HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA e ESTUDOS CULTURAIS: OUTRAS IMPLICAÇÕES

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HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA e ESTUDOS CULTURAIS: OUTRAS IMPLICAÇÕES 1 História Entrelaçada 6 Livro no prelo Publicação em maio 2014 Neusa Barbosa Bastos (IP-PUC/SP NEL-UPM) Vera Lucia Harabagi Hanna (IP-PUC/SP NEL-UPM) O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O ‘passado-presente’ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver. Homi K.Bhabha, O local da cultura, 1998. Introdução A transdisciplinaridade faz parte de uma condição real na vida acadêmica hoje. Embora a combinação das diferenças seja frequentemente complexa de se negociar, dada as aparentes contradições entre enfoques diferentes, empréstimos e retornos acabam por se tornar comuns. Pensar a Historiografia Linguística pelo viés da transdisciplinaridade tem sido tema recorrente em grupos de estudos dedicados à teorização e prática da disciplina e levado a debate em congressos nacionais e internacionais. Pesquisadores da área há muito se preocupam com a busca de novos métodos de análise, ao mesmo tempo em que tentam alcançar uma compreensão mais ampla a respeito da multiplicidade de abordagens advinda das relações entre os vários ramos do conhecimento que a própria abundância de objetos de estudo constantes da 1 Este capítulo dá prosseguimento aos debates iniciados no texto História do Presente e Historiografia Linguística: implicações. HANNA, Vera L.H. & BASTOS, Neusa M. História do Presente e Historiografia Linguística: implicações. IN: BASTOS, Neusa Barbosa; PALMA, Dieli Vesaro. História Entrelaçada 5: Estudos sobre a linguagem em materiais didáticos - década de 1950. São Paulo: EDUC. 2012. Pp. 17-34.

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HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA e ESTUDOS CULTURAIS:

OUTRAS IMPLICAÇÕES1

História Entrelaçada 6

Livro no prelo

Publicação em maio 2014

Neusa Barbosa Bastos (IP-PUC/SP – NEL-UPM)

Vera Lucia Harabagi Hanna (IP-PUC/SP – NEL-UPM)

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com

‘o novo’ que não seja parte do continuum de passado e presente.

Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente

de tradução cultural.

Essa arte não apenas retoma o passado como

causa social ou precedente estético; ela renova o passado,

refigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova

e interrompe a atuação do presente.

O ‘passado-presente’

torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver.

Homi K.Bhabha, O local da cultura, 1998.

Introdução

A transdisciplinaridade faz parte de uma condição real na vida acadêmica hoje.

Embora a combinação das diferenças seja frequentemente complexa de se negociar,

dada as aparentes contradições entre enfoques diferentes, empréstimos e retornos

acabam por se tornar comuns. Pensar a Historiografia Linguística pelo viés da

transdisciplinaridade tem sido tema recorrente em grupos de estudos dedicados à

teorização e prática da disciplina e levado a debate em congressos nacionais e

internacionais. Pesquisadores da área há muito se preocupam com a busca de novos

métodos de análise, ao mesmo tempo em que tentam alcançar uma compreensão mais

ampla a respeito da multiplicidade de abordagens advinda das relações entre os vários

ramos do conhecimento que a própria abundância de objetos de estudo constantes da

1 Este capítulo dá prosseguimento aos debates iniciados no texto História do Presente e Historiografia

Linguística: implicações. HANNA, Vera L.H. & BASTOS, Neusa M. História do Presente e

Historiografia Linguística: implicações. IN: BASTOS, Neusa Barbosa; PALMA, Dieli Vesaro. História

Entrelaçada 5: Estudos sobre a linguagem em materiais didáticos - década de 1950. São Paulo: EDUC.

2012. Pp. 17-34.

Historiografia Linguística admite e que, somados à variante particular do foco de

inquirição, apresentam modelos distintos de conduzir a pesquisa histórico-linguística.

A interação dinâmica e diversa dos estudos históricos, culturais e linguísticos faz com

que as fontes consultadas assumam importância primordial nos passos investigativos.

Certezas e desafios acompanham os estudiosos da Historiografia Linguística em

intersecção com disciplinas ligadas às Ciências Sociais, semelhanças e divergências

contribuem para o surgimento de linhas alternativas de conduta historiográfica. Pleitear

e centralizar as atenções da comunidade científica, de tempos em tempos, é uma tarefa

que se procura alcançar (HANNA e BASTOS, 2012).

O modo como se cria a autenticidade, como se constitui a realidade, como se

estabelecem os argumentos, como se filtra o passado, como se usa a narração como

forma de argumentação, de descrição, como se leva a efeito a seleção, a ordenação, a

reconstrução dos fatos, como se faz a interpretação das evidências, são discussões

permanentes, continuamente tratadas em relação ao tempo, e aos fatores determinantes

no entendimento ao exercício que a HL recomenda. Indagações sobre a história do

presente e verdade histórica, além do imediatismo de fontes novas, determinam uma

revisão sobre o posicionamento teórico-metodológico do trabalho em HL, objetos de

discussão no Grupo de Historiografia da Língua Portuguesa - IP-PUC/SP e no GT de

Historiografia da Linguística Brasileira da ANPOLL.

Embora a HL abrace diferentes programas de buscas, haverá sempre a necessidade de

procurar outros campos da pesquisa histórica já estabelecidos. É na história geral, na

intelectual e nas abordagens sociológicas e culturais da história que o historiógrafo

encontrará os princípios norteadores de sua análise, sempre adequados a seu objeto de

estudo e a suas ideias sobre a linguagem – os princípios emanados de seu aprendizado

histórico. A declaração de Koerner (1996, p. 56-57) a esse respeito embasa nossas

análises, “um conhecimento meticuloso da teoria e da prática em outros campos

revelam-se verdadeiramente úteis” - ainda que o pesquisador chegue a um resultado

impresumível - “que este ou aquele campo de investigação histórica tem de fato pouco

a oferecer em matéria de método historiográfico”, conclui o estudioso; de todo modo,

terá valido a experiência.

O presente estudo, além de indicar a continuidade das matérias relativas às etapas

metodológicas, visa a complementá-las e expandi-las no que se refere às questões de

caráter teórico, aqui, atinentes ao diálogo fatível e, que se acredita, enriquecedor, entre

a Historiografia Linguística e determinadas correntes dos Estudos Culturais. Dispõe-se

o exame a observar teóricos que rejeitam as divisões disciplinares e privilegiam a

combinação de contribuições e questionamentos derivados de saberes cruzados, estes,

nas palavras de Mattelart e Neveu, externam “a convicção de que a maioria dos

desafios do mundo contemporâneo ganham ao ser questionados pelo prisma cultural”

(2004, p.14).

Para uma melhor compreensão dos elementos constitutivos do fazer historiográfico é

imprescindível conferir especial atenção à competência do historiógrafo. Os pré-

requisitos da habilidade da prática linguística deverão juntar-se aos desafios de

entendimento de outras áreas, subjacentes ou não, “grandes exigências à atividade

acadêmica individual, amplitude de escopo e profundidade de assimilação” que exigem

um conhecimento, segundo Koerner, “quase que enciclopédico da parte do

investigador, dada a natureza interdisciplinar desta atividade” (1996, p. 47).

O modelo subjetivo da pesquisa e a natureza interdisciplinar da atividade conduzem o

pesquisador a uma procura incessante de um quadro metodológico ideal - De Clerq &

Swiggers (1991) auxiliam na elaboração ao nomear cinco tipos de ‘motivações’, que se

provam essenciais para o fazer historiográfico, a saber: dar cumprimento à HL como

sujeito enciclopédico; encará-la como ilustração do progresso de conhecimento; buscar

a defesa, difusão e promoção de um modelo linguístico particular em detrimento de

outros; exercitar a HL como descrição e explicação de conteúdos de doutrina, inserida

em um contexto histórico e científico; praticar a HL como testemunha exterior sobre

uma realidade social, ‘colorida’ pelas concepções e práticas linguísticas (apud BASTOS

& PALMA, 2004, p. 23). As motivações apontadas pelos historiógrafos servirão como

fio condutor para a proposta de justaposição dos dois campos de estudos.

Diálogos presumíveis entre Historiografia Linguística e Estudos Culturais:

cultura, texto, contexto

Quando se pondera sobre as relações metodológicas e epistemológicas do trabalho

historiográfico, o linguista alia-se, antes de tudo, ao historiador na reconstrução de

práticas linguísticas passadas. Preocupar-se com o sujeito da historiografia, a dimensão

social, cultural e material contextualizada, as convicções ideológicas e científicas,

incorporando o pesquisador dos estudos culturais nessa empreitada, parece

compensador. A complexidade que acompanha ambas as disciplinas, no que se refere à

metodologia e análise, pode ser um dos motores para que se encontrem elementos

comuns que as aproximem e complementem. O texto, o contexto, a subjetividade,

associados à própria compreensão do sentido de ‘cultura’, a indivisibilidade do binômio

língua-cultura, e a prática da Historiografia Linguística em intersecção com História do

Presente possibilitam as aproximações.

Ao se refletir sobre modos peculiares de gerir a averiguação e no intercâmbio criativo e

dinâmico que se estabelece nesse processo, atente-se, primeiramente, para a indicação

das características genéricas e a finalidade dos Estudos Culturais. Sob a perspectiva

teórica não se configuram exatamente como uma disciplina, mas sim como uma área em

que disciplinas distintas interatuam com o intuito de estudar aspectos culturais da

sociedade. Não possuem metodologia bem definida, nem campo de investigação

claramente demarcado, “A codificação de métodos ou de conhecimentos vai contra

algumas das principais características dos Estudos Culturais”, lembra Richard Johnson

(2006, p.10), “sua abertura e versatilidade teórica, seu espírito reflexivo, e,

especialmente a importância da crítica” os diferencia, porquanto ele avalia os Estudos

Culturais como um processo, “uma espécie de alquimia para produzir conhecimento

útil: qualquer tentativa de codificá-los pode paralisar suas reações”.

Compreendem, mais particularmente, o estudo da cultura contemporânea, analisada

sociologicamente, economicamente, criticamente. Pertencem a um campo

multidisciplinar de pesquisas que confundem suas fronteiras com as de outras

disciplinas, como a Antropologia, a História, a Sociologia, a Filosofia, a Geografia, os

Estudos Literários, que trazem suas próprias preocupações acadêmicas para o campo

da cultura. Em termos acadêmicos, Johnson destaca dois aspectos principais, um

distintivamente literário e outro distintivamente sociológico ou histórico, de todo modo,

ambas as abordagens revelarão sempre um ângulo da cultura (id., p.19). A incessante

discussão teórico-metodológica sobre e dentro da área está relacionada com a

singularidade da noção de ‘cultura’, um conceito notoriamente ambíguo, polissêmico.

A compreensão de cultura, em sentido amplo, implica conhecer, essencialmente, seus

dois componentes básicos - um antropológico (as atitudes, os costumes, o cotidiano, e

todas as maneiras de sentir, pensar e agir, seus valores e referências) e outro histórico,

que forma uma espécie de moldura para o primeiro por representar a herança de um

povo. Discussões a respeito da inter-relação da acepção de cultura e dos Estudos

Culturais continuam a acontecer, mas aquela que resume melhor o escopo na área inclui

a do antropólogo americano Clifford Geertz (1989) – trata-se do conjunto de histórias

que contamos a nós mesmos sobre nós mesmos; no entanto, para o juízo que contempla

um completo modo de vida, que remete a estudos voltados ao domínio da etnografia,

leia-se sua definição,

A cultura é um padrão de significados transmitidos historicamente,

incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas

em formas simbólicas por meio das quais os homens se comunicam,

perpetuam e desenvolvem seu conhecimento em relação à vida (id.p.

103).

A cultura é um conjunto de significados e práticas disponíveis ao entendimento e busca

do indivíduo em que fica subentendida a característica iminentemente modificadora do

homem a partir do que ele mesmo cria. Jeff Lewis, em Cultural Studies, the Basics

(2006, p.13), compendia o sentido na área como algo que é construído pelos humanos

para se comunicarem e criarem uma comunidade, “enquanto sociedade e comunidade

refere-se à reuniões de pessoas; a cultura é um agrupamento de representações e

significados”. A declaração do teórico considera que a cultura tem seu início em

representações do mundo acerca dos indivíduos em diferentes formatos, isto é, “essas

são formadas no discurso, na língua, em símbolos, em signos e em textos”. Enfatiza

ainda que, o sistema nos quais tais representações e significados são formados jamais

serão imutáveis, os significados são arranjados com determinado propósito dentro de

um contexto histórico e espacial (material) particular.

É fundamental registrar que tais características emanam da idealização do Centre for

Contemporary Cultural Studies, a Escola de Birmingham, estabelecido em 1964, na

Inglaterra, que assume a ampliação do conceito de cultura em direção a uma tendência

mais antropológica - depreende-se a cultura em relação à existência dos indivíduos, as

práticas e sentidos do cotidiano como constituintes da vida social - sucedida pela

inclusão de duas proposições,

Primeiro: a cultura não é uma entidade monolítica ou homogênea, ao

contrário, manifesta-se de maneira diferenciada em qualquer formação

social ou época histórica. Segundo: a cultura não significa

simplesmente sabedoria recebida ou experiência passiva, mas um

grande número de intervenções ativas — expressas notadamente através

do discurso e da representação — que podem tanto mudar a história

como transmitir o passado (AGGER, 1992, p.88-89).

A concepção de Geertz (1989), de que a cultura é a soma das histórias que contamos a

nós mesmos sobre nós mesmos, remete à avaliação de a cultura se ocupar de questões

de significado social compartilhado. Para que haja compartilhamento, porém, é

necessário entender que o significado é criado através de signos. Assim, o estudo da

cultura deve estar fortemente ligado ao estudo da significação.

Os Estudos Culturais fundamentam-se na visão de que a língua não é um meio neutro

para a formação de significados e conhecimento relativos a elementos separadamente da

língua, ao contrário, é parte constitutiva daqueles mesmos significados – a língua

fornece significado a objetos materiais e práticas sociais e faz com que se tornem

inteligíveis nos termos em que a língua delimita. A asseveração encontra-se no The

SAGE Dictionary of Cultural Studies, (2004, p.44-45) concluída com a convicção de

que a disciplina interessa-se por questões de representação com ênfase nos modos

como o mundo é socialmente construído e representado para e por nós, “esses

processos de produção de significado são práticas de significação, e, para que se

apreenda cultura é necessário explorar como o significado é produzido simbolicamente

como forma de representação”. A declaração deixa claro que se explore a geração

textual de significado em conjunto com a subsequente utilização em variados contextos,

como se pode notar em:

As representações e significados culturais apresentam certa

materialidade; estão compreendidos em sons, inscrições, objetos,

imagens, livros, revistas e programas de televisão. São produzidos,

validados, utilizados e entendidos em contextos sociais materiais

específicos. Assim, os estudos culturais podem ser apreendidos,

fundamentalmente, como estudo da cultura onde quer que este conceito

desejar denotar as práticas de representação situadas no interior dos

contextos de produção, circulação e recepção material e social (idem,

tradução nossa).

Avaliza-se, desse modo, que todos os sistemas humanos são simbólicos e sujeitos às

regras da língua, não havendo possibilidade de o indivíduo se posicionar como um

observador fora do círculo fechado da textualidade. Citando Barthes (1975), qualquer

representação ou simbolização necessariamente constituem um texto.

Os Estudos Culturais são radicalmente praticados em contextos, qualquer indivíduo só

pode se relacionar ou conhecer o mundo ao seu redor através de alguma forma de

mediação; as formas de mediação, no entanto, não terão significado antes de serem

capturadas pela cultura. Existe concordância unânime entre os teóricos culturais

contemporâneos de que o processo de mediação é essencial no entendimento da acepção

de cultura. Lewis (2006, p.30), explica que tanto a teoria da linguagem quanto os

estudos culturais entendem o desenvolvimento do indivíduo em relação à construção

cultural do significado do contexto; no conceito de subjetividade (o de ser um sujeito),

não está implícita a ideia de previsibilidade ou de constância, a capacidade receptiva, a

mutabilidade e o dinamismo fazem parte da construção da identidade, da mesma

maneira que acontece a construção do texto. Adequa-se aqui a asserção de Lawrence

Grossberg (1997, p.259), “um texto não possui significado, não há limites para o que

ele possa denotar. Talvez signifique qualquer coisa que um leitor quiser que ele

signifique”.

Lewis esclarece que há dois modos controversos que podem interpretar as declarações

acima: primeiro, um sujeito (ou a subjetividade) pode se constituir ou se posicionar em

relação a um texto ou discurso dado, sugerindo que leitores ou espectadores sejam

influenciados criticamente pelo conteúdo emocional e estético do texto, sua ideologia,

suas opiniões manifestas. Em termos de estudos culturais, significa que o conhecimento

de mundo do leitor e a constituição de si mesmo são formados em relação ao texto.

Segundo, a interação entre o leitor e o texto é muito mais fluída do que a discussão

contempla – a subjetividade é um processo aberto que permite a escolha de quem o

cidadão pretende se tornar.

Sobre esse argumento, vale apreciar as explanações de Storey (1997) relativas à

coincidência de pontos de vista entre os ‘pais fundadores’ dos Estudos Culturais,

Richard Hoggart, Raymond Williams e Edward P. Thompson2, a propósito de como as

formas textuais e as práticas documentadas de uma cultura, apontam a produção e a

utilização (consumo) de textos culturais de determinada sociedade, ponto crucial e

2 Os três autores, oriundos das classes trabalhadoras inglesa, possuíam experiências culturais parecidas.

Richard Hoggart, autor de The Uses of Literacy (1958), usou um modelo antropológico para investigar a classe

trabalhadora inglesa em relação a criação de significados. Raymond Williams, autor de Culture and Society (1958),

procurou harmonizar a cultura como ‘modo de vida’ e como ‘produtora de significados’. Edward Palmer Thompson,

autor de The Making of the English working-class (1963), preocupou-se em focalizar a História nas práticas do

cotidiano da classe trabalhadora inglesa em relação a criação de significados.

marcante do que se pode considerar os embasamentos que estruturaram a fundação dos

Estudos Culturais, na Inglaterra, na década de 1950,

O que os une [os três autores] é uma abordagem que insiste em afirmar

que através da análise da cultura de uma sociedade – as formas textuais

e as práticas documentadas de uma cultura – é possível reconstituir o

comportamento padronizado e as constelações de ideias compartilhadas

pelos homens e mulheres que produzem e consomem os textos e as

práticas culturais daquela sociedade. É uma perspectiva que enfatiza a

‘atividade humana’, a produção ativa da cultura, em vez de seu

consumo passivo (STOREY, 1997, p. 46, tradução nossa).

Ao desenvolverem uma técnica particular de análise textual, procuram localizar o texto

dentro de seu contexto histórico, material e cultural e dão preferência, como objetos

de estudo, à recriações sócio-históricas de culturas ou movimentos culturais, ou por

aqueles tipos de escrita que sejam capazes de recriar experiências socialmente

localizadas. Os Estudos Culturais tratam textos como documentos culturais, aponta

Lewis, para em seguida completar,

Estes documentos não podem estar separados das condições e

circunstâncias de sua produção e consumo. Textos culturais estão

fundamentalmente e inescapavelmente entrançados nas práticas sociais,

processos institucionais, na política, na economia. Os significados dos

textos não podem ser tratados de maneira independente da corrente e

das operações mais amplas da cultura no qual o texto existe.

(op.cit.p.35, tradução nossa).

As considerações de Lewis e Johnson sobre texto são complementares, “é apenas um

meio no estudo cultural, um material bruto a partir do qual certas formas (por ex., da

narrativa, da problemática ideológica, do modo de endereçamento, da posição de

sujeito, etc.) podem ser abstraídas” (Johnson, 2006, p. 75). A definição do que constitui

‘um texto’ pode ser interpretada sob diferentes aspectos, assim como a

interconectividade entre texto e contexto. A disciplina segue a acepção mencionada

acima, de Barthes - desde que tudo consiste em algo simbólico ou significativo, tudo

pode ser tratado como texto (Lewis, op.cit.).

As condições simbólicas da textualidade ocupam pontos centrais de discussão nos

Estudos Culturais, enquanto alguns críticos interpretam o texto como o indicador capital

do contexto, outros analisam o contexto como aquele que apresenta epifanias no texto e

em suas representações. Ao se transferir o juízo para a ideia de contexto referente à

pesquisa particular, recorre-se às anotações de Grossberg - o contexto não é oferecido

empiricamente, de antemão, mas deverá ser definido pelo projeto em si, pela questão

política com que está envolvido, pela época, não importando a extensão que alcance,

poderá tratar tanto de temas breves como mais complexos; apesar disso, o contexto será

sempre o âmago de tudo, tudo é contextual. O pensamento de que os Estudos Culturais

sejam definidos como radicalmente contextualistas é assim sintetizada pelo autor,

Um acontecimento, ou uma prática, ou até mesmo um texto, não existe

se separado das forças do contexto que o constitui. Não pode ser

relegado a uma série de notas de rodapé, de prefácios ou de posfácios.

O contexto é, exatamente, o que está se tentando analisar e o mais

complexo de se construir. O contexto trata de ambos, do início e do fim

dos Estudos Culturais, embora os dois não sejam o mesmo ponto.

(1997,p.255, tradução nossa).

Grossberg ressalta ainda que uma das consequências sobrevindas do contextualismo

radical dos Estudos Culturais é o antirreducionismo em todos os sentidos. Recusam-se a

reduzir a realidade à cultura ou a qualquer dimensão ou domínio da existência, “tudo faz

parte da realidade humana” (op.cit., p.256), há realidades materiais - tão essenciais e

determinantes quanto as práticas sociais e culturais.

Deve-se avaliar como categórica, contudo, sua asseveração sobre esse campo de

estudo como desacreditador da visão de cultura como puramente cultural, “não se

pode acreditar que tudo é cultura”, conclui ele, ao contrário, “confia-se que a cultura só

poderá ser apreendida em sua relação com tudo que não é cultura”(id.).

É oportuno que se retome brevemente à questão da investigação da atividade

historiográfica em sua relação com a cronologia, discutida como fator determinante no

entendimento ao exercício da HL, em Hanna e Bastos em 2012. Complementa-se nesse

capítulo, a intersecção do tempo, do tempo presente com os estudos culturais -

justaposições complexas, mas inerentes às preocupações dos pesquisadores da

contemporaneidade (quando o contemporâneo se torna histórico), de todos que estudam

cultura, economia, relações sociais, ou qualquer outro aspecto da experiência humana,

conforme Lawrence Grossberg, tenta expor (2000, p.149-151).

O autor coloca em evidência em seu ensaio a inquietação sobre a transformação do

contemporâneo em história, referindo-se ao século XX ou XXI. O presente, o

contemporâneo, em história moderna não é, precisamente, história (o passado) ajuíza

ele, “é o presente permanente, que deixa escapar o passado, que não pode se tornar um

período histórico”. Anuncia a irreversibilidade da disciplina história como condição

sine qua non na pesquisa nas ciências humanas, “até os estudos culturais estão

constantemente em busca de ‘especificidade histórica’”, juntamente com a língua, e

cultura, é a história de um povo, a historicidade, que os diferencia dos animais, conclui

ele (p.150).

A dimensão do tempo permanece como ponto capital nas teorias sociais e nos estudos

culturais, estes requerem um senso histórico e, a história, adverte a historiadora

americana Carolyn Steedman no ensaio, Culture, Cultural Studies and the Historians

(1999), deve ser encontrada nos arquivos, não só nos textos. Levanta uma série de

questões fundamentais sobre a relação entre História e Estudos Culturais, igualmente

relevantes para o estabelecimento do princípio da contextualização em que o

historiógrafo da linguística coleta, cataloga e interpreta os fatos que instituirão o

‘clima de opinião’ geral do período estudado.

Lewis, conforme se assinalou anteriormente, assevera que os Estudos Culturais tratam

os textos como documentos culturais, assertiva que recebe um complemento com as

observações de Steedman. Textos e documentos são eles mesmos fatos históricos, não

apenas repositórios de fatos; usados como representantes de uma realidade histórica

‘real’, são também, instáveis, “A História é a mais impermanente das formas escritas, é

sempre uma história que durará apenas por um período curto de tempo” informa a

autora (1999, p.48).

A sociedade e os indivíduos constituem-se de tempo. Homi Bhabha, um dos mais

conceituados teóricos dos Estudos Culturais, discorre, em O Local da Cultura (2005),

sobre o trabalho fronteiriço da cultura que “exige um encontro com ‘o novo’ que não

seja parte do continuum de passado e presente” (p.27), como se lê na epígrafe do

capítulo. Em sua visão, o passado deve ser retomado como causa social. Uma vez

renovado, inova e interrompe a atuação do presente. À guisa de conclusão sobre o tema

‘tempo’, observe-se, no parágrafo a seguir, seus comentários sobre habitar um espaço

intermédio, ser parte de um tempo revisionário, retornar ao presente para redescrever a

contemporaneidade cultural,

O imaginário da distância espacial – viver de algum modo além da

fronteira de nossos tempos – dá relevo a diferenças sociais, temporais,

que interrompem nossa noção conspiratória da contemporaneidade

cultural. O presente não pode mais ser encarado simplesmente como

uma ruptura ou um vínculo com o passado e o futuro, não mais uma

presença sincrônica: nossa autopresença mais imediata, nossa imagem

pública, vem a ser revelada por suas descontinuidades, suas

desigualdades, suas minorias (BHABHA, 2005, p.23).

Considerações Finais

Buscou-se nesse capítulo levar o leitor a conjeturar como a cultura, o texto, o

contexto, a tríade temporal, em coadjuvação recíproca, podem encontrar o sentido de

contemporaneidade cultural em diálogos entre a Historiografia Linguística e os Estudos

Culturais. Nesse sentido, propõe-se ao historiógrafo da linguística, em sua tarefa de

mostrar novas visões de mundo, que leve em conta, junto aos princípios básicos da HL,

as convergências entre os estudos culturais e os modos de escrever história, típico

exemplo de transdisciplinaridade no estudo linguístico e da cultura.

A HL prossegue na busca por novos métodos de análise. Desse modo, é adequado que

se retomem as dimensões teóricas e metodológicas nos ensinamentos de Koerner (1989)

- os modelos de investigação - e os aproxime da proposta aqui apresentada. Neles está

enfocada a dinâmica interna dos problemas assinalados na HL, assim como o modo de

tratá-los funcionalmente e de maneira integral - o historiógrafo da linguística estudará

continuidades e descontinuidades de acordo com os fatores intra e extralinguísticos. Os

modelos de Koerner podem ser resumidos do seguinte modo: o Modelo de Progresso

por Acumulação que fornece uma progressão não linear, fortalecida pelo tempo; o

Modelo Subcorrente que admite a existência de mais de uma linha de pensamento

influenciadas por razões políticas, ideológicas e sociais com diferentes focos de atenção;

o Modelo Pêndulo-Balanço que pressupõe o dinamismo linguístico ou na História da

Linguística e reconhece a alteração contínua entre abordagens relativas a determinados

assuntos; o Modelo do Progresso Relativo que funde o descrever e o desenvolver da

Linguística tendo em vista o desenrolar do tempo e os avanços ocorridos na área

investigada (HANNA e FACCINA, 2006).

Ao mesmo tempo em que as diferenças continuam a existir entre as áreas analisadas,

ambas devem estar sempre atentas ao novo, ao emergente. Assim como o entendimento

do presente envolve releituras do passado, abrem-se igualmente novas possibilidades de

estudo para se trabalhar com a história, a história e os estudos cultuais, e, ambos com a

HL, a escolha do método promoverá significantes diferenças nos resultados.

Assim, iniciam-se novas etapas de investigação metodológica que, baseadas para alem

da análise do texto e do discurso, e métodos históricos conhecidos, sugerem o acréscimo

do trabalho de campo etnográfico (entenda-se em Estudos Culturais ‘todo método que

implica a conversa com pessoas’). Alia-se ao continuum de métodos conhecidos o

denominado ‘auto/etno continuum’ que compreende a auto/biografia, via individual ou

em memória de grupo, entrevistas, e a busca de produções em fragmentos escritos, na

história oral, alem de vários outros métodos baseados em entrevistas, que se somam ao

senso clássico da etnografia e, também, da etnologia, que estuda os fatos e documentos

pesquisados pela etnografia no âmbito da antropologia cultural e social em busca da

comparação de culturas (JOHNSON et alii, 2004, p.202).

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