A MEMÓRIA DAS CIDADES E OS NOVOS INSTRUMENTOS DE PRESERVAÇÃO: PROPOSIÇÕES PARA O CASO DE...

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A MEMÓRIA DAS CIDADES E OS NOVOS INSTRUMENTOS DE PRESERVAÇÃO: PROPOSIÇÕES PARA O CASO DE LAGUNA/SC 1 Liliane Monfardini Fernandes de Lucena IPHAN- Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Superintendência do IPHAN no Paraná [email protected] Resumo: A valorização do passado e da memória das cidades é um tema bastante discutido entre pesquisadores que apontam esta característica como uma necessidade deste século, frente a tantas estruturações econômico-sociais e espaciais. Embora os instrumentos de preservação criados para este fim, no Brasil, estejam sendo aperfeiçoados, estes não conseguem acompanhar no mesmo ritmo as mudanças ideológicas. O caso de Laguna/SC é exemplo típico de uma proposta de preservação que, se pudesse ser revista, associando-se os novos instrumentos disponibilizados, certamente conseguiria obter melhores resultados com a preservação do seu sítio histórico. Este trabalho apresenta uma discussão sobre os instrumentos de preservação no Brasil propondo assim, uma readequação de seus usos, utilizando o caso de Laguna, para salvaguarda de nossas cidades históricas e suas memórias urbanas. Palavras chaves: Memória urbana - vida urbana - instrumentos de preservação - paisagem - Laguna/SC. A valorização do passado, a memória das cidades e a participação do Estado na construção da memória urbana. Diversos pensamentos têm sido discutidos para se compreender porque nossas sociedades, a cada dia, vêm valorizando cada vez mais o passado de suas cidades e sua memória. Algumas das justificativas apresentadas são advindas de interesses econômicos, suscitados através do turismo (cultural, de negócios, rural, lazer entre outros) que tem encontrado na valorização da história e memória das cidades “o objeto de valor de uso e de troca”. Muitas vezes, estas intervenções estimulam nos moradores e usuários o espírito de pertencimento, de orgulho do lugar e de suas gerações passadas, fazendo com que eles hoje, sintam-se participantes e protagonistas, seja através da identificação dos seus avós ou pais como construtores e participantes ativos, seja como agentes preservadores, que moram, cuidam, sabem contar a história do lugar e que dão 1 * O estudo sobre Laguna foi apresentado por esta autora na dissertação de mestrado do Curso de Pós- Graduação em Geografia da UFSC, concluído em 1998, cujo título é: Laguna de Ontem a Hoje - Espaços públicos e Vida urbana. O mesmo objeto de pesquisa foi utilizado como estudo de caso para esta nova discussão, sobre os instrumentos de preservação apresentados neste artigo.

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A MEMÓRIA DAS CIDADES E OS NOVOS INSTRUMENTOS DE

PRESERVAÇÃO: PROPOSIÇÕES PARA O CASO DE LAGUNA/SC1

Liliane Monfardini Fernandes de Lucena

IPHAN- Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

Superintendência do IPHAN no Paraná

[email protected]

Resumo:

A valorização do passado e da memória das cidades é um tema bastante discutido entre

pesquisadores que apontam esta característica como uma necessidade deste século, frente a

tantas estruturações econômico-sociais e espaciais. Embora os instrumentos de preservação

criados para este fim, no Brasil, estejam sendo aperfeiçoados, estes não conseguem acompanhar

no mesmo ritmo as mudanças ideológicas. O caso de Laguna/SC é exemplo típico de uma

proposta de preservação que, se pudesse ser revista, associando-se os novos instrumentos

disponibilizados, certamente conseguiria obter melhores resultados com a preservação do seu

sítio histórico. Este trabalho apresenta uma discussão sobre os instrumentos de preservação no

Brasil propondo assim, uma readequação de seus usos, utilizando o caso de Laguna, para

salvaguarda de nossas cidades históricas e suas memórias urbanas.

Palavras chaves:

Memória urbana - vida urbana - instrumentos de preservação - paisagem - Laguna/SC.

A valorização do passado, a memória das cidades e a participação do

Estado na construção da memória urbana.

Diversos pensamentos têm sido discutidos para se compreender porque nossas

sociedades, a cada dia, vêm valorizando cada vez mais o passado de suas cidades e sua

memória.

Algumas das justificativas apresentadas são advindas de interesses

econômicos, suscitados através do turismo (cultural, de negócios, rural, lazer entre

outros) que tem encontrado na valorização da história e memória das cidades “o objeto

de valor de uso e de troca”. Muitas vezes, estas intervenções estimulam nos moradores

e usuários o espírito de pertencimento, de orgulho do lugar e de suas gerações passadas,

fazendo com que eles hoje, sintam-se participantes e protagonistas, seja através da

identificação dos seus avós ou pais como construtores e participantes ativos, seja como

agentes preservadores, que moram, cuidam, sabem contar a história do lugar e que dão

1

* O estudo sobre Laguna foi apresentado por esta autora na dissertação de mestrado do Curso de Pós-

Graduação em Geografia da UFSC, concluído em 1998, cujo título é: Laguna de Ontem a Hoje - Espaços

públicos e Vida urbana. O mesmo objeto de pesquisa foi utilizado como estudo de caso para esta nova

discussão, sobre os instrumentos de preservação apresentados neste artigo.

continuidade a esta história, através de suas atividades cotidianas e da manutenção de

suas festas tradicionais.

Para Le Goff (1996), esta tendência de valorização do passado está relacionada

com o período final do iluminismo e com o período da modernidade. Estas duas visões

de mundo tinham, inicialmente, o olhar voltado para o futuro, o progresso, negando o

passado, as tradições, sua história. Somente após a segunda guerra mundial, depois dos

horrores do fascismo e do nazismo, estes levaram a sociedade a fazerem uma crítica à

ideia de progresso (desvinculada da história) e recuperaram a importância da história

como ciência – da mutação e da explicação da mudança. “A história tornou-se, portanto,

elemento essencial da necessidade de identidade individual e coletiva.” Le Goff

(1996:14).

Para Lefebvre (1991), a valorização do passado e da memória das cidades é

uma das consequências do fenômeno da industrialização sobre a cidade - a

industrialização, que trouxe um novo modo de vida e que caracterizou a sociedade

moderna, provocou grandes mudanças estruturais, dentre elas a constituição de redes de

cidades, agora ligadas por diversos meios de comunicação como correio, telefone, rádio

e maiores possibilidades de circulação e transporte, como as estradas terrestres, e as vias

aéreas, fluviais e marítimas, estreitando dessa forma as relações comerciais e bancárias

diversas e “levantando-se sobre esta nova estrutura o Estado como poder centralizador

e, como causa desta centralização do poder, uma cidade predominante entre as outras –

a capital” (Lefebvre, 1991:05).

Para este autor, três termos se destacam com esta nova estruturação: a

sociedade, o Estado e a cidade. Mas, apesar do acelerado processo de urbanização que

atinge a grande maioria das cidades do mundo, os seus núcleos urbanos não são

completamente dizimados. Dessa forma ele consegue sintetizar o fenômeno da

industrialização em três momentos, os quais as cidades vivenciaram: o primeiro, quando

a indústria “assalta e saqueia a realidade urbana pela prática e pela ideologia”. A

indústria assume inicialmente um papel negativo em que o “econômico industrial quer

substituir o social urbano”. O segundo momento é quando a urbanização se desenvolve

em função da industrialização, descobre-se que a sociedade inteira pode se decompor se

lhe faltar à centralidade (ideológica e física). Então, inicia-se o terceiro momento, que é

o reencontro, reinvento reequilíbrio da realidade urbana, quando se tenta restituir a

centralidade, embora modificada. É sobre este momento final do período Moderno a que

Le Goff (1996) também se referia, quando falava sobre a “ambiguidade da

Modernidade”. No momento que o movimento se esvazia por completo do passado

(negando-o e não aceitando sua influencia na cultura da sociedade) perde o sentido de

existir, pois a obra fica sem conteúdo e o “moderno, à beira do abismo do presente,

volta-se para o passado” (Le Goff, 1996: 199).

Diante do que foi exposto, torna-se compreensível que no Brasil, a

preocupação com a preservação do passado das cidades e da memória urbana tenha se

desenvolvido com a expansão do movimento moderno, tendo como foco central a

identificação e valorização da cultura nacional e que acabou culminando com a criação

de um órgão do governo federal específico para cuidar da preservação dos bens

culturais ditos nacionais – SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional).

Desde os anos de 1920, intelectuais que depois vieram se integrar ao

movimento, publicavam artigos alertando para a ameaça de perda irreparável dos

monumentos de arte colonial; mas a primeira iniciativa do poder público, no sentido de

tentar responder os questionamentos do meio intelectual partiu dos governos estaduais:

a criação das inspetorias estaduais de monumentos históricos em MG (1926), na Bahia

(1927) e em Pernambuco (1928). O que aconteceu após este período, meados dos anos

de 1930, é que “o Estado, apresentando-se como responsável pela identidade cultural

brasileira, desejava realizar a unidade orgânica da nação e recorria aos intelectuais para

alcançá-la”. (Fonseca, 2008:57)

Segundo Fonseca (2008), quando os modernistas brasileiros tiveram contato

com as vanguardas europeias, perceberam que a modernização da expressão artística,

entendida como rompimento radical com o passado, só tinha sentido em países onde

havia uma tradição nacional internalizada, situação esta completamente diferente em

países de formação mais recente como era o caso do Brasil, cuja tradição ainda estava

por construir. Assim, em 1933, pelo decreto nº 22.928, o governo federal eleva a cidade

de Ouro Preto a categoria de Monumento Nacional, sendo esta a primeira iniciativa

voltada à proteção do Patrimônio e em 1937 é criado o SPHAN – e Serviço do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, pela Lei Nº 378, sob a direção de Rodrigo

M.F. de Andrade, integrado ao Ministério da Educação e Saúde, na época, dirigido por

Gustavo Capanema. Além dos criadores Mário de Andrade e Rodrigo M.F. de

Andrade, participaram do SPHAN nesse primeiro período (1937 a 1969): Lucio Costa,

Carlos Drummond de Andrade, Afonso Arinos de Melo Franco e Prudente de Morais

Neto, Manuel Bandeira, entre outros.

Mas, quando se discute o que aconteceu no Brasil ou nas cidades brasileiras em

termos de preservação da memória, é na verdade uma análise que se faz em nível local,

de um fenômeno externo a ela, em nível global. A preocupação com o passado e

memória das cidades é um reflexo, um dos subprodutos causados por uma intenção

econômica de dimensões muito maiores, que Santos (1994) denominou de

“internacionalização das técnicas2”, antes mesmo de desembocar, neste final do século

XX, em sua globalização: “uma vontade de fundar o domínio do mundo na associação

entre as grandes organizações e uma tecnologia cegamente utilizada” (Santos, 1994:

53). A globalização trouxe uma nova forma de ver, sentir e se apropriar do mundo.

Com as facilidades e velocidades alcançadas para realização de deslocamentos bem

como para aquisição e emissão de informações, em tempo real, redescobriu-se o que ele

denominou de “corporeidade” – os lugares passam a ser percebidos como o

intermediário entre o mundo e o indivíduo. E são nestas dimensões, ou seja, no local e

no cotidiano, que como também aponta Lefebvre, acontecem os impactos, as recriações

das relações sociais, “uma relação permanentemente instável e onde globalização e

localização, globalização e fragmentação são termos de uma dialética que se refaz com

frequência.” (Santos, 2008:314). Enfim, ao mesmo tempo em que cada lugar “se

globaliza”, como receptivo das novas relações sociais e econômicas geradas neste novo

meio cientifico-técnico-informacional, cada lugar “se globaliza” de forma diferenciada,

de acordo com suas possibilidades físico-econômico e culturais.

“As próprias necessidades, do novo regime de acumulação, levam a

uma maior dissociação dos respectivos processos e subprocessos, essa

multiplicidade de ações fazendo do espaço um campo de forças

multicomplexo, graças à individualização e especialização minuciosa

dos elementos do espaço: homens, empresas, instituições, meio

ambiente construído, ao mesmo tempo em que se aprofunda a relação

de cada qual com o sistema do mundo. “Cada lugar é à sua maneira, o

mundo.” (SANTOS, 2008:314)

E é através da experiência do cotidiano que será possível observar o fenômeno

da globalização-fragmentação, pois como dizia Lefebvre, “a análise da vida cotidiana

envolve concepções e apreciações na escala da experiência social em geral” (Lefebvre,

1991:28).

Lefebvre (1991) também defende que as especificidades da cada cidade é que

determinam como “a projeção do global para a prática e para o plano específico da

cidade”, inscrever-se-ão no “texto urbano”.

Mais do que isso, como Lefebvre analisou muito bem, é através do

conhecimento do cotidiano dos lugares que se conhece a vida urbana do lugar: seus

2 Para Milton Santos, a principal forma de relação entre o homem e a natureza, ou melhor, entre o homem

e o meio é dada pela técnica. As técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais com os quais

o homem realiza sua vida, produz e ao mesmo tempo, cria espaço.

valores, conhecimentos, rituais e ritmos são estas as características que enriquecem uma

cidade e as diferenciam das demais: a especificidades da cidade. A vida urbana de uma

cidade é resultado de um passado, uma história de construção do lugar e de seus

cidadãos, daquela sociedade, com incorporação e refutação de ideologias, com a

(re)interpretação e (re)impressão dos aspectos ideológicos (econômicos, políticos e

sociais) sobre aquele plano - a sociedade e a cidade. E o que é uma cidade, sem

preservação do seu passado, da memória urbana e da sociedade que a construiu, sem a

história da vida urbana que hoje se vivencia? Não seria apenas uma obra sem conteúdo,

como diria Le Goff, um cenário ou museu ao ar livre, para ser visitado, apreciado,

consumido sem ser vivenciado, sentido?

Os órgãos brasileiros criados para a institucionalização da preservação e da

memória das cidades (federais, estaduais e municipais) são representações do poder do

Estado que trabalham com diversas limitações e dificuldades, tanto em relação ao

acompanhamento da evolução dos conceitos de preservação e gestão do patrimônio

(muitas vezes por falta de instrumentos jurídicos - políticos que demoram a ser

elaborados e aprovados) como no desempenho de suas atribuições de preservação,

divulgação e conscientização.

Desde 1937 até o ano 2000, o único instrumento jurídico disponível pelo

principal órgão de preservação em nível federal – atual Iphan (Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional) – é o Tombamento3, utilizado largamente para a “guarda

do passado e da memória das cidades”; no entanto, é voltado exclusivamente para a

proteção do patrimônio material. Na interpretação jurídica da legislação disponível até

então, o que se compreendia como patrimônio a preservar era somente a materialidade,

o que foi criado e construído pelo homem, por aquele grupo social4; mas sobre a vida

urbana nela inscrita e que dá a identidade, a especificidade ao lugar, o seu valor

simbólico que explica sua existência, forma, função e sentido de existir e até de

continuar a existir, enfim a memória dos espaços e a sua cotidianidade, só passou a

valorizado e identificado com a abertura propiciada pela Constituição Federal Brasileira

de 1988, reconhecendo como patrimônio nacional também os aspectos imateriais da

cultura nacional5.

3 Até o ano de 2010 existiam 98 conjuntos urbanos tombados em 78 cidades brasileiras.

4 Art 1º da Lei 25/1937: “Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional, o conjunto de bens móveis

e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos

memoráveis da história do Brasil, quer pelo seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,

bibliográfico ou artístico. 5 Art 216 da Constituição Federal de 1988: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza

material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto....”

Foi então criada a Lei Nº 3551/2000, que institui o Registro de Bens de

Natureza Imaterial, com a criação dos Livros de Registro bem como o Programa

Nacional de Patrimônio Imaterial. Posteriormente é homologada a Portaria Nº

127/2009 que estabelece a Chancela da Paisagem Cultural Brasileira, como nova

proposta de investigação e preservação da relação entre a materialidade e a

imaterialidade, criação humana e meio ambiente. Dessa forma a principal Instituição,

que é também responsável pela preservação e notadamente pela guarda do passado e da

memória das cidades, abre-se para novas possibilidades, novos olhares sobre a memória

urbana das cidades.

Hoje, as instituições municipais, estaduais e a federal contam com o auxílio das

universidades para auxiliar no desenvolvimento de estudos, pesquisas, conceitos e

propostas além da abertura propiciada para a participação social, cada vez mais

consciente, e ativa politicamente.

Diante destes novos instrumentos de preservação - o Registro do Patrimônio

Imaterial e a Chancela da Paisagem Cultural - não seria oportuno uma revisão sobre a

forma de condução da preservação dos sítios históricos, incluindo o aspecto da

imaterialidade? Sendo a preservação da vida urbana nestes espaços (a manutenção da

identidade, do vínculo afetivo e ideológico daquela sociedade, daquele grupo) o

princípio que garante o seu uso (compatível) com a memória urbana e,

consequentemente, a sua preservação material, não seria este aspecto importante a ser

estudado, identificado e também preservado? Também, com estas novas possibilidades,

seja o Registro e/ou a Chancela, não seria esta a forma de se trabalhar a conscientização

dos valores da sociedade, o combate à pressão e a desvalorização imobiliária, mostrando

que estes centros históricos são lugares privilegiados de se viver e trabalhar por que

além de “guardar” a história urbana daquela cidade, propiciam uma vida social diferente

da existente em qualquer outro bairro? Conforme Bosi (1994:441), “A ordem desse

espaço povoado nos une e nos separa da sociedade: é um elo familiar com sociedades

do passado, pode nos defender da atual revivendo-nos outra.”

O centro histórico de Laguna/SC: da materialidade à imaterialidade.

O Centro Histórico de Laguna é um caso típico que exemplifica a maneira

como o órgão federal de proteção poderia realizar a guarda do patrimônio histórico, da

memória das cidades, até o ano 2000, quando da criação da Lei 3551/2000 que

estabelece o Registro do Patrimônio Imaterial e até 2009, com a criação da Portaria

127/2009, da Chancela da Paisagem Cultural.

A cidade de Laguna está situada no litoral sul do estado de Santa Catarina, a

aproximadamente 120 km de Florianópolis (pela BR 101). Desde a sua fundação, em

1676, até a primeira metade do século XX foi uma das principais cidades de Santa

Catarina que deixou integrou fatos importantes na história do Estado e no próprio

espaço urbano.

Laguna é a terceira cidade mais antiga do estado. Foi colonizada por vicentistas

e açorianos, cuja influência ainda é notória na etnia e cultura desta população, assim

como está significativamente representada na sua arquitetura e urbanismo histórico do

séc. XVIII, XIX e inicio séc. XX, no Centro Histórico da cidade.

O nome do município provém da característica física do local. Inicialmente

denominada pelo seu fundador de Santo Antônio dos Anjos da Laguna, mais tarde fora

simplificada para Laguna. Sua área, de 353 Km2, está localizada numa planície

litorânea, numa zona de laguna, que significa “braço de mar pouco profundo, entre

ilhas e bancos de areia”, forma um conjunto de oito lagoas ocupando uma área de

aproximadamente 108 Km2, representando, portanto, 33% do território do município e

uma importante fonte econômica de exploração pesqueira artesanal – vocação natural

que envolve grande parte da população, principalmente a rural, seja para

comercialização ou para consumo próprio.

Vista aérea da cidade, em 1994, com delimitação da área tombada pelo IPHAN.

Cidade de médio porte, com uma população de 51.5626 habitantes, seu núcleo

urbano foi estruturado às margens da lagoa de Santo Antônio, protegido visualmente

pelos morros que o separam da costa, para o oceano atlântico. A cidade expandiu-se em

direção à área balneária. É constituída atualmente por 6 (seis) bairros que contornam os

Morros da Glória, Caixa D’água e do Moinho.

Laguna progrediu muito economicamente como cidade portuária e comercial;

destacou-se politicamente (revoluções e movimentos políticos) e socialmente, pelas

festas religiosas e populares, pela variedade de peças teatrais, musicais, bailes e até

atividades esportivas, como regatas e futebol, que mobilizavam a participação da

população local e de outras cidades e estados adjacentes. Os espaços públicos do

Centro Histórico de Laguna foram constituídos historicamente e imbuídos de uma vida

urbana tradicional. Estes espaços sempre foram requisitados como palco das

representações ideológicas (instituições da Igreja e do Estado, monumentos históricos,

museus) e das manifestações sociais (usos cotidianos tradicionais, festas religiosas,

cívicas e culturais). No entanto, ressentem-se, atualmente, de um processo de

desvalorização e “esvaziamento” de usos. Novas ideologias se superpõem ao espaço

urbano da cidade, que repercute no Centro e compromete a preservação da “memória

social” dos seus espaços, que são os valores históricos e culturais da cidade e da

sociedade.

A decadência da atividade portuária, iniciada nos anos de 1940, aliada a uma

precária estratégia política estadual e municipal na tentativa de reversão do quadro

econômico que se esboçava, não conseguiram impedir o seu declínio econômico. O

processo de urbanização que fora aquecido a partir da década de 1970, vislumbrando a

implantação do turismo na área balneária da cidade, proporcionou efeitos não tão

benéficos para a área histórica. Enquanto a renovação urbana da área central conseguiu

ser “freada” pelo Tombamento Federal, em 1985, a área balneária do Mar Grosso foi

sendo ocupada por população de veranistas de média e alta renda e de novas atividades

de lazer e serviços voltados para o turista e veranista: restaurantes, hotéis, bares, boates,

shows e festas de Carnaval e final de ano: a praia e a avenida principal tornaram-se os

maiores e mais importantes espaços públicos da cidade.

Assim, algumas das práticas tradicionais da vida urbana que aconteciam

somente na área central, notadamente o lazer da população da cidade, foram

“descentralizadas”, não se limitaram mais à Praça da Matriz - o principal espaço público

do Centro. Estenderam-se, ou mesmo, deslocaram-se para outros bairros, causando uma 6 IBGE, censo de 2010.

sensação de “esvaziamento” no Centro. Mas o Centro mantém-se ainda hoje como

principal espaço econômico, político e sociocultural, elementos que caracterizam sua

“centralidade urbana”.

Pode-se caracterizar dessa forma, que o centro de Laguna passou por uma

“crise de centralidade”, assim denominado por CASTELLS (1979). Este autor, ao

explicar as diversas causas de uma crise dos “sistemas de centralismos”, aponta dentre

elas a reestruturação social, que repercute na cidade e no centro com o surgimento de

novas funções urbanas que se impõem sobre as formas espaciais existentes, causando

conflitos e, através das pressões sociais dos novos poderes (novas funções econômicas),

conseguem iniciar o processo de renovação urbana nas áreas centrais.

Este processo de deslocamento de funções, desvalorização de áreas históricas

pelo seu “congelamento urbano e arquitetônico”, ou a suposta obsolescência dos

edifícios antigos, já é conhecido e se assemelha ao de outras cidades e conjuntos

urbanos. Trata-se de uma concepção equivocada caracterizar o desenvolvimento urbano

pela destruição das estruturas existentes com sua substituição por novas estruturas. “De

fato, as cidades progridem se autodestruindo, em lugar de ir crescendo a partir de uma

base de manutenção do que já existe.” (CASTELLS, 1979:68).

As cidades vivem em contínua transformação. Estão sendo constantemente

construídas e reconstruídas, assim como suas sociedades, que se reestruturam,

modificam seus valores e suas relações com o ambiente urbano. No entanto, essa forma

de “reestruturação” ora vigente nas cidades, talvez pela falta de clareza em assumir

novos valores, vêm ocasionando a destruição das áreas históricas e a perda dos valores

culturais e tradicionais da sociedade, ou seja, a descaracterização cultural das cidades.

Dessa forma acredita-se na importância da preservação de suas áreas históricas e de sua

memória urbana, pois: “A Cidade é obra de uma história, isto é, de pessoas e grupos

bem determinados que realizam essa obra em determinadas condições históricas.”

(LEFEBVRE, 1991: 46). É imprescindível a adequação de outra proposta de

desenvolvimento econômico que tenha como uma de suas premissas, uma política de

valorização do patrimônio urbano, partindo-se da preservação das estruturas existentes e

agregando-as, de forma compatível às novas necessidades.

O Tombamento Federal do Centro Histórico de Laguna

A Lei de Tombamento Federal, aplicada em 1985 nesta cidade, conseguiu

preservar a paisagem construída deste bairro que já se encontrava em processo de

“renovação urbana”, mas não abrange o aspecto preservação da vida urbana, da

imaterialidade que dá sentido, conteúdo ao espaço construído. Mas este era o

entendimento e o único instrumento disponível na época, “para preservá-la como

expressão da cultura brasileira... como um modo de garantir a qualidade de vida dos

cidadãos... e para preservação da paisagem urbana.” (IPHAN, 1995: 08)

O Centro Histórico de Laguna foi inscrito em dois Livros: Livro de Tombo

Histórico e Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Em linhas gerais,

o parecer técnico elaborado pelo arquiteto Luiz Fernando P.N. Franco, para avaliação e

apresentação junto ao Conselho Consultivo do Iphan, que aprova ou não o

Tombamento, e indica em qual Livro de Tombo será inscrito, é decisivo ao afirmar que

“em sua dimensão estritamente arquitetônica, o patrimônio construído do Centro

Histórico de Laguna não apresenta as características de excepcionalidade normalmente

adotadas como critério para decidir sobre a oportunidade do tombamento.”7 Até o

edifício da Casa de Câmara e Cadeia, tombado individualmente em 1953, foi indicado

pelos acontecimentos históricos que ali ocorreram, conforme informa no parecer. Mas,

justifica sua preservação pela excepcionalidade do sítio, pois foi escolhido

estrategicamente para que a cidade não pudesse ser vista pelas navegações, situada

7 Muitos tombamentos de sítios históricos no Brasil foram procedidos por influência da Carta de Veneza

(1964), que valorizava os conjuntos urbanos mais modestos. Assim, começaram a serem identificados e

tombados também aqueles conjuntos que representavam a ocupação e formação do território nacional, e

não mais somente os conjuntos barrocos.

Vista aérea do Centro Histórico de Laguna, 1995, com poligonal de tombamento.

assim entre os últimos acidentes de relevo da Serra do Mar próximo ao litoral sul, de

domínio português, de acordo com o Tratado de Tordesilhas. Este mesmo sítio, por

estar rodeado pelos morros do Rosário, da Glória, da Caixa d’água, do Moinho e

Progresso não estava sendo “hostilizado” pela nova cidade, os novos bairros que

surgem, tornando-se uma barreira física natural, até então. O relator também destaca a

peculiaridade do traçado urbano, que liga as praças com o cais, formando os principais

espaços públicos e a morfologia urbana da área, enfim conclui:

“Recomenda-se assim, o tombamento do centro histórico de Laguna

em seu acervo paisagístico constituído pelo sistema natural que o

envolve, pelo conjunto de logradouros em seu traçado e dimensão,

pelo cais junto à lagoa de Santo Antônio e pelo conjunto de

edificações em sua volumetria, em sua ocupação de solo e em suas

características arquitetônicas, que expressam a continuidade da

evolução histórica do núcleo urbano original, acervo delimitado pelo

perímetro apresentado. V. planta 3.”(IPHAN:1995; 16)

O que se observa é uma análise estritamente material do objeto para a

preservação. Pelo relatório desenvolvido, os aspectos históricos e socioeconômicos não

foram considerados relevantes para que fossem apontados como justificativas à

preservação e, consequentemente, levassem a sua inscrição no Livro de Tombo

Histórico. Também, em relação à análise do contexto espacial do Centro, a paisagem

dos morros e da lagoa também foi associada como barreiras físicas e ou visuais

somente, sendo os mesmos em parte incluídos no perímetro de tombamento como

“molduras” do objeto principal que é o centro histórico. O que determinou a

preservação da área, através do seu tombamento foi exclusivamente a materialidade do

objeto em questão.

Ribeiro (2008) confirma esta característica ao analisar outros tombamentos

dessa época. Mesmo aqueles como o do município de Parati ou de Porto Seguro,

inscritos no Livro de Tombo de Belas Artes (1958) e posteriormente no Livro de

Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico (1974), estão vinculados a ameaças

que estes conjuntos estariam sofrendo, com as aberturas de rodovias e intensificação da

exploração turística. Este autor aponta que os tombamentos que se sucederam após a

Carta de Veneza modificaram o olhar da instituição, “o aspecto da monumentalidade e

da excepcionalidade dando lugar à ideia de documento, registro da história nacional e da

relação do homem com seu ambiente” (RIBEIRO, 2008: 94). A “cidade monumento” é

vista agora como “cidade documento”.

Um caso que se difere dos demais, e que por este motivo é destacado pelo

autor, foi o do Tombamento de Natividade/TO (1987), que conjugou os aspectos

imateriais e ambientais: “A paisagem é constituidora do próprio bem e não é vista

apenas como moldura... a imensa serra de Natividade era fonte de matéria-prima da

atividade econômica básica da população que se estabelece ali.” O Tombamento de

Natividade foi registrado em 3 (três) livros de Tombo: Belas Artes, Histórico e

Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. E no tombamento de São Francisco do

Sul/SC (1987), “vemos o mar intervindo no dia a dia das pessoas, constituindo um

cotidiano coletivo”, também registrado nos mesmos livros que Laguna.

Estes últimos tombamentos se aproximam de uma proposta que poderiam ter

sido projetados em Laguna, mas ainda não dão conta do aspecto mais rico e mantenedor

da sua centralidade: a vida urbana!

Memória urbana de Laguna/SC: espaços públicos e vida urbana

A maioria das cidades brasileiras, principalmente as de pequeno e médio porte,

tem o seu centro urbano coincidente com a área mais antiga da cidade - o Centro

Histórico. Este é o ponto de partida da cidade. O que se tem nos Centros Históricos

hoje é um produto de todas as transformações físicas e socioculturais que a cidade

sofreu.

Os espaços públicos de uma cidade podem ser caracterizados como o “ponto

de interseção” entre a cidade e a sociedade. Se a cidade é o “habitat” do homem

urbano, a forma de apropriação e o uso dos seus espaços públicos representam a

maneira como a sociedade se relaciona com a cidade. A memória urbana do Centro

Histórico de Laguna é representada pelo estudo dos espaços públicos e da vida urbana

inserida na área central da cidade.

Mais do que simples elementos de circulação e organização da malha urbana

de uma cidade, são nestes espaços que a sociedade manifesta publicamente seus valores

socioculturais, seus anseios, suas necessidades - do lazer, da palavra, da sociabilidade.

Proporcionam o uso coletivo, gratuito e igualitário para a população. Neles ocorrem

manifestações da vida urbana pública: dois pontos das atividades cotidianas, como o

simples encontro entre amigos numa praça, o jogo de bola na rua, os movimentos

sociais, comícios, manifestações de greves, shows e, ainda, as celebrações religiosas

como as procissões e festas cívicas. A Carioca, fonte d’água, continua a ser requisitada

por sua água, a Praça República Juliana é ainda hoje a praça cívica, onde a semana da

pátria é comemorada. O Jardim é o principal lugar de encontro da juventude e onde se

comemoram também as festas religiosas tradicionais; as procissões percorrem as

mesmas ruas, o mesmo trajeto de 200 anos atrás. No cais, os pescadores ainda chegam

com seus barcos pequenos e vendem seus peixes. Agricultores do interior chegam e

organizam sua feirinha na frente do Mercado Municipal, semelhante ao que se fazia em

1880. Ali, junto da feira e do Mercado, homens, taxistas, aposentados se agrupam para

seus “bate-papos” diários. Os espaços foram “modernizados”, ganharam calçamento,

iluminação, mobiliário urbano, mas as cenas, os rituais se repetem.

São nestes espaços que também se repercutem as transformações físicas e sociais da

sociedade - o seu modo de vida, suas crenças e aspirações frente àquele período que

estão vivenciando:

“A vida urbana, a sociedade urbana , numa palavra “o urbano” não

podem dispensar uma base prático- sensível, a cidade.” Se considera a

cidade como Obra de certos “agentes” históricos e sociais, isto leva a

distinguir a ação e o resultado, o grupo (ou grupos) e o seu “produto”,

sem com isso separá-los.” (LEFEBVRE, 1991:49)

A presença da vida urbana e da “esfera pública”, ou seja, de “um termo comum

a todos” é o que garante a existência das relações sociais:

“A presença de outros que vêm o que vemos e que ouvem o que

ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos.

Somente quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas, numa

variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que os que

estão a sua volta sabem que vêm o mesmo na mais completa

diversidade, pode a realidade do mundo manifestar-se de maneira real

e fidedigna.” (ARENDT, 1958:59).

As formas de apropriação dos espaços públicos das áreas centrais de uma

cidade representam um conjunto de ideologias incorporadas ao longo da história, que

transformam os espaços físicos e as relações sociais.

Nos espaços do Centro da cidade é possível realizar o encontro com o passado

- conhecer e valorizar a história daquela cidade e sociedade, que também fazem parte da

nossa própria história e da história do nosso país. Viver o presente nos espaços do

“passado” é manter, preservar e continuar a história da cidade e daquela sociedade. E a

continuidade dos usos, embora os mesmos estejam modificados pela própria história,

significa perpetuar a memória urbana da cidade.

Assim os espaços públicos da cidade se revelam como reais instrumentos de

análise da vida urbana. Não só possibilita a socialização, mas seus usos também

indicam as características e anseios da sociedade. As transformações na qualidade e a

intensidade de uso dos espaços públicos, ao longo da história da cidade, permitem

analisar as relações do homem com o seu “ambiente construído”.

Portanto, será a partir do estudo da cidade ao nível local que se possibilitou

caracterizar as mudanças verificadas por novas ideologias impostas sobre o espaço

urbano. Conhecendo as causas destas mudanças, pode-se chegar com maior precisão à

possíveis soluções para a alteração do quadro que ora se apresenta.

A preocupação com as transformações da “vida urbana” não significa uma

aversão ao desenvolvimento econômico e sociocultural, atenta para o fato de que a

preservação destes valores torna-se imprescindível como diretriz, “o fio condutor”, para

o desenvolvimento urbano e a preservação da memória das cidades.

Sobre os novos instrumentos de preservação: uma associação possível?

É notório que se vive, atualmente, um período de ampliação da noção de

Patrimônio e, consequentemente, da forma de ver a preservação da memória urbana das

nossas cidades brasileiras. Se antes, o único instrumento de preservação era o

Tombamento, hoje, disponibilizamos dos Registros para reconhecimento e salvaguarda

do patrimônio imaterial e ainda a Chancela como mais novo instrumento de

preservação, que além de associar a materialidade à imaterialidade em um mesmo

recorte (dissociados historicamente pelos processos anteriores), pressupõe sua

vinculação ao meio ambiente natural no qual está inserido e ainda, compreende,

identifica e valoriza a dinâmica da transformação cultural que ocorre nestes lugares,

buscando sua salvaguarda através da associação entre os diversos atores que utilizam e

se dependem diretamente e indiretamente do local, sejam eles moradores, órgãos

públicos, empreendedores particulares, que deverão juntos, realizar a gestão

compartilhada do lugar ou região.

Inicialmente, quando se dispunha apenas do instrumento de Tombamento, estes

eram enquadrados nos Livros de Tombo, a partir de uma hierarquia ideologicamente

criada pela visão da época, do que se entendia como representação da história e

identidade nacional. Segundo Fonseca (2008), quando um bem era considerado

excepcional, de valor notório, este era inscrito no Livro de Belas Artes e quando seu

valor não era julgado tão expressivo, acabava por ser inscrito no Livro de Tombo

Histórico e também, dependendo do caso, no Livro de Tombo Arqueológico,

Etnográfico e Paisagístico. A autora identifica a tendência da época que caracterizava o

patrimônio do Brasil a partir de uma perspectiva predominantemente estética. Durante

este período, foi valorizado basicamente o Barroco e o Neoclássico8. A ideologia sobre

a forma de pensar estes tombamentos será modificada após a década de 1970, com o

grande Congresso Internacional de arquitetos e técnicos dos monumentos históricos,

que gerou a Carta de Veneza em 1964. O número de tombamentos de sítios históricos

foi ampliado e alguns bens que foram inscritos anteriormente somente no Livro de

Tombo de Belas Artes, foram reinscritos no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico

e Paisagístico, visando justamente à preservação da paisagem envoltória.

A diferença entre este instrumento – Tombamento, com a possibilidade de sua

inscrição no Livro de Tombo Etnográfico, Arqueológico e Paisagístico e a Chancela da

Paisagem Cultural é quanto à questão da materialidade: no Tombamento, a preservação

material é o seu objeto, seu foco, diferente da nova proposta - a Chancela da Paisagem

Cultural, que abarca a materialidade e a imaterialidade do bem em si, ou seja, a obra e

seu conteúdo.

Este novo instrumento de Preservação, conforme descrito em sua Portaria de

criação, considera, dentre outras ponderações, que “os fenômenos contemporâneos de

expansão urbana, globalização e massificação das paisagens urbanas e rurais colocam

em risco contextos de vida e tradições locais em todo o planeta” e conceitua “paisagem

cultural” a partir da fundamentação inscrita na Constituição Brasileira, definindo assim

a paisagem cultural:

“Paisagem Cultural Brasileira é uma porção peculiar do território

nacional, representativa do processo de interação do homem com o

meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiam marcas ou

atribuíram valores.” (IPHAN, 2009)

Há de se recordar que o conceito de paisagem cultural, já defendida em

algumas correntes da Geografia desde o final do século XIX, foi inicialmente

apropriada pela UNESCO em 1992, como lembra Ribeiro (2007), quando esta inclui a

categoria de “Paisagem Cultural” para inscrição de bens na lista de Patrimônio Mundial,

tendo em vista a “dicotomia existente na lista desde a sua criação, em 1972, entre

patrimônio natural e cultural”. Assim, a categoria ora descrita passou a ser aplicada

para aqueles sítios que expressavam a combinação de trabalhos da natureza e do

homem, vistos em conjunto.

Apesar de parecer que o foco do conceito de Paisagem Cultural sejam sítios ou

lugares mais associados à existência ou predominância do meio ambiente natural ou

8 A arquitetura moderna, introduzida em 1928 no Brasil, teve seu primeiro exemplar tombado

em 1947 – a Igreja de São Francisco de Assis na Pampulha- Belo Horizonte/MG.

rural, há de se destacar como exemplos importantes, sítios que foram inscritos na

categoria de paisagem cultural pela UNESCO, subcategoria “paisagens evoluídas

organicamente”. Conforme destaca Araújo (2009), tem-se a inscrição da Paisagem

Industrial de Blaenavon, no Reino Unido; o Palácio de Versailles e seus jardins, na

França e ainda Ryukyuan, conjunto de sítios e monumentos no Japão.

Assim, muitos sítios conjugam estes dois vetores: a materialidade e

imaterialidade. Também, não perderam a “centralidade urbana”, com as reestruturações

econômico-sociais, principalmente no que se diz respeito à tradicionalidade dos usos

dos espaços públicos, mas, no entanto, não foram ainda identificados ou inventariados

pelo Iphan. Assim, considerando a inscrição destes sítios no Livro de Tombo

Arqueológico, Histórico e Paisagístico, pela presença do aspecto do meio ambiente

natural que determinou a escolha do sítio e que interage de diversas maneiras com a

paisagem urbana histórica tombada e com o meio ambiente natural envoltório, não

deveriam também estes sítios ser reavaliados e possivelmente enquadrados como

paisagens culturais brasileiras?

Como exemplo, o caso específico do Centro Histórico de Laguna, a chancela

como paisagem cultural possibilitaria a identificação e salvaguarda sob dois pontos de

vista:

1. Olhando-se para “dentro do centro”: para os espaços públicos e a vida urbana

nele inserida, que mantém sua centralidade urbana através das atividades

econômicas, político-institucionais e socioculturais explicitadas anteriormente e

dos usos cotidianos e ritualísticos tradicionais dos espaços públicos e das

edificações que cultiva as festas centenárias nos mesmos espaços (cívicos e

religiosos) além das atividades rotineiras, como a feira de hortifrutigranjeiros e a

banca do pescado em frente ao cais do centro, o transporte por barcos, dentre

outros.

2. Olhando-se de “dentro para fora do centro”: seu entorno imediato, formado

pelos elementos naturais que interagem e intervém no modo de vida das pessoas,

como a lagoa à frente da cidade, que é via de circulação, é meio de vida de

muitas famílias que moram tanto nos bairros adjacentes ao centro como no

interior do município (pescadores artesanais)9 e é opção de lazer e

entretenimento através dos passeios de barco e pesca amadora. Os morros, cada

9 É notória a interação da população com as lagoas e o mar que cercam esta parte do território. São

pescadores de camarão, que se utilizam das lagoas, são pescadores de tainha, que pescam “associado à

pescaria dos botos”, no canal de acesso ao mar. A relação da população dita lagunense com o mar é

bastante evidente no dia a dia.

um com uma representação simbólica histórica, onde “símbolos” foram

instalados, como a imagem de Nossa Senhora, o cemitério, as Cruzes para

pagamento de promessas, e a Igreja do Rosário como o “reduto dos negros”, no

Morro que acabou ganhando a mesma denominação10

.

Para ambos os olhares, através dos inventários e da Chancela, estes valores,

além de identificados poderiam ser preservados através de planos de salvaguarda ou

programas específicos criados para este fim. A Chancela da paisagem reconheceria os

valores imateriais e associá-los-ia tanto com a paisagem urbana construída como a

paisagem natural e toda a sua dinâmica de transformação física, econômica e

sociocultural, sendo possível assim a salvaguarda dos mesmos.

Além do mais, permanência dos mesmos espaços públicos constituídos desde

1880 – as ruas, praças, orla da lagoa, acessos aos morros e de sua tradicionalidade

quanto aos usos possibilita esta mistura – do uso lúdico com os usos de troca

(sociabilidade), consumo, circulação, com o uso político e cultural. É uma caraterística

histórica e ainda latente na vida desta população, embora esteja se esvaindo em função

de diversos fatores externos a eles, como por exemplo, a poluição das águas, o aumento

do esforço da pesca, o aumento da atividade econômica no centro histórico, entre

outros. Como diria Lefebvre (1991:133), “A centralidade lúdica tem suas implicações:

restituir o sentido da obra trazido pela arte e pela filosofia – dar ao tempo prioridade

sobre o espaço, não sem considerar que o tempo vem se inscrever num espaço – por a

apropriação acima do domínio.” Não seria isso o que desejaríamos para nossos centros

históricos, tendo dessa forma a memória urbana preservada?

Existe outro aspecto bastante peculiar na Portaria da Chancela da Paisagem

Cultural, sobre o “Pacto e a Gestão” o qual seria de grande valia para os Centros

Históricos. À medida que a chancela “implica no estabelecimento de pacto que pode

envolver o poder público, a sociedade civil e a iniciativa privada, visando à gestão

compartilhada” podendo este ser “integrado de Plano de Gestão a ser acordado entre as

diversas entidades, órgãos públicos e privados envolvidos, acompanhado pelo Iphan”,

modifica-se a postura centralizadora desta instituição de preservação, “abrindo mão do

controle total” e chamando a população e suas diversas representações civis a participar

da discussão e da gestão sobre o que se preservar, como manter, o que refutar. Todos

passam a ser protagonistas, coadjuvantes, fiscais, usuários, promotores de eventos, em

prol da preservação daquele sítio, daquela “vida urbana” que se quer preservar. Esta não 10 Apesar da Igreja não mais existir, apenas suas fundações.

seria a melhor forma de politização da população, no sentido de fazê-la refletir sobre

quais valores lhe são caros e devem ser preservados, dando-lhes poder e instrumentos e

voz de decisão e de ação?

Esta pode ser considerada uma atitude bastante audaciosa, tendo em vista a

forma como a ideologia do capitalismo corrompe, deturpa os valores e faz com que tudo

se torne consumível. É provável que a principal instituição de preservação do

patrimônio cultural tenha entendido, quando criou o instrumento da Chancela da

Paisagem Cultural, a dimensão deste universo que compõe o patrimônio cultural,

reconhecendo que é impossível que somente um órgão seja responsável pela

identificação, guarda e proteção deste patrimônio, o qual aumenta, se diversifica e se

valoriza, a cada dia, a cada ano que passa, devido a expansão da própria concepção de

cultura. É a sociedade brasileira que deve, paulatinamente, assumir o papel de agente

preservador, por ser importante para ela e para o grupo social a que pertence. Os

Tombamentos ainda se fazem necessários, pois estes ainda são os instrumentos

principais de preservação, mas a associação dos mesmos a Registros e principalmente à

Chancela seria essencial para quem sabe, num momento futuro, como aspirado por

Lefebvre (1991), quando a sociedade pós-moderna emergir, esta possa realmente cuidar

e gerir a preservação com menos interferência do Estado.

Considerações Finais

A perda do equilíbrio de funções que constitui a Centralidade urbana dos centros

históricos (econômica, político-institucional e lúdica), tendo em vista a tendência

crescente da atividade econômica, acarreta no empobrecimento da qualidade de vida

urbana e o início do processo de desvalorização social. Perder a centralidade simbólica e

lúdica é perder o valor de uso do centro, pois como diria Lefebvre:

“As qualidades estéticas desses antigos núcleos desempenham um

grande papel na sua manutenção. Não contem apenas monumentos,

sedes de instituições, mas também espaços para as festas, os

encontros, os passeios e diversões. O núcleo torna-se assim, produto

de consumo de uma alta qualidade para estrangeiros, turistas. Torna-se

“lugar de consumo e consumo do lugar”. (Lefebvre, 1991: 12)

A presença dos espaços públicos históricos, na área central da cidade de

Laguna, bem como a tradicionalidade quanto aos seus usos, possibilita esta mistura:

espaços para o lúdico, para o consumo, circulação, uso político e cultural. No entanto, é

uma característica histórica que tem sido reestruturada e tem perdido espaço para o

vetor econômico, ou mesmo esvaziando-se, pois muitos imóveis são abandonados e

fechados.

O instrumento do tombamento é ainda muito restritivo quanto a sua

abrangência, cuidando somente da materialidade do patrimônio edificado, sem preservar

o que garante a sustentabilidade destes centros: a vida e a memória urbana. Muitos

centros, agora destituídos da ação da especulação imobiliária, ressentem-se pela baixa

da procura: são “abandonados” pela população tradicional (que não tem estrutura

econômica para manter o imóvel) e/ou substituídos por empresários e populações de

outras culturas que procuram nos espaços e imóveis “o valor de troca”, sem qualquer

vínculo afetivo com o local. São situações verificadas nos centros históricos de Salvador

(Pelorinho) ou em Parati (Rio de Janeiro) e, certamente, não é isso o que as instituições

de preservação pretendem e desejam.

Os novos instrumentos de preservação - Registro e Chancela - devem ser

pensados como alternativa para se associarem ao instrumento de tombamento, pois estes

instrumentos reconhecem a importância da vida urbana, a imaterialidade e toda sua

dinâmica, o conteúdo que dá sentido a forma e função dos centros históricos,

proporcionando a preservação da memória urbana destes lugares. Afinal,

“As necessidades urbanas específicas, não seriam necessidades de

lugares qualificados, lugares de simultaneidade e de encontros, lugares

onde a troca não seria tomada pelo valor de troca, pelo comércio e

pelo lucro?” (Lefebvre, 1991:104).

A implementação do instrumento da Paisagem Cultural em Laguna propiciaria

também um processo de gestão compartilhada entre a municipalidade e demais

parceiros públicos e privados, como órgãos ambientais e culturais, para a criação de

instrumentos normativos, de obras de revitalização, de políticas que valorizem e

preservem as configurações sociais existentes no centro histórico, que estimulam o

lúdico, o cultural e a memória urbana nestes espaços. Por exemplo: a revitalização de

praças com áreas de lazer e convivência; melhorias de circulação para pedestres e

bicicletas; atividades nos centros culturais, nos cinemas e nos clubes recreativos

existentes, atividade pesqueira artesanal e a circulação de barcos; a preservação dos

morros e seus simbolismos, entre outros.

Assim como em Laguna/SC, diversos outros centros históricos brasileiros

possuem esta potencialidade que merece ser reestudada para que seja estabelecida a

Chancela da Paisagem Cultural como uma ferramenta importante no avanço da gestão

do patrimônio cultural e natural. Políticas públicas podem promover programas,

projetos, normatizações que visem a preservação das manifestações locais, dos modos

de produção tradicional e sua relação com o meio ambiente, mas principalmente, podem

estimular a organização da sociedade para discutir sobre sua cidade, seu município. Esta

é a melhor forma de se trabalhar a tão debatida e esperada “educação patrimonial” na

sociedade, assim denominada pelos órgãos gestores, que nada mais é que a iniciativa ao

debate, a conscientização e a politização da sociedade. Só assim se alcançará resultados

positivos para os instrumentos de gestão do patrimônio cultural propostos, e, enfim, a

gestão compartilhada entre o poder público, a sociedade civil e a iniciativa privada.

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