"Debussy versus Schnebel: sobre a emancipação da composição e da análise no Séc. XX"

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Debussy versus Schnebel : sobre a emancipação da composição e da análise no Séc. XX. Didier Guigue Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa Rua Antônio P. Rocha, 90 58045 - 380 João Pessoa - Pb - Brasil Fone & Fax : + 55 83 247 14 73 dguigue@openline. com. br Resumo A análise que Dieter Schnebel fez do prelúdio Brouillards de Debussy [Schnebel 1964] é tomada neste artigo como ponto de partida para expor um estudo analítico do papel da sonoridade na articulação dinâmica da estrutura formal de uma obra. Por sonoridade entende- se no presente contexto uma dimensão abstrata da composição. Pretendo esclarecer por que meios, nesta obra, a concepção composicional de DEBUSSY implica em uma diluição do poder estruturador normalmente atribuído ao elemento motivo-cromático dentro dos sistemas de articulação das sonoridades. Ainda são poucas as estratégias analíticas capazes de responder a esta emancipação histórica, mas os insights de SCHNEBEL fornecem preciosas trilhas que tento seguir. Schnebel analisando Debussy : tendências composicionais, tendências analíticas Num artigo intitulado “Brouillards — Tendencies in DEBUSSY”, Dieter SCHNEBEL [1964] sustenta e demostra que o material musical deste Prelúdio para piano [DEBUSSY 1912-1913] é gerado a partir de processos de transformação de um número finito de classes de objetos sonoros. Ele define assim seu ponto de vista : « A unidade elementar não precisa estar subordinada, enquanto parte, a uma unidade dominante […]. A unidade elementar é melhor definida como momento e, conseqüentemente, algo que existe de forma autônoma, independente. É na seqüência de tais momentos que se dá o processo [de transformação] » [p. 33] 1 . 1 As traduções, que são minhas, não são literais.

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Debussy versus Schnebel : sobre a emancipação dacomposição e da análise no Séc. XX.

Didier GuigueUniversidade Federal da Paraíba, João Pessoa

Rua Antônio P. Rocha, 9058045 - 380 João Pessoa - Pb - Brasil

Fone & Fax : + 55 83 247 14 73dguigue@openline. com. br

Resumo

A análise que Dieter Schnebel fez do prelúdio Brouillards de Debussy [Schnebel 1964] é

tomada neste artigo como ponto de partida para expor um estudo analítico do papel da

sonoridade na articulação dinâmica da estrutura formal de uma obra. Por sonoridade entende-

se no presente contexto uma dimensão abstrata da composição. Pretendo esclarecer por que

meios, nesta obra, a concepção composicional de DEBUSSY implica em uma diluição do poder

estruturador normalmente atribuído ao elemento motivo-cromático dentro dos sistemas de

articulação das sonoridades. Ainda são poucas as estratégias analíticas capazes de responder

a esta emancipação histórica, mas os insights de SCHNEBEL fornecem preciosas trilhas que

tento seguir.

Schnebel analisando Debussy : tendências composicionais, tendências

analíticas

Num artigo intitulado “Brouillards — Tendencies in DEBUSSY”, Dieter SCHNEBEL [1964]

sustenta e demostra que o material musical deste Prelúdio para piano [DEBUSSY 1912-1913] é

gerado a partir de processos de transformação de um número finito de classes de objetos

sonoros. Ele define assim seu ponto de vista : « A unidade elementar não precisa estar

subordinada, enquanto parte, a uma unidade dominante […]. A unidade elementar é melhor

definida como momento e, conseqüentemente, algo que existe de forma autônoma,

independente. É na seqüência de tais momentos que se dá o processo [de transformação] » [p.

33] 1.

1 As traduções, que são minhas, não são literais.

Os momentos se organizam em estruturas que representam as unidades formais da peça.

Por exemplo, os momentos 1 a 4 (c. 1) constituem a primeira dessas estruturas e os momentos

5 e 6 (c. 2) a segunda. SCHNEBEL estabelece as bases de uma descrição funcional dessas

estruturas segundo dois ângulos : de um lado, as relações interestruturais, e, de outro, a

evolução do processo de transformação entre uma estrutura e outra. Desta forma, as

transformações entre a primeira e segunda estruturas ocorrem na mão esquerda através da

aceleração da pulsação, de uma maior movimentação no espaço (âmbito maior) e de uma

oposição direcional (tropismo ascendente em vez de descendente) ; e, na mão direita, através

da expansão seguida de compressão de um mesmo pattern.

Este tipo de aproximação possui a vantagem de detalhar alguns aspectos prospectivos da

técnica composicional de DEBUSSY, de mostrar como ele « compõe as mudanças de timbre, a

organização dos movimentos sonoros, [e] esboça uma técnica de composição com os sons »

[p. 36].

Ademais, SCHNEBEL aponta em que direção deveria rumar, na sua opinião, uma

abordagem analítica competente. « A composição com os sons tenta combinar elementos

sonoros em unidades de nível superior […] Visto que essas unidades não podem mais ser

apreendidas enquanto elementos individuais, as “categorias estatísticas” se tornam válidas ; [de

fato], essas unidades se caracterizam essencialmente por seu comportamento estatístico,

segundo a sua direcionalidade, densidade, velocidade, etc. » [p. 37-38].

É uma pena que o autor não tenha buscado um maior aprofundamento dos preciosos

insights metodológicos expostos naquele artigo 2, uma vez que eles constituem o esboço de

uma abordagem funcional da sonoridade enquanto dimensão autônoma — ou, pelo menos,

com tendência à autonomia — da linguagem musical do Séc. XX. Esta problemática

metodológica permanece atual. Meu propósito neste artigo é ilustrar, a partir de uma análise

desta obra, a minha formalização pessoal de tal abordagem, para demostrar que a concepção

composicional de DEBUSSY implica em uma diluição do poder estruturador normalmente

atribuído ao elemento motivo-cromático 3dentro dos sistemas de articulação das sonoridades.

2 Comunicação pessoal, Rio de Janeiro, 1997.3 O termo croma e seus derivados, como cromático, são tidos na minha concepção como sinônimos da expressãoclasses de alturas. Ele não implica necessariamente em uma linguagem utilizando os 12 sons da escala cromática.Neste último caso falo em cromatismo integral.

A célula gerativa de Brouillards

O mecanismo de geração do material sonoro deste Prelúdio pode ser descrito a partir da

noção tradicional de motivo gerador básico [SCHŒNBERG 1967]. Esta noção todavia precisa ser

adaptada ao contexto idiossincrático do compositor. Um motivo gerador debussysta não está

circunscrito à uma coleção acrônica — i.é. não ordenada no tempo — de classes de alturas,

nem a uma seqüência ordenada de intervalos. É possível, obviamente, reduzí-lo a uma

talestrutura elementar 4, mas esta redução priva a análise do essencial, posto que o sistema

composicional de DEBUSSY sempre associa estas coleções elementares à configurações

sonoras muito específicas. E mais, são essas configurações sonoras que geram o material

realmente portador de forma 5, como pretendo mostrar a seguir, e não, tão somente, o seu

substrato cromático.

A primeira célula da obra, na ordem do tempo — isto é, a célula pela qual começa a peça, c.

1.1 — constitui o núcleo gerador da totalidade do material cromático, por repetição variada ou

por oposição estrutural. SCHNEBEL fez uma descrição interessante desta célula , porém sumária

[op. cit. : 33] ; vamos completá-la.

Podemos descrever este motivo como uma tríade de Dó maior no registro mediano do

instrumento (Dó4, Mi4, Sol4), colocada “un peu en valeur” (um pouco valorizada). A sua

ressonância natural se desenvolve em duas fases : a primeira, enquanto as teclas são

abaixadas (mais ou menos durante uma semi-colcheia, pois as colcheias são marcadas

staccato) ; e a segunda, até que o pedal, implicitamente prescrito pela ligadura que cobre tudo o

compasso (pauta da mão esquerda), seja levantado 6.

A harmonicidade “natural” (ou será cultural ?) desta tríade encontra-se embaçada por um

arpejo, tocado “léger” (leve) e legato na mão direita. Este arpejo, constituído das notas Sib 4,

Solb 4, Mib 4 e Réb 4, nesta ordem, não possui nenhuma nota em comum com a tríade 7. Ele

poderia ser definido, por conseguinte, como uma reverberação inarmônica desta tríade. Ele não

4 RETI 1978, e outros depois dele, realizaram boas análises baseadas exclusivamente no estudo das modalidadesde proliferação de células mínimas. Não há dúvida que o motivo interválico i5 + i2 — isto é, quarta justa + segundamaior —, preenche um papel infra-estrutural muito importante em várias obras de DEBUSSY .5 PARKS 1989 fala em form-defining parameters. DUCHEZ 1989 e outros, utilizam a expressão dimensionmorphophorique que pode ser facilmente transposta para o português: morfofórico, de morfo-, forma, e -fórico,portador.6 Sobre a notação implícita dos pedais in DEBUSSY, veja, entre outros, BANOWETZ 1985.7 A grafia original mostra que de fato, para DEBUSSY, aparentemente, o Sol 4 faz simultaneamente parte do arpejoe do acorde. No entanto, para a presente descrição, resolvi desconsiderar esta duplicação funcional teórica — jáque não pode ser ouvida — e associar o Sol ao conjunto de cromas dentre do qual ele se integra enquantoconsonância.

remete de forma tão clara a um centro tonal próprio, ainda que contenha, em posição invertida,

os três sons da tríade de Solb maior. Algumas variantes deste arpejo — por exemplo cc. 4.1, 9

ou 29.3 — parecem confirmar esta tendência tonalizante.

Esta reverberação arpejada é muito rápida (4 fusas) e, em termos de posição temporal, se

encontra deslocada de um passo para frente em relação à tríade, o que produz no total um grupo

de 5 fusas. Porém o compositor insiste imperativamente na regularidade da distribuição dos

sons (“extrêmement égal”, extremamente igual). Finalmente, o arpejo é unilateralmente

direcionado, percorrendo o âmbito de cima para baixo. Vale notar por sinal que a dicotomia

diafônica — acorde na mão esquerda versus arpejo na mão direita — aparece praticamente

como uma constante em toda a peça.

A duração escrita do motivo corresponde à unidade temporal básica da obra — a colcheia

num andamento “Modéré” —, porém a utilização do pedal multiplica aproximadamente esta

duração por quatro [fig. 1].

fig. 1 : O motivo gerador de Brouillards (c. 1.1), em notação ortocrônica levando em conta as colchéias staccato ,as fusas ligadas e o uso do pedal.

A sonoridade gerativa de Brouillards

Vamos completar e enriquecer esta descrição, considerando agora as propriedades

sonoras deste motivo ou pelo menos, aquelas que são explicitamente configuradas e

consignadas pelo compositor na partitura.

• A intensidade é pp, embora a tríade, como já assinalei, deve ser tocada “un peu en

valeur”. Sabemos que uma baixa intensidade resulta, obviamente, num enfraquecimento da

propagação dos sons no espaço, mas sobretudo em uma diminuição ou até em um

desaparecimento, dos harmônicos mais fracos, isto é, dos mais agudos, atenuando assim o

brilho global do som.

• Uma vez instaurada, a sonoridade do conjunto se apaga naturalmente, ou seja

irregularmente, em função das propriedades da mecânica do instrumento [MARTIN 1947, SUZUKI

& NAKAMURA 1990, e al.], até que o/a pianista levante o pedal.

• A taxa de ocupação do espaço 8 é muito baixa : o âmbito Dó4-Sib 4 representa apenas

11 % da tessitura total de um piano de 88 notas. Ela limita-se ao registro central, o mais “neutro”

no plano da sonoridade 9.

• De outro lado, a fluidez do corte do tempo, provocada por uma isoritmia não apenas

escrita mas também enfatizada textualmente por DEBUSSY (“extrêmement égal”) é aumentada

ainda pelo legato, o qual produz por sua vez um envelope de curva de intensidades bastante

plano.

Associados à intensidade pp, esses dados poderiam sugerir que este motivo possui uma

qualidade sonora relativa bastante baixa. Por qualidade sonora relativa, entendo um vetor cujo

os dois pólos são, de um lado, a “simplicidade”, e de outro, a “complexidade”, ambas relativas,

da configuração escrita do objeto analisado. De acordo com esta concepção e esta terminologia,

um objeto feito de uma série de notas pp legato, por exemplo, possui uma qualidade sonora

mais “simples”, isto é, mais “baixa”, do que um objeto feito de uma série de notasff staccato.

Porém, a escrita de DEBUSSY é raramente unilateral. A estrutura interválica acrônica do

motivo 10 faz com que ele carregue uma taxa de dissonância muito elevada. É claro que existe

uma relação direta entre esta taxa e a estreiteza do seu âmbito (menos de uma oitava). Porém

os fatores de densidade também são importantes : observamos uma taxa de 64 % de saturação

do espaço cromático, aliada a uma taxa de 62 % de ocupação do tempo 11. A brevidade do

motivo, de onde decorre o acúmulo de um grande número de eventos em muito pouco tempo,

forma um outro fator saturador.

Esses elementos, que agem como complexificadores da sonoridade, compensam assim a

neutralidade da registração (no centro do piano), a lisura da pulsação rítmica (isoritmia) e a baixa

intensidade (pp).

8 De uma forma geral, neste trabalho, o termo espaço é utilizado metaforicamente para designar o universo dossons disponíveis ou observados, dentre dos limites da tessitura do piano ou de determinado objeto,independentemente da ordenação ou distribuição desses sons no tempo. O espaço é a uma dimensão acrônica.9 V. in GUIGUE 1997a um estudo referenciado das qualidades sonoras diferenciadas dos registros do piano.10 A estrutura interválica acrônica de um objeto é avaliada trazendo todas as notas ao ponto 0 do tempo, como setratasse-mos de um acorde. No caso, obtemos a estrutura Dó-Réb-Mib-Mi-Solb-Sol-Sib.11 As densidades de ocupação do espaço cromático e do tempo são calculadas dividindo o número de sonsdiferentes (espaço) ou de eventos (tempo) pelo âmbito (espaço) ou a duração total (tempo) do objeto. O espaçocromático seria saturado a 100% se tivesse-mos, por exemplo, um cluster. O tempo seria saturado, no mesmoexemplo, se tivesse-mos um evento a cada semifusa (pois este valor constitui a unidade mínima de impulsão (ppi)que tenho, após levantamento estatístico, adotado para analisar Brouillards).

A soma dessas qualidades produz um certo efeito de confusão sonora, no qual podemos

perceber a expressão musical da metáfora do “brouillard” (neblina, bruma), que DEBUSSY evoca

no subtítulo. JANKÉLÉVITCH 1976, e LOCKSPEISER posteriormente, têm razão em creditar a

DEBUSSY a introdução da noção de ruído no pensar musical : « Qual será o momento onde o

som se torna música ou, ao contrário, onde ele volta ao ruído ? DEBUSSY não viveu o suficiente

para assistir ao início da musique concrete ; no entanto, algumas de suas utilizações, por vezes

muito rudes, do intervalo de segunda, fundadas no princípio de que não existe, em definitivo,

nenhuma fronteira entre música, som e ruído, anunciam claramente, num certo sentido, este

conceito » [LOCKSPEISER 1980 : 526].

De forma mais técnica, é importante ter em mente que cada uma das qualidades sonoras

deste motivo vai exercer uma influência fundamental sobre a totalidade das estruturas que ele

terá contribuído em gerar. Vamos ver agora como essas estruturas e suas variantes, vão ser

exploradas para construir o material sonoro da obra.

Os processos de geração das unidades elementares

Pode-se distinguir duas categorias de variações do material primário (alturas/durações)

que constitui o motivo básico descrito acima : a primeira categoria representa um processo de

transformação destinado a articular estruturas diferenciadas. Cada transformação gera um

paradigma. Identifiquei seis paradigmas de transformação do motivo básico [fig. 2].

Esses paradigmas, bem como o próprio motivo básico 12, podem sofrer pequenas

alterações de superfície no decorrer de suas diversas e repetidas iterações. Essas alterações

são geralmente decorrentes das suas condições de inserção em estruturas locais

diferenciadas. Chamo essas alterações de variantes. Estou opondo o termo variante ao termo

variação, com base na capacidade transformacional — e, portanto, dinâmica — da variação, em

relação ao caráter prolongacional, anafórico — portanto estático — do termo variante.

12 No restante desta análise o motivo básico é considerado como primeiro paradigma.

fig. 2: O motivo básico de Brouillards [1] e suas seis transformações paradigmáticas [2] - [7]. Os processosanalíticos que permitiram chegar a estas relações são explicados no texto principal e na fig. 4. Os números dentrode círculos remetem aos compassos. O paradigma [6] não é mostrado aqui na sua totalidade.

Estes dois níveis de geração do material são claramente dissociados quanto a sua função

formal. Enquanto a variante prolonga a presença de seu paradigma — é através dela que o

mesmo se propaga, prolifera, que ele se instala no tempo da obra —, a variação

transformacional é intrinsecamente ligada a articulação da macro-estrutura : cada paradigma, ou

seqüência de paradigmas, tem como função de caracterizar as diferentes fases da macro-

estrutura. Esta estrutura a dois níveis é representada na presente demostração por convenções

numéricas : os sete paradigmas são numerados de (10) a (70) (sendo (10) o motivo básico) e

as suas variantes internas assinaladas por mudanças de unidades. Assim, (11) e (12) são

variantes do paradigma (10), e (12.1), (12.2) representam variantes de variantes.

Principal processo de variação dos paradigmas

Considero as técnicas de variantes utilizadas neste prelúdio como uma metáfora do

fenômeno acústico que poderia ser descrito como propagação sonora por oscilação ressonante.

Pois o conceito de oscilação preserva a característica anafórica do processo : enquanto

determinada onda sonora vai oscilando, a pressão acústica permanece como está. Logo,

enquanto um paradigma sonoro é prolongado por oscilações ressonantes, o tempo musical

pára 13.

Através deste conceito, as modalidades de variantes levantadas no prelúdio podem ser

descritas segundo três modelos de propagação :

• a ressonância por ondulação sinusoidal do paradigma encontra a sua expressão musical

na transposição por grau conjunto ou ligeiramente disjunto — eventualmente acompanhada de

pequenas modificações da estrutura interválica —, seguida de uma volta simétrica ao ponto de

partida. No contexto desta peça, encontramos duas modalidades : a ondulação sinusoidal

“simples” oscila entre dois piques que ficam relativamente próximos, em termo de distância

intervalar, enquanto a ondulação sinusoidal “dupla”, cujo os piques são mais afastados, contem

um passo intermediário [cf. dois exemplos, a e b, na fig. 3 abaixo] ;

• a ressonância por retroação estática, ou neutra, consiste na manutenção da fonte (i.e. do

paradigma) por realimentação permanente (comumente chamado feedback) [ex. c na fig. 3].

• a ressonância por retroação dinâmica modula o paradigma a cada realimentação, o que

produz uma teleologia sonora, ascendente ou descendente, fenômeno que era ausente da

retroação estática [fig. 3, ex. d].

Em maior escala, podemos analisar certas estruturas de Brouillards como sendo o

resultado da concatenação de modelos combinados de propagação de um paradigma [fig. 3, ex.

e].

13 Existem teorias da forma baseadas no paradigma da ondulação sonora, ao qual o modelo que proponho aquipoderia ser a priori assimilado [v. por ex. POUSSEUR 1970, SMALLEY 1986, LIZAUSABA 1997]. Todavia, nestasteorias, o próprio fenômeno ondulatório é tomado como critério de articulação dinâmica, enquanto na minhaconcepção só há articulação quando ocorre quebra da ondulação vigente.

fig. 3: Os modelos de propagação por ressonância:a: ondulação sinusoidal “simples” ;b: ondulação sinusoidal “dupla”;

c: retroação estática;d: retroação dinâmica;

e: uma combinação de modelos.

Esses três modelos de variantes têm como função consolidar a vibração, a presença

sonora do paradigma, propulsá-lo no tempo e, assim, simular uma textura contínua e

localmente pouco diferenciada. Isto remete novamente a analogia poética da neblina. Esta

técnica de prolongação constitui praticamente o único procedimento utilizado pelo compositor

nesta obra para criar as variantes.

Técnicas de prolongações e transformações

Como já coloquei, as variações, por sua vez, têm como finalidade a transformação do

motivo gerador em paradigmas assumindo um grau relativo de autonomia, isto é, de diferença.

Conseqüentemente, elas necessariamente atacam-no de forma mais complexa, mais profunda,

porque a sua função é justamente acidentar a superfície sonora por meio de constrastes

estruturais. No entanto, essas transformações, em Brouillards, nunca chegam a alcançar um

nível de subjacência tal que o vínculo cromático não possa ser cada vez facilmente identificado,

em alguns passos dedutivos. Não precisaremos recorrer à sofisticadas técnicas de redução ou

de abstração das estruturas de superfície para reconhecer as ligações orgânicas que as

variações mantêm com o motivo gerador comum.

Por esta razão, resolvi fazer a economia de uma exposição descritiva exaustiva, preferindo

mostrar as principais variações de forma sinóptica. A fig. 4 conecta todos os paradigmas — e

suas principais variantes — ao motivo gerador comum, explicitando assim as suas ligações.

Esta representação de tipo hierárquico induz uma organicidade intrínseca do processo

composicional, segundo a qual todo o material nasce de um conjunto de regras de

transformação do motivo básico. Neste aspecto, a obra parece prestar-se bem a um exercício de

modelização algorítmica ao final do qual ela poderia ser integralmente regenerada por

computador [MESNAGE & RIOTTE 1990, MESNAGE 1991].

[fig. 4a]

[fig. 4b]

fig. 4 (a, b, c) : Principais prolongações cromáticas do motivo gerador de Brouillards.Os números dentro de círculos remetem aos compassos. O rótulo ‘O1’ significa “Objeto sonoro n. 1”, o qual corresponde ao

c. 1 por inteiro.

[fig. 4c]

Uma descrição da sonoridade enquanto dimensão composicional

Ao afirmar que DEBUSSY « não fez nada menos que restituir à substância sonora a unidade

orgânica que concepções logicistas tinham quebrado », André SOURIS expõe os termos do

desafio que a sua obra representa : « Ao mesmo tempo que ele aliviou a linguagem musical do

formalismo sinfônico, DEBUSSY o livrou dos mais severos rigores do aparelho tonal e de quase

todo o simbolismo estereotipado a ele atrelado. Assim fazendo, eliminou-se de uma vez todos

os elementos de disjunção que haviam, durante séculos, separados os componentes da

substância sonora. Uma vez esta restaurada na sua integridade, todas as velhas categorias da

estética musical se tornaram impraticáveis. A hierarquia que atribuía à altura dos sons uma

predominância sobre as suas demais propriedades, teve que ceder lugar a outras modalidades

estruturais sempre renovadas » [1976 : 209 e sq.].

Stefan JAROCINSKY traz precisões históricas : « É certo que a musicologia tinha apercebido

na obra de DEBUSSY a relevância dos valores sonoros. Mas, por atribuir aos mesmos uma

importância secundária em relação ao elemento harmônico, ela se impedia por isso mesmo de

tirar desta constatação uma conclusão que a teria levado a revisar os seus métodos de

pesquisa ». Mais adiante, ele aponta que, « atrelada com obstinação aos métodos tradicionais,

a musicologia tinha, sim, condição de explicar a decomposição do sistema da harmonia

funcional na obra de DEBUSSY, quer dizer, sua ação destrutiva, mas só podia fracassar ao tentar

descrever a ação [construtiva] de um mecanismo novo das correspondências e o papel

primordial e criador da forma, que os valores sonoros assumiam neste mecanismo » [1970 :

68].

Em todo caso, eu estou plenamente convencido que apenas com ferramentas de

investigação desenvolvidas especialmente para este fim, é possível captar os fundamentos

desta concepção da forma e dessas novas modalidades estruturais. É desta maneira que

SCHNEBEL abordou Brouillards, e é baseado na mesma hipótese que procuro desenvolver um

método específico de leitura e avaliação da musica do Séc. XX, a partir de uma posição que

valida o suporte escrito 14 como depositário necessário e suficiente à formalização teórica desta

ótica composicional. O pressuposto sistémico sobre o qual está baseado este modelo analítico

consiste em considerar as configurações complexas, que chamo genericamente de objetos

sonoros, como um estrato autônomo da realização da obra, capaz de portar elementos

essenciais da estrutura formal e, conseqüentemente, de suportar uma análise funcional. 14 Quando este existe, obviamente. Isto é normalmente o caso para a música do Séc. XX. A música eletroacústicacoloca problemas específicos neste ponto, que são abordados numa abundante literatura [v. por exemplo o jácitado SMALLEY 1986 ou, no Brasil, GUBERNIKOFF 1997].

Segmentação

O procedimento metodológico que vou descrever ligeiramente nas linhas que se seguem

já foi o tópico central de publicações detalhadas às quais remeto o leitor [GUIGUE 1997a, 1997b]15. Ele consiste, numa primeira etapa, em fragmentar a partitura numa seqüência de objetos,

cada objeto representando uma determinada configuração sonora. O processo de segmentação

funda-se num princípio de ruptura de continuidade, a qualquer nível estrutural que seja [cf.

LERDAHL 1989] : rupturas macro-formais (pausas, fermatas…), interrupções de pedais e/ou de

ligaduras de articulação, rupturas de continuidade nas intensidades, registração, configurações

rítmicas, densidades, etc. Embora estes critérios sejam por definição independentes dos

princípios de segmentação periódica adotados pelo compositor (a prosodia, a articulação

temática, etc.), nada impede uma eventual coincidência entre uns e outros, especialmente ao

nível estrutural mais elevado (a macro-estrutura). O princípio de independência é no entanto

fundamental para que se possa avaliar as relações estabelecidas entre este nível superior da

organização formal e os níveissubjacentes.

Princípios de avaliação

Uma vez segmentada, a partitura é exportada para o ambiente informático Patchwork dentro

do qual foram implementados os algoritmos de avaliação 16.

Por definição, um certo número de componentes da escrita musical são responsáveis pela

configuração sonora dos objetos. Estes componentes são também chamados vetores, quando

está sendo considerado a sua evolução no tempo. Cabe ao sistema informático a avaliação do

peso de cada componente na configuração sonora do objeto. A informação que serve de

fundamento à esta avaliação é o grau de complexidade relativa da estrutura do componente. A

complexidade máxima corresponde à estrutura que produz a sonoridade mais “complexa”, mais

“rica”. Neste caso, o peso participativo aferido a este componente é de 100 %, ou (1), por

convenção. Na outra extremidade, as estruturas mais simples são as que geram as

sonoridades mais “simples” ou “pobres”. Naturalmente, o sentido das noções de “simplicidade”

e “complexidade” varia em função da natureza do componente que está sendo avaliado. Assim,

em se falando de densidade, que é um componente estocástico importante em DEBUSSY, a

escala de apreciação vai do “vazio” (0) à “saturação” (1), enquanto a medida da extensão da

tessitura que determinado objeto pode ocupar se realiza numa escala aritmética — de 1 (peso

15 Além dessas publicações, um site especializado na web oferece uma série de documentos à respeito.Endereço: http://www.liaa.ch.ufpb.br/~dguigue.16 Patchwork é um ambiente informático de auxílio à composição, desenvolvido na plataforma Macintosh porLAURSON, M., RUEDA, C., & DUTHEN, J., no IRCAM, Paris [cf MALT 1993].

(0)) a 87 (peso (1)), que corresponde ao âmbito do objeto, medido em números de semi-tons,

num piano de 88 teclas.

Em conseqüência, define-se que a qualidade sonora de um objeto é diretamente

proporcional à complexidade relativa aferida aos componentes da sua estrutura. Alguns dos

componentes que participam ativamente da configuração das sonoridades em Brouillards vão

ser descritos sucintamente a medida que eles vão entrar em cena, inclusive nas figuras que

acompanham o restante desta análise. Uma descrição completa e sistemática de todos os

componentes é proposta in GUIGUE opp. cit.

O paradigma (10)

O motivo paradigmático (10) — cujas características sonoras já foram descritas no início

deste artigo — é o elemento que sofre o maior número de duplicações com baixo indício de

variação. Isto é coerente com a sua função estrutural predominante, e também com o seu papel

de matriz geradora de outros paradigmas.

A variante (11) provem diretamente da transformação do motivo gerador : transposição do

conjunto na quarta inferior, pequena modificação da estrutura interválica 17 e aceleração do fluxo

rítmico, através do acréscimo de um evento (arpejo de seis notas em vez de cinco). Essas

alterações acarretam uma real modificação da qualidade sonora. A registração evolui para o

meio grave, a ocupação do espaço pianístico se amplia [v. nota 8 sobre o significado do termo

espaço], as densidades, que já eram elevadas, aumentam ainda. Inarmonicidade e

direcionalidade são os fatores que apresentam o maior crescimento. Comparando as

qualidades respectivas de (10) e (11), podemos falar, não de um contraste, mas de uma

progressão em direção a uma maior complexidade sonora [fig. 5].

Por sua vez, a relação entre a variante (12) e o paradigma (10) não é direta, pois ela é o

fruto de uma transformação prévia de (10), transformação operada pela soma das células (10.0)

e (10.1). Esta transformação produz o objeto sonoro rotulado por convenção O1 [v. fig. 4]. Com

efeito, (12) não é outra coisa senão uma repetição parcial deste objeto, por supressão dos

arpejos da mão direita. Esta supressão provoca, no plano sonoro, uma forte regressão, que

17 As três primeiras notas do arpejo de (10) e as de (11) — contando aí as notas Sol e Ré dos primeiros tempos,respectivamente —, são as duas versões rectus e versus do mesmo conteúdo interválico :[(10) (Solb-Sol-Sib)] = [(11) (Ré-Réb-Sib)] = [i1 + i3].Igualmente, entre si, as demais notas de cada arpejo:[(10) (Solb-Mib-Réb)] = [(11) (Mib-Solb-Lab)] = [i3 + i2].

quase todos os vetores acusam : retração do âmbito e recolhimento dentro do registro central,

distribuição mais linear dos sons no espaço, notável achatamento da direcionalidade e radical

diminuição da relação número de eventos/duração total (densidade de ocupação do tempo).

SPACEHARMONICITYS-DENSITYT-DENSITY|x| P-DIRECTION

0,1,2,3,4,5,6,7,8,9

(10) (11)

fig. 5 : vetores de algumas qualidades sonoras do paradigma (10) e de sua variante (11).SPACE : índice de ocupação da tessitura do piano; HARMONICITY : índice de harmonicidade do objeto;

quanto maior o valor, mais inarmônico é considerado o objeto; S-DENSITY e T-DENSITY : densidades deocupação do espaço e do tempo, proporcionalmente ao tamanho do objeto [veja nota de rodapé n. 11 no textoprincipal]; |x| P-DIRECTION: direcionalidade absoluta das alturas. Um valor elevado indica uma direcionalidade

bem acentuada.

Esta última transformação ainda é reforçada pelo aumento da duração relativa desta

variante, que ocupa um tempo bem superior ao dos outros motivos do grupo (10). A intensidade

contribui também para esta perda qualitativa : na região onde (12) atua, isto é, no final da obra

(cc. 48-52), o nível sonoro indicado por DEBUSSY é “presque plus rien” (quase mais nada) ; da

mesma forma, o compositor prescreveu a intensidade più pp para a variante (12.1) (cc. 16-17).

Existe no entanto uma exceção importante a esta regressão generalizada. As variantes do

grupo (12) têm em comum uma taxa muito pequena de ocupação do espaço pianístico (a menor

de toda a obra, por sinal) ; porém, esta compressão acontece sem que seja diminuído o número

de sons. Daí resulta que elas têm um alto nível de inarmonicidade, o que é, contrariamente ao

fenômeno de regressão global observado, um fator de complexificação, e não de simplificação

sonora [fig. 6].

SPACES-LINEARITYIntensity Rate|x| P-DIRECTIONT-DENSITY

0

,1

,2

,3

,4

,5

,6

,7

(10) (12.0)

HARMONICITYSPAN

0,1,2,3,4,5,6,7,8,91

fig. 6 : vetores de algumas qualidades sonoras do paradigma (10) e de sua variante (12).Intensity Rate : índice de intensidade relativa (indicada pela “dinâmica”); S-LINEARITY : índice de linearidade da

distribuição interválica dos sons. Quanto maior o valor, mais regular a distribuição. SPAN : duração relativa doobjeto, em relação ao mais longo objeto da peça. Outros vetores: v. explicações fig. 5.

Os paradigmas (20) e (30)

De forma análoga à variante (12) acima, o paradigma (20) e sua variante (21) não são

deduzidos diretamente de (10), mas sim de O1. A parte dos arpejos na mão direita é reduzida a

uma permutação de oitavas, enquanto que os acordes da mão esquerda se multiplicam : este

grupo pode ser descrito, em parte, como uma variação da matriz por inversão das propriedades

diafônicas. O desaparecimento dos arpejos leva a uma notável redução da densidade de

ocupação do espaço, porém a multiplicação dos acordes a compensa a nível da densidade de

ocupação do tempo. As características da distribuição dos sons no espaço de (20) e o seu perfil

rítmico, o tornam a estrutura menos linear da peça.

No paradigma (30), que provem de uma transformação do arpejo de (11), em cima da

mesma tríade 18, o intervalo de quinta se torna uma constante, o que trará conseqüências sobre

vários aspectos da sonoridade : ao reforçar o Sol como fundamental harmônica local, este

intervalo de quinta anula o efeito dissonante do arpejo original ; o seu tamanho (7 semi-tons) faz

naturalmente com quê o paradigma ocupe mais espaço (no caso, desdobrando-se para o

grave), fato que, ao mesmo tempo, acarreta uma diminuição da densidade de ocupação deste

espaço. Em compensação, estas modificações são acompanhadas do aumento de número de

eventos (i.e. densidade de ocupação do tempo).

Constata-se, em síntese, entre (10), (20) e (30), uma expansão progressiva da utilização do

espaço — que se prolongará, aliás, sobre os paradigmas (40) e (50) —, provocada pelo fim da

hegemonia do registro central, aliada a uma diminuição proporcional da densidade [fig. 7].

0,1

,2,3,4,5,6,7

,8,91

SPACE

S-LINEARITYHARMONICITYS-DENSITY

T-LINEARITY

(10) (20) (30)

fig. 7 : vetores de algumas qualidades sonoras dos paradigmas (10), (20) e (30). T-LINEARITY : índice delinearidade da distribuição temporal dos eventos. Quanto maior o valor, mais regular a distribuição. Outros vetores:v. explicações fig. 5 ou 6. As curvas mais grossas dão ênfase à corelação negativa observada entre os índices de

utilização da tessitura do piano e o número relativo de sons dentro de cada objeto (densidade).

18 Observei um paralelismo na direcionalidade das seqüências de intervalos dos arpejos dos motivos (11) e (30) :(11) = (1 3 2 2 3), (30) = (0 7 5 5 7) ; (11) = (30) = (a c b b c).

Avaliei também (32), pois os processos de transformação empregados, por mais simples

que sejam [cf. fig. 4], no sentido que eles não ocasionam grandes modificações do substrato

cromático, provocam no entanto uma significativa modificação da sonoridade : oposição dos

registros, maior quantidade de sons, forte redução da direcionalidade [fig. 8].

S-LINEARITYSONANCESPANv-enveloppeT-DENSITY|x| P-DIRECTION

SPACE

0

,2

,4

,6

,8

1

(30) (32)

SOL (0 4 7) / SOL (0 7) RE (0 4 7) / SOL# (0 7)

fig. 8 : vetores de algumas qualidades sonoras do paradigma (30) e de sua variante (32), com indicação da suaafinidade cromática (a mesma sendo avaliada a partir das diafonias mão direita/mão esquerda, v. texto principal).

A variante (32) não está reproduzida integralmente.SONANCE é um vetor entre consonância e dissonância [mais explicações no início do artigo, quando descreve-se

a célula gerativa]. V-ENVELOPE :envelope das intensidades; quanto maior o valor, mais acidentada a curva de variações de intensidades. Outros

vetores: v. explicações figuras anteriores.

O paradigma (40)

Este corresponde a uma transformação por inversão, com supressão da terça, da

seqüência de acordes de O1. Ele pode ser considerado como uma amplificação de (30), pelo

fato que as quintas estão presentes nas duas partes da diafonia, tendo os acordes

desaparecido. Ele figura no prelúdio como um elemento raro — pois ele aparece apenas duas

vezes, no início da obra (cc. 5.1 e 6.1) —, porém o seu poder gerativo é muito importante, pois é

dele que são derivados os paradigmas (50), que centraliza as estruturas as mais contrastantes

do prelúdio, e (60), co-responsável do clímax, em conjunção com (70).

Além das relações cromáticas, evidenciadas na [fig. 4], a geraçãode (50) a partir de (40)

aparece, entre outros fatores, nas baixas densidades de ocupação do tempo (semi-colcheias) e

do espaço. Essas duas propriedades vão gerar uma estrutura rítmica “lenta” e uma ocupação

“oca” da tessitura pianística.

De outro lado, a direcionalidade muito pronunciada de (40) para o agudo e o crescendo,

anunciam sem ambigüidade os gestos instrumentais típicos de (60).

O paradigma (50)

Com exceção da variante (54), neste grupo, a diafonia original (arpejos na mão direito

versus acordes na mão esquerda) é totalmente eliminada, o que tem como resultado a redução

global do índice de dissonância. No que tange aos outros aspectos da sonoridade, me limitarei

a apontar as características excepcionais de ocupação do espaço : todos os registros são

ocupados, as mais importantes concentrações ficando nos extremos do instrumento ; isto

confere a este paradigma uma distribuição dos sons particularmente excêntrica e inarmônica. A

configuração diacrônica também é singular, visto que a maior parte das variantes combina uma

longa duração com uma muito baixa densidade de ocupação [fig. 9].

fig. 9 : vetores de algumas qualidades sonoras dos paradigmas(10) e (50). O paradigma (10) está aquirepresentado pelo objeto O1 (soma de ((10.0) + (10.1)), do qual (50) é derivado [cf fig. 4].

Os paradigmas (60) e (70)

Os sexto e sétimo paradigmas elaboram as mais profundas transformações do motivo

gerador. São as variações menos imediatas, sobretudo do ponto de vista da percepção. Por isto,

elas preenchem um relevante papel na forma, sendo utilizadas para concretizar um instante de

contraste máximo na superfície, que corresponde à seção situada entre os cc. 29 e 31, local

exato do clímax. É muito interessante descobrir uma correlação entre um evento macro-

estrutural excepcional por excelência, o clímax de uma obra, e um material cromático também

excepcional no seu modo de geração e suas relações ao resto. Esta observação será

desenvolvida mais adiante.

A relação de (60) a (10) pode ser definida como intermediata, pois (60) é derivado de (40),

do qual ele constitui uma variante arpejada [cf. fig. 4]. Em compensação, os cromas e a estrutura

das tríades que configuram (70) remetem diretamente ao motivo básico, sem nenhuma

transposição. O conjunto reata com o contexto diafônico inicial, por meio, desta vez, de acordes

(quase) superpostos, no lugar de arpejos [fig. 10]. Isto traz, evidentemente, conseqüências sobre

a estrutura diacrônica. As demais diferenças, mostradas na figura, estão relacionadas com a

intensidade e com a ampliação do âmbito a uma oitava 19.

(10) (70)

v

( 0 1 3 4 6 7 10) ( 0 1 4 6 7 10)DO (0 4 7) + SOLb (0 4 7 9) DO (0 4 7) + SOLb (0 4 7)

pp

-,4

-,2

0

,2

,4

,6

,8

1 Intensity RateT-LINEARITYPITCH-DIRECTIONAMBITUS

,1,2,3,4,5,6,7,8,9 S-LINEARITY

SONANCES-DENSITYT-DENSITY

fig. 10: vetores de algumas qualidades sonoras dos paradigmas (10) e (70), com indicação da sua afinidadecromática.

19 A presença da oitava Dó tem obviamente uma forte repercussão sobre o grau de consonância.

A intensidade é praticamente o único fator comum de identificação entre os paradigmas

(60) e (70). Como pode ser observado na fig. 11, eles são claramente opostos na maior parte

dos demais vetores de configuração das sonoridades.

S-DENSITYSONANCET-LINEARITY

0,1,2,3,4,5,6,7,8

SPACEHARMONICITYSPANPITCH-DIRECTIONT-DENSITY

0,1,2,3,4,5,6,7,8,91

v

(60) (70)

fig. 11 : vetores de algumas qualidades sonoras dos paradigmas (60) e (70). O paradigma (60) não é reproduzidointegralmente.

Unificações e diferenciações estruturais

O conjunto das observações anteriores permite a definição de dois princípios de

construção da forma em Brouillards.

Prolongações infra-estruturais

Os processos de geração do material cromático a partir do motivo inicial obedecem, de

modo geral, a um princípio variante (tal como defini este termo no início deste artigo). Mesmo as

variações mais elaboradas — paradigmas (50), (60), (70) — conseguem manter sólidos pontos

cromáticos em comun com a sua origem [cf. fig. 4].

Podemos concluir que esta estratégia de prolongação de uma idéia básica tem como

função principal assegurar a unidade infra-estrutural da peça, através da perenidade de uma

célula matricial, cujo conteúdo cromático nutre cada instante da obra.

Transformações super-estruturais

Em compensação, a dinâmica diferencial da forma repousa essencialmente sobre

processos de transformação das qualidades sonoras, não do conteúdo cromático. Com efeito,

as análises comparativas realizadas na seção anterior mostram que é quase sempre nas

mudanças de configuração das características sonoras, algumas muito pronunciadas, que

residem os mais importantes contrastes entre paradigmas.

• É o caso das modalidades de ocupação da tessitura do instrumento. Praticamente cada

grupo paradigmático explora uma região específica do piano 20.

20 No presente modelo analítico, o piano é dividido em sete registros: {-3} (Lá0-Lá#1) ; {-2} (Si1-Sol2) ; {-1} (Sol#2-Mi3) ; {0} (Fá3-Fá5) ; {+ 1} (Fá#5-Ré6) ; {+ 2} (Ré#6-Ré7) ; {+ 3} (Ré#7-Dó8). Esta partição, baseada em critériosacústicos e organológicos, é justificada in GUIGUE [1997a : 209-212].

Para-digmas

Registros

(10) {-1, 0}(20) {+ 1}(30) {-2, +3}(40) {-2, 0}(50) {-3, +3}(60) {-2, +3}(70) {0}

• Também é o caso das modalidades de distribuição espacial dos sons, quando esta é

avaliada segundo o critério de harmonicidade. Basta lembrar como as estruturas muito

inarmônicas de (12) ou de (20) se opõem às de (31) ou (60), e como a registração intervém

como elemento suplementar de diversificação. A distribuição espacial se torna um fator

preponderante de diferenciação das variantes, que transcende a sua matriz cromática comum

[fig. 12].

fig. 12 : Estrutura acrônica comparada de 6 paradigmas ou variantes, analisada segundo o modelo deharmonicidade (curva HARMONICITY) e em função da registração (curva REGISTER).

• As modalidades de ocupação do tempo são outros fatores de contraste sonoro que

podem agir como máscaras, escondendo as relações de similaridade existentes entre os

conteúdos cromáticos. Algumas são mostradas abaixo [fig. 13].

fig. 13 : Estrutura diacrônica comparada de 4 paradigmas ou variantes, analisada de acordo com o critério dadensidade de eventos no tempo, proporcionalmente à duração de cada objeto (TIME-DENSITY).

• A direcionalidade é outro elemento extremamente importante na sonoridade da peça, mas

ela age de maneira mais complexa. Um número muito grande de paradigmas ou variantes

adota uma direcionalidade descendente, fato que SCHNEBEL já tinha observado em sua análise.

É o caso de todas as variantes que pertencem aos paradigmas (10) a (30), o que representa a

imensa maioria estatística do material musical da obra. Este perfil é, obviamente, mais ou

menos afirmado : fraco em (20), forte em (11). Mas não deixa de ser evidente que esta

característica estrutural instala-se na permanência sonora da obra e que ela é diretamente

ligada às propriedades intrínsecas do paradigma gerador e de seu arpejo descendente.

Podemos estar tentados de ver nisto o que JANKELEVITCH descreveu de forma tão acertada

como um geotropismo típico de DEBUSSY, onde « a linha descendente parece almejar um ponto

situado no infinito, mais embaixo do que o Baixo absoluto e até além do não-ser » [1968 : 14].

Neste plano, conseqüentemente, no que diz respeito aos paradigmas (10) a (30), a

configuração sonora apoia-se num princípio de variação de um modelo predeterminado —

modelo geotrópico, no caso —, e não de transformação ou oposição. Estamos então dentro de

um sistema de variação do mesmo gênero daquele que rege os processos de geração das

variantes do motivo básico, governado por um princípio de prolongação. A direcionalidade,

enquanto dimensão da composição, parece participar nesta obra de um princípio de repetição,

mais de que um de diferença.

Porém, é impossível deixar de levar em consideração os paradigmas (40) a (70), pela razão

que, apesar da sua inferioridade estatística, eles correspondem, como já frisei, aos momentos

mais salientes, mais diferenciados da peça. Isto explicando aquilo, eles se demarcam por uma

acentuada direcionalidade ascendente 21, o que sem dúvida contribui muito para quebrar a

“monotonia” sonora de um contexto sistematicamente cadente.

Parece que estamos mesmo no coração da dinâmica formal desta peça, e que esta se

apoia essencialmente na oposição sonora produzida pela inversão do perfil direcional —

associada, é claro, a outros fatores já mencionados, como a intensidade e a registração. A

direcionalidade, de fato, preenche uma função bem mais complexa que as outras dimensões da

sonoridade. O fato dela desenvolver um papel significativo na criação da unidade sonora da

peça, através da recorrência quase permanente de um geotropismo, completando e reforçando

assim os processos de prolongação aplicados ao motivo gerador, não impede que este papel

seja, quando assim for necessário, abandonado em prol de uma participação muito ativa na

intensificação da dinâmica contrastante própria dos instantes excepcionais e climácticos de

DEBUSSY, quando então, nestes momentos, o perfil direcional encontra-se diametralmente

invertido.

Brouillards : um objeto sonoro estruturado

Vimos, portanto, que a unidade da obra é assegurada pelo princípio orgânico que consiste

em gerar a totalidade do material de base — os “motivos” e seu conteúdo cromático abstrato —

a partir de uma célula matricial única. O baixo grau de diferenciação das variações desta célula

dá ao prelúdio um inegável perfil monocromático.

De outro lado, o essencial da dimensão cinética de Brouillards é suportado pelas

configurações sonoras. Parece portanto possível estabelecer a existência de uma

complementaridade dos dois níveis de estruturação e de uma divisão dos papeis que deixa à

organização das configurações sonoras uma responsabilidade essencial na concretização

manifesta da forma, confinando as relações motívico-cromáticas numa função estabilizadora 21 Apesar de possuir uma direcionalidade praticamente nula, o paradigma (50) gera variantes nitidamenteascendentes: observar (51), (53), (56) e (57). Quanto ao paradigma (60), ele quase atinge a unidirecionalidadeabsoluta.

subjacente. Isto implica em uma diluição do material motivo-cromático nos sistemas de

articulação das sonoridades, relegando as relações cromáticas a um nível latente da estrutura e,

provavelmente, da sua percepção.

Se, através de seu elaborado trabalho de variação motívica, DEBUSSY dá, se fosse preciso,

signos evidentes de domínio da linguagem musical clássica que ele herdou — essencialmente

de tradição germânica — e a qual ele não hesita em recorrer quando acha necessário, ele

mostra também, de forma particularmente clara e elegante neste prelúdio, até que ponto a

sonoridade é integrada ao projeto de articulação da forma. Isto confirma uma concepção

composicional que, emancipando a nota como elemento primário do discurso musical, se

desenvolve a partir de um nível mais complexo e mais completo, que incorpora todas as

dimensões pertinentes da sonoridade, e os processos de transformação das mesmas.

É preciso que, por sua vez, a investigação analítica seja capaz de se libertar do nível

primário dos cromas, para incorporar esta conceptualização da sonoridade nos seus modelos

de interpretação e representação das estruturas. A abordagem de SCHNEBEL, em seu tempo,

que descreve a estrutura de Brouillards pelo viés de uma taxinomia e de conceitos importados

da música eletroacústica, almejava chamar a atenção sobre esta necessidade, e possibilidade,

de emancipação. Ele deu algumas pistas metodológicas, que foram pouco seguidas — pelo

menos no que concerne a música instrumental 22.

O modelo que serve de apoio teórico à análise que apresentei neste artigo não mantém

ligação direta com as propostas de SCHNEBEL. No entanto, ele participa do mesmo projeto de

emancipação metodológica cuja finalidade é abordar e representar da forma mais acurada

possível esta estética da sonoridade que, para além de DEBUSSY, bem parece constituir o ponto

central da criação musical no Séc. XX.

Agradecimentos

Este artigo é parte integrante de um projeto de pesquisa em fase de desenvolvimento com

o apoio do CNPQ. Colaborou na revisão do texto em português Ernesto Trajano de Lima.

Agradeço a Flo Menezes por ter chamado a minha atenção sobre o importante texto de Pousseur

[1970].

22 Em compensação, vários modelos para a análise da música eletroacústica já foram propostos. Além de SMALLEYop. cit., v. por exemplo BESSON 1991, ou recentemente ROY 1996.

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