ENTRE PRÁTICAS E INCERTEZAS: AÇÕES PEDAGÓGICAS INOVADORAS DE DOCENTES DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO...
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ENTRE PRÁTICAS E INCERTEZAS: AÇÕES PEDAGÓGICASINOVADORAS DE DOCENTES DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO DE
FEIRA DE SANTANA
Ana Maria Fontes dos SantosProfa. Adjunta da UEFS
e-mail: [email protected]
Jefferson da Silva MoreiraGraduando de Pedagogia da UEFS
e-mail: [email protected]
Maysa dos Santos BacelarGraduanda de Pedagogia da UEFS
e-mail: [email protected]
A partir do debate sobre inovação na docência universitáriaeste trabalho apresenta parte dos resultados de pesquisa, quebuscou analisar as perspectivas inovadoras na docência dealguns dos sujeitos que se lançaram no projeto pioneiro deimplantar faculdade pública que tinha a finalidade de formarprofessores. Trata-se da Faculdade Estadual de Educação deFeira de Santana, cujo funcionamento ocorreu entre 1968 e1976. Naquele período em que se programavam a modernização doensino superior e dos demais níveis da educação nacional, essaFaculdade de Educação também foi uma das pioneiras na ofertade cursos sob a forma de “licenciaturas curtas”, nas áreas deLetras, Ciências e Estudos Sociais. O foco da abordagem aquielaborada são as memórias de e sobre três professores queatuaram em cada um desses cursos, situando os aspectosrelativos às suas próprias práticas e vivências pedagógicas,no processo de implantação do ensino superior no interior daBahia. Tais professores foram alguns dos indicados, emlevantamento prévio realizado com egressos daquelainstituição, que reconheceram que existiam docentes que, dealguma forma, se destacaram no seu modo de conduzir a aula.Embora reconhecendo o cerceamento imposto pelo regime deexceção e perante as especificidades e ambiguidades do ensinosuperior, foram possíveis as ações inovadoras e resistênciasnas experiências de docentes daquele período. Esta pesquisarevela que mesmo perante as incertezas de constituição de umacultura de professor do ensino superior no interior baiano, naFaculdade de Feira de Santana foi desenvolvida uma experiência
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pedagógica inédita e inovadora para a época, que envolvia ocoletivo dos professores e, ao mesmo tempo, abria espaço paranela se destacarem professores que buscaram fazer o melhor nocampo da formação de professores.
Palavras-chaves: Ensino superior, formação de professores,inovação pedagógica.
INTRODUÇÃO
A questãoda pedagogia universitária é aqui discutida na
perspectiva histórica, no sentido de contribuir para
compreensão das práticas pedagógicas que estiveram na origem
da interiorização do ensino superior na Bahia, que ocorreu
durante o período militar.O objetivo é reconstituir as
práticas educativas a partir das memórias de docentes da
Faculdade de Educação de Feira de Santana, que atuaram nos
cursos de Letras, Ciências e Estudos Sociais, no período de
1968 até 1976, quando a Faculdade foi extinta e implantada a
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
No período em que no país implantava-se o projeto político
de modernização da economia, sob a batuta do regime ditatorial
implantado em 1964, o setor educacional foi considerado como
um dos fatores chaves para alcançar os objetivos do
desenvolvimento econômico proposto. Entre os principais
legados dessa época destacam-se a “reforma universitária”, a
“reforma do ensino de primeiro e segundo graus”, acompanhadas
da ampliação desordenada da oferta de vagas, em todos os
níveis.
De acordo com Santos (2011), no estado da Bahia
presenciou-se um momento singular, pois o seu primeiro governo
“biônico”, iniciado em 1967, buscou o estabelecimento das
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condições consideradas necessárias para implantar uma política
de educação que atendesse àqueles objetivos. Para isso,
estendeu o “planejamento científico”, outrora restrito às
secretarias preocupadas com a economia do estado, para a
gestão dos negócios da educação. Assim, entre outras mudanças
ocorridas na Secretaria Estadual de Educação, que passou a
assumir também a gestão dos assuntos sobre Cultura
(denominação incorporada ao nome da secretaria, que passou a
chamar-se Secretaria de Educação e Cultura – SEC), foram
implantados o Centro de Estudos e Planejamento (CEP), dirigido
por um egresso do setor de planejamento educacional da Sudene,
e o Departamento de Educação Superior e Cultura (DESC). O
Secretário de Educação era Luís Navarro de Brito, conhecido
professor da Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia.
A dimensão das mudanças ocorridas nessa gestão é avaliada pela
professora Elvira1 (nome fictício), da Faculdade de Educação de
Feira de Santana, da seguinte forma:Navarro entrou e foi assim uma ruptura com todo opassado da Secretaria da Educação. Todo aquelepassado que se tinha visto de “nomeia professor”por indicação política, ele rompeu. [...]Foi umainovação total. A primeira inovação: concursopúblico para professor entrar no Estado. Não tinhaconcurso há anos, anos, anos e anos. Não tinha.Então ele fez o primeiro concurso. Mas fez qualquerconcurso? Não. Fez um concurso inovador, porque eleouviu a APLB [Associação dos ProfessoresLicenciados da Bahia]. O que a APLB arquitetou? “Oconcurso não pode ser decidido por uma prova;oconcurso tem que ser algo que o professor que vátrabalhar demonstre mais, ele tem maisoportunidade”. Então fez o concurso das “cemhoras”. Sabe o que significou isso? – Um mês de
1Os nomes dos professores da Faculdade de Educação de Feira de Santana entrevistados,citados nesta pesquisa,são fictícios.
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trabalho de todos os candidatos ao concurso. Oprofessor não foi avaliado por uma prova. Ele foiavaliado durante trinta dias. [...] uma coisaimpensável, inviável, hoje! Mas foi. Foi uma coisainovadora. O concurso foi pensado assim, para serinovador, para você escolher os melhores [...]. Apontuação resultou de inúmeras atividades. Você eraavaliado na sua dinâmica de grupo; você eraavaliado na sua comunicação oral, você era avaliadona sua produção escrita.
Atentemos para a continuidade do depoimento da mesmaprofessora:
[...]. Então, eleentrou e rompeu com tudo, o quehavia no Estado, de clientelismo. Isso foi umchoque. E a primeira coisa que aconteceu quandosaiu o resultado do concurso: o que era que faziacom os que lá estavam interinamente? Que nãopuderam nem concorrer porque não tinham graduação?Tiveram que ser demitidos [...] e essas vagas foramocupadas pelos licenciados. Foi a primeira vez queFeira de Santana teve licenciado, porque não tinha.Os professores eram todos de uma só formaçãopedagógica: dos Cursos Normais; uns eramengenheiros, outras coisas e outros profissionaisliberais.
A exposição acima demonstra as limitações que a educação
baiana vivia naquele momento. E o que dizer da educação
superior? Além de restrita, a oferta restringia-se, quase
exclusivamente, aos limites da capital (exceto duas Faculdades
de Agronomia, uma localizada em Cruz das Almas e a outra em
Juazeiro, no Alto São Francisco), fora disso prevalecia no
imenso interior baiano a formação de professores em Escolas
Normais, cujos egressos ocupavam os espaços de atuação docente
do ensino primário (ao qual se destinavam), do ensino ginasial
e do ensino médio (os dois últimos níveis compartilhados por
bacharéis das diversas procedências formativas).
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Naquele contexto de mudanças nos negócios da educação
baiana, o ponto alto das ações da secretaria estadual de
educação foi a elaboração do Plano Integral de Educação e
Cultura (PIEC), lançado em 1968. Além de diversas metas para
todos os níveis de ensino e para a cultura no estado, nesse
documento previa-se a criação de faculdades para formação de
professores, em quatro das principais cidades do interior,
selecionadas a partir de critérios que visavam a formação de
mão-de-obra para atender os objetivos imediatos de inserção da
Bahia no circuito industrial do país. A intenção era melhorar,
sobretudo, os quadros docentes do antigo ginásio (referente
aos quatro anos finais do ensino fundamental), pois se visava
a profissionalização nesse nível de ensino, já antecipando a
legislação que entraria em vigor em 1971, a Lei 5692.
Para a interiorização do ensino superior também constava
no planejamento da SEC a criação de universidade na Região
Sul, onde até aquela época tratava-se do principal polo
agroexportador do estado da Bahia. Ou seja, a implantação de
quatro faculdades de formação de professores e a proposta de
uma universidade para o interior, foram iniciativas da gestão
estadual, relativamente, ousadas para a época. Posteriormente,
essas faculdades formaram a base que deram origem ao sistema
estadual de universidades do interior baiano, atualmente
formado por quatro instituições universitárias.
Por outro lado, a realização de concurso público por parte
da gestão de Navarro de Brito, na tentativa de melhorar e
moralizar a profissão docente repercutiria naquele ambiente de
muito clientelismo (que o regime militar pouco rompeu), onde a
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maioria dos profissionais liberais que ocupavam cargos
públicos no interior (geralmente médicos, dentistas,
advogados) também era nomeada para os ginásios e colégios
estaduais.
Na cidade de Feira de Santana foi implantada a primeira
das faculdades previstas no PIEC, sobretudo, por ser a cidade
mais populosa depois da capital e com possibilidades de
industrialização. A faculdade de formação de professores aí
instalada recebeu o nome de “Faculdade de Educação”, em razão
de que nessa cidade estava abrigado um movimento organizado da
sociedade local a favor da interiorização do ensino superior,
que visava a criação de Universidade (SANTOS, 2011; SANTOS e
ROSA, 2012).
Diante do cenário acima descrito, podem-se antever as
dificuldades para a definição dos quadros docentes para os
Cursos que foram implantados em Feira de Santana:
licenciaturas curtas em Letras (implantado ainda no segundo
semestre de 1968), em Ciências (implantado um ano depois) e em
Estudos Sociais, criado em 1970.
A pesquisa focaliza os professores que atuaram na
Faculdade de Educação reconhecidos como inovadores em suas
práticas pedagógicas. Os mesmos foram selecionados, entre os
docentes indicados como inovadores, a partir deenquete
realizada com egressos. Por sua vez, esses egressos foram
escolhidos entre os sujeitos que atuam como professores na
UEFS, a eles, além de perguntado sobre quais os docentes da
referida Faculdade de Educação eram inovadores, também foi
indagado sobre quais os seus próprios conceitos sobre inovação
7
pedagógica. Portanto, aqui são consideradas tanto as falas de
antigos professores, quanto às de egressos dos Cursos de
Letras, Ciências e Estudos Sociais. Os dados foram levantados
em duas diferentes etapas de pesquisa: na primeira foi
realizada enquete com oito egressos e na segunda realizaram-se
entrevistas com professores indicados como inovadores2. Trata-
se, portanto, de pesquisa com enfoque qualitativo, que recorre
a relatos orais3 de sujeitos que atuaram na implantação do
ensino superior na cidade de Feira de Santana, enquanto
memória social de um dado contexto da História do ensino
superior no Estado da Bahia. O conceito de inovação pedagógica
auxilia-nos a entender os percursos históricos das práticas
pedagógicas consideradas inovadoras,de docentes que atuaram na
primeira instituição pública de ensino superior do interior
baiano, conforme apresentamos no tópico seguinte.
2. OS SENTIDOS DA INOVAÇÃO PEDAGÓGICA
A inovação pedagógica é aqui entendida nos seus
aspectosdinâmicos: como um fenômeno histórico-social e
comoação deliberada de rompimento com paradigmas pedagógicos
tradicionais. Neste sentido, concordamos com Cunha (2001, p.
128),que evidencia o caráter-história das ações pedagógicas
inovadoras, para ele: “Não é possível pensar os processos
inovativos sem levar em conta seu caráter histórico-social.
2Aqui são analisados os dados coletados no Eixo II da pesquisa intitulada“Pedagogia no Ensino Superior: Trajetória Histórica de Práticas EducativasInovadoras”, do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Pedagogia Universitária(NEPPU/UEFS); financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado daBahia (FAPESB).3Aqui são consideradas as discussões sobre memória social (cf. SANTOS,2012a) da História Oral (AMADO e FERREIRA, 1996).
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Eles se constroem num tempo e espaço e não podem ser
percebidos como mera produção externa, nem ingenuamente como
algo espontâneo e independente”.Além disso, Cunha (2001,
2009)compreende a inovação como resultado de tensões e não
apenas a inserção de novidades técnicase tecnologias modernas.
Na sua argumentação, elucida que a inovação está implicada em
uma ruptura com o já posto e atua no sentido da
mudança,expressando uma visão emancipatória, articulada a um
projeto alternativo de sociedade.
No mesmo sentido, Lucarelli (2007, p. 80) defende a
perspectiva de que a inovação distingue-se por “ruptura com o
estilo didático habitual e o protagonismo que identifica os
processos de gestação e desenvolvimento da pratica nova”.
A partir do pressuposto de que as práticas dos
professores estão revestidas das concepções sobre o homem, a
sociedade e a educação, Zanchet e Cunha (2007, p.186),
explicitam que as inovações devem ser “entendidas como
rupturas paradigmáticas, [pois] exigem dos professores
reconfiguração de saberes e favorecem o reconhecimento da
necessidade de trabalhar para transformar”. Ou seja, a
inovação pedagógica traduz uma dimensão emancipatória,
exigindo do docente a problematização do conteúdo trabalhado e
de suas práticas pedagógicas na tentativa de produzir
transformações.
A perspectiva de Veiga, Resende e Fonseca (2000) corrobora
a ideia de que as inovações devem ser compreendidas como algo
que extrapola as modificações estéticas na sala de aula e
acrescentam que “mais do que os experimentos e as tentativas
9
individuais, [as inovações pedagógicas] devem buscar a
composição de um projeto coletivo” (p.163). Também as
compreendem como uma ruptura de paradigma, que visam sanar as
necessidades circunstanciais do momento histórico,no sentido
de caracterizá-las no contexto da ciência emergente que se
encontra em transição paradigmática, num longoprocesso cujos
resultados são imprevisíveis. As autoras admitem ser uma ação
concebida historicamente, não neutra, mas impregnada de
intencionalidades.
Portanto, naquele contexto da história a própria
implantação da instituição, mesmo enquanto uma proposta
nascida de cima para baixo e num ambiente de autoritarismo
político, pareceu a alguns dos seus professores uma ação
inovadora, como salienta a professora Elvira4, na sua memória
atualizada:Apesar das contradições [...] vi que era uma coisaséria, que eles se propunham a fazer algo novo,alguma coisa inovadora, bem integrada, com umcurrículo já pensado nas suas inter-relações,rompendo com a tradição que a Faculdade deFilosofia tinha de fazer a formação pedagógica nofinal do curso, então a formação pedagógicacomeçava no primeiro semestre para que as pessoasse convencessem de que eles estavam ali para seremprofessores; então é essa discussão que tem hoje[...]Então a Faculdade foi pensada assim e foiinstalada assim, como uma coisa muito inovadora.
ENTRE PRÁTICAS E INCERTEZAS
Pesquisa desenvolvida por Santos (2011)demonstra que a
própria administração de Navarro de Brito sucumbiu perante os
imperativos da ditadura que cada vez mais enrijecia contra as4 A entrevista com a professora Elvira faz parte dos arquivos da profa. AnaMaria Fontes dos Santos.
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atitudes e as ações democráticas, cujo emblema foi o Ato
Institucional número cinco, o famigerado AI-5, de dezembro de
1968 (Brito fora afastado do cargo antes do final do mandato).
Por outro lado, as iniciativas de modernização da educação
baiana para o ensino superior, embora limitadas e fortemente
articuladas ao projeto desenvolvimentista autoritário, ajudou
a produzir mudanças significativas no cenário educacional
interiorano, a partir da criação das quatro faculdades de
formação de professores (em Feira de Santana, Vitória da
Conquista, Serrinha e Jequié, respectivamente). No caso
estudado, enquanto primeira instituição implantada, foi
necessário construir uma cultura de ensino superior com
maioria de professores que não tinham como meta a docência
universitária, tanto em seus horizontes formativos e como nos
profissionais (SANTOS, 2011 e 2013).
Na primeira fase da pesquisa, quando perguntado paraos
egressos entrevistadosse existiam professores inovadores em
seus cursos, maioria respondeu “não”. Mas, quando instigados
novamente a falar, sobre quais professores desenvolviam
práticas inovadoras, todos foram unânimes na afirmação de que
existiam professores que se destacaram no exercício das suas
atividades. Isto é, todos os entrevistados citaram nomes de
professores que, mesmo perante o contexto político
autoritário, vivido na época, desenvolvia algum tipo de
prática diferenciada dos demais, identificada pelos alunos
comoinovadora.
Ao citarem os nomes de professores, pudemos perceber que o
conceito de professor inovador variava para os sujeitos aqui
11
pesquisados, sendo destacados aspectos desde as posturas dos
docentes em sala de aula e suas relações com os estudantes,
até o papel da escuta e do diálogo no processo educativo. A
afetividade também aparece como elemento diferenciador dos
demais docentes daquele contexto. Mas,ressaltando a
necessidade de se levar em conta a marca que o regime
ditatorialimprimia sobre o ensino. Conforme se pode observar
na fala dos entrevistados, transcritas abaixo:
Na época, é isso que eu disse: inovador no sentidoradical. Estávamos na ditadura e com ele [professorMonteiro] não tínhamos medo de pensar, de dialogar, numaépoca em que havia muita desconfiança.[...]; fazer issona ditadura era uma coisa profundamente inovadora;diferente da aplicação de técnicas modernosas, semmodificar as pessoas, técnicas desenraizadas do mundo.(Egresso 5)
[...] mesmo num contexto de impedimento de análises, elaera uma professora que fazia! Como professora, ela erauma mulher destemida (Egresso 1, referindo-se àprofessora Luíza).
Ou seja, o conceito de inovação pedagógica explicitado
por esses egressos sugere a noção de inovação como ruptura com
o que estava posto, acompanhando um processo de rompimento com
o paradigma vigente (de acordo com a abordagem de autores
citados no tópico anterior). Mesmo entre aqueles entrevistados
que indicaram a inserção de novas técnicas pedagógicas como
indício de inovação, os mesmos associaram a elas as posturas
dos professores: seja no campo afetivo(“Ela [profa. Maria, do
Curso de Ciências] ficava muito junto do aluno”, cf. Egresso
3), seja no campo do domínio do conhecimento (“Por articular
os conceitos filosóficos à História e à Pedagogia”, mediante a
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fala do Egresso 8, referindo-se ao professor Carlito, da área
de Matemática). Portanto, naquele ambiente da Faculdade de
Educação de Feira de Santana, na opinião dos egressos
entrevistadoseram inovadores os docentes que dominavam o
conteúdo, mas aliado à coragem de reflexão e diálogo com os
discentes, numa difícil época para a democracia brasileira.
Mas voltemos ao último pronunciamento da professora
Elvira: “Então a Faculdade foi pensada assim e foi instalada
assim, como uma coisa muito inovadora”. Referindo-se à
propostade “faculdade de formação de professores”, implantada
em Feira de Santana, cuja proposta formativa apresentava-se
diferenciada, pois inseria o aluno nos assuntos da docência
desde o primeiro semestre, diferente da antiga “faculdade de
filosofia”. De fato, até aquela data (1968) não havia exemplos
na Bahia, quiçá em outros estados da federação, de que se
adotava essa perspectiva de formação de professores (no caso,
com mais uma novidade: sob a forma de licenciaturas curtas,
com três anos de duração). As responsáveis pela implantação
da faculdade de Feira de Santana, as professoras Zahidée
Machado Neto e Joselice Macedo, ambas da Faculdade de
Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), puseram em
prática uma proposta de formação cuja concepção foi elaborada
por diversas mãos: as do Secretário de Educação Navarro de
Brito, de seus assessores, sobretudo, de Anísio Teixeira, que
segundo um desses assessores, entrevistado por Santos (2011),
não participava da equipe da SEC, mas,como convido, participou
de diversas reuniões que precederam a elaboração do PIEC.O
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indício, portanto, é o de que houve contribuição de Anísio na
concepção dessas faculdades de formação de professores.
Assim, a instalação e coordenação do primeiro curso
implantado, o de Letras, ficou por conta de Joselice Macedo. A
escolha dos professores para lecionar no curso recaiu sobre
uma maioria de licenciados recém-formados.A proposta de
mudança já se fez presente no próprio processo de escolha dos
alunos, pois o primeiro vestibular realizado constou, além da
tradicional prova escrita, de teste psicológico e de
entrevista. “Tanto que, quando nós começamos a trabalhar só
com o curso de Letras, nós sabíamos todas as pessoas: quem
eram as pessoas que estavam ali”, lembra a professora Elvira,
destacando a importância das entrevistas. Outra prática,
presente na memória desta e de outros professores, eram as
reuniões mensais realizadas por Joselice Macedo com o grupo de
professores. Vejamos algumas dessas lembranças:Joselice Macedo, eu já a conhecia, há bastantetempo, porque ela foi minha professora lá no cursoclássico de Latim. E então, eu a chamava de“professora Joselice” com todo o respeito! Era umapessoa assim, muito pronta, muito posta, não é?!Bom, ela fazia aquela reunião com todos osprofessores, tanto com os de Letras, quanto com osde Estudos Sociais. Ela estava assim, praticamente,digamos assim, ensinando as pessoas, osprofessores, como era que tinha que funcionardentro de uma Faculdade. As reuniões eram mais oumenos assim. Então, eu enquanto professora do cursode Estudos Sociais participei de várias daquelasreuniões, com todo mundo. (professora Luíza).
Portanto, caberia à Macedo implantar uma cultura
universitária naquela primeira Faculdade interiorana, dando
suporte aos, então, novos docentes. Embora com formação
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clássica (no sentido de tradicional), essa professora comandou
processos inovativos que imprimiram uma dinâmica pouco
exercitada ou mesmo desconhecida, até aquele momento, no
âmbito das práticas do ensino superior. Embora o objetivo
fosse o de “ensinar os professores como era que tinha que
funcionar dentro de uma faculdade” (como disse a profa.
Luíza), os resultados foram animadores para os professores
neófitos naquele ramo de ensino, como constatamos nas falas
abaixo transcritas, do professor Monteiro e da professora
Margarida.
De certa forma, o que me deu cobertura foi,exatamente,Joselice Macedo. [...] foi professora deFilologia e era coordenadora geral do Curso. Elavinha de Salvador e permanecia na Faculdade doisdias e nos momentos após as aulas, tínhamos asaulas por áreas, e Joselice realmente coordenavaisso com saber e capacidade e estimulando a nósprofessores que estávamos ainda verdes. (ProfessorMonteiro5)[...] já trabalhava interdisciplinarmente sem teressa consciência dessa coisa dainterdisciplinaridade e tal; mas, sempre, de quinzeem quinze dias, fazíamos reunião para discutir otrabalho: como é que cada um estava sentido aturma, que dificuldades estavam tendo, como era areação dos alunos. E isso era feito naturalmente,normal; nas reuniões a gente sempre tinha essadiscussão, e havia realmente essa interação entreos professores. (Professora Margarida)
A partir dos pronunciamentos dos professores
entrevistados é possível inferir que o trabalho realizado pela
coordenadora do Curso de Letras, Joselice Macedo6, tinha uma5Esta entrevista com o professor Monteiro faz parte dos arquivos da profa. Ana Maria Fontes dos Santos.6Quando começou a trabalhar em Feira de Santana, Joselice Macedo já tinhadoutorado em Linguística, realizado na França, e era identificada por seuspares como uma professora de postura pedagógica tradicional. Mas, naquele
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função do tipo “assessoramento pedagógico” (mediante discussão
de LUCARELLI, 2009, p. 213) aos professores da Faculdade,
enquanto condição auxiliar para o desenvolvimento da inovação
naquele contexto educativo, mesmo que na ocasião a preocupação
fosse com os conteúdos trabalhados e não, exatamente, com as
questões pedagógicas. Pois, a convivência e o diálogo que as
reuniões propiciavam foram importantes para a preparação
daqueles sujeitos ao ambiente acadêmico, conforme percebemos
em suas memórias atualizadas.
A atitude protagonista de Joselice Macedo, conforme
salienta Santos (2014, p. 10), “pode ser auscultado na sua
própria fala: [...]‘eu treinei os professores e quando eu
chegava passava o dia todo aí [em Feira de Santana] e
aproveitava os momentos para conversar com os professores,
orientar, indicar bibliografia, cobrar deles um trabalho’.”
Ou seja, nessaoportunidade, a inovação impunha-se quase
como necessidade e estratégia de sobrevivência para o campo
universitário que se constituía, como podemos também inferirna
voz da professora Margarida: “E a faculdade começou assim, não
é? Com muito trabalho integrado. Eu sinto saudades disso”.
Maior significado daquela experiência de “assessoramento
pedagógico” ficou marcado na lembrança dos professores, quando
se recordam dos encontros coletivos para apreciação e
discussão das avaliações com os estudantes. A memória da
professora Elvira, descrita abaixo, sintetiza alguns aspectos
desses encontros:
contexto assumia atitudes, em relação aos seus pares, que foram inovadoras(cf. SANTOS, 2011 e 2014).
16
Então as avaliações que nós fazíamos, mensais, dosalunos: os professores se reuniam, era um grupomuito pequeno [...], nós sentávamos, levávamos osnossos resultados, líamos as provas que noschamavam atenção, e nós discutíamos o que é queprecisava. Até, por exemplo, “fulano ainda temdificuldade de expressão escrita, então temos quetrabalhar com esse aluno”. Então era isso(Professora Elvira).
Portanto, naquele ambiente de tessituras se foram gestando
os perfis da docência do ensino superior dos sujeitos
fundadores desse nível ensino.O comentário do professor
Monteiroexpõe a importância das reuniões de professores,
enquanto elementos que lhe oportunizaram importantes subsídios
para o desenvolvimento das atividades como docente. A troca de
experiências com os demais colegas, a conversa sobre o
desenvolvimento dos estudantes são alguns aspectos destacados.
Vejamos:[...] Isso foi enriquecedor para mim, que eu vinhade uma linha muito mais estudioso, de perfilestudioso individual, não é? [...] Na faculdade euaprendi a estar com os outros, vi qual é a demanda,como os outros estavam resolvendo os problemas e euacredito que foi uma experiência marcante nafaculdade, que na avaliação não era o professorisolado considerando o aluno, os professores estavamtodos reunidos(Professor Monteiro).
E mais nos diz o professor citado, que corrobora a
participação efetiva dos professores e o comprometimento com
aquilo que realizavam: [...] Os salários, como sempre foram, não erammuito convincentes, mas havia um entusiasmo pelotrabalho. A equipe dos três cursos de Letras,Estudos Sociais e Ciências, realmente, aqueles
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professores eram dedicados. Vestia-se a camisa daFaculdade. (Professor Monteiro7)
Observemos que na opinião de Masetto (2012 p. 31) para que
ocorra o sucesso de uma inovação, um dos critérios mais
eficazes para sua construção é “contar com a participação
daqueles que o construirão desde o seu início. É fundamental
que o sentimento de “pertença” ao projeto seja vivenciado e
trabalhado [...]”. Neste sentido, inferimos que aqueles
sujeitos, ao“vestir a camisa da Faculdade”, enquanto
sentimento de pertença, já trabalhavam as dificuldades de se
fazerem docentes universitários.
Outro aspecto identificado nesta pesquisa, diz respeito à
indicaçãopelos egressos da referida Faculdade,de professores
com posturas inovadoras que, embora jovens, já iniciavam suas
carreiras de docentes também na UFBA, dentre eles: professora
Luíza, e professor Carlito (já falecido). Sobre os mesmos,
assim falaram os egressos:[...] Tinha conhecimentos profundos dos fundamentosda matemática, com demonstração e tudo o que tinhadireito. Começava com conhecimento corriqueiro edaí para a matemática avançada (Egresso 3, sobre oprofessor Carlito)
Era um modelo de professora. Era a aula queconvencia o estudante da sua exposição. E oestudante saia com vontade de saber mais. (Egresso1, sobre a professora Luíza)
A principal característica desses docentes era a de que,
naquele momento, eles eram reconhecidos por serem os melhores
quando estudantes, na visão de seus ex-professores, requisito
que lhes garantiria espaço na academia. Ambos cursaram pós-
7Idem nota número seis.
18
graduações (mestrado e doutorado) ainda na década de setenta
do século passado. Professora Luíza assumira naquela
Universidade por ter sido monitora e já indicada pelos seus
professores para a docência (cf. declarou na entrevista
concedida a esta pesquisa) e professor Carlito, que foi
assistente de Omar Catunda, um famoso matemático. A dedicação
aos estudos, o domínio das teorias, a formação e a visão
interdisciplinar garantiam-lhes espaço na opinião de egressos,
como professores que iam além do que se esperava deles.
Vejamos como exemplo a professora Luíza, que abaixo relata
sobre como se apropriava de outros conhecimentos além dos
necessários à sua disciplina: Uma coisa que ajuda muito na minha experiência coma História é porque eu, também, amo Geografia.[...] então eu trabalhava muito com a História,mas, também, com a Geografia da África. [...] Eapartir de um certo tempo parecia que eu estava lá.[...]. E, também, muita leitura sobre Antropologia.Pois, Antropologia da África é a Antropologia douniverso, aquilo é um verdadeiro universo. Mas, aGeografia foi a que, sobretudo, me ajudou muito ame situar.
Sobresua ida para a faculdade interiorana, assim relatada:
“Quando, eu recebi o convite para ir lá para a Faculdade de
Educação, e Katia Matoso, a lendária Katia Matoso. [...]
Pediram a ela pra indicar o nome de uma pessoa, que pudesse ir
pra lá, ela indicou meu nome.” Ao contato com Matoso,
professora Luíza atribui seus conhecimentos sobre a relação
que conseguiu estabelecer, ainda naquela época, entre ensino e
pesquisa, conforme declarou. Que eu estava, assim, encantada pela técnica decomentários de textos históricos. Que foi uma
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técnica que, quem trouxe essa prática pra cá, paraUFBA, foi Kátia Matoso. Na verdade, Kátia Matoso,não. É uma coisa que todo professor de História,todo historiador faz. Mas, Katia Matoso trouxe asistemática. Como sistematizar um comentário detexto histórico e como transformar isso numaferramenta não só para as aulas, como também para apesquisa. Porque era uma metodologia que... Eranão, é. Que é aplicada na própria pesquisahistórica. Só que naqueles anos setenta havia umaseparação muito grande entre ensino e pesquisa.[...] Então, essa prática de trazer para sala deaula uma metodologia que era da pesquisa histórica,foi uma coisa que Kátia Matoso trouxe,sistematizou, e eu fiz parte do primeiro grupo queela treinou para fazer esse trabalho.
Portanto, essa professora já levou para a Faculdade de
Educação, alguma experiência acadêmica, pois iniciava o
contato com a pesquisa equando estudante atuou como monitora
no Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), da UFBA, onde
começou ministrando cursos sobre História da África (conforme
declarou).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos nesta pesquisa que na opinião da maioria dos
professores, que vivenciaram o ambiente histórico em estudo,
no estado da Bahia se gestava um processo de inovação, não
como uma imposição da ditadura militar, mas como uma
necessidade do contexto, onde imperava o clientelismo e a
falta de professores capacitados nos níveis mais elevados da
educação.
Assim, perante os dados coletados, foi possível inferir
que se tratava de experiência de ensino superior inédita no
município de Feira de Santana, onde a maioria dos docentes era
20
de licenciados no início da carreira. Mas a forma colaborativa
do trabalho inicial, sob a assessoria de Joselice Macedo, deu
segurança aos docentes iniciantes como disse o professor
Monteiro8: “Foi uma experiência muito rica nesse sentido de que
a gente não tinha simplesmente [professores] jovens, tínhamos
já pessoas amadurecidas, batalhadoras na área de educação que
davam uma certa tônica no trabalho que a gente realizava”.
Embora reconhecendo o cerceamento imposto pelo regime de
exceção e perante as especificidades e ambiguidades do ensino
superior, foram possíveis as ações inovadoras e resistências
nas experiências de docentes daquele período, seja como forma
de compromisso ou como estratégia de sobrevivência.
REFERÊNCIAS
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