Entre selfies, curtidas e subjetividades

22
Página 1 04.08.2013 ISSN: 2236-8221 Edição n. 32, de Maio Vitória da Conquista [email protected] http://www.marcadefantasia.com/o-corpo-e-discurso.htm O corpo é discurso Nesta edição, O Corpo é discurso traz a cobertura do evento ―(RE)VISÕES DO FANTÁSTI- CO: DO CENTRO ÀS MARGENS, CAMINHOS CRUZADOS‖, acontecido durante os dias 28 a 30 de abril de 2014. Além disso, o Corpo traz um artigo de Ederson Luís Silveira, da Univer- sidade Federal de Santa Catarina, um artigo de Nirvana Ferraz Santos Sampaio, profes- sora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UESB e notícias ligadas ao universo acadêmico e da Análise do Discurso, no Brasil. ISSN: 2236-8221 EXPEDIENTE DE O CORPO Editores George Lima Nilton Milanez Tyrone Chaves Filho Organizadores George Lima Tyrone Chaves Filho Editoração eletrônica (MARCA DE FANTASIA) Henrique Magalhães CONSELHO EDITORIAL Dr. Elmo José dos Santos (UFBA) Dra. Flávia Zanutto (UEM) Dra. Ivânia Neves (UFPA) Dra. Ivone Tavares Lucena (UFPB) Dra. Mônica da Silva Cruz (UFMA) Dr. Nilton Milanez (UESB) Dra. Simone Hashiguti Jornal de popularização científica Acesse o site do Labedisco: www2.uesb.br/labedisco

Transcript of Entre selfies, curtidas e subjetividades

O Corpo

Página 1

04.08.2013

ISSN: 2236-8221

Edição n. 32, de Maio Vitória da Conquista

[email protected] http://www.marcadefantasia.com/o-corpo-e-discurso.htm

O corpo é discurso

Nesta edição, O Corpo é discurso traz a cobertura do evento ―(RE)VISÕES DO FANTÁSTI-

CO: DO CENTRO ÀS MARGENS, CAMINHOS CRUZADOS‖, acontecido durante os dias 28 a 30

de abril de 2014. Além disso, o Corpo traz um artigo de Ederson Luís Silveira, da Univer-

sidade Federal de Santa Catarina, um artigo de Nirvana Ferraz Santos Sampaio, profes-

sora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UESB e notícias

ligadas ao universo acadêmico e da Análise do Discurso, no Brasil.

ISSN: 2236-8221

EXPEDIENTE DE O CORPO

Editores

George Lima

Nilton Milanez

Tyrone Chaves Filho

Organizadores

George Lima

Tyrone Chaves Filho

Editoração eletrônica

(MARCA DE FANTASIA)

Henrique Magalhães

CONSELHO EDITORIAL

Dr. Elmo José dos Santos

(UFBA)

Dra. Flávia Zanutto (UEM)

Dra. Ivânia Neves

(UFPA)

Dra. Ivone Tavares Lucena (UFPB)

Dra. Mônica da Silva Cruz

(UFMA)

Dr. Nilton Milanez

(UESB)

Dra. Simone Hashiguti

Jornal de popularização científica

Acesse o site do Labedisco: www2.uesb.br/labedisco

COBERTURA DO EVENTO ―(RE)VISÕES DO FANTÁSTICO: DO CENTRO ÀS MARGENS, CAMINHOS CRUZADOS‖

Tendo como temática central

(Re)Visões do Fantástico: do centro às

margens, caminhos cruzados, o “II Con-

gresso Internacional Vertentes do Insólito

Ficcional‖, o ―V Encontro Nacional O Insóli-

to como Questão na Narrativa Ficcional‖ e

o ―XIII Painel Reflexões sobre o insólito na

narrativa ficcional‖ foram eventos aconte-

cidos concomitantemente que procuraram

discutir visões e revisões de abordagens

do e a respeito do discurso fantástico e

outros discursos adjacentes na literatura,

no cinema, no teatro, nas artes plásticas,

nos videojogos etc., cuja adjacência é

caracterizada pela presença do insólito

ficcional: fantástico(s), maravilhoso, es-

tranho(s), sobrenatural, absurdo, realismo

-Fantástico, realismo-Mágico, realismo-

maravilhoso, realismo-animista, ficção

científica, romance policial, romance de

mistério, horror, terror, pavor, etc.

(Re)Visões do Fantástico acon-

teceu do dia 28 a 30

de abril de 2014, no

Instituto de Letras da

Universidade Estadual

do Rio de Janeiro, no

qual foram realizadas

conferencias, sessões

de comunicações e

lançamentos de livros

que configuraram

reflexões e discussões sobre o universo

fantásticos em diversas linguagens.

Entre comunicações em simpósio

apresentadas durante o evento (Re)

Visões do Fantástico, destacamos aqui as

ocorridas em Espaços, corpos e subjetivi-

dades insólitas e hor-

ríficas na literatura e

no cinema coordenado

por Marisa Martins

Gama-Khalil (UFU),

Nilton Milanez (UESB –

Vitória da Conquista) e

Cecília Barros-Cairo

(UESB – Vitória da

Conquista). Este sim-

pósio teve a finalidade de reunir pesquisas

que refletiram a respeito das formas como

o espaço e/ou os corpos figurativizados

nas narrativas fantásticas - literárias ou

fílmicas - agregados a um trabalho com a

subjetividade são capazes de fazer irrom-

per uma ambientação insólita. Neste sim-

pósio, ocorreram quatro sessões de co-

municação, as quais foram divididas entre

os dias 28/04/14 (segunda-feira) e

29/04/14 (terça-feira).

Em meio às comunicações das

sessões I e II, acontecidas na segunda-

feira, foram comunicadas Sanidade ou

loucura? O caso do finado Mr. El-

vesham, de H. G. Wells, apresentada por

Adilson dos Santos (UEL), A memória do

rosto criminoso no cinema e o discur-

so jurídico-biológico: mecanismos e

estratégias de controle na constitui-

ção de uma subjetividade infame, por

Cecília Barros-Cairo (UESB), Monstros

Página 2 O Corpo

de cima e de baixo: uma análise do cor-

po monstruoso nos filmes da Xuxa, co-

municada por Ceres Alves Luz (UESB), A

memória dos sujeitos em O Drácula, por

Jamille da Silva Santos (UESB), Corpo,

espaço e transgressão: o discurso do

horror na pornochanchada brasileira

dos anos 1980, exposta por Tyrone Couti-

nho Chaves Filho (UESB), O corpo do zum-

bi no cinema e o que essa produção

discursiva de horror fala sobre nós

na atualidade, por Renata Celina Brasil

Maciel (UESB) e Dor, horror e cruel-

dade no insólito ficcional: a abjeção

no conto A causa secreta de Macha-

do de Assis, apresentada por Mariana

Silva Franzim (UEL).

Referente às comunicações

das sessões III e IV, ocorridas na terça-

feira, foram transmitidas Corpo, sub-

jetividade e monstruosidade: a cons-

tituição da criança no filme O Orfanato,

apresentada por Aliúd Almeida (UESB),

Corpo, subjetividade e as possibilidades

discursivas no Gore: Análise de Two

thousand maniacs, de Herschell Gordon

Lewis de 1964, por Ueslei Pereira de Je-

sus (UESB), Discurso e sujeito de sexua-

lidade na materialidade fílmica de Mata-

dores de vampiras lésbicas, comunicada

por Mirtes Ingred Tavares Marinho (UESB),

Processos de virilização do corpo da

mulher violência e horror urbanos do

programa jornalístico baiano Na Mira,

por Bianca Santos Anjos de Oliveira

(UESB) e Medo líquido e crise de segu-

rança pública: o (re)orquestrar dos

corpos no videomonitoramento ostensi-

vo, exposta por Analyz Pessoa-Braz

(UESB).

Toda a programação ocorrida, a

arquitetura do evento, a equipe organiza-

dora e os resumos referentes aos traba-

lhos comunicados durante o evento (Re)

Visões do Fantástico podem ser acessa-

dos na versão digital do ―Caderno de Resu-

mos e Programação‖ do evento, o qual

encontra-se disponível ao clicar aqui.

Página 3 O Corpo

ENTRE SELFIES, CURTIDAS E SUBJETIVIDADES: SOBRE OS SUJEITOS CONTEMPORÂNEOS E O CUIDADO DE SI

Ederson Luís Silveira *

Michel Foucault é um pensador

cuja influência se expande cada vez mais

em diversas áreas do saber e isso talvez

se deva em grande parte ao fato de que os

textos do autor permitem olhares múlti-

plos e redirecionamentos que podem ser-

vir como ponto de partida para diversas

problematizações. Sua obra aponta para

modos de perceber diversos conceitos

como a história, o sujeito, a modernidade e

a questão do poder, entre outros. Seja a

partir da investigação do que torna possí-

veis os enunciados em determinada con-

juntura histórica ao invés de outros ou a

desnaturalização dos saberes sobre o

corpo, o direito e a vida dos seres huma-

nos em sociedade, suas obras trazem pro-

vocações que ampliam horizontes e mos-

tram que a reordenação dos saberes é um

processo de abertura para novos proble-

mas, novas perspectivas que leva a consti-

tuição de diferentes objetos e diferentes

saberes.

Em certo sentido, ler os livros de Foucault

é como passear pelo deserto. Paisagem

ora desoladora, ora magnífica, na qual nenhuma trilha se desenha a não ser aque-

la que o próprio caminhante cunha com

seus passos; lugar sem lugar onde nada

permanece. Mas não se trata do deserto

conceitual da fenomenologia, no qual toda

exuberância é miragem; trata-se de um

espaço à primeira vista monótono, onde a

ausência de marcas familiares nos faz,

muitas vezes, andar em círculos. No entan-

to, o deserto é a apoteose da luz: onde

tudo é visível e não há como se esconder.

Nem todo mundo está disposto a passeios tão inóspitos. Nenhuma reconciliação, ape-

nas batalhas: entre a palavra e a coisa, entre a história e a filosofia, entre o pen-

samento e o seu lado de fora, entre pode-

res e resistências, entre sujeito e si. Ne-

nhuma promessa, nenhuma redenção: ape-

nas perigos. [...] Nenhuma teleologia, ne-nhum otimismo: apenas desafios sempre

renovados. (MENDES JÚNIOR, 2008, p. 75)

No presente trabalho, pretende-

mos lançar luzes para algumas reflexões a

partir dos (possíveis) modos de subjetiva-

ção na atualidade a partir de Foucault. O

diálogo com outros autores, seja partindo

do autor mencionado, seja ampliando o

campo de análise será estabelecido no

sentido de somar considerações que ilu-

minem questões referentes ao campo

mencionado. Desse modo, atentando para

o estudo dos ―cuidados de si‖ em Fou-

cault, levaremos em consideração a

questão de que os comportamentos e

saberes referentes aos sujeitos advêm de

um poder disciplinar. Por isso, em Fou-

cault, os sujeitos podem ser dóceis ao

poder, assim como servir de instrumento.

Assim como o cuidado de si apareceria

como uma forma de conversão ao poder e

como uma forma ter controle sobre ele.

Neste contexto, a vida enquanto

objeto de cuidado aponta para uma

―operação‖ do sujeito em relação a ela,

em que se torna possível colocar à prova,

transformar-se, tornar-se outro. É a par-

tir destas técnicas de si que se torna

possível inferir como os sujeitos são pro-

Página 4 O Corpo

*Mestrando de Linguística pela Universida-

de Federal de Santa Catarina—UFSC, E-

mail: [email protected] .

duzidos por um poder disciplinar, através

da nomeação daquilo sobre o qual as disci-

plinas investem: o desejo, o corpo os pen-

samentos, etc. De acordo com Muriel Com-

bes (2011), não existe nem alma nem corpo,

apesar das divisões operadas em diferen-

tes momentos da história, mas, condutas

subjetivas. Neste sentido que as técnicas

de dominação por si só não bastam para

constituir sujeitos, porque falta a conside-

ração, para o autor, das técnicas de si, e é

também a partir deste nível que se torna

possível perceber as relações entre poder

e a vida.

Dessa forma, em Combes (2011), a

análise do biopoder aponta para as técni-

cas de si, a mediação do sujeito, porque a

vida não é apenas alma ou apenas corpo, já

que é uma vida passível de condutas sus-

cetível de adotar práticas e direcionamen-

tos diferentes. O próprio Foucault reco-

nhece, a certa altura

talvez eu tenha insistido demais, quando

estudei os manicômios, as prisões, etc. nas técnicas de dominação. É verdade que

o que chamamos de ‗disciplina‘ é algo que

tem uma importância real nesse tipo de instituições. Mas não é senão um aspecto

da arte de governar em nossas socieda-des. (FOUCAULT, 2003, p. 171).

Estas questões destacadas por

Foucault merecem atenção sobretudo em

relação a forma como são constituídas as

subjetividades. Dessa forma, podemos

pensar que um cuidado de si revela, con-

forme já mencionamos, modos de olhar

para si e operar sobre sua vida na possibi-

lidade de transformá-la. Sendo a discipli-

narização dos corpos um tema recorrente

em Foucault aqui se pode destacar que ela

parte tanto de fora (governo dos outros –

e/ou efeito de uma contingência histórico-

social - sobre o sujeito e o sujeito enquan-

to efeito das relações de poder enquanto

feixe de relações) quanto do sujeito em

relação a si mesmo.

Assim, não se pode deixar de lado

a questão disciplinar, mesmo quando esta

passa a ser considerada um dos fatores

que nos permitem perceber a arte de go-

vernar. Se a disciplina sanciona atos,

―avalia os indivíduos com a verdade, a pe-

nalidade que ela põe em execução se inte-

gra no ciclo de conhecimentos dos indiví-

duos‖ (FOUCAULT, 2004. P. 162). É este

conhecimento que possibilita a exposição

dos indivíduos, o que os torna, ―fiscais de

si mesmos‖. Os comportamentos e sabe-

res referentes aos corpos, neste sentido,

advêm dessa produção do poder discipli-

nar. Algumas vezes, o poder disciplinar

está tão atrelado à vida social que se torna

difícil conhecer sua ordem de aparecimen-

to, porém, ele passa a ser percebido a

partir de seus efeitos nos corpos discipli-

nados.

Aqui se torna relevante destacar

que estamos em busca de provocações

que considerem uma ―história do presen-

te‖ tal como aquela sob a qual se assen-

tam os estudos de Piovezani (2004), Sar-

gentini (2004) e Milanez (2009), em que o

discurso é percebido a partir de seus fun-

cionamentos e seus efeitos na constituição

dos sujeitos. Dessa forma, partiremos aqui

do princípio norteador de que ―os modos

de subjetivação produzem sujeitos singula-

res e, portanto, mostram, por meio de

análises de discursos, os procedimentos

mobilizados para a produção dos sujei-

tos‖ (FERNANDES, 2012, p. 86).

Para Fernandes (2014), uma his-

tória crítica da subjetividade a partir dos

textos de Foucault aponta para subjetivida-

des que são determinadas pela exteriori-

dade assinalando assim transformações

históricas, sociais e culturais. Neste senti-

do, para o autor, o discurso passa a ser

percebido enquanto prática, já que provo-

ca, incita deslocamentos e nas materializa-

ções discursivas ocorre a mostra do outro

Página 5 O Corpo

―Os comportamentos e

saberes referentes aos

corpos, neste sentido,

advêm dessa produção

do poder disciplinar‖

enquanto exterior na produção da subjeti-

vidade. De acordo com Fernandes (2012, p.

85), portanto, os cuidados que recaem

sobre o corpo, os exercícios físicos, as

leituras, os ambientes de interação social

―constituem produções discursivas que,

sob a égide do cuidado de si, atuam na

produção da subjetividade‖. Como diversos

discursos apontam para (re)configurações

de saber sobre os sujeitos que incidem em

formas de subjetivação que apontam para

a exterioridade constitutiva das subjetivi-

dades, é preciso perceber o discurso co-

mo algo inteiramente distinto do lugar ―em

que vêm se depositar a se superpor, como

em uma espécie de inscrição, objetos que

teriam sido instaurados anteriormente. Os

objetos são construídos no discurso, não

preexistem à fala‖ (FOUCAULT, 1995, p.50).

Por isso, aqui cabe uma ressalva a que

―espécie‖ de história procuraremos mobi-

lizar: a história como terreno de desconti-

nuidades, não aquele ―conceito de História

que implica procedimentos envelhecidos e

cristalizadores, presos à ideia da continui-

dade, necessidade e totalidade e à figura

do sujeito fundador.‖ (RAGO, 2002, p. 2).

Podemos acentuar, assim, a im-

portância de recuperar o olhar de Foucault

que advertiu sobre a perda das multiplici-

dades, que encerra a História em concei-

tos prontos, eliminando a historicidade dos

fenômenos, que aponta para a ilusão dos

que a tem como objeto de saber, em que

parecia estar ligada a um contato com os

mortos, acreditando revelar o que ―de

fato‖ aconteceu (RAGO, 2002).

Inscrevemo-nos, portanto, levan-

do em consideração as ressalvas de Fou-

cault sobre o olhar para a história, no ter-

reno das descontinuidades. Pensar assim

implica entender que não existe ―a‖ histó-

ria, ou ―a‖ sociedade, mas uma multiplici-

dade de discursos enquanto práticas em

que o exterior constitui a subjetividade e

combater a noção de ―origem‖ porque

pensar na ―origem‖ seria sustentar a ver-

dade em solo firme, originário, linear e

inequívoco. Cabe lembrar a partir de Fou-

cault e de sua intervenção no debate com

o historiador Jacques Léonard, em 1980, a

necessidade de refletir sobre estas ques-

tões, pois

É preciso desmistificar a instância global

do real como totalidade a ser reconstruí-

da. Não existe ―o‖ real que nós reencon-traríamos se falássemos de tudo ou de

certas coisas mais ―reais‖ do que outras, e que nos faltaria em proveito de abstra-

ções inconsequentes, se nos limitássemos a fazer aparecer elementos e outras rela-

ções. Deveríamos talvez interrogar o prin-

cípio, frequentemente implicitamente acei-

to, de que a única realidade à qual a histó-

ria deveria pretender, é a própria socieda-

de. Um tipo de racionalidade, uma maneira

de pensar, um programa, uma técnica, um

conjunto de esforços racionais e coorde-

nados, objetivos definidos e perseguidos,

instrumentos para atingi-lo, etc., tudo isso é o real, mesmo se não pretende ser a

própria ―realidade‖, nem ―a‖ sociedade

inteira. E a gênese dessa realidade, desde

que se faça intervir os elementos perti-

nentes, é perfeitamente legítima. (...) Isto é

o que o historiador construído pelo senhor

Léonard [denominado por Foucault de ca-

valeiro da exatidão] não entende (escuta),

no sentido estrito do termo. Para ele, não

há senão uma realidade que é, ao mesmo

tempo, ―a‖ realidade e ―a‖ sociedade.

(FOUCAULT, 2003, p. 15)

Marcados por esta perspectiva,

de que não há ―a‖ história, ―a‖ realidade,

mas subjetividades produzidas pelo exteri-

or, em que os enunciados em circulação na

sociedade vão inscrevendo-os nas rela-

ções de poder e vão sendo discursivamen-

te produzidos, revelando posições–sujeito

que integram práticas de exercício de po-

der inseridas em ambientes de tensão.

Estas relações implicam na produção das

subjetividades. Cabe aqui destacar que em

Foucault, o poder ―está em toda parte, não

porque englobe tudo e sim porque provém

Página 6 O Corpo

de todos os lugares‖ (FOUCAULT, 1985, p.

89). As formações e transformações his-

tóricas podem ser reveladas através da

análise da dispersão dos discursos que

implicam e determinam a produção das

subjetividades. Estamos no terreno das

movências e descontinuidades. Por isso,

antes de prosseguir aqui vai uma ressalva:

não se trata de apontar para contextos

fixos de subjetivação, mas para possibili-

dades de análises a partir da conjuntura

social, histórico e cultural em que nos

encontramos.

Após estas reflexões anterior-

mente mencionadas, cabe aqui destacar as

redes sociais enquanto lugares de entrete-

nimento, em que os sujeitos falam de si

para o outro e constituem identidades num

tempo marcado prioritariamente pela

cultura da imagem, em que todos são

transformados ―em platéia ou em multidão

de consumidores da (aparente)

subjetividade alheia‖ (KEHL, 2004, p.66).

Neste contexto, os discursos também

passam a ser considerados ―enquanto

enunciados materialmente existentes (...)

proposições verdadeiras e constituem

princípios aceitáveis de

comportamento.‖ (FOUCAULT, 2004, p. 389

-390). Assim,

na tentativa de discutir essas questões, os

estudos alicerçados no solo

epistemológico da análise de discursos

tem-se voltado de forma constante para o

exame de diversos enunciados que

circulam socialmente e integram-se a

outros enunciados, (nas palavras de

Foucault) como um nó em uma rede [...]

erigidos por meio dos discursos na

superfície instável da língua(gem).

Esquadrinhar esses discursos pode ser de

utilidade para interrogarmos sobre quem

somos nós hoje, de acordo com o que já

inquietava as teorizações foucaultianas,

perscrutando genealogicamente a

preocupação nietzschiana do como se

chega a ser o que é. (VIEIRA & SILVEIRA,

2014, no prelo, grifo dos autores).

Chama atenção, no contexto

mencionado, a emergência de dois

fenômenos. A presença frequênte dos

chamados selfies na cultura

contemporânea e a obsseção de muitos

usuários em conquistar seguidores e

sujeitos caracterizados a partir de uma

função: curtir postagens. Somando a isso

um olhar mais atento para outras redes

como o twitter (em que a popularidade de

um membro se estabelece a partir da

frequência das retwittadas de suas

postagens ou do número de seguidores)

podemos perceber outros modos de

constituir subjetividades: através da

alteridade. Em entrevista a revista

eletrônica ―Trópico‖ (FELDMAN, 2007), a

antropóloga argentina Paula Sibilia

defende que na atualidade haveria um

deslocamento dos eixos em torno dos

quais as subjetividades são construídas, as

quais tenderiam a uma gradativa

exteriorização do eu e a uma construção

de si alterdirigida. De acordo com a

autora, proliferara-se cada vez mais um

tipo de subjetividade que parece carecer

da confirmação do olhar alheio para

consumar a sua existência: um eu que

precisa aparecer para ser.

Para a autora, temos na contem-

poraneidade a presença de relações entre

as novas formas de interação a partir da

web que apontam não para a propagação

de uma obra de si através do reconheci-

mento das singularidades dos sujeitos,

mas estar ali, onde outros podem reconhe-

Página 7 O Corpo

“A presença frequênte

dos chamados selfies na

cultura contemporânea e

a obsseção de muitos

usuários em conquistar

seguidores e sujeitos

caracterizados a partir de

uma função: curtir

postagens”

cer e legitimar a existência daquele que se

exibe. A internet hoje, sobretudo as redes

sócias, para a autora, atuariam como fer-

ramentas auxiliares na recriação de si

mesmo. Desse modo, personalidades di-

versas podem ser criadas a disseminadas

a espera da legitimação dos comentários-

resposta aos enunciados verbais e imagé-

ticos ou sincréticos que são apresentados

online nas postagens. Para ela, a persona-

lidade subjetiva construída na net objetiva

a exposição direcionada à visibilidade dos

outros usuários. Dessa forma, em seu

livro ―O show do eu‖ (SIBILIA, 2008a), a

presença do eu se dá a partir da busca

incessante por tentar ―ser alguém‖ em

relação à alteridade legitimadora.

Assim, para Riesmam (1995) essa

transformação de caráter – do que se é

para o que se quer ser – ocorre no entor-

no da influência dos meios de comunicação

de massa e do consumismo mercadológico

atual. Há uma mudança de eixo na constru-

ção de quem se é de introdirigido para

alterdirigido. Se antes a subjetividade foi

percebida a partir de uma solidez interna

pessoal e privada, o que vale para ela (e

para Foucault, diga-se de passagem) são

os efeitos do exterior sobre a produção de

subjetividades. Para ela, valem os efeitos

que esta personalidade criada são capazes

de provocar no outro ―pois sob o império

das subjetividades alterdirigidas, o que se

é deve ser visto – e cada um é aquilo que

mostra de si‖. (SIBILIA, 2008a, p.235). Por

isso que para a autora, os modos de cons-

trução do ―eu‖ e as bases sobre os quais

se sustenta este edifício mudaram pela

necessidade de tornar público algo que

deveria ser privado.

Nessa nova perspectiva, a vida e as rela-

ções ganham um novo sentido e a pessoa

só existe se aparece para alguém. ―Uma

das principais manifestações dessa virada é um crescente desejo de ser visto, uma

vontade de se construir como um eu visí-

vel, como um personagem que os outros

podem ver e, graças a esse olhar recon-

fortante, confirmam a

existência de quem se

exibe‖, analisa. Assim,

o homem moderno tem uma personalidade

alterdirigida ou orien-

tada para o olhar dos

outros. ―Isto não acon-tece apenas na Inter-

net, é claro, mas nas

diversas práticas con-temporâneas onde

impera esse desejo

desesperado de que os demais nos enxerguem

e nos observem para que possamos exis-

tir‖, explica. (SIBILIA, 2008b, p.10)

Parece que na constituição das

subjetividades nos tempos de hoje cabe a

consideração de Mick Jagger (1993, p.36):

―Desde que minha foto esteja na primeira

página, não quero saber o que escreveram

sobre mim na página noventa e seis‖. Isso

aponta para a questão do cuidado de si, já

que o sujeito age adotando parâmetros de

comportamento já estabelecidos pela

exterioridade de si, copiando-os. Assim, os

selfies, o twitter e a busca por seguidores

se naturalizam enquanto indícios de

comportamento e a enunciação do sujeito

sobre si passa a ser vista com as vestes

de uma espécie de ―confissão‖, em que se

diz ou age de acordo com os

comportamentos previstos, visando a

aprovação do grupo. Max Weber em algum

momento mencionou que o homem está

preso a uma teia de significações que ele

mesmo teceu. Foucault pode servir para

Página 8 O Corpo

“[...] Assim, os selfies, o

twitter e a busca por

seguidores se naturalizam

enquanto indícios de

comportamento e a

enunciação do sujeito

sobre si passa a ser vista

com as vestes de uma

espécie de

„confissão‟ [...]”

lançar luzes a esta situação, incentivando

com seus escritos a tessitura de novos

olhares sobre os modos de subjetivação na

contemporaneidade, em que se percebam

os sujeitos e sua relação com o poder, a

possibilidade de dizer não à lei disciplinar

que torna os corpos dóceis e como os

feixes de poder vão se instaurando

enquanto normas de comportamento na

sociedade a partir de atos repetidos (e

repetíveis).

Sobre essa construção de gestos

e rostos, podemos afirmar que se pode

perceber nela algo de vivo, vibrante e

fecundo, guiado pela utilidade de

legitimização de corpos para que por

debaixo das camadas das linhas

descontínuas dessas subjetividades

alterdirigidas se possa ver a relação do

pesquisador com seu objeto de estudo tal

qual menciona Antoine de Baecque (2014)

sobre a relação de Foucault com a pintura:

O que me agrada com a pintura, reconhece

ele, é que se é verdadeiramente obrigado a vê-la. Então aí, é o meu descanso. É uma

das raras coisas sobre as quais escrevo

com prazer (...). (BAECQUE, 2014, p. 269) E um dos mais belos textos de Foucault, ―La

pensée du Dehors‖ sobre Maurice Blanchot, publicado em Critique, em 1966

(...) [ele diz]: “Ser atraído não é ser convidado pela atração do exterior; é

antes experimentar no vazio e na

necessidade, a presença visual do exterior. Como esta, pura atração aberta aos

sentidos, não seria essencialmente negligente – deixando as coisas serem o

que elas são, deixando o tempo passar e

voltar, deixando os homens avançarem

para ela – visto que ela é o exterior infinito, visto que nao há nada que caia fora

dela, visto que ela desliga na pura dispersão todas as figuras da

interioridade? (BAECQUE, 2014, p. 275)

A partir das palavras de Foucault,

que sejamos instigados a olhar para essas

novas configurações de subjetividades

(com matizes de cor tal qual a pintura)

constituídas na relação com a

exterioridade e que sejamos afetados

pelos caminhos investigativos em busca da

escavação das descontinuidades que

possam emergir. Dessa forma, não se

trata de fixar os sujeitos, mas em partir

das movências de sua constituição e da

subjetividade pelos discursos através das

formações e transformações históricas

bem como as implicações e determinações

da produção das subjetividades.

Que tal aproximarmos as lentes

de nossas câmeras para podermos

fotografar também o que está por trás

deste voyeurismo desmedido, em que a

proliferação de discursos sobre a vida

privada articula-se com o reconhecimento

de confidências e revelações como

mecanismos inequívocos de constituição

dos sujeitos? Entre o dizer de si, sobre si e

o olhar do outro sobre mim está um

terreno de investigações que podem

―levantar o tapete‖ do que está por trás da

naturalização dos saberes sobre si. Se o

cuidado aparece como alternativa ao

poder que incinde sobre os corpos e dos

corpos em relação aos outros e a si,

porque há tantos indícios, nas redes

sociais de práticas que visem a

reprodutibilidade de comportamentos

naturalizados ao invés do cuidado de si

situado enquanto oposição ao controle ?

Por trás do apareço, logo existo se

escondem camadas de descontinuidades a

espera de um investigador atento que

esteja disposto a correr o risco de andar

em círculos no deserto, sem conforto ou

redenção. Apesar disso, poder-se-á sair

enriquecido, já que o deserto é a apoteose

da luz: onde tudo é visível e não há como

se esconder.

Referências:

ALMEIDA, F. Q. Pedagogia Crítica da Educa-

ção Física no Jogo das Relações de Poder.

In: Revista Movimento, Porto Alegre; v. 12,

n. 3, p. 141-64, set./dez. 2006.

BAECQUE, A. ―As palavras e as imagens‖.

Página 9 O Corpo

“Entre o dizer de si,

sobre si e o olhar do

outro sobre mim es-

tá um terreno de in-

vestigações [...]”

In: ARTIÈRES, P. et. al. (orgs.) Michel Fou-

cault. Tradução: Abner Chiquieri. Rio de

Janeiro: Forense, 2014, p. 269 - 275

COMBES, M. La vie inseparée: vie et suje

tau temps de la biopolitique. Paris: Ditt-

mar, 2011.

FELDMAN, I. ―O pavor da carne‖ – entrevis-

ta com Paula Sibilia. In: Revista Trópico,

jan. 2007. Disponível em: http://

p.php.uol.com.br/tropico/html/

textos/2853,1.shl

FERNANDES, C.A. Discurso e sujeito em

Michel Foucault. São Paulo: Intermeios,

2012.

FOUCAULT, M. A coragem da verdade o

governo de si e dos outros II: curso no

Collège de France (1983-1984). Tradução

de Eduardo Brandão. São Paulo: WMF Mar-

tins Fontes, 2012.

___________. A hermenêutica do sujeito.

Trad. Márcio Alves Fonseca e Salma Tannus

Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

___________. Ditos & escritos IV. Organi-

zação de Manuel Barros da Motta. Tradu-

ção de Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2003.

____________. História da sexualidade: a

vontade de saber. v. I. Trad. Maria Thereza

Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições

Graal, 1985.

______________. “Os recursos para o bom

adestramento‖. In: FOUCAULT, M. Vigiar e

punir: nascimento da prisão. 29ª

ed. Tradução de Raquel Ramalhete.

Petrópolis, RJ: Vozes, 2004, p. 153-72.

______________. “Sexualidade e Solidão”.

In: Ditos & escritos IV. Organização de

Manuel Barros da Motta. Tradução de Vera

Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Fo-

rense Universitária, 2003.

JAGGER, M. Imprensa. In: CASTRO, R. (Ed.).

O poder de mau humor – uma antologia

de citações sobre política, dinheiro e

sucesso. São Paulo: Companhia das Letras,

1993.

KEHL, M. R. O espetáculo como meio de

subjetivação. In: BUCCI, E.;KEHL, M. R.

Videologias: ensaios sobre televisão. São

Paulo: Boitempo, 2004.

MENDES JUNIOR, G. B.

A. ―Foucault e a Prática‖.

In: PASSOS, I. C. F. (Org.).

Poder, normalização e

violência. Belo Horizonte:

Autêntica Editora, 2008,

p. 75-81

MILANEZ, N. ―A possessão da subjetividade:

sujeito, corpo e imagem.‖ In: SANTOS, J.B.

C. (Org.) Sujeito e subjetividade:

discursividades contemporâneas.

Uberlândia: EDUFU, 2009, p. 251-259.

RAGO, M. ―Libertar a história‖. In: RAGO, M.;

ORLANDI, L.B.L.; VEIGA-NETO, A. Imagens de

Foucault e Deleuze: ressonâncias

nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A

Editora, 2002.

RIESMAN, David. A multidão solitária. São

Paulo: Ed. Perspectiva, 1995

SARGENTINI, V. M. O. et. al. ―Discursos

sobre o trabalho e a construção de

identidades‖ In: FERNANDES, C.A. et. al.

Sujeito, identidade e memória.

Uberlândia: EDUFU, 2004, p. 91-109.

SIBILIA, P. O show do eu: a intimidade

como espetáculo, Rio de Janeiro: Nova

Fronteira. 2008a.

SIBILIA, P. Show do eu: a vitrine da própria

personalidade. In: Revista do Instituto

Humanitas Unisinos (IHU). São Leopoldo:

Instituto Humanitas Unisinos, n. 203, ano

VIII, 2008b, p. 10. Versão online disponível

em http://www.ihuonline.unisinos.br

SILVA, F. V.; SILVEIRA, E.L. #aiqueromantico:

a intimidade em três cliques. In: Domínios

da Lingu@gem, Uberlândia, Vol. 2. n. 2,

2014 (no prelo).

Página 10 O Corpo

Página 11 O Corpo

PALAVRAS COM EFEITO NEOLÓGICO NA PARANOIA: O CASO SCHREBER (FREUD, 1911)

Nirvana Ferraz Santos Sampaio *

1 Introdução

Este artigo apresenta consider-

ações sobre o efeito neológico que deter-

minadas palavras apresentam em

―Memórias de um doente dos nervos‖,

Schreber (1903). Para tanto, diferen-

ciamos o estatuto que o neologismo rece-

be em lexicologia nas formações oníricas

etc. do estatuto que o neologismo recebe

no âmbito da escrita delirante. Dessa for-

ma, questionamos: Qual o papel do neolo-

gismo na escrita delirante de Shreber?

Uma possível resposta: sintoma/suporte -

o neologismo acontece no delírio e tem

relação com a ideia delirante em desenvol-

vimento. Dessa forma, os ―neologismos‖

circundam as representações delirantes e

significantes em trânsito no delírio, ameni-

zando a angústia de Shreber.

2 Percurso teórico Metodológico

Para a realização deste estudo,

consideramos como ponto de partida o

texto, de Freud (1911), ―Notas psicanalíticas

sobre um relato autobiográfico de um caso

de paranóia‖ (dementia paranoids). Freud

(1911) demonstra que não há distúrbio ou

déficit de inteligência na psicose. Dessa

forma, ele considera o delírio como uma

tentativa de cura, uma reconstrução, cujo

objetivo é o de organizar uma defesa con-

tra o que pode suscitar a angústia. Freud,

em 1915, no texto ―O inconsciente‖, formula

que o psicótico toma as palavras como

coisas. Assim, compreende-se o delirante

como um sujeito habitado possuído pela

linguagem1. O Outro2 do psicótico, por não

conter o Nome-do-Pai, a lei, ―apresenta-se

como a figura que dele goza como de um

objeto que lhe pertence. Tal é o caso do

Deus de Shreber.‖ (cf. Quinet, 1990, p. 21).

Assim, na psicose acontece o mecanismo

que Lacan chamou de foraclusão do Nome

-do-Pai, sendo este anterior a qualquer

possibilidade de recalque, que, para se

realizar, exige que antes tenha havido um

reconhecimento do elemento a ser recal-

cado.

Ao retomar Freud (1911), verifi-

camos que a

investigação psicanalítica da paranoia não seria possível se os doentes não tivessem a peculiaridade de revelar, ainda que de forma distorcida, justamente o que os demais neoróticos escondem como seg-redo. Dado que os paranoicos não podem

ser impelidos a vencer suas resistências

internas e, de toda forma, dizem apenas o

que querem dizer, precisamente no caso

dessa afecção o relato escrito ou a histó-

ria clínica impressa pode funcionar como

substituto do conhecimento pessoal do

doente. (itálico nosso)

Dessa forma, ao revelar em

dizeres, em alucinações psicóticas, é

possível tecer, tal como Quinét (1990),

que se pode acentuar a psicose como

uma estrutura clínica, uma ―estrutura

que se revela no dizer do sujeito […]

acentuar que na psicose, assim como na

neurose, trata-se da estrutura da lin-

Página 12 O Corpo

* Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas; professora titular de Linguística na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia-

UESB; professora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UESB. Lider do Grupo de Pesquisa e Estudo em Neurolinguística

CNPq/UESB. E-mail: [email protected] 1 Visto que, segundo Quinet (1990), na psicose ―o Outro fala, aparece às claras, provocando no sujeito todo tipo de reação: terror, pânico, exaltação‖. 2 O Outro (Autre, em francês) é o termo utilizado por Lacan para definir um lugar simbólico, o tesouro dos significantes, o campo da linguagem. O Outro

não é o semelhante, distinguindo-se do parceiro imaginário, ou seja, o outro. Esse termo foi usado pela primeira vez no Seminário 2, o eu na teoria de

Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955), distinguindo-o do outro.

“[…] os “neologismos”

circundam as repre-

sentações delirantes e

significantes em trânsi-

to no delírio, amenizan-

do a angústia de

Shreber”

guagem, ou melhor, da relação do sujeito

com o significante‖. As alucinações são

intensificadas no verbo e não somente de

um distúrbio dos órgãos do sentido. As-

sim, a cadeia significante se impõe ao

sujeito em sua dimensão de voz, as aluci-

nações na psicose podem acontecer,

segundo Lacan3, em duas ordens: (i) na

ordem do código e (ii) na ordem da men-

sagem. Em (ii), há o destaque das men-

sagens interrompidas que revelam a

quebra de cadeias significantes e, dentre

os fenômenos que ocorrem em (i), en-

contram-se:

1 - Os neologismos – não apenas de for-

ma, palaras novas, mas também de em-

prego, isto é, palavras do código em-

pregadas de forma particular.

2 - Fenômenos em que o vazio da signifi-

cação predomina, ou seja, em que o sig-

nificante aparece monotonamente sem

sentido algum.

3 – A intuição – que é um efeito de signif-

icante em que o vazio linguístico da sig-nificação é substituído por uma certeza.

(QUINET, 1990, p. 20)

Esses fenômenos de código

testemunham, segundo Quinet (1990), a

separação entre o significante e o signifi-

cado por falta do ponto-de-basta, o Nome

-do-Pai. Lacan apresenta o esquema L,

que é uma forma simplificada do estádio

do espelho, e a partir do qual podemos

inferir que o psicótico estaria numa ten-

tativa de constituição do eixo a-a‘, que é

um eixo do imaginário, em uma identifi-

cação imediata com o outro, sem a me-

diação de um Outro, barrado, o qual apon-

taria para um sujeito dividido.

Uma identificação imediata, que

em nível imaginário, vai sustentando o

sujeito na sua realidade, evitando, dessa

forma, que ele surte. Nesse sentido, Quinet

(1990) faz referência às bengalas

imaginárias, afirmando que

Por falta de referência simbólica o sujeito psicótico funciona no registro imaginário,

onde o outro é tomado como espelho e

modelo de identificação imediata. [...] O

psicótico encontra-se, muitas vezes, antes

de um primeiro surto, numa relação dual

com o duplo imaginário. [...] O sujeito

psicótico é, pois, levado a servir- se de

bengalas imaginárias que não lhe dão apoio

quando ele tropeça no buraco da signifi-

cação ausente. (QUINET, 1990, p. 21-22).

Dessa maneira, o que mantém o

psicótico estabilizado, ou pelo menos fora

da crise, são as bengalas imaginárias,

sustentadas no eixo narcísico, bengalas

das quais ele se dispõe como uma forma

de se relacionar consigo mesmo e com o

mundo. Na medida em que há uma dis-

solução imaginária, onde essas bengalas

não mais servem de sustentação para o

sujeito, tem-se a presentificação do real e

consequentemente o desencadeamento da

crise psicótica.

Observarmos que o que auxilia o

sujeito para que ele não se descompense e

o que o estabiliza na ―pós- crise‖ são os

manejos, antes de uma crise, e o rema-

nejo, após a crise, em nível imaginário que

são feitos pelo sujeito restabelecendo o

duplo especular do estádio do espelho.

Compreendemos que, para

discutir a elaboração de neologismos na

escrita de Schreber, o que nos conduz

neste trabalho, é necessário considerer

que o estatuto que a palavra com efeito

neológico (PINCERATI, 2009) tem não é o

mesmo estatuto que recebe em lexicolo-

gia. Segundo Dubois (1973:430), a neologia

é o processo de formação de novas uni-

dades léxicas. O neologismo ―é toda pa-

lavra de criação recente ou emprestada

há pouco de outra língua, ou toda acepção

de uma palavra já antiga‖. Por certo, o

termo "neologismo" vem de neologia, do

grego: ne(o)- = novo + -logia = ciência e

significa palavra recém-criada ou palavra

com um novo significado. Desse modo,

pode-se dizer que a língua está sempre

em processo de mudança linguística: al-

Página 13 O Corpo

3 Conferir Quinet (1990, p.19).

“As alucinações são

intensificadas no

verbo e não somente

de um distúrbio dos

órgãos do sentido”

gumas palavras caem em desuso, assim

como novas unidades léxicas vão sendo

incorporadas no léxico. No texto de

Schreber, os neologismos não podem ser

isolados do delírio em que ocorre, ou

seja, são circunscritos a fala/escrita de

Shreber, em meio ao quadro delirante e

só podem ser encontradas a partir da

análise dos significantes e das ideias

delirantes em trânsito no delírio, não

sendo (necessariamente) passíveis de

serem incorporados a um sistema

linguístico. Visto que se trata de um meio

do psicótico habitar a linguagem

(PINCERATI, 2013).

Em se tratando da escrita de

Shreber, verifica-se a tentativa de recon-

strução do laço social e remissão do

sintoma, ele escreve e, em sua escrita,

surgem os significantes com efeitos neo-

lógicos.

Para a realização deste estudo,

partimos da leitura das traduções de 1)

―Memórias de um doente dos nervos‖,

Schreber (1903), e 2) ―Notas

psicanalíticas sobre um relato autobi-

o g r á f i c o d e u m c a s o d e

paranóia‖ (dementia paranoides), Freud

(1911). Dessa forma, há, de um lado, a

recuperação do conhecimento de Freud

sobre sobre a psicose, e, de outro lado, a

busca dos efeitos neológicos de signifi-

cantes usados por Schreber. Assim, o nos-

so material primordial foi a consulta, a

leitura e o resumo desses textos que per-

mitiram a construção do trabalho que deu

origem a este artigo.

3 Três significates: alguns resultados e

discussão

Nesta sessão, apresentaremos o

caso Schreber, a biografia e a história

clínica, a partir do olhar de Freud, e

discutiremos a partir de três significantes

presentes no seu delírio a diferença entre

neologismo e efeito neológico.

4.1 Sobre Shreber

Daniel Paul Schreber, nasceu em

25 de julho de 1842, em Leipzig, Alemanha.

Schereber é acometido por três crises, ao

longo da sua vida e morre em 14 de abril de

1911, perturbado e intratável, apresentando

sintomas de insuficiência cardíaca.

Schreber considera que seus

dois primeiros internamentos ocorreram

por ―excessiva tensão mental‖, resultante

do ―fardo muito pesado de trabalho‖ (esta

queixa está associada ao segundo inter-

namento) que carregava sobre os om-

bros. Entretanto, antes de assumir a re-

sponsabilidade do cargo de Presidente de

uma Divisão da Corte de Apelação, relata

que já havia tido sonhos relevantes, como

aquele que teve, segundo Freud (1911, p.

18), no qual lhe ocorreu ― ‗a ideia de que

deveria ser realmente bom ser uma mul-

her se submentendo ao coito no ato da

cópula‘ (p.36)‖. Esse sonho é determinan-

te na análise de Freud sobre o caso.O

Dr. Flechsig redigiu, após o primeiro in-

ternamento, um relatório considerando

que Schreber possuía quadro grave de

hipocondria. Schreber relatou nas Memó-

rias que, nesse momento, não houve

qualquer contato com o sobrenatural.

Shreber acusa Flechsig de ―assassino da

alma‖ e inúmeras vezes gritou ―pequeno

Flechsin‖. Em seguida se agravou, tor-

nando-se mais próximo da maneira como

ficou por mais tempo (delírios engenho-

sos envolvendo religião e questões sex-

uais). Esse desenvolvimento do quadro

clínico foi consolidado em relatórios do

Dr. Weber (diretor do Asilo de Sonnen-

stein).

No final do segundo internamen-

to, a partir do início de 1899, os relatórios

asseveravam melhora, indicando que o

paciente tinha condições de se relacionar

normalmente em sociedade e de existir de

Página 14 O Corpo

“[…] ele escreve e,

em sua escrita,

surgem os signifi-

cantes com efeitos

neológicos”

forma autônoma. Quando Schreber

moveu ação judicial para recobrar sua

capacidade civil, Dr. Weber posicionou-se

contra (embora reconhecendo as quali-

dades acima mencionadas). Em 1902, e

apesar de que nunca haja negado o

conteúdo de suas ideias principais (ele

negava a condição de doente mental),

Schreber obteve êxito no Judiciário.

O delírio fundamental de

Shreber era a emasculação (transformar

-se em mulher). Para Freud, deve-se

investigar os impulsos da mente que

causam o delírio, bem como a história de

seu desenvolvimento4 e não somente o

que se exaure no produto do delírio.

Para Dr. Weber, o delírio teve como mo-

tor a ambição, do paciente, de ser o Re-

dentor da humanidade, e que o meio, para

isso, era a sua emasculação. E essa

análise pareceu ser conclusiva sobre o

caso.Entretanto, o estudo das Memórias

aponta também para a fantasia de se

transformar em mulher (inclusive em um

sonho que teve antes do primeiro interna-

mento), e o papel de Redentor ficaria em

plano secundário. Dessa forma, o delírio de

emasculação tinha como propósito

(contrário à Ordem das Coisas) o seu

abuso sexual por outras pessoas e apenas

depois veio relacionar-se com a sua fe-

cundação por Deus e com a subsequente

criação de uma ―supercivilização‖ humana

em harmonia com a Ordem das Coisas.

4.2 Sobre o delírio e os efeitos neológi-

cos de três significantes

De acordo com Freud (1911), o

sistema delirante exposto nas Memórias de

Shreber não segue uma ordem clara, o que

exige certo esforço para organizar as

ideias. Dessa forma, é necessário achar

‗método‘ nessa ‗loucura‘ (Freud, 1911, p. 29),

apresentar os pontos de vista de Schreber

sobre ―os nervos, a beatitude, a hierarquia

divina e os atributos de Deus, em sua

aparente (delirante) conexão‖ (FREUD, 1911,

p.29). Os nervos do corpo – estruturas

extraordinariamente finas – contêm a al-

ma humana. Homens são compostos de

corpos e nervos finitos, ao passo em que

Deus é formado apenas por nervos infini-

tos e eternos. Quando os nervos de Deus

assumem qualquer outra forma material,

são chamados de raios.Quando um

homem morre, seus nervos sofrem a be-

atificação (processo de purificação que

consiste em uma sensação de voluptuo-

sidade sexual) antes de se reunirem nova-

mente com Deus. Nessa purificação, as

almas aprendem a língua básica, que é

falada por Deus: um alemão vigoroso e um

tanto arcaico.

Para Schreber havia, também,

um Deus superior e outro inferior (Ariman

e Ormuzd) ambos independentes e em

conflito. O primeiro era mais ligado aos

povos da raça ariana, e o segundo, aos

povos semitas.Schreber afirma que, até

antes do segundo episódio, nunca se havia

convencido plenamente da existência de

Deus. Com base nisso, ele sustenta que

não poderia ter delírios de que se comuni-

cava com Deus quem não tinha firme

crença nele.

Sigmund Freud conclui que,

mesmo após sua redefinição religiosa,

ainda existia o Schreber de crença incer-

ta.Para Freud, Schreber explicou que um

homem com intensa atividade nervosa

pode atrair os nervos de Deus, dos quais

não se pode libertar facilmente, e que foi

isso que ocorreu no seu caso. Confirmou

que, como Deus lidou por muito tempo

apenas como os mortos, deixou de com-

preender os homens vivos. Dessa forma,

foi por essa incompreensão que Deus

Página 15 O Corpo

4 Há, dessa forma, um delírio de perseguiçãoo sexual transformado em um delírio de grandeza religiosa. Nesse delírio, o perseguidor, primeiramente,

era o Dr. Flechsig e, posteriormente, substituído pelo próprio Deus. (cf. FREUD, 1911, p.25)

“Homens são compos-

tos de corpos e nervos

finitos, ao passo em que

Deus é formado apenas

por nervos infinitos e

eternos”

tomou Schreber por idiota e lhe subme-

teu a severas provações.

Freud demonstra que esse Deus

parecia incapaz de aprender qualquer

coisa por experiência. A indignação de

Schreber era tanta, que se punha a ridic-

ularizar Deus, ressaltando que ele era o

único que tinha tal prerrogativa. Dessa

maneira, Schreber encara seu problema

como a luta entre ele e Deus. Schreber

lhe demonstrava reverência, eviden-

ciando uma relação bastante conturbada

entre os dois, contraditoriamente.O

estado de beatitude, para Schreber, está

em estreita vinculação à voluptuosidade.

Se os raios de Deus, ao invadirem o cor-

po de Schreber, perceberem que ele está

experimentando voluptuosidade, toda a

hostilidade cessará. Tem-se, como re-

sultado das alterações em Schreber após

o segundo internamento, que, de homem

sexualmente ascético e ―descrente com

referência a Deus‖ (Freud, p. 43), passou

a demonstrar inabalável crença e

devoção à voluptuosidade. Contudo, não

apenas sua crença era específica, mas

sua sexualidade era, acreditava

Schreber, a de uma mulher, mulher de

Deus. No sistema de Schreber, sua trans-

formação em mulher e sua relação fa-

vorecida com Deus são absolutamente

dependentes de sua atitude feminina para

com Deus.

No delírio de Schreber, há a

presença da ambivalência diante do Deus

Pai, o que pode confirmar a ideia freudiana

de que Deus seria o representante do pai,

no caso Schreber. Visto que Schreber, ao

mesmo tempo em que descreve atributos

excepcionais de Deus e sua hierarquia

divina, afirma que todo o seu poder pode

ser abalado por uma falha na Ordem das

Coisas. Deus, dessa forma, é enfraquecido

quando homens especiais, como o próprio

Schreber, exercem poder atrativo sobre

os raios divinos. Devido a essa atração,

Deus perde os raios dos quais é con-

stituído e se enfraquece. Outra fraqueza de

Deus é não compreender os homens vivos,

pois apenas se comunica com os mortos.

Dessa forma, chega-se a hipótese de que

Deus, no delírio, representava o pai de

Schreber.

A fantasia feminina, que desper-

tou uma oposição tão violenta no paciente,

tinha as suas raízes num anseio, intensifi-

cado até um tom erótico, pelo pai e pelo

irmão. Esse sentimento, na medida em que

se referia ao irmão, passou, por um pro-

cesso de transferência, para o médico,

Flechsig; e quando foi devolvido ao pai,

chegou-se a uma estabilização do conflito.

(FREUD, 1911). Assim, Freud conclui que o

delírio de se haver transformado em mul-

her (desejo homosexual) nada mais era do

que a realização do sonho que teve antes

de mudar-se para Dresden, apesar de ter

lutado contra essa ideia no início. Abaixo,

apresentamos, como amostra, três neol-

ogismos retirados do texto de Schreber,

vejamos:

―Neologismo‖ 1. Nervo5

Deus é, desde o princípio, apenas nervo e

não corpo, portanto algo aparentado à alma humana. Os nervos de Deus, contudo, não existem em número limitado,

como no corpo humano, mas são infinitos

ou eternos. Possuem as propriedades

inerentes aos nervos humanos elevadas a uma potência que ultrapassa tudo o que o

Página 16 O Corpo

5 Ao examinar o dicionário Aurélio (2003), um dos dicionários de uso da língua portuguesa mais consultados, pode-se verificar abalizadas as seguintes

acepções para Nervo - s.m 1. Cada um dos filamentos que servem de órgãos à sensação e ao movimento animal; 2. Tecido fibroso e esbranquiçado,

situado na extremidade dos músculos; 3. Nome dado a vários ornatos e molduras; 4. Cada uma das fibras ou veios das folhas e das pétalas; 5. Cada uma

das tiras de pele, correias, tripas enroladas ou cordas transversais ao dorso, em volta das quais passa o fio da cosedura e que asseguram, assim, a

solidariedade entre o corpo do livro e os planos na encadernação clássica; 6. Cada uma das saliências que se encontram na lombada da cobertura; 7.

Principal agente; coisa essencial; Robustez; energia; 9.Pênis.

Visto que Schreber, ao

mesmo tempo em que

descreve atributos ex-

cepcionais de Deus e

sua hierarquia divina,

afirma que todo o seu

poder pode ser abalado

por uma falha na Ordem

das Coisas

homem possa conceber. Têm, em particu-

lar, a capacidade de se transformar em

todas as coisas possíveis do mundo cri-ado; nesta função chamam-se raios e

nisto consiste a essência da criação divina. Entre Deus e o firmamento existe

uma relação íntima. Não me atrevo a decidir se se deve afirmar diretamente

que Deus e o firmamento são uma e a

mesma coisa ou se é necessário repre-

sentar o conjunto dos nervos de Deus

como algo situado além e aquém das

estrelas e por conseguinte as nossas

estrelas e em particular o nosso Sol co-

mo meras estações através das quais o poder criador milagroso de Deus percor-

re o caminho até a nossa Terra (eventualmente até outros planetas hab-

itados). (SCHREBER, 1903, p. 29. Itálico

nosso.)

Na escrita de Schreber,

cerca de 400 ocorrências da forma ner-

vo aparecem em 424 páginas do livro. Em

muitas dessas ocorrências o significante

nervo é usado como sinônimo de alma

ou raio, na medida em que estes são os

‗nervos de Deus‘ e Deus é puro nervo e

não corpo. Os nervos do homem sobre-

vivem à sua morte e são o substrato das

almas, como se verifica no excerto aci-

ma. O uso desse significante com esses

sentidos não são abalizados nos

dicionários de uso da língua portuguesa,

como pode ser observado, por exemplo,

nas acepções apresentadas no dicionário

Aurélio, na nota 7, deste artigo. Esse signif-

icante é utilizado também em outras ex-

pressões neológicas como ―Neologismo‖

2: ―língua dos nervos (vozes interior-

es)‖ (SCHREBER,1903, p. 51), ou como se

observa no fragmento abaixo:

Além da língua humana habitual há ainda

uma espécie de língua dos nervos, da qual, via de regra, o homem não é consciente.

Em minha opinião, a melhor maneira de ter uma idéia disto é recordar os procedimen-

tos pelos quais o homem tenta gravar na memória certas palavras numa determina-

da seqüência, como por exemplo quando

um estudante decora uma poesia que pre-

cisa recitar na escola ou um padre decora

o sermão que tem de dizer na igreja. As

palavras em questão são então repetidas

cm silêncio (como em uma oração silenci-

osa que do púlpito se exorta os fiéis a

fazerem), isto é, o homem incita seus ner-

vos a induzirem as freqüências vibratórias

correspondentes ao uso das palavras em

questão, ao passo que os instrumentos

próprios da linguagem (lábios, língua,

dentes, etc.) não são postos em movimento

ou o são apenas casualmente.

O uso desta língua dos nervos, em con-

dições normais (de acordo com a Ordem

do Mundo), depende naturalmente apenas

da vontade das pessoas de cujos nervos se

trata; ninguém pode por si obrigar um homem a se utilizar desta língua dos ner-vos. Mas no meu caso, desde a mencionada

reviravolta crítica em minha doença ner-

vosa, ocorre que meus nervos são postos em movimento a partir do exterior, e isto incessantemente, sem interrupção.

(SCHREBER, 1903, p. 29. Itálico nosso.)

Na escrita de Schreber, a

língua dos nervos6 (língua fundamental e

língua dos raios) é a língua falada por

Deus e suas instâncias intermediárias

(em especial pelas vozes). O autor con-

sidera essa língua como um alemão arcai-

co, mas vigoroso, elegante e simples, que

se caracteriza por uma grande riqueza de

eufemismos e pelo hábito de usar ex-

pressões com o sentido oposto ao da

língua humana. Essa língua tem uma sin-

taxe própria, ou seja, utiliza expressões

gramaticais incompletas, omite palavras e

deixa frases interrompidas. Para o autor,

com o passar do tempo, ela sofre um

processo de decadência, com perda de

autenticidade e de inteligência, passando

a consistir numa sequência empobrecida

de frases decoradas e repetitivas.

Segundo Schreber (1903, p.130),

―na relação das almas entre si, a língua

dos nervos, derivada da vibração dos

nervos (e por isso na forma de um leve

sussurro), era de fato a única forma de

comunicação ou de intercâmbio de pen-

samentos‖. Dessa forma ele exemplifica:

Os enfermeiros eram chamados de ‗vigias

de cães‘ pelas vozes devo deduzir que possuíam a qualidade de ‗homens feitos

às pressas‘ a partir do fato de que manti-

veram comigo uma conexão nervosa, na

qual eu freqüentemente os ouvia falarem

expressões da língua fundamental; em particular, ouvi o enfermeiro Sch., que

como pessoa ficava em um outro quarto, emitir exclamações que na língua funda-

mental servem para expressar o pasmo:

‗caramba‘ e ‗mil vezes caramba‘ (não em

voz alta, mas na língua dos nervos).

(SCHREBER, 1903, p.130)

Página 17 O Corpo

6 Essa formação neológica tem um número menor de ocorrências, aparecendo 37 vezes.

“Os nervos do

homem sobre-

vivem à sua morte

e são o substrato das almas […]”

Isso nos leva ao ―neologismo‖

3: Vozes7. Na escrita de Schreber, vozes

são: Almas, raios ou nervos, na sua con-

dição de seres falantes. As vozes falam

ininterruptamente com Schreber, sempre

na língua fundamental. Seu som é como o

de um sussurro ou de um cochicho. ―A

fala das vozes passa por uma evolução:

no início é perceptível e clara, decaindo

aos poucos para um zumbido incom-

preensível, comparável ao som que faz a

areia numa ampulheta‖ (Cf o glossário

elaborado por Carone, 1995). Schereber

observa, no capítulo IX, que

a conversa das vozes consistia predom-

inantemente de um fraseado vazio, feito

de expressões monótonas, que se

repetiam de modo cansativo, que além

disso traziam cada vez mais a marca da

falta de acabamento gramatical, devido à

omissão de palavras e até mesmo de

sílabas. No entanto, havia então ainda um

certo número de locuções das quais vale

a pena falar em detalhe, porque lançam

uma luz interessante sobre todo o modo

de representação das almas, sobre sua

concepção da vida e do pensamento hu-

manos. Dessas locuções faziam parte. em

particular, aquelas que — aproximad-amente, desde a época da minha estada na clínica de Pierson — me conferiam a

denominação de ‗príncipe dos infernos‘.

Inúmeras vezes, por exemplo, se disse: ‗A

onipotência de Deus decidiu que o príncipe

dos infernos deve ser queimado vivo‘, ‗O príncipe dos infernos é responsável pela

perda de raios‘, ‗Proclamemos vitória so-bre o príncipe dos infernos vencido‘, mas

depois uma parte das vozes dizia: ‗É Schreber, não Flechsig o verdadeiro prín-

cipe dos infernos‘, etc. (SCHREBER, 1903,

p. 117. Itálico nosso.)

Ao comparar a acepção de

vozes na escrita de Schreber com as pos-

sibilidades encontradas no dicionário de

uso da língua Portuguesa, verificamos que

almas, raios e nervos não constam no rol

de possibilidades. Além do aqui exposto,

podemos verificar palavras ou grupos de

palavras que recebem efeitos neológicos

nas conexões delirantes de Schreber. As-

sim, os nervos, a beatitude, a hierarquia

divina (Ariman e Ormuzd) e os atributos de

Deus estabelecem em meio a uma cadeia

de significantes o valor linguístico em con-

texto, um é aquilo que o outro não pode

ser.

Saussure (1916, p. 134) afirma

que o conceito de uma palavra somente é

determinado pelo ―concurso do que existe

fora dela‖. Sendo parte de um sistema, a

palavra ―está revestida de uma signifi-

cação e de um valor e isso é coisa muito

diferente‖.

No Curso de Linguística Geral,

Saussure (1916) assevera que a signifi-

cação é a contraparte da imagem acústi-

ca (significante). A significação está na

instância da relação interna do signo, na

ordem de tudo aquilo que se passa entre a

imagem acústica e o conceito. Tomando o

exemplo da palavra julgar, Saussure expli-

ca que dizer que um conceito (significado)

julgar está unido à imagem acústica

(significante) julgar, representa a signifi-

cação. Saussure (1916) afirma que na

língua todos os termos são solidários,

então o signo, resultante da união entre

significado e significante, será de igual

modo a contraparte de outros signos da

língua, o valor então resulta da relação

entre signos, emana da presença sim-

ultânea de outros signos. O valor, dessa

forma, é a contraparte dos termos coex-

istentes. De acordo com Saussure (1916,

p. 135) o ―valor de um termo está deter-

minado por aquilo que o rodeia, nem se-

Página 18 O Corpo

7 Há ocorrência dessa forma linguística distribuída em 127 páginas. Entretanto, não consta a acepção no dicionário Aurélio, dicionário de uso da língua

portuguesa que escolhemos para comparação por ser o mais consultado. Nele consta: Voz S.f. 1. Som produzido na laringe, pelo ar que sai dos pulmões

e da boca do homem; 2. Qualquer ruído.; 3. Voz modificada pelo canto.;4. Som de certos instrumentos; 5. Parte vocal de um trecho de música; 6. Fac-

uldade de falar; 7. Grito, clamor, queixa; 8. Conselho; 9. Sentimento, opinião; 10. Impulsão; 11. Movimento interior; 12. Intimação, ordem dada em voz alta;

13. Rumor, ruído; 14. Palavra, frase; 15. Categoria associada à descrição de estruturas sintáticas, que faz variar o verbo consoante a ação é exercida ou

sofrida pelo sujeito; 16. Som representado na escrita por uma vogal; 17. a meia voz: em voz baixa; 18. ao alcance da voz: a distância a que se possa

ouvir o som da voz, gritando; 19. a voz do povo: a opinião geral; 20. correr voz: constar, divulgar-se; 21. de viva voz: falando e não por escrito; 22. são

mais as vozes que as nozes: há exageração no que se diz; 23. ter voz no capítulo: direito de dar a sua opinião; 24. voz ativa: ativa voz do verbo em que

o sujeito é também o agente; 25. voz comum: opinião da generalidade das pessoas; 26. voz de comando: ordem militar, dada em voz alta pelo coman-

dante de uma tropa, para esta executar certos movimentos ou evoluções; 27. voz deliberativa: o mesmo que voto deliberativo; 28. voz passiva: voz do

verbo em que o sujeito é interpretado como paciente; 29. voz presa: voz rouca; 30. voz pública: fama, boato; 31. voz surda: voz que se não percebe

claramente, som abafado.

quer da palavra que significa sol se

pode fixar imediatamente o valor sem

levar em conta o que lhe existe em redor,

línguas há em que é impossível dizer

‗sentar-se ao sol‘‖. Dessa forma, o valor

de um termo pode se modificar sem que

se altere a significação, somente pelo

fato de um outro termo com quem se

relacione na cadeia falada tenha sofrido

alguma modificação. Para Saussure

(1916), aquilo que emana do sistema da

língua não são ideias dadas de antemão,

mas sim valores ―puramente diferenciais,

definidos não positivamente por seu

conteúdo, mas negativamente por suas

relações como os outros termos do

sistema. Sua característica é ser o que

os outros não são‖ (SAUSSURE, 1916,

p.136).

Além disso, cabe aqui

ressaltar que, ao ler a escrita de

Schreber, chegamos a uma cadeia de

significantes com efeitos neológicos que

são motivadas pelo delírio psicótico, fi-

cando restritos a sua fala; não es-

tabelece interação, ou seja, cada signifi-

cante com o efeito neológico só recebe

significação (associação entre significan-

te e significado) no interior do delírio de

Schreber. A motivação desses neologis-

mos não é encontrada fora do delírio em

que estão inseridos, ou seja, os signifi-

cantes revestem significados, ideias de-

lirantes, em coerência no delírio, palavras

que, embora possam pertencer a língua,

não são reconhecidas como atualizadas

pelo falante por um outro interlocutor.

Considerações finais

Mediante o exposto, podemos

considerer que o estatuto da palavra de

efeito neológico na construção do delirante

é o de servir como bengala imaginária e

revestir conceitos e significantes no con-

texto do delírio (no circuito da fala/

escrita, verificamos o funcionamento da

língua e o esgarçamento das associações

entre significantes e significados, no con-

texto do delírio), como forma de recon-

strução do laço social, situando o gozo do

delirante (de Schreber) dentro de um lim-

ite suportável, atenuando, conse-

quentemente, sua angústia.

REFERÊNCIAS:

FERREIRA, A. B. H. Aurélio século XXI: o

dicionário da Língua Portuguesa. 3. ed. rev.

e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1999.

FREUD, S. (1911). Notas psicanalíticas sobre

um relato autobiográfico de um caso de

paranóia (dementia paranoids). In: Freud -

obras completas, v.10 - o caso schreber,

artigos sobre tecnica e outros textos. (1911

-1913). São Paulo. Companhia das Letras,

2010, p. 14 - 221. (Edição consultada: 2010)

LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ri-

beiro. ―De uma questão preliminar a todo

tratamento possível da psicose‖,

1957/1958. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

1998.

PINCERATI, W. D. O estatuto da palavra que

tem efeito neologico na construção de-

lirante. Dissertação (Mestrado em

Linguítica). Instituto de Estudos da Lin-

guagem, Universidade Estadual de Campi-

nas, Campinas, São Paulo. 2009.

___. O delírio do psicótico como fenômeno

de linguagem. In: Revista Signo. Santa

Cruz do Sul, v. 38, n. 65, p. 86-97, jul. dez.

2013.

QUINET, A.L.A. Clínica da Psicose. Salvador:

Fator. 1990.

SAUSSURE, F. Natureza do signo lingüísti-

co. In: Curso de Lingüística Geral. São

Paulo: Cultrix, 1916, pp. 79-84. (Edição

consultada: 1970)

___. O valor lingüístico. In: Curso de

Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 1916,

pp. 130-141. (Edição consultada: 1970)

SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um

doente dos nervos. Tradução e Organi-

zação de Marilene Carone. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1995.

Página 19 O Corpo

Página 20 O Corpo

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto

Departamento de Psicologia

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

O grupo de pesquisa A Análise do Discurso e suas Interfaces (FFCLRP-USP – Di-

retório de Grupos de Pesquisa do CNPq) convida:

Ulysses, James Joyce (by John from Yorkshire, England)

Ulisses de James Joyce, publicado em 1922, narra um dia da vida de Leopold Blo-om, que se passa em 16 de junho de 1904. Esse dia tornou-se, tanto na Irlanda quanto mundialmente, uma espécie de data comemorativa de homenagem ao personagem (e ao criador): o Bloomsday. Tendo em vista a importância da obra e o compromisso do grupo AD- Interfaces com a transmissão da Análise do discurso pêcheutiana, da psicanálise la-caniana, da literatura e da filosofia, dando continuidade à sua postura de abrir perspecti-vas para o diálogo, tomamos a iniciativa de comemorar o Bloomsday, como mais uma

oportunidade às interfaces das áreas do conhecimento que definem as ações do grupo.

Data: 16 de junho de 2014

Local: Sala Seminário 2 - bloco 05 da FFCLRP

INSCRIÇÕES GRATUITAS

Programação:

Comissão Organizadora: Profa. Dra. Leda Verdiani Tfouni (Coordenadora), Profa. Dra. Diana Junkes Martha,

Profa. Dra. Dionéia Monte Serrat , Juliana Bartijotto, Verônica Lopes .

Contato: [email protected]

Leitura do e-book ―Foucault e Nietzsche - o discurso da tragédia‖ organizado por Cecília Barros-Cairo e Nilton Milanez

Leitura do livro ―Discurso e sujeito em Michel Foucault‖ de Cleudemar Alves Fernandes.

Dica de O Corpo

Dica de O Corpo

O Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo lança o e-book

―Foucault e Nietzsche – o discurso da tragédia‖ organizado pelos

professores Cecília Barros-Cairo e Nilton Milanez. O trabalho é

resultante de uma Jornada de Estudos realizada em 2011 que fo-

mentou muitas discussões, debates e análises entre pesquisado-

res do Laboratório e de outras universidades e grupos de pesqui-

sa, mas que somente encontrou solo fértil para uma produção

textual mais consistente neste momento.

'Michel Foucault, de ideias d’avant-garde, ilumina as reflexões

teóricas e analíticas de diversas áreas do conhecimento (...)

Acompanhar o percurso de M. Foucault, seguindo seus passos

pela leitura de seus textos, é um caminho surpreendente e que

não se faz sem dele sair modificado. Essa foi a escolha de Cleude-

mar Alves Fernandes, que mergulhou, durante um período de sua

madura carreira universitária, nesse labirinto foucaultiano, que

parece jamais poder ser completamente apreendido ou completa-

mente trilhado. E em sua ânsia de flagrar as articulações existen-

tes entre discurso, sujeito, dispositivo, relações de poder e saber

entre tantos outros conceitos que Foucault reúne ao dar consis-

tência ao seu pensamento, Fernandes faz uma trajetória que res-

ponde aos interesses de todos aqueles que veem no discurso,

mais que um conceito, mais que um objeto de estudo - tomam-no

como a constituição do sujeito e sua razão de luta. (...)'

(Vanice Sargentini)

O Corpo é Discurso

é o primeiro jornal

eletrônico de

popularização

científica da Bahia.

Colaboradores

Popularização da Ciência

A pesquisa científica gera conhecimentos, tecnologias e inovações que benefi-

ciam toda a sociedade. No entanto, muitas pessoas não conseguem compreender a

linguagem utilizada pelos pesquisadores. Neste contexto, a grande mídia e as novas

tecnologias de comunicação cumprem o papel de facilitadores do acesso ao conhe-

cimento científico. Para contribuir com esse processo, em sintonia com o espírito

que anima o Comitê de Assessoramento de Divulgação Científica do CNPq, criamos

esta seção no portal do CNPq. Seja bem-vindo ao nosso espaço de popularização da

ciência e aproveite para conhecer as pesquisas dos cientistas brasileiros e os bene-

fícios provenientes do desenvolvimento científico-tecnológico.