EQUIDADE, DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E
PRESERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE: ALGUMAS QUESTÕES
SOBRE A PARCERIA ECOLÓGICA NA AMAZÔNIA Deborah de Magalhães Lima
Departamento de Antropologia CFCH - UFPa Belém – Pará
(In: Faces do Trópico Úmido - conceitos e questões sobre desenvolvimento e meio ambiente. Edna Castro e Florence Pinton, (eds). Belém: Cejup, 1997.)
A mobilização de populações locais pela defesa de recursos naturais
essenciais para sua sobrevivência e a proliferação de organizações não
governamentais que atuam em prol da preservação do meio ambiente são
dois movimentos sociais encontrados na Amazônia hoje. Não raramente,
estes movimentos se aliam, como no caso do movimento dos seringueiros e
do movimento pela preservação de lagos. A essa parceria Hall (1994)
chamou de "movimentos sócio-ambientais", ressaltando que a força das
mobilizações locais se baseia justamente na aliança que estabelecem com
organizações voltadas para a conservação produtiva da Amazônia. Em alguns
casos a pressão política exercida por esses movimentos conseguiu obter
respaldo governamental para legalizar suas propostas e um dos mecanismos
jurídicos usados foi a criação de novas categorias de unidades de
conservação, ou a redefinição de categorias já estabelecidas. A implantação
de várias unidades de conservação na Amazônia se baseia em alianças deste
tipo, como é o caso da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá,
2 Deborah Lima
das diversas Reservas Extrativistas, do Parque Nacional do Jaú e da Floresta
Nacional do Tapajós.
Pela legislação federal, as unidades de conservação estão divididas
em duas categorias: as de uso direto, que compreendem vários tipos de
unidades onde o manejo sustentável é permitido, e as unidades de
conservação de uso indireto, onde a preservação é integral. Existem 112
unidades de conservação federais e estaduais na Amazônia, que cobrem
420.000 km2 ou 8,7% da Amazônia Legal (Rylands, 1995). Somadas, as
unidades de conservação de uso direto cobrem 245.910 km2, ou 4,9% da
Amazônia Legal, uma área equivalente ao Reino Unido. Isto nos dá uma
dimensão da área onde atuam ou vão atuar populações locais e
conservacionistas em parceria. Há ainda vários projetos de desenvolvimento
sustentado sendo implantados em áreas da Amazônia que não pertencem a
unidades de conservação.
A maioria dos projetos onde se dá essa parceria teve início no final
dos anos oitenta e início desta década, quando mudanças no cenário sócio-
econômico da Amazônia e o desenvolvimento de novos conceitos teóricos na
biologia da conservação contribuíram para a formação de uma conjuntura
favorável a sua implantação. O fator responsável pela formação desta
conjuntura foi o reconhecimento das consequências negativas do
desenvolvimento de empreendimentos capitalistas na Amazônia que levaram
a uma rápida devastação das florestas e a extinções localizadas de alguns
recursos naturais, pondo em risco a biodiversidade da região e ameaçando a
sobrevivência de populações locais. A construção de estradas e barragens, os
incentivos à ocupação da terra por empresas capitalistas, o crescimento da
pecuária, o crescimento das cidades e desenvolvimento da pesca comercial
que levaram a um aumento da pressão sobre estoques pesqueiros da várzea,
Equidade e Desenvolvimento Sustentável 3
afetaram diretamente populações locais e chamaram a atenção da
comunidade científica e da opinião pública nacional e internacional para a
devastação da Amazônia. Ao mesmo tempo, a decadência do sistema de
aviamento tradicional abriu espaço para a participação política das
populações locais, antes presas à patronagem (Aramburu, 1994), que se
mobilizaram para defender seus direitos sobre as áreas que ocupavam. A
aliança entre ambientalistas e populações locais também foi favorecida pela
existência de políticas de financiamento de instituições governamentais e não
governamentais do Primeiro Mundo que, seguindo novas estratégias para a
conservação, privilegiam projetos que integram conservação e populações
locais.
A proposta deste trabalho é discutir o envolvimento de populações
locais na implantação de unidades de conservação a partir de uma reflexão
sobre a experiência de Mamirauá, uma unidade de conservação que está
sendo implantada em parceria com comunidades engajadas no movimento de
preservação de lagos. Um aspecto importante a ser discutido é a concepção
de populações tradicionais presente no pensamento ambientalista e
recentemente incorporado na revisão, em andamento, do Sistema Nacional de
Unidades de Conservação (SNUC). Atendendo às demandas geradas pelo
movimento sócio-ambiental, o substitutivo em discussão propõe a criação de
novas categorias de unidade de conservação que incluem populações
humanas, cunhadas na proposta como populações tradicionais.
A generalização do conceito de populações tradicionais tende a
simplificar a diversidade de situações sociais e, mais grave, implicar em uma
expectativa de permanência da pequena produção familiar, privilegiada pelo
movimento ambientalista justamente por ser mais propícia à aceitação de
modelos de uso sustentável do que a produção capitalista. Sem uma reflexão
4 Deborah Lima
adequada, as expectativas conservadoras do modelo de uso sustentado podem
ir contra a autonomia destas populações de decidir sobre seu futuro frente às
aspirações modernas de níveis de consumo e definição de bem estar.
De fato, a parceria ecológica tem sido constituída com base na
desigualdade social. As populações pobres, no entanto, estão sendo
integradas às unidades de conservação sem que se tenha definido com clareza
a meta social a ser atingida. A única norma definida para o desenvolvimento,
entendido como melhoria das condições de vida, é restritiva - que as
atividades humanas não contrariem o objetivo de preservação da
biodiversidade. Do ponto de vista conservacionista, a permanência de
populações humanas é em si um benefício oferecido às populações, uma
concessão de risco que se troca pela aceitação política da unidade de
conservação e pela adoção de normas de uso sustentável dos recursos que
servem para amortecer o contato da fronteira das áreas de preservação total
com áreas não conservadas ao seu redor. Para as populações locais sua
inclusão envolve uma série de sacrifícios que não são divididos igualmente
com o resto da sociedade. É certo que em nenhum dos projetos em curso se
verifica coersão, pelo contrário, o diálogo e o fortalecimento político das
populações são procedimentos respeitados. Mesmo assim, não se pode deixar
de reconhecer que o comportamento econômico que se espera destas
populações, justificável em termos de um modelo ideal de adaptação humana
ao meio ambiente, não é exigido de outros segmentos sociais.
A implantação de projetos integrados implica em várias
modificações na organização social das populações, nas suas relações de
trabalho e no seu acesso e uso dos recursos. Como os recursos existentes nas
áreas destinadas à exploração humana tendem a ser comunais, é possível que
a população envolvida mantenha, internamente, uma ordem social mais
Equidade e Desenvolvimento Sustentável 5
igualitária, fundada na ausência de privilégios para o acesso aos principais
meios de produção, terra e água. A organização social que se configure, mais
ou menos igualitária, no entanto, estará inserida em uma ordem social
diversa, com a qual a população local possui laços de dependência e que
oferece ao meio urbano, e não o rural, seus maiores benefícios. É necessário,
portanto, pensar também na fronteira social deste modelo de preservação da
biodiversidade.
Outro ponto importante a discutir é que critérios são usados para
reconhecer determinados grupos sociais como populações tradicionais e
atribuir a esses grupos, excluindo de outros, o direito de permanência em
unidades de conservação. Em muitos casos, a parceria ecológica corre o risco
de se envolver em conflitos locais e ser manipulada por grupos sociais que
competem por territórios e pelo direito exclusivo ao uso de recursos naturais.1
A EXPERIÊNCIA DE MAMIRAUÁ
A Reserva de Mamirauá é a maior unidade de conservação brasileira
localizada inteiramente em área de várzea. Está situada no Estado do
Amazonas, entre os rios Japurá, Amazonas e o Auati-Paraná, uma região de
florestas inundadas que permanecem 6 meses submersas e sofrem variações
anuais de até 12 metros no nível das águas. Decretada em 1990 pelo governo
do Amazonas, possui uma área total de 11.240 km2. Desde 1991, um total de
80 pesquisadores, extensionistas e pessoal de apoio já participou de estudos e
trabalhos de extensão destinados a implantar a reserva e elaborar seu plano de
1 Ver por exemplo a discussão de Araújo (1994) sobre o conflito entre comunidades
do Lago Grande de Monte Alegre gerado por uma portaria do IBAMA que fechou uma área do lago a pescadores comerciais. As comunidades incluídas na área preservada não querem permitir a entrada de comunidades que, mesmo localizadas no lago, ficaram fora da área protegida.
6 Deborah Lima
manejo.2 Este trabalho inicial está sendo feito em uma área focal de 260.000
ha, localizada entre os rios Japurá, Solimões e o paraná do Aranapu, e os
resultados alcançados servirão de base para a implantação do restante da
reserva. Além de sua importância biológica conferida pelo alto número de
espécies endêmicas, a implantação desta unidade de conservação desenvolve
uma experiência nova ao incluir as populações de residentes e usuários da
reserva no seu processo de implantação.
A criação da reserva foi baseada em uma proposta inicial
encaminhada pelo biólogo Márcio Ayres à antiga Secretaria do Meio
Ambiente (SEMA) em 1984 para a conservação de uma área menor, de
712km2, destinada a preservar duas espécies de primatas, o uacari branco e o
macaco-de-cheiro-de-cabeça-preta (Cacajau calvus calvus e Saimiri
vanzolinii). Após o Estado do Amazonas decretar a reserva com uma área
maior, que coincide com toda a distribuição do uacari branco, a Secretaria de
Meio Ambiente Ciência e Tecnologia do Estado do Amazonas (SEMACT-
Am) assinou um convênio com o CNPq e Ministério do Meio Ambiente para
a implantação da reserva. O Projeto Mamirauá foi criado com esse objetivo,
e está ligado diretamente ao CNPq, inicialmente alocado no Programa do
Trópico Úmido e atualmente na Diretoria de Institutos. Recebe apoio
financeiro e logístico de várias instituições governamentais e não-
governamentais do Brasil e exterior.3
2 Para uma descrição dos programas de pesquisa do Projeto Mamirauá, ver Lima
Ayres, Moura e Ayres, 1995. 3 As principais instituições de apoio são CNPq, Museu Paraense Emílio Goeldi,
Universidade Federal do Pará, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, SEMACT-Am, Overseas Development Administration (ODA), World Wide Fund for Nature (WWF), Wildlife Conservation Society (WCS), European Union (EEC), e Aqualung.
Equidade e Desenvolvimento Sustentável 7
Paralelamente, foi criada a Sociedade Civil Mamirauá, em 1992,
com o objetivo principal de administrar com maior flexibilidade os recursos
recebidos para implementar as atividades do projeto, além de se
responsabilizar pela manutenção a longo prazo do funcionamento da reserva.
A parceria entre uma não-governamental e instituições governamentais
combina a agilidade de manusear orçamentos com a garantia de continuidade
dada por uma instituição governamental. No caso, o CNPq assegurou
recentemente a continuidade do projeto se responsabilizando por 40% de seu
orçamento e está criando um instituto de pesquisa sobre a várzea em Tefé.
Originalmente, Mamirauá foi decretada como Estação Ecológica,
uma categoria incompatível com o modelo sendo implantado. O fato de ser
uma reserva estadual facilitou a aceitação da proposta de trabalho "irregular"
pela SEMACT, o que não aconteceria caso fosse uma unidade de
conservação ligada diretamente ao governo federal. A questão da legalidade
do modelo adotado foi resolvida este ano com a mudança para uma categoria
nova, chamada "Reserva de Desenvolvimento Sustentável" definida no
projeto de lei elaborado pelo Professor Nelson Ribeiro. Esta categoria não
obedeceu ao SNUC porque os modelos jurídicos existentes não eram
adequados à realidade de Mamirauá. O Estado do Amazonas portanto
apresentou uma inovação ao legislar autonomamente sobre unidades de
conservação.
A categoria se caracteriza essencialmente pela conjugação de três
elementos: preservação do patrimônio natural, pesquisas sobre a
biodiversidade e combate à pobreza pela promoção do desenvolvimento
sustentado. A legislação prevê a implantação gradual da reserva, sendo que
cada etapa se finaliza pela aprovação, por decreto, de um Plano de Manejo.
Assim, a primeira etapa de implantação está sendo concluída com a
8 Deborah Lima
finalização da redação do primeiro Plano de Manejo, que se refere à área
focal da reserva (Projeto Mamirauá, 1996).
O MODELO
Projetos que integram conservação e desenvolvimento comunitário
(integrated conservation and development programmes ou ICDPs), também
chamados na literatura de projetos de conservação baseados na comunidade
(community based conservation ou CBC) têm gerado várias discussões sobre
as implicações da integração de populações humanas aos objetivos de
conservação da biodiversidade (Redclift, 1989; Robinson, 1993; Western &
Wright, 1994). Em todos os projetos em andamento, o conceito de
"sustentabilidade" é utilizado, principalmente após a Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio em 1992. Com a
controvérsia decorrente do uso deste termo associado à noção de
desenvolvimento (desenvolvimento sustentado significando "crescimento
constante", o que não denota a intenção proposta), a opção de emprego do
conceito de uso sustentado de recursos naturais tem sido preferida. Não
obstante, o objetivo de promover o desenvolvimento, no sentido de promover
a melhoria de condições de vida das populações pobres que habitam a maior
parte das áreas onde estes projetos são realizados, tem sido perseguido.
Ocorre, portanto, a integração de dois conceitos, nem sempre bem
definidos: sustentabilidade e desenvolvimento, este último como condição de
eliminar a pobreza, considerada, ironicamente, como fator de depredação
ambiental. Os conceitos de sustentabilidade e desenvolvimento denotam
processos enquanto que a condição de pobreza seria o sujeito sobre o qual
estes processos agiriam. O conceito de conservação utilizado atualmente é
derivado desta integração de processos, como tem defendido seus
Equidade e Desenvolvimento Sustentável 9
proponentes mais modernos. De fato, a literatura atual sobre conservação
apresenta o envolvimento da população local como uma estratégia aceita
mundialmente. No Brasil, no entanto, ainda encontramos resistência `a
aplicação deste modelo por parte de defensores da noção ortodoxa de
preservação integral, com exclusão de qualquer interferência humana, em
órgãos ambientais do governo.
Em projetos integrados o conceito de sustentabilidade (ou
manutenção ao longo do tempo) tem sido empregado de duas formas: para
denotar a sustentação dos processos biológicos e evolutivos que se baseiam
na não interferência humana em determinadas áreas destinadas à preservação
da biodiversidade; e sustentabilidade dos recursos explorados pela população
local. Nestes projetos há várias estratégias de integração da população
humana: integração total, sem zoneamento; com zoneamento concêntrico e
definição de zonas tampão; ou, como se desenvolve no Mamirauá, mosaicos
de áreas com diferentes categorias de uso que, num certo sentido, seriam
múltiplas áreas concêntricas, com possíveis interseções. A princípio, as
populações locais devem garantir os dois princípios de sustentabilidade.
Serviriam para garantir a sustentabilidade do uso, a partir da adoção de regras
de manejo, e atuariam como vigilantes que garantiriam a sustentabilidade dos
processos evolutivos e manutenção da biodiversidade nas áreas intocadas.
Isto implica, para as populações humanas, em uma restrição do uso
livre do espaço. Este sacrifício das populações humanas em projetos
integrados só é aceito se acompanhado de um benefício utilitário concedido
em troca. Em geral, este sacrifício tem sido justificado a partir da garantia
dada à população local da manutenção seu modo de vida, por assegurar a não
extinção dos recursos naturais mais importantes para sua sobrevivência.
Portanto, uma terceira proposta de sustentabilidade se configura, que é a de
10 Deborah Lima
continuidade da população ao longo do tempo. Isto implica na manutenção
do processo de reprodução da população, processo este que envolve variáveis
sociais e ecológicas. A garantia desta reprodução social requer um programa
contínuo de pesquisas e monitoramentos que integrem as ciências naturais e
sociais, como será discutido.
Sendo uma experiência recente, a presença humana em unidades de
conservação suscita muitas questões, a maioria sem respostas no momento.
Questões mais diretas envolvem o desenvolvimento de pesquisas básicas da
biologia das espécies de valor econômico, direcionadas para a definição de
critérios de sustentabilidade e regras para manejo. Há questões mais
complexas que implicam na tomada de decisões estratégicas, específicas para
cada unidade de conservação. Por exemplo, em Mamirauá a questão das
zonas de assentamento humano se depara com um problema específico da
várzea que é o fato do ambiente ser instável. A solução encontrada pela
população para sobreviver em uma área de intensa modificação
geomorfológica é mudar o local do assentamento (Lima Ayres e Alencar,
1993). A definição das áreas de assentamento humano então precisa ser
considerada temporária e revista periodicamente.
Outro aspecto importante é a densidade demográfica. Em Mamirauá,
por exemplo, a densidade demográfica atual é de 0,6 hab/km2. No presente, a
população, embora estável numericamente, mostra-se altamente móvel, ou
seja, há entrada e saída de indivíduos e famílias na área. Esta estabilidade
numérica é mantida por uma alta taxa de emigração que compensa a taxa de
crescimento da população, em torno de 4,1% ao ano. A questão se esta
situação é desejável ou não para a preservação da biodiversidade não pode
ser respondida de imediato. De qualquer modo, assegurar a densidade
demográfica que se considere ideal vai implicar em discussões avançadas
Equidade e Desenvolvimento Sustentável 11
com a população local. Este é um exemplo de questões que necessitam de
pesquisas futuras para serem respondidas.
Projetos integrados apresentam a intenção de promover a melhoria
das condições de vida da população como "retorno" por sua cota de
sacrifício e como incentivo à sua aceitação da proposta de preservação. A
razão política e ética de incluir a população humana, e não só as espécies
ameaçadas de extinção, nos trabalhos de conservação e de manutenção de
condições adequadas de reprodução e sobrevivência, é também pertinente,
mas esta extensão do conceito de natureza a ser preservada é ainda tênue. A
inclusão de populações humanas em unidades de conservação apresenta
ainda muitas ambiguidades. Ao lado da questão de conhecer e garantir a
reprodução social da população está a definição do "bem estar" desta mesma
população. Mas exatamente o que se pretende e em que áreas se tem o direito
de atuar?
Tomando como exemplo o projeto Mamirauá, sua atuação tem sido
direcionada às áreas de saúde, saneamento, e educação ambiental,
respeitando os limites da atuação da sociedade civil em relação às obrigações
do Estado. O trabalho de incentivo à participação comunitária também
contribui para a melhoria das condições de vida na medida em que respeita os
direitos da população sobre o uso do ambiente e promove o sentido de
cidadania. Há ainda trabalhos de extensão agrícola e em silvicultura, com o
objetivo de melhorar a produção, e propostas de implantação do turismo
ecológico. Reconhece-se, portanto, que a reprodução social da população não
oferece condições condizentes com os padrões modernos de bem estar social.
Quadros da reprodução como alta taxa de mortalidade infantil, baixa
escolaridade e situação sanitária precária, não representam situações
adequadas de reprodução em relação aos padrões modernos.
12 Deborah Lima
Os economistas medem "bem estar" pelo consumo, que, em
sociedades inteiramente capitalistas, é medido pelo gasto monetário e
confrontado com a poupança que a população decide fazer da sua renda.
Frente a áreas onde a economia capitalista é totalitária, a situação econômica
das populações integradas a unidades de conservação apresenta
características distintas, comuns às sociedades camponesas modernas. Seu
consumo é proveniente tanto da produção direta quanto do consumo de
artigos industrializados adquiridos no mercado a partir da venda de produtos
extraídos ou cultivados nas reservas.
O aumento da renda monetária é apenas um indicador de condições
de vida, e envolve critérios subjetivos de nível de satisfação das necessidades
de consumo. Dada a prioridade de preservação da biodiversidade, também
considerada indicador de condições de vida, deverão ser atribuídos normas e
limites à exploração das espécies ameaçadas de extinção, o que talvez iniba o
crescimento da renda monetária e do consumo indireto. O tipo de reprodução
social das populações rurais da Amazônia, no entanto, facilita, por assim
dizer, a definição de limites ao volume da produção. Sendo produtores
familiares, têm sua capacidade de produção limitada pela mão de obra
familiar. Têm também uma reprodução ligada a uma circulação simples de
mercadorias, vendidas para comprar outras mercadorias. A circulação
simples tem seu crescimento limitado, enquanto que a mercantil-capitalista
apresenta possibilidades diretas de crescimento.
No momento a reprodução social destas populações é do tipo
camponesa, mas se, no futuro, os sistemas de manejo desenvolvidos pelos
cientistas obtiverem resultados positivos e elevarem a densidade dos recursos
manejados, a população poderá abandonar suas características de
campesinato e adotar novas estratégias econômicas, como pequenos
Equidade e Desenvolvimento Sustentável 13
empresários ou capitalistas. Esta possível transformação econômica poderá
ter duas implicações: requerer um maior controle e regulamentação do uso
dos recursos para evitar uma sobre exploração, ou, se o empreendimento se
tornar efetivamente organizado, pode facilitar a promoção do manejo
sustentado a partir de um interesse espontâneo de empresários “esclarecidos”
em desenvolver um gerenciamento planejado dos recursos naturais.
O MOVIMENTO DE PRESERVAÇÃO DE LAGOS
A área de várzea do Médio Solimões é formada por centenas de
corpos d’água chamados regionalmente de lagos, mas que na verdade são
pequenos canais e paranás que cortam a região. São alargados em alguns
trechos que ficam isolados na época da seca. Na cheia os cursos d'água são
interligados e há dispersão dos peixes. São estes lagos o objeto de conflitos
entre ribeirinhos e pescadores profissionais, principalmente na época seca,
quando a pesca se torna mais produtiva pela concentração de peixes nestes
lagos. A história do movimento de preservação de lagos teve início nos anos
oitenta, a partir do apoio dado pela Igreja, através da Comissão Pastoral da
Terra (CPT), para a organização do movimento. O conflito entre pescadores e
ribeirinhos é, no entanto, anterior, e seu início coincide com decadência do
sistema de aviamento.
Por ser formada por áreas anualmente alagadas, não há propriedades
privadas na várzea do Médio Solimões, classificadas pela legislação como
terras de marinha. Mesmo assim, nas chamadas feitorias, patrões
controlavam a exploração dos lagos em que comercializavam,
principalmente, pirarucu e quelônios. Com a saída dos patrões, a ocupação
humana da área se modificou. Os assentamentos passaram a se localizar
quase exclusivamente nas margens dos grandes rios, por onde passam
14 Deborah Lima
regatões, e o uso dos lagos ficou aberto para os moradores de assentamentos
próximos. Um sistema informal de definição de territórios se formou, com
cada assentamento, composto em média por oito grupos domésticos ligados
por laços de parentesco, ocupando uma área correspondente à sua demanda
por terras altas para agricultura e lagos para pesca.
Nessa mesma época o Movimento de Educação de Base (MEB)
começou a formar lideranças e, através da catequese, instituiu um sistema de
representação política com a eleição de cargos de presidente, vice-presidente,
secretário e tesoureiro. Os assentamentos que adotaram este sistema, antes
chamados vilas ou sítios, passaram a se denominar comunidades. O termo
comunidade tem, na região do Médio Solimões, portanto, a conotação de um
tipo particular de organização política ligada à Prelazia. Posteriormente, a
funcionalidade desta organização foi reconhecida por instituições
governamentais e não governamentais que atuam no meio rural e hoje ela
perdeu a conotação estreita de um movimento da Igreja. Entretanto, a
organização comunitária é mais forte nas comunidades que continuam
participando dos treinamentos e reuniões promovidos pela Prelazia.
A partir dos anos sessenta, com crescimento das cidades, houve um
aumento na demanda de peixe e os pescadores profissionais, utilizando
instrumentos que permitem um maior volume de pesca como as malhadeiras
e redes de arrastão, passaram a explorar, com vantagem, os mesmos lagos em
que os ribeirinhos pescam artesanalmente. O agravamento do conflito entre
ribeirinhos e pescadores na década de setenta motivou a CPT, da antiga
regional Amazonas/Roraima, a organizar várias reuniões entre ribeirinhos e
pescadores para tratar da questão. Os ribeirinhos justificavam sua insatisfação
não apenas por causa da competição desigual mas principalmente porque a
exploração dos lagos era excessiva, e diminuía consideravelmente os
Equidade e Desenvolvimento Sustentável 15
estoques das espécies mais importantes. Sendo o peixe tanto a principal fonte
de alimentação como de renda monetária, os ribeirinhos encararam a questão
como uma luta por sua sobrevivência. Adotaram posturas agressivas para
defender seus lagos, a exemplo dos empates dos seringueiros.
Em 1986, a Pastoral de Tefé, liderada pelo falecido Irmão Falco,
idealizou um sistema de preservação de lagos com o objetivo de garantir a
sobrevivência dos ribeirinhos, chamado “Lei da Pesca”. Em várias reuniões,
representantes comunitários foram incentivados a guardar dois lagos: um
totalmente preservado, para a procriação dos peixes, e outro para a pesca de
subsistência, chamado de lago de manutenção. Como os lagos se comunicam
na cheia devido à variação sazonal do nível d’água, a preservação dos lagos
na época seca garante o abastecimento dos lagos de manutenção das
comunidades. Foram formados comitês de pesca encarregados de vigiar os
lagos para proibir a entrada de peixeiros, porém surgiram problemas entre os
próprios moradores. Alguns comunitários não aderiram à proposta e
negociavam a entrada de peixeiros nos lagos em troca de promessas de
receber dinheiro ou bens materiais, como motor de popa, nem sempre
cumpridas. Outras vezes a comunidade mesmo decidia pescar nos lagos
preservados, enfrentando o dilema de ter que decidir entre a economia da
preservação e a necessidade da sobrevivência.
A pressão exercida pelo movimento de preservação de lagos
conseguiu sensibilizar algumas prefeituras do Médio Solimões que incluíram
listas de lagos de procriação e de manutenção nas suas leis orgânicas, mas
não alcançaram apoio legal do IBAMA para autuar invasores nem para obter
portarias que determinassem o fechamento dos lagos (como conseguiram
comunidades do Baixo Amazonas). Os pescadores profissionais,
representados pela Colônia de Pescadores de Tefé, alegam a
16 Deborah Lima
incompatibilidade entre a legislação municipal e a federal, defendendo seu
direito constitucional de ir e vir. Sem apoio legal efetivo, o movimento conta
apenas com o apoio moral de não-governamentais como a CPT e com a
perseverança de lideranças comunitárias que acreditam na eficácia do manejo
de lagos.
Na área de atuação da Prelazia de Tefé, que compreende os
municípios de Tefé, Japurá, Alvarães, Maraã, Fonte Boa, Uarini, Jutai,
Carauari e Itamarati, existem atualmente 143 lagos de preservação e 167
lagos de manutenção que envolvem diretamente 2.136 famílias (Ternus,
1996). O MEB passou a integrar as instituições de apoio ao movimento em
1992, quando criou o Grupo de Preservação e Desenvolvimento (GPD) que
agrega 35 comunidades dos municípios de Tefé, Alvarães e Maraã. Por causa
da ligação do movimento à Igreja Católica, as comunidades crentes se
mantiveram afastadas. Uma crítica ao modelo católico feita por alguns
pentecostais foi a de que o movimento promoveria a pobreza e não o
desenvolvimento por não definir uma categoria de lagos para
comercialização. Ultimamente porém, a CPT, refletindo sobre a história do
movimento, fez uma revisão da proposta original na qual sugere: a promoção
geral da preservação, a busca de apoio de instituições de pesquisa para
desenvolver sistemas de manejo que funcionem com bases científicas,
estudar alternativas econômicas, definir critérios para a comercialização
racional do peixe, instituir um sistema de rodízio dos lagos de procriação e
manutenção, e fortalecer as bases através da criação de uma associação de
preservadores nas comunidades (CPT-Amazonas,1996).
Entre as diversas não-governamentais atuando em parceria com
comunidades pela causa ambiental, a CPT talvez seja a que apresenta sua
posição ideológica com mais clareza:
Equidade e Desenvolvimento Sustentável 17
“A ação da CPT deve redefinir constantemente a compreensão de pastoral, (…) entendida como a ação da comunidade para a libertação e desenvolvimento integral da pessoa humana e da natureza; a Pastoral da Terra, solidária com as lutas de resistência e iniciativas das classes subalternas no campo busca resgatar o termo ‘Sobrevivência’ como conteúdo da construção da nova sociedade (...). A partir do resgate da Teologia da Criação e de concepções culturais-religiosas dos Povos da Floresta (…), a CPT entende a questão ecológica como a necessidade de lutar pela preservação/libertação da pessoa humana integrada e a serviço da criação (Gn. 20). A criação como ato contínuo de Deus, possui o direito universal da vida e coloca a pessoa humana como co-criador ou recriador da natureza. A luta permanente contra o caos (injustiça social e destruição ambiental), na busca da libertação integral, resgata esta dimensão recriadora da pessoa humana. Esta postura pressupõe uma profunda mudança na atual compreensão do progresso como lucro e acumulação” (CPT - A Grande Região Noroeste, 1996).
Inspirada na Teologia da Libertação, a CPT é também a instituição
que apresenta a proposta mais radical em relação à transformação da
sociedade, considerada como condição básica para se alcançar os objetivos
de conservação da natureza. Sendo sua a proposta mais utópica, talvez seja a
que mais dificuldade tenha de compartilhar seus ideais com os da população
com a qual trabalha.
A PARTICIPAÇÃO DA POPULAÇÃO EM MAMIRAUÁ
O envolvimento da população na implantação de Mamirauá,
iniciado em 1991, em muito se valeu da precedência do movimento de
preservação de lagos. O primeiro passo foi a realização de uma consulta à
população residente, que não sabia da existência da demarcação da área, para
propor sua participação. Foi somente porque houve uma resposta positiva da
maioria da população, pelo fato da reserva atender a necessidade de apoio
18 Deborah Lima
legal do movimento de preservação de lagos, que se deu continuidade aos
trabalhos.
A experiência de envolver a população de Mamirauá retrata a
dificuldade específica de implantar este modelo novo de unidade de
conservação a partir de uma proposta externa, que não partiu originalmente
de uma demanda local. A transformação de um projeto vertical em um
projeto horizontal, com a participação da população na gestão dos recursos e
na elaboração do plano de manejo, é um processo longo. O projeto Mamirauá
levou cinco anos até obter o apoio de praticamente todas as 60 comunidades
diretamente afetadas pela criação da reserva.4
A organização de um sistema para a participação comunitária foi
facilitada pela existência não só do movimento de preservação de lagos
mencionado anteriormente como também pelo fato das comunidades já terem
uma organização política formada com uma prática de discussão democrática
de seus problemas desenvolvida desde o final da década de 1960 pelo MEB.
Para facilitar o trabalho das lideranças no processo de definição de suas áreas
de preservação, as comunidades de moradores e usuários da área focal foram
agrupadas em 9 setores políticos. Cada setor tem um coordenador que
organiza reuniões bimestrais e todas as lideranças comunitárias se reúnem
anualmente em assembléias gerais.
Apesar da participação ativa de representantes comunitários na
escolha de áreas para preservação, as decisões tomadas em reuniões formais
sofreram várias mudanças e surgiram disputas entre comunidades por lagos.
4 Além da população residente, as atividades do projeto envolvem comunidades do
entorno que foram identificadas como usuárias de áreas da reserva e que dependem deste uso para realizar diversas atividades econômicas essenciais para sua sobrevivência. No total, 5.277 pessoas estão diretamente envolvidas, 1.668
Equidade e Desenvolvimento Sustentável 19
Os casos de conflito na escolha de áreas remetem a problemas políticos
internos das comunidades, relacionados com a organização social dos
povoados. Os assentamentos são formados por grupos domésticos ligados por
laços de parentesco e há casos de disputa de autoridade entre parentelas
distintas. A organização política formal implantada pelo MEB e reproduzida
pelo projeto se sobrepõe a essa organização primária. Em alguns casos a
liderança formal tem mais legitimidade na sua função de articular a
comunidade com instituições externas do que no tratamento de questões da
comunidade mesmo. Além disso, há divergência entre especializações
econômicas dos chefes de domicílios, principalmente entre os que se dedicam
mais à agricultura e os que obtêm maior parte de sua renda monetária da
pesca.
Essas divergências se refletem nas escolhas dos lagos de
preservação e no compromisso de preservá-los. Dos 616 lagos registrados na
área focal, em torno de 200 foram classificados pelas comunidades nas três
principais categorias de zoneamento (para preservação, para subsistência e
para comercialização). A disputa por alguns desses lagos, entre comunidades
vizinhas e dentro das próprias comunidades, se refere a concepções de uso
distintas e interesses econômicos contrários. Dois conflitos existentes, um
entre a Colônia de Pescadores e comunidades, e outro referente à comunidade
indígena Porto Praia, revelam a dificuldade de intervir imparcialmente,
buscando a solução compatível não com interesses particulares mas com os
objetivos da implantação da unidade de conservação.
A decisão de permitir a pesca comercial, tomada em assembléia, se
baseou no fato de que entre 10 e 20% do peixe vendido no mercado de Tefé
que moram em 23 assentamentos localizados dentro da reserva, e 3.609 usuários de 37 comunidades fora da reserva.
20 Deborah Lima
provém da área focal da reserva. Ficou acertado que a Colônia de Pescadores
negociaria com um setor, o Jarauá (ver mapa), os lagos em que pescariam e o
tipo de instrumentos de pesca permitidos. Até hoje, porém, este acordo não
foi alcançado porque a Colônia insiste em pescar nos mesmos lagos que as
comunidades. Também discutem as bases da diferenciação entre eles e os
comunitários, alegando que se estes pescam para a venda são também
pescadores e devem se registrar oficialmente como profissionais para ter
direito a comercializar o pescado. Sentindo-se marginalizados pelo
movimento de preservação, não têm comparecido às ultimas reuniões
marcadas, estacionando o processo de negociação.
Outro caso que mostra como o movimento ambientalista pode se
envolver com disputas locais por territórios e pelo direito de uso de recursos
refere-se à disputa entre a comunidade indígena Porto Praia, de descendentes
de Ticunas, e comunidades vizinhas, pertencentes ao setor Liberdade (ver
mapa). A definição da categoria de uso de dois lagos, Urucuri e Baú, tem
sido disputada por essas comunidades antes mesmo da reserva ser decretada.
Após várias negociações mediadas por extensionistas do projeto, o setor
Liberdade, formado por 13 comunidades, firmou uma aliança para uso
coletivo de alguns lagos e reservou o lago Urucuri para preservação. A
comunidade Porto Praia não obedeceu ao acordo por querer o lago Urucuri
para sua manutenção e comercialização, e invade frequentemente as áreas de
preservação do setor tanto para pescar como para extrair madeira e caçar.
O conflito se agravou com a proposta para criação da área Indígena
Porto Praia. A portaria da Funai é de 1994, posterior portanto ao decreto que
criou Mamirauá. A primeira proposta gerou muita polêmica porque a
extensão sugerida, 10% de toda a área focal, afetaria não só as comunidades
vizinhas mas também comunidades dos setores Jarauá e Horizonte.
Equidade e Desenvolvimento Sustentável 21
Atualmente Porto Praia não quer permitir o acesso das comunidades vizinhas
ao que considera sua área, mesmo que ainda não tenha sido demarcada. A
afirmação da diferença étnica dá a Porto Praia o privilégio de assegurar um
território disputado desde 1987. A revolta dos ribeirinhos se refere ao fato de
que eles foram os primeiros ocupantes da área, tendo lá chegado nas
primeiras décadas deste século, enquanto que os residentes de Porto Praia
chegaram de Fonte Boa em 1972 e agora: “querem por placa e tomar a
área”. É fato conhecido na região que os moradores de Porto Praia se
recusam a participar do movimento ecológico. A demarcação da área e
afirmação de sua identidade étnica está sendo instrumental para liberar a
comunidade do controle do movimento social de preservação.
O Projeto Mamirauá se manifestou contrário à criação da área
indígena e propôs uma revisão da proposta de criação (Reis, 1995). Existem
duas outras áreas indígenas usuárias da reserva com quem o projeto tem
trabalhado em boa parceria. A estratégia adotada pelo projeto para definição
de usuários e para mediação de conflitos tem se baseado nos seguintes
critérios: grau de dependência dos recursos da reserva, antiguidade, e,
principalmente, aceitação da proposta de preservação da biodiversidade.
IDENTIDADE E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA
Para se compreender as formas específicas como se relacionam
“populações tradicionais” e grupos ambientalistas é preciso conhecer o
contexto social em que vivem e suas histórias locais. Em geral, as populações
locais têm, ao lado de uma identidade própria, uma imagem, muitas vezes
estereotípica, atribuída a elas pelos grupos sociais com quem interagem na
sociedade regional. No caso de Mamirauá, a população local apresenta duas
categorias de referência, uma, a de caboclo, usada pela sociedade para
22 Deborah Lima
identificá-los, e outra, a de pobres, que é a categoria mais abrangente com
que se identificam. O conhecimento da história do grupo e de sua noção de
identidade permite que se compreendam as intenções e expectativas que a
população de Mamirauá apresenta na sua aliança com o Projeto Mamirauá.
O termo caboclo, caa-boc, significa em tupi "aquele que vem do
mato", e era usado inicialmente por tribos do litoral para designar povos do
interior. O sentido de alteridade foi mantido tanto no uso inicial do termo
pelos colonizadores (para designar índios aldeados e a população
miscigenada), quanto no emprego atual, feito pela população urbana para se
referir à população rural. O "caboclo típico" é o habitante das margens do rio,
que usa a canoa como meio de transporte e é um grande conhecedor do
ambiente natural. A representação cultural do "típico amazônida rural" não se
limita a este simples retrato mas inclui também conceitos de valor, em sua
maioria depreciativos, do habitante ribeirinho. A "indolência" e a "preguiça"
do caboclo são elementos de um estereótipo que oferece uma interpretação
moral de sua pobreza.
Como a população "cabocla" se firmou em número e em
importância econômica nos meados do século dezenove, quando as idéias
racistas de Gobineau dominavam o pensamento social da elite ocidental e
eram copiadas pelos brasileiros, a posição social da população cabocla foi
explicada como sendo consequência do efeito deletério da mistura de raças.
Essa busca por atribuições próprias para explicar a condição social inferior
permaneceu no estereótipo do caboclo até os dias de hoje, ignorando-se o
papel das políticas coloniais que determinaram a formação de uma classe
camponesa subordinada, inicialmente por meios políticos à elite colonial, e
hoje, dadas as condições desfavoráveis de sua reprodução simples, à estrutura
Equidade e Desenvolvimento Sustentável 23
de classes que acompanha a expansão mercantil-capitalista na Amazônia
(Lima Ayres, 1992).
O retrato do caboclo, no entanto, não corresponde a uma identidade
social, e o termo é geralmente por eles rejeitado ou transferido a outras
classes e categorias sociais. Sua própria construção de identidade não lhes
confere uma noção de coletividade demarcada por uma nítida diferenciação
social, como a noção de caboclo poderia supor. Em sua fala, a categoria de
identidade mais abrangente que usam para referirem-se a si mesmos é a de
"pobre", seguida, mais recentemente, da identidade de "ribeirinho",
introduzida ao longo do trabalho de evangelização católica. Categorias menos
abrangentes, que de fato distinguem sub-grupos entre a população rural, estão
ligadas à atividade econômica ("o agricultor", "o pescador"), ao ambiente que
habitam ("vargeiro" e "terra-firmeiro"), e à religião adotada ("crentes" e
"católicos"). A identidade indígena é a mais excludente e a que possui
conotações políticas mais fortes. No entanto, é, nesta região, considerada uma
adoção artificial já que não há distinções culturais marcantes entre os que se
identificam como "índios" e os outros, os "ribeirinhos".
A identidade difusa de "pobres" é a que mais se reflete na maneira
como os moradores da região de Mamirauá se relacionam com outras
categorias e classes sociais que ocupam posições políticas e econômicas
superiores à sua. De certo modo, incorporam, embora de forma invertida, o
estereótipo que lhes é atribuído, já que sua condição estruturalmente
desprivilegiada lhes oferece a possibilidade de negar qualquer
responsabilidade por sua sorte e se posicionar como merecedores "naturais"
de auxílio. Enquanto o estereótipo atribui a causa de sua pobreza à indolência
natural de sua "raça", sua própria interpretação é de que como não são
responsáveis por sua condição social são obrigatoriamente merecedores
24 Deborah Lima
(carentes) de ajuda. Essa auto-imagem, reforçada e manipulada por patrões e
políticos principalmente em época de eleição, é de baixa auto-estima, o que
acarreta em dificuldades adicionais para alcançar as poucas chances
disponíveis de ascensão social.
Como conceito relativo, a noção de pobreza é sempre definida em
relação a uma condição superior ou melhor, cabendo portanto definir a que se
refere seu sentido de inferioridade e carência. Como conceito representativo
de uma classe social, a pobreza é associada historicamente ao sistema de
aviamento e à patronagem. Há um dizer local que especifica este
entendimento de noção de classe ligada à dominação mercantil que
predominou nas primeiras décadas do século: "só tem o rico porque tem o
pobre para comprar" . Embora esta percepção da origem da divisão de
classes ainda permaneça, o sentido de pobreza tem desenvolvido um sentido
mais amplo com o processo de modernização e o estreitamento das relações
entre os meios urbano e rural.
A identidade de pobre não significa que não existam condições
mínimas de sobrevivência na região. Os instrumentos de trabalho, embora
simples, permitem que a pesca, agricultura, caça, coleta e extração de
madeira supram as necessidades básicas. Como em outras situações de
participação da produção doméstica na economia de mercado, a condição de
pobre se refere ao fato de que o retorno monetário pelo trabalho investido na
produção para a venda é muito baixo e garante apenas a reprodução simples
dos grupos domésticos. Tem, em seu sentido econômico, portanto, o sentido
do limite do que pode ser conseguido com o esforço do trabalho familiar.5
5 Entre os moradores de Mamirauá, a renda média anual de um grupo doméstico
padrão, formado por 7 membros, é de R$900,00. Esta renda é obtida pela venda de uma produção média de 500kg peixe, 20 m3 de madeira e 200kg de farinha. A maior parte da renda monetária se destina à compra de alimentos básicos. Açuçar,
Equidade e Desenvolvimento Sustentável 25
No seu sentido mais amplo e atual, o conceito se refere ao fato de
que a população rural da Amazônia não tem acesso direto às instituições
básicas do mundo moderno como educação, saúde e o próprio mercado. Este
sentido de exclusão social se reflete claramente no âmbito político. A falta de
direcionamento político dos governos municipais e estaduais à área rural
contribui para a migração urbana, onde as necessidades de consumo e de
assistência social podem ser atendidas. Portanto, embora as condições
econômicas permitam a sobrevivência básica, o meio rural não oferece
condições plenas de reprodução social, e subsiste em relação de dependência
ao meio urbano. Esta parcialidade, discutida na década de cinquenta na
antropologia com a caracterização das sociedades camponesas modernas
como part society (Redfield, 1953; Kroeber, 1948), está também associada à
noção de pobreza, no sentido de dependência e inferioridade econômica,
política e cultural do meio rural em relação ao meio urbano.
Extensionistas do projeto que atuam nas áreas de saúde, educação e
participação comunitária atestam que enfrentam dificuldades para
implementar seus trabalhos porque têm que lidar diretamente com esta
incorporação negativa da identidade de pobres. De acordo com seus relatos, a
população deposita uma expectativa exagerada nas instituições de extensão,
esperando que estas encontrem uma solução imediata para seus problemas.
Pedem constantemente ajuda material, e reagem com resistência quando as
propostas de extensão implicam em assumir compromissos (M. Reis, com.
pessoal ). A lógica da pobreza, regida por necessidades imediatas, parece ter
mais força que os compromissos assumidos em reuniões, pois é ela que
determina quando um trato deve ser rompido e até onde deve permanecer.
café, sabão em barra, óleo de cozinha, leite em pó e sal compõem a cesta básica destas famílias, a um custo mensal de R$50,00.
26 Deborah Lima
A parceria que se estabelece entre conservacionistas e comunitários
envolve interesses específicos que podem ou não convergir e por isso requer
que os acordos sejam negociados com habilidade e os interesses de cada parte
reconhecidos. Não podemos esquecer que o interesse das chamadas
populações tradicionais pela conservação se baseia em um interesse
econômico específico, a sua sobrevivência.
Por esse motivo, para que regras de uso sustentável sejam
respeitadas é preciso que a população veja estas medidas como benefícios
econômicos. As mudanças no comportamento econômico e na organização
da produção vão levar tempo, e requerer uma atuação específica das equipes
de extensão. O papel da organização comunitária também vai ser expandido,
cabendo às comunidades gerenciar a produção econômica em termos do
controle de suas áreas de uso. No presente, a produção econômica das
comunidades é anárquica, no sentido de que o uso dos recursos não é
regulado coletivamente. As decisões sobre a exploração da área são feitas
individualmente pelos chefes dos grupos domésticos. Através da promoção
de um gerenciamento econômico dos recursos, a racionalidade oportunista
que caracteriza o comportamento econômico das populações rurais da
Amazônia, e que dificulta a implantação de medidas reguladores, poderá ser
modificada.
A experiência de implantar este modelo de unidade de conservação
mostra que há diferenças culturais presentes não só no diálogo entre
membros do projeto e as populações locais, como também entre
pesquisadores das ciências naturais e os das ciências sociais. A abordagem
interdisciplinar impõe uma dificuldade adicional, decorrente das próprias
formações acadêmicas diferentes, principalmente em relação a concepções
distintas das populações locais que se refletem por exemplo nas decisões
Equidade e Desenvolvimento Sustentável 27
orçamentárias e maneiras de tratar a população local. Esse é mais um fator
que faz com que o processo de implantação da unidade de conservação seja
longo pois requer uma abordagem convergente das análises sociais e
biológicas para a qual não temos especialistas formados, nem tradição de
trabalho. É preciso aprender, durante o processo, nossas diferentes
"linguagens" e enxergar as questões que surgem a partir dos vários pontos de
vista presentes.
CONCLUSÃO
Projetos que integram conservação e desenvolvimento social são
experiências novas que retratam, por um lado, um esforço intelectual
ambicioso de criar um modelo de exploração econômica sustentado para
populações locais que ajuste as demandas dinâmicas do mundo social
moderno à capacidade suporte de ecossistemas e à preservação da
biodiversidade e dos processos evolutivos. Por outro lado, procura-se
democratizar esta parceria, evitando o quanto possível expressões de
autoritarismo advindas da desigualdade social existente entre as duas partes,
principalmente em termos da autoridade do conhecimento científico,
sujeitando o processo à avaliação das populações envolvidas e valorizando o
conhecimento que possuem sobre o meio ambiente em que vivem.
Entre as diversas situações em que se encontram populações rurais
na Amazônia, o parentesco, a identidade, o acesso à terra e à água, a
definição do sistema de herança e de sucessão à propriedade ou posse, as
regras de usufruto de recursos comunais, são exemplos de fatores que
distinguem categorias sociais e tipos de ocupação. Seringueiros, colocações,
nordestinos, colônias, colonos, ramais, quebradeiras de coco, babaçuais,
remanescentes de quilombos, são exemplos da diversidade de organizações
28 Deborah Lima
sociais e formas de ocupação do espaço que demonstram que não se pode
traçar um modelo único de envolvimento de populações em projetos de
conservação. A diversidade social implica na necessidade de conhecer em
profundidade as formas locais de reprodução social para então desenvolver
modelos de participação, manejo e preservação, específicos para cada
situação.
Por isso, o envolvimento de populações locais em unidades de
conservação não deve seguir um modelo rígido. Ao contrário, as experiências
precisam ser construídas no decorrer de um processo de interação contínua
com a população, ajustando as demandas e costumes locais à intenção de
construir um sistema de uso sustentado do ambiente, que, combinado com a
preservação da biodiversidade, garanta uma melhoria na qualidade de vida da
população. As experiências em andamento mostram também que a
implantação de uma unidade de conservação em parceria com populações
locais não tem um ponto final. A evolução da sociedade e as mudanças na
densidade e acesso aos recursos naturais, decorrentes da própria implantação
da unidade de conservação, implicam na necessidade de reajustes contínuos,
definidos a partir de um monitoramento das condições sociais e naturais e da
manutenção do diálogo com a população.
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