ELETRÔNIA COMO MOVIMENTO CULTURAL - Anpocs

22
ELETRÔNIA COMO MOVIMENTO CULTURAL * Luciana da Costa Amorim UFMG, Departamento de Ciência Política É preciso vê-la dançar com todo o coração e com toda a alma! Há nela uma tal harmonia, que é como se não pensasse em mais nada, como se a dança só existisse para ela, e ela só para a dança, e a seus olhos nada mais existisse. (Goethe, Os Sofrimentos do Jovem Werther, p. 27) Uns tomam éter, outros cocaína. Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. Tenho todos os motivos menos um de ser triste. Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria... (Manuel Bandeira, Não sei dançar, Libertinagem, p.179) O consumo de determinadas substâncias psico-ativas, as chamadas “drogas sintéticas”, é um fator que confere a maior visibilidade à cultura centrada na produção e no consumo de música eletrônica perante várias sociedades nacionais, inclusive a brasileira. A grande mídia (os jornais escritos e televisivos e as revistas de grande circulação) costuma representar essa cultura como uma ode às drogas, representativa de uma ameaça à juventude. Este texto apresenta, de maneira minimalista e invariavelmente precária, o movimento cultural baseado na música eletrônica dançante. Designarei com um neologismo – Eletrônia – este movimento, considerando-o como um lugar imaginário, que condensa abstratamente características peculiares. Eletrônia tem pilares sonoros, constituídos por uma música abstrata, eletrônica e dançante. Primordialmente urbano, este lugar está no plano subterrâneo das cidades. Sua aparição é intermitente, porque nele o tempo obedece a uma disciplina diferente – Eletrônia só é vista enquanto a cidade dorme. Seus habitantes utilizam o termo “cena” como designação. Em seus espaços transcorrem histórias efêmeras ou recorrentes, individuais ou coletivas, protagonizadas por jovens atores. Apesar de disperso pelo mundo, esse lugar pode ser considerado como um “universo de reconhecimento comum” (RACINE, 1999: 71). * Trabalho preparado para apresentação na mesa “Subjetividades sensoriais: consumo de substâncias sintéticas e as cenas eletrônicas” junto ao ST “Linguagens, sensibilidades, corporalidades: culturas jovens urbanas e novas configurações subjetivas”, no XVIII Encontro Nacional da Anpocs, em Caxambu, outubro de 2004. Agradeço aos professores Bruno Pinheiro Wanderley Reis, pela orientação, e Eduardo Viana Vargas, pela preciosa leitura da minha dissertação de mestrado, na qual este texto se baseia.

Transcript of ELETRÔNIA COMO MOVIMENTO CULTURAL - Anpocs

ELETRÔNIA COMO MOVIMENTO CULTURAL* Luciana da Costa Amorim UFMG, Departamento de Ciência Política

É preciso vê-la dançar com todo o coração e com toda a alma! Há nela uma tal harmonia, que é como se não pensasse em mais nada, como se a dança só existisse para ela, e ela só para a dança, e a seus olhos nada mais existisse. (Goethe, Os Sofrimentos do Jovem Werther, p. 27)

Uns tomam éter, outros cocaína. Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. Tenho todos os motivos menos um de ser triste. Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria... (Manuel Bandeira, Não sei dançar, Libertinagem, p.179)

O consumo de determinadas substâncias psico-ativas, as chamadas “drogas

sintéticas”, é um fator que confere a maior visibilidade à cultura centrada na produção e

no consumo de música eletrônica perante várias sociedades nacionais, inclusive a

brasileira. A grande mídia (os jornais escritos e televisivos e as revistas de grande

circulação) costuma representar essa cultura como uma ode às drogas, representativa

de uma ameaça à juventude.

Este texto apresenta, de maneira minimalista e invariavelmente precária, o

movimento cultural baseado na música eletrônica dançante. Designarei com um

neologismo – Eletrônia – este movimento, considerando-o como um lugar imaginário,

que condensa abstratamente características peculiares. Eletrônia tem pilares sonoros,

constituídos por uma música abstrata, eletrônica e dançante. Primordialmente urbano,

este lugar está no plano subterrâneo das cidades. Sua aparição é intermitente, porque

nele o tempo obedece a uma disciplina diferente – Eletrônia só é vista enquanto a

cidade dorme. Seus habitantes utilizam o termo “cena” como designação. Em seus

espaços transcorrem histórias efêmeras ou recorrentes, individuais ou coletivas,

protagonizadas por jovens atores. Apesar de disperso pelo mundo, esse lugar pode ser

considerado como um “universo de reconhecimento comum” (RACINE, 1999: 71).

* Trabalho preparado para apresentação na mesa “Subjetividades sensoriais: consumo de substâncias sintéticas e as cenas eletrônicas” junto ao ST “Linguagens, sensibilidades, corporalidades: culturas jovens urbanas e novas configurações subjetivas”, no XVIII Encontro Nacional da Anpocs, em Caxambu, outubro de 2004. Agradeço aos professores Bruno Pinheiro Wanderley Reis, pela orientação, e Eduardo Viana Vargas, pela preciosa leitura da minha dissertação de mestrado, na qual este texto se baseia.

2

Podem-se distinguir diferentes olhares sobre esse fenômeno social

contemporâneo. De um lado, as sociedades nacionais – a opinião pública, a mídia, os

pais, as empresas e os governos –, ao mesmo tempo em que utilizam as produções

originárias desse lugar para conferir ares de juventude e contemporaneidade a

produtos, discursos e imagens (objetos e fontes de desejo), tendem a condenar suas

práticas ou a fazer delas uma caricatura.

Este não é (infelizmente) um tratamento exclusivamente conferido aos habitantes

e à vida social em Eletrônia. Enquanto grupo etário, jovens são em geral vistos com

desconfiança, ouvidos com indiferença, e tratados como crianças em sociedades que

têm, paradoxalmente, a aparência de juventude como éden. Considerados sujeitos

ainda em formação (e, portanto, incompletos), eles não costumam ter suas visões,

posições, sentimentos e opiniões levadas a sério. Esta geração, sobretudo: pressupõe-se

que os “filhos do fim” – do regime autoritário, no caso brasileiro, de um sistema

ideológico bipolar, da história – não seriam perfeitamente capazes de participar, de

“tomar parte” em projetos comuns.

Em relação a Eletrônia, essa desconfiança toma o consumo de substâncias psico-

ativas como justificação de uma posição depreciativa – o medo da deterioração social,

chamado por uma analista do tema no Reino Unido de “pânico moral” (THORNTON,

1994). Embrutecimento da juventude e o avanço da indústria do rejuvenescimento;

degradação da cultura e fundos musicais de comerciais de telefones celulares; perda do

senso da realidade e a universalização dos centros de compras. Medos e desejos

justapõem-se paradoxalmente quando as sociedades pousam o olhar sobre Eletrônia.

Internamente, o debate tende, ao contrário, à apologia e à afirmação de uma

posição marginal e, por isso, supostamente mais livre das amarras e dos vícios sociais. A

elaboração de valores é auto-referente; Eletrônia é um território que busca invisibilidade

ao “olho do poder” (FOUCAULT, 1995).

A partir da observação do contexto de surgimento dos estilos musicais mais

populares no Brasil1 – house, tecno, trance e drum’n’bass – e da natureza do evento

típico – a festa –, pretendo ressaltar a necessidade de inserir o consumo de substâncias

3

psico-ativas como uma característica populacional, um atributo comportamental lateral

de uma parte dos habitantes de Eletrônia.

O espaço sonoro

Um movimento cultural se define como uma “forma mais frouxa de associação,

definida primordialmente por uma teoria ou prática compartilhada” (WILLIAMS, 1992:

66). As práticas que permitem definir Eletrônia como movimento cultural transitam em

torno de um pólo – a música eletrônica dançante, adiante denominada simplesmente

med. Esse termo merece um esclarecimento, em vista de sua imprecisão. O qualificativo

“eletrônica” refere-se ao meio pelo qual a música é produzida: através de artefatos

eletrônicos2, indicando a primeira característica importante de Eletrônia, qual seja, sua

associação congênita à inovação tecnológica.

A med provém de culturas populares.3 Sua origem primária localiza-se nos

Estados Unidos, na década de 80, e está intimamente ligada à cultura negra, gay e de

clubes4 daquele país.

Toda genealogia é uma aventura, porque implica o estabelecimento de marcos,

em grande medida arbitrários. Esse problema se apresenta não somente nas origens,

mas também na descrição de linhas evolutivas e na caracterização da paisagem musical

atual5. As origens da med poderiam ser perscrutadas no rock, no hip hop, no dub6 e na

1 Conforme os resultados do websurvey que conduzi junto a jovens brasileiros em janeiro de 2004. 2 A referência à tecnologia eletrônica talvez explique por que as cronologias do nascimento da música eletrônica sempre mencionam fatos marcantes do desenvolvimento tecnológico, tais como a invenção do rádio, do fonógrafo, do oscilador, do sintetizador, do computador e de softwares. 3 Contudo, a origem do termo “música eletrônica” distancia-se da acepção a que me refiro neste texto. O termo foi primeiramente utilizado na década de 50, para denominar experiências de músicos eruditos que utilizavam dispositivos eletrônicos, buscando criar um novo paradigma musical, rompendo com os padrões tradicionais da música harmônica. O desenvolvimento desta música eletrônica, a elektronische Musik, cumulou no que hoje se chama de música eletroacústica. Também parece-me justo observar que a distinção entre cultura erudita e cultura popular, apesar de decorrente da definição de cultura originária do Iluminismo alemão, obsoleta em termos analíticos, ainda é socialmente relevante, porque serve de base para classificar e, portanto, para hierarquizar produções culturais. 4 Clube (ou club) é a designação utilizada pelos habitantes de Eletrônia das discotecas, ou boates. 5 Neste sentido, o funk, o rap e o hip hop se enquadram na definição de med, porque são música eletrônica dançante, mas foram excluídos por motivos culturais e, portanto, analíticos: eles conformam uma cultura diferenciada de Eletrônia, com produtores e produções, códigos, estética e comportamentos diferentes daqueles dos habitantes de Eletrônia. Além disso, utilizam intensamente a palavra como

4

discoteca e podem ser encontradas inúmeras possíveis influências posteriores, o que

coloca ao analista o risco de emaranhar-se numa infindável teia de subgêneros.

Para caracterizar o espaço sonoro de Eletrônia, optei pelo minimalismo7,

recuando o mínimo indispensável para definir med e concentrando a descrição nos

estilos atualmente mais populares no Brasil, conforme a tabela seguinte:

Tabela 1 – Estilos preferidos de med (em %)

Estilos % Tecno 57 House 38 Trance 33

Drum'n'bass 20 Eletro 15 Outro 15

Breakbeats 8 Ambient 7 Trip hop 4

Fonte própria, 2004. Resposta múltipla. N=814.

De qualquer maneira, a descrição dos estilos musicais só faz sentido, quando o

objetivo é construir uma categoria analítica, se remeter ao contexto em que eles

surgiram e foram recebidos. Por isso, neste texto a música às vezes se confunde com

seus contextos, espaços e práticas.

“In the beginning there was jack”

O declínio da discoteca não significou o fim da música dançante. Na costa oeste

dos Estados Unidos, em meados da década de 80, dois adolescentes freqüentadores do

elemento produtor de sentido, como forma de posicionamento social e político. Isso tem conseqüências sociais, culturais e políticas específicas que os afastam de Eletrônia, devendo, pois, ser considerados “territórios vizinhos”. 6 Hip hop é um estilo musical que nasce nos Estados Unidos no início da década de 70, originário do rap. Já o dub, gênero que utiliza bases de reggae somadas a baterias eletrônicas, nasceu nos anos 60 e é considerado um dos precursores dos estilos de Eletrônia, especialmente do tecno. 7 Isso conduz a simplificações, dado que me atenho somente às origens, praticamente ignorando os desenvolvimentos posteriores e deixando de espacializar corretamente a produção e a recepção da med. Adicionalmente, o efeito da genealogia de produzir recortes nunca absolutamente correspondentes à realidade salienta o pequeno alcance desta descrição.

5

underground gay nova-iorquino, Larry Levan e Frankie Knuckles, ensaiaram um novo

som, mais percussivo, com batidas mais aceleradas, que utilizava largamente o

sintetizador como instrumento. Esse estilo chamou-se de house.

Lles (2002) afirma que existem várias e controversas histórias para explicar a

origem musical do house. Alguns afirmam que se trata de uma evolução lógica da

discoteca, uma radicalização desta música, a partir da aceleração da velocidade do seu

esqueleto rítmico. Outros negam uma origem única do house, apontando como raízes o

rap, o jazz, o rock, o blues, o eletro, além da disco.

Quanto às origens sociais, o house deve, assim como a discoteca, à cultura gay

as suas regras de solidariedade interna: a busca de pertencimento a uma comunidade

baseada em dança, amor e unidade, um resgate da dimensão corporal e uma libertação

semi-pública do desejo sexual, a busca da felicidade por meio da suspensão subterrânea

de regras sociais dominantes.

De qualquer modo, a origem geográfica e temporal e o criador da house music

são largamente reconhecidos: no clube de Chicago chamado Warehouse, entre 1977 e

1983, o DJ residente Frankie Knuckles, em sessões que duravam até oito horas

ininterruptas, teve a idéia de acrescentar à música cadências de baixos, utilizando os

sintetizadores Roland TR-808 e TR-909, reforçando o ritmo e levando o público, em sua

maioria jovens homossexuais e negros, à loucura. A partir daí, um grupo de jovens

oriundos das áreas mais pobres de Chicago passou a produzir faixas em casa8, gravá-las

em fitas cassete e emprestá-las aos DJs para serem testadas nas pistas de dança.

Segundo Lles (2002: 235), criou-se “un revolucionario sistema de creación con el que

era posible conocer de inmediato el impacto de un tema musical sobre el público al que

iba dirigido”.

O conteúdo emocional do house é definido pela palavra jack, que significa um

estado mental, uma sensação que incita à dança quando se escuta a música. O dançar

ao ritmo do house também foi chamado de jack. O vocal da faixa Can you feel it, de Mr.

Fingers, resume a elaboração da origem espiritual do estilo:

8 Alguns afirmam que a origem do termo house (casa, em inglês) está no fato de a música ser produzida dentro de casa; outros, que o termo se deve ao nome do clube, Warehouse, onde o estilo se consolidou.

6

In the beginning there was Jack And Jack had a groove

And from this groove came the groove of all grooves And while one day viciously throwing down on his box

Jack boldly declared: ‘let there be house!’ And house music was born

De som típico de Chicago, esta música eletrônica com um ritmo reto, dado por

batidas quatro por quatro, diretamente orientada para a pista de dança, transformou-se

numa nova onda do underground mundial. O estilo teve rápida recepção em Nova

Iorque e, na sua forma “ácida”9, orquestrou uma autodenominada revolução na

juventude inglesa no final da década de 80, que ficou conhecida como a “revolução

acid”.

A transcendência tecno

O tecno (ou techno, em inglês) é, cronologicamente, o segundo estilo de med do

ambiente sonoro de Eletrônia. O estilo se converteu numa linguagem universal10,

produzida e entendida pelos habitantes de Eletrônia nos quatro cantos do mundo.

Apesar de sua versatilidade, o tecno “lleva a Detroit grabado en su código

genético” (PRATGINESTÓS, 2002: 262). O estilo nasceu em Belleville, uma pequena

cidade de 3.000 habitantes circunvizinha de Detroit, em meados dos anos 80. Criado por

três jovens negros de classe média, Juan Atkins, Kevin Saunderson e Derrick May, que

ficariam conhecidos como os “três de Belleville”, o estilo tem uma ligação forte,

inusitada e paradoxal com o contexto urbano da Detroit dos anos 80.

A cidade, também chamada de Motor City, exemplo de desenvolvimento dos

Estados Unidos, com a prosperidade trazida pelo setor automobilístico, atraiu em curto

espaço de tempo milhões de pessoas das áreas mais pobres daquele país, como, por

9 O acid house é uma derivação do house surgido em Chicago, com freqüências mais hipnóticas e lisérgicas, produzidas a partir do sintetizador Roland TB-303. Este aparato, originalmente projetado para prover acompanhamento de baixos para instrumentistas, foi um fracasso comercial, porque o som que produzia era demasiado diferente do som produzido acusticamente. Nas mãos dos produtores de Chicago, o Roland TB-303 “became capable of generating tense, frightening, and orgiastic music” (ESHUN, 2000: 76). A primeira faixa de acid house chama-se Acid Trax-Phuture, produzida por Phuture. 10 Para se ter uma idéia, na França todos os estilos de med, que me esforço em diferenciar neste texto, são indistintamente chamados de la techno.

7

exemplo, as comunidades rurais negras de Alabama, Mississipi e Geórgia. No início dos

anos 80, o declínio da indústria automobilística e a “fuga branca” para os subúrbios

trouxeram desemprego e empobrecimento, que, somados aos distúrbios raciais de

1967, mergulharam a cidade numa “espiral de decadencia que ha convertido a la capital

del motor en la de la pobreza y el crimen en Estados Unidos” (PRATGINESTÓS, 2002:

263). Tais mudanças transformaram radicalmente a paisagem urbana, prédios no centro

da cidade foram abandonados, ruas ficaram cheias de lixo, dando à cidade,

subitamente, para os padrões norte-americanos, um visual pós-apocalíptico.

A decadência econômica da cidade mais racialmente dividida dos Estados Unidos

trouxe uma desilusão com o presente, principalmente por parte de grupos socialmente

excluídos como os negros. Nas palavras do produtor e DJ Derrick May, “Detroit’s an

industrial city. It’s a wasteland of ideas. Detroit is the type of place where you can only

dream of what the rest of the world is like” (citado por Rubin, 2000: 108).

Num ambiente cinza, o tecno nasce com a perspectiva – paradoxal – de projeção

do futuro. Da desilusão com o presente advém a invenção de um futuro ultra-humano:

os três de Belleville se auto-intitularam “os rebeldes do tecno”, inspirados no livro de

Alvin Toffler, “A Terceira Onda”11. Uma estética futurista e de anonimato se formou em

torno do estilo. Os músicos de Detroit fundaram seus próprios selos12 e começaram,

eles próprios, a lançar suas músicas com uma variedade de pseudônimos – ou alter

egos. O estilo, inicialmente identificado como o “som de Detroit”, criado quase

simultaneamente ao house, tem com este estreita ligação, dado que os criadores do

tecno viajavam sempre a Chicago, esperando ver sua música tocada por DJs como

Frankie Knuckles. No entanto, enquanto no house ecoava fortemente o legado da

discoteca e sua celebração hedonista do presente, o som de Detroit se apoiava mais no

11 Toffler imagina os rebeldes tecno da seguinte maneira:

“los techno-rebels son, lo reconozcan o no, agentes de la Tercera Ola. En los próximos años no solo no desaparecerán, sino que se multiplicarán. Ellos forman parte del avance a un nuevo nivel de civilización, tanto como nuestras misiones a Venus, nuestros sorprendentes ordenadores, nuestros hallazgos biológicos o nuestras exploraciones de las profundidades oceánicas” (TOFFLER, A Terceira Onda, citado por Pratginestós, 2002: 267).

12 Selo, ou label, é uma empresa de pequeno porte responsável por lançamentos de faixas, sua produção e às vezes também comercialização e distribuição.

8

funk, projetando o futuro a partir de BPMs13 até então inexplorados. De qualquer forma,

o som de Detroit só passou a ser considerado como um estilo de med, diferenciado da

house em 1988, quando o nome techno foi popularizado pela compilação britânica

Techno!: the new dance sound of Detroit.

Improbabilidade elevada à potência e concretizada: num lugar improvável,

improváveis produtores musicais criaram uma música a partir da junção improvável de

tradições musicais totalmente distantes entre si e transmudaram-nas. May, Atkins e

Saunderson foram influenciados por inumeráveis e diversas referências musicais, muitas

delas alheias à tradição musical afro-americana, tais como a banda de eletro-pop alemã

Kraftwerk, The Clash e a new wave britânica14. Apesar das múltiplas influências, o tecno

não se parece com nenhuma delas; é uma música abstrata, mental e hipnótica, que

ativa a mente antes de ativar o corpo. Dançar passa a ser uma quase conseqüência

lógica, um desdobramento corporal de estados mentais sonicamente produzidos.

Em parte devido à falta de referências raciais explícitas15, em parte devido à

abstração da música (sem vocais, com batidas aceleradas e muito diferente de tudo o

que já se ouvira), o tecno, criado por negros nos Estados Unidos, foi renegado pela

comunidade afro-americana e, paradoxalmente, considerado uma música branca.

Enquanto a imprensa britânica dizia que Derrick May era o Miles Davis do tecno, os

Estados Unidos os ignoravam e Detroit seguia sendo o império do booty16. Nas palavras

de Rubin (2000: 120),

where hip-hop became the (purportedly) verité narrative chronicling the inequities of American’s inner cities, techno’s sci-fi soundscapes became the soundtrack to a cerebral ticket out, not so much escapist as

13 O termo significa batidas por minuto (ou beats per minute) e refere-se, grosso modo, à velocidade da música. 14 Essa variedade de influências é em grande parte atribuída a um DJ de rádio, The Electrifying Mojo, que tinha um programa, The Midnight Funk Association, que reunia numa mesma sessão Aretha Franklin, The Clash e James Brown, B-52’s e música clássica. 15 Segundo Rubin,

“Atkins chose the name Model 500 for the project as a way of ‘repudiating ethnic designations’ and cloaking his persona behind a machine-like veil; May, Saunderson, and many others would later follow suit. It would be this elimination of any telltale emblems of African American identity that would eventually come back to haunt the Detroiters in their search for a black audience” (2000: 116).

16 Booty music é uma qualificação dada a músicas provenientes do hip-hop, rap e r’n’b, com referências raciais e sexuais.

9

transcendent; it wasn’t a report of what was going on around them, but rather an open-ended prophecy of what might yet be (grifos meus).

Dessa forma, os três de Belleville, “desterrados em sua própria terra” –

recontextualizando as palavras de Holanda (1995) –, foram à Europa, onde atraíram

atenção e lançaram raízes para um dos movimentos musicais mais expressivos da

década de 90 na terra de Eletrônia. Segundo Rubin (2000: 111), “by the early nineties,

the English music press, like-minded musicians in Berlin, and ecstatic crowds from

Amsterdam to Zurich had all embraced the Detroit pioneers as dancefloor deities.” Além

disso, a Inglaterra vivia em 88 o Verão do Amor, e a novidade musical vinda do Novo

Mundo foi entusiasticamente recebida pelos eufóricos e festivos clubbers.

Assim, com exceção da breve existência do Music Institute, clube que funcionou

em Detroit em 1988 e 1989, sem licença para vender álcool, com uma clientela

majoritariamente negra que dançava da meia-noite até o limite de forças do corpo, os

produtores de Detroit abandonaram musicalmente sua cidade natal17. “Art music snobs

or urban dancefloor guerillas? The forefathers of techno still don’t see why they can’t

have it both ways”, conclui Rubin (2000: 123).

Narrar a origem do tecno não é suficiente para explicar como atualmente o estilo

é produzido e recebido por japoneses, alemães, brasileiros, poloneses, dentre outros de

muitas outras nacionalidades. Essa lacuna, porém, não é exclusivamente minha, como

se percebe pelas palavras de Collin (1998):

El techno es la historia jamás contada de la música electrónica. Los discos de los que nadie ha oído hablar, que arrasan en las listas, las fiestas a las que los medios nunca acuden porque se celebran en Convetry o Plymouth, los productores que nunca son entrevistados, los DJs a los que nunca se ofrece trabajo como remixers porque tampoco aparecen en esas revistas, los clubbers que no tienen la suficiente edad para pedirse una copa en la barra, las emisoras piratas que pinchan los discos que las legales no se atreven pero que esos adolescentes compran, la red invisible que une Europa alrededor de un bombo. Esta es una historia imposible de contar. Demasiada gente, demasiados sitios, demasiados discos, demasiada información para ser impresa de una forma racional y digerible. (COLLIN, Altered State – The Story of Ecstasy Culture and Acid House, citado por Pratginestós, 2002: 275).

17 Nas palavras de Carl Craig, considerado o garoto prodígio da segunda geração de Detroit,

“techno is no words, no lyrical content. We are like ‘here it is, like it or not, let your body move to it, it’s African rhythms mixed with European melodies, let’s see what you can do with it,’ and they were like, ‘Fuck you.’ So we went to Europe” (citado por RUBIN, 2000: 122).

10

Trance: “God is a DJ“ 18

Uma das sementes do tecno, lançada em solo alemão, floresceu em 1992 e

originou o trance. Musicalmente, trata-se de um estilo composto de ritmos rápidos,

batidas retas, mas que, diferentemente do tecno e do house, tem nas linhas melódicas

e ácidas a sua base.

O trance merece ser tratado separadamente menos por sua constituição musical

do que pela especificidade dos códigos, estética, festas e comportamentos dos

produtores e consumidores do estilo. Inclusive, talvez seja essa uma das razões para o

tratamento pejorativo dado por vários dos que preferem outros estilos de med. De fato,

pode-se dizer que o trance é um pária da med, renegado inclusive por seu pai criador,

Sven Väth, um produtor de tecno de Frankfurt que, após alguns anos, abandonou o

estilo por considerá-lo esgotado em termos de suas possibilidades de criação musical.

A despeito de sua origem “bastarda” na Alemanha, o trance encontrou sua pátria

num lugar, no mínimo, inusitado: a ilha de Goa, ao sul de Bombaim, no Oceano Índico.

Antiga colônia portuguesa, nos anos 70 Goa era uma espécie de entreposto, uma

parada obrigatória dos hippies a caminho de Katmandu. Nesse local, distante da Europa,

formou-se uma comunidade constituída por antigos hippies, especialmente fãs do rock

progressivo de bandas como Pink Floyd; viajantes eternos (ou nômades) vindos dos

diferentes rincões do planeta; e uma geração de acid-boys19 internacionais vindos da

França, Alemanha e Inglaterra, que, munidos com a parafernália eletrônica recém-

transformada em instrumentos musicais e influenciados pelas melodias psicodélicas e

alucinógenas do rock progressivo, adaptaram o trance alemão, criando o goa trance, ou

trance psicodélico.

As batidas e o BPM alucinante do trance deviam-se a uma proposta musical e

espiritual: criar e executar uma música que ecoasse o mais longe possível, fundindo-se

com o universo, e que provocasse transe em quem a escutasse (daí o nome trance). A

proximidade da Índia culminou em referências à cultura hindu na estética e, segundo

alguns, no modo de vida dos tranceiros, como são chamados os ouvintes e produtores

18 Título de uma faixa produzida pela banda de trance “Faithless”. 19 Aqueles que viveram o “Verão do Amor”, animado pelo som do acid house.

11

de trance no Brasil. Assim, é praticamente obrigatória a decoração de raves de trance

com imagens de Shiva e Ganesh, divindades da religião hindu.

O trance é o menos urbano dos estilos de med. As festas acontecem em geral em

localidades fora das grandes cidades, em campos, matas e praias, podendo durar até

dez dias, ou até mesmo ter o propósito de não acabar (as chamadas non-stop parties).

A relação com a natureza, a alusão à espiritualidade e à religião são aspectos

dissonantes da cultura dominante de Eletrônia.

Drum’n’bass: batidas quebradas para o mundo

O drum’n’bass (ou jungle, como foi originalmente chamado) é a primeira forma

indígena de música negra do Reino Unido20. O estilo nasce no início da década de 9021,

na esteira de um movimento musical chamado hardcore, contrário ao mainstream em

que se transformara a dimensão house e tecno de batidas retas. (Após o que se

chamou de “revolução acid” ou de “fenômeno rave”, o momento da cena britânica de

música eletrônica era de popularização e de uma certa institucionalização, o que era

encarado com pessimismo por alguns de seus membros.)

Musicalmente, o drum’n’bass (chamado adiante simplesmente de db) tem uma

base rítmica bem diferente dos estilos até aqui caracterizados. Enquanto house, tecno e

trance baseiam-se em batidas retas, o drum’n’bass constitui-se de padrões de baterias

disjuntos – o drum – e linhas de baixo subsônicas – o bass. É considerado uma evolução

acelerada do hip hop, com raízes na cultura reggae, uma complexa combinação de

breakbeats e samples possibilitada pelos avanços da tecnologia de sampling digital22. A

20 Diferentemente de estilos como house, techno, hip hop, reggae e blues, largamente difundidos no Reino Unido, mas originários da Jamaica ou dos Estados Unidos. Nas palavras do DJ britânico Goldie,

“El jungle es la primera forma de música que no nos ha sido importada como una moda desde otro lugar. Es nuestra experiencia urbana, nuestra cultura del gueto” (citado por BLÁNQUEZ, 2002: 407).

21 Alguns estabelecem como marco temporal de fundação do estilo a introdução da técnica de timestrechting (capacidade de manipular vozes ou fragmentos de som a uma velocidade diferenciada da base rítmica) pelo produtor Goldie em 1992 (Sharp, 2000: 7), autor da faixa considerada como a primeira música de db: Inner City Life. 22 Neste sentido, o artefato tecnológico decisivo foi o sampler Akai S1000. Sharp (2000) considera os produtores de db munidos deste instrumento como versões high-tech do herói decadente de O Perfume,

12

meta do jungle era explorar as possibilidades inerentes às batidas quebradas,

transformando a busca de intensidade em uma energia abstrata, uma “psicodelia

rítmica” – “o cérebro distribuído por toda a pele”, como afirmou Eshun (citado por

BLÁNQUEZ, 2002). O db é largamente percebido como criado por e para negros

insatisfeitos com o “tecno branco”.

A criação do jungle é contemporânea ao início da crise econômica na Inglaterra

pós-thatcherista. Moldado pela classe baixa urbana – um agregado confuso de negros,

jamaicanos e lumpen-proletariado –, o estilo se consolida como uma “inner city ghetto

music”, constituindo-se como uma via de escape, musical e futurista, daquela realidade.

Desse modo, uma geração desiludida, que não ansiava pelo futuro, mas apenas pelo

próximo fim de semana, produziu o seu meio de transcendência social, “celebrating the

cheap, unreflective, pirated pleasures of suburban life while simultaneously evoking the

sheer moodiness of the decaying, crime-ridden inner cities in the rolling bass and

hypertense, metallic percussion” (SHARP, 2000: 137).

Reflexo dos estímulos oferecidos pela experiência urbana, elaboração espiritual

dos sentimentos vigentes, principalmente da falta de alegria inerente ao interior das

cidades do final do século XX, o jungle permite dar vazão à desilusão com a vida

cotidiana. Funciona, pois, como um catalisador da violência; uma música revestida de

uma aura de vileza, com síncopes que mantêm espaço e tensão nos ritmos.

A plasticidade do gênero, seu potencial para absorção de vários estilos musicais

contribuiu para sua difusão fora de Eletrônia23. Blánquez (2002: 408) percebe o db

como “una manera única de integrar toda la tradición de la música negra, del blues al

hip hop y del techno, en un saco sin fondo perfectamente organizado.”

A cena de Eletrônia

O espaço sonoro de Eletrônia é seu traço mais característico. Contudo, como se

viu, a descrição da paisagem sonora encerra também elaborações referentes ao

de Patrick Süskind, que levava horas para construir perfumes elaborados a partir de uma enorme paleta de aromas. 23 No caso brasileiro, um exemplo desse potencial expansivo e plástico do db é o sucesso obtido por algumas produções situadas na fronteira entre MPB e música eletrônica.

13

contexto e a seus habitantes. Estes agrupam-se em torno de preferências por algum

dos estilos mencionados, formando, assim, comunidades de gosto, taste cultures, como

define Thornton (1994). Restam, entretanto, indefinições a respeito da organização do

espaço físico e temporal de Eletrônia. Quais espaços? Quando? Quais eventos? Como é

possível? Quais práticas e elaborações dessas práticas?

“Cena”, termo utilizado no discurso interno ao movimento cultural, pode ser

frutífero também em termos analíticos, porque aborda aspectos importantes de

Eletrônia: seu espaço, seu tempo e seus atores.

Urbanos, os horizontes de Eletrônia são predominantemente “cidades mundiais,

onde se cruzam e convergem os diversos fluxos de pessoas, bens, tecnologias,

informação e imagens” (FEATHERSTONE, 1996: 29). Nas cidades, a unidade menor

típica de Eletrônia são clubes, mas também podem ser festas privadas, festivais e

paradas24. A exceção são as raves25, que acontecem nos arredores das cidades, em

zonas campestres ou balneárias.

Os clubes, templos de excesso em que a parcimônia é deixada na porta de

entrada, freqüentemente localizam-se em locais inusitados ou subterrâneos da cidade,

como em prédios desativados, estações de metrô etc.

É da festa que o elemento “dançante” do termo med emerge. Nela, os sentidos se

misturam, a audição se faz não só pelos ouvidos, mas por todo o corpo, devido ao

caráter rítmico da música e à predominância de sons graves. “Banhar-se na música” não

é, pois, apenas uma metáfora. (Talvez este seja o maior problema de saúde pública de

Eletrônia: o volume com que a música é executada danifica progressiva, mas

irreversivelmente, a audição.)

A visão também é alterada: o escuro dos clubes e da noite em festas abertas é

decorado com luzes estroboscópicas, “negras” e coloridas que piscam segundo os ritmos

24 Festivais são eventos periódicos pagos de grande porte. Paradas acontecem nas ruas de cidades como São Paulo, Berlim, Paris, Londres, Zurique etc. 25 Mesmo as raves, que acontecem em locais fora dos centros urbanos, costumam ser organizadas e freqüentadas por moradores das cidades. Racine (1999: 17) descreve o trajeto típico da cidade às raves nos arredores de Paris:“Partir sans trop avoir où l´on va. Faire du chemin. Sortir de Paris, emprunter des autoroutes, des routes. Trouver l´endroit.”

14

da música. Além de luzes, há também imagens, produzidas por video-jockeys, que

procuram visualizar o fluxo musical produzido pelo DJ.

A música é o princípio organizativo das emoções e das ações dos presentes na

festa. Segundo Racine (2002: 21),

(...) la musique stimule et organise l’énergie mise à la disposition du vécu de l’évenement. Elle procure des émotions à l’individu en même temps qu’elle devient un lien, un dénominateur commun, un liant avec l’ensemble des autres participants. Les états particuliers atteints, souvent qualifiés de ‘liberateurs’, alternent entre le ressenti de l’effervescence collective et l’exploration de ses propres sensations internes.

Racine (2002: 46) aponta a ausência de um pólo cênico na festa, o que a

aproxima mais de um baile do que de um show: “l’espace de la fête techno n’est pas

structuré selon une hiérarchie ou une répartition sociale. En cela elle diffère de la

pluspart des manifestations musicales.” Esse descentramento do evento constitui, pois,

um fator de horizontalização, que proporciona um sentimento de unidade e igualdade, e

transforma a festa num microcosmo de convivência em que as relações sociais são

reguladas por códigos internos, atenuando consideravelmente normas estabelecidas em

escalas mais largas ou a partir de fatores nacional ou universalmente referidos. Marcas

sociais distintivas como roupas, religião, cor da pele, origem social, opção sexual são

pouco ou nada importantes, porque não interessam para o objetivo do evento: diversão.

O fator de diferenciação na festa segue critérios próprios de Eletrônia, que dizem

respeito ao grau de proximidade dos indivíduos com o “centro de poder subcultural” e

também a preferências em torno dos estilos.

A festa é percebida pelos participantes como um fim em si mesmo, quando se

poderia “respirar”, relativamente livre de algumas das amarras da vida em sociedade.

Como se as preocupações cotidianas, de ordem social, econômica, familiar etc. –

juntamente com o comedimento – fossem deixadas na porta de entrada. Na festa pode-

se ensaiar qualquer outra identidade, qualquer outra vida, aparência e hábitos. Ela

constitui, portanto, uma alternativa de libertação, ainda que temporária, dos

15

constrangimentos da vida social. Uma experiência, além de lúdica, eminentemente

estética26.

A noite é o tempo de Eletrônia. A festa normalmente começa à noite e termina ao

raiar do sol. Pode, entretanto, prolongar-se: raves e festivais costumam atravessar a

manhã e até a tarde do dia seguinte. Algumas raves duram vários dias, e há clubes em

que só desligam o som quando o último cliente pára de dançar. O tempo dos eventos

também contribui para nomeá-los: a festa principal pode prolongar-se em chill-ins, chill-

outs e after hours.27

Assim, acontece em Eletrônia uma subversão do ritmo da vida: vive-se a noite,

dorme-se o dia. Quanto maior a posição subcultural, maior a inversão do tempo: na vida

dos profissionais de Eletrônia, a inversão é total. O mesmo acontece com os habitués.

Quanto à maioria, porém, essa subversão é parcial.

Essa inversão do tempo é um atributo de invisibilidade. Eletrônia é território que

desaparece ao nascer do sol, inserindo novamente seus habitantes na vida real:

en voiture ou en train, dans les gares, les villages, les communes de grande banlieue ou les mégapoles, s’engage alors la réimmersion dans une vie sociale qui paraît bien banale et en même temps étrangère: gens promenant leur chien, familles se rendant à un repas dominical, pompiste ou boulangère oeuvrant de façon routinière (RACINE, 2002: 40).

O ambiente químico

Parece difícil descrever Eletrônia sem passar pela questão do consumo de

produtos sintéticos, dada sua grande visibilidade perante as sociedades nacionais. De

26 Além da dimensão estética, festas funcionam como ritos de passagem. Sabemos que, diferentemente das formas tribais de organização social, as sociedades ocidentais modernas, com a divisão do trabalho e a crescente especialização da sociedade e da cultura, não contam com ritos marcantes da passagem de um estado social para outro. Nelas a transição parece ter se tornado uma espécie de condição permanente, institucionalizada, fazendo surgir “entidades em limiar” (TURNER, 1969): indivíduos que, tendo optado por se posicionar fora da ordem social baseada no status, acentuariam relações pessoais ao invés de obrigações sociais, demonstrando que não têm status, propriedade ou insígnia que indique grau, papel ou posição em um sistema hierarquicamente estruturado, podendo ser representados como não possuindo nada. Com esse comentário desejo enunciar que as festas de Eletrônia promovem, paulatinamente e de acordo com o grau de envolvimento com essa cultura, o “tornar-se” de seus membros.

16

fato, em Eletrônia o uso de algumas substâncias psico-ativas (além do álcool e

medicamentos controlados, permitidos em quase todos os países ocidentais) é lícito.

54% dos entrevistados afirmaram fazer uso regular de substâncias psico-ativas.

Contudo, não quaisquer substâncias, tampouco em quaisquer ocasiões, como sugere a

tabela 2, que relaciona a freqüência dos consumidores de substâncias psico-ativas em

Eletrônia com os tipos de substâncias consumidas.

Tabela 2 – Freqüência do uso de drogas ilegais por tipos de drogas consumidas (em números absolutos)

Nunca Menos de 1

por mês Pelo menos 1 vez por mês

Várias vezes por mês

Todo fim de semana

Todo dia Total

Maconha 0 107 110 74 37 40 368 Ecstasy 0 139 88 54 20 10 311 LSD 0 63 52 33 13 10 171 Cocaína 0 28 42 21 15 5 111 Haxixe 0 18 31 28 10 12 99 Lança-perfume 0 42 30 20 2 4 98 Speed 0 26 17 11 4 2 60 Ketamina 0 15 7 9 2 1 34 Cogumelos Mágicos 0 9 10 7 3 4 33 GHB 0 3 1 1 1 0 6 Heroína 0 0 1 0 0 1 2 Crack 0 0 0 1 0 0 1 Ox 0 0 0 1 0 0 1 Fonte própria, 2004. Resposta única com relação à freqüência do consumo e múltipla quanto às opções de substâncias. N=814. Ox não existe, tendo sido inserida apenas como variável de controle da sinceridade dos entrevistados.

Na tabela acima percebe-se o baixo número de respostas positivas quanto ao

consumo de heroína, GHB e crack. As substâncias preferidas podem ser ordenadas, em

ordem crescente, da seguinte maneira: maconha, ecstasy, LSD, cocaína, haxixe, lança-

perfume e speed.

A regularidade do consumo envolve variações. De maneira geral, o consumo

ocorre menos de uma vez por mês ou pelo menos uma vez por mês, especialmente

quando se trata de substâncias mais “fortes”, como ecstasy e LSD. Drogas consideradas

mais leves, como maconha e haxixe, são consumidas mais freqüentemente (vide as

colunas “todo fim de semana” e “todo dia”).

27 Chill in é o “aquecimento” para o evento principal, que pode acontecer em bares ou em casas de amigos. Chill out acontece depois da festa, usualmente em casas de amigos. After hours acontecem em clubes e são um prolongamento, que pode durar até a noite do dia seguinte, do evento principal.

17

A substância preferida pelos entrevistados é a maconha. A segunda opção é o

ecstasy, cujo consumo ocorre mais esporadicamente se comparado com a maconha

(vide os números mais altos nas colunas “menos de uma vez por mês” e “pelo menos

uma vez por mês”).

Além disso, o consumo das substâncias elencadas na tabela 2 é, na visão dos

entrevistados, lúdico. Perguntados sobre as razões para consumir drogas ilegais, a

grande maioria dos entrevistados escolheu a opção “diversão”, como se percebe na

tabela 3.

Tabela 3 – Principais razões para o consumo de substâncias psico-ativas (em %)

% Diversão 57 Para ficar mais aberto 19 Para esquecer os problemas 11 Para me manter acordado 7 Com drogas o sexo é melhor 3 Tédio 3 Porque as pessoas que eu conheço também usam 2 Eu não consigo dizer não 1 Fonte própria, 2004. Resposta múltipla.

Dentre as drogas que caracterizam o ambiente químico de Eletrônia, o ecstasy é,

portanto, a mais característica. Tratam-se de pílulas que contêm, além de anfetaminas,

uma substância chamada MDMA, desenvolvida em 1912 pela empresa farmacêutica

alemã Merck. A substância jamais chegou a ser comercializada, até que em 1965 o

bioquímico norte-americano Alexander Shulgin passou a utilizá-la com fins terapêuticos,

por suas virtudes em tornar os pacientes mais receptivos ao tratamento psicoterápico.

Em 1984, o ecstasy começou a ser produzido e consumido em larga escala nos Estados

Unidos. Com a criminalização em 1985 do seu uso naquele país, a substância foi levada

à Europa, principalmente a destinos de veraneio como a ilha de Ibiza. O final do ano de

1988, quando o ecstasy foi consumido em larga escala naquele balneário espanhol,

ficou conhecido como o Verão do Amor.

Felicidade adquirida e consumida em pílulas, o ecstasy provoca uma profunda

sensação de bem-estar e empatia, a impressão de se estar em comunhão com os

18

outros. A substância ativa uma sensação de amor sublimado. O depoimento de Keane

(1997) é bastante ilustrativo das condições e dos efeitos do consumo da substância no

interior de Eletrônia:

I went to a club with my flat mate, a close friend. When we arrived she suggested that we drop some ‘E’. I was really fed up, isolated and trapped in a boring little world over which I felt I had no control so I thought what the hell and bought, bit and swallowed my way to what I hoped would be oblivion. Nothing happened for a good half an hour. We had taken half each, and with immediate cynicism I decided it hadn’t been enough. I danced somewhat self consciously, eyes towards my feet. Then a sensation. A warmness in my stomach that spread through my body. After a few minutes I felt a tingling in my neck and then a splurge of gloriously happy energy, steeping my thoughts in an emotional blur of love and excitement. It was as if I were at a concert and music had washed over me with that delicate emotional frisson only some singers can produce, lifting me high. I was ready to slip back down into normality but found that each successive surge of warmth up my neck was taking me further into joy. It was almost too much for me to take. I couldn’t remember ever feeling that good. What was more suprising was that I could think with a freedom that I hadn’t known before. I looked at my friend and was able to dismiss much of the normal flatmate angst one picks up when living with someone and see her for the wonderful friend that she was. I could dance in an unrestrictive way, feeling that my body would respond to anything I asked of it, and it did. I looked around and felt confident to search out the eyes of attractive men. It was as if I had been given an intuitive energy that allowed me to look at myself and my environment as it was, without fear, and know what I wanted from it (KEANE, 1997: 129-130).

Conclusões

A descrição dos principais estilos musicais permite concluir que existem

características comuns, formando um cerne distintivo do território chamado Eletrônia,

dado não só pela tecnologia eletrônica de produção musical, mas também pela

marginalidade dos contextos de surgimento da med. O hedonismo inclusivo da house; a

proposta de horizontalização underground do tecno, renegando a divisão racial numa

sociedade racialmente dividida; a relação livre com a divindade do trance; e o grito de

desilusão do db britânico podem ser considerados elaborações subculturais, que correm

em sentidos dissonantes das visões de mundo predominantes.

Enquanto as sociedades nacionais “espetacularizam” a vida, os habitantes de

Eletrônia fazem bailes ao invés de shows. Enquanto as sociedades nacionais idolatram

seu passado e fazem seus cidadãos crerem que o futuro a eles pertence; que tudo pode

19

ser diferente, mudado, os habitantes de Eletrônia procuram eternizar o presente.

Enquanto a civilização ocidental se baseia na herança de luzes do Iluminismo, no

projeto de “dominação por iluminação”28, Eletrônia funda seus pilares no escuro,

buscando desaparecer para os não-membros, recolhendo-se ao subterrâneo à procura

de invisibilidade – tática de resistência contra a absorção por um mundo

crescentemente normatizado, tecnificado, automatizado.

No ano de 2002 circulou na internet entre os habitantes brasileiros de Eletrônia o

que ironicamente se chamou de “frase da década”, atribuída a um funcionário da

empresa de video games Nintendo Inc., que teria dito em 1989 o seguinte: “video

games não influenciam crianças. Quer dizer, se o Pac-man tivesse influenciado a nossa

geração, estaríamos todos correndo em salas escuras, mastigando pílulas mágicas e

escutando músicas eletrônicas repetitivas.”

O ecstasy, juntamente com outras substâncias psico-ativas, deve ser considerado

como um atributo lateral de Eletrônia, que, apesar de presente em seu ambiente, não

é, como espero haver apontado, o elemento cultural conformador de suas práticas e

produções.

28 Foucault (1979: 216-7) associa à concepção iluminista de poder o medo do escuro:

“Um medo assombrou a segunda metade do século XVIII: o espaço escuro, o anteparo de escuridão que impede a total visibilidade das coisas, das pessoas, das verdades. Dissolver fragmentos de noite que se opõem à luz, fazer com que não haja mais espaço escuro na sociedade (...). Os romances de terror, na época da revolução, desenvolvem uma visão fantástica da muralha, do escuro, do esconderijo e da masmorra (...) Ora, estes espaços imaginários são como a ‘contra-figura’ das transparências e das visibilidades que se quer estabelecer. Este reino da ‘opinião’, invocado com tanta freqüência nesta época, é um tipo de funcionamento em que o poder poderá se exercer pelo simples fato de que as coisas serão sabidas e de que as pessoas serão vistas por um tipo de olhar imediato, coletivo e anônimo. Um poder cuja instância principal fosse a opinião não poderia tolerar regiões de escuridão.”

20

Referências bibliográficas

BANDEIRA, Manuel. Não sei dançar. In: Libertinagem, Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958. Vol 1, p. 179

BLÁNQUEZ, Javier. Progresión Lógica: jungle, drum’n’bass y 2step. In: BLÁNQUEZ, Javier; MORERA, Omar. Loops: Una Historia de la Música Electrónica. Barcelona: Reservoir Books, 2002. p. 407- 437. COLLIN, Matthew. Altered state: the story of ecstasy culture and acid house (Second Edition), Serpents Tail, 1998. ESHUN, Kodwo. House: the reinvention of house. In: Shapiro, Peter (Ed.). Modulations: A history of electronic music: throbbing words on sound. Nova Iorque: Caipirinha Productions, 2000. p. 72-87. FEATHERSTONE, Mike. Localismo, globalismo e Identidade Cultural. Sociedade e Estado, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, vol. XI, no. 1, jan/jun, 1996. p. 9-41 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Underground. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 2029.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

GOETHE, Wolfgang. Os sofrimentos do jovem Werther. São Paulo: Editora Martins Claret, 2002.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Tradução: Lino Vallandro e Vidal Serrano. São Paulo: Globo, 2001. KEANE, Jonathan. Ecstasy in the unhappy society. In: HALL, Stuart; MASSEY, Doreen; RUSTIN, Michael (Ed.). Soundings. Londres: Cambridge University Press, issue 6, summer, 1997. LLES, Louis. La casa de Jack: ritmo y deseo. El primer imperio del house (1985-1995). In: BLÁNQUEZ, Javier; MORERA, Omar. Loops: una historia de la música electrónica. Barcelona: Reservoir Books, 2002. pp. 230-260.

PRATGINESTÓS, Raül G. El shock del futuro: techno, Detroit y más allá (1982-1993)”. In: BLÁNQUEZ, Javier; MORERA, Omar. Loops: una historia de la música electrónica. Barcelona: Reservoir Books, 2002. p. 261-289.

RACINE, Étienne. Le phénomène techno: clubs, raves, free-parties. Paris: Auzas Editeurs Imago, 1999. RUBIN, Mike. Techno: days of future past. In: SHAPIRO, Peter (Ed.). Modulations: a history of electronic music: throbbing words on sound. Nova Iorque: Caipirinha Productions, 2000. p. 108-129.

SHARP, Chris. Jungle: modern states of mind”. In: SHAPIRO, Peter (Ed.). Modulations: a history of electronic music: throbbing words on sound. Nova Iorque: Caipirinha Productions, 2000. p. 130-155.

21

SÜSKIND, Patrick. O perfume. Rio de Janeiro: Record/Atalaya, 1985. THORNTON, Sarah. Moral panic, the media and British rave culture. In: ROSS, Andrew; ROSE, Tricia (Ed.). Microphone fiends: youth music and youth culture. Nova Iorque: Routledge, 1994. p. 176-192.

TOFFLER, Alvin. A Terceira Onda. Tradução de João Tavora. Edição 14. ed.. Rio de Janeiro: Record, 1980. TURNER, Victor W. The ritual process: structure and antistructure. Chicago: Aldine, 1969.

WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

Discografia citada

FAITLESS. God is a DJ. FINGERS, Mr. Can you feel it (Vocal Version). In: Trax, 1986. GOLDIE (presents Metalheadz). Inner city life. Licenciada pela Polygram Licensing Division (P) 1994 ffrr. In: TOPE, Frank et al (compiladores). Drum’n’bass Muzik classics: the defining moment of drum’n’bass. Londres, 1998. 2 CDs. Faixa 1.

PHUTURE. Acid Tracks – Phuture (Herb Jackson, Spanky e DJ Pierre). In: Trax, 1987.

22

Resumo

Este texto apresenta Eletrônia, um movimento cultural da juventude centrado no consumo e na

produção de música eletrônica dançante, abordando suas principais dimensões: sonora, geográfico-

temporal e química.

A caracterização será feita através da genealogia das práticas e produções próprias do cenário

transnacional de música eletrônica dançante, e orientada pelos resultados do survey conduzido junto a

jovens brasileiros em janeiro de 2004.