BRINCADEIRA E DESENVOLVIMENTO INFANTIL UM OLHAR SOCIOCULTURAL
Educação e emancipação. A libertação das crianças sob o olhar da filosofia política(2008)
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1
EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO: a libertação das crianças sob o
olhar da filosofia política1
Suzana Albornoz
Quando profissionais da educação se reúnem em torno do tema
PESQUISA EM EDUCAÇÃO E INSERÇÃO SOCIAL, que define
este Seminário, expressam evidente preocupação científica, que possui
também clara dimensão ética e, além disto, uma importante conotação
política. As pesquisas científicas que se desenvolvem sobre as questões
da inserção social distribuem-se generosamente pelos domínios das
ciências biológicas da saúde, física e mental, bem como dos estudos
sociais aplicados, variados como os da administração, da economia, do
serviço social, do direito, e o das ciências humanas e sociais, ou seja, a
história, a sociologia, a antropologia cultural. Assim, atingem muito
especialmente o domínio da educação, foco comum dos que se reúnem
neste encontro. Portanto, suponho que muitos dos colegas aqui
presentes farão suas comunicações relatando a riqueza das pesquisas
científicas que se vêm fazendo no Brasil, pesquisas de cunho teórico ou
empírico, com as diversas metodologias que a ciência autoriza, sejam
qualitativas, quantitativas ou mistas, ou métodos inovadores, levando a
interpretações igualmente inovadoras, introduzindo no debate dados que
informam e surpreendem; e com certeza, assim contribuirão para o
1 Texto correspondente a comunicação oral apresentada em Itajaí, junho de 2008, no Encontro da ANPED-Sul.
Nesta forma atual deve ser publicado proximamente como capítulo de livro.
2
aperfeiçoamento das práticas educativas. Tais enriquecimentos das
ciências humanas a serviço da educação possuem ainda o mérito de
estarem preocupados com a inserção social, de contribuir efetivamente
para o bem-estar daqueles que precisam de mais atenção dos educadores,
dos socialmente menos bem situados. Portanto, tais pesquisas contam
com todo o meu respeito e apoio, e meu reconhecimento de seu acerto
moral e político.
Por outro lado, apresentando estas breves considerações neste
Seminário no contexto do eixo temático FILOSOFIA E EDUCAÇÃO,
sinto-me como um pescador que as correntes marítimas levaram a
perder-se em alto mar e que, para retornar à enseada onde se encontram
seus companheiros, tem de navegar quase sem vento nas velas de sua
frágil embarcação, e com ela atravessar uma estreita passagem entre dois
rochedos: de um lado, a alta montanha da tradição filosófica, da longa
produção de conceitos e estudos rigorosos, que impõem disciplina ao
pensamento; do outro lado, a rocha também imponente dos estudos
científicos e técnicos sobre pedagogia, com seus variados métodos e o
esforço de aperfeiçoamento da arte de educar e ensinar. É, pois, com a
consciência de carecer de resultados concretos de pesquisa científica de
caráter empírico; e não querendo tampouco afetar uma pesquisa livresca
que ameace desviar a atenção da tessitura concreta de problemas tão
relevantes e complexos; ainda assim, com a esperança de contribuir para
maior clareza da compreensão dos problemas envolvidos, para o
3
encaminhamento de soluções; e apenas como introdução ao debate
coletivo, peço licença para apresentar aqui um breve registro sobre o que
se pode chamar “a libertação das crianças”, a partir de uma leitura
particular no âmbito da filosofia política, apoiada em pesquisas de caráter
histórico, da história da infância, sobretudo no mundo ocidental, e da
história do pensamento moderno sobre a educação.
Para tanto, trago comigo um livro, quase como um pretexto; este é o
remo que, espero, fará avançar minha canoa, entre a filosofia e a ciência e
arte da educação. Um pretexto, um livro: A libertação das crianças 2, do
filósofo francês contemporâneo Alain Renaut 3, autor de várias obras de
filosofia política, na descendência da filosofia política moderna e da
filosofia crítica. Procurarei apresentar aqui, pois, de modo resumido, a
interpretação de Renaut tal como se desenvolve na obra referida, ainda
menos conhecida entre nós, no Brasil, embora traduzida para o
português desde 2004, sobre a realidade atual das crianças que são, sem
dúvida, o sujeito-objeto principal dos estudos e da prática dos
educadores e, por outro lado, parecem constituir-se hoje em dia,
mundialmente, num novo grupo em transformação, ou seja, situam-se
no front da mudança, do movimento pela inserção e a emancipação
2 A libertação das crianças. Contribuição filosófica a uma história da infância. Paris:
Hachette, 2003.
1ª ed., Paris: Calmann-Lévy e Bayard, 2002. Lisboa: Piaget, 2004. 3 Alain Renaut é professor na Universidade Paris-IV, Sorbonne, e autor de obras de filosofia,
algumas em parceria com Luc Ferry. Entre suas obras se destaca A era do indivíduo(Gallimard, 1989) e a organização da História da Filosofia Política( Calmann-Lévy,
1989).
4
social. A interpretação do referido autor movimenta-se no âmbito
filosófico, partindo do ponto de vista da filosofia política, portanto,
recorre, em primeiro lugar, como base para suas considerações, à história
das idéias políticas, mas também se apóia muito na pesquisa
historiográfica sobre a infância, que tem sido pródiga no domínio da
disciplina inaugurada por Phillipe Ariès, que interessaria autores tão
diversos como Michel Foucault, no outro extremo da palheta da
orientação político-ideológica.
A libertação das crianças, incluindo sua atual reivindicação de maior
autonomia, ou sua pouca disposição para a obediência, pode parecer
lugar-comum da reflexão pedagógica contemporânea, e assim, ser
entendida como uma queixa geral, sem cientificidade, dos responsáveis
pela educação, na escola como na família. Para superar as reflexões
ingênuas e observações simplificadoras sobre este fenômeno, que dá a
pensar e desperta a opinião pública, provocando a manifestação de
pessoas com os mais diversos pontos de vista, parece-me interessante
considerá-lo com mais vagar à luz de pesquisas que se valem da erudição
filosófica como das ciências sociais históricas, especialmente, da
historiografia.
Os estudos de história, mesmo depois dos primeiros tempos da
modernidade até o século XIX, detinham-se quase exclusivamente nos
eventos da vida política em seu sentido estrito, consistindo em relatos
das ações, decisões e façanhas dos homens de governo, reis e príncipes,
5
expedições, guerras, revoluções. É especialmente com a tradição de
pesquisa que se formou pelo trabalho do grupo de historiadores ligados à
Escola dos Anais, na França, quando se voltou a lente do pesquisador
também sobre o âmbito _ até então quase invisível para a memória dos
povos _ da vida privada, dos eventos do cotidiano, dos costumes e
experiências de longa duração. Postos no interior do doméstico, da vida
das famílias, no interior da economia em seu detalhe mais próximo da
experiência individual, o esforço pedagógico, como a representação
social das crianças e sua história real, recém no último século tornaram-
se objeto de pesquisa sistematizada, esta que tem a capacidade de fazer
revisar os preconceitos e as crenças que costumam idealizar o passado
em detrimento do presente.
Considerando as muitas e variadas investigações que se têm realizado
nos últimos tempos sobre a história da infância e sobre as representações
sobre a infância, desde a publicação dos primeiros trabalhos de Ariès
sobre o tema4, Renaut oferece uma instigante interpretação da atual crise
da educação, convidando a considerar as mudanças operadas nas
relações entre adultos e crianças, nas famílias transformadas do presente,
assim como também nas demais instituições educacionais e, muito
especialmente, nas escolas, como um progresso irresistível, embora de
decorrências ainda imprevisíveis, que se deve compreender como parte
4. Principalmente em seu livro de 1960: A criança e a vida familiar sob o Antigo Regime,
antecipado pelo ensaio A criança na família, de 1948, in: História das populações francesas e de suas atitudes diante da vida depois do séc. XVII.
6
da afirmação dos ideais políticos modernos de liberdade e de igualdade.
A epígrafe que introduz o livro aqui destacado é uma citação que ainda
hoje parece pertinente, do filósofo político francês do século XIX, Alexis
Tocqueville:
“Ao mesmo tempo em que o poder escapa à aristocracia, vê-se desaparecer o que havia
de austero, de convencional e de legal no poder paternal, e uma espécie de igualdade se
estabelece no lar doméstico. Não sei se, tudo considerado, a sociedade perde com esta
mudança, mas sou levado a crer que o indivíduo ganha com isto. Penso que à medida
que os costumes e as leis são mais democráticos, as relações de pai e filho se tornam
mais íntimas e mais doces; a regra e a autoridade diminuem; a confiança e a afeição
freqüentemente são maiores e parece que o elo natural se fortifica, enquanto o laço
social se distende”. (A democracia na América, III, 8)
Aberta com essa epígrafe, a obra nos remete a pesquisas históricas de
detalhe sobre a história da exclusão das crianças, especialmente sobre a
longa tradição do abandono dos filhos, dos antigos aos modernos; envia-
nos a uma revisão do humanismo educativo, começando pelos
pensadores renascentistas; convida-nos a considerar o abalo das
autoridades tradicionais que na modernidade atingem em cheio a
educação, na família e na escola; culmina com uma reflexão sobre as
questões atuais do direito ante a criança, sobre os direitos das crianças e
adolescentes, e se encerra com a proposta de uma ética da solicitude e do
apoio moral. Com a exploração das pesquisas historiográficas das últimas
7
décadas, o autor realiza uma análise própria sobre a construção histórica
do sentimento paternal e a compreensão da infância, sobre as percepções
novas do seu comportamento e do seu lugar social, ante um universo em
que a autoridade se dilui, os valores democráticos de igualdade e
liberdade se afirmam, e as famílias se transformam substancialmente,
também sob a influência dos novos meios de comunicação de massa.
Renaut se refere algumas vezes ao célebre ensaio de Hannah Arendt
sobre a crise da educação5, no qual detecta a marca da idealização do
passado, quando a filósofa afirmava que em nossa época
contemporânea6, quando as crianças parecem ter obtido mais autonomia
e estaria mais controlada pela lei a sua repressão e a punição, dentro das
escolas e das famílias, e por causa da crise da autoridade, em
conseqüência, a crise da proteção paterna, a situação das crianças seria
ainda “pior que antes”. Esta nossa breve reflexão terá como eixo central,
pois, a apresentação desenvolvida pelo autor no livro referido, que se
movimenta, como mencionamos, no domínio da filosofia política, e cuja
posição não se identifica nem com a já clássica interpretação de Ariès da
história da infância, ancorada sobre a presunção de que o
reconhecimento da peculiaridade da infância seria fenômeno surgido nos
tempos modernos; nem com a compreensão de Michel Foucault, que via
na atuação da modernidade antes um falso reconhecimento da infância,
por sua integração repressiva dentro do sistema; mas tampouco se
5 “A crise da educação”, in: Crises da república, São Paulo: Perspectiva, 1973. 6 O momento histórico que faz o cenário do ensaio de Arendt, evidentemente, não é mais presente;
trata-se dos meados do século XX.
8
espelha no famoso ensaio de Hannah Arendt, sobre o qual sobrepaira a
sombra do saudosismo de uma melhor época perdida, cuja existência as
pesquisas não conseguem comprovar.
Comecemos pela pergunta se a história das crianças deve ser contada
como história de uma exclusão ou história da liberdade. A história da
infância pode ser compreendida, como o foi de fato na linha das
interpretações próximas à de Foucault, como história de uma exclusão;
porém, também pode ser interpretada como história da liberdade, como
inserida na história da afirmação dos ideais de liberdade e de igualdade
próprios da era moderna. Desenvolvendo essa segunda interpretação,
Renaut reflete sobre a história da infância em sua perspectiva mais longa,
da Antigüidade ao final da Idade Média e aos tempos modernos, até o
presente; e a partir do Renascimento, avançando pelos séculos
modernos, compreende a ligação da história da infância com a da
afirmação dos ideais políticos de liberdade e de igualdade, pelo que se
pode dizer que é efetivamente apresentada pelo autor como parte,
paradoxal e problemática, do progresso irresistível dos ideais democráticos
modernos.
O caminho foi longo desde a Antigüidade, quando o pátrio poder do
chefe de família dava-lhe direito de decidir da vida e da morte das
crianças, de seus filhos assim como dos escravos e das mulheres. Por
outro lado, os costumes determinavam mais ou menos rigidamente o
lugar do indivíduo em sua cidade, em seu povo, pelo que a educação
tinha importância limitada, devendo apenas preparar para o destino, ou o
9
lugar social próprio. Até há pouco na história moderna, a autoridade do
poder, ou o poder da autoridade paterna, aliás, como da autoridade em
geral, apoiava-se em fonte transcendente, e isto tornava quase
inquestionável a manutenção das tradições domésticas ou públicas no
que se refere ao modo de tratar os “menores”.
Uma das tradições mais tristes, que nos impede de manter ilusões
sobre a situação da infância no passado, foi, ao longo dos séculos, a
prática do abandono das crianças. Sendo integrada nos costumes e
mesmo legal na Antiguidade, persistiu, contudo, ainda na modernidade
como uma prática freqüente e tolerada, de certo modo socialmente
aceita, até não muito tempo atrás. Alain Renaut refere números muito
expressivos mostrados por pesquisas baseadas em registros do século
XVIII que, embora não se possa afirmar a exatidão de tais registros,
causam espanto, ao mostrar a sobrevivência das práticas de abandono
das crianças no século das Luzes na França.7 Também no século XIX
não foram afastadas as práticas de abandono dos filhos; e o autor não
deixa de apontar que ainda na segunda metade do século XX podem ser
encontrados dados dolorosos sobre o abandono de crianças _ por
exemplo, na China, onde, sobretudo, meninas foram abandonadas pelas
famílias e entregues a instituições que vieram a constituir-se em
verdadeiros “morredouros”, pois só a minoria dos bebês sobreviveria.
7 Documentos de 1786 registram que, em 1700, em Paris, teriam sido recolhidas 1738 crianças; em 1750, na
mesma cidade haviam sido recolhidas 3789 crianças; enquanto, em 1772, foram recolhidas 7676 (dado de
pesquisa de John Boswell, 1987, referida por RENAUT, op.cit., 2002, p.142)
10
Ao revisar a história moderna da educação e do pensamento sobre a
infância, Alain Renaut aponta vários momentos de crise da educação, ou
seja, identifica várias crises da educação na história moderna. Uma
primeira crise da educação tradicional se encontra no nascimento da
modernidade, no extraordinário período conhecido como Renascença,
ou Renascimento, motivado pelas mudanças de visão do mundo,
influenciadas pelo rompimento dos limites da visão eurocêntrica, mesmo
“terrocêntrica”, também por efeito das descobertas da astronomia e do
desenvolvimento das navegações. Associado à grande riqueza das artes e
às descobertas geográficas e científicas, acontece também na época
importante movimento de idéias e de mudança de valores, fortemente
marcados pelo questionamento da autoridade e da hierarquia. Neste
período da emergência e afirmação do humanismo moderno, da rebeldia
ante a autoridade que predominara durante a Idade Média, surgem
pensadores com nova percepção sobre a natureza do homem, portanto,
em consequência, também com novas concepções e sugestões para a
educação e da afirmação de um humanismo pedagógico.
Entre os trabalhos que no período renascentista influenciariam as
idéias sobre educação e sobre a infância, Renaut destaca Pico de la
Mirandola e Erasmo de Rotterdam,8 em cujo pensamento emerge já a
modernização moderna da educação. É especialmente interessante
lembrar que o humanismo de Erasmo o levou a pensar a educação como
8 Erasmo de Rotterdam: Da educação das crianças, 1529; ou “Sobre a necessidade de instruir as crianças o mais
cedo possível e de modo liberal”; em latim: De pueris statim ac liberaliter instituendis, às vezes referido apenas
como De pueris.
11
algo mais que a educação espiritual, da educação cristã tradicional, como
um desenvolvimento que se deveria buscar em três níveis: 1. No nível do
corpo, dever-se-ia visar a afirmação da liberdade humana em relação à
tirania dos impulsos não dominados, pois a disciplina, como educação
física, previne da escravização do homem por seus desejos; 2. No nível
dos sentimentos, a instituição do humano consistirá na educação da
sensibilidade para as artes e as letras, para o que chamamos de cultura,
que nos libera da imediatidade possessiva da necessidade; 3. No nível da
inteligência, enfim, será cultivada a da instrução, como educação do
saber, que liberta das opiniões e das crenças cegas que conduzem ao
dogmatismo e ameaçam a própria razão, em suas formas ilusórias que O
elogio da loucura estigmatiza, mostrando os fanatismos de que pode ser
presa.9
Na continuidade da crise da educação inaugurada pelos humanistas da
Renascença, nos primeiros séculos da era moderna, o caminho da
afirmação da infância, ou da liberdade das crianças, evoluiu na proporção
do enfraquecimento e do abalo da autoridade tradicional. Este processo
teve causas complexas e diversas, mas Renaut defende sua interpretação
como correlato da evolução dos ideais políticos, que os pensadores
políticos modernos trataram: Na Inglaterra do século XVII, para
Thomas Hobbes, que em geral se interpreta como um autor conservador
nas questões de autoridade e liberdade, contudo, no que tange à maneira
de considerar a infância, sua influência já trabalharia na direção do
9 Conferir RENAUT, op.cit, p.195.
12
enfraquecimento da autoridade; pois que para Hobbes a autoridade
paterna não é uma decorrência natural das situações familiais e de relação
entre as idades da vida. A autoridade paterna foi compreendida por
Hobbes como convencional. E quando o filósofo do Leviatã considerava
a autoridade paterna como convenção, embora a defendesse, esta
consideração atingia a convicção tradicional que, para Aristóteles e seus
seguidores através da Idade Média, era a de ser natural a autoridade do
pai sobre os filhos, sendo, mesmo, a autoridade doméstica vista como o
modelo natural para a autoridade política.
Na mesma Inglaterra de Hobbes, na geração seguinte que acompanha
o século XVIII, a história da filosofia nos apresentaria a John Locke,
outro dos filósofos contratualistas fundadores da filosofia política
moderna, pensador central no processo da transformação da concepção
da autoridade paterna, cujas reflexões terão consequência direta para as
idéias sobre a educação, constituindo-se em degrau importante nessa
evolução.10 Para Locke, a educação, como a política, é necessária por
causa do pecado e da queda, como conseqüência do pecado e para
correção da natureza decaída. Por causa da decadência da natureza
humana, fruto do pecado, torna-se necessário o esforço educativo, assim
como a organização do estado e da sociedade civil. No pensamento de
Locke continua a afirmar-se a autoridade dos adultos sobre as crianças;
contudo, o direito parental, dos pais, pai e mãe, substitui o direito
paternal, do pai, o que é bem novo na história das idéias sobre tais
10
Ver LOCKE: Pensamentos sobre a educação.Conferir RENAUT, 2002, p.227 e ss.
13
relações. Apesar de suas ambigüidades, John Locke defende que educar é
formar um ser livre. Assim como era originariamente livre antes do
pecado, o homem deve reencontrar pela educação a sua liberdade
própria. Por isso, deve-se educar para a liberdade, e o sentido da
educação é formar um ser livre, para o que convém educar pela
liberdade.
Uma segunda crise da educação tradicional seria aberta pelo escândalo
Jean-Jacques Rousseau. Rousseau, sobretudo com a publicação do livro
Emílio ou Da educação (1762), constitui-se num divisor de águas na história
das idéias, assim como sobre os fundamentos do governo e da
democracia, também quanto às idéias sobre a educação das crianças,
sobre o tratamento das crianças pelos adultos, e sobre a parte de
liberdade e a parte de destino na experiência dos homens ainda não
maduros. Com o seu discurso sobre a educação das crianças, Rousseau
se inseria no grande interesse do séc. XVIII pela educação, por isso é
surpreendente, e é preciso investigar cuidadosamente, para entender o
porquê da polêmica em torno de sua obra e de suas idéias sobre a
educação das crianças expressas em seu romance filosófico, situado entre
os tantos ensaios pedagógicos da época. Até hoje a pergunta permanece
e Renaut a repõe: por que o escândalo dos iluministas ante O Emílio de
Rousseau? É verdade que Rousseau interrogava os valores da civilização
e, ainda mais do que os valores da civilização, questionava a própria idéia
moderna de humanidade. Porém, será isto suficiente para explicar o
14
grande escândalo? O que haveria na concepção de natureza humana de
Rousseau para tanto escandalizar a sua época?
Rousseau não prezava tanto a razão como a única, talvez nem mesmo
como principal característica a fazer de um homem um homem; e isso
deveria ser chocante, no século em que a razão se afirmava como um
dogma. Todavia, provavelmente o mais novo e escandaloso, na
concepção rousseauniana de natureza humana, seja a afirmação da sua
dimensão de perfectibilidade, o que dá novo peso de responsabilidade à
tarefa pedagógica e educativa, ante o indivíduo e ante o povo. Jean-
Jacques Rousseau afirma que o caráter da espécie não é ser racional, ou
ser político, nem de ser isto ou aquilo, mas de ser perfectível. O caráter
específico da humanidade é a capacidade e necessidade de receber uma
educação para se aperfeiçoar conforme aos fins que o próprio homem
escolhe, portanto, conforme à liberdade humana. Esta é uma idéia que
tem elos com a antropologia filosófica do “homem como ser em
possibilidade” que encontramos no pensamento de Ernst Bloch,11 que
concebe o estado de indeterminação _ ou seja, de possibilidade, quer
dizer, de liberdade _ como o próprio do ser humano.
É verdade que as interpretações das idéias de Rousseau são inúmeras e
variadas, e requereriam nossa atenção mais paciente, mais longo estudo;
Alain Renaut nos faz refletir sobre as dúvidas sobre elas, sobre quais
serão as mais acertadas, quais os mal-entendidos, e sobre quais as
contradições de Rousseau que também hoje ainda provocam a polêmica 11 Conferir BLOCH, Ernst: Princípio esperança _ I, II e III. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005 e 2006. Ver
especialmente o artigo: “O homem como ser em possibilidade”, Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1966.
15
e o debate. No entanto, não é aqui o momento adequado para nos
deixarmos enveredar por esse caminho sinuoso da polêmica sobre
Rousseau, sem dúvida importante para ser revisada, especialmente pelos
pesquisadores da área da educação. Rousseau apresentou avanços, mas
também retrocessos, com relação a, por exemplo, as posições de Locke,
no que concerne ao respeito à natureza humana, às crianças e sua
liberdade. Todavia, como um fecho decisivo para a questão da
importância das concepções de Rousseau, pensador que pôde (e ainda
pode, talvez) ser considerado irregular, porque se expressava muitas
vezes por ensaios literários, que usou mesmo o gênero do romance e o
de memórias para expor suas idéias, além da contraditória notoriedade
em seu tempo, aliada a incontestável influência sobre a posteridade _ nas
ciências humanas, no direito, na política, vale lembrar o reconhecimento
e o aplauso recebido do grande filósofo da Aufklãrung, Emmanuel Kant.
Na Pedagogia (1765), e na Antropologia (1798), Kant reconhece a
importância e a centralidade de Rousseau, e Renaut nos recorda o juízo
kantiano de que, a partir de então, só se poderia ser “contra ou a favor
de Rousseau”, mas não seria mais possível desconsiderá-lo, ao continuar
a obra de reflexão, precisemos, sobre as realidades humanas em geral,
políticas e pedagógicas em particular.
Após Rousseau, na história das humanidades no horizonte ocidental, e
isto com dimensão mundial, constata-se uma evolução paradoxal que
pode ser dita simultaneamente como desenvolvimento das ciências
sociais e como decadência ou esquecimento da filosofia política.
16
Sacudido nesse movimento contraditório, no bojo de conflitos que
fariam o eixo político da era das revoluções e da era dos extremos,12 continuaria
o progresso da afirmação dos ideais de igualdade e de liberdade. Assim,
no século XIX, onde se encontram juntos Alexis Tocqueville e Karl
Marx, a filosofia política cederia espaço à ciência social, à economia, bem
como à filosofia da história ligada aos movimentos sociais. Desde o
momento romântico e utópico do século XIX, avançando pelo XX, e
apesar das vicissitudes da evolução política e do pensamento social, das
ideologias e dos eventos trágicos dos totalitarismos, contudo, continuou
seu caminho o progresso, descontínuo e incerto, mas irresistível, dos ideais
de igualdade e liberdade. É nesse mesmo tempo, paradoxal e violento
dos extremos, quando se registram conquistas legais e efetivas dos
movimentos pela afirmação política de grupos oprimidos _ das classes
sociais trabalhadoras, das etnias escravizadas, dos povos colonizados, das
mulheres submetidas.
Assim, no caminho da evolução da sociedade mundial no sentido da
liberdade e da igualdade, uma terceira crise da educação emergirá a partir
do centro do século passado, desde em torno de 1950 até o presente.
Após a segunda guerra mundial, durante as décadas de grande
desenvolvimento científico e tecnológico da segunda metade do século
XX, talvez mesmo por causa do progresso científico-tecnológico, o
mundo continuou a desenvolver-se na direção da ainda maior queda da
autoridade e da hierarquia _ na sociedade em geral, nas organizações 12 Expressões do historiador Eric Hobsbawn, que se constituíram em títulos dos volumes de sua história da época
contemporânea, referentes aos séculos XIX e o XX.
17
particulares e nas relações intersubjetivas, quer dizer, também nas
relações com a juventude e com a infância, entre adultos e crianças, na
família e na escola. O avanço da liberdade e da igualdade nos últimos
cinqüenta anos pode ser questionado, como um processo ainda
insuficiente, incompleto, defeituoso, de um fenômeno mal distribuído, às
vezes desviado, mascarado, perverso, contudo, não pode ser negado
como algo irreal ou inexistente. O avanço da igualdade se dá com o
avanço da afirmação do sistema democrático de organização política, em
regiões do mundo em que ela não existia ou não era tradição no começo
do século XX.
Também na América Latina podemos constatar, e as pesquisas nas
ciências sociais com certeza o poderão confirmar, embora interrompido
por décadas de tensa reação em forma de ditaduras, podemos reconhecer
o avanço dos ideais democráticos em nosso continente, um amplo
processo de avanço embora irregular e nem sempre linear da liberdade e
da igualdade. As classes populares e os grupos oprimidos em geral, como
as minorias étnicas historicamente discriminadas, as mulheres
historicamente submetidas, encontram também na América Latina um
caminho de afirmação e reconhecimento, em busca de igualdades
econômicas e sociais, além das políticas e culturais. Também pela
influência dos novos meios de comunicação, sobretudo com o advento
das novas tecnologias, afirmam-se formas de relacionamento inter-
pessoais, e entre grupos sociais, mais igualitários, sendo bastante forte a
sua associação com o amplo processo de globalização acelerada nas
18
últimas décadas. É bem próprio de nosso último tempo a afirmação de
uma variada e inovadora legislação que interfere no doméstico para
proibir e coibir a repressão e a violência na escola e na família.
A reivindicação coletiva, histórica, pelas mulheres, de maior liberdade e
igualdade jurídica, política, se efetivou em grande parte por uma maior
igualdade econômica e social, com variações conforme as regiões do
planeta e os grupos determinados. De certo modo e parcialmente, foram
realizadas as reivindicações das mulheres, pela conquista de direitos
iguais à participação, à propriedade, ao estudo, ao trabalho, às condições
de dignidade. As mulheres continuam lutando com as discriminações, as
dificuldades específicas, o preconceito, a violência doméstica, mas nessa
luta estão mais amparadas pela lei, pelas instituições jurídicas, e pela
compreensão mais difundida na opinião pública. De modo que é recém
agora quando as mulheres parecem estar criando elos com a política
propriamente dita, experimentando exercer maior poder em suas cidades,
em seus países.
É nesse contexto, pois, do avanço paulatino dos ideais e das práticas de
igualdade e liberdade, interferindo e transcendendo o domínio
doméstico, das relações do âmbito privado onde tradicionalmente
viveram as mulheres, onde se situa a atual reivindicação e problemática
dos direitos das crianças e dos adolescentes, ou seja, dos menores, a que
se dedica especialmente a educação. Após tais mudanças evidentes,
depois da perda da situação tradicional, estariam as crianças ainda “pior
que antes?” Quando, como já vimos acima, Hannah Arendt dizia que em
19
nossa época contemporânea, quando parecem ter obtido mais autonomia
e estaria mais controlada a repressão e a punição dentro das escolas e das
famílias, por causa da crise da autoridade e a crise da proteção paterna, a
situação para as crianças seria pior que antes, Alain Renaut julga ter sido
a filósofa, nessa reflexão, influenciada por uma idealização injustificável
do passado, que seria injusto defender, ante o imenso sofrimento
registrado pela história da infância, na época antiga e medieval mas
também no período moderno, da realidade do abandono, do direito
paterno à punição dos filhos, do direito do mestre à punição do
discípulo.
No século XX ocorreram as primeiras declarações internacionais dos
direitos das crianças. Dois séculos depois do Iluminismo, que deu origem
às primeiras declarações dos direitos do homem, começam a ser
reconhecidos, pelo menos formalmente, os direitos da criança, como de
um “pequeno homem”. Nas primeiras declarações oficiais _ a da
Sociedade das Nações, em 1924, e a da ONU, de 1959_, o objetivo
evidente era o de promover a proteção das crianças, expostas a tantos
perigos e sofrimentos no período que vai do começo da primeira grande
guerra mundial até o final da segunda. Por outro lado, a declaração da
ONU de 1989, muito mais longa e explícita, registra uma transformação
substancial de intenções e disposição, e já reconhece aos menores
direitos ligados a liberdades.
20
Na Declaração de 1989 misturam-se e confundem-se duas tradições de
conquistas de direitos, duas espécies de direitos13: os direitos-créditos, ou
seja, direitos sociais _ à vida, à saúde, à proteção, e direitos-liberdades, ou
direitos políticos, se é que se pode dizer assim, ao nos referirmos a
crianças. Nas declarações dos direitos do homem adulto também se
misturaram e podem ser distinguidas essas duas ordens de direitos: uma
influenciada pelo avanço das idéias modernas oriundas do liberalismo; a
outra, resultado das lutas democráticas mais ligadas à corrente do
socialismo e à militância sindicalista. E não só acontece certa confusão,
carente de melhor esclarecimento, numas como noutras declarações,
bem como, além disso, processa-se claramente uma inversão, que se
torna evidente ao compararmos as Declarações dos direitos do homem
referentes aos adultos, com as Declarações dos direitos das crianças.
Sobretudo, há uma inversão de avaliação do que parece no presente
como direito certo e inquestionável ou como direito polêmico, duvidoso,
alvo de discussão. Assim, o que é tido como inquestionável para os
homens adultos, ou seja, os direitos à liberdade _ de crença, de
pensamento, de opinião, de expressão, de reunião, são os direitos
questionados quando se trata das crianças. E o que é tido como
inquestionável para as crianças, como o direito à proteção, à educação, à
saúde, etc., é posto em dúvida em relação aos adultos. O direito ao
trabalho, por exemplo, que é reconhecido quase como um dever para os
adultos, é negado, quase como um crime, para as crianças. O
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Ver Norberto Bobbio, A era dos direitos. Rio de janeiro: Campus, 1992.
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inquestionável e relevante é que, de um modo ou de outro, avança o
reconhecimento dos direitos humanos das crianças, como homens em
todo o sentido, embora ainda não plenamente desenvolvidos e maduros,
muito embora permaneçam, ante a moderna evolução do
reconhecimento dos direitos infantis, algumas perguntas ainda sem
resposta.
A primeira pergunta que causa dúvida e discussão é se é possível
pensar a criança como cidadão. Pode-se constatar a correção de que a
criança seja considerada pela lei como cidadão, enquanto um cidadão em
desenvolvimento, mas em que medida e a que momento deste
desenvolvimento ser-lhe-ia dado o direito e a responsabilidade de
participar, com sua vontade, voz e voto, na política de seu país? Em que
momento deveria ser considerado um cidadão a parte inteira? Por
outro lado, há que manter a consciência dos riscos de uma formalização
jurídica das relações entre pais e filhos, adultos e crianças, professores e
alunos, que ameaça as teias da vida em que estão imersas as crianças.
Tomando este caminho, a negociação se impõe em todo tempo e lugar.
E parece bem questionável se nas maneiras de convivência entre pais e
filhos pequenos, por exemplo, a constante negociação seja o melhor
caminho, em toda ocasião. Com certeza, esses são os dois pólos entre os
quais oscila a questão da mudança consciente das formas de convívio
entre adultos e crianças, pais e filhos, professores e alunos, entre mais
liberdade ou mais segurança, mais liberdade ou mais proteção para as
crianças. E outra pergunta difícil de responder é se as crianças podem ser
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consideradas como um grupo social oprimido. Mesmo no que se refere
às mulheres, a linha entre a situação a superar e a situação de superação é
mais clara. As mulheres declaradas plenamente adultas pela lei, cidadãs a
parte inteira, podem ser consideradas como emancipadas, mesmo se
continuarão a buscar outras formas de liberdade e reconhecimento
dentro das situações econômicas e sociais concretas. Quanto às crianças,
uma vez que, por definição, pela idade da vida em que se encontram,
estão em evolução e mudança até outra forma de ser humanos como
adultos, sendo portanto sua existência mesma, enquanto crianças,
provisória, e sendo o seu modo próprio de ser humano ainda não de
todo maduro, as perguntas que ocorrem aos que trabalham sobre os seus
direitos são muitas e não se acham ainda todas as respostas.
Para além do direito, é preciso elaborar uma ética da solicitude e do
apoio moral, que contemple e colabore para aperfeiçoar a atitude dos
adultos diante das crianças, que se tornaram sujeitos de novos direitos.
Alain Renaut sugere e recomenda que, compreendendo embora como
um progresso irresistível a transformação sofrida nas relações entre pais e
filhos, adultos e crianças, na ótica da história política e de conquista de
reconhecimento dos ideais e das práticas da liberdade e da igualdade,
contudo, não se julgue suficiente, nem veja como suficiente a passagem
da ausência de lei ao plano do direito e da lei, que levaria a uma resposta
formal, jurídica, às questões e conflitos trazidos pelas novas situações e
expectativas. E assim, o estudo em questão termina com a proposta de
busca coletiva de um aperfeiçoamento ético que pense as obrigações dos
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adultos diante das crianças, ou seja, com a recomendação de uma nova
ética das obrigações dos adultos ante as crianças, pois que os direitos das
crianças requerem correspondentes obrigações dos adultos. Para avançar
nesse caminho, Renaut refere os trabalhos de Onora O’Neill, estudiosa
da filosofia prática kantiana que tem trabalhado sistematicamente sobre
uma ética das obrigações dos adultos ante os menores, levando em conta
a vulnerabilidade e a carência infantil de apoio moral, posto que os
direitos das crianças requerem correspondentes e adequadas obrigações
dos adultos.14 Restam-nos desta leitura, pois, muitas sugestões, para
empreendimentos futuros de pesquisa em educação, com vistas a tal
desenvolvimento ético, diante das crianças a caminho da igualdade e da
liberdade.
Referência principal
RENAUT, Alain: La libération des enfants. Paris: Hachette, 2003. 1ª ed., Paris: Calmann-Lévy, 2002. A libertação das crianças. Lisboa: Instituto Piaget, 2004.
Referências secundárias ARENDT, Hannah: “A crise na educação”, in: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972. BOBBIO, Norberto: A era dos direitos. Rio de janeiro: Campus, 1992. ROUSSEAU, Jean-Jacques: Emílio ou Da educação. São Paulo: Martins Fontes, 1999. TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998.
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Na recomendação da ética da solicitude percebe-se afinidade com a reflexão de Paul Ricoeur;
conferir Rosa M.F. Martini, in: Ò meus amigos, não há amigos, Movimento/Edunisc, 2010.