-firmeiro"), e à religião adotada ("crentes" e

"católicos"). A identidade indígena é a mais excludente e a que possui

conotações políticas mais fortes. No entanto, é, nesta região, considerada uma

adoção artificial já que não há distinções culturais marcantes entre os que se

identificam como "índios" e os outros, os "ribeirinhos".

A identidade difusa de "pobres" é a que mais se reflete na maneira

como os moradores da região de Mamirauá se relacionam com outras

categorias e classes sociais que ocupam posições políticas e econômicas

superiores à sua. De certo modo, incorporam, embora de forma invertida, o

estereótipo que lhes é atribuído, já que sua condição estruturalmente

desprivilegiada lhes oferece a possibilidade de negar qualquer

responsabilidade por sua sorte e se posicionar como merecedores "naturais"

de auxílio. Enquanto o estereótipo atribui a causa de sua pobreza à indolência

natural de sua "raça", sua própria interpretação é de que como não são

responsáveis por sua condição social são obrigatoriamente merecedores

24 Deborah Lima

(carentes) de ajuda. Essa auto-imagem, reforçada e manipulada por patrões e

políticos principalmente em época de eleição, é de baixa auto-estima, o que

acarreta em dificuldades adicionais para alcançar as poucas chances

disponíveis de ascensão social.

Como conceito relativo, a noção de pobreza é sempre definida em

relação a uma condição superior ou melhor, cabendo portanto definir a que se

refere seu sentido de inferioridade e carência. Como conceito representativo

de uma classe social, a pobreza é associada historicamente ao sistema de

aviamento e à patronagem. Há um dizer local que especifica este

entendimento de noção de classe ligada à dominação mercantil que

predominou nas primeiras décadas do século: "só tem o rico porque tem o

pobre para comprar" . Embora esta percepção da origem da divisão de

classes ainda permaneça, o sentido de pobreza tem desenvolvido um sentido

mais amplo com o processo de modernização e o estreitamento das relações

entre os meios urbano e rural.

A identidade de pobre não significa que não existam condições

mínimas de sobrevivência na região. Os instrumentos de trabalho, embora

simples, permitem que a pesca, agricultura, caça, coleta e extração de

madeira supram as necessidades básicas. Como em outras situações de

participação da produção doméstica na economia de mercado, a condição de

pobre se refere ao fato de que o retorno monetário pelo trabalho investido na

produção para a venda é muito baixo e garante apenas a reprodução simples

dos grupos domésticos. Tem, em seu sentido econômico, portanto, o sentido

do limite do que pode ser conseguido com o esforço do trabalho familiar.5

5 Entre os moradores de Mamirauá, a renda média anual de um grupo doméstico

padrão, formado por 7 membros, é de R$900,00. Esta renda é obtida pela venda de uma produção média de 500kg peixe, 20 m3 de madeira e 200kg de farinha. A maior parte da renda monetária se destina à compra de alimentos básicos. Açuçar,

Equidade e Desenvolvimento Sustentável 25

No seu sentido mais amplo e atual, o conceito se refere ao fato de

que a população rural da Amazônia não tem acesso direto às instituições

básicas do mundo moderno como educação, saúde e o próprio mercado. Este

sentido de exclusão social se reflete claramente no âmbito político. A falta de

direcionamento político dos governos municipais e estaduais à área rural

contribui para a migração urbana, onde as necessidades de consumo e de

assistência social podem ser atendidas. Portanto, embora as condições

econômicas permitam a sobrevivência básica, o meio rural não oferece

condições plenas de reprodução social, e subsiste em relação de dependência

ao meio urbano. Esta parcialidade, discutida na década de cinquenta na

antropologia com a caracterização das sociedades camponesas modernas

como part society (Redfield, 1953; Kroeber, 1948), está também associada à

noção de pobreza, no sentido de dependência e inferioridade econômica,

política e cultural do meio rural em relação ao meio urbano.

Extensionistas do projeto que atuam nas áreas de saúde, educação e

participação comunitária atestam que enfrentam dificuldades para

implementar seus trabalhos porque têm que lidar diretamente com esta

incorporação negativa da identidade de pobres. De acordo com seus relatos, a

população deposita uma expectativa exagerada nas instituições de extensão,

esperando que estas encontrem uma solução imediata para seus problemas.

Pedem constantemente ajuda material, e reagem com resistência quando as

propostas de extensão implicam em assumir compromissos (M. Reis, com.

pessoal ). A lógica da pobreza, regida por necessidades imediatas, parece ter

mais força que os compromissos assumidos em reuniões, pois é ela que

determina quando um trato deve ser rompido e até onde deve permanecer.

café, sabão em barra, óleo de cozinha, leite em pó e sal compõem a cesta básica destas famílias, a um custo mensal de R$50,00.

26 Deborah Lima

A parceria que se estabelece entre conservacionistas e comunitários

envolve interesses específicos que podem ou não convergir e por isso requer

que os acordos sejam negociados com habilidade e os interesses de cada parte

reconhecidos. Não podemos esquecer que o interesse das chamadas

populações tradicionais pela conservação se baseia em um interesse

econômico específico, a sua sobrevivência.

Por esse motivo, para que regras de uso sustentável sejam

respeitadas é preciso que a população veja estas medidas como benefícios

econômicos. As mudanças no comportamento econômico e na organização

da produção vão levar tempo, e requerer uma atuação específica das equipes

de extensão. O papel da organização comunitária também vai ser expandido,

cabendo às comunidades gerenciar a produção econômica em termos do

controle de suas áreas de uso. No presente, a produção econômica das

comunidades é anárquica, no sentido de que o uso dos recursos não é

regulado coletivamente. As decisões sobre a exploração da área são feitas

individualmente pelos chefes dos grupos domésticos. Através da promoção

de um gerenciamento econômico dos recursos, a racionalidade oportunista

que caracteriza o comportamento econômico das populações rurais da

Amazônia, e que dificulta a implantação de medidas reguladores, poderá ser

modificada.

A experiência de implantar este modelo de unidade de conservação

mostra que há diferenças culturais presentes não só no diálogo entre

membros do projeto e as populações locais, como também entre

pesquisadores das ciências naturais e os das ciências sociais. A abordagem

interdisciplinar impõe uma dificuldade adicional, decorrente das próprias

formações acadêmicas diferentes, principalmente em relação a concepções

distintas das populações locais que se refletem por exemplo nas decisões

Equidade e Desenvolvimento Sustentável 27

orçamentárias e maneiras de tratar a população local. Esse é mais um fator

que faz com que o processo de implantação da unidade de conservação seja

longo pois requer uma abordagem convergente das análises sociais e

biológicas para a qual não temos especialistas formados, nem tradição de

trabalho. É preciso aprender, durante o processo, nossas diferentes

"linguagens" e enxergar as questões que surgem a partir dos vários pontos de

vista presentes.

CONCLUSÃO

Projetos que integram conservação e desenvolvimento social são

experiências novas que retratam, por um lado, um esforço intelectual

ambicioso de criar um modelo de exploração econômica sustentado para

populações locais que ajuste as demandas dinâmicas do mundo social

moderno à capacidade suporte de ecossistemas e à preservação da

biodiversidade e dos processos evolutivos. Por outro lado, procura-se

democratizar esta parceria, evitando o quanto possível expressões de

autoritarismo advindas da desigualdade social existente entre as duas partes,

principalmente em termos da autoridade do conhecimento científico,

sujeitando o processo à avaliação das populações envolvidas e valorizando o

conhecimento que possuem sobre o meio ambiente em que vivem.

Entre as diversas situações em que se encontram populações rurais

na Amazônia, o parentesco, a identidade, o acesso à terra e à água, a

definição do sistema de herança e de sucessão à propriedade ou posse, as

regras de usufruto de recursos comunais, são exemplos de fatores que

distinguem categorias sociais e tipos de ocupação. Seringueiros, colocações,

nordestinos, colônias, colonos, ramais, quebradeiras de coco, babaçuais,

remanescentes de quilombos, são exemplos da diversidade de organizações

28 Deborah Lima

sociais e formas de ocupação do espaço que demonstram que não se pode

traçar um modelo único de envolvimento de populações em projetos de

conservação. A diversidade social implica na necessidade de conhecer em

profundidade as formas locais de reprodução social para então desenvolver

modelos de participação, manejo e preservação, específicos para cada

situação.

Por isso, o envolvimento de populações locais em unidades de

conservação não deve seguir um modelo rígido. Ao contrário, as experiências

precisam ser construídas no decorrer de um processo de interação contínua

com a população, ajustando as demandas e costumes locais à intenção de

construir um sistema de uso sustentado do ambiente, que, combinado com a

preservação da biodiversidade, garanta uma melhoria na qualidade de vida da

população. As experiências em andamento mostram também que a

implantação de uma unidade de conservação em parceria com populações

locais não tem um ponto final. A evolução da sociedade e as mudanças na

densidade e acesso aos recursos naturais, decorrentes da própria implantação

da unidade de conservação, implicam na necessidade de reajustes contínuos,

definidos a partir de um monitoramento das condições sociais e naturais e da

manutenção do diálogo com a população.

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