DO MOVIMENTO E OUTRAS LIBERDADES / From movement and other freedoms

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DO MOVIMENTO E OUTRAS LIBERDADES Flávia Regina Marquetti * Ao Prof. Wilcon Pereira, amante das liberdades. Resumo: O presente artigo aborda o conceito de conto e analisa o conto de Albert Camus, Jonas ou o artista no trabalho, contrapondo-o à obra de Magritte, A Flexa de Zenão. Palavras-chave: conto, tensão, equilíbrio, existencialismo, liberdade. Falar sobre o conto é equilibrar-se sobre um tênue fio de seda, que ora vemos ora não. Os teóricos nos apresentam várias definições, os autores outras tantas, mas todas se perdem, ou talvez se encontrem, na afirmação de que um grande conto não se encaixa em qualquer teoria ou modelo e é por isso mesmo que ele é grande. Ao que tudo indica, o conto é um insight, uma iluminação que o autor tem sobre a forma e o tema do mesmo. E, portanto, ele não o teoriza, escreve-o. Partindo de autores como Cortázar, Borges, Saer e teóricos como Píglia, Couto e Aurélio Buarque e de suas opiniões sobre o conto, procuraremos estabelecer um eixo, ou ao menos, algumas balizas sobre esse obscuro objeto de estudo. * Prof. Dra. da área de Teoria Literária e Bolsista FAPESP de Pós- Doutorado

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DO MOVIMENTO E OUTRAS LIBERDADES

Flávia Regina Marquetti*

Ao Prof. Wilcon Pereira, amante das liberdades.

Resumo: O presente artigo aborda o conceito de conto e analisa o conto

de Albert Camus, Jonas ou o artista no trabalho, contrapondo-o à obra de

Magritte, A Flexa de Zenão.

Palavras-chave: conto, tensão, equilíbrio, existencialismo, liberdade.

Falar sobre o conto é equilibrar-se sobre um tênue fio

de seda, que ora vemos ora não.

Os teóricos nos apresentam várias definições, os

autores outras tantas, mas todas se perdem, ou talvez se

encontrem, na afirmação de que um grande conto não se

encaixa em qualquer teoria ou modelo e é por isso mesmo que

ele é grande. Ao que tudo indica, o conto é um insight, uma

iluminação que o autor tem sobre a forma e o tema do mesmo.

E, portanto, ele não o teoriza, escreve-o.

Partindo de autores como Cortázar, Borges, Saer e

teóricos como Píglia, Couto e Aurélio Buarque e de suas

opiniões sobre o conto, procuraremos estabelecer um eixo,

ou ao menos, algumas balizas sobre esse obscuro objeto de

estudo.* Prof. Dra. da área de Teoria Literária e Bolsista FAPESP de Pós-Doutorado

A primeira baliza nos é dada por Cortázar (1963,

p.152), que resume o conto a três elementos fundamentais:

tensão, intensidade e significação. Essa tríade é, a nosso

ver, a base de sustentação, não só do conto, mas de toda

grande obra de arte, seja ela verbal ou visual. Pois uma

narrativa não existe sem tensão, nada é tão fundamental num

texto como a passagem tensiva de um estado a outro. Esse

movimento intenso, significativo e, por isso mesmo, tenso é

que garante a fruição do texto, como diria Barthes. O conto

deve tomar o leitor de assalto, colocá-lo no centro de um

conflito, eliminando toda e qualquer idéia ou situação

intermediária, dessa forma, a tensão é mantida pela

intensidade do relato (Ibidem, p.157).

Do mesmo texto de Cortázar nos vem a noção de limite,

“ um recorte que atue como uma explosão que abra de par em

par uma realidade muito mais ampla” (Ibidem, p.151). O

conto é um flagrante que nos permite um mergulho nas

“possibilidades da verdade” (Bichsel: s/d, p. 10). São

encruzilhadas que se abrem diante do autor e,

posteriormente, do leitor.

Outra baliza nos é dada por Couto ao falar sobre Henry

James “ a arte é a própria vida, submetida a um processo

implacável de crítica e condensação”(1993, p.182). Ou como

quer Aurélio Buarque e Paulo Rónai (1978, p.16), o conto é

uma ação ou situação à qual o contista acrescenta as

personagens, suas almas, semblantes e costumes apropriados

àquela. O conto é um fragmento da vida e, como tal,

incompleto, seus episódios são incompletos e a narração

deve obedecer a essa incompletude (Saer: s/d, p.211).

A partir desses elementos, o conto deve apresentar:

ritmo, dado pela intensidade poética do relato; o menor

número possível de intrigas; uma grande concentração e

elementos formais inesperados que possam lhe dar uma nova

fisionomia, ou seja, abrir-lhe novas possibilidades de

verdades.

Por fim, o conto deve apresentar um caráter duplo

(Píglia:1994, p.37-41), contar simultaneamente duas

histórias: uma visível e outra secreta. A segunda deve vir

de modo elíptico e fragmentário, embora seja a chave para o

conto. Ao final, a história secreta deve emergir à

superfície da narrativa e tronar-se “a visão instantânea

que nos faz descobrir o desconhecido, não numa longínqua

terra incógnita, mas no próprio coração do imediato”

(Rimbaud, apud. Píglia: 1994, p.41).

As balizas levantadas por nós, correspondem a

pontos comuns a todos os autores vistos e de maneira

sintética poderiam ser assim visualizadas:

CONTO

|

IMEDIATO

|

CARATER DUPLO

|

FRAGMENTO - CONDENSAÇÃO

|

RECORTE - POSSIBILIDADE DE VERDADES

|

TENSÃO - INTENSIDADE - SIGNIFICAÇÃO

Norteando-nos por essas balizas, analisaremos o conto

de Albert Camus: Jonas ou o Artista no trabalho. Além do material

teórico já referido, recorreremos a outros instrumentais

sempre que necessário.

Nosso intento é verificar até que ponto o conto de

Camus atende aos postulados sobre o conto e nos permite

associá-lo ao quadro de Magritte - A flecha de Zenão, obra que

acreditamos, ainda que intuitivamente, harmoniza-se ao

equilíbrio tenso do texto de Camus e à pintura de seu

personagem, Jonas.

O ARTISTA NO TRABALHO

“Não compreendo quase nada, mas compartilho o azul, o amarelo e o

vento.”

(Eduardo Chillida)

“ A flecha em vôo repousa. O que se move sempre está no mesmo

agora.”

(Zenão de Eléia)

“É o homem que, fazendo-se existir,

engendra a sua essência.”

(Jean Paul Sartre)

O ponto de partida para a análise do conto de Camus

é a tensão. O conto tem início com um relato distenso,

quando um narrador observador e excluído da trama nos

informa, numa narrativa fluída e rápida, sobre a vida de

Gilbert Jonas, desde a sua infância até os seus trinta e

cinco anos, idade aproximada com a qual encontraremos nosso

personagem na segunda parte do relato. Essa primeira parte

distensa é de capital importância, pois é ela que determina

o ritmo e a intensidade da ação, estabelecendo, desse modo,

uma significação distinta para o que chamaremos de primeira

e segunda parte do relato.

O relato sintético estabelece, em oposição ao segundo,

a noção de liberdade. Tanto o personagem quanto o leitor

respiram livremente nessa fase. Os fatos se sucedem, sem

esforço, na vida de Jonas e essa não tensão, quase uma

alegria pueril, é dada pela “poética” narrativa, ou seja, o

encadeamento vertiginoso dos fatos, de forma bem humorada,

que sem se ater a detalhes, confere à narrativa a fluidez

de um rio sem barreiras, que corre livremente por seu curso

sem obstáculos. É a boa estrela de Jonas que brilha.

Nessa primeira fase encontraremos um Jonas livre, ou

como nos define Sartre1: “o homem como possibilidade pura,

sem qualquer determinação, dotado daquela liberdade

criadora das essências e das verdades” (1968, p.32). Jonas

é livre para criar, para engendrar a sua própria essência e

ser o que quer: apenas um pintor.

A passagem para a segunda fase se dá de maneira

gradual, marcada na narrativa por uma diminuição na

velocidade e um prender-se aos detalhes do cotidiano. Dessa

forma, Camus vai, aos poucos, criando um circulo em torno

de Jonas que, lentamente, vai se fechando, tolhendo, cada

vez mais, os seus movimentos até chegar a um emparedamento

asfixiante, que culmina com a imobilidade absoluta. Para

exemplificarmos essa mudança, podemos tomar a passagem na

qual o narrador nos conta sobre o início do casamento de

Jonas que, após o nascimento do primeiro filho, teve de

comprar seus próprios sapatos (Camus:1957, p.100). Embora,

o tom bem humorado ainda esteja presente, observa-se que os

pequenos entraves ou detalhes do cotidiano começam a tomar

1 Utilizaremos a teoria existencialista para nortear a produção de Camus,nos atendo ora a textos de Sartre, ora aos de Camus, sempre que estes semostrarem coerentes com a postura assumida pelas personagens do conto.

o tempo, antes livre, de Jonas. É o início do fim de sua

liberdade absoluta.

O movimento concêntrico em torno do personagem é

magnificamente explorado na espacialidade do conto. À

narrativa cada vez mais lenta soma-se a diminuição do

espaço físico ao qual Jonas tem acesso.

O cerco a Jonas é antecipado pelo narrador, “ ... o

tempo e o espaço encolhiam a um só tempo em torno deles.”

(Ibidem, p.100). A partir desse ponto da narrativa sentimos

o estrangulamento da personagem que, do mesmo modo como o

leitor, deixa-se levar sem se dar conta.

Estabelecendo um paralelo entre os vários espaços

apresentados no conto, verificamos que em toda a primeira

parte não temos uma indicação precisa de um espaço fechado

ou, ao menos, de um confinamento intenso, as ações das

personagens estão voltadas, em sua maioria, para o

exterior. Temos referência a passeios de motocicleta, a

visitas a museus e exposições e a uma viagem (Ibidem, p.97-

100). Ocorre uma breve citação do emprego de Jonas na

editora do pai, mas o texto, sutilmente, indica que não era

um local ao qual ele se fixasse. Também, nessa fase, temos

um Jonas absolutamente descompromissado com tudo e com

todos - livre: “ Aos seres e às circunstâncias comuns da

vida, reservava apenas um sorriso benévolo, que o

dispensava de se preocupar com eles” (Ibidem, p.97).

Seguindo a teologia do absurdo, Camus insere o seu

personagem, a princípio, numa “ liberdade que não conhece

nenhum dever, senão o de não ter dever” (1968, p.81). E, na

qual “ a liberdade interior e a liberdade física se

entrosam, uma pressupõe a outra sem podermos dissociá-las,

com o risco de comprometer a ambas” (Ibidem, p.94). Jonas

goza dessa dupla liberdade e é ela que lhe permite criar.

Na segunda fase, ao contrário, temos o estabelecimento

de um espaço fechado - o apartamento de Jonas e Louise. O

cerco é, inicialmente, construído com a indicação da

localização do mesmo: “ o apartamento ficava no primeiro

andar de uma antiga mansão do século XVIII, no velho bairro

da capital.” (Camus:1957, p.101). Em uma breve frase, Camus

restringe todo um universo, antes aberto e sem fronteiras,

a um ponto fixo, muito bem delimitado. Ele recorta a cidade

e identifica o bairro, recorta o bairro e identifica a

antiga mansão do século XVIII e restringe ainda mais - o

primeiro andar desta.

Se Jonas vagava anteriormente solto, sem fronteiras,

agora ele está preso a um ponto definido e delimitado. Uma

vez instalado no apartamento, veremos que a restrição

espacial será mantida, o cerco vai se fechando, apesar de

Jonas, nessa primeira distribuição dos cômodos da casa, ter

ficado com o maior.

Aparece nesse ponto da narrativa um novo fator de

restrição, que somado ao espaço, terá papel definitivo no

percurso de Jonas: a luminosidade que, da mesma forma que o

espaço, passa de uma claridade absoluta a uma escuridão

absoluta.

Ao descrever as três peças de que era composto o

apartamento, é chamada a atenção para a extraordinária

altura dos tetos e para a grande área envidraçada do mesmo.

Isso faz com que a luz inunde o apartamento, já que não

existem persianas neste. A ausência de privacidade irá

marcar o desconforto das personagens. Esse desconforto

nasce de um ponto chave na teoria existencialista - o

olhar. Segundo Sartre, “ o conflito nasce das relações com

o outro e com as outras realidades (...) toda relação com o

outro é, portanto, alienante e mortífera, pois petrifica:

faz do ser coisa ou objeto.” (1968, p.33).

A fusão desses três elementos: espaço, luz e olhar é

marcante na descrição:

“A altura realmente extraordinária dos tetos e aexigüidade dos cômodos faziam desse apartamento um

estranho conjunto de paralelepípedos quase

totalmente envidraçados, todo de portas e janelas,

onde os móveis não conseguiam encontrar apoio e onde

os seres, perdidos na luz branca e violenta,

pareciam flutuar como peixes num aquário vertical.

Além disso, todas as janelas davam para o pátio,

isto é, a pouca distância de outras janelas do mesmo

estilo, por trás das quais distinguia-se, quase que

de imediato, o desenho de outras janelas que davam

para um segundo pátio.

- É a galeria de espelhos - dizia Jonas,

encantado.” (1957,p.102-3)

Nesse trecho encontramos uma indicação preciosa para

as relações das personagens, a começar pela aproximação do

apartamento a um paralelepípedo envidraçado, essa imagem

construída por Camus, que será ainda reforçada pela do

aquário vertical, nos remete à idéia de objetos em

exposição, tal qual ocorre em museus. Os seres estão

aprisionados, sem vida, já que sem movimento, a uma

existência petrificada, fossilizada. Encontram-se ali para

serem vistos. O espaço ocupado pelas personagens no mundo é

desconfortável, pois até mesmo os móveis não encontram

apoio.

O conceito de ilusão, de vida artificial é dado pelo

próprio Jonas: “ a galeria de espelhos”, espaço marcado

pelo jogo de olhares e deformações. Mais adiante, esse

conceito será referendado pelo narrador ao enfatizar sobre

o local , “...acentuando o ar de caixinha de surpresas

desse original apartamento.” (Ibidem, p.103).

A medida que a narrativa se torna mais lenta, vamos

tendo um aumento da tensão causada pelo desconforto das

personagens. O espaço é novamente essencial para

compreendermos essa intensificação. Embora Jonas encontre-

se na sala maior, esta será preenchida, sucessivamente, por

seus quadros, o filho pequeno, os alunos, os amigos, etc.

todos dispostos em “fileiras concêntricas em torno do

cavalete” (Ibidem, p.109). A liberdade física de Jonas é

tolhida e a liberdade interior também, ele é constrangido

pelos olhares dos que o circundam, já não pode mais

dedicar-se a criar, a escolher o seu mundo, ele é

desumanizado, objetivado pelos olhares. “Elevavam-no tanto em seus discursos, e

particularmente no que se referia à sua consciência

e força de trabalho, que, depois disso, nenhuma

fraqueza lhe era mais permitida. perdeu, assim, o

velho hábito de comer um pedaço de chocolate ou um

cubo de açúcar quando terminava uma passagem difícil

e antes de retornar ao trabalho. Na solidão, apesar

de tudo, teria cedido clandestinamente a essa

fraqueza.” (Ibidem,p.107)

A relação, antes despreocupada, que mantinha com os

seres e as circunstâncias comuns da vida, torna-se

desgastante, absorvendo-o por completo. Jonas é solicitado

pelos outros a todo momento, já não pode mais pintar

livremente, seus discípulos e amigos não lhe permitem uma

nova escolha dentro de sua arte “ Jonas teria gostado, às

vezes, de invocar o capricho, esse humilde amigo do

artista. Mas as sobrancelhas franzidas dos discípulos

diante de certas telas que se afastavam de suas idéias

forçavam-no a refletir um pouco mais sobre a sua arte, o

que só era vantajoso.” (Ibidem, p.108). E se, no início,

lhe bastava oferecer um sorriso benévolo aos que o

cercavam, essa nova fase o obriga a ser político: “ Jonas

não se contentava mais em ser amável por natureza. Ele o

era com engenhosidade.” (Ibidem, p.109).

Ele passa, agora, a despender um tempo enorme para

responder cartas, dar pareceres, posicionar-se em relação a

assuntos que não o interessam, sem saber como escapar desse

círculo que o oprime.

Na tentativa de recuperar a liberdade perdida, Jonas

vai se interiorizando no apartamento. Do cômodo maior passa

para o quarto no final do corredor, deste para o quarto do

casal, que possui cortinas, observa-se uma diminuição na

claridade e no espaço reservado para o pintor. Além dos

cômodos serem menores, menos iluminados, a assistência de

Jonas o segue, sem lhe dar a sonhada liberdade. O

personagem cada vez mais acuado, recua até o limite e, a

cada tentativa de solução, encontra apenas nova frustração.

A petrificação de Jonas é explicitada em dois momentos

do conto, a primeira na voz de Rateau : “ Que criaturas

estranhas, gostam de você como estátua, imóvel. Com eles, é

proibido viver! ” (Ibidem, p.111) e o outro, nas páginas

seguintes, quando Jonas é pintado “Veja, não tem mais nada

a pintar. Ele próprio está sendo pintado e vai ser pregado

na parede.” (Ibidem, p.116).

A partir desse momento, o conto atinge o ápice da

tensão e o personagem inicia um movimento contrário, oposto

ao do início do mesmo. É a queda, vertiginosa, de Jonas. O

círculo se fechou ao seu redor e o arrasta para o fundo,

como um redemoinho.

O pintor deixa de pintar, deixa, portanto, de existir.“ Jonas trabalhava menos, sem que conseguisse saber

por quê. Era sempre assíduo, mas agora tinha

dificuldade de pintar, mesmo nos momentos de

solidão. Esses momentos, ele os passava a olhar para

o céu (...) tornou-se sonhador. Pensava na pintura,

na vocação, em lugar de pintar.” (Ibidem, p.119-20).

Nas poucas vezes que pintava - pintava céus. É a busca de

ar, da liberdade perdida, da amplidão.

Se no início do conto sair às ruas era perda de tempo,

agora torna-se fuga - Jonas sai às ruas, freqüenta cafés.

Embora possa parecer um movimento voltado para o exterior

é, na realidade, uma interiorização ainda maior, já que

está voltada para dentro de si mesmo. O personagem busca

locais escuros e enfumaçados, passa a beber e a mentir

sobre sua arte - é a ilusão de vida que Jonas agora

persegue, não mais a essência desta.

O emparedamento do pintor atinge o limite quando este

se isola no jirau que constrói no angulo reto formado pelas

paredes do corredor. O piso estreito é limitado pelas

paredes e não possui luz, além de estar fora do alcance de

todos. Jonas afasta-se do mundo. Embora não esteja num

plano inferior, o espaço criado por Jonas é um túmulo,

pequeno, escuro, silencioso e onde apenas ele habita, na

imobilidade da não vida: “ não estava pintando, mas

meditava. Na escuridão e nesse semi-silêncio, que,

comparado ao que vivera até então, parecia-lhe o silêncio

do deserto ou do túmulo, ele escutava o próprio coração.”

(Ibidem, p.126).

Essa imobilidade se estende às funções básicas de

manutenção da vida, Jonas não se alimenta e nem dorme,

apenas sonha com sua estrela. Ele, finalmente, é levado ao

fundo - dá as costas ao mundo. “ Começava um belo dia, mas Jonas não se dava conta

disso. Virara a tela para a parede. Esgotado,

esperava, sentado, com as mãos espalmadas sobre os

joelhos. Dizia a si mesmo que, de agora em diante,

nunca mais trabalharia, estava feliz. Ouvia os

resmungos dos seus filhos, os ruídos da água, o

tilintar da louça. Louise falava. As grandes

vidraças vibravam à passagem de um caminhão na rua.

O mundo ainda estava ali, jovem, adorável: Jonas

escutava o belo rumor que os homens fazem. De tão

longe, esse ruído não contrariava a força alegre que

havia nele, sua arte, esses pensamentos que não

conseguia exprimir, para sempre silenciosos, mas que

o colocavam acima de todas as coisas, num ar livre e

vivo. As crianças corriam pelos quartos, a garotinha

ria, agora também Louise, cujo riso ele não ouvia

havia já tanto tempo. Ele os amava! Como os amava!

Apagou o lampião, e, na escuridão que voltara, ali,

não era a sua estrela que continuava a brilhar? Era

ela, ele a reconhecia, com o coração cheio de

gratidão, e ainda olhava para ela quando caiu, sem

fazer ruído.” (Ibidem, p. 129-30).

Ao término do conto, Camus retoma sua epígrafe de

forma inesperada, dando ao conto uma nova possibilidade de

verdade e o faz com apenas duas palavras: solitário e solidário.

Ambas as palavras nos permitem ver em Jonas e no seu

isolamento a personagem bíblica. O pinto, assim como o

outro Jonas, acaba tendo um fim solitário, isolado do mundo

ao qual não se adapta, dessa forma readquire a liberdade do

início do conto. Sob o mesmo prisma, temos a solidariedade

do pintor para com os seus, ciente de que é ele e sua

realidade que lhes traz o sofrimento, deixa-se lançar para

fora da vida. Em ambos os Jonas, a solidão traz a liberdade

sonhada, completa, sem dever - absurda.

SEGUNDO MOVIMENTO : A IMOBILIDADE

Do absurdo existencialista, representado por Jonas e

sua imobilidade diante de um fazer, partimos em direção ao

quadro de Magritte, A flecha de Zenão. Como dissemos no início,

a associação entre ambos era intuitiva, mas ao cabo dessa

análise, se mostrou coerente.

A primeira correlação que podemos estabelecer entre o

quadro e o conto é referente a Jonas, que no final deste,

se dedicava, apenas, a pintar céus. Outra relação imediata

pode ser estabelecida com o mar - presente na epígrafe do

conto e no quadro. Ambas nos possibilitariam leituras

aproximativas, mas o elemento que, efetivamente, une o

conto à pintura de Magritte é a rocha, “estrela”, suspensa

no ar, ou seja, a flecha de Zenão.

O título enigmático do quadro de Magritte nos

proporciona surpresas e prazeres. Para compreendermos

Magritte temos de voltar a Zenão e ao seu pensamento

filosófico.

Zenão de Eléia, filósofo grego, foi discípulo de

Parménides. Segundo comentadores antigos, colocou seu

talento em defesa do Uno de Parménides, contra os

pluralistas que o atacavam, nessa defesa desenvolveu

argumentos contra a pluralidade e o movimento. Dos poucos

fragmentos de sua autoria que nos chegaram, um é o da seta

voadora: “ um objeto está em repouso, quando ocupa um espaço

igual às suas próprias dimensões. Uma seta em vôo ocupa, em

qualquer momento dado, um espaço igual às suas próprias

dimensões. Por conseguinte, uma seta em vôo está em

repouso” (Kirk: 1966, p.302).

Este argumento estabelece o princípio dos mínimos

indivisíveis, ou seja, para que a seta atinja o seu alvo,

ela teria de percorrer primeiro a metade do percurso, uma

vez isso feito, a metade restante deverá ser dividida na

metade e assim sucessivamente; o mesmo devendo ocorrer com

o tempo. Desse modo, num tempo mínimo, a seta ocupará um

espaço mínimo, correspondente ao seu tamanho, o que a

coloca em repouso - imóvel.

Magritte captura em sua obra esse mínimo de tempo e

espaço, que nada mais é do que a tensão cinética entre dois

momentos. A aparente imobilidade da rocha entre o céu e o

mar permite um flagrante da realidade, inesperado e que nos

faz descobrir novas possibilidades de verdades. A tensão se

estabelece, portanto, entre o esperado e o inesperado, o

inusitado.

A suspensão que experimentamos diante do quadro de

Magritte é a mesma que vivenciamos no conto de Camus.

Quando Jonas suspenso em seu jirau aguarda que sua estrela

brilhe novamente, tanto ele quanto o leitor, atingem o

tempo-espaço-mínimo, a imobilidade absoluta e absurda da

objetivação/ petrificação do Eu pelo Outro e da qual só é

possível escapar pelo estilhaçamento do ser. Mas a

fragmentação não ocorre, ou melhor, não nos é dada a ver,

nem no conto, nem no quadro, pois apresentar a esta seria

proporcionar um fecho à narrativa, quebrando seu encanto de

fragmento incompleto da vida, pois é na incompletude do

relato que encontramos o inesperado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisar um conto de Albert Camus é ficar sempre à

quem do objeto analisado, o mesmo podemos dizer sobre

Magritte. Ambos nos permitem possibilidades múltiplas de

leituras de suas obras. O que tentamos, modestamente,

realizar foi um breve olhar sobre as duas obras.

Camus em seu relato pleno de ironia nos oferece uma

aula de como narrar histórias, seu conto é marcado pelo

caráter duplo de que nos fala Píglia. Sob a capa de uma

história banal: a vida do pintor Gilbert Jonas, se esconde

uma outra, elíptica, que fala do homem e de sua necessidade

mais premente - a liberdade. Tomando um fragmento da vida

de Jonas e concentrando-se nessa intriga mínima, Camus nos

oferece uma visão instantânea do desconhecido, nos permite

um insight sobre o mundo, não só de Jonas, mas do nosso

próprio.

A paralisia, a imobilidade na qual somos imersos pela

narrativa densa é a mesma que experimentamos diante do

quadro de Magritte. Ambos capturam e congelam o segundo

angustiante da queda que precede o impacto final, o

estilhaçamento, sentimos diante deles a vertigem e a

velocidade, a agonia do que cai eternamente e que, por isso

mesmo, parece imóvel.

From movement and other freedoms

Abstract: The current article approaches the short storyconcept and analyses Jonas ou o artista no trabalho by Albert Camus,comparing it to La Flèche de Zénon by Magritte.

Key words: short story, tension, balance, existentialism, andfreedom.

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