Do MASTER-Web ao AGATHE: a Evolução de uma arquitetura de manipulação de informações para a...

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Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, jan.-jun., 2008

ISSN 1981-6278

ISSN 1981-6278Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT)Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – Ministério da SaúdeAv. Brasil 4.365 – Pavilhão Haity Moussatché – Manguinhos – Rio de Janeiro – CEP: 21.040-900www.reciis.cict.fiocruz.br

Editor CientíficoCarlos Saldanha, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, FIOCRUZ, Brasil

Josué Laguardia, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, FIOCRUZ, Brasil

Editor AdministrativoLuciane Willcox, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, FIOCRUZ, Brasil

Editores de SeçãoArtigos OriginaisÁlvaro Matida, Associação Brasileira de Pós Graduação Em Saúde Coletiva, Brasil

Bianca Cortes, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil

Carlos Freitas, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil

Debora Diniz, Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília, Brasil

Maria Elisabete Amaral de Moraes, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará, Brasil

Roseni Pinheiro, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

Pesquisas em AndamentoChristovam Barcellos, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, FIOCRUZ, Brasil

Katia Lerner, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, FIOCRUZ, Brasil

Avanços TecnológicosClaudia Chamas, Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil Frederico Freitas, Centro de Informática, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil Laura Cristina Simões Viana, Vice-Presidência de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil Lia Hasenclever, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Manoel Odorico Moraes Filho, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará, Brasil

Artigos de RevisãoJulia Guivant, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Maria Conceição da Costa, DPCT, Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Brasil

EnsaiosRegina Erthal, Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil

Sérgio Carrara, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

ResenhasAna Filipecki, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil

CartasRejane Machado, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, FIOCRUZ, Brasil

Conselho Editorial

Alan Radley, Loughborough University, Loughborough, Grã-Bretanha

Andre Parente, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Antonio Fausto Neto, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil

Arie Rip, University of Twente, Twente, Holanda

Benoît Godin, University of Québec, Québec, Canadá

Blaise Cronin, Indiana University, Bloomington, Indiana, Estados Unidos

Carlos Morel, Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Christer Hogstedt, National Institute of Public Health, Stockholm, Suécia

Dominique Pestre, Centre National de la Recherche Scientifique, Paris, França

Eduardo Albuquerque, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Emily Martin, New York University, New York, Estados Unidos

Emir Suaiden, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil

Everardo Nunes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil

Francisco Bastos, Inst. Com. Inf. Cient. Tecnol. Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Geoffrey Bowker, Santa Clara University, Santa Clara, California, Estados Unidos

Hector Abreu, Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, Brasil

Hiroko Yamane, National Graduate Institute for Policy Studies, Tokyo, Japão

Inesita de Araújo, Inst. Com. Inf. Cient. Tecnol. Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Joan Fujimura, University of Wisconsin-Madison, Madison, Wisconsin, Estados Unidos

Joanna Chataway, The Open University, Milton Keynes, Grã-Bretanha

João Arriscado, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal

Jorge Veiga, Instituto de Salud Carlos III, Madrid, Espanha

José Bassani, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil

Kanikaram Satyanarayana, Indian Council of Medical Research, New Delhi, Índia

Kathy Charmaz, Sonoma State University, Rohnert Park, California, Estados Unidos

Lea Velho, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil

Lita Nelsen, Massachusetts Institute of Technology, Boston, Massachusetts, Estados Unidos

Loet Leydesdorff, University of Amsterdam, Amsterdam, Holanda

Luigi Palombi, The Australian National University, Canberra, Austrália

Madel Luz, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Maged Kamel Boulos, University of Plymouth, Plymouth, Grã-Bretanha

Manuel Limonta, Institute of Hematology and Immunology, Havana, Cuba

Márcia Teixeira, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Maurice Cassier, Institut National de la Santé et de la Recherche Medicale, Paris, França

Nelly Oudshoorn, University of Twente, Twente, Holanda

Paulo Elias, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

Peter Ganea, Max Planck Institute for Intellectual Property, Competition and Tax Law, Munich, Alemanha

Pierre Lévy, University of Ottawa, Ottawa, Canadá

Pierre Tambourin, Institut National de la Santé et de la Recherche Medicale, Paris, França

Reinaldo Guimarães, Secretaria de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde, Brasília, Brasil

Rita Barradas Barata, Santa Casa de São Paulo, São Paulo, Brasil

Sandra Braman, University of Wisconsin-Milwaukee, Milwaukee, Wisconsin, Estados Unidos

Sandra Harding, University of California, Los Angeles, California, Estados Unidos

Sarita Albagli, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Rio de Janeiro, Brasil

Sergio Pena, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Soraya Cortes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Terry Shinn, Centre National de la Recherche Scientifique, Paris, França

Timothy Lenoir, Duke University, Durham, North Carolina, Estados Unidos

Walter Zin, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Walter Colli, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

Conselho Consultivo Local

Carlos Vogt, Secretário de Ensino Superior do Estado de São Paulo, Brasil

Cecília Minayo, Coord. Científica do CLAVES/ENSP, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil

Cícera Silva, Coord. Adj. do Curso de Especialização do Inst. Com. Inf. Cient. Tecnol. Saúde, FIOCRUZ, Brasil

João Aprígio, Coord. Banco de Leite/Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil

José Carvalheiro, Vice-Pres. de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Fundação Oswaldo Cruz, Brasil

Moyses Goldbaum, Prof. do Depto. de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina/Universidade de São Paulo, Brasil

Paulo Gadelha, Vice-Pres. de Desenvolvimento Institucional e Gestão do Trabalho da Fundação Oswaldo Cruz, Brasil

Ricardo Ceccim, Prof. de Educação na Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

Tânia de Araújo Jorge, Diretora do Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil

Editores de ArteMauro Campello, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, FIOCRUZ, Brasil

Rodrigo Murtinho, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, FIOCRUZ, Brasil

NormalizaçãoRejane Machado, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, FIOCRUZ, Brasil

TraduçãoLila da Rocha

DiagramaçãoLetra e Imagens Editora Ltda.

Produção Editorial

SecretáriaGisele Neves, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, FIOCRUZ, Brasil

Assistente do Editor CientíficoHelena Klein, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, FIOCRUZ, Brasil

Desenvolvedor Web e Suporte TécnicoMarcus Lessa, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, FIOCRUZ, Brasil

Sumário

Artigos originais

A cultura dos números: as origens e o desenvolvimento da estatística na ciência ........................ 7Benoît Godin

Por que a informatização funciona? Estratégias de compensação dos atores no caso da prescrição médica ........................................ 19Gloria Zarama-Vasquez, Dominique Vinck

Trabalho com camundongos em pesquisa imunológica. Ligação, emoções e cuidado ................ 29Daniel Bischur

Estudo de métodos mistos de diagnóstico de câncer de pulmão que afetam a qualidade de vida .................................................................................... 38Carina Berterö

Pesquisa socialmente responsável: podemos falar de um Modo 3 de produção de conhecimento? .................................................... 48Jaime Jiménez

Editorial

Acesso livre ao conhecimento científico avaliado pelos pares por qualquer pessoa, em qualquer lugar e a qualquer momento ...................................................................................... 5Carlos José Saldanha Machado

Pesquisas em andamento

Mansonelose no Médio Rio Purus (Amazonas) ............................................................................... 58Yara Leite Adami, Marilza Maia-Herzog

Desenvolvimento e aplicação do modelo – Resolvendo o dilema escopo versus profundidade na cobertura de eventos catastróficos e de alta-freqüência ....................... 63Valéria Ferreira Romano

Avanços tecnológicos

Relatório sobre o Programa de Pesquisa “Biomedicina na África” ................................................ 68Richard Rottenburg, René Gerrets

Do MASTER-Web ao AGATHE: a evolução de uma arquitetura de manipulação de informações para a web usando ontologias ....................................................... 74Fred Freitas, Luciano Cabral, Rinaldo Lima, Eunice Palmeira, Guilherme Bittencourt, Bernard Espinasse, Sébastien Fournier

Resenhas

Artigos de revisão

Psicofisiologia da dor: uma revisão bibliográfica ............................................................................ 87 Aline Oliveira, Vitor Edson Lopes da Ponte, Paula M. Soares, Maria Elizabeth de Sousa Rodrigues, Raquel Cristina de Sousa Lima, Krihsnamurti de M. Carvalho, Manoel Cláudio A. Patrocínio, Silvânia M. M. Vasconcelos

La science sous observation – cent ans de mesure sur les scientifiques 1906 – 2006, Benoît Godin .................................................................................................................................... 105Por Márcia de Oliveira Teixeira

La Gouvernance des Innovations Médicales, Virginie Tournay ..................................................... 111Por Madel Therezinha Luz, Marilena Cordeiro Dias Vilela Corrêa

Epidemiology and Culture, James A. Trostle ................................................................................. 113Por Marina D. Cardoso

Convergence Culture: where old and new media collide, Henry Jenkins .................................... 116Por Sandra Lúcia Rebel Gomes, Ana Rebel Barros

Strategic Management of Technological Innovation, Melissa A. Schiling ................................... 120Por Lia Hasenclever, Rodrigo Lopes, Julia Paranhos

Innovation without patents: harnessing the creative spirit in a diverse world, U. Suthersanen, G. Dutfield & K. B. Chow .................................................................................... 123Por Ana Maria Carneiro, Sergio Salles-Filho

Disease Surveillance: a Public Health Informatics Approach, Joseph Lombardo & David Buckeridge ......................................................................................... 127Por Francisco Inácio P.M. Bastos, Jaime Bellido

Ensaios

Tuberculose e TBMR: mecanismos imunológicos e novas ferramentas de controle da doença ...................................... 97 Roberta Olmo Pinheiro, Margareth Pretti Dalcolmo, Elizabeth Pereira Sampaio

5RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.5-6, jan.-jun., 2008

Editorial

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

Acesso livre ao conhecimento científico avaliado pelos pares por qualquer pessoa, em qualquer lugar e a qualquer momento

DOI: 10.3395/reciis.v2i1.169pt

Carlos José Saldanha MachadoEditor Científico da [email protected]

O aumento exponencial da produção científica e das inovações tecnológicas contribui para a compreensão das sociedades sobre o ambiente e seus possíveis benefícios. Contudo, esses benefícios foram distribuídos de forma desigual através e no interior das nações (BEYRER et al., 2007). O rápido processo de acumulação de conhe-cimentos e de habilidades necessárias para lidar com ele, ainda não conseguiu que milhões e milhões de pessoas, em várias partes do planeta, deixem de viver na pobreza absoluta (GUNN et al., 2005).

Uma das questões centrais do novo milênio é a necessidade de construir a capacidade dos países se desenvolverem para que possam adaptar-se aos desafios da contínua modificação que se constata nas sociedades contemporâneas. A realização deste objetivo necessitará, além de recursos financeiros e técnicos, do acesso uni-versal à informação e ao conhecimento e da capacidade de usá-los de forma construtiva.

O conhecimento e a informação são cada vez mais valiosos na tomada de decisão, visando reduzir os riscos de erros como os que foram cometidos no passado e ainda presentes nos dias atuais. Ao contrário da política profissional, onde deter a informação significa deter o poder, no caso do campo da saúde, e certamente de outros, o maior poder é conseqüência do quanto mais

as informações e os conhecimentos são compartilhados e difundidos.

O vigoroso movimento transnacional em prol do livre acesso à informação e ao conhecimento (HESS et al., 2007; WILLINSKY, 2006) almeja a redução das terríveis desigualdades sociais existentes, em todos os cantos do mundo, por meio do compartilhamento do conhecimento científico. Além das revistas de acesso livre, é digno de nota o OpenCourseWare Consortium (OCWC), maior movimento de educação compartilhada da web, um consórcio internacional formado por mais de cem instituições de ensino de mais de vinte países que oferece cursos e materiais didáticos gratuitos pela internet [www.ocwconsortium.org] e reúne usuários de duzentos e quinze países.

Mas o cenário de desafios da organização e gestão de uma revista de acesso livre é muito diversificado, sobretu-do porque não existem problemas iguais, nem realidade padrão que possam servir de referência para superar tais desafios. Cada experiência editorial é um caso singular em função das diferentes configurações institucionais das quais fazem parte, em que diversos profissionais têm um papel crucial a desempenhar, exigindo que ajam de forma coordenada e cooperativa para que suas ações se tornem eficazes e eficientes.

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Sobre o editor

Carlos José Saldanha MachadoDoutor em Antropologia Social pela Université Paris V – Sciences Humaines Sorbonne, mestre em Ciências da Engenharia de Produção (área de Política de Ciência e Tecnologia) pela Coordenação dos Programas de Pós-Gra-duação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, (1) na Fundação Oswaldo Cruz, é Pesquisador em Ciência e Tecnologia e Chefe do Laboratório de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde; (2) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é professor do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente (Doutorado) responsável pela disciplina “Política Ambiental Brasileira”; (3) no Ministério da Educação, é Avaliador Institucional e de Cursos do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior. Atua na área de sociologia e antropologia, com ên-fase: nos estudos sociais da ciência, da tecnologia e da inovação em saúde; na gestão da pesquisa em saúde; nas políticas públicas de meio ambiente e saúde. Publicou, ao longo dos últimos 5 anos 4 livros e inúmeros artigos no Brasil. Seus novos projetos incluem pesquisas sobre: o novo regime de produção e de regulação do conhecimento científico e tecnológico em biomedicina; as mudanças recentes na configuração da biociência, especialmente nas infra-estruturas de produção do conhecimento; a transposição local de modelos interna-cionais de organização da pesquisa em biomedicina; a política de ciência, tecnologia e inovação em saúde da Fundação Oswaldo Cruz.

No caso da RECIIS, após um ano de existência, ficou claro que algumas funções do processo editorial da revista precisariam ser extintas (como a de Assistentes de Editores de Seção), reforçadas (a de Assistente da Editoria Científica e o ingresso de novos Editores de Se-ção) e criadas (a de Editoria Administrativa, que passou a assumir integralmente a função de gestão da revista), além da necessidade de ser incorporado mais um Editor Científico para dividir parte das tarefas que vinham sendo desenvolvidas por um só profissional.

Portanto, ao término desse aprimoramento inicial do processo editorial da Reciis a fim de garantir a quali-dade do que se publica e o acesso livre ao conhecimento científico avaliado pelos pares, para qualquer pessoa, em qualquer lugar e a qualquer momento, esperamos que os leitores encontrem, nesta edição, idéias e reflexões que estimulem novos trabalhos.

Referências bibliográficasBEYRER, C.; PIZER, H.H. (Eds.). Public Health & Hu-man Rights. Evidence-Based Approaches. Baltimore: The Johns Hopkins University Press.

GUNN, S. W.; MANSOURIAN, P.B.; DAVIES, A.M. et al. (Eds.). Understanding the global dimensions of health. New York: Springer, 2005.

HESS, C.; OSTROM, E. (Eds.). Understanding knowledge as a commons: from theory to practice. Cambridge, MA: The MIT Press, 2007.

WILLINSKY, J. The access principle: the case for open access to research and scholarship. Cambridge, MA: The MIT Press, 2006.

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Artigos originais

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

A cultura dos números: as origens e o desenvolvimento

da estatística na ciênciaDOI: 10.3395/reciis.v2i1.160pt

IntroduçãoA ciência de mensuração tornou-se uma “indústria”.

Os governos e seus escritórios de estatística realizaram avaliações regulares de recursos dedicados a pesquisa e desenvolvimento (P&D) desde os anos 1960. A me-todologia usada é aquela sugerida e convencionalizada pelo manual de Frascati da OECD (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), adotado pelos países membros em 1963, e atualmente em sua

Benoît GodinInstitut National de la Recherche Scientifique, INRS, Montreal Canadá [email protected]

ResumoA ciência da mensuração se tornou uma “indústria”. Em primeiro lugar, quando, como e porque a ciência veio a ser mensurada? Como uma atividade “cultural” – ciência – há muito conhecida como não acessível à estatística, vem a ser mensurada? A estatística deve a sua existência ao contexto de tempo: 1) mensurando a contribuição de grandes homens, entre eles cientistas da civilização, e melhorando as condições sociais de cientistas; conseqüentemente, 2) a política da ciência e a eficiência de investimentos em pesquisa. Antes dos anos 1920, eram os próprios cientistas que faziam as mensurações da ciência. As estatísticas coletadas relativas a homens da ciência ou cientistas, sua demografia e geografia, sua produtividade e desempenho eram usados para promover o que era chamado de avanço da ciência. Nos anos 1940 e posteriormente, o tipo de estatística coletada mudou completamente. Não eram mais os cientistas que as coletavam e sim os governos e agências de estatísticas. As estatísticas mais apreciadas, a partir de então, eram o dinheiro dedicado à pesquisa e desenvolvimento.

Palavras-chaveHistória, estatística, ciência, tecnologia e inovação, pesquisa e desenvolvimento, P&D

sexta edição (OECD, 1962). Desde os anos 1990, os governos nacionais também conduziram pesquisas regu-lares em inovação, novamente baseadas na metodologia da OECD, conhecida como o manual de Oslo (OECD, 1997). Mais recentemente, o placar de indicadores apareceu, coletando indicadores múltiplos em ciência, tecnologia e inovação1.

As estatísticas coletadas por organizãções oficiais são regularmente usadas por acadêmicos, entre eles economistas que, nas últimas cinco décadas, produziram

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uma vasta literatura, medindo a contribuição da ciência para o crescimento econômico e produtividade (GRILI-CHES, 1998). Os acadêmicos, também criadores de suas próprias estatísticas, utilizando a contagem de ensaios acadêmicos como uma ferramenta, sociologistas e outros estudaram a “produtividade” de cientistas desde o início da década de 1900 (GODIN, 2006a). Hoje, toda uma comunidade de pesquisadores preocupados com conta-gem de ensaios e citações se intitulam de especialistas em bibliometria.

Em primeiro lugar, quando, como e porque a ciência começou a ser mensurada? Como uma atividade “cul-tural” – ciência – há muito considerada não receptiva a estatíscas vem a ser mensurada? Este ensaio é dedicado a investigação da origem e desenvolvimento de estatísticas da ciência e o impacto que as estatísticas tiveram na apresentação da “ciência” no século XX. Ela documenta dois estágios nesta história. Antes da década de 1920, os próprios cientistas realizavam mensurações da ciência. As estatísticas coletadas eram relativas aos homens da ciência ou cientistas: sua demografia e geografia, sua produtividade e desempenho. Esse tipo de estatística deve seu desenvolvimento ao contexto de tempo: medindo a contribuição de grandes homens, entre eles cientistas até a civilização; conseqüentemente melhorando as condi-ções sociais de cientistas.

A partir da década de 1940, o tipo de estatística coletada mudou completamente. Não eram mais os cientistas que as coletavam, porém os governos e suas agências de estatística. O indicador mais apreciado, desde então era o dinheiro direcionado à P&D. Novamente, este deve seu desenvolvimento ao contexto de tempo, ou seja política e eficiência da ciência. A política da ciência se desenvolveu principalmente devido a interesses no uso da contabilidade como uma maneira de controlar (governo) as despesas de P&D. Mas em segundo lugar, as estatísticas oficiais também se desenvolveram para um objetivo mais positivo: determinar os níveis dos alvos para o investimento em atividades científicas para mercadorias públicas.

A primeira parte deste ensaio documenta como o contexto de eugenia na segunda metade do século XIX, ou seja, a vontade de melhorar a qualidade das popula-ções, levou a contagem de “homens da ciência”, como parte da classe de grandes homens responsáveis pelo progresso da civilização. A segunda parte mostra como o contexto mudou e as questões políticas mudaram o progresso econômico no século XXI, quando um novo rei de estatísticas se desenvolveu: contabilidade. A última parte analisa o impacto da estatística nas descrições da ciência.

Eugenia, cientistas e produtividadeA mensuração da ciência surgiu do interesse em

grandes homens, hereditariedade e eugenia, e a contri-buição de homens eminentes da civilização. Entre estes homens eminentes, estavam os cientistas, a população que se pensava estar em declínio e insuficientemente estimada e apoiada. As estatísticas surgiram para serem

coletads para documentar o caso e contribuir para o pro-gresso da ciência – e da profissão científica. As estatísticas estavam relacionadas com a mensuração do tamanho da comunidade científica, ou homens da ciência, e suas condições sociais (GODIN, 2007a).

As mensurações da ciência do britânico Francis Gal-ton (1822-1911, especialista em estatística, as primeiras a serem realizadas mundialmente, foram especificamente baseadas na crença de que o progresso da civilização depende de grandes homens, cuja quantidade estava em declínio. Expondo estas concepções, Galton sugeriu: “as qualidades necessárias na sociedade civilizada são, em geral, tais que irão permitir uma raça de fornecer um grande contingente aos vários grupos de homens eminentes” (GALTON, 1869). Para Galton, entretanto, havia apenas 233 homens britânicos eminentes para cada população de um milhão, enquanto “se pudéssemos aumentar o padrão médio de nossa raça em um grau” haveria 2.423 deles.

Galton decidiu perseguir a noção de gênio. Heri-ditary Genius, publicado em 1869, tinha dois objetivos: mensurar a capacidade intelectual em uma população e documentar o papel da hereditariedade na transmissão da capacidade intelectual. Entre outras coisas, ele acre-ditava que os homens da ciência eram excepcionalmente produtivos de filhos eminentes e isto ele atribuiu ao meio ambiente familiar (outros grupos atribuiram à hereditariedade).

Cinco anos após o Hereditary Genius, Galton voltou totalmente sua atenção para este grupo específico de homens ilustres – homens da ciência (GALTON, 1874). Em English Men of Science, ele elaborou uma lista de 180 homens – com exceção dos 300 homens da ciência, britânicos, existentes conforme sua estimativa, ou 1 em cada população de 10.000. A análise de seus antecedentes revelou que os homens da ciência tinham menos crianças que os seus pais tiveram: o número de suas crianças com vida entre as idades de 5 a 50 anos era em média de 4,7, comparado com 6,3 nas famílias das quais vieram estes homens da ciência. Para Galton, os números revelaram uma nítida “tendência à extinção das famílias de homens que trabalham arduamente com o cérebro ... um perigo para a continuidade da raça”.

Galton novamente se concentrou em homens da ciência em 1906, pela terceira e última vez em sua vida. Noteworthy Families “serviu como um indicador para as realizações daquelas famílias que excepcionalmente pro-duziram pessoas notáveis” (GALTON et al., 1906). Ele enviou um questionário a todos os companheiros vivos da Royal Society na primavera de 1904; também tirou nomes dos dicionários bibliográficos. No total, enviou 467 questionários e recebeu 207 respostas, guardando 100 dos questionários completos de 66 famílias para objetivos estatísticos. Galton descobriu que “uma con-siderável parte dos membros notáveis de uma população surgiu de poucas famílias, comparativamente”; estimou esta proporção de pessoas notáveis em relação a toda população de 1 a 100. O principal resultado deste estudo, entretanto, foi uma redução na população estimada de

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homens notáveis; observou 207 membros notáveis das famílias estudadas, comparados com uma expectativa estatística de 337.

Os trabalhos de Galton sobre os homens da ciência foram bastante influentes. English Men of Science foi a pri-meira “história natural” ou “sociologia” quantitativa da ciência, como ele próprio a chamou, publicado ao mesmo tempo que um trabalho do biólogo suiço Alphonse de Candolle (1873). English Men of Science usa uma pesquisa especial entre um grupo específico de homens, enquanto muitos estudos de homens eminentes foram baseados em estatísticas feitas em dicionários bibliográficos, como o Hereditary Genius, ou em dados institucionais como afi-liação a sociedades científicas. Certamente, em meados de 1850, o censo começou a coletar informações de profissionais, entre eles professores e mestres, e poderia ter sido usado para mensurar a ciência. Porém a catego-ria “homens da ciência” (ou cientistas) não existiu nas classificações utilizadas. Galton deve ser reconhecido como tendo oferecido a primeira esimativa quantitativa relativa ao número de homens da ciência na população. Logo outros o seguiriam.

Em 1985, o psicólogo americano James McKeen Cattell (1860-1944) adquiriu o jornal semanal Scien-ce, fundado em 1880 por Alexander Graham Bell e Gardiner G. Hubbard. Poucos anos após a pesquisa de Cattell sobre teste mental foi considerada infrutífera. Ele criou um programa de larga escala para testar todos os anos os estudantes de Columbia, similar à experiência de Galton em museus e exposições públicas. No final, parecia que ele estava mensurando o comportamento psicológico (como prontidão), ao invés da capacidade mental sendo criticado por isto. Canttell redirecionou parcialmente seus esforços para fora da psicologia expe-rimental. Além de editar Science e outros jornais, ele se voltou para outro tipo de análise estatística, ao invés da psicologia experimental: o estudo “científico” da ciên-cia. Para Cattell, a aplicação de estatística ao estudo de homens de inteligência, acima de todos os homens da ciência, era altamente desejável: “a descrição de grandes homens em biografias e histórias pertencem a literatura e não à ciência (…) Agora é o tempo que os grandes ho-mens devem ser estudados (…) pelos métodos da ciência exata e estatística” (CATTELL, 1903). Havia uma razão específica atrás desses estudos, uma motivação apren-dida de Galton. Em um estudo de homens eminentes, Cattell perguntou: “São grandes homens, como Carlyle mantem, líderes divinamente inspirados, ou são eles, conforme Spencer nos diz, produtos necessários para dar condições fisícas e sociais? (…) Podemos apenas responder a estas perguntas através de um estudo real dos fatos”. E continuou: “temos muitos livros e artigos de grandes homens, sua hereditariedade, sua insanidade, sua precocidade, sua versatilidade e similares, mas se estes são coleções de anedotas como as do Professor Lombroso ou investigações científicas como as de Galton, faltam-lhes as conclusões exatas e quantativas (…). A ciência pergunta quanto? Podemos apenas responder quando tivermos diversas observações objetivas, suficientes para eliminar a chance de erros (…)”. A proposta concreta de

Cattell era observar, classificar, medir e comparar.Como um primeiro passo neste programa, selecio-

nou 1.000 homens de seis dicionários ou enciclopédias biográficas para estudar a distribuição de eminências entre as nações. A estatística mostrou que apenas poucas nações produzem eminências: “A França lidera, seguida bem de perto pela Grã Bretanha. Depois ocorre uma que-da considerável para Alemanha e Itália”. Para Carttell, os valores eram bem claros: “O progresso, até a nossa atual civilização, pode ter dependido grandemente da com-paração dos poucos homens que o guiou, e a civilização que desejamos ter poderá depender de poucos homens (…). Se pudermos melhorar o estoque, eliminando o inadequado ou favorecendo o provido – se dermos àqueles que têm e tirarmos daqueles que não têm nem mesmo o que eles têm – podemos acelerar e direcionar enormemente o curso da evolução. Se toda a população, especialmente o bem provido, é maior, aumentamos o número de grandes homens”. Como uma continuação deste estudo, Cattell dedicou seus esforços aos homens da ciência mas ele mudou rapidamente sua opinião sobre hereditariedade e argumentou a melhoria das condições sociais dos homens da ciência.

Entre 1902 e 1996, Cattlell montou um diretório (chamado American Men of Science) para um contrato concedido pela recém criada Carnegie Institution of Washington (1902). Como recordou, “O Sr. Carnegie especificou como um dos principais objetivos de sua fun-dação, descobrir o homem excepcional em todos os depar-tamentos de estudo, quando e onde for achado, dentro ou fora de escolhas, e possibilitar que faça o trabalho para o qual e parece especialmente designado para sua vida de trabalho”. Mas como encontrar homens excepcionais? Como distribuir dinheiro entre os campos?

Compilar um diretório biográfico foi a sugestão de Cattell. A primeira edição continha cerca de 4.000 regis-tros biográficos de cientistas, restritos àqueles homens “que realizaram trabalhos de pesquisa” e “contribuiram para o avanço da ciência pura” (ciência natural). Já em 1944, o último ano em que editou o diretório antes de morrer, o documento continha informações biográficas de mais de 34.000 cientistas. Através do diretório, Cattell fez estatísticas.

Dois conceitos eram fundamentais para seu tra-balho. O primeiro, produtividade, foi definido como o número de cientistas que uma nação produz. Cattell comparou os estados e instituições americanos em termos absolutos e relativos de números de cientistas (por milhão de população). Ele descobriu concentrações de origem em algumas regiões: Massachusetts e Boston foram iden-tificados como o centro intelectual do país, enquanto o Sul “permanece sua condição deplorável de estagnação científica”. Para Cattell, este fato contradisse a tese de Galton: “a inequabilidade na produção de homens científicos em diferentes partes do país, parece ser um forte argumento contra o ponto de vista do Dr. Galton e do Professor Pearson de que o desempenho científico é quase exclusivamente devido a herediteriedade. Não é provável que haja essas diferenças nas decendências

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familiares que pudessem levar uma parte do país a pro-duzir cem vezes a mesma quantidade de cientistas em outras partes (…). Os principais fatores para a produção de desempenho científico e outras formas de desempenho intelectual parecem ser densidade da população, riqueza, oportunidade, instituições e tradição social e ideais”. De acordo com Cattell, “a produtividade científica da nação pode ser aumentada em quantidade, porém não em qualidade, quase na medida em que queiramos que ela cresça” (CATTELL, 1906c).

Para Cattell “faltam homens eminentes e isto po-demos atribuir às mudanças no meio ambiente social”: complexidade crescente da ciência, métodos educacio-nais, falta de cargos acadêmicos e assistentes, bem como prêmios, carga docente e baixos salários. “Os salários e recompensas não são ajustados ao desempenho”, dife-rentemente da Alemanhã, Grã Bretanha e França, onde os “homens excepcionais receberam honras excepcionais (…). Os métodos devem ser planejados de forma que o trabalho científico seja premiado em proporção direta ao seu valor para a sociedade – e isto, não para o proveito do investigador, e sim para o proveito da sociedade”.

A produtividade foi o primeiro conceito que Cattell introduziu nas análises estatísticas. O segundo foi o desempenho. Enquanto a produtividade media quantidade, o desempenho media qualidade ou mérito, definido como “contribuições para o progresso da ciên-cia, principalmente por pesquisa”. Ele acreditava que “o julgamento especialista é o melhor e em último recurso o único, critério de desempenho” (CATELL, 1906b). Soli-citou então a dez representantes líderes de cada uma das doze ciências selecionadas por ele, que organizassem os cientistas, cujos nomes apareciam no diretório, em ordem de mérito (classificação). Para as “posições designadas para cada homem, sua média era calculada, os desvios médios (erros prováveis) de julgamentos foram calculados [e indivíduos organizados em ordem]”.

Cartell comparou seu procedimento de votos àque-les usados para escolhas de uma sociedade científica ou que estavam na universidade. Diz-se que seu método era superior: “a academia não tinha métodos para compa-rar o desempenho em diferentes ciências” (CATTELL, 1906a). Para ele “os métodos de seleção usados nesta pesquisa são mais precisos do que aqueles da academia de ciências, e poderia parecer que a publicação da lista poderia ser tão verdadeira quanto aquela de uma lista de nossos homens mais eminentes, selecionados por métodos menos adequados. Mas, talvez, sua precisão daria um certa brutalidade”.

O que Cattell observou da distribuição das melhores classificações (ou “estrelas”, isto é, marcados com um asterisco na lista), mil cientistas se tornariam um fato estudado posteriormente na literatura – que a distribui-ção de mérito segue uma “lei exponencial”, ao invés da investigação normal de capacidade mostrada no trabalho de Galton. O mensuramento do desempenho permitiu a Cattell estimar ganhos e perdas nas classificações ou lugares: aqueles cientistas que alcançaram um lugar nos mil e aqueles que perderam seu lugar ao longo do tempo.

Ele, então, classificou por ordem de mérito seus cientistas e ofereceu aos seus leitores a primeira tabela estatística de universidades da história de estatísticas sobre ciência. “Eu forneço esta tabela com certa exitação, mas parece que, no final, ela será para o progresso da pesquisa cien-tífica, caso seja conhecido quais instituições obtiveram e reteram os melhores homens (...). Uma tabela como esta deve ter alguma influência prática, se os dados forem levados a público em intervalos de dez anos” (CATTELL, 1906c). A tabela mostrou Harvard, Columbia e Chicago como universidades líderes em termos de divisão dos principais mil cientistas ligados com apenas dezoito instituições.

Cattell continuaria analisando as estatísticas de cientistas nesta mesma linha até a década de 1930, verificando mudanças que ocorreram na distribuição de ciências e nas origens e posição de cientistas desde as últimas séries de dados. Cattell também usou alguns dados de publicações (uma especialidade, atualmente chamada de bibliometria) para medir o progresso da ciência. O uso sistemático da bibliometria foi explorado por outros psicólogos americanos. Um objetivo especí-fico guiou seus esforços: defender o estado da psicologia como ciência.

As estatísticas na ciência de psicologia foram especi-ficamente desenvolvidas para contribuir para o progresso da disciplina de psicologia (GODIN, 2006a). Usando a contagem de ensaios, os psicólogos mostraram com segurança como a psicologia era realmente uma ciência entre as ciências. Enquanto o padrão de comparação da profissão científica na América era reconhecido por suas cadeiras, laboratórios e apoio público, para a ciência de psicologia sua condição era, em relação às outras ciên-cias, experimental adequada, que servia como parâmetro comparativo. Para Carttell, por exemplo, “comparada com a psicologia, a ciência, tal como a astronomia, pode ser observada como simplista. O desempenho total co-nhecido do sistema solar e das estrelas fixas, desde os tempos de Chaldaean é menos complicado do que uma brincandeira de uma criança e de seu cuidado por um único dia (…). Os átomos e moléculas são invisíveis, o éter é tão intangível, afinal de contas, sabemos muito pouco sobre eles, que é fácil inventar hipóteses”. E ele continuou: “As duas maiores generilizações científicas do atual século são a conservação de energia e a evolução pela sobrevivência do mais forte. Atualmente, se a cons-ciência alterar, embora ligeiramente, a posição das molé-culas no cérebro, o conceito fundamental de ciência física deve ser abandonado. Se a consciência não tiver relação com as ações do indivíduo, temos um dos mais comple-xos resultados da evolução desenvolvidos separados da sobrevivência de variações úteis e a Teoria Darwiniana falhou (…). O mundo é um mundo; todas as partes dele estão relacionadas a todas as outras partes e cada parte consiste destas relações” (CATTELL, 1898).

Diversos psicólogos desenvolveram uma retórica sobre o progresso em psicologia (“avaliação do progres-so”, de acordo com o psicólogo BUCHNER, 1903), na qual mensurações de crescimento foram realizadas por

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psicólogos (seu número absoluto, distribuição geográfica, número por milhões de população, estado, graus), currí-culo, doutorados, laboratórios, jornais e ... publicações. Dois veículos para avaliar o progresso feito na psicologia envolveram estes números: o primeiro revisões periódicas; o segundo histórias da Associação.

Foi S. W. Fernberger da Universidade da Pensil-vânia que, mais tarde, desenvolveu as estatísticas em publicações. Fernberger é bastante conhecido atualmente por ter produzido “clássicos”” na história da psicologia (FERNBERGER, 1932; 1943). Com relação a ensaios, ele percebeu a crescente ênfase colocada em publicações, como um critério para elegibilidade em Associações de Psicologia. Ele representou os números dos ensaios em gráficos, apresentados em cada reunião desde 1892, e verificou a “produtividade” de universidades nessas reuniões, mensurando que dezenove universidades pro-duziram 53% de todos os ensaios. Em 1917 começou uma série de estudos sobre produção científica de nações: National Trends in Psycology, publicados em intervalos de dez dias de 1917 a 1956. Fernberger documentou a su-premacia alemã nas primeiras décadas do século XX, com posterior declínio; os títulos ingleses foram mostrados como uma têndência ascendente, enquanto os títulos franceses estavam em declínio.

Igualmente, digno de atenção é o ensaio de 1917, de S.I. Franz, professor da Universidade George Washing-ton (1906-1921), mostrando um estudo bibliométrico sobre desempenho científico de psicólogos (FRANZ, 1917). “Nos cinco anos anteriores apareceram revisões do progresso da psicologia para diferentes períodos (…), declarou Franz. Porém “não fomos informados quem fez estes progressos de psicologia ou se devido ao número crescente de profissionais psicólogos, ou não, houve um crescimento correspondente no número ou no valor das investigações publicadas. Em outras palavras, muito embora seja admitido que o progresso tenha sido feito, estamos longe de saber se o progresso foi ou não satisfa-tório e corresponde ao número de psicólogos”.

Para Franz, todos os métodos de estímulo do valor de contribuições individuais (escolha de academias, seleção e promoção em universidades) têm defeitos. “Podemos fazer algo [mais] definitivo, determinando que um indivíduo específico tenha ou não feito alguma contribuição publicada para o progresso da psicologia”. Ele observou um razoável crescimento de publicações ao longo do tempo. Mas a produtividade – atualmente definida como número de publicações pelo pesquisador – variava. Franz mensurou que os homens mais velhos eram mais produtivos que os mais jovens, mas a pro-porção das publicações reais em relação às esperadas era mais alta entre os jovens. “Parece improvável que 40% do grupo mais velho estejam envolvidos em acumulação de material para o desenvolvimento da cosmologia, ou um sistema de psicologia, ou de uma completa história da ciência, ou de outros projetos maiores, que não podem ser deixados de lado em favor de contribuições menores, tais como artigos e monografias (...). O escritor percebe que alguns dos chamados “profissional” psicólogo devem

ser classificados como amadores”. Concluindo “a atenção do leitor é chamada para a consideração da sagacidade de certas sociedades científicas que exigem que um membro mantenha sua associação enquanto mostra um interesse ativo no progresso da ciência através de publicações”.

As estatísticas de cientistas e de ensaios científi-cos se desenvolveram consideravelmente nas décadas posteriores. Os governos e seus escritórios de estatística começaram a realizar registros de pessoal científico e técnico; posteriormente conduziram pesquisas em re-cursos humanos dedicados às atividades de pesquisa. Os cientistas e seus representantes regularmente usaram os dados como recursos retóricos para mais financiamentos públicos de pesquisas de universidades. Os sociólogos e economistas criaram um “indústria” total, chamada de bibliometria, relativa à mensuração de resultados de cientistas e estudo de fatores responsáveis pela produti-vidade científica.

Contabilidade da ciênciaAs medidas discutidas na seção anterior foram

apenas as precursoras de uma longa série de estatísticas produzidas pelos governos e seus organismos. Nos anos 1940 eram as organizações públicas que produziam a maior parte das estatísticas e logo conseguiram um “mo-nopólio” na medição da ciência, parcialmente por causa de seus recursos financeiros para conduzir pesquisas sistemáticas e regulares. Cattell levou quatro anos para elaborar seu diretório sobre homens da ciência do qual ele extraiu estatísticas. Tal investimento em tempo e di-nheiro raramente está disponível hoje para pesquisadores individuais. Governos têm muito mais recursos.

Devemos uma grande parte do desenvolvimento de medições de ciência oficial (ou institucional) em países ocidentais aos Estados Unidos. Foi lá que os primeiros experimentos emergiram nos anos 1920. Dois fatores explicam esse fenômeno: a necessidade de gerenciar labo-ratórios industriais e a necessidade de planejar atividades governamentais científicas e tecnológicas, particularmen-te caso viessem a ser necessárias para a guerra (mobiliza-ção de cientistas). O Canadá com iguais objetivos seguiu os mesmos passos uma década depois, e a Grã-Bretanha duas década após desta (GODIN, 2005).

A primeira medição oficial de atividades científicas veio do Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos, uma organização da Academia Nacional de Ciências. Cientistas eram dessa forma os primeiros estatísticos em atividades científicas nacionais2 e uma de suas organizações representantes foi a primeira a dar seguimento a seus esforços. Durante a Primeira Guerra Mundial, a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos convenceu o governo federal a ouvir os cientistas no esforço de guerra. O Conselho Nacional de Pesquisa foi então criado, em 1916, como um corpo consultivo ao governo. Rapidamente um comitê de pesquisa de informação, na época um Serviço de Pesquisa de Infor-mação, foi tambémcriado. O Serviço estava interessado no intercâmbio de informações científicas entre aliados. Após a guerra, essas atividades cessaram, e o Serviço

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reorientou seu trabalho para outros fins. O Serviço se tornou “um centro nacional de informação concernente ao trabalho de pesquisa e aos trabalhadores de pesquisa americanos, engajados na preparação de uma série de car-tões de catálogos de laboratórios de pesquisa nesse país, de investigações em curso, pessoal de pesquisa, fontes de informação de pesquisa, sociedades científicas e técnicas, e de dados nos relatórios estrangeiros que recebia” (CO-CHRANE, 1978). Foi como parte dessas atividades que o Serviço desenvolveu diretórios em pesquisa nos Estados Unidos. Começando em 1920, compilou regularmente quatro tipos de diretório; os dados puros eram publica-dos extensivamente no Boletim do Conselho Nacional de Pesquisa, algumas vezes acompanhados por tabelas estatísticas. Um dos diretório era relativo a laboratórios industriais. A primeira edição listava aproximadamente 300 laboratórios e continha informação sobre campos de trabalho e pessoal de pesquisa. Um segundo diretório lidava com fontes de fundos disponíveis para pesquisa, um terceiro com bolsas de pesquisa e bolsas de estudo, e um quarto com sociedades, associações e universidades cobrindo tanto os Estados Unidos quanto o Canadá. Os diretórios do Conselho foram usados por muitos, nos anos que se seguiram, para conduzir análises estatísticas de pesquisa, particularmente pesquisa industrial.

Dos anos 1940 em diante, os governos começaram a coletar estatísticas em dinheiro gasto em pesquisa. Estes esforços, muito influenciados por J. D. Bernal no Reino Unido (BERNAL, 1939), tinham precursores tais como o Comitê Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos, o Conselho de Pesquisa do Presidente dos Estados Unidos e a Fundação Nacional de Ciências dos Estados Unidos (GODIN, 2005). O que mudou desde Cattell é que a contagem de homens de ciência não era mais a estatística par excellence.

O dinheiro devotado a P&D era então o indicador mais desejado. Cattel realmente produziu alguns dados financeiros; usando a Ciência como um veículo, publicou várias listas de fundos institucionais (bolsas) para pesqui-sas começando em 1903 e organizou o AAAS Comitê dos Cem, concernente à coleta de informação sobre bolsas para pesquisa científica, cujas listas (bem imperfeitas e incompletas) foram publicadas entre 1916 e 1918; esse tipo de dado era esporádico.

Dois fatores explicam a nova situação: o uso da contabilidade como um meio de controlar as despesas (governamentais) em P&D que estavam, de acordo com os departamentos de orçamento, crescendo rápido demais; por outro lado, mais positivo, estatísticas foram desenvolvidas com dinheiro gasto como alvos políticos para desenvolvimento científico, e eram dessa forma usadas para convencer instituições a destinar mais di-nheiro a P&D.

Estes esforços se transformaram no manual Frascati da OECD, escrito pelo economista britânico C. Freeman (OECD, 1962). Em 1963 os países membros adotaram padrões para a medição de gastos de P&D, e a OECD publicou um manual de metodologia. O manual Frascati essencialmente desenvolveu três conjuntos de instruções:

primeiramente, normas foram propostas para a definição da ciência como pesquisa “sistemática” distinguindo a pesquisa de outras atividades de forma que essa última possa ser excluída; estas outras atividades incluem atividades científicas de pesquisa/relacionada, desen-volvimento/produção e pesquisa/ensino. Em segundo lugar, o manual sugeriu a classificação de atividades de pesquisa de acordo com (1) o setor que financia ou executa a pesquisa: governo, universidade, indústria ou organizações não-lucrativas e, com relação a esta última dimensão, (2) o tipo de caráter da pesquisa: básica, apli-cada ou direcionada ao desenvolvimento de produtos e processos; (3) as atividades classificadas por disciplina no caso de universidades (e organizações não-lucrativas), por setores industriais ou produto em caso de empresas, e por funções ou objetivos socioeconômicos no caso de governos. O manual sugeriu uma estatística básica como um indicador para propósitos de política.

O GERD (Despesas Brutas em P&D) é a princi-pal estatística do manual. É o total de dinheiro gasto em P&D pelos quatro setores econômicos: indústria, universidade, governo e não-lucrativos. Entretanto o GERD, apresentado como uma estatística em pesquisa nacional ou orçamento de pesquisa, permanece frágil. A primeira edição do manual Frascati sugere que “variações nacionais [em estatísticas de P&D] podem ser reduzidas gradualmente” com a padronização. Mas a coleta de es-tatísticas em despesas de P&D permanece um exercício muito difícil, pois nem todas as unidades pesquisadas têm um sistema de contabilidade para rastrear despesas espe-cíficas definidas como componentes de P&D. A OECD regularmente tinha de ajustar ou estimar dados nacionais para corrigir discrepâncias. Ela também iniciou uma série, Fontes e Métodos, documentando as diferenças nacionais no que diz respeito aos padrões OECD, e desenvolveu um sistema de notas de rodapés, permitindo a construção de dados semelhantes entre os países membros enquanto assinala a limitação dos dados.

No todo, o GERD não é uma estatística em um orçamento nacional mas “um total construído a partir dos resultados de várias pesquisas cada uma com seu próprio questionário e especificações um pouco [pode-se até dizer significativamente] diferentes” (BOSWORTH et al. 1993) Por essa razão: “O GERD, como qualquer outra estatística social ou econômica, pode apenas estar aproximadamente verdadeira(...). As estimativas do setor provavelmente variam de 5 a 15% em exatidão. O GERD serve como um indicador geral de C&T e não como um inventário detalhado de P&D (...) É uma estimativa e como tal pode mostrar tendências (...)” (ESTATÍSTICAS CANADÁ, 2002).

De acordo com uma pesquisa recente do Secreta-riado da OECD, GERD é atualmente o indicador mais apreciado entre os seus países membros (OECD, 1998). Pelos últimos quarenta anos, o indicador tem sido usado para vários propósitos, desde retoricamente mostrar o desempenho nacional até o lobby por mais fundos para a ciência e a determinação de alvos políticos. A OECD foi responsável pela popularização mundial do indicador.

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A OECD também foi uma forte promotora da proporção GERD/PIB como um alvo de política. Foi Bernal quem primeiro sugeriu, em 1939, esse tipo de medição, a qual se tornou o principal indicador de ci-ência e tecnologia: o orçamento de pesquisa como uma porcentagem da receita nacional. Nas décadas a seguir, variantes da proporção adquiriram nomes como inten-sidade de pesquisa, e depois intensidade de tecnologia. A OECD fez dessa estatística como o ideal que países membros deveriam atingir. Em toda publicação estatís-tica da OECD, o indicador foi calculado, discutido e os países classificados de acordo, porque “ele é memorável” (OECD, 1984, p.26) e é “o mais popular na política da ciência em níveis políticos, onde a simplificação pode ser uma virtude” (OECD, 1992, p.111). O manual Frascati é inteiramente composto dentro de um ponto de vista econômico. No início dos anos 1960 a ciência estava se tornando reconhecida como um fator no crescimento eco-nômico, mas para que ela pudesse contribuir de maneira mais eficiente para o progresso, as políticas de ciência tinham de ser desenvolvidas, e para isso as, estatísticas foram essenciais, assim pensava a organização. “Decisões políticas informadas (…) devem ser baseadas em infor-mação exata sobre a extensão e formas de investimento em pesquisa, desenvolvimento tecnológico e educação científica”, argumentou o relatório Piganiol da OECD (OECD, 1963, p.24). “As condições para a compilação de dados são um pré-requisito indispensável na formulação de uma política nacional eficiente para a ciência”.

As decisões políticas para as quais os dados foram tão necessários, eram três e foram todas enquadradas dentro do vocabulário de economia neoclássica, até mesmo nas mãos de economistas evolucionários. A pri-meira foi a alocação de recursos para P&D ou o que os economistas chamam de o melhor nível de recursos: “Avaliando o que é de alguma forma o nível “certo” ou “melhor” de alocação de recursos” (FREEMAN et al, 1965, p.15). Como já discutido, o GERD foi desenvol-vido para servir a este fim e a proporção GERD/PIB se tornou um indicador para alvos políticos.

A segunda decisão foi o equilíbrio entre as esco-lhas ou prioridades ou o que os economistas chamam de equilíbrio. Para muitos, decisões sobre fundos para pesquisa foram analisadas em termos das tensões entre pesquisa básica e aplicada. Para a OECD, a estatística era a solução para a questão e um sistema de classifi-cação por divisão estatística foi proposto. A primeira edição do manual Frascati sugeriu classificar P&D por dimensões. Uma das dimensões centrais estava ligada a setores econômicos (indústria, governo, universidade, não-lucrativas); outras classificações estavam ligadas a cada um dos setores.

Embora cada setor econômico tenha sua própria classificação, existe mais uma recomendada no manual e que é aplicável a todos os setores econômicos: se P&D é básica, aplicada ou de desenvolvimento; esta questão foi discutida por mais de quarenta anos na OECD. O conceito de pesquisa básica e seu contraste com a pesquisa aplicada tem uma história que remonta ao

século XIX e a integração das categorias em taxonomias usadas para pesquisas estatísticas vem dos cientistas britânicos J. S. Huxley e J. D. Bernal. Desde Condorcet um número mágico, 20, é muitas vezes sugerido como a porcentagem de fundos de P&D que deve ser destinada à pesquisa básica; tal alvo foi proposto no início pela OECD (GODIN, 2003).

Sugerimos que existiam três decisões de política que necessitavam dados de acordo com a OECD: a primeira a alocação de recursos para P&D; a segunda o equilíbrio do orçamento; a terceira - definida de acordo com a economia neoclássica - a determinação da eficiência, ou eficácia, da pesquisa. A primeira edição do manual Frascati preparou o palco para a medição da eficiência usando uma abordagem de entrada-produto como a moldura para estatística da ciência (GODIN, 2007b): Entrada → atividades de Pesquisa → Produto

Certamente o manual era inteiramente voltado para a proposição de padrões para a medição das informações, mas isto foi apenas um primeiro estágio. Apesar desse foco, o manual discutia o produto e inseriu um capítulo (seção) especificamente dedicado à sua medição porque “de maneira a realmente analisar a eficiência de P&D, algumas medidas do produto devem ser encontradas” (OECD, 1962, p.11). Desde sua primeira edição, o manual Frascati sugeriu que um conjunto completo de estatísticas e indicadores, cobrindo tanto a entrada de informações quanto os resultados, era necessário de for-ma a medir apropriadamente a ciência. Desde então, a OECD desenvolveu uma série de manuais cobrindo tanto a entrada de informações quanto o resultado.

A Família de Manuais de P&D da OECD(Primeira edição)

1961 The Measurement of Scientific and Technical Activities: Proposed Standard Practice for Surveys of Research and Development (manual Frascati).

1990 Proposed Standard Practice for the Collection and Interpretation of Data on the Technological Balance of Payments.

1992 Proposed Guidelines for Collecting and Interpreting Technological Innovation Data (manual de Oslo).

1994 Data on Patents and Their Utilization as Science and Technology Indicators.

1995 Manual on the Measurement of Human Resources in Science and Technology (manual de Canberra).

Definindo a ciência com estatísticasQuatro elementos têm caracterizado a definição

oficial de ciência XX. Primeiro, a ciência tem sido defi-nida e mensurada com base no conceito de ‘pesquisa’. Isso é uma construção puramente social, uma vez que a ciência poderia também ser definida como atividade ou pesquisa. Cientistas e filósofos definiram por muito

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tempo a ciência por seu produto (conhecimento) e mé-todo, os economistas como informação, e sociologistas a definiram por suas instituições e práticas. Definições oficiais anteriores também variaram. Por exemplo: até recentemente, a Rússia e os países comunistas, usavam uma definição mais ampla, na qual a ciência abrangeu mais do que a pesquisa, ou seja, áreas cobertas excluídas a partir da definição de pesquisa da OECD desde que fossem qualificadas como atividades científicas relacio-nadas, com informações e padronizações científicas. A UNESCO, por sua vez, desenvolveu o conceito de ativi-dades científicas e tecnológicas, que incluíram pesquisa, educação e atividades científicas relacionadas.

A definição de ciência como pesquisa é devida à institucionalização de pesquisa como um fenômeno importante do século XX. Nos anos 1960, as maiores organizações reconheceram a pesquisa como uma contri-buição para o crescimento da economia, desempenho e inovação, e muitas organizações estavam destinando uma crescente parte de seus orçamentos a estas atividades. Por isso a necessidade de uma melhor compreensão sobre o que estava acontecendo e pela mensuração de esforços (como um primeiro passo na mensuração da ciência).

No entanto, esta definição se deve a um segundo fator, ou seja, a contabilidade e sua metodologia. Há ativi-dades facilmente mensuráveis, paras as quais há números disponíveis, e outras não. Há atividades que podem ser facilmente identificadas e distinguidas e algumas que na prática são difíceis de separar. Definições oficiais optaram por se concentrar na mais facilmente mensurável (P&D) por razões metodológicas relacionadas com contabilidade (custos) e sua mensuração: atividades de pesquisa ao invés de produto de pesquisa (ou conhecimento), atividades de pesquisa ao invés de (pesquisa mais) atividades científicas relacionadas, pesquisa e desenvolvimento ao invés de pes-quisa exclusivamente, e pesquisa puramente sistemática do que (sistemática e) ad hoc. Vamos ver essas opções.

A segunda característica da ciência como definida pelos governos e suas estatísticas é P&D. Pesquisa é de-finida essencialmente como P&D, onde ‘D’ de desenvol-vimento, corresponde a mais de dois terços das despesas. O desenvolvimento é composto de diversas atividades como atividades de escala, plantas piloto e projeto. É uma categoria importante de taxonomias em pesquisa. Desde o estudo sobre pesquisa industrial feita pelo contabilista R. N. Anthony da Universidade de Harvard, conduzida para o Departamento de Defesa dos Estados Unidos no início dos anos 1950, pesquisa é definida como sendo composta por três categorias: pesquisa básica, pesquisa aplicada e desenvolvimento (DEARBORN et al., 1953). O desenvolvimento passou a ser P&D por diversas razões, dentre elas por causas de sua importância em pesquisa industrial (e militar) e por causa da dificuldade de separar (e orçar) adequadamente o desenvolvimento de outras atividades como pesquisa. Deve-se também sua presença na prioridade que o desenvolvimento tecnológico tinha na agenda política da ciência (GODIN, 2006b).

Em 1960, devido ao aumento de despesas com P&D como relatado pelas estatísticas oficiais, particularmente

P&D militar, alguns começaram a questionar o que real-mente envolvia as estatísticas quanto à pesquisa. David Novick, da RAND Corporation, sugeriu: “deveríamos parar de falar sobre pesquisa e desenvolvimento como se fossem uma entidade e examinar pesquisa separada-mente e desenvolvimento como uma atividade separada e distinta” (NOVICK, 1965, p.13). O raciocínio para esta sugestão foi dado por S. Kuznets e J. Schmookler poucos anos antes: “desenvolvimento é um trabalho de ajustes (...); não é uma invenção original” (KUZNETS, 1962, p.35); “enquanto os problemas lidados em desenvolvi-mento não são rotineiros, suas soluções normalmente não requerem uma faculdade criativa a qual o termo invenção implica” (SCHMOOKLER, 1962, p.45). Todos os três autores perderam essa discussão.

A terceira característica da definição oficial de pesquisa é a idéia de ‘sistematicidade’. A pesquisa indus-trial passou por uma expansão após a Primeira Guerra Mundial. A maioria das grandes empresas se convenceu da necessidade de investir em pesquisa e começaram a construir laboratórios para essa finalidade: a pesquisa teve que ser ‘organizada e sistematizada’. A questão da organização da pesquisa industrial de forma ‘sistemática’ estava no objetivo de todos os gerentes. Este é o raciocí-nio por trás da definição oficial de pesquisa. A pesquisa é pesquisa organizada, ou seja: pesquisa de laboratório. O significado rapidamente se espalhou por estudos de atividades de pesquisa.

Foram a NSF e a OECD que generalizaram este con-ceito de pesquisa. Dois aspectos deste conceito merecem análise. Primeiro, o significado de sistemática usado na definição de pesquisa – e as estatísticas baseadas nele – foi levado de uma ênfase sobre o método científico para uma ênfase sobre pesquisa institucionalizada. Essa tendência estava relacionada de forma próxima com o instrumento (moderno) usado para mensurar a pesquisa, ou seja estu-dos e a limitação desse instrumento. Segundo, a definição teve conseqüências importantes quanto aos números gerados, sendo o mais importante a contagem imprecisa da pesquisa. Vamos discutir ambos os aspectos.

As origens destas discussões são a pesquisa industrial e sua influência sobre toda a metodologia incluindo estu-dos para análise de pesquisa de governo e universidade. A principal fonte aqui foi o contabilista americano R.N. Anthony. No estudo que conduziu para o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, Anthony mostrou que o tamanho da empresa era uma das principais variáveis que explicavam o investimento em P&D:

O fato de haver quase 3.000 organizações de pesquisa industrial pode ser mal interpretado. Muitas delas são pequenas. (...) Mais da metade emprega menos de 15 pessoas cada, contando pessoal técnico bem como não técnico. Muitos desses pequenos laboratórios estão envolvidos principalmente em atividades como controle de qualidade, o que não é pesquisa e desenvolvimento, (ANTHONY et al., 1952, p.6-7).

[No entanto] este relatório refere-se principalmente a laboratórios industriais que empregam de alguma forma mais de 15 pessoas.

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Desta forma, a pesquisa foi a partir daí equacionada com pesquisa sistematizada ou grandes organizações com laboratórios dedicados. Este raciocínio logo passou a ser relacionado a outro: os custos de condução de um estudo. Por haver inúmeras empresas em um país, as uni-dades estudadas tiveram que ser limitadas a proporções controláveis. Isto foi feito através da introdução de uma influência nos estudos industriais: o estudo identificou todos os maiores participantes de P&D, que são empresas grandes com laboratórios (ou pesquisa “organizada”) e estudou todas elas, porém selecionou somente uma amostra de pequenos participantes. Esta decisão foi também apoiada pelo fato de que somente empresas grandes tinham práticas de contabilidade precisas de P&D, uma vez que a atividade poderia estar localizada em uma entidade distinta e formal, o laboratório. Um impacto importante do conceito oficial de pesquisa foi a contagem imprecisa de P&D ocasionando uma falha em apoiar alguns participantes nas políticas de ciência. Autores mensuraram quatro vezes a quantidade de ho-mem/ano dedicado a P&D em empresas de pequeno e médio porte do que havia sido relatado em estudos do governo. O motivo para as diferenças foi que empresas de pequeno e médio porte tendem a conduzir P&D de forma informal (‘desorganizada’, alguns diriam), ao in-vés de uma forma contínua ou em um departamento da empresa exclusivamente dedicado a P&D.

O quarto e último aspecto do conceito oficial de pesquisa é a exclusão de certo tipo de atividade, ou seja aquelas chamadas de atividades científicas relacionadas. A escolha feita foi de separar pesquisa de outras ativi-dades (rotineiras), independente do quão indispensável possam ser para pesquisa: planejamento e administração, expansão de planta de P&D, coleta de dados, dissemi-nação de informações científicas, treinamento e testes e padronização. De fato, as empresas tinham práticas contábeis que não permitiam que essas atividades fossem facilmente separadas.

A decisão de concentrar em pesquisa, ou P&D, não deixou de ter oponentes. Devemos à Unesco o desen-volvimento de uma definição mais objetiva de ciência. Primeiro, em relação a atividades científicas relacionadas o fato da organização ser destinada ao desenvolvimento educacional e cultura tanto quanto desenvolvimento econômico explica seu interesse em atividades científicas relacionadas. Além disso, o fato da organização ser con-trolada por cientistas, não economistas como no caso da OECD, foi também um fator de influência na definição de ciência de forma diferenciada. De acordo com essa organização, o estudo de ciência nacional e tecnologia “deveria ser limitado a P&D porém não deveria abranger atividades científicas e tecnológicas relacionadas (...). Tais atividades têm um papel essencial no desenvolvimento científico e tecnológico de uma nação” (UNESCO, 1970, p.21).

O interesse da Unesco em atividades científicas relacionadas foi a conseqüência de seu objetivo básico na extensão de padronização fora de países industrializados (por exemplo, OECD). O que era peculiar para países

orientais na época era o fato de que P&D não era desig-nado como tal. A Rússia, por exemplo, rotulou todas as suas estatísticas e tecnologia como ‘ciência’. Na tentativa de acomodar a Europa oriental, os esforços da Unesco foram guiados pelo desejo de gerar maior abrangência de padronização do que a OECD por um interesse em atividades científicas relacionadas per se. O programa para a inclusão da Europa oriental não deu certo e a Unesco nunca coletou dados sobre as atividades científicas rela-cionadas. Por quê? As razões são muitas.

Primeiro, a própria Unesco concentrou-se em P&D. A atividade foi dita ser mais fácil de ser localizada e mensurada, e tinha a virtude de ser uma contribuição ‘excepcional’ para a ciência e tecnologia. P&D foi visto como uma atividade de ordem mais elevada. A segunda razão, a Unesco nunca buscou trabalhar em atividades científicas relacionadas, foi ligada ao fato que, no final, poucos países estavam interessados nessas atividades. Mas a principal razão para a falha da Unesco em seus esforços em mensurar atividades científicas relacionadas foi que os Estados Unidos deixaram a organização em 1984, acusando a Unesco de influência ideológica. A decisão teve um impacto considerável na Divisão de Estatísticas da Unesco em termos de recursos financeiros e humanos.

O conceito de ‘atividades científicas e tecnológicas’ (Figura) foi o segundo esforço da Unesco em expandir a definição e mensuração da ciência, e se tornaria a base da filosofia de mensuração da ciência da mesma (UNESCO, 1978):

A ampliação do escopo das estatísticas da ciência é particularmente apropriada às condições da maioria dos países em desenvolvimento que estão normalmente envolvidos em atividades científicas e tecnológicas mais gerais, ao invés de P&D exclusivamente (UNESCO, 1969, p.9). Em países em desenvolvimento propor-cionalmente mais recursos são destinados a atividades científicas relacionadas para a transferência de tecno-logia e utilização de técnicas conhecidas do que P&D per se (UNESCO, 1972, p.14).

membros em 1978, as atividades científicas e tecnológi-cas eram compostas por três tipos amplos de atividades: P&D; educação e treinamento científico e técnico; e serviços tecnológicos (ou atividades científicas relacio-nadas). A recomendação teve vida curta. Em 1986, o diretor da divisão de estatísticas de ciência e tecnologia da Unesco concluiu que “devido a custos consideráveis e dificuldades organizacionais, o estabelecimento de um sistema de coleta de dados abrangendo de uma só vez todo o escopo de serviços científicos e tecnológicos e educação e treinamento de C&T em um país foi consi-derado impraticável”.

ConclusãoA mensuração da ciência é um episódio fascinante

na história da ciência: é testemunha de interesses ideo-lógicos, políticos, sociais e econômicos. Desde o início, mensurar o número de cientistas ao invés de outros aspectos da ciência teve a ver com o contexto do tempo.

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Para muitas pessoas, a descendência da população e a qualidade da raça foram se deteriorando, e aqueles grupos que contribuíam mais para a civilização, ou seja homens eminentes, incluindo cientistas, não estavam se reprodu-zindo de forma suficiente e tinham incentivos e reconhe-cimento insuficientes. Os ‘fracos’ eram mais produtivos – e alguns sugeriam políticas para esterilizá-los. Isto deu origem a idéia de mensuração do número de cientistas disponíveis, o tamanho da comunidade científica e as condições sociais de cientistas como pesquisadores.

Após a Primeira Guerra Mundial, e ainda progressi-vamente após a Segunda, um tipo completamente novo de estatísticas surgiu. De fato, naquela época não eram mais cientistas como Galton ou Cattel que produziam

estatísticas sobre a ciência, porém governos e suas agên-cias de estatísticas. Não era no número de cientistas de universidade que as agências tinham interesse, mas sim no dinheiro gasto com pesquisa. Isto tinha a ver, mais uma vez, com o contexto do tempo: o culto de eficiência e o desempenho das organizações. A pesquisa foi consi-derada como um veículo face à prosperidade econômica e organizações e seus laboratórios ‘organizados’ foram vistos como o vetor principal no final. Para os estatísticos e analistas de políticas, o ‘orçamento de pesquisa’, ou GERD (Despesas Brutas com Pesquisa e Desenvolvimen-to), se tornou o indicador mais apreciado.

As principais conseqüências de tal orientação para estatísticas foram duas: primeira, as estatísticas vieram a

Atividades Científicas e Tecnológicas

Pesquisa e Desenvolvimento

Experimental

Serviços Científicos e Tecnológicos

Educação e Treinamento em

C&T amplamente no terceiro nível

Serviços de C&T fornecidos por

bibliotecas, arquivos, centros de informação, departamentos de referência,

banco de dados etc.

Serviços de C&T

fornecidos por museus de ciência e tecnologia, zoológicos,

jardins botânicos etc.

Trabalho sistemático de tradução e editoração de livros e

periódicos de C&T

Pesquisas topográficas, geológicas,

hidrológicas e outras pesqui-sas, observação

e monitora-mento de solo,

água etc.

Prospecção e outras

atividades designadas a localizar e

identificar óleo e recursos minerais

Recolhimento de informação

sobre fenômenos humanos, sociais,

econômicos e culturais; coleção de estatísticas etc.

Teste, padronização, metrologia e controle de qualidade

Aconselhamento de clientes e usuários

informando sobre o acesso e uso de C&T e gerenciamento de informação

Patentes e licenças; trabalho

sistemático de natureza

científica, legal e administrativa sobre patentes e

licenças

Informação e Documentação Científica e Tecnológica

Figura – Atividades C&T (Unesco).

17RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.7-18, jan.-jun., 2008

ser incluídas em um sistema de contabilidade. Estatísti-cas de ciência concentrada em custos, alinhando com os Sistemas de Contas Nacional, e foram coletadas em uma abordagem de entrada/produto. Indicadores mais atuais são econômicos em tipos: despesas com pesquisa, produ-to como balanço tecnológico de pagamentos, patentes, produtos de alta tecnologia, inovação comercializada etc; segunda, um foco no crescimento e produtividade. Certa-mente, o conceito de produtividade científica na ciência surgiu dos próprios cientistas. Para Galton, produtividade significava reprodução: o número de crianças que um cien-tista possuia, ou o número de cientistas que uma nação produz. No século XX, a produtividade científica veio a significar a quantidade de produto de um tipo científico ou tecnológico (documentos, patentes), e mais tarde a produtividade econômica (mão-de-obra ou multifator) ou impactos da ciência no crescimento econômico.

Hoje, são as organizações (e o setor econômico ao qual pertencem) que são mensuradas, acima de todas as empresas (pense nos estudos de inovação), e não as pessoas da sociedade que deveriam se beneficiar com a ciência. Apesar de décadas, ou mesmo séculos, de discursos sobre benefícios sociais da ciência, pode-se buscar em vão por indicadores sistemáticos sobre lado social da ciência. De fato, para ‘contabilidade’, os economistas são o que é significante, o que é dado como visível e o que se torna im-perativo por ação. Como sugeriu A.G. Hopwood, o social é o residual e é transferido para a periferia. A cultura de números é, de fato, o culto de eficiência (econômica).

Notas1. A OECD tem uma publicação bienal entitulada Science, Technology and Industry Scoreboard (Indicador de Ciência, Tecnologia e Indústria) desde 1995, e a Comissão Européia vem publicando um Innovation Scoreboard (Indicador de Inovação) desde 2001.

2. Neste artigo, o interesse é sobre as estatísticas ‘nacionais’, não aquelas oriundas de instituições públicas e científicas que podem ter produzido números sobre suas próprias atividades, como por exemplo, relatórios anuais.

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Sobre o autor

Benoît GodinBenoit Godin é professor do Institut National de la Recherche Scientifique (Montreal, Canadá). Possui diploma de doutorado em filosofia em política da ciência da Universidade de Sussex (Reino Unido). Escreveu extensivamente sobre política e estatísticas da ciência. Está atualmente envolvido em um projeto sobre a história das estatísticas da ciência e tecnologia do qual dois livros foram recentemente publicados: Measurement and Statistics on S&T: 1920 to the Present, Londres Routledge, 2005, e La science sous observation: cent ans de measures sur les scientifiques, 1906-2006, Québec: Presses de l’Université Laval, 2005. Mais recentemente, iniciou um projeto de grande escala sobre história intelectual de inovação como uma categoria - da Idade Média à atualidade.

19RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.19-28, jan.-jun., 2008

Artigos originais

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

Por que a informatização funciona? Estratégias de compensação dos atores no

caso da prescrição médicaDOI: 10.3395/reciis.v2i1.159pt

Gloria Zarama-VasquezPACTE Politique-Organisa-tions, CNRS - Université de GrenobleGrenoble, [email protected]

ResumoO presente artigo trata do processo de informatização de um serviço de cuidados hospitalares tomando o caso de um software de prescrição médica. A ferramenta permite aos médicos prescrever por meio do computador o tratamento medicamentoso que os enfermeiros deverão preparar e administrar em seguida. A investigação etnográfica, no serviço hospitalar, relata a introdução da ferramenta a partir da atividade cotidiana dos enfermeiros. Destaca uma série de dificuldades com as quais os usuários se confrontam bem como as soluções que eles criam para tornar a ferramenta operacional, confiável e eficiente. O artigo relata assim as “estratégias de compensação” que os usuários desenvolvem, em especial o “trabalho de equipamento” dos suportes informáticos. O artigo mostra também que as estratégias de compensações criadas in situ pelos usuários são, em parte, invisíveis para os projetistas da ferramenta. Distantes da atividade comum dos usuários, os projetistas não percebem nem os problemas de uso nem as soluções criadas local-mente. Eles atribuem o desempenho da ferramenta à qualidade da sua concepção e sua capacidade de melhorar a ferramenta que se encontra reduzida. O artigo convida a refletir sobre o que torna efetiva a eficiência de um sistema de informação e sobre as lições aprendidas para a concepção das ferramentas.

Palavras-chave Informatização, hospital, compensação, invisibilidade, equipamento

IntroduçãoA concepção e implementação de sistemas informá-

ticos é uma atividade que tem se tornado importante na sociedade do conhecimento. O número e a diversidade das suas aplicações atingem hoje quase a totalidade das atividades produtivas e de serviço, incluindo o domínio da saúde pública (YASNOFF et al., 2000). Numerosos métodos de concepção (ciclo de desenvolvimento1) são

utilizados pelos projetistas e diversos métodos de acom-panhamento da mudança são publicados na literatura (TAYLOR, 2003; WAGER et al., 2005). No entanto, apesar de toda esta atividade de divulgação de métodos, pesquisas revelam que os novos sistemas informáticos conhecem dificuldades e fracassos (SAUER, 1993; LYYTINEN et al., 1999; HEEKS, 2002; TAYLOR, 2003; GOLDFINCH, 2007). Os patrocinadores de novas ferra-

Dominique VinckPACTE Politique-Organisa-tions, CNRS - Université de GrenobleGrenoble, [email protected]

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mentas se defrontam com resistências e desvios de função e de uso e os usuários lamentam a falta de adequação das ferramentas. Numerosos autores explicam as falhas observadas pela suposta “resistência” dos atores diante da mudança e da novidade (PIDERIT, 2000).

Os especialistas das ciências sociais que se interes-sam pelos processos de inovação e pela mudança técnica nas diversas áreas das ciências como história (SMITH et al., 1994), sociologia (KLEIN et al., 2002; WILSON et al., 2002; COUTARD et al., 2007) e, principalmente, economia (ALBERTO et al., 2008), relatam as razões e a racionalidade dos usuários e explicam os comportamen-tos de rejeição ou de desvio. Destaca-se (ver a síntese de HACKETT et al., 2007) que as falhas seriam devidas tanto aos problemas que vêm dos projetistas (HIRSCH-HEIM et al., 1999) e dos gestores da mudança quanto dos usuários. A ação concreta, individual e coletiva, dos atores em situação explica o sucesso ou o fracasso da inovação (CALLON, 1986; BERG, 1999; ORLIKOWSKI et al., 2001; LATOUR, 2005); não são, portanto, nem as qualidades intrínsecas do objeto inovador nem as características sociais dos usuários nem a sua percepção das novidades (CHIASSON et al., 2001).

O artigo analisa os problemas que os atores encon-tram ao fazerem face a um novo sistema informático que é instalado para eles e as soluções que eles desenvolvem. Interessa-se pelo modo como os usuários enfrentam as dificuldades encontradas e, em especial, pelas “estratégias de compensação”2 (FERREIRA, 1998; PINHO et al., 2003) dos sistemas, particularmente o “trabalho de equipamento”3 dos objetos. O problema é duplamente importante. Por um lado, o processo de concepção e introdução das novas ferramentas é menos eficiente do que imaginam os proje-tistas. Portanto é possível melhorar os métodos. Por outro lado, bons desempenhos são obtidos em campo, isso está em parte relacionado ao trabalho de compensação que vem dos usuários. Este trabalho de compensação pode provocar repercussões negativas sobre o seu trabalho, o seu bem-estar ou a sua saúde (FERREIRA, 2000). Este artigo analisa uma situação típica deste processo de construção de compensações em sistemas informáticos no caso de uma aplicação médica no meio hospitalar. O artigo caracteriza o “trabalho de compensação” que os usuários realizam. Ele relata também o problema da invisibilidade (SUCHMAN, 1996) deste trabalho e as conseqüências que isso representa para o processo de concepção e re-concepção das ferramentas.

Além do caso singular deste software de prescrição médica, a pesquisa se questiona, de uma maneira geral, sobre o que torna efetivo o desempenho de um sistema de informação. Ela sugere que se leve em consideração, seriamente, as estratégias de uso desenvolvidas pelos atores, uma vez que elas não são facilmente visíveis e que necessitam de um esforço especial de atenção e de análise.

Na primeira parte, o artigo expõe as bases conceitu-ais que caracterizam a abordagem teórica utilizada nesta pesquisa. A segunda parte é consagrada à exposição do campo no qual a pesquisa foi realizada e à metodologia etnográfica adotada. A terceira parte considera os dados

e os materiais produzidos pela pesquisa de campo. Uma vez que o trabalho é de natureza etnográfica, os dados são, portanto, essencialmente de natureza qualitativa o que implica que devem ser expostos de maneira circuns-tancial. Na quarta parte, o artigo retoma a problemática para discutir os dados da observação e retirar deles o significado teórico e prático. Por último, na conclusão, os autores destacam o que eles consideram ser as lições essenciais dos resultados alcançados nesta pesquisa.

Referencial teórico: da sociologia da inovação e do trabalho à noção de equipamento

Para estudar a introdução de um novo sistema informático num serviço hospitalar, a análise mobiliza a sociologia da inovação (LATOUR, 1987) que sugere seguir os atores e suas práticas concretas. No espírito da teoria do ator-rede (CALLON, 1986; LATOUR, 1987), a análise também se esforçou em considerar as entida-des não-humanas associadas na ação. Em conformidade com a etnografia da atividade de concepção (VINCK, 2003), a pesquisa ficou particularmente atenta aos objetos intermediários (VINCK et al., 1995), a saber, todas as entidades materiais produzidas e mobilizadas na ação, colocadas entre os atores ou que circulam entre si. Os atores constroem redes sociotécnicas mobilizando e des-locando entidades humanas e não-humanas, negociando e redefinindo o seu papel e as suas relações. Nesta pers-pectiva, a priori, a integração e a eficácia de uma nova tecnologia em situação dependem das múltiplas articu-lações construídas (BERG, 1999) e estabilizadas entre os diversos atores e os múltiplos objetos intermediários cujo entrecruzamento constitui a trama e o quadro da atividade comum. A teoria do ator-rede traz para a análise dos sistemas de informação uma série de conceitos que permitem não analisar separadamente a tecnologia de um lado e o sistema social do outro, mas que permitem dar conta das malhas sociotécnicas (ORLIKOSWKI et al., 2001; HANSETH et al., 2004).

As noções de articulação (FUJIMURA, 1987) e de trabalho invisível (SUCHMAN, 1996), vindo da tradi-ção do interacionismo simbólico e da análise da ação situada, ajudam a estudar o trabalho dos enfermeiros realizado no cotidiano, o qual tem por objetivo produ-zir um serviço hospitalar de qualidade. A atividade de trabalho efetiva não se reduz nunca às tarefas prescritas pela organização ou pela profissão. A noção de cognição distribuída (HUTCHINS, 1995) também ajuda no estudo dos mecanismos que expandem as capacidades cognitivas dos indivíduos.

A tradição da sociologia do trabalho e da ergonomia (GUÉRIN et al., 2001) chamam nossa atenção para os detalhes da atividade das pessoas no trabalho para gerir os conflitos entre prioridades, os fluxos de informação, as exigências contraditórias, a complexidade das relações interpessoais e a variabilidade das situações de trabalho. Os ergonomistas propõem o conceito de processo de regu-lação entre indivíduos para falar da gestão individual e coletiva das variações das condições internas e externas

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da atividade e o controle dos seus efeitos. De acordo com Faverge (1992), o processo de regulação estrutura a atividade dos trabalhadores e a mantém de tal modo que ela se torna satisfatória para os indivíduos e para a organização. A regulação se traduz pela resistência con-trária a certas exigências, pela procura de um equilíbrio, pelo autocontrole e pelo desenvolvimento de “estratégias de compensação” (FERREIRA, 1998, 2000; PINHO et al., 2003) da organização e das ferramentas de trabalho. Em sociologia do trabalho, a regulação remete também à produção de regras autônomas (REYNAUD, 1989) pelos coletivos de trabalho, as quais se diferenciam de regras de controle prescritas pela instituição, às vezes, via ferramentas de trabalho. Neste estudo, levamos em consideração as estratégias individuais e coletivas dos atores, os mecanismos de regulação e as transformações dos suportes das práticas.

Finalmente, a partir de várias pesquisas dentro dos domínios da concepção e da inovação, da qual esta pesquisa faz parte, propomos uma conceituação original da noção de equipamento para dar conta da atividade dos atores em situação que consiste em dotar os objetos inter-mediários de elementos adicionais (traços, símbolos ou modificações físicas) que alteram seu destino em situação. O equipamento que resulta é constituído de elementos conduzidos pelos próprios objetos que alteram a natureza e os inserem em novos usos.

Uma abordagem etnográfica para o estudo da atividade comum

A sociologia da inovação (LATOUR, 1987) sugere seguir os inovadores estudando a expressão da demanda de um patrocinador, sua reformulação negociada com os especialistas da concepção informática e, em seguida, analisando o processo de concepção das ferramentas e a sua validação. Ao seguir os profissionais da informatiza-ção e as ferramentas que eles introduzem, o pesquisador acabaria por encontrar os usuários, as suas reações e os usos que eles fazem da ferramenta (AKRICH, 1995; EDGERTON, 1998).

No entanto, a sociologia do trabalho e a ergonomia (GUÉRIN et al., 2001) nos levam a aplicar uma abor-dagem com base na situação de trabalho comum dos enfermeiros onde chega um novo sistema informático. Trata-se, então, de levar em consideração o ponto de vista e as práticas dos usuários. Ao contrário da socio-logia da inovação, nessa abordagem o projeto deixa de lado o ponto de vista dos patrocinadores, daqueles que prescrevem ferramentas, dos projetistas e dos instala-dores. A abordagem consiste, sobretudo, em considerar uma atividade produtiva na qual intervêm, entre outras ferramentas de administração, sistemas informáticos. Ao contrario das aparências, no serviço hospitalar, os sistemas informáticos não ocupam um lugar central na atividade cotidiana. Ainda que o pessoal da área médica utilize prontuários informatizados, exames ancorados em equipamentos computadorizados, certos usuários recorrem a eles apenas alguns minutos por dia. Assim, a presente pesquisa tem por objeto o estudo da atividade

comum que está, muitas vezes, ligeiramente ligada ao sistema informatizado. A ferramenta, às vezes, é apenas vislumbrada ou brevemente vista na atividade da qual ela não é o centro. As técnicas e os seus usos são aprendidos a partir de um conjunto de práticas que não são neces-sariamente ligadas aos sistemas informáticos.

Esta maneira de proceder mostra que a informa-ção, da qual têm necessidade os atores em situação de trabalho, é distribuída entre uma multiplicidade de suportes e atores em interação. Esta hipótese guia o en-tendimento do processo de integração do instrumento informático a sua situação de trabalho. O sistema é, dentro deste ecosistema, somente um elemento entre outros. Para compreender a integração do sistema, nós nos interessamos pelas práticas dos diferentes atores, qualquer que seja a sua categoria profissional ou a sua posição na organização. Trata-se de compreender a di-versidade das tarefas e as atividades, a diversidade dos sistemas informáticos propostos, a diversidade dos usos e a variabilidade das práticas e do vivido em relação às ferramentas. Desta maneira, podemos considerar a divi-são do saber, a coordenação das atividades, as estratégias individuais e coletivas, suas aprendizagens, as regulações implementadas pelos atores e as transformações que eles operam nas ferramentas de trabalho.

A pesquisa etnográfica começou com entrevistas no fim do ano 2002 e com um trabalho de observação durante cinco meses no ano de 2003. A pesquisa com-binou observações abertas e observações orientadas às situações específicas, como visitas médicas diárias4 aos doentes, as reuniões de transmissão de informações quando da mudança de turno e as reuniões com o pessoal da informática. Tal procedimento foi completado com entrevistas com diferentes pessoas, às vezes externas, mas que intervêm no serviço hospitalar: farmacêuticos, assistente social, psicólogo, secretário, nutricionistas, suporte da área de informática, representante da direção dos enfermeiros. A pesquisa etnográfica incluiu também o acompanhamento, durante um dia ou uma noite de trabalho, de certos profissionais: enfermeira-chefe, enfer-meira, auxiliares de enfermagem, residente etc. A lista de coisas a observar considera as atividades, as interações entre atores, os objetos utilizados e as práticas concretas. As observações foram anotadas num diário de campo. A pesquisa consistiu também em restituir aos atores do ser-viço observado os resultados intermediários alcançados. Tais restituições constituíram momentos propícios de discussão entre os atores quando se chegava à produção de novos acordos entre eles em relação à organização do trabalho e ao uso da ferramenta. Por último, uma pes-quisa complementar foi realizado durante o ano de 2008 objetivando testar a perenidade de certas observações produzidas em 2003.

A seguir, na exposição dos resultados, começaremos por caracterizar o campo pesquisado e descrever as difi-culdades, e respectivas razões, com as quais os profissio-nais são confrontados. Serão caracterizadas também as estratégias desenvolvidas por eles para fazer face a essas dificuldades e para tornar confiável e eficiente a função que o sistema supostamente realizaria.

22 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.19-28, jan.-jun., 2008

Em campo: uma unidade de cuidados médico-hospitalares

Na unidade hospitalar, pertencente a um grande hospital público universitário da França, trabalham cerca de cinqüenta pessoas. Elas são responsáveis por cuidar de doentes, em sua maioria, idosos e dependentes, que sofrem de câncer pulmonar, dos quais uma parte morre durante o tratamento. A unidade tem a reputação de ser aberta em relação às novas tecnologias da informação. Ela é qualificada como unidade-piloto, ou mesmo como vitrine para visitantes (médicos ou informáticos de outros hospitais) da informatização hospitalar.

A unidade divide-se em duas partes: uma correspon-de ao “hospital diurno” para doentes que vêm em con-sulta externa e que fazem tratamento de quimioterapia (10 leitos), a outra é a da internação onde os doentes permanecem por várias semanas em função do seu caso (14 leitos). O trabalho nesta unidade é considerado pelo pessoal como psicologicamente duro de suportar devido ao tipo de patologia que é gerida, à dependência dos doentes, à deterioração da doença e ao alto número de falecimentos.

Em 2003, o pessoal era formado por oito médicos, incluindo os residentes e estagiários. A equipe era com-posta também pelo pessoal de cuidados: uma enfermei-ra-chefe, treze enfermeiras, dez enfermeiros-auxiliares, cinco estagiários, fisioterapeutas e um psicólogo que intervêm em tempo parcial. Compreendia, por último, sete agentes sanitários e hospitalares, dois secretários, uma assistente social e quatro voluntários. Além disso, ocasionalmente passava uma nutricionista e assistentes de farmácia que avaliavam a reserva de medicamentos do serviço.

A ferramenta: a prescrição médica informatizada

Direcionou-se a atenção, em especial, para um sis-tema de prescrição médica informatizado, que permite aos médicos prescreverem no computador o tratamento medicamentoso que as enfermeiras devem preparar e ad-ministrar em seguida. O sistema serve, em princípio, de elo de ligação entre médicos e enfermeiras para a transmissão da prescrição, a edição de um plano de administração dos medicamentos (PAM), a validação da administração dos medicamentos e o acompanhamento do tratamento pelo médico. A ferramenta permite programar uma parte das ações dos enfermeiros e ajuda na distribuição de medi-camentos produzindo suportes de informação legíveis como “objeto intermediário” entre atores. A concepção e aplicação do sistema tem como objetivos, almejados por vários atores, assegurar a conformidade da prescrição médica em relação às exigências regulamentares (prescrição escrita que compreende o nome do doente, do médico, uma data e uma assinatura); melhorar a qualidade da prescrição medicamentosa controlando as incompatibili-dades medicamentosas; reduzir os erros de transmissões, reprodução e leitura da prescrição médica; facilitar a gestão de estoque em farmácia; assegurar a rastreabilidade da administração do tratamento.

A implementação do sistema supõe a generalização do uso do recurso da informática pelos diferentes pro-fissionais e nas diferentes etapas do processo, incluindo aquelas realizadas no quarto do doente. Isso implica em computadores em postos fixos, computadores portáteis transportados sobre um carrinho (Figuras 1, 2 e 3), computadores de bolso e rede de antenas nos corredores da unidade que ligam os computadores portáteis à rede informática do hospital.

A aplicação do software de prescrição médica supõe também a articulação de outras aplicações informáticas relativas aos serviços administrativos que se referem ao doente, às autorizações dadas aos pessoais, à atribuição dos identificadores e senhas, à base de dados dos me-dicamentos, às incompatibilidades medicamentosas, à gestão de estoque da farmácia etc. Ela supõe também que médicos e enfermeiras sejam capacitados para usar o software e que um suporte técnico esteja à disposição dos usuários no caso de pane ou dificuldade.

Figura 1 - Carrinho dos médicos com computador portátil em 2003.

Figura 2 - Carrinho dos médicos com computador portátil em 2008.

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Quando da observação em 2003, o instrumento era utilizado de forma intensa e sistemática, confirmando assim a sua reputação de unidade de tratamento aber-ta às novas tecnologias. Os médicos realizavam suas prescrições e as alteravam em função da evolução do paciente. As enfermeiras consultavam e imprimiam os tratamentos médicos e os PAM, em seguida validavam estes após ter administrado os medicamentos. O chefe de unidade interessou-se pela prescrição informatizada por muito tempo e contribuiu para o seu desenvolvimento. A unidade já tinha sido o lugar de teste, em 1996, de um software de prescrição medicamentosa. Assim, o novo software, mais eficiente, foi adotado mais facilmente uma vez que o pessoal já tinha experiência, mas, também porque havia permitido restabelecer a “paz social” entre os médicos e enfermeiras ao suprimir antigos conflitos ligados à prescrição oral. Os médicos diziam que podiam acompanhar facilmente os tratamentos prescritos e ser auxiliados pelo computador. Além disso, a divulgação da ferramenta no hospital foi acompanhada de uma série de ações como campanhas de sensibilização dos médicos e dos enfermeiros para que participassem do controle da conformidade das prescrições realizadas pelos médicos.

Um sistema informático visto a partir das tensões entre lógicas profissionais

O sistema informático restringe fortemente os médicos; ele os obriga a prescrever em conformidade com a legislação. Se eles prescrevem mal, a ferramenta os impede de validar a sua prescrição. A prescrição assim realizada é considerada como mais legível pelas enfer-meiras; ela as dispensa de decifrar a caligrafia médica ou memorizar o nome do medicamento comunicado no corredor ou por telefone. Como observa um chefe de serviço: “Ela permite às enfermeiras ter uma prova da prescrição médica e assim estarem cobertas.”

O sistema também obriga os médicos a racionalizar a sua prescrição, a tornar a informação (horas e doses) mais precisa e a considerar as interações medicamen-

tosas. Ele traz consigo também restrições novas como o fato de limitar a lista dos medicamentos disponíveis ao nível da base de dados farmacêuticos do hospital ou de não encontrar um medicamento porque o seu nome está mal escrito. O problema aparece também quando doentes habituados a certos medicamentos reclamam sua falta, enquanto que a farmácia central não os repõem em suas bases de dados, por razões de ineficácia dos medi-camentos em questão ou de existência de equivalentes menos caros. Os farmacêuticos, recusando seguir a lógica comercial, que resulta em uma multiplicação de medi-camentos que são freqüentemente apenas variações uns dos outros, limitam a lista dos medicamentos acessíveis para os médicos. Um médico diz que “a ferramenta não tem por missão satisfazer todas as necessidades”. O sis-tema é, portanto, o lugar de confrontações entre lógicas profissionais (médicos/farmacêuticos/pessoal da informá-tica) e entre profissionais e doentes. Neste jogo, entram também as enfermeiras que, confrontadas diariamente com a demanda e com a pressão dos pacientes e de sua família, definiram coletivamente regras tácitas em torno da aceitação de certas solicitações. A sua lógica profissio-nal integra o apoio moral ao doente e se confronta com as vontades de racionalização que passa pela ferramenta informática. Os médicos utilizam, então, o sistema como recurso nas suas negociações com as enfermeiras e tentam recusar, segundo relato de um médico, a “satisfazer uma solicitação que está no limite do científico”. O sistema é utilizado para orientar os usuários em certas práticas ou forçá-los a afastar-se das outras práticas correntes. Isso faz parte de uma regulação de controle, que se confronta com uma regulação autônoma, tanto em relação aos médicos e enfermeiros quanto ao tratamento da solicitação dos doentes e das famílias.

A ferramenta apresenta também alguns limites que são conhecidos e destacados pelos profissionais: o fato de não permitir prescrever as quimioterapias uma vez que corresponde a mais da metade da atividade de pres-crição na unidade de tratamento observada; a ausência, em 2003, de relações com o acesso aos resultados que obriga retornar ao processo no qual é utilizado o papel. Além disso, os médicos habituados “a prescrever de tudo e qualquer coisa” (relato de um médico) acusam a ferra-menta de não facilitar-lhes a tarefa como, por exemplo, a prescrição de um travesseiro e um cobertor suplementar para o doente, a compota de ameixas, as bandagens, os alimentos da dieta alimentar, os aparelhos especiais, o vestuário, a passagem do psicólogo e também as mensa-gens dirigidas aos enfermeiros como “desejar-lhes feliz aniversário” ou “deixar entrar a sua família”. O fato dos profissionais expressarem estes limites testemunha mais o desejo de ter à disposição sistemas mais eficientes do que uma rejeição a eles.

As dificuldades encontradas e as soluções criadas pelos atores

Retornamos agora à análise do uso e das dificuldades encontradas no uso do sistema e das estratégias de apro-priação e de adaptação desenvolvidas pelos atores.

Figura 3 - Carrinho dos medicamentos com computador portátil em 2008.

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O tratamento médico é introduzido por meio do computador e adaptado dia-a-dia pelos médicos. Inevi-tavelmente, erros são produzidos. Segundo uma enfer-meira, se isso normalmente ocorre “é porque o médico não sabe utilizar o computador”. As enfermeiras, então, consideram com mais freqüência que é necessário “fazê-lo rever a sua prescrição”. Isso significa duas coisas: fazer o médico reler sua prescrição para verificar se o que sai do computador é efetivamente o que ele queria descrever e fazê-lo recomeçar sua prescrição porque ela contém erros. Às vezes os médicos esquecem de validar sua prescrição antes de sair do sistema. Em outros casos, os médicos recebem mensagens de erros que eles não compreendem. Uma enfermeira, então, avalia a situação dizendo que “o problema é que o médico é responsável por uma fer-ramenta que está ultrapassando-o.”

Uma vez a prescrição estabelecida e validada infor-maticamente pelo médico, as enfermeiras podem consul-tá-la, a partir do seu próprio computador, para preparar a administração do tratamento. A ferramenta oferece várias visualizações e várias paginações da prescrição visando a sua impressão conforme descrito a seguir.

- Uma lista dos pacientes com data, hora, nome do médico e um campo “validado”. Esta lista é consultada na tela para localizar as mudanças.

- Um sumário do tratamento para cada doente com a lista dos medicamentos prescritos, a via para a administração do medicamento, a fórmula galênica e a distribuição durante o dia, a posologia e o período de tratamento. Este documento é impresso para ser afixado no quarto do doente.

- Um “Plano de Administração dos Medicamentos” (PAM) com a lista dos medicamentos prescritos e a via para a administração do medicamento, bem como os horários previstos para administrar o medicamento. Nos campos, figura o número de comprimidos, cápsulas, frascos, unidades ou dispositivos. As enfermeiras impri-mem o PAM todos os dias e o utilizam para preparar os medicamentos e, em seguida, durante a administração do tratamento, para assinalar se o medicamento foi dado ao doente ou se ele o recusou.

Logo que o PAM é impresso, as enfermeiras o exami-nam e fazem, manualmente, uma série de modificações nele. Elas dão destaque em algumas coisas, alteram os horários e o completam com outras indicações. Por exem-plo, se um medicamento aparece duas vezes na impressão, elas bloqueiam uma das duas ocorrências para deixar somente uma. Esta prática permite evitar que uma outra enfermeira interprete as duas linhas do PAM como duas prescrições em vez de uma mesma prescrição que dura até o dia seguinte. Esta maneira de agir permite prevenir eventuais incidentes e preservar somente a informação útil para a ação. “A prescrição não é sempre muito clara”, explica uma enfermeira.

Em outro exemplo, as enfermeiras completam o PAM nos casos em que o tratamento médico, por razões inexplicadas, não aparece quando da impressão. Nós ob-servamos também que certas informações sobre o PAM são sublinhadas por marcadores fluorescentes (o nome do doente e a via da administração).

No PAM, as enfermeiras realizam também modifi-cações nos horários. Se um medicamento está prescrito para às 18 h, na prática, ele será dado às 16 h, ou seja, no momento em que duas enfermeiras estejam efetivamen-te disponíveis: uma encarrega-se da administração dos medicamentos e a outra dos cuidados de outros doentes. O trabalho é organizado em função da disponibilidade do pessoal, não em função daquilo que é determinado no PAM. As enfermeiras organizam-se em função do “peso” dos doentes, dos cuidados a serem efetuados, das economias de escala possíveis (trabalho em série por tipo de ação) e da integração dos cuidados com um mesmo doente, bem como em função dos colegas presentes e seus hábitos. Certos cuidados devem ser realizados em con-junto e coordenados. Os horários que aparecem no PAM são fixados pelos médicos que não conhecem realmente a organização do trabalho dos enfermeiros.

Os PAM impressos são assim corrigidos, comple-mentados, sublinhados, anotados com uma cruz para indicar que a administração do medicamento foi rea-lizada. Assim, dizem as enfermeiras, transformados e equipados, as saídas informáticas tornam-se mais legíveis e mais práticas.

As enfermeiras defrontam-se também com um outro problema: o intervalo de tempo, variável, entre a inscrição da prescrição pelo médico e o seu aparecimento na tela do computador das enfermeiras. De acordo com os casos, é necessário esperar entre uma hora a um dia. Porém, qualquer que seja a causa do problema (pode ser que enfermeiros e médicos não tenham compreendido a lógica do sistema), para os atores, o importante é evitar cometer erros de cuidados hospitalares devido ao fenô-meno da informática.

Eis alguns exemplos de desenvolvimento de soluções localizadas: um médico imprime o PAM e o entrega em mãos à enfermeira de modo que ela seja informada da modificação e leve o PAM em consideração; outro médico considera que a impressão do PAM não faz parte do seu trabalho e que as enfermeiras deveriam imprimi-lo várias vezes por dia para levar em consideração as modificações que aparecem durante o dia. Mas as enfermeiras não compartilham esta concepção da organização de traba-lho que provocaria perturbações em cadeia. Às vezes, os profissionais reunem-se em torno do computador para construir uma informação compartilhada, porque a transmissão informática sozinha não é suficiente. Uma enfermeira pede ao médico a confirmação que efetiva-mente interrompeu o tratamento de um doente enquanto a modificação não aparece na tela. A enfermeira, não vendo aparecer a modificação que ela ouviu falar, pro-cura verificar a informação por um circuito diferente da informática. Da mesma maneira, os médicos informam oralmente as enfermeiras das modificações que elas obti-veram no computador. Eles fazem a comunicação oral ao mesmo tempo para assegurarem-se de que a informação circula bem e para que seja rapidamente considerada. A enfermeira escreve a modificação que não aparece neces-sariamente no PAM, em primeiro lugar, na extremidade de um papel, que ela coloca no seu bolso, em seguida, manualmente no PAM. Ela também informa aos seus co-

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legas, oralmente, nos corredores ou nas reuniões de troca de turno. O coletivo das enfermeiras fica atento assim ao fato da modificação ser considerada e comunicada a todos os envolvidos.

A partir dos PAM corrigidos e adaptados, as enfer-meiras preparam o carrinho dos medicamentos para as próximas 24 horas. Depois, quando da administração do tratamento, elas anotam manualmente no PAM se o medicamento foi dado ao doente, se ele o recusou ou a ocorrência de outra situação. Elas procedem assim a uma validação em tempo real no papel. A validação feita através do sistema informático é realizada mais tarde. Além disso, a validação informática não pode sempre ser feita em tempo real quando um medicamento, previsto no computador para às 18 h, é administrado às 16 h, por razões de organização do trabalho; a validação informá-tica pode ser feita apenas após às 18 h.

O PAM, impresso e corrigido, é levado para atualizar o carrinho dos medicamentos e depois é levado junto com o carrinho para proceder à distribuição de medica-mentos em cada quarto. Uma vez o medicamento dado, o PAM é anotado. O PAM de cada doente é utilizado em seguida para proceder à validação feita através do sistema informático, no escritório das enfermeiras e, em seguida, guardados num arquivo. Certas enfermeiras validam a distribuição de medicamento seja lendo o PAM, seja de memória. A validação informática é feita em função da disponibilidade da enfermeira para esta tarefa. Para ra-cionalizar a organização, algumas enfermeiras assinalam tudo de uma só vez, às vezes fazem isso de memória, às vezes no lugar de um colega.

Os problemas encontrados pelos atores são objeto de discussões informais e em reunião. As enfermeiras comparam e discutem as soluções que elas criam. Elas constroem acordos quanto à maneira de fazer o trabalho, por exemplo, como e quando o equipamento da versão impressa do PAM deve ser realizado.

Perenidade do equipamentoEm 2008, após terem se passado cinco anos das

observações iniciais de campo, foram constatadas certas mudanças enquanto outros modos de fazer, criados pelos atores, foram perpetuados. A unidade hospitalar sofreu uma forte redução em recursos humanos e conheceu uma crise que foi traduzida em renovação de 3/4 do pessoal. A falta de médico implicou em menos tempo na troca de informação; aumentando os problemas de transmissão de informações entre médicos e enfermeiras. No plano das ferramentas, várias novas aplicações informáticas foram introduzidas, o que contribuiu para reduzir a importância do recurso com suporte em papéis; mesmo para as enfermeiras, mais informações estão disponíveis no computador que acompanha com mais freqüência suas ações. Vários computadores portáteis estavam disponí-veis nas unidades e foram instalados sobre os carrinhos de administração dos medicamentos que se tornaram mais práticos. A ferramenta de prescrição médica tam-bém evoluiu integrando a prescrição quimioterapêutica e outras funcionalidades como a prescrição condicional,

prescrição que a enfermeira pode adaptar em função da situação sem que seja necessário que o médico faça alterações na prescrição anterior.

Globalmente, a unidade tornou-se muito mais dependente da informática e sensível, mais do que no passado, a panes. O fato de duplicar oralmente a circu-lação da informação em relação ao sistema informático permanece inalterado. A impressão em papel do PAM não desapareceu, assim como a sua transformação manual, quer por razões de segurança, quer por razões práticas, embora certas jovens enfermeiras pretendam abandonar o suporte em papel. Na prática, as enfermeiras, dispondo doravante de um computador portátil no carrinho de me-dicamentos, que se tornaram fisicamente enormes, fazem uma série de idas e vindas entre várias telas, ou entre a tela e o papel. Essas profissionais têm-se queixado do fato de passar muito tempo lidando com a informática, mas, ao mesmo tempo, reconhecem que dificilmente poderão trabalhar sem ela. Vários problemas assinalados há cinco anos persistem (prazo entre a prescrição informatizada e o aparecimento na tela do computador de uso das enfermei-ras; desvio entre a prescrição que aparece na tela e o PAM), enquanto outros desapareceram em maior ou menor grau devido a uma evolução do instrumento (por exemplo, a possibilidade de validar a administração do medicamento antes da hora prevista para a sua administração).

Por que, finalmente, “isso funciona”?Visto de longe, ou seja, a partir de uma posição

médica hierárquica, afastada da atividade diária das enfermeiras, ou a partir do serviço informático, a im-pressão que se tem é que “isso funciona”: o instrumento é utilizado amplamente, apresenta muitas vantagens e poucos problemas.

Mas, visto de perto, isto é, através de um trabalho de observação etnográfica, observa-se uma série de dis-funções como: distribuição do horário que não convém à organização dos cuidados dispensados aos doentes; trata-mentos que não aparecem ou que aparecem tardiamente ou que aparecem duas vezes no mesmo papel; medica-mentos não previstos; impressão do PAM em várias pági-nas, sem reprodução dos títulos de colunas de uma página à outra; erros de transmissão de informação pelo sistema informático (talvez devido a erros de manipulação). As disfunções são desvios entre o funcionamento previsto e o que acontece efetivamente e podem ser explicadas pela desfasagem entre a utilidade (dispor de prescrições em conformidade com a legislação, as prescrições legíveis) e a usabilidade (transmissão efetiva da informação, geração de apoios operacionais - FERREIRA, 1998). Três fatores, então, estão associados a tais defasagens.

- Os desafios inerentes ao trabalho como o fato de administrar os medicamentos em horários oportunos.

- Constrangimentos ligados ao trabalho como a confiabilidade do serviço e a rastreabilidade.

- As condições para a execução das tarefas como o uso pontual do computador no curso de uma ação comum na qual o computador está normalmente pouco presente.

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A pesquisa mostra que os atores defrontam-se com diversos “pequenos” problemas ligados ao uso da ferramenta informática não porque se opõem à mudan-ça ou às novas tecnologias, mas devido às desfasagens concretas entre os recursos oferecidos pelo instrumento e as exigências da atividade no cotidiano.

O fato dos atores se defrontarem com essas disfun-ções não faz com que eles desistam. Eles não rejeitam a ferramenta, mas, ao contrário, “se viram” com ela, se adaptam (memorização das senhas, transformação dos seus hábitos), transformam a sua organização (duplicação oral da informação numérica) e transformam também a ferramenta, ao menos marginalmente. Os atores corrigem e completam o PAM após a impressão (marcação, subli-nhado, correção etc.) e no momento da administração dos medicamentos. Esta atividade de correção é uma atividade de regulação, que consiste em prevenir e recuperar erros, passando pela criação de estratégias de compensação da prescrição informática. Estas estratégias passam pela construção de disposições originais de objetos e de práticas que, combinados e tornados complementares, conduzem a um resultado satisfatório, segundo o ponto de vista dos atores. Eles inventam estratégias de tal forma que a sua ação torna-se, ao mesmo tempo, mais confiável (em termos de qualidade do cuidado) e mais suportável (em termos de equilíbrio pessoal). Equipando o PAM com anotações, eles transformam este objeto intermediário para fazer dele um equipamento da ação. Os atores re-tificam assim os suportes produzidos pelo computador, fazem marcação manual no PAM para dar peso a certas informações e dar um ordenamento preferencial às infor-mações que não corresponde ao ordenamento impresso. Os atores complementam também as ferramentas para um novo trabalho como, por exemplo, aquele que consiste em verificar os papéis impressos para localizar e reparar erros. Esta atividade consiste em controlar os efeitos da opacidade e do difícil controle do instrumento informá-tico. Esta regulação autônoma permite recuperar erros, constituindo-se num novo procedimento do coletivo de trabalho, uma regra da profissão construída pelos agentes para garantir a confiabilidade da execução.

O equipamento dos objetos intermediários (os papéis impressos) e a duplicação da informação são estratégias desenvolvidas pelos atores que consistem em tornar visíveis as ações, em especial quando introduzem um novo elemento, como modificação de uma prescrição. Os médicos desenvolvem estratégias de comunicação com as enfermeiras referentes às modificações introduzidas e as enfermeiras transmitem aos médicos a informação oral-mente e por escrito. Eles compensam o sistema para ter mais segurança ou para permitir aos seus colegas antecipar a ação. Este investimento coletivo para equipar a ação tem ao mesmo tempo relação com seu conhecimento dos inevitáveis riscos de erros e a sua desconfiança em relação à ferramenta e também aos seus colegas. A desconfiança é grande porque, primeiro, os profissionais exprimem um forte sentimento de responsabilidade em relação à ação de cuidado hospitalar e, segundo, é difícil, às vezes, detectar a presença de um erro e lhe atribuir uma causa. A desconfiança leva os profissionais a verificar, antes que

os outros, duas vezes, a imprimir, a anotar e pedir uma confirmação oral a um colega. A enfermeira assegura-se de que não há problemas relacionados à informática antes de confiar naquilo que sai da impressora, enquanto os profissionais se supervisionam reciprocamente.

A questão que se coloca é a da compreensão do que faz “aquilo funcionar”. A pesquisa mostra que face àque-las dificuldades, médicos e enfermeiras criam soluções que explicam o sucesso e os desempenhos da ferramenta. As funcionalidades previstas no instrumento, sozinhas, não são suficientes para tornar o serviço eficiente. O seu controle coloca uma série de problemas que os atores observados resolvem e com os quais, finalmente, “se viram” mais do que denunciam.

ConclusãoO artigo questiona a explicação sobre os desem-

penhos alcançados com os sistemas informáticos em situação de trabalho numa unidade hospitalar. Longe de explicá-los pelas características intrínsecas da ferra-menta, pelo sistema social ou uma combinação destas duas determinações, a explicação a ser dada encontra-se em situação e na atividade comum. Os atores fazem face às dificuldades encontradas. A ferramenta em si não satisfaz às exigências profissionais da situação de trabalho. Diante dessas dificuldades, longe de rejeitar as ferramentas, os atores se empenham em transformá-la, para equipá-la com símbolos e traços, ao mesmo tempo em que se adaptam e adaptam a sua organização de ma-neira a compensar os limites encontrados na utilização das ferramentas.

A pesquisa identifica e caracteriza então uma série de estratégias que os atores desenvolvem para tornar confiável e eficiente a ferramenta de prescrição informa-tizada. O presente artigo destaca particularmente dois conceitos úteis para a análise da eficiência do sistema informático: o de estratégias de compensação, para tratar das formas de regulação que consistem em prevenir e corrigir eventuais erros; e o de equipamento, que qualifica o processo pelo qual os atores, coletivamente, negociam e constroem entidades adicionais (anotações, por exemplo) que, afixadas sobre o objeto (folha de papel, carrinho, computador) que eles transportam, alteram a sua natu-reza e as suas possibilidades de uso num dado espaço de troca profissional. Estas estratégias de compensação e este trabalho de equipamento não são formas de resis-tência à mudança, mas, ao contrário, são investimentos sociotécnicos relativos ao sistema informática feitos por atores, seus usos e a organização a fim de assegurar a confiabilidade do serviço.

Queremos destacar que estas estratégias de compen-sação e trabalho de equipamento são atividades apenas visíveis, sendo pouco provável que elas cheguem, natural-mente, aos projetistas e desenvolvedores de ferramentas. O sistema funciona porque os profissionais inventam práticas individuais e coletivas, adaptam sua organização e as ferramentas às suas necessidades. Eles compensam as dificuldades sem, no entanto, tornar visível todo o investimento individual e coletivo.

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As estratégias de compensação e o trabalho de equipamento são invisíveis também porque os próprios profissionais integram as soluções criadas nas suas roti-nas, tornando-se, então, naturais e logo invisíveis, mesmo aos seus próprios olhos. A observação direta é, então, necessária para torná-las, de novo, visíveis. Resulta que a “ferramenta informática em uso” torna-se uma caixa preta, incluindo aqueles que a conceberam, que não se dão conta das razões do sucesso. Eles não vêem que o instrumento funciona também graças às ações corretivas que os usuários inventam em suas maneiras de trabalhar, em sua organização, em suas regras do trabalho coletivo, mas, também, em relação aos objetos aparentemente sem grande importância. A integração do sistema informático não é uma decorrência simplesmente de ter sido adotado pelo atores, de terem se habituado a conviver com ele e aprendido a utilizá-lo. Corresponde também a um tra-balho pouco visível de transformação dos suportes, das pessoas e das práticas. “Isso funciona” finalmente porque os atores reconstroem um novo tecido de relações entre todos os elementos constitutivos das relações de trabalho num hospital, mas este trabalho de articulação é quase invisível. Pouco a pouco, novas práticas instauram-se e tornam-se tão naturais que ficam invisíveis a partir do exterior e também para os freqüentadores internos assí-duos à unidade hospitalar; só um observador cuidadoso ou recém-chegado que se defronta com a cultura e os arranjos locais singulares de uma situação de trabalho podem ainda revelá-las.

Os projetistas de ferramentas, portanto, são pri-vados de um retorno que seria precioso para o aprimo-ramento das ferramentas propostas. Estando longe dos espaços de uso, os projetistas de instrumentos têm a impressão de que a ferramenta funciona bem, mas es-tão iludidos quanto às razões deste sucesso. A questão, então, é de saber como tornar visíveis as estratégias de compensação desenvolvidas e praticadas pelos usuários e como fazer com que elas sejam levadas em consideração pelos projetistas.

Notas1. Neste ciclo, as primeiras fases correspondem à expressão das necessidades (dos clientes, dos patro-cinadores) e a concepção da solução. Em seguida, na construção do produto, intervém a noção de interações curtas. Vários métodos foram desenvolvidos nesta perspectiva cuja filosofia é expressa no Agile Manifesto (Highsmith, 2002).

2. As estratégias de compensação são uma parte das es-tratégias de utilização como as estratégias de adaptação ou de substituição.

3. No contexto deste artigo, nós definimos o termo “Equi-pamento” como a ação de equipar pessoas ou objetos e também o resultado do processo decorrente desta ação.

4. A visita médica diária dura quatro horas e é feita a cada manhã com o médico-chefe (um professor univer-sitário), os médicos residentes, os médicos estagiários e a enfermeira-chefe.

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Sobre os autores

Dominique VinckDominique Vinck é Professor em Sociologia na Universidade Pierre Mendès France, Grenoble (França). É membro do laboratório PACTE (CNRS/Universidade de Grenoble) da qual dirige o dispositivo transversal “Ciências - socie-dade”. Suas investigações levam sobre a Sociologia das ciências e a inovação, em especial no domínio do micro e nanotecnologias. Tem publicado recentemente: Ingénieurs au quotidien. Ethnographie de l’activité de conception et d’innovation (PUG, Grenoble, 1999) (edição americana, MIT Press, 2003), Pratiques de l’interdisciplinarité (PUG, Grenoble, 2000), Sciences et sociétés. Sociologie du travail scientifique (A.Colin, Paris, 2007) e L’équipement de l’organisation industrielle. Les ERP à l’usage (Hermès, Paris, 2008).

Gloria ZaramaGloria Zarama é assistente de investigação em Sociologia na Universidade Pierre Mendès France, Grenoble (França). É membro do dispositivo “ciências - sociedade” do laboratório PACTO (CNRS/Universidade de Grenoble). Suas investigações levaram sobre a informatização ao hospital e sobre a etnografia das ciências.

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Artigos originais

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

Trabalho com camundongos em pesquisa imunológica. Ligação, emoções e cuidado

DOI: 10.3395/reciis.v2i1.142pt

IntroduçãoO principal objetivo dessa pesquisa em um laborató-

rio de imunologia foi elaborar uma descrição densa sobre a preocupação ética na experiência de trabalho cotidiana de pesquisas, trabalhando com experimentação animal: é alertar para esta ambivalência típica do relacionamento entre cientistas e animais de laboratório ao fazer refe-rência a dados do campo – entrevistas narrativas e notas de observação - coletadas em um grupo de pesquisa de imunologia na Universidade de Salzburg entre 2005 e 2007, como parte de meu projeto de pesquisa: Estruturas Sociais da Ética nas Práticas Científicas das Ciências da Vida, financiado pelo Programa Austríaco de Tecnologia e Pesquisa Avançada (APART 11084) da Academia Aus-

Daniel BischurUniversität Salzburg, [email protected]

ResumoEste ensaio descreve e reflete sobre algumas características típicas da relação entre pesquisadores e animais nos cená-rios de experimentação animal científica. O relacionamento entre os pesquisadores e “seus animais de laboratório” é altamente ambivalente. Por um lado, os animais são reduzidos a algum tipo de ferramenta tecnológica: animais analíticos portadores de dados. Por outro lado, eles certamente permanecem animais naturais, vivos, cuidados e objetos de ligações emocionais. Os cientistas estão desenvolvendo uma determinada distância emocional para com seus animais de laboratório, mas, ainda, mantêm algum tipo de relacionamento emocional com os mesmos. Após uma descrição de rotinas com camundongos em um laboratório de imunologia, irei focar a relevância do corpo vivo do camundongo usado para a ambivalência característica da percepção do animal pelos cientistas.

Palavras-chaveImunologia, experimentação animal, ligação com o animal, corpo, práticas de laboratório

tríaca de Ciências (ÖAW). Um pré-estudo sobre ética na experiência de trabalho cotidiana dos cientistas e estudiosos realçou o dilema que os cientistas têm com a experimentação animal (BISCHUR et al., 2003). Embora eles não hesitem em justificar o “uso” de animais com argumentos utilitários comuns, também comunicam sua preocupação pessoal com a instrumentalização de ani-mais para pesquisa (BISCHUR, 2006). A observação da experimentação animal rapidamente revela a ambivalência da percepção que o cientista tem do animal: redução dos animais a ferramentas de práticas de pesquisa, em algum tipo de objeto científico como sendo portadores de dados. E, ao mesmo tempo, os cientistas ainda estão preocupados com os animais vivos, que se comportam como animais

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naturais comuns (LYNCH, 1988; BIRKE et al., 2007). “É aquela ambigüidade que facilita a inquietação que muitos trabalhadores de laboratórios expressam sobre o uso de animais; para tudo aquilo a padronização e o controle for-mam a base dos experimentos científicos, a variabilidade move-se lentamente e traz consigo um animal muito mais perto do naturalístico. Este animal será mais dificilmente categorizado como uma ferramenta de comércio.” (BIRKE et al., 2007, p.54).

A primeira parte desse ensaio apresentará algumas características comuns da experimentação animal: a racionalidade das práticas de pesquisa biológica e a trans-formação dos animais em ferramentas científicas e as rotinas do distanciamento dos animais. Na segunda parte será focalizado o animal vivo dentro da experimentação científica e como a percepção de seu corpo é capaz de influenciar o pesquisador e fazê-los mudar suas atitudes para com os animais usados.

Rotinas com camundongosOs biólogos constroem um modelo orgânico como a

base experimental da pesquisa. Segundo AMANN (1994, p.25 e 27f) aqueles modelos são construídos em labora-tório para substituir os objetos naturais. O laboratório produz uma “segunda natureza” como ambiente estabi-lizado localmente para fins epistêmicos, o que AMANN (1994, p.29-30) chama de laboratope [Nota do tradutor: laboratope resulta da junção das palavras laboratory (laborató-rio) e biotope (biótopo)]. Este se torna um tipo de “natureza” transformada, que atende os padrões científicos e está sujeita ao controle científico. Os bioquímicos estão tra-balhando com “culturas de células”, que atualmente são materiais vivos nutridos, cultivados e transformados. São essencialmente tanto objetos quanto ferramentas para a pesquisa biológica e vivem nas geladeiras dos laboratórios biológicos. Como são materiais vivos (células, anticor-pos, antígenos, enzimas etc.), fazem parte da natureza. Como são mantidos em cultivo, são produtos culturais. E isto funciona de forma semelhante com os animais de laboratório. Os imunologistas observados neste estudo de caso, por exemplo, estão usando modelos de camundon-gos. Os camundongos são produzidos e transformados em portadores de respostas imunes. Portanto, o rato como um modelo científico funciona como um tipo de representação. Ele representa os processos naturais da resposta imune. A construção dos modelos permite que os cientistas estudem um determinado fenômeno natural sob as condições mais ou menos controláveis do cenário cultural específico do laboratório. Isto permite que eles transformem a natureza por atos, que reduzem a complexidade natural e a variedade pela padronização controlada dos processos estudados. Isto tudo se refere à construção de um modelo orgânico para o fenômeno natural da imuno-resposta. Os camundongos são trans-formados e manipulados para serem um modelo vivo para o teste da imuno-resposta. Os camundongos usados são camundongos de procriação consanguínea especial-mente padronizados para uso científico (RADER, 2004; BIRKE et al., 2007). Em alguns casos os camundongos

são ainda manipulados por tecnologia genética. Aqueles camundongos “transgênicos” geneticamente transforma-dos podem ter perdido a capacidade de produzir alguns tipos de células ou moléculas (knock-out) ou, ao contrário, são capazes de produzir algumas características especiais adicionais, como células fluorescentes, por exemplo (knock-in). Os camundongos são, efetivamente, modelos orgânicos construídos e manipulados para a representa-ção de respostas imunes em mamíferos.

[1] “Nós obteremos uma nova ferramenta”, comenta G. enquanto me explica a razão que eles agora mesmo tentam produzir um novo rato: o pai não tem as células B; a mãe tem receptores Langerhans, que reagem a determinado tratamento pelo qual aquelas células desaparecem.

Este primeiro exemplo é retirado de minhas notas de observação e ilustram a forma com que os cientistas se referem aos animais como ferramentas. Esta declaração tí-pica é semelhante a de um artesão se referindo a sua nova máquina: “Nós obteremos uma nova ferramenta”. Este rato específico será usado pelos cientistas para compreenderem os efeitos de uma imunização em células Langerhans. Além disso, isto lhes dá uma ferramenta para controlar aqueles efeitos de forma mais eficiente, já que eles podem eliminar células específicas. Este é um dos exemplos mais radicais de transformação comuns a camundongos de laboratório em pesquisa imunológica. Geralmente, nós podemos falar que os camundongos são transformados em algum tipo de objeto científico (KNORR CETINA, 1988, p.87; AMANN, 1994, p.24). Se prestarmos mais atenção à situação dos animais na experimentação biológica, precisamos distinguir entre diferentes tipos de objetos nas práticas científicas. “O primeiro pode ser chamado de objeto científico sob investigação ou a “coisa epistêmica”. O segundo pode ser referido quanto às condições de identidade tecnológica, ou os objetos tecnológicos. A discriminação destes dois tipos de coisas é funcional, e não material.” (RHEINBERGER, 1992, p.310). RHEINBERGER (2002, p.24) usa o termo de “coisas epistêmicas” para aquelas coisas das práticas de pesquisa, que são efetivamente o objeto de interesse. Na biologia, aquelas coisas podem ser estruturas orgânicas, processos orgânicos ou funções. A tarefa específica da pesquisa feita pelo grupo de biólogos deste estudo de caso é o desenvolvimento e avaliação de vacinas de DNA, que é um novo sistema de produção de vacinas ao usar apenas partes do DNA dos patógenos. Eles estão interessados na resposta imune em geral, e não nos camundongos. Eles são usados meramente para estabelecer uma resposta imune. Na maioria dos casos de pesquisa biológica, os animais ou plantas usados nos experimentos não são o objeto epistêmico. Eles são, antes, usados para experimentos. Assim, o animal na biologia experimental tem que ser reconhecido como sendo meramente uma ferramenta técnica necessária. Eles precisam dos camundongos como uma ferramenta para induzir uma resposta imune.

A fim de explicar a forma como os animais são usados nas ciências da vida, é útil se virar para as três

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dimensões da transformação característica pela qual os animais “naturais” são tornados “um instrumento da produção científica” (KOHLER, 1993, p.281): um histó-rico que é a história de determinados animais que foram considerados a fonte natural da criação sistemática para uso em laboratório (KOHLER, 1993; 1994; RADER, 1998; 2004; HOLMES, 1993; TOCHER CLAUSE, 1993; BIRKE, 2003) uma das escolhas, que são as esco-lhas racionais de cientistas individuais e comunidades científicas para escolher “as ferramentas certas para o seu trabalho” (TOCHER CLAUSE, 1993; HOLMES, 1993; KOHLER, 1993; BURIAN, 1993; CLARKE & FUJIMURA, 1992; STAR, 1992; PECK GOSSEL, 1992; KEATING et al., 1992); e uma das práticas de laboratório, que transformam o uso destes animais como ferramentas em uma rotina de trabalho ao percebê-los como “animais analíticos” (LYNCH, 1988).

KNORR CETINA (1997, p.10) argumenta que os objetos tecnológicos na prática científica “são, simulta-neamente, coisas a serem usadas e coisas em um processo de transformação: eles passam por processos contínuos de desenvolvimento e investigação”; portanto, eles não de-vem ser reconhecidos como meros instrumentos, pois não são (todo o tempo) acessíveis. Em outras palavras: são o objeto do “mangue da prática” (PICKERING, 1993; 1995). Nós podemos concluir que os camundongos no laboratório biológico são ferramentas da pesquisa mas, ao mesmo tempo, eles são, com certeza, objetos epistêmicos, já que eles são objetos de acomodação e transformação. Neste sentido, KNORR CETINA (1997, p.10) reclama que todos os objetos tecnológicos – incluindo os animais, devem ser analisados como objetos epistêmicos. Eles são especialmente criados para o laboratório (RADER, 1998; 2004) e eles são usados em ações experimentais (LYNCH, 1985). Assim, aqueles animais não são apenas mortos e têm seus órgãos dissolvidos, mas, também, passam por um tipo de reconfiguração (AMMAN 1994, p.31). Desta forma, pode-se concluído que com relação à atitude que os cientistas têm para com seus animais durante a experimentação, eles, certamente, são algum tipo de instrumento. Eles são usados conforme descrito acima, embora eles possam ser objetos de interesse, já que eles permanecem resistentes ao controle dos cientistas e sofrem um tratamento de ajuste através do qual são disciplinados.

Esta percepção dos animais está claramente em desacordo com uma percepção cotidiana dos animais. A percepção dos animais no contexto das práticas de laboratório das ciências da vida em si mesmas herda uma ambivalência básica, que passa por todos os aspectos com relação à experimentação animal; da concepção científica de experimento e práticas de pesquisa efetivas às reflexões éticas e emoções do cientista. Os animais são materiais analíticos e criaturas naturais. “Enquanto o “animal analítico” é uma criatura em um espaço mate-mático generalizado, o “animal natural” é um fenômeno no mundo da vida do senso comum.” (LYNCH, 1988, p.267). Assim, “o animal analítico é ostensivamente um artefato – um produto da intervenção humana.”(LYNCH, 1988, p.269).

Isto pode ser ilustrado ainda por um outro exemplo:

[2] 1 G: Veja você, o prato que você viu hoje, que eu 2 lavei. Ele uma vez foi um rato. Aquilo 3 foi doze ratos, que estão sobre ele ali. 4 Células de doze ratos. Agora, um prato, é tudo

o que resta. 5 E sobre o prato; e as células, eu nem mesmo

posso vê-las. 6 Então, você está concentrado e não pensa de

forma alguma nos doze ratos. 7 D: Sim, sim. 8 G: Agora, hoje eu penso sobre os doze ratos,

como eles estão congelados no 9 congelador fundo e eu tenho que retirá-los de

lá novamente. É a única coisa, 10 que ainda realmente me [interessa] nos camun-

dongos … 11 (nós estamos rindo juntos) 12 G: Eu simplesmente me esqueci de cortar as orelhas. 13 (falado com gargalhadas; incompreensível) 14 D: sim 15 G: É como isso: assim que o animal está morto,

então eu posso 16 trabalhar em paz; 17 depois, eu posso me concentrar no que faço.

Tudo o que resta dos camundongos é um prato com uma fileira de amostras de células retiradas dos mesmos. Sem um microscópio você nem mesmo pode ver as células. Elas aparecem simplesmente como peque-nas quantidades de fluidos. Além disso, aqueles fluidos ainda passam por outra transformação, através da qual as células são contadas e aparecem como um gráfico em uma publicação. Com a ajuda de dispositivos de inscrição (LATOUR et al., 1986, p.45-53) são feitos grafemas nos animais (RHEINBERGER, 2002, p.113-115). E é devido ao único incidente de ter esquecido de cortar as suas orelhas que ela ainda os tem em mente (esta pesquisa investiga a resposta imune na pele e a função das células Langerhans na mesma. Para este fim, esta pesquisadora trata especialmente das orelhas dos ratos. Após matar os camundongos tratados, ela corta suas orelhas a fim de preparar fatias da epiderme dos camundongos e as fotografa como referência para seu trabalho). Isto representa muito bem a forma como os animais estão sendo transformados em meros dados de um processo biológico. “Assim que o animal está mor-to”, o cientista claramente os transforma em um objeto analítico e, então, pode “trabalhar em paz”, “pode se concentrar no que tem que fazer”. Um olhar atento para as últimas linhas de [2], nos faz observar uma ambivalência naquela afirmação. É apenas o sacrifício do animal, o ato de matá-lo que finalmente os transforma em um objeto e, desde que permaneçam animais vivos, trabalhar com eles mantém um certo grau de preocupa-ção e intranqüilidade. A objetivação do animal, em que eles são reduzidos a algum tipo de instrumento, pode ser explicada pelo deslocamento geral do corpo no auto-entendimento das ciências naturais. O ato de se manter é o limite em que o corpo do animal finalmente sai do palco da ciência. Desde que eles sejam animais vivos,

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eles permanecem criaturas naturais também. O sacrifício põe um fim ao seu interesse com a ambivalência de lidar com os animais. O ato de matar, o sacrifício dos animais, marca um momento especial do trabalho científico. O animal vivo foi transformado, agora, em fatias de órgãos e placas de culturas de células. Agora, os cientistas não têm que ficar mais preocupados com animais que se con-torcem e mordem e podem se concentrar nas seguintes tarefas: transformar os corpos em grafemas de imagens de resposta imune – imagens, escalas e gráficos. LYNCH (1988) descreveu a linguagem ritual do sacrifício como uma forma através da qual os cientistas estão lidando com este tipo de transformação, através da qual os “ani-mais naturais” são transformados em objetos analíticos através de sua morte. Matar os camundongos, como os pesquisadores continuaram a me falar, é, em si, um certo tipo de ação rotineira e suas preocupações de ética sobre o ato de matar são, freqüentemente, consideradas, antes, como um problema técnico. É sobre a habilidade de matar dos cientistas.

[3] Ao perguntar a dois cientistas pós-doutorados sobre suas experiências quando mataram camun-dongos pela primeira vez, eles responderam na seguinte seqüência:

1 S: Bem, você, você simplesmente não deve, permanentemente, através daquilo, de alguma forma

2 D: sim 3 S: ‘porque se 4 [1] 5 D: ‘porque, depois, você vai 6 S: sim, exatamente 7 R: sim 8 S: bem, 9 [1] 10 R: Quanto mais, quanto mais você está ansioso

quanto a isso, mais você [porque 11 S: [sim 12 R: ao animal [dor apenas 13 S: [problemas 14 R: se você não está [fazendo isto rapidamente, sim 15 S: [Tem que ser simplesmente [rápido e 16 R: Mas, infelizmente, isso é, também, algo que

você tem que aprender. No início, você não pode fazer isto também.

17 [0.5] 18 R: Naturalmente, isto não é tão agradável para os

animais, mas depois que você praticou por um tempo, e simplesmente conhece tecnicamente a ação,

19 R: aí, você não tem mais problemas com isso, quando você não tem o sentimento de que o animal está sofrendo.

Esta parte de uma entrevista com dois pesquisadores com pós-doutorado no laboratório nos fornece três as-pectos diferentes da forma como eles estão respondendo a sua prática efetiva de matar camundongos. A primeira seqüência – da linha 1 a 9 – contém a sua resposta muito restritiva com relação a seus próprios sentimentos ao fazer isto. Sem dizer isto claramente, eles simplesmente afirmam que você não deve pensar sobre isso e sobre seus

sentimentos enquanto está fazendo isto. Você tem que se distanciar disto. Na seqüência seguinte - da linha 10 a 15 – eles fornecem uma argumentação racional para esta restrição de sentimentos e reflexão, porque isto tem que ocorrer rapidamente a fim de não produzir dor. Você não deve hesitar. Esta explicação para a restrição de senti-mentos e reflexão sobre isto os leva a acentuar o aspecto das habilidades de matar; “isto é algo que você tem que aprender”. E você tem que aprender isto, fazendo. “Uma vez que você tenha pego a ação técnica disto” - os seus problemas pessoais com isto desaparecerão (BIRKE et al., 2007, p.100). De fato, ao observar a matança dos camundongos dentro do laboratório não é tão espetacular assim. Normalmente é até mesmo difícil compreender o momento da matança, porque é rápido e, normalmente, sem comentários. É um ato de alta concentração nas habilidades técnicas. Os cientistas freqüentemente con-tam fofocas ou, algumas vezes, ligam o rádio enquanto estão trabalhando no laboratório. Durante a matança eles normalmente não falam, mas estão concentrados em suas tarefas.

Porém, tem que ser reconhecido que este tipo de referência dos animais como ferramentas não permanece a única forma de referência para os mesmos. A seqüência abaixo de uma entrevista com um aluno PhD mostra como ambos os tipos de percepção animal coexistem:

[4] 1 A: ah, não. Bem, eu os vejo como animais, e não

como objetos 2 A: ahm 3 (2) 4 A: e eu, sim, como eu falei, eu os golpeio e eu os

acho adoráveis, também, e eu os observo. 5 A: Porém, ao mesmo tempo, eu posso– ahm

– manter ou construir uma determinada distân-cia, se for necessário, mas …

Este cientista respondeu a minha pergunta sobre como ela efetivamente se refere a animais durante seu trabalho com eles ao relembrá-la de sua percepção na-tural dos animais: (1) “Não – Eu os vejo como animais…” Após reclamar isto, ela se detém por um breve momento (2-3) antes de explicar mais precisamente como ela efe-tivamente está ligada aos camundongos (4) – “Eles são adoráveis como animais”. Porém, ela reconhece claramente a ambivalência de sua atitude ao falar (5) que ela pode, porém, construir e manter uma determinada distância para com eles ao mesmo tempo. Assim, a percepção dos animais no contexto das práticas de laboratório das ciências de vida em si herda uma ambivalência básica, que atravessa todos os aspectos ligados à experimenta-ção animal; da concepção científica dos experimentos e práticas efetivas de pesquisa às emoções e reflexões éticas dos cientistas. Para usar animais como modelos de pesquisa imunológica, eles assumem uma atitude de distanciamento técnico em relação a seus animais ao “agrupar” sua percepção cotidiana dos animais como animais naturais. Como o termo “agrupar” sublinha, a atitude natural para com os animais permanece acessível durante todo o período em que lidam com os animais, a

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fim de poder reagir corretamente com o animal vivo no caso. A mudança entre distanciamento e identificação emocional com os animais é uma habilidade importante que tem que ser treinada como parte da socialização científica (BIRKE et al., 2007, p.95) “Neste sentido, eles devem lidar com a ambigüidade diariamente.” (BIRKE et al., 2007, p.96).

O animal vivo – Perturbação, emoções e cuidado

O primeiro capítulo forneceu uma descrição de algu-mas estruturas elementares das experimentações animais científicas e uma visão geral do cenário cultural de um la-boratório de imunologia, que são os antecedentes sociais daquelas atividades. O principal tópico é, como vimos, a ambivalência na percepção e no tratamento com animais que são usados para experimentos científicos. Isto é uma ambivalência, que impõe problemas emocionais para os próprios cientistas. Eles têm que lidar com a mudança entre o distanciamento e a ligação com “seus” animais. Eles têm que lidar com a relação ambígua para com “seus” animais, tratando-os como “objetos científicos”, como ferramentas do trabalho científico e – freqüentemente a seguir – cuidar dos “animais naturais” com algum tipo de sentimento emocional. Esta ambigüidade estabelece uma inquietação permanente.

São algumas das observações, abaixo, da forma efeti-va que os cientistas mudam de uma atitude para outra.

[5] A. tem problemas com dois camundongos. Eles estão sem descansar e nervosos; mordem e fogem. Um dos camundongos morre durante a injeção, possivelmente por causa de um ataque cardíaco; A. está perturbado.

Este é um exemplo de um animal que morre “fora do cronograma”. Tal animal é uma perda de dados (LYN-CH, 1985, p.277). O uso de animais é justificado pela produção de dados úteis e conhecimento. Porém, em um exemplo como este, o rato individual, que morreu, é inútil para a pesquisa. Esta perda é sentida de forma diferente pelos cientistas. É uma perda de dados, perda de tempo e trabalho, e uma perda de um ser vivo que o cientista lamentava. Embora possam ocorrer incidentes de tempos em tempos, eles questionam o experimento, assim como as habilidades dos pesquisadores.

Além da perda do animal que morre, nós reconhece-mos o comportamento dos animais durante o tratamento. Eles estão nervosos. Eles estão inquietos e perturbados. Eles se comportam de forma resistente ao tratamento dos cientistas. Eles podem morder, se arrastar ou pular para fora do tubo. Os camundongos, simplesmente, tendem a se comportar como animais naturais ao invés de material científico. Em resumo, podemos reclamar que os animais vivos de laboratório são perspicazes. Simplesmente ao se comportar como naturalmente se comportam, os camundongos demonstram que resistem à forma como estão sendo usados. Além da resistência epistemológica do material específico (PICKERING, p.1995), a pers-

picácia do animal vivo de laboratório quebra as rotinas normais do trabalho científico. Este é um segundo tipo de resistência nas ciências experimentais, que, além de quebrar as rotinas, invoca as emoções dos cientistas. Elas são compartilhadas e estão refletindo sua ligação emocional para com os camundongos.

[6] 1 D: E se você der uma injeção? 2 G: Quando eu injeto neles, é desagradável, bem,

injetar, você sabe... quando eu 3 D: injeto, por exemplo... ou [???] 4 G: para mim é um ato de violência, ah, corporal e

físico. 5 G: [ri com vergonha] 6 G: É realmente um ato de violência, porque – para

mim também. 7 D: mh 8 G: Eu estou perturbado com eles. 9 (1.5) 10 G: Já que eles estão vivos e, então, eles se arras-

tam e depois correm e, depois, você tem que pegá-los e picar seu estômago e eles correm a injeção neles mesmos, bem, as agulhas, que você já prendeu em seu estômago – com seu pé, para fora de novo, e, então, você tem que picá-los de novo e, aí, você já fez isto três vezes, Talvez. Então, você está absolutamente pertur-bado porque [???]; isto os machuca.

11 D: mh 12 G: Ele não luta sem motivo. 13 D: sim 14 G: É cruel.

Aqueles relatos demonstram muito claramente este segundo tipo de resistência na prática de laboratório. Os animais se anunciam como um organismo vivo, com suas próprias vontades, suas próprias finalidades. Consideran-do que o primeiro tipo de resistência não quebra o cenário cultural da prática científica, a perspicácia dos animais quebra, pelo menos, por um breve momento. Esta per-cepção do animal vivo quebra a atenção dos cientistas até um certo nível. Ela muda a atenção de sua ação para o animal como um organismo vivo “já que ele é visto e tratado no mundo da vida cotidiana” (LYNCH, 1988, p.267). Considerando que na prática do laboratório “o animal é tratado como um objeto para o procedimento técnico” (LYNCH, 1988, p.268), o comportamento natural força os cientistas a mudarem, de tempos em tempos, sua percepção do animal – objeto para uma de “animal natural”. LYNCH (1988, p.268) descreve esta percepção de sentimento:

Para um raciocinador de senso comum (e para um cien-tista atuando como um raciocinador de senso comum), assume-se que o animal possui uma base subjetiva de comportamento. O animal é holisticamente visto como um ser vivo, um indivíduo para si mesmo, assim como em si mesmo. A interação com os animais no modo naturalís-tico, tal como entre um animal de estimação e seu dono, é rica com elementos reais e supostos de reciprocidade, compreensão enfática e associação emocional.

Os cientistas não podem se separar integralmente de sua percepção do dia a dia dos animais como sendo

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animais naturais. Os animais de laboratório efetivamen-te relembram, de tempos em tempos, o fato de serem animais naturais ao mostrar a sua perspicácia natural e, com isso, quebrar a percepção científica dos mesmos. No sistema de relevância de sua ação científica, o animal é uma ferramenta, é um animal analítico, um portador de dados matemáticos. Ao mostrar seus próprios interesses vivos, o animal pede um tipo de percepção diferente. Como os cientistas, eles estão mudando para um sistema de relevância do dia a dia, em que o animal tem que ser tratado como animal natural. Isto tem que ser concebido como um tipo de situação dentro das rotinas do trabalho científico, que impõe algum tipo de atenção ética para os cientistas que lidam com animais. Como D. Lawrence WIEDER (1980, p.77) mostrou, nós podemos observar que os cientistas precisam se referir aos animais com quem trabalham tanto como objetos ou ferramentas e como indivíduos parceiros. “O contato longo e elaborado entre o investigador e o chipanzé aprofunda a experiência do investigador e do chipanzé como objeto. […] Os tra-balhadores no laboratório de pesquisa comportamental em chipanzés experimentam, assim, uma tensão aberta entre as tendências mundiais de vida e comportamenta-lismo..” (WIEDER, p.1980). No caso dos camundongos de laboratório em biologia experimental, a tensão entre as percepções individualizadas dos camundongos como “organismos animados” e como um objeto materializado é, também, parte da cultura do laboratório. Os camun-dongos estão sendo unificados biologicamente como uma linhagem de procriação consanguínea. Eles são anonimizados a grupos e números, já que normalmente não são nomeados como animais de estimação (BIRKE, 2003, p.215). Porém, os cientistas ainda os reconhecem como indivíduos também, já que eles estão cuidando deles por diversas semanas ou meses. Eles simplesmente não conseguem ter um tipo de relacionamento com eles, se eles trabalharem com os mesmos desde o início de um experimento. Embora eles, rotineiramente, estejam “agrupando” a sua associação animal durante o trabalho com eles, isto ainda está presente e pode ser facilmente efetivado, se necessário, enquanto os cientistas materiali-zam os animais e estejam se distanciando durante as suas práticas científicas com os animais. Este relacionamento ambíguo para com os animais de laboratório permanece como elemento latente, mas permanentemente presente de perturbação, como relatado, por exemplo, por BIRKE (2003, p.215f): eles olham para você; “eles se tornam um pouco como animais muito reais”.

A percepção dos animais no laboratório começa a mudar assim que você está interessado nas práticas reais com animais.

“Outros entendimentos sobre animais, raramente comunicados nos relatos dos métodos de laboratório, referiram-se a ratos como criaturas vivas holísticas. Estes entendimentos foram comunicados informalmente, e não foram validados através de testes rigorosos. Eles faziam parte da vida do dia-a-dia do laboratório, compreendendo diversos tipos de know-how tácitos, conhecimento de recei-ta e destreza experimental que permitiu aos profissionais liberais lidarem com as contingências da “manipulação dos ratos de laboratório”. (LYNCH, 1988, p.266-267).

O trabalho de laboratório com animais demanda uma via de mão dupla quanto à percepção e tratamento dos mesmos. Embora a tarefa científica do experimento com animais exija um distanciamento do animal, resul-tando em uma atitude materializadora e analítica para com os mesmos, o seu uso como uma ferramenta para produção de dados em processos biológicos, o animal vivo no laboratório demanda a sua percepção como “animal natural”. O que efetivamente está em risco aqui é o momento da resistência inerente na mera apresenta-ção do vivo dentro do laboratório. Pelo período em que os cientistas são confrontados com a percepção de um animal vivo, não é simplesmente possível desconsiderar a percepção “natural” dos animais juntos. A existência da vida em si apresenta algum tipo de resistência para a apropriação científica de animais. A resistência da cria-tura se anuncia como um tipo de perspicácia dos animais individuais usados como modelos e quebra a relevância científica. Os camundongos se mostraram como animais vivos. Eles podem morder, se arrastar ou pular do tubo. Os camundongos tendem simplesmente a se comportar como animais naturais ao invés de materiais científicos. Além deste tipo de quebra de rotina, o comportamento dos animais invoca as emoções dos cientistas. Eles estão perturbados e estão refletindo a sua ligação emocional para com os camundongos. Os animais se anunciam como organismos vivos com a sua própria vontade, seus próprios fins. Enquanto o primeiro tipo de resistência não quebra o cenário cultural da prática científica, a perturbação dos animais o faz, pelo menos por um cur-to período. Isto desvia a atenção dos cientistas de suas tarefas científicas para o animal como um organismo vivo “já que ele é visto e trabalhado no mundo da vida do dia-a-dia” (LYNCH, 1988, p.267). Novamente, nós consideramos mais atentamente as situações problemá-ticas do trabalho em laboratório. Na seqüência abaixo dois alunos do mestrado no laboratório estão ocupados em injetar os camundongos.

[7] Dois alunos do mestrado têm problemas com os camundongos que eles têm que injetar. Os camundongos estavam mais resistentes do que o normal. Um deles está pegando e segurando um camundongo, enquanto o outro prepara a injeção e injeta no camundongo. Após um tempo, um dos camundongos tenta fugir. A. o segura com firmeza.

1 A. “Sinto muito por isto”. 2 L. “Você está falando comigo ou com o camun-

dongo?” 3 A. “Com o camundongo.” 4 L. “Ah, que isso!”

Nós podemos observar claramente aqui como os pesquisadores têm que lidar com o comportamento dos camundongos. Os camundongos estão tentando fugir, eles se movem lentamente e, algumas vezes, até mesmo podem morder. Em resumo, os camundongos de labora-tório ainda se comportam como “camundongos naturais” e, com isso, impõem uma situação em que os cientistas

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têm que lidar com eles como “camundongos naturais”. A. reage à “situação ao começar a falar com o camundongo e expressa seus sentimentos por ter sido rude com ele, enquanto L. relembra sua colega de que deve se recompor e tomar novamente uma atitude científica– “Ah, que isso!”. É a percepção dos corpos dos camundongos como seres vivos, animados, que efetivamente está interceptando o trabalho dos cientistas no laboratório com os animais. Ao reconhecer a individualidade do animal como um corpo com seu espírito, sua vontade de viver, os cien-tistas recuam – pelo menos, por um momento – e têm que responder ao animal como um “animal natural”. O sentimento enfático com o sofrimento dos animais durante a experimentação animal se baseia em uma co-afeição básica do mesmo. A forma original de compaixão pode ser entendida como sendo atingido (“Getroffensein”) (WALDENFELS, 2006, p.289). Neste sentido, a empatia com a dor e o sofrimento dos animais é originalmente uma percepção corporal disto, sofrendo literalmente com o mesmo. A apreensão sensual de um corpo é o ponto de partida da constituição da intersubjetividade como o pré-oferecimento de um ser mútuo para outro. Isto co-constitui o mundo (HUSSERL, 1995; BISCHUR, 2003, p.108-115; WIEDER, 1980, p.78-81). Como WIEDER (1980, p.81) enfatiza, “aquilo que é dado corporalmente apresenta para nós um mundo ao redor subjetivamente carregado, intersubjetivo.” Embora as análises de Hus-serl sobre a constituição da intersubjetividade estejam interessadas na percepção apresentacional de outros humano como sendo nossos co-constituintes do mundo, a percepção apresentacional de (pelo menos) os animais mais altos como não sendo corpos meramente físicos, mas corpos animados, dá origem a uma percepção original das demandas éticas fundamentais para animais também. É a percepção do corpo vivo dos animais que, efetivamente, levanta sentimentos enfáticos para animais de laboratório durante as práticas científicas.

Os cientistas, candidamente, e até mesmo avidamente, discutem estas práticas nas conversas casuais, embora eles normalmente apresentem as histórias como um assunto secundário ligeiramente bem humorado das atividades do laboratório. Para os meus objetivos, po-rém, as histórias revelam uma orientação enfática aos animais de laboratório como criaturas vivas, holísticas com necessidades e reações a serem monitoradas (LYN-CH, 1988, p.280).

Com base neste tipo de sentimentos enfáticos com os animais usados, os cientistas obtêm uma forma natural de cuidar dos animais com quem estão efetiva-mente trabalhando. O exemplo seguinte – e último – de minhas notas de campo ilustra este tipo de cuidados rotineiros.

[8] G. narcotiza um rato e o coloca, ainda vivo, em um microscópio fluorescente e fotografa a ore-lha. As fotografias dos diferentes momentos do tratamento fornecem uma série de dados que representam a condição das células Langerhans durante todo o tratamento.

Enquanto tira fotografia com diferentes focos, anota os dados exatos dos focos em uma folha.

Depois, retira o rato do microscópio e o segura em sua mão esquerda fazendo um carinho, en-quanto segura o mouse do computador em sua mão direita para salvar as fotografias e reno-meá-las de acordo com as notas na folha. Seu motivo para segurar e acariciar o camundongo é aquecê-lo. O problema, ela me disse, é que os camundongos narcotizados estão perdendo temperatura muito rapidamente.

O cuidado pelo animal durante aquelas práticas com os camundongos não decorre de uma reflexão ética sobre a situação. O cientista, aqui, não recuou nem mesmo interrompeu, de forma alguma, as atividades no momento exato em que o cuidado com o animal é necessário; simplesmente está cuidado do camundongo enquanto continua sua tarefa científica; segurando o camundongo em uma das mãos, acariciando-o e usando a outra mão para trabalhar no computador para nomear as fotografias corretamente e salvá-las no computador. Parece importante realçar a simultaneidade das duas atitudes ambivalentes durante as práticas científicas em que os cientistas estão cuidando de seus animais, porém, continuando suas tarefas científicas.

ConclusãoA relação ser humano-animal nas ciências experi-

mentais herdam uma ambivalência básica. Por um lado, os animais são necessariamente reduzidos a objetos, fer-ramentas do empreendimento científico. Os experimentos animais transformam os animais em objetos científicos através de uma cadeia de práticas de padronização. Os ca-mundongos são criados industrialmente e, pelo presente, purificados em linhagens de procriações consanguíneas padronizadas. Eles são anunciados e vendidos como mer-cadorias. Eles são tratados e transformados ainda para as necessidades especiais das tarefas de pesquisa de um laboratório. Os cientistas os observam e tratam para seus fins científicos diversas semanas até serem sacrificados, dissecados para preparar células e órgãos para medir os sinais que indicam o progresso do tratamento. Tudo o que resta no fim são escalas e gráficos como indicadores – no meu caso – dos efeitos da imunização. Em resumo, as práticas científicas reduzem a individualidade e o corpo dos animais até que caiam no esquecimento. Por outro lado, observar os biólogos trabalhando com camundongos demonstra, ao mesmo tempo, um cenário contrastante. Nós os observamos cuidando dos camundongos, falando com eles, fazendo carinho e achando-os bonitos. Nós podemos reconhecer esta ligação emocional a “seus” animais. Eles demonstram algum grau de pena e pesar por eles. Como podemos explicar esta ambigüidade da percepção e relação para os animais com o contexto situacional das práticas de laboratório cotidianas? Para responder àquela pergunta me debrucei sobre o papel dos corpos e a percepção corporal. A percepção do animal como uma criatura natural, viva, holística tem sua base na percepção do corpo dos animais como sendo um corpo animado. De acordo com a fenomenologia, o corpo tem que ser entendido como uma unidade do corpo corporal

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e da mente/alma. Se quisermos compreender a existência, precisamos reconhecer a unidade da intencionalidade e existência física (HUSSERL, 1989; WALDENFELS, 2000; MERLEAU-PONTY, 2002). Além disso, os cien-tistas enfatizaram para mim que trabalhar com animais é mais um problema emocional pessoal do que um discurso racional ético. É claro que ambos são relevantes e de inte-resse. Porém, o ônus individual e pessoal para os cientistas é lidar com as suas emoções envolvidas. E, novamente, é a percepção dos corpos vivos dos camundongos que origina as atitudes emocionais, inclusive um certo tipo de empatia. É a imagem do corpo do camundongo vivo que invoca a mudança para uma percepção dos animais como “animais naturais”. Simon WILLIAMS (2001, p.61) explica que a “imagem do corpo é crucial para a forma como pensamos e sentimos, experimentamos e expressamos nossas emoções”.

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Sobre o autor

Daniel BischurDaniel Bischur possui diploma de Doutorado em Sociologia da Universidade de Salzburg e um Mestrado (M.A.) em Filosofia Política da Universidade de York. Ele detém uma concessão do APART da Academia Austríaca de Ciências (ÖAW) para um estudo empírico sobre as estruturas sociais da ética nas práticas científicas das ciências da vida na Universidade de Salzburg.

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Artigos originais

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

Estudo de métodos mistos de diagnóstico de câncer de pulmão que

afetam a qualidade de vidaDOI: 10.3395/reciis.v2i1.128pt

ResumoOs objetivos deste estudo eram avaliar a qualidade de vida (QV) em pacientes com um câncer de pulmão inoperável recentemente diagnosticado e comparar os números da QV com os resultados de um estudo de entrevista qualitativa. Foi usado um projeto de triangulação simultânea descritiva dos métodos mistos para alcançar objetivos específicos. Vinte e três pacientes participaram do projeto. A QV foi avaliada através de dois questionários; Organização Européia para Pesquisa e Tratamento de Câncer, EORTC-C30, e o módulo complementar específico para câncer de pulmão, o QOL-LC-13. Os dados foram analisados de acordo com os procedimentos recomendados pela EORTC. Estes resultados foram comparados com os resultados de um estudo de entrevista qualitativa. Todos os questionários EORTC-QLQ-C30 + LC-13 foram preenchidos, já que havia apenas 23 entrevistados, e foram calculados os valores médios ao nível individual. A QV foi classificada pelo paciente com uma pontuação média de 4.5. Nas entrevistas de QV esta foi expressa como vida normal. Parece, com relação à medição de escalas funcionais e QV global, que existem resultados semelhantes usando um questionário ou uma entrevista qualitativa. Conseqüentemente, a entrevista qualitativa proporcionou maior multiplicidade e conhecimento mais profundo sobre os diversos domínios. Os resultados desta comparação enfatizam a importância de se identificar a QV a partir das perspectivas destes pacientes.

Palavras-chaveCâncer de pulmão, qualidade de vida, situação da vida, EORTC QLQ C30 - LC13, métodos mistos

IntroduçãoO câncer de pulmão é a doença maligna mais

comum no mundo e é a causa de câncer mais comum relacionada à morte de homens e parece que os núme-ros estão aumentando nas mulheres (OMS, 2003). Na Suécia, os relatórios são bastante semelhantes, mas a

doença está diminuindo em homens e está aumentando em mulheres (THE NATIONAL BOARD OF HEALTH AND WELFARE, 2007). Os fatores de risco para câncer de pulmão são o fumo, asbestos, gás radioativo (Ex.: radônio e poluição do ar). O câncer de pulmão é uma doença com muitos sintomas biomédicos como dispnéia,

Carina BerteröFaculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Linköping, Linköping, Suécia [email protected]

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hemoptise, dor e anorexia (COLLEY, 2000), e sintomas psicológicos (CARLSEN et al., 2005), com poucas chances de cura, especialmente com relação ao câncer de pulmão inoperável. O tratamento destes pacientes se destina a aliviar os sintomas sistêmicos ou locais, incluindo tratamento como radioterapia, quimioterapia e terapia sistêmica paliativa. Embora o tratamento tenha melhorado, o prognóstico permanece deficiente (NA-PIER et al., 2002), e a abordagem do tratamento para estes pacientes é principalmente paliativa.

Qualidade de vidaA QV é uma consideração principal neste contexto,

e uma avaliação adequada e a manutenção da QV são necessárias (FALLOWFIELD et al., 2005; KRISHNA-SAMY, 2007). A QV foi estreitamente associada à pre-valência de sintomas e à intensidade em pacientes com câncer de pulmão (MONTAZERI et al., 2001), e o ônus dos sintomas neste grupo de pacientes tem um grande impacto sobre o bem-estar psicossocial (CARLSEN et al., 2005).

Apesar destes problemas, os pacientes com câncer de pulmão têm preocupações particulares sobre assun-tos de família e o futuro, sendo, portanto, a experiência em inconsistências na assistência é percebida e apoiada (HILL et al., 2003; KRISHNASAMY et al., 2001; BER-TERÖ et al., 2007).

A Qualidade de Vida Relacionada à Saúde (QVRL) é freqüentemente usada como sinônimo de condição de saúde subjetiva e definida como o impacto subjetivo da doença, impedimento e efeitos do tratamento (SPILKER et al., 1996; CARR et al., 2001). O conceito de QV foi restringido na pesquisa que estuda as populações médicas para avaliar uma série de domínios pré-definidos. A Orga-nização Européia para Pesquisa e Tratamento de câncer (EORTC) operacionalizou a QVRL em termos de doença de câncer de estado funcional, sintomas específicos de tratamento e câncer, distúrbio psicológico, interação social, impacto financeiro e QV geral (AARONSON et al.,1993; 1996).

Este estudo teve por objetivo explorar e descrever a QV de pacientes com câncer de pulmão inoperável recém-diagnosticado. Os objetivos específicos eram a exploração qualitativa e quantitativa das classificações da QV a partir das medições de QVRL com os resultados de um estudo de entrevista qualitativa, considerando que os pacientes falaram livremente sobre a sua QV. Então, a pergunta da pesquisa é: as opiniões dos participantes das entrevistas e os instrumentos padronizados convergem ou se afastam?

MétodoUm projeto de triangulação simultânea descritiva

do método misto, conforme descrito por CRESWELL (2003), foi usado para alcançar os objetivos específicos. Em medidas quantitativas somente um aspecto de um fenômeno complexo, tal como a QV, pode ser explicado, enquanto uma combinação de métodos quantitativos

e qualitativos contribui para uma compreensão mais abrangente dos resultados do estudo (CRESWELL et al., 2004). O grupo de estudo de QV da EORTC pode já ter coletado dados qualitativos para formar a base para o seu questionário. Mas, o seu foco foi nos sintomas ou nas medições de qualidade de vida e saúde? Poderia alguma coisa ser encontrada para fornecer um quadro mais abrangente, ou não?

ParticipantesOs participantes foram pessoas com câncer de

pulmão inoperável de dois hospitais diferentes no sul da Suécia. Os critérios de seleção foram (a) ter mais de 18 anos de idade; (b) ter sido diagnosticado um câncer de pulmão inoperável, e uma averigüação para saber se o paciente desejou participar do estudo de seis a sete semanas depois do diagnóstico; (c) o paciente deve estar em tratamento paliativo; quimioterapia e/ou terapia de radiação (d) e estar disposto a compartilhar sua experiência conosco. A amostragem utilizada foi propositadamente escolhida selecionando-se pacientes com base em sua experiência particular com a finalidade de compartilhar aquele conhecimento (KVALE, 1996). Foram abordadas 23 pessoas no total para participar do estudo e todos aceitaram participar.

Procedimento O Comitê de Ética na Pesquisa (Reg.n° 02-191)

aprovou a realização da pesquisa. Uma enquete sobre a participação em um estudo de entrevista e um questionário foram entregues aos pacientes pelas enfermeiras junto com o médico responsável na recepção dos hospitais. Foram fornecidas informações orais e escritas e os pacientes foram informados sobre a confidencialidade, forma de seleção e o objetivo do estudo. Foi exigido um termo de consenti-mento informado assinado antes da participação.

Foram coletados dados de agosto de 2004 a abril de 2005. Os respondentes, diagnosticados com um câncer de pulmão inoperável seis a sete semanas antes, foram entrevistados e responderam alguns questionários sobre QV e sintomas depois de participar da entrevista qualitativa. Em alguns casos o respondente manteve o questionário durante alguns dias e o enviou de volta em um envelope pré-endereçado e pré-pago.

Os dados qualitativos foram coletados por meio de entrevistas. Foi usada uma abordagem de guia de entrevista geral (KVALE, 1996). A pergunta-guia feita a cada informante foi: Descreva sua experiência ao ter sido diagnosticado com câncer de pulmão e como isto afeta a sua situação de vida e qualidade de vida. Os tópicos relacionados à pergunta-guia foram levantados espon-taneamente pelo entrevistador ou pelo entrevistado e foram feitas perguntas investigativas para dar ao paciente oportunidade de elaborar e dar exemplos de declarações mais gerais. As entrevistas foram realizadas em um local conveniente para os pacientes. As entrevistas duraram entre 40 e 100 minutos, foram gravadas e transcritas literalmente. Imediatamente depois, os informantes também anotaram em uma escala, classificada de 1 a

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10, como eles avaliavam a sua qualidade de vida naquele momento.

Para medir a QV, foram usados o questionário prin-cipal da EORTC, o Questionário de Qualidade de Vida (QLQ-C30) e o módulo complementar específico para câncer de pulmão, o QOL-LC-13. O EORTC-QLQ-30 compreendeu 30 itens e o LC-13, 13 itens (AARONSON et al., 1993; AARONSON et al., 1996).

As subescalas do EORTC-QOLQ-30 foram desen-volvidos para avaliar os diversos aspectos da QV. Estes são os estados funcionais identificados em cinco com-ponentes: funcionamento físico, da função, emocional, cognitivo e social. As pontuações mais altas nas escalas funcionais representam um nível melhor de funciona-mento. A QV global e os sintomas dos pacientes foram identificados em nove ítens: fadiga, náusea e vômito, dor, dispnéia, insônia, perda de apetite, constipação, diarréia e situação financeira. As pontuações mais altas na escala de sintomas representam sintomas piores. A maioria dos itens (1 a 28) têm a pontuação de 1 (de forma alguma) a 4 (muito). As exceções são aqueles ítens que contribuem para a situação da saúde global/QV (29-30), que são pon-tuados de 1 (muito ruim) a 7 (excelente) (AARONSON et al., 1993; BERGMAN et al., 1994). O EORTC QLQ-C30 +LC30 foram considerados ferramentas válidas e úteis (AARONSON et al., 1993; FAYERS et al., 2001; MONTAZERI et al., 1988).

A confiabilidade foi avaliada pela versão sueca do EORTC QLQ-30, tanto em pessoas saudáveis, como em uma variedade de grupos de pacientes com câncer, com o alfa de Cronbach variando de 0,55 a 0,87 (MICHEL-SON et al., 2000).

Análise qualitativa Foi usada a abordagem hermenêutica fenomenoló-

gica de COHEN et al., (2000) e MOUSTAKAS (1994) para a análise. Esta forma de interpretação são descrições que, de certa forma, capturam e medeiam a experiência vivida dos informantes. A análise é executada em cinco etapas: (1) Cada transcrição de entrevista foi lida e re-lida e foram concebidas unidades de significado. As unidades de significado são as características encontradas dos fe-nômenos em estudo. Estas leituras e re-leituras têm por objetivo fazer uma primeira interpretação que levará o processo de análise adiante. (2) Cada entrevista foi lida e re-lida e foram sublinhados dados referentes à “experiên-cia vivida” quando a pessoa foi diagnosticada com câncer de pulmão. Com o objetivo de compreender a integridade dos dados, assim como as partes, as transcrições foram analisadas a fim de reconhecer padrões. (3) As unidades de significado para cada informante foram descritas através de declarações. Todas as unidades de significado identificadas como equivalentes foram agrupadas em um tema. Uma descrição e uma interpretação de cada tema são fornecidas por escrito, tendo por objetivo esclarecer e descrever o significado do tema com base nas unidades de significado. Isto foi feito em cada entrevista individual repetidamente. Foram descritas as declarações sob cada tema em descrições textuais individuais da experiência.

(4) A partir da descrição textual individual, foi desenvolvida uma descrição textual – estrutural, a as-sim chamada descrição composta, para cada tema. Esta descreve o significado do tema, representando o grupo como um todo.

(5) A partir da descrição composta de cada tema, a essência foi interpretada, fornecendo o significado da experiência: Qualidade de Vida. A essência foi represen-tativa do grupo como um todo.

Análise estatísticaDe acordo com os procedimentos recomendados

pela EORTC, a pontuação foi convertida linearmente a uma escala variando de 0 a 100, para cada paciente. Para as escalas situação da saúde global e funcional/QV, as pontuações mais altas representam um nível melhor de funcionamento. Para as escalas de sintoma, as pontuações mais altas representam os sintomas piores (FAYERS et al., 2001). Para apresentar a contagem individual, já que existem apenas 23 respondentes, foram calculados os valores médios individualmente.

ResultadosA demografia e as características do grupo total de

23 pacientes são apresentadas na Tabela 1. Os respon-dentes compreenderam 12 pessoas do sexo masculino e 11 pessoas do sexo feminino, com idades entre 36 e 86 (mediana de 67). Dos 23 respondentes, 17 eram casados e 20 tinham filhos. Dos 23 respondentes, 14 tinham idade avançada e já estavam aposentados.

Resultados qualitativos A análise e interpretação das entrevistas transcritas

identificaram seis temas: experiência da incerteza, ex-periência da esperança, rede como apoio, pensamentos mórbidos, sentimento de vergonha e culpa e reações do parente mais próximos. A estrutura da essência foi cons-truída pelo inter-relacionamento dos temas e se tornou Vivendo como sempre

Experiência da incertezaFoi difícil lidar com a experiência da incerteza, de

acordo com as declarações dos pacientes. Havia muitas dúvidas com relação ao diagnóstico, tratamento, re-sultado do tratamento que ocupavam os pensamentos dos informantes e traziam incerteza. Os informantes passaram pela experiência de que foi gasto muito tempo na espera; espera para saber e vivendo com medo e sem saber se há cura, ou não. A incerteza foi fortalecida. Então, há o conhecimento com mais preocupações e incertezas e, novamente, mais tempo esperando - para o tratamento e seu resultado. Esta incerteza causa an-siedade nos pacientes, que diminui a sua experiência de qualidade de vida.

Experiência de esperançaReceber um diagnóstico de câncer de pulmão ino-

perável é algo chocante, mas há esperança. Deve haver

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um tratamento ou uma cura, já que os pacientes querem ficar vivos. A vida continuará se eles, como pacientes, conseguirem suportar o tratamento e todos os seus efei-tos colaterais, e a esperança será fortalecida. Às vezes os informantes padecem de sintomas / efeitos colaterais do tratamento, considerados por eles piores do que a própria doença. Se eles administrarem o tratamento, eles derrotarão a doença. Às vezes há uma incerteza sobre o resultado, mas há esperança. O tratamento prolongará as suas vidas. A esperança também é sobre ter uma vida agradável. Os pacientes expressaram desejos sobre uma boa qualidade de vida; planejando diferentes atividades e esperando que eles terão tempo para desfrutar a vida e que não ficarão perturbados.

Rede como apoio Ao receber um diagnóstico de câncer, é importan-

te sentir apoio; falar sobre a situação em que estão e compartilhar sentimentos que surgem. Todo o apoio é valioso mas o apoio recebido pelo parente próximo é significativamente importante para os pacientes. Quase todos os pacientes sentiram este apoio, apoio emocional, assim como o apoio prático em casa e durante outras atividades. Alguns dos pacientes foram sozinhos pegar seu diagnóstico e ao tratamento ou às visitas de acom-panhamento, mas eles expressaram que era importante informar ao seu parente mais próximo, mesmo se fosse difícil. Porém, às vezes os pacientes guardavam as más notícias para si mesmos, pretendendo proteger o parente próximo, ou esperando o momento certo para contar ao parente próximo. Os amigos foram apreciados como uma rede, mas os informantes não lhes contaram as coisas ruins, ao invés disso, eles colocaram uma máscara de confiança e coragem.

Os profissionais da assistência médica, e especial-mente as enfermeiras, foram consideradas um fator importante que influencia como o período da doença

e do tratamento foi percebido. As enfermeiras estavam acessíveis para conversas e apoio: em todas as visitas ou através de contato por telefone. As enfermeiras também estavam lá como um apoio para o parente próximo e isto foi apreciado e altamente estimado pelos pacientes. Os pacientes sentiam que os médicos eram qualificados e tinham muito conhecimento e experiência sobre a doen-ça, e eles se sentiam seguros e confiantes sabendo isso: isto foi sentido como um tipo de apoio.

Pensamentos mórbidosQuando os informantes recebem seu diagnóstico, o

seu primeiro pensamento é: um diagnóstico de câncer é igual à morte. Eles têm algumas dificuldades para absor-ver a informação e, depois de um tempo, dependendo da personalidade e do apoio, eles começam a agir. Isto pode ocorrer ao expressar seu medo da morte em palavras; falar com um parente próximo sobre a morte e sobre morrer e falar sobre coisas práticas, tais como o seu funeral. Outros realmente têm pensamentos mórbidos, mas não querem exprimir estes pensamentos; ao invés disso, eles pensam que há bastante tempo para concluir as suas vidas. Os pacientes declararam que eles não estavam prontos para deixar a vida ainda. Eles queriam fazer parte no desen-volvimento da família, relações com amigos e ser uma parte da vida normal. Morrer não era assustador, mas havia um sentimento triste de deixar as pessoas próximas e queridas. Havia também preocupações sobre se tornar um fardo para seu parente mais próximo, caso eles não conseguissem continuar independentes até a morte.

Sentimento de vergonha e culpa Os pacientes sentiram que o diagnóstico de câncer

de pulmão estava associado, na sociedade, na assistência médica e em termos das pessoas ao redor deles, à vergo-nha e culpa. Sentiram que havia uma atitude negativa relacionada ao câncer de pulmão. Falar com amigos ou

Tabela 1 - Características sócio-demográficas do grupo de pacientes

Variável N=23

Idade (anos) 36-64 9 65-86.1 14

Média 64.78

GêneroFeminino 11Masculino 12

Dados sócio-demográficosCasado 17Solteiro/divorciado 4Viúvo/viúva 2

Filhos 20Sem filhos 3

Empregado, tempo integral ou meio período 9 Aposentado 14

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um parente sobre ter um diagnóstico de câncer poderia ser permitido, mas um diagnóstico de câncer de pulmão era outra coisa. Alguns dos informantes tinham sido fumantes e outros viviam por muitos anos com um fu-mante. Havia sentimentos de culpa de que eles provoca-ram a sua doença e que eles deviam culpar a si mesmos. Outros estavam se culpando por não ter buscado ajuda; esperando e tendo esperanças de que os seus sintomas desapareceriam. Havia um sentimento forte de vergonha associado com este diagnóstico de câncer de pulmão e, às vezes, os pacientes pensavam que até o parente próximo seria estigmatizado se as pessoas ao redor soubessem so-bre o diagnóstico de câncer de pulmão. Era difícil manter relacionamento com os amigos, já que eles não queriam que eles entendessem que tipo de diagnóstico de câncer eles tiveram, e eles tentaram cobrir ocultar seus sintomas e outras mudanças corporais.

As atividades sociais dos informantes foram limita-das devido a estes sentimentos de vergonha e culpa.

Reações dos parentes mais próximos Os pacientes sentiram que seus parentes mais pró-

ximos eram significativamente importantes com relação ao apoio, mas, ao mesmo tempo, eles são muito sensíveis quanto às reações dos parentes mais próximos. Eles se preocupam sobre como seus filhos ou os parentes mais idosos irão reagir e lidar com isso, não só durante este período da doença, mas também depois. Os informantes suportam isto de uma forma perturbadora emocional-mente.

Às vezes o parente próximo reagiu de uma forma mais intensa e dolorosa do que os próprios pacientes, e isto foi considerado perturbador pelos pacientes. Houve continuamente uma ação de equilíbrio executada pelos pacientes para proteger seu parente mais próximo, para que eles pudessem conseguir atravessar todo o período da doença e, também, após os pacientes terem falecido. Eles tiveram que equilibrar junto com as suas próprias necessidades de apoio, assim eles também conseguiriam. O foco dos pacientes estava nas preocupações e interesses dos parentes mais próximos e que existe uma necessidade de apóia-los.

Vivendo como sempre Embora houvesse muitos sentimentos/ experiências

diferentes, havia uma mensagem clara: nós queremos viver como sempre vivemos. Os pacientes são muito omitidos na sua nova situação vulnerável; lançados entre a esperança e o desespero. Há sentimentos de vergonha e culpa e eles têm uma grande necessidade de apoio, enquanto, ao mesmo tempo, tentam apoiar seu parente mais próximo. Embora o parente próximo e a família sejam significativamente importantes para a qualidade de vida do paciente, eles também são a causa das preocupações e esforços para ficarem independentes e fortes. Há uma interação entre os pacientes e seus parentes mais próximos; eles sabem que há tristeza e angústia emocional, mas eles estão evitando o assunto. Todos eles agem naturalmente, levando uma vida normal,

fazendo suas atividades cotidianas. Era difícil admitir para eles próprios que eles estavam seriamente doentes e que precisavam pedir ajuda e apoio. A manutenção da independência e da integridade eram a estrela-guia para os informantes, já que sentiam que isto esta fortemente ligado a sua qualidade de vida. Era importante que os pacientes pudessem manter a sua condição, sendo tra-tados como a pessoa que eles sempre foram e que eles sentissem que eles tiveram algo para realizar na vida. Eles queriam ser estimados e queridos como a pessoa que eram e são, assumindo responsabilidade pela sua vida diária, sendo independentes e tendo a capacidade de agir. Tudo deveria ser como sempre; eles estavam vivendo como sempre viveram. Era extremamente importante que durante o período de tratamento não houvesse qualquer efeito colateral que pudesse, de alguma maneira, afetar a sua independência ou fornecer alguns sinais a amigos ou parente mais próximo de que tudo não estava normal. Viver naturalmente e agir normalmente davam aos pa-cientes um certo controle e sentimento de segurança que fortalecia a sua experiência de qualidade de vida.

Os resultados da estimativa da escalaDepois das entrevistas, foi pedido que os pacientes

calculassem a sua qualidade de vida naquele determi-nado momento, em uma escala: de 1 a 10. O resultado demonstra que eles estimaram a sua qualidade de vida neste momento como muito boa, com um valor médio de 6.55 e uma mediana de 7.0. As estimativas foram bas-tante semelhantes entre informantes do sexo masculino e informantes do sexo feminino.

Resultados quantitativos – Pontuação dos sintomas

Os pacientes marcaram no EORTC-QLQ-C30, a pontuação mais alta no sintoma de fadiga com uma pontuação média de 5,4, seguida por dor, com 2,5, e náusea e dispnéia, com uma pontuação média de 2,4 respectivamente. (Tabela 2). O número para fadiga é uma resposta aos itens que questionam: Você precisou repousar? Você se sentiu fraco? e Você estava cansado? O número da dor é uma resposta aos itens com as seguintes perguntas: Você sentiu dor? e A Dor interferiu com as suas atividades diárias? Os itens no EORTC-QLQ-C30 são declarações mais gerais para o câncer, tentando cap-turar as experiências da última semana.

Observando o módulo complementar específico para câncer de pulmão, o QOL-LC-13, os pacientes pontuaram mais alto em dispnéia, com uma contagem média de 4,3, seguida por tosse, com 1,9, e dor em ou-tras partes, com 1,7 (dor no peito com uma pontuação média de 1,5) e alopecia, com uma pontuação média de 1,6 (Tabela 3).

A dispnéia foi pontuada como presente quando eles andavam, subiam escadas e/ou em repouso. A dor em outras partes poderia ser dor em partes não relacionadas ao câncer de pulmão, tais como dor no estômago, dor nas contas, feridas de cirurgia etc.

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Tabela 2 - QOL e EORTC QLQ-C 30: análise individual

Escala funcional Média (desvio padrão)

Sintomas Fadiga FA 5.4 (1.8) Náusea e vômito NV 2.4 (1.2) Dor PA 2.5 (1.2) Dispnéa DY 2.4 (0.9) Insônia SL 1.6 (0.9) Perda de apetite AP 1.7 (0.8) Constipação CO 1.8 (1.0) Diarréia DI 1.5 (0.8)

Escalas funcionais e QOL global Qualidade de vida QOL 4.5 (1.4) Função física PF 3.6 (1.4) Papel funcional RF 2.4 (1.1) Função emocional EF 5.5 (1.9) Função cognitiva CF 2.3 (1.1) Função social SF 2.9 (1.3)

Sintomas; FFA = item no: 10, 12 e 18, NV = item no: 14 e 15, PA = item no: 9 e 19 Os outros sintomas são itens singulares Funções; QOL = item no: 29 e 30, PF = item no: 1 e 5, RF = item no: 6 e 7, EF = item no: 21, 22, 23 e 24, CF = item no: 20 e 25, e SF = item no: 26 e 27.

Tabela 3 - QOL e EORTC QLQ-LC13: análise individual

Escala funcional Média (desvio padrão)

Sintomas Dispnéia LCDY 4.3 (1.3) Tosse LCCO 1.9 (0.7) Hemoptise LCHA 1.0 (0.0) Boca amarga LCSM 1.3 (0.7) Disfagia LCDS 1.1 (0.3) Neuropatia periferal LCPN 1.2 (0.5) Alopécia LCHR 1.6 (1.0) Dor no peito LCPC 1.5 (0.9) Dor nos braços/ombros LCPA 1.4 (0.7) Dor em outras partes do corpo LCPO 1.7 (0.9)

LCDY = item no: 3, 4 e 5. Os outros sintomas são ítens singulares.

Resultados quantitativos - Escalas funcionais e QV global

O funcionamento emocional foi pontuado com uma média de 5.5, indicando que os pacientes sentiram as suas emoções como passíveis de serem lidadas. Os itens que cobrem este domínio questionavam: Você se sentiu tenso? Você se preocupou? Você se sentiu irritá-vel? Você se sentiu deprimido? O funcionamento físico teve uma pontuação média de 3.6, indicando que eles se sentiam um pouco limitados em suas atividades diárias. A QV (itens 29 e 30) foi pontuada pelo paciente com uma média de 4,5, indicando que eles se sentiam muito satisfeitos com a sua situação de vida durante estas circunstâncias.

A pontuação média mais baixa foi encontrada na função cognitiva, com 2,3, seguida pelo papel funcional, com uma média de 2,4. Estes números indicam que os pacientes têm alguns problemas de concentração e isto também poderia afetar sua função (Tabela 2).

Comparação das pontuações do EORTC QLQ-C30 e resultados qualitativos

Com relação aos sintomas, os pacientes falaram espontaneamente nas entrevistas sobre a dispnéia e a tosse como sintomas que eram perturbadores, e isto está de acordo com as pontuações do módulo específico de câncer de pulmão: considerando que os pacientes marcaram os pontos mais altos em dispnéia, com uma pontuação média de 4,3, seguida por tosse, com 1,9, a fadiga foi um sintoma que foi mencionado de passagem nas entrevistas. Os pacientes relacionaram a sua fadiga à dispnéia e explicaram que esta era a razão de não terem energia.

Os pacientes pontuaram uma média de 5,5 com relação ao funcionamento emocional, indicando que eles consideram seus sentimentos como passíveis de serem lidados, com relação à tensão, preocupações, irritação e desânimo. Nas entrevistas os pacientes falaram sobre como eles sentiram a incerteza devido ao tempo de es-pera antes de receber o diagnóstico e, depois, para obter

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informações precisas sobre seu tratamento e prognóstico. Havia também muitos pensamentos sobre a sua situação. Havia pensamentos mórbidos, ter tempo para concluir as suas vidas e organizar questões práticas com relação ao funeral. Apesar disto, havia um sentimento de esperança quanto a uma vida prolongada devido ao tratamento e a novos resultados de pesquisa, tornando a doença, pelo menos, em status quo. Um assunto importante que foi mencionado pelos pacientes eram as reações do familiar mais próximo. Os pacientes foram afetados com relação à tristeza do parente mais próximo sobre a sua doença e morte futura, mas também havia sentimentos de culpa, preocupações e raiva. Os pacientes passaram muito tem-po se preocupando com o parente mais próximo e como os proteger de notícias alarmantes. Uma outra coisa que estava nas entrevistas e que, provavelmente, deveria ser colocada como funcionamento emocional é o sentimento de vergonha e culpa. Diversos pacientes sentiram que a sociedade, o sistema de assistência médica e, alguns deles, colocavam sobre eles o fato de que eles próprios tinham provocado a doença.

O funcionamento físico foi pontuado pelo paciente com uma média de 3.6, indicando que eles sentiram algumas limitações com relação à realização de algumas atividades extenuantes, tais como carregar bolsas pesadas ou necessitar de ajuda para se lavar, vestir, comer etc. Nas entrevistas, os pacientes expressaram que eles tentavam viver normalmente e que era importante tentar fazer isto por si mesmos. Eles eram criativos e encontraram soluções diferentes para lidar com a situação. Mas, às vezes, eles tiveram que admitir que eles precisaram de um pouco de ajuda e apoio.

O funcionamento social foi classificado pelos pa-cientes com uma média de 2,9 com relação a como a sua condição física ou tratamento médico interferiram com a sua vida familiar ou atividades sociais. O papel funcional foi pontuado com a média de 2,4, com relação a como os pacientes puderam trabalhar, fazer outras atividades diárias ou procurar hobbies ou outras ativi-dades de lazer. Nas entrevistas os pacientes declararam que era importante ter uma rede como apoio. Esta rede poderia compreender a família, amigos, companheiros de trabalho ou profissionais da assistência médica. Era de grande importância que eles fossem tratados como a pessoa que eram e não como uma pessoa doente. Um aspecto importante do funcionamento social poderia ser que os sentimentos de culpa e vergonha fizeram alguns dos pacientes se retirar das atividades sociais e eles não contaram para os seus amigos ou companheiros de tra-balho sobre o diagnóstico.

O funcionamento cognitivo foi classificado pelos pacientes com uma média de 2,3 com relação à con-centração e lembrança. Os pacientes não mencionaram isto na entrevista, mas eles expressaram que os seus pensamentos e mente estavam focados na tristeza, culpa, preocupações e raiva sentidas pelos parentes mais pró-ximos. Os pacientes passavam o tempo se preocupando com o parente próximo, planejando questões práticas e trabalhando seus próprios sentimentos. Alguns pacientes

fizeram pesquisas na internet, procurando tratamentos alternativos. Assim eles realmente se concentraram nas coisas.

A qualidade de vida, incluindo aspectos de saúde, foi classificada pelos pacientes com uma média de 4,5, indicando uma QV média (7 é excelente). Quando foi solicitado que os pacientes estimassem a sua qualidade de vida depois da entrevista em uma escala de 1 a 10, eles estimaram a sua qualidade de vida neste momento com uma média de 6,55 e uma mediana de 7.0. Estes números são bastante semelhantes (quando 10 é excelente). Nas entrevistas, os pacientes queriam dizer que a QV era: Viver normalmente. A manutenção da independência e da integridade, assim como a manutenção da situação é de grande importância.

Parece, com relação à medição das escalas funcio-nais e QV global, que existem resultados semelhantes usando um questionário ou uma entrevista qualitativa. Conseqüentemente, a entrevista qualitativa deu maior multiplicidade e compreensão mais profunda sobre as diversas questões. Parece que os pacientes abordam mais questões durante as entrevistas do que o questionário está pedindo. Uma coisa que parece estar faltando no questionário é a família, o parente mais próximo.

Os resultados deste estudo enfatizam a importância de se identificar as diversas questões da QV e, inclusive, o parente mais próximo, já que eles são significativamente importantes para as experiências de qualidade de vida destes pacientes.

DiscussãoOs resultados deste estudo acrescentam ao co-

nhecimento do diagnóstico de câncer de pulmão e seu tratamento que afetam a situação de vida e a QV vistas de perspectivas metodológicas diferentes. O debate metodológico central dentro da pesquisa de QV é infor-mado por uma diferenciação entre as medidas subjetivas e objetivas (ROGERSON, 1995; ROSENBERG, 1995; CUMMIN, 2000). Porém, este tipo de estudo que usa métodos mistos produzirá uma visão mais equilibrada (ROSENBERG, 1995), e também indicará a combinação a ser complementar, e expansível (CRESWELL, 2003; CARACELLI et al., 1993).

Os dados quantitativos mostraram que os pacientes marcara pontos mais altos em sintomas como fadiga, seguida de dor, náusea e dispnéia no EORTC-QLQ-C30, mas na parte específica de câncer de pulmão, QOL-LC-13, os pacientes pontuaram valores mais altos em dispnéia, com uma média de 4,3, seguida por tosse, com 1,9 e dor nas outras partes, com 1,7 (dor no peito, com uma pontuação média de 1,5). Estes últimos resultados são bastante semelhantes a aqueles apresentados em uma revisão de câncer de pulmão; dispnéia, hemoptise e dor (COLLEY, 2000). Os pacientes neste estudo pontuaram alto em fadiga, que está de acordo com os resultados de um estudo usando o EORTC QLQ-30 + LC13 também (LÖVGREN et al., 2007). Também há concordância com outro estudo que observa a perturbação no sono e funcionamento durante o dia prejudicado no paciente

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recém-diagnosticado com câncer de pulmão (LE GUEN et al., 2007), com enfoque no funcionamento. Os pacien-tes com câncer de pulmão também mostraram menor eficácia do sono e maior fragmentação do sono durante a noite (LE GUEN et al., 2007).

A medição das escalas funcionais mostrou que o funcionamento emocional foi classificado com uma mé-dia de 5,5, indicando que os pacientes trataram as suas emoções como administráveis, e a QV foi pontuada pelo paciente com uma média de 4.5, indicando que eles se sentiam bastante satisfeitos com a sua situação de vida durante estas circunstâncias, o que é um pouco contra-ditório com relação a outros estudos (CARLSEN et al., 2005; HOPWOOD et al., 2000). Pacientes com câncer de pulmão relatam mais necessidades psicossociais não atendidas do que os pacientes com diagnóstico de outro tipo de câncer (HOUTS et al., 1986). Os pacientes com um diagnóstico de câncer de pulmão têm preocupações particulares sobre questões de família e o futuro, conse-qüentemente, há inconsistências em cuidado e suporte (HILL et al., 2003; KRISHNASAMY et al., 2001). Isto também foi descoberto nas entrevistas qualitativas neste estudo.

A pontuação média mais baixa foi encontrada no funcionamento cognitivo, com uma pontuação média de 2.3 seguida pelo funcionamento da função, com uma pontuação média de 2,4. Estes números indicam que os pacientes têm alguns problemas em se concentrar e isto poderia afetar seu funcionamento. Estas contagens estão mais de acordo com um estudo sobre efeitos psicossociais (CARLSEN et al., 2005).

O funcionamento físico foi classificado com uma média de 3,6, indicando que eles se sentiam um pouco limitados em suas atividades diárias. Isto poderia explicar a alta pontuação da fadiga. De acordo com o EORTC (AARONSON et al., 1993, 1996), a fadiga não é incluída em qualquer escala funcional, é um sintoma separado. O funcionamento físico poderia ser visto como uma questão que se modifica com atividades diferentes ao longo do dia. Uma menor atividade durante o dia foi encontrada em pacientes com câncer de pulmão em um estudo de LE GUEN et al. (2007).

A qualidade de vida foi associada à prevalência e intensidade de sintomas em pacientes com câncer de pulmão (MONTAZERI et al., 2001), e os sintomas têm um grande impacto sobre o bem-estar psicossocial (CARLSEN et al., 2005). Não é óbvio que a conexão é tão clara e fácil de explicar. Diversos estudos (BERTERÖ et al., 2007; MALISKI et al., 2003; BENZEIN et al., 2001) enfatizam que os pacientes com câncer equilibram a sua situação de vida: “pegar o ruim com algo bom”, por exemplo, a esperança. Outro aspecto interessante é se o conhecimento sobre um diagnóstico de câncer afeta a QV. Em um estudo, foram entrevistados 129 pacien-tes com câncer de pulmão e a QV foi avaliada em três questionários diferentes. Cerca de 23% dos pacientes sabiam sobre seu diagnóstico e 77% não sabiam sobre seu diagnóstico de câncer. O resultado mostrou que não havia diferença significativa entre os dois grupos com

relação à QV avaliada, e não havia qualquer diferença significativa na pontuação dos sintomas dos pacientes, exceto por dificuldades para dormir. Assim, o conhe-cimento de um diagnóstico de câncer de pulmão não afeta a QV (MONTAZERI et al., 2004). Algo notável naquele estudo era que os pacientes que tinham conhe-cimento de seus diagnósticos de câncer demonstraram uma pontuação de QV ligeiramente melhor do que os que não sabiam.

Os métodos qualitativos permitiram uma com-preensão das experiências destas pessoas de terem um diagnóstico de câncer de pulmão inoperável. O tema sen-timento de incerteza poderia ser visto como um equilíbrio com o tema sentimento de esperança; que poderia ser facilitado se houvesse uma rede como suporte. Este equi-líbrio poderia, talvez, ser explicado pela pontuação do funcionamento emocional, considerando que o paciente indicou que eles consideravam a sua situação como um funcionamento administrável (MALISKI et al., 2003). Os sentimentos de vergonha e culpa, assim como sentir os seus próprios sentimentos de preocupações e raiva, assim como o de seus familiares mais próximos, poderia causar um bem-estar menor (HOUTS et al., 1986), e tentar proteger ou tomar conta do familiar mais próxi-mo (HILL et al., 2003; KRISHNASAMY et al., 2001). Os seis temas identificados nas entrevistas qualitativas proporcionaram uma estrutura que apresenta a essência da QV: viver normalmente, o que significa manter a independência e integridade e preservar a sua situação e funcionamento da função. Os pacientes expressam sua vontade de viver como normalmente o fazem, mas as medições demonstram que há uma redução no funciona-mento físico e da função, de acordo com MONTAZERI et al. (2003).

Os métodos mistos geraram conhecimento sobre as perspectivas e experiências de QV e situação de vida das pessoas vulneráveis nestes dois estudos. Os métodos qualitativos promoveram um conhecimento profundo das experiências de vida com um diagnóstico de câncer de pulmão inoperável e o que afetou a QV e a situação de vida. De maneira especial, foram realçados o conhecimen-to sobre sentimentos emocionais, assim como atividades sociais e rede social. Os métodos quantitativos também geraram informações detalhadas sobre os efeitos físicos (sintomas), função, efeitos emocionais, efeitos cognitivos e funcionando social, mas não com tal detalhamento.

Nas últimas décadas, a QV se tornou importante como um objetivo médico, já que ficou claro que a redução da mortalidade não é bastante para uma medi-cina que se defronta com doenças crônicas, incuráveis e degenerativas. Também ficou claro que é o paciente e não o médico ou outros profissionais da assistência médica que têm o poder para julgar a QV do paciente (SULLIVAN, 2003).

O estudo tem algumas falhas. O tamanho da amostra é pequeno com relação às medições com o EORTC-QLQ-C30 + QOL-LC-13; teria sido preferível uma amostra maior para fazer uma generalidade. Porém, a amostra é bastante grande com relação ao estudo fenomenológico.

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O objetivo foi explorar e descrever a QV nestes pacientes ao comparar os resultados da pesquisa quantitativa com os resultados da pesquisa qualitativa a fim de explorar a QV e, se possível, desenvolver as medições e expandir o conhecimento. Eu gostaria de reconhecer que a pesquisa futura pode se beneficiar da exploração das perspectivas das pessoas vulneráveis. Um projeto de método misto seria útil com relação a este assunto. As opiniões dos participantes a partir das entrevistas e do instrumento padronizado convergem ou divergem? Minha resposta até aqui é que elas convergem na maior parte e, quando se afastam, isto decorre da duplicidade de interpretação do conteúdo das perguntas feitas nos instrumentos. Assim, esta é uma razão para deixar o paciente ter o poder para julgar a sua saúde e QV e esclarecer ou expressar isto com suas próprias palavras também.

Conclusão Os métodos mistos geraram conhecimento sobre as

perspectivas e experiências de QV e situação de vida das pessoas vulneráveis nestes dois estudos. Estes métodos mistos demonstram que, na maior parte, o instrumento e as entrevistas convergem e, quando se afastam, isto se deve à duplicidade de interpretação do conteúdo das perguntas feitas nos instrumentos.

AgradecimentosA todas as pessoas que participaram deste estudo.

Ao Conselho de Pesquisa Médica do Sudeste da Suécia (FORSS) e à Fundação de Câncer Gunnar Nilsson por tornar este estudo viável através do suporte financeiro. A EORTC que permitiu usar o questionário em uma pequena amostra para triangulá-la com a pesquisa qua-litativa.

Não existem conflitos potenciais.

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Sobre a autora

Carina M BerteröCarina M Berterö, RN, RNT, BSc, MScN, PhD, Professora Associada, Divisão de Ciência da Enfermagem, Departa-mento de Ciências da Saúde e Médicas, Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Linköping, Linköping, Suécia.

48 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.48-57, jan.-jun., 2008

Artigos originais

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

Pesquisa socialmente responsável: podemos falar de um Modo 3 de

produção de conhecimento?DOI: 10.3395/reciis.v2i1.145pt

ResumoUm dos efeitos colaterais da globalização da economia é a “globalização da ciência”. Parte da produção científica parece estar ligada às necessidades dos mercados globais. Nos últimos 20 anos, surgiram pelo mundo formas alter-nativas de se “fazer ciência” cuja característica mais importante é sua íntima relação com a solução de problemas de comunidades locais ou regionais. Esse artigo reflete sobre a experiência que está acontecendo atualmente no México, onde a pesquisa está intensamente ligada à função de aprendizagem, e está fortemente enraizada nas Novas Tecno-logias de Informação e Comunicação.

Palavras-chaveModo 3, produção de conhecimento, responsabilidade social, Comunidades Científicas Regionais, desenvolvimento

IntroduçãoUm efeito colateral da globalização da economia é a

“globalização da ciência”, no sentido de que parte disso trabalha a serviço da economia global. Parte da produção científica parece então, estar conectada às necessidades dos mercados globais. Todavia, nos últimos 20 anos, novas alternativas de “fazer ciência” emergiram por todo o mundo e a característica mais importante é seu íntimo relacionamento com a solução dos problemas percebidos ligados às comunidades locais e regionais. Apesar de di-vidirem algumas das características da pesquisa “Modo 2”, como definido por GIBBONS et al. (1994), diferem drasticamente no sentido de serem socialmente responsá-

veis. Essas novas formas são uma resposta à necessidade de tornar a pesquisa científica mais participativa, mais vinculada aos grupos que poderiam afetar seus resulta-dos, incorporando ao processo decisório, não apenas os próprios pesquisadores, mas também aqueles agentes que poderiam ser diretamente afetados por seus produtos. Este artigo reflete sobre a experiência que acontece hoje no México, onde a pesquisa está intensamente ligada à função de aprendizagem, e está fortemente enraizada nas Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NICT). Essa forma de fazer “pesquisa a serviço da humanidade” é consistente com a definição alternativa de desenvolvimento que não está necessariamente ligada ao “crescimento”, como tradicionalmente refletidos nas

Jaime JiménezInstituto de Investigaciones en Matemáticas Aplicadas y en Sistemas, Universidad Nacional Autónoma de México, Cidade do México, Mé[email protected]

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estatísticas econômicas. O desenvolvimento não é uma questão do que o indivíduo tem, mas o que é possível fazer com o que tem. O desenvolvimento é a habilidade e desejo de utilizar o que está disponível para melhorar continuamente a qualidade de vida dos indivíduos (ACKOFF, 1974). Projetos como aqueles descritos aqui fornecem um senso de progresso na direção certa, na direção do desenvolvimento verdadeiro. Chamamos essa forma de geração de conhecimento “Modo 3”, para diferenciar dos demais modelos de ciência, o Mertoniano (Modo 1) e o de Gibbons (Modo 2). O Modo 3 é um modelo de produção de conhecimento cuja caracterís-tica distintiva é um compromisso de estar a serviço da humanidade.

O que é desenvolvimento? O desenvolvimento é um conceito fácil de ser

captado intuitivamente, todavia difícil de ser definido operacionalmente. Na verdade, o termo está associado a nações inteiras ao invés de indivíduos ou organizações. Na prática, o significado de desenvolvimento e a rele-vância dos indicadores utilizados pelas agências inter-nacionais, são normalmente tomados por serem óbvios ou auto-evidentes. Os indicadores de desenvolvimento nacionais “medem” certos aspectos da vida dos habitan-tes que podem estar associados com o “padrão de vida”, não necessariamente com qualidade de vida. As agências internacionais como ONU, Unesco, FAO, o Banco Mun-dial, BID, utilizam indicadores de desenvolvimento tais como PNB per capita, rendimento real per capita, média de escolaridade, expectativa de vida, que são medidas brutas de desenvolvimento, sem qualquer procedimento discriminatório para avaliar como a riqueza, saúde ou educação são distribuídas entre a população. Isso leva ao paradoxo que apesar do México ser a 10ª economia mundial (WORLD BANK, 2003), 53,7% de sua popu-lação vive no nível de pobreza (SEDESOL, 2002)

Seria conveniente ter uma definição operacional de desenvolvimento para a construção de uma medida apro-priada. Uma vez que não existe tal coisa, os indicadores atualmente em uso são baseados em julgamentos subjeti-vos. Todavia, uma vez que o consenso entre aqueles que fazem esses julgamentos não é alcançado, não existe um conjunto de indicadores aceitos geralmente.

O caminho para a nação se tornar desenvolvida não é claramente definido. Pode-se escolher uma nação “desenvolvida” como modelo e tentar imitá-la. Mas uma vez que não existe um critério amplamente aceito sobre o que é uma nação desenvolvida, é difícil chegar a um acordo sobre qual modelo seguir. A decisão é tomada por razões políticas e econômicas ao invés de um conceito geralmente aceito do que significa desenvolvimento para nós. Uma questão freqüentemente levantada quando o país está fazendo esforços para selecionar o melhor caminho para o desenvolvimento é a possibilidade de evitar os erros cometidos pelos países desenvolvidos em seus processos de alcançar um padrão de vida mais alto, como altos níveis de poluição, elevada concentração de população ou trânsito em áreas urbanas. A experiência

mostra que se deve aprender com seus próprios erros. Apesar dos problemas não serem os mesmos, problemas semelhantes são confrontados por países em processo de desenvolvimento, e as soluções não são necessaria-mente aquelas adotas pelos países mais avançados. Em conclusão, cada país tem que primeiro definir o que é desenvolvimento para seus habitantes, e depois desen-volver suas próprias maneiras de alcançá-lo.

Desenvolvimento e crescimentoComo mencionado na introdução, desenvolvimento

não deve ser confundido com crescimento, pois não são a mesma coisa. Crescimento é um aumento no tamanho ou número, assim quando o PNB do país aumenta, é correto dizer que sua economia está crescendo. E não dizer que o país está desenvolvendo. Muitas economias emergentes ex-perimentam ambos o processo de crescimento econômico e um aumento no número de desapropriados ao mesmo tempo. Esse fenômeno está acontecendo em muitos países que entusiasticamente fazem parte da economia global, mas mantêm uma distribuição de riquezas desba-lanceada. Da mesma forma, uma pessoa pode vivenciar um aumento na riqueza econômica enquanto diminui a sua qualidade de vida, se tornando assim menos desen-volvida. Geralmente o crescimento contínuo da economia do país é considerado desejável, se não necessário, para um desenvolvimento nacional contínuo. Isso não é o caso: a relação entre crescimento e desenvolvimento pode ser entendida apenas quando a natureza do desenvolvimento é compreendida propriamente.

Uma abordagem sistemática para o desenvolvimento

O conceito de desenvolvimento de Ackoff expresso em Redesigning the Future (ACKOFF, 1974) foi explorado mais profundamente e refinado em escritos subseqüentes. Em A Prolog to National Development Planning (GHARAJE-DAGHI et al., 1986, p.18), o desenvolvimento é definido nos termos a seguir:

Desenvolvimento é o processo no qual as pessoas au-mentam suas habilidades e desejos de satisfazer suas próprias necessidades e legitimam seus desejos e os [desejos] de terceiros com aquilo que se tem (texto em itálico adicionado).

É mais importante para o propósito do assinan-te manter a cláusula referente aos meios disponíveis da definição original, uma vez que é o que dá sentido ao desenvolvimento em um país em desenvolvimento. De fato, o principal obstáculo para o desenvolvimento em um país em desenvolvimento é a falta de consciência de sua população de suas capacidades de transformar o mundo ao redor, com os recursos disponíveis, e isso é alcançado quando as pessoas desenvolvem seu próprio futuro e as maneiras de atingi-lo como é o caso da Reflection and Design Conference.

Necessidades são aqueles ítens que são indispensáveis para sobrevivência, como alimentos e oxigênio. O que é necessário pode ou não ser desejado, por exemplo, uma

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pessoa pode necessitar de uma palmilha por conta de problemas de pé chato, mas isso não é algo que deseje. Por outro lado, as pessoas podem desejar coisas que não precisam, como uma viagem para a praia. Um desejo le-gítimo é aquele “que busca a realização daquilo que não diminui a semelhança da realização de necessidades e (legítimos) desejos de outros. Porém, um aumento na habilidade ou desejo de prejudicar aos outros não é desen-volvimento, mas um aumento na habilidade ou desejo de ajudar é. Isso implica que os esforços para prevenir atos ilegítimos são por si só legítimos” (GHARAJEDAGHI et al., 1986, p.18, ênfase acrescentada).

A definição de Ackoff para desenvolvimento é a mais adequada para sociedades passando por grande escassez material ou, além disso, para se envolver em projetos que poderiam abordar uma melhor qualidade de vida não importando a redução dos meios disponíveis. A realização de projetos baseados nessa definição de desenvolvimento oferece aos participantes um senso de progresso na direção certa.

O que está se passando com o mundo com relação à forma em que a ciência é realizada? Estará caminhando na direção do desenvolvimento de acordo com Ackoff? Quem está recebendo os benefícios da ciência? A ciência é uma despesa apropriadamente alocada? Essa e outras questões foram colocadas nos últimos 10-15 anos. A Unesco tem sido altamente envolvida com o assunto e foi convocada , em 1999, pela conferência mundial, para revisar a direção em que a ciência está seguindo. Na Conferência chegaram a conclusões muito desafiadoras, que serão discutidas a seguir.

O Novo ‘Contrato Social’: o espírito de Budapeste

Por volta do final da década de 1990, o papel da ciência em relação à sociedade e do desenvolvimento es-tão sendo seriamente avaliados. No passado, a política de ciência era baseada principalmente em atos fé. A crença que a atividade de pesquisa conduziria naturalmente à inovação tecnológica, que por sua vez garantiria o cres-cimento econômico, e assim coesão social e paz. Acredi-tava-se com certa ingenuidade que ‘o que é bom para a ciência, é bom para a humanidade’, deixando as decisões das políticas de ciência nas mãos dos cientistas.

Atualmente, essa crença tem sido desafiada uma vez que os avanços científicos e tecnológicos que têm con-tribuído com o desenvolvimento econômico trouxeram também uma deterioração ecológica irreversível, asso-ciado à exacerbação da desigualdade social, da exclusão e do aumento nas simetrias entre as nações, em termos e de riqueza e poder.

Os desafios acima motivaram a Unesco a organizar a Conferência Mundial sobre a Ciência: ‘a Ciência do Século 21’ (UNESCO, 1999, a, b), em Budapeste, em 1999. O objetivo da Conferência era a formulação de um novo relacionamento entre a ciência e a sociedade, que é um novo ‘contrato social’ (MAYOR, 1999), baseado na suposição de que a ciência está sujeita a escrutínio público. O debate sobre a necessidade de uma discussão

democrática sobre as prioridades científicas, o tamanho do orçamento, a estrutura institucional e o uso que é dado aos resultados do trabalho científico está recuperado. Foi declarado que tais decisões não podem simplesmente ser deixadas nas mãos de cientistas e autoridades go-vernamentais.

Na Conferência de Budapeste, a ênfase também foi feita no ponto em que os cientistas não devem orientar suas pesquisas apenas em direção aos tópicos que parece-rem ser mais atraentes para subsídio, como as pesquisas militares e pesquisas que respondem às necessidades do mercado, mas também sobre tópicos relacionados ao interesse social em geral. A pesquisa científica não deve ser desenvolvida como disciplina isolada, mas baseada em abordagens inter e transdisciplinares que trarão à tona a convergência entre as ciências natural e social, como formas de entender a realidade, e transformá-la. O que é buscado aqui é confrontar, com maiores possibilidades de sucesso, os desafios que o século 21 apresenta em termos de avanços em direção a uma sociedade com maior liberdade e igualdade entre os homens ao redor do mundo.

Da Conferência de Budapeste é sabido que devemos criar um sistema para o novo contrato social com a ciência, que seja baseado na participação dos maiores setores da sociedade, e não apenas naqueles que atualmente são de interesse. Um novo contrato onde as decisões são tomadas com base em grandes redes sociais. Isso não quer dizer que as formas organizacionais para a tomada de decisão que têm sido aperfeiçoadas durante todo o passado e que, no geral, produziram bons resultados para o avanço da ciência, devam ser desconsideradas.

O objetivo é obter um balanço equilibrado entre a academia autônoma e a responsabilidade social, acesso aos resultados e benefícios produzidos pela ciência e os interesses individuais legítimos daqueles que a promo-veram, a redistribuição do conhecimento e dos direitos autorais, crescimento econômico e equilíbrio ecológico, demandas que se originam no mercado e outras fora do mercado, projetos de longo e curto prazo, interesses coletivos e individuais.

A agenda para o novo contrato social com a ciência parece estar complicada. Por um lado não está claro se os cientistas ‘hard’ estariam dispostos a abrir mão dos privi-légios que desfrutam tradicionalmente, compartilhando suas decisões com a sociedade como um todo. Por outro lado, não está claro como os grupos sociais poderiam se envolver de uma maneira informada. A situação ideal é identificar formas que permitam que os pontos discutidos em Budapeste sejam entendidos como tópicos legítimos de interesse público, sujeito a novos mecanismos de tomada de decisão que irão além daqueles que utilizam especialistas nos setores correspondentes. Esse conjunto de idéias constitui o ‘Espírito de Budapeste’.

Um novo paradigma proposto para a ciência e a tecnologia

No final do século 20, os autores observaram que nos anos anteriores, a forma de “produzir conheci-

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mento” havia mudado, e propuseram um novo modelo (GIBBONS et al., 1994). Essa nova forma co-existe com a tradicional e abrange não apenas a ciência e a tecnologia como também as ciências sociais e humanas. Isso afeta:

• que conhecimento é produzido;• como é produzido;• o contexto em que é produzido;• a forma na qual a produção está organizada;• o sistema de recompensa que é ativado;• os mecanismos que controlam a qualidade do

que é produzido.

Essas características estão firmemente articuladas no caso das ciências “hard”: física, química e biologia. De tal modo que as ciências sociais e humanas tentaram imitar as ciências “hard” e foram implementados siste-mas sociais semelhantes para governar a produção de conhecimento dessas áreas. Para distingui-los da forma tradicional, os autores denominaram o novo modelo de produção de conhecimento de “Modo 2”, e nomearam a forma clássica de “Modo 1”.

O que se segue são algumas características do Modo 2, no contexto das aplicações:

• problemas não são restritos a disciplina ou grupo de disciplinas (multidisciplinar), que são transdiscipli-nares;

• o trabalho é realizado de formas não-hierarquiza-das, heterogêneas e transitórias;

• sem preferência por institucionalização univer-sitária;

• implicação de interação próxima de muitos atores;• sob a ótica acima, a produção do conhecimento

se torna mais socialmente responsável;• utiliza uma ampla variedade de critérios para

aplicar controles de qualidade;• o Modo 2 se torna mais flexível e afeta profunda-

mente o que se considera “boa ciência”.

Em contraste, o termo “Modo 1” se refere a forma de produção de conhecimento – um complexo de idéias, métodos e valores e normas – que está sendo desenvolvi-do para disseminar o modelo Newtoniano em mais e mais campos de pesquisa e garantir que o que é considerado “estabelecido como prática científica (formal)” seja obser-vado. A Tabela 1 compara as principais características dos dois modelos de produção de conhecimento, de acordo com seus autores.

Tabela 1 - Comparação das características do Modo 1 e do Modo 2 de produção de conhecimento

MODO 1 MODO 2

Problemas propostos e resolvidos por uma comunidade específica

Problemas propostos e resolvidos no contexto das aplicações

Disciplinar Transdisciplinar

Homogênea Heterogêneo

Organização hierárquica Organização heterárquica

Permanente Transitória

Controle de qualidade por pares Controle de qualidade por diversos atores

Menos responsável socialmente Mais responsável socialmente e reflexiva

Fonte: GIBBONS et al. (1994).

O modo 2 inclui um grupo maior de “praticantes”, que são temporários e heterogêneos, que colaboram em um problema definido em um contexto específico e localizado. De acordo com essa orientação, existe um potencial desequilíbrio entre a volatilidade e a permanência das instituições que cultivam a produção de conhecimen-to Modo 2. Essa é uma nova situação que aparece como intermediária entre as formas organizacionais estáveis e flexíveis. A produção do conhecimento é uma atividade cada vez menos independente. Não é nem a “ciência” das universidades ou a “tecnologia” da indústria. Os au-tores declaram que a mudança fundamental no Modo 2 consiste em que a produção do conhecimento é cada vez mais um processo “socialmente distribuído”.

Finalmente, o Modo 2, de acordo com seus propo-nentes, apresentam os seguintes atributos além daqueles apontados na Tabela 1:

• é altamente contextualizado;• “conhecimento comerciável”;• flexibilidade dos limites disciplinar e institucional;• carreiras científicas intercambiáveis;• transdisciplinaridade em tópicos além daqueles

considerados “quentes”;• importância crescente de fóruns híbridos na con-

figuração do conhecimento;• fóruns constituídos por especialistas e não-espe-

cialistas como atores sociais.

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Concluindo, no início do século 21, estamos dian-te de diferentes formas de se fazer ciência, conforme observaram os proponentes do Modo 2 (GIBBONS et al., 1994), todavia essas novas formas disputam em diferentes bases: enquanto alguns (Modo 2) buscam em sua maioria satisfazer as demandas por conhecimento a favor da economia global, o que beneficia poucos, outros são congruentes com “o espírito Budapeste”, e buscam ter a ciência a serviço das comunidades que lhe fornecem apoio, e aspiram a melhor qualidade da vida coletiva. O que se segue mostra como alguns praticam “o espírito Budapeste”.

O Centro para Inovação e Desenvolvi-mento Educacional (CIDE)

O CIDE deve sua origem aos esforços de um grupo de renomados pesquisadores científicos, com mais de duas décadas de experiência no ambiente educacional, que se conscientizou da necessidade de romper com os métodos tradicionais do ensino superior e pós-graduação, com a criação de novos centros de pesquisa que verdadeiramente responderiam às necessidades regionais. O resultado final desse esforço é a implementação das redes de pesquisa chamadas “Comunidades Científicas Regionais”.

No início, a idéia foi uma iniciativa do Dr. Miguel Arenas, professor da Universidade Autônoma Metropo-litana-Xochimilco, na Cidade do México, para colocar em prática o modelo de educação inovativa em diversas universidades mexicanas, com base no reconhecimento de que a demanda de ensino superior nos primeiros 20 anos do século 21, não seria capaz de ser satisfeita através dos sistemas educacionais tradicionais. O modelo está baseado na metodologia aprendizado com base no proble-ma, que consiste em reverter o processo pedagógico da transmissão de conhecimento do professor para o aluno, para um processo de criação do conhecimento que inicia com o aluno se confrontando com o problema real, onde o professor age como guia e facilitador do processo de aprendizado. O Dr. Arenas finalmente obteve um acor-do com a Universidade de Colima no estado de mesmo nome para ter seu modelo estabelecido lado a lado com o programa tradicional, como uma alternativa de estudo de graduação.

Após um período de 10 anos a Universidade de Colima suspendeu o programa, porém alguns graduan-dos, já estabelecidos em instituições de ensino superior em outras partes do país, inclusive em Colima, deram continuidade à idéia, e se esforçaram para mantê-la viva. Em 1984, um grupo desses professores da Universidade Autônoma Antonio Narro em Torreón, Coahuila, de-ram origem ao CIDE, e foram capazes de estabelecer o programa nessa instituição como parte da oferta educa-cional. Infelizmente, o projeto teve o mesmo destino da Universidade de Colima, e o programa foi fechado defi-nitivamente, apesar de ter sido permitido aos estudantes que já estavam matriculados completar o programa e se graduar naquela instituição.

O CIDE continuou então sua rede virtual de profes-sores preocupados com a falta de oportunidade e acesso a

graduação em instituições formais para pessoas incapazes de atender aos programas presenciais. Apenas em 2006 o CIDE finalmente obteve reconhecimento oficial através do Ministro de Educação Pública e Cultura do Estado da Sinaloa, quando se fundiu ao Centro de Estudos Justo Sierra (CEJUS), em um arranjo benéfico para ambas as organizações, ao permitir que o CIDE obtivesse reco-nhecimento oficial, e ao satisfazer a aspiração CEJUS de estender suas ofertas educacionais ao ensino superior e à pós-graduação.

O CEJUS é outra experiência de inovação na educação que merece menção especial, onde esse autor participou como consultor externo, por mais de 20 anos. O Centro foi criado como resultado das demandas da Associação de Pais local para melhorar a qualidade da educação básica para seus filhos. Nos estágios subseqüen-tes, a demanda foi ampliada para incluir a pré-escola assim como educação agrícola de nível médio. Em parte, o objetivo era prevenir a dispersão de seus jovens, uma vez que estes eram forçados a deixar suas comunidades para continuar os estudos, na capital do estado. No mo-mento, o Centro hospeda a “Universidade de Mountain Range”, oferecendo bacharelado nas disciplinas ligadas a agricultura, e também sedia o programa CIDE. Para maiores informações sobre essa importante experiência educacional, veja JIMÉNEZ (1992), e a própria pu-blicação do CEJUS sobre suas origens (COMITÉ DE PLANEACIÓN EDUCATIVA, 1980).

A metodologia de ensino do CIDEO modelo CIDE baseia sua metodologia nos avanços

feitos pelas ciências cognitivas, as quais demonstram que o aprendizado é alcançado – especialmente em se tratan-do de ensino superior e controle de habilidade – quando a ênfase é modificada de ensinar para aprender, baseado nas atividades de aprendizado individuais e em grupo.

Os sistemas consideram as condições de heteroge-neidade dos alunos necessária para desenvolver progra-mas não-uniformes, que se adaptam às circunstâncias especiais do indivíduo. Dessa forma, esses modelos garantem a democratização da educação (JIMÉNEZ et al., 2007, p.9), fornecendo ao estudante igual acesso à educação assim como atenção individualizada, liberando a educação de dogmas da pedagogia tradicional para que o estudante seja capaz de seguir um processo individual e desenvolver seu próprio aprendizado, alcançando in-dependência intelectual através do exercício permanente do julgamento crítico.

Dada a contemporaniedade da importância do uso da informação, o princípio fundamental que o método incentiva nos estudantes é a busca e o uso de informa-ções localizadas na fronteira do saber, com o objetivo de garantir que seus projetos e ações de pesquisa sejam solidamente firmados sob dados relatados na literatura especializada atual e altamente visível.

O estudante pesquisa o assunto de seu interesse na internet como uma primeira abordagem para identificar a bibliografia correspondente. Através de poderosos me-canismos de busca, são identificados e selecionados os

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artigos mais recentes, de até cinco anos, sobre o tópico em questão, além daqueles publicados nas mais presti-giosas revistas científicas, conforme ranking da Science Citation Índex, da “Thomson ResearchSoft”, uma divisão da Thomson Scientific. A partir daí, o estudante sele-ciona uma quantidade de artigos, com atenção especial aos materiais de revisão, uma vez que esses trabalhos fornecem um “estado da arte” da disciplina, uma síntese da pesquisa mais recente e relevante da área de interesse do aluno.

Subseqüentemente, o aluno percebe o que o CIDE denomina “leitura-macro” e “leitura horizontal”, que são métodos que oferecem uma maneira de examinar os artigos selecionados, com o objetivo de extrair a infor-mação mais relevante para a pesquisa do estudante. O aluno também identifica os principais autores no tópico de interesse, notando quem são os autores que são mais freqüentemente citados nos artigos.

O uso das mais avançadas ferramentas da informá-tica para ajudar os alunos em suas atividades de pesquisa é notável. O destaque entre todos é o software chamado EndNote®1, um sistema de administração de recursos bibliográficos que acelera consideravelmente a pesquisa e a construção de notas bibliográficas. Com a ajuda desse programa, os alunos têm acesso às maiores base de dados de informação acadêmica, acessada por meios de palavras-chave, autor ou título do artigo.

Além disso, o programa constrói um arquivo de notas bibliográficas para referência futura, um processo que acontece de forma automática. O programa gera uma lista dos autores mais citados em um tópico espe-cífico, ou seja, os tópicos de maior relevância científica no momento.

Com o uso dessa tecnologia, os alunos são capazes de identificar os artigos mais relevantes, mesmo aqueles que ainda não foram publicados (artigos que foram aceitos e programados para publicação posteriormente – ahead of print). Como o programa inclui dados pessoais do autor, os alunos do CIDE podem estabelecer contato pessoal com os autores que são líderes em um campo específico de conhecimento ou temática de pesquisa, criando assim sua própria “rede de especialistas”. Uma das vantagens desse contato pessoal é a possibilidade de pedir cópias impressas aos autores sem custo. Alguns alunos foram além, colaborando, co-escrevendo artigos com os autores mais renomados de seu campo de estudo.

Para acompanhar os avanços da pesquisa dos par-ticipantes, são organizadas sessões de socialização de conhecimento onde os alunos trocam experiência tanto sobre o método de aprendizado como sobre a pesquisa em si. As sessões de socialização de conhecimento são uma das contribuições inovadoras do CIDE, pois, em contraste com outros sistemas baseados no aprendizado, o aluno tem a oportunidade de apresentar seus avanços, lançar dúvidas, propor críticas, não apenas diante de seu tutor, mas dos demais tutores e alunos de diferentes de níveis. Ao mesmo tempo, o aluno recebe o feedback ime-diato de todos os participantes que desejam contribuir, ou ajudar a solucionar questionamentos importantes,

com base em suas próprias experiências e problemas. No final da sessão de contribuição/comentários, o orientador dá sua opinião de especialista assim como sua própria contribuição para o trabalho do aluno, coleta seus avan-ços, de acordo com um cronograma previamente acor-dado, e soma as considerações gerais sobre os resultados (JIMÉNEZ et al., 2007, p.11). As observações que os pares fazem são tanto de forma e como de conteúdo. O relacionamento entre os estudantes é determinado pela existência de algumas habilidades compartilhadas, como o método de coleta de informações, análise bibliográfica, entre outros.

O tutor tem um papel importante na vida acadêmica do estudante. Através de seu aconselhamento, permite que o aluno se torne independente na construção e abordagem do seu objeto de estudo, o tutor se torna um aconselhador ou interlocutor, ajudando o aluno a executar aquelas atividades que permitirão o aprendizado e demonstrarão que ele tem atributos que o qualifica como um Mestre ou Doutor em Ciência. Como parte do processo de avaliação, o tutor certifica a formação do aluno através da validação do resultado do seu progra-ma de trabalho (JIMÉNEZ et al., 2007, p.12). Pode ser observado que o sentimento de pertencimento é forte, uma vez que os participantes expressam terem tido a oportunidade de fazer parte da comunidade científica comprometendo-se com seus objetivos.

A metodologia CIDE traz as propostas mais avança-das que emergem de métodos educacionais inovadores, novos e alternativos, que recentemente foram mate-rializados nos conceitos da educação aberta e educação à distância.

Em resumo, as características definidas de educação aberta e educação à distância com base no modelo de uma das mais prestigiosas instituições da área, a Open University of the United Kingdom, são livres em registro, local de estudo, método e idéias. Provêm oportunidades de aprendizado para todos os indivíduos carentes de re-cursos econômicos e certificação educacional, aceitando alunos de qualquer classe social ou econômica, e lugar de residência.

Todavia, a educação alternativa deve convencer outras instituições de que sua qualidade é equivalente àquela transmitida pelas instituições tradicionais, em ambientes presenciais. A suposição por trás do descrito acima é que para atingir os objetivos sociais de igualdade no acesso, a educação aberta e à distância trm que ser de alta qualidade. TORRES BARRETO (2006) lista as principais características pedagógico-cognitivas que esses modelos exibem:

1. O sistema deve possibilitar o aluno apontar, in-terpretar e analisar seus objetivos, no momento inicial assim como durante a sua interação com o programa de instrução.

2. O sistema deve formular os objetivos de apren-dizagem para que se tornem a base para a seleção de métodos pedagógicos, incluindo a avaliação, para que seja totalmente compreendido, aceito ou modificado pelos estudantes.

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3. O sistema deve facilitar a participação de todos que quiserem aprender sem impor pré-requisitos tradicionais de admissão e eliminando o grau ou outra certificação como única recompensa a ser obtida pelo estudante.

4. Com o objeto de obter a flexibilidade necesária para satisfazer o amplo espectro das necessidades indi-viduais, o sistema deve permitir o uso efetivo e opcional de som, televisão, filme ou mídia impressa como veículos de aprendizagem.

5. O sistema deve recorrer a atribuições de tarefas e avaliações principalmente para diagnosticar e analisar em que extensão os objetivos do aprendizado foram cumpridos. Em outras palavras, o sistema deve se basear nas próprias competências dos alunos.

6. O sistema deve ser capaz de superar a distância entre a equipe de professores e os alunos, transformando isso em um elemento positivo para o desenvolvimento da autonomia do aprendizado.

Como o mesmo autor relata isso não é apenas mais uma variação das modalidades acadêmicas tradicionais, de uma variante semipresencial, de tipo bi-modal ou de modelo integrado, na qual dentro de um mesmo sistema, alunos presenciais e à distância compartilham os mesmos programas e professores. Um sistema de educação aberto e inovador verdadeiro necessita de estrutura organizacio-nal e administrativa diferente dos modelos presenciais. As Comunidades Científicas Regionais no México praticam exatamente isso, e também, levam o aluno a se concentrar em um objeto de estudo de interesse específico, que é associado com o campo de trabalho onde o aluno está engajado. Assim, a estratégia do CIDE atende a maio-ria das necessidades sociais imediatas, enfatizando o princípio de participação direta das partes interessadas, incluindo aqueles que recebem os benefícios da ciência, em todos os níveis de decisão.

Comunidades científicas regionaisO CIDE se constitui de uma comunidade de apren-

dizado cuja base é a atividade e metodologia científica e o acesso a plataforma tecnológica (Endnote e outras ferramentas da internet) da mais alta ordem possível graças aos avanços na informática e comunicação.

O objetivo do CIDE é formar Comunidades Científicas Regionais. A comunidade é formada com base no grupo de “cérebros” que compartilham um interesse no de-senvolvimento científico e colocam todos seus esforços para atingir o objetivo. Geralmente são indivíduos que pertencem a instituições educacionais, centros de pes-quisa e, em um pequeno percentual, empresas privadas. Nas palavras de um de seus fundadores: “acima de tudo estamos interessados em gerar ‘cérebros’ que já estejam envolvidos em atividades profissionais (ensino, pesquisa, análise de laboratório, agricultura, cultivo etc.)” Está claro que essas comunidades não surgem de universida-des, mesmo quando estão envolvidas em pesquisa, pois, exibem diferentes objetivos.

Dessas comunidades surgiram os centros de pesquisas regionais virtuais, ou seja, instalações que são negociadas

pelos próprios membros do CIDE através de contatos, como laboratórios, para conduzir experimentos conforme necessário para os alunos, salas de reunião para socialização do conhecimento, ou encontros informais. Esse foi o caso na primeira instituição onde o programa foi oferecido, a Universidade de Colima, onde o CIDE pode utilizar o laboratório de Biotecnologia da instituição para produzir importantes resultados científicos que foram posteriormen-te publicados em revistas científicas internacionais. A seguir está uma lista das Comunidades Científicas Regionais que foram criadas e algumas de suas linhas de pesquisa.

Colima (1982) - A comunidade já produziu em instalações de laboratório mais de 20 teses de dou-torado que foram publicadas em revistas científicas internacionais. Os campos de pesquisa são: adaptação a altas temperaturas climáticas e secas, domesticação de vegetais, fertilidade biológica do solo, ecologia de ruminantes, interação planta-patogenia, produção in vitro de células tiróides.

Torreón (1999) - Pesquisa conduzida sobre hiper-tensão portal de galinhas, uso de cromo na alimentação animal, degradação de paredes celulares por organismos ruminantes, imunologia, dengue, malária, reprodução animal, proteínas de choque calórico, polinização com abelhas.

Sinaloa (2001) - O trabalho é conduzido com fito-remediação e fito-extração de ouro, entono-patogenia de nematóides, biotecnologia aplicada à tuberculose, determinação de custos de produção de dados cientí-ficos, bio-sensores, produção de camarão em fazendas, interação planta-patogenia, construção de barragens subterrâneas, re-ordenamento territorial, produção de espécies alternativas, população genética de crocodilos, eco-turismo.

Puebla (2001) - Pesquisa sobre proteínas priônicas, tuberculose.

Nayarit (em processo de formação) - Pesquisa sobre tuberculose, princípios científicos da homeopatia.

O CIDE é um sistema social de características pe-culiares. Está sendo operado ao longo de 20 a 25 anos, com resultados positivos. Infelizmente, a experiência não foi propriamente documentada, por isso nosso trabalho de “data mining” tem sido torturante. De acordo com López-Pérez (2004), o objetivo do CIDE é a formação das Comunidades Científicas Regionais, e isto tem sido gradualmente atingido. O mesmo informante declara que 77 indíviduos se graduaram no CIDE com graus de Mestrado e Doutorado. Isso não é, nem pretende ser, a solução para os problemas de alto nível de formação de recursos humanos para o país, todavia é uma alternativa viável para profissionais que necessitam alcançar um grau acadêmico mais alto, mas não podem atender a programas de graduação tradicionais.

O CEJUS se tornou uma ligação coesiva dos dife-rentes grupos do CIDE distribuídos pelo país. Por outro lado, o CEJUS é um projeto de educação alternativa que compartilha muitas características com o CIDE (JIMÉNEZ, 1992, p.415; JIMÉNEZ et al., 1999, p.171; ZÚÑIGA, 2004).

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Em síntese, a experiência do CIDE demonstra que é possível alcançar os objetivos desejados com o siste-ma cujas partes desfrutam de ampla flexibilidade, sem a necessidade de uma infra-estrutura física e humana onerosa. A “cola” que une as diferentes partes desse sistema é, certamente, a motivação que cada membro tem para alcançar os seus objetivos pessoais, assim como os objetivos gerais do CIDE.

Modo 3 de produção de conhecimento: pesquisa socialmente responsável

Como podemos definir o Modo 3 de produção de conhecimento? Esse modelo apresenta algumas das pro-priedades do Modo 2, porém com a característica distinta

de estar proximamente ligado às atuais necessidades sociais. Pode ser discutido que toda a ciência existe em benefício da humanidade. Mas a afirmação é questioná-vel e necessita ser provada. Existem vários exemplos de ciência que direta ou indiretamente prejudica o bem-estar da humanidade.

As Comunidades Científicas Regionais do México são formas inovadoras de criar conhecimento. Paradoxalmen-te, a propriedade de “responsabilidade social” que aparece no Modo 2 como um aspecto discutível está realmente presente nessas novas formas de se fazer ciência. Além disso, as iniciativas no Modo 3 são ascendentes (de baixo para cima) enquanto no Modo 2 são descendentes (de cima para baixo). A Tabela 2 compara as características mais relevantes dos Modos 2 e 3.

Tabela 2 – Comparação entre as características do “Modo 2” e do “Modo 3”, como observado nas “Comunidades Científicas Regionais” mexicanas

PROPRIEDADE MODO 2 MODO 3

Problemas colocados e resolvidos no contexto das aplicações Sim Sim

Transdisciplinar Sim Sim

Heterogeneidade Sim Não necessariamente

Organização heterárquica Sim Sim

Transitória Sim Não necessariamente

Controle de qualidade realizado por diversos atores

Sim Sim

Mais socialmente responsável e reflexivo

Não Sim

Iniciativa ascendente Não Sim

Podemos afirmar que estamos diante de novas for-mas de se fazer ciência que atende as demandas atuais do contexto social. Por outro lado, o Modo 2 pretende descrever como a ciência está organizada para lidar com as demandas do conhecimento competitivo, pronta para utilizar nos produtos e serviços, em um mundo globali-zado economicamente. Por outro lado, as Comunidades Científicas Regionais de fato respondem às necessidades sociais e materiais regionais reais. As Comunidades Cien-tíficas Regionais são a resposta para as necessidades e desejos de um segmento da sociedade, implementando formas alternativas de aprendizagem e pesquisa que se adaptam melhor às condições sociais e econômicas do segmento a que serve.

As Comunidades Científicas Regionais respondem, com efeito, às demandas e necessidades da sociedade como um todo, isto é, são responsáveis socialmente. O Modo 2, por outro lado, responde mais prontamente às necessidades do mercado que não necessariamente levam em consideração as necessidades da sociedade.

ConclusõesAs Comunidades Científicas Regionais do México

são apenas um exemplo Latino-americano de novas formas de se fazer pesquisa. Os cientistas do CIDE se remetem a forma de organização da aprendizagem e pesquisa semelhante àquela praticada por eles aconte-cendo na Finlândia, um país escandinavo com cultura e costumes bem diferentes. Por outro lado, as novas formas de interação entre ciência, tecnologia e sociedade em que se baseiam o trabalho das pessoas juntamente com cientistas para produzir e difundir o conhecimento, foram desenvolvidos na França. O termo “pesquisa na loucura” foi elaborado para se referir a esse novo fenô-meno (CALLON et al., 2003). Esses autores descrevem a organização dos parentes de pacientes com distrofias musculares, para coletar informação sobre a geração e desenvolvimento dessa terrível doença. Os parentes discutem os achados com especialistas, se envolvendo em um novo tipo de interação onde os cidadãos contri-buem para o conhecimento de uma doença de tal com-

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plexidade que vai além da capacidade dos especialistas para obter um melhor entendimento da mesma. Nesse caso, os grupos interessados mostram a forma como as pesquisas devem ser conduzidas, demandando até mes-mo os especialistas para explorar as linhas de pesquisa descobertas por eles.

Concluindo, na alvorada do século 21, estamos diante de novas formas de se fazer ciência como obser-vado pelos proponentes do Modo 2, e no Modo 3 como mostrado neste artigo. Essas novas formas atuam em diferentes frentes: alguns (Modo 2) buscam satisfazer as demandas por conhecimento para beneficiar a eco-nomia globalizada, servindo aos interesses de poucos. Outros (Modo 3), como as Comunidades Científicas Regionais, são congruentes com o “espírito de Budapes-te”, e objetivam a ciência para estar a serviço daqueles que a sustentam, servindo aos interesses de muitos, e resultando em uma melhor qualidade de vida coletiva. O principal ponto do Modo 3 é a busca por solucionar os problemas sentidos de uma comunidade específica, sendo na verdade mais socialmente responsável do que o Modo 2.

AgradecimentosA Juan Carlos Escalante e Marcelo Ramírez pelas dis-

cussões sobre o conteúdo desse artigo durante sua con-cepção, além de sua contribuição na revisão das tabelas e a compilação de referências.

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Sobre o autor

Jaime JiménezEstudou Física no Universidade Nacional Autônoma do Mexico (UNAM) e seguiu a carreira de pesquisador em Ciências Espaciais na mesma instituição. Seu interesse em sistemas no seu sentido mais amplo o levou a fazer um doutorado sob a direção de Russell L. Ackoff e Eric Trist na Wharton School da Universidade da Pennsylvania. É pesquisador em período integral para o Institute of Applied Mathematics and Systems (IIMAS), UNAM, desde 1972. É fundador e chefe do Departamento de Modelos Matemáticos dos Sistemas Sociais na IIMAS. Atualmente, está envolvido em pesquisa de sistemas de ciência e tecnologia, educação e saúde. Além disso, ele é especiali-zado em processo de desenvolvimento, planejamento estratégico participativo, qualidade de vida profissional, qualidade total e grupo dinâmico associado a mudança organizacional. Desenvolvou e utilizou extensivamente a modalidade de Emery and Trist’s Search Conference, chamada de Reflection and Design Conference, como uma ferramenta para iniciar os processos robustos do planejamento estratégico participativo. Conduziu projetos de pesquisa para a UNESCO, OIT e agências públicas mexicanas. É editor do Newsletter em C&T e editor-associado de “Science Studies”. É o atual presidente da International Sociological Association, Research Committee 23: Sociology of Science and Technology. Publicou vários livros e artigos em revistas científicas especializadas. Em termos de posições administrativas, foi chefe de departamento e secretário acadêmico na IIMAS. Atualmente conduz um seminário de doutorado em planejamento na UNAM. Desde o início dos anos 1980, é consultor de organizações públicas e privadas, nacionais e internacionais.

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Pesquisas em andamento

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

Mansonelose no Médio Rio Purus (Amazonas)

DOI: 10.3395/reciis.v2i1.113pt

Yara Leite AdamiLaboratório de Simulídeos e Oncocercose,Referência Nacional em Simulídeos, Oncocercose e Mansonelose,Instituto Oswaldo Cruz-Fio-cruz, Rio de Janeiro, [email protected]

ResumoA Mansonella ozzardi é um parasita filarial autóctone do continente Americano que freqüentemente infecta seres humanos na Amazônia. A infecção humana pelo M. ozzardi ainda é considerada como não patogênica apesar da variedade de sintomas relacionados, tais como febre, dores articulares, dor de cabeça, linfadenopatia, eosinofilia e erupções pruríticas da pele. Durante uma expedição no estado do Acre, visitamos a aldeia indígena Kamikuã, loca-lizada ao longo do rio Purus, próximo à cidade da Boca do Acre (Amazonas). Os habitantes foram diagnosticados como hospedeiros de vermes caninos (Dirofilaria immitis), porém as amostras de sangue coletadas de alguns indiví-duos evidenciaram infecções causadas pelo M. ozzardi. Na verdade, as populações humanas de área endêmicas estão sempre reclamando sobre sintomas de infecção de M.ozzardi e continuam vivendo juntos com altas doses parasíticas na expectativa de um diagnóstico correto e tratamento. Os estudos sobre quimioterapia para Mansonelose e controle deveriam ser levados adiante para adicionar conhecimento sobre a infecção e dar esperança e respostas para aqueles que vivem em áreas endêmicas.

Palavras-chave

Mansolenose, infecção, tratamento, Ivermectina, Mansonella

A Mansonella ozzardi, é um dos oito parasitas filariais que comumente infectam humanos, e é endêmica em várias regiões tropicais da América do Sul e Central.

Porém, no Brasil, apenas a Onchocerca volvulus e a Wuchereria bancrofti são consideradas agentes da filariose e problemas de saúde pública pelas organizações de saúde.

A M. ozzardi é nativa do continente Americano, e freqüentemente encontrada entre as populações indíge-nas. A primeira descrição no Brasil foi feita em 1949 pela Dra. M. Deane em Manaus, estado do Amazonas.

No Brasil sua presença parece estar confinada a algumas áreas geográficas como Alto Amazonas (rio Solimões) e ao longo dos rios Purus e Negro (MORAES et al., 1985). Nessas regiões, existem dois potenciais vetores que dividem a mesma distribuição – Simulium amazonicum e S. argentiscutum – que aparentemente são responsáveis pela transmissão do parasita (SHELLEY et al., 1980; MEDEIROS et al., 2004).

Diferentemente do Brasil, nas Ilhas do Caribe e também na Argentina, díptero da família Ceratopogonidae,

Marilza Maia-HerzogLaboratório de Simulídeos e Oncocercose,Referência Nacional em Simulídeos, Oncocercose e Mansonelose,Instituto Oswaldo Cruz-Fio-cruz, Rio de Janeiro, [email protected]

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os gêneros Culicoides são incriminados da transmissão (SHELLEY et al., 2001).

Além da Amazônia, esse parasita filarial pode ser encontrado – mesmo em extensões limitadas – nos es-tados do Acre, Mato Grosso (região norte) e Roraima (DEANE et al., 1953; OLIVEIRA, 1963; MORAES et al., 1985).

A maioria dos estudos sobre infecções causadas pelo M. ozzardi foram realizados há muito tempo e seus objetivos foram mostrar a situação epidemiológica sobre as infecções humanas por parasitas filariais no Brasil. De fato, a maioria não contribuiu com muitos dados sobre a sintomatologia, e assim o conhecimento sobre o assunto ainda é pobre. Talvez isso possa ser explicado pelo fato da infecção humana pelo M. ozzardi ser ainda considerada como não patogênica apesar da variedade de sintomas relacionados como febre, dores articulares, dor de cabeça, linfadenopatia, eosinofilia e erupções pruríticas da pele.

Neste trabalho, descreveremos a expedição a uma vila indígena, cujos habitantes mostraram tanto - alta prevalência e carga parasítica - de infecções do M. ozzardi e a dificuldade de questões relacionadas ao tratamento que nosso grupo se deparou na área.

Em julho de 2006, um estudo preliminar sobre infecção filariase entre populações ripárias dos rios Acre e Purus foi organizada pelo nosso laboratório com apoio logístico pela Funtac (Fundação de Tecnologia do Acre) e da Secretaria de Estado de Saúde do Acre. A equipe foi composta por profissionais multidisciplinares sendo esses um assistente social, um antropólogo, um físico, três biólogos e um químico.

Durante a expedição, visitamos a aldeia de Kamikuã localizada ao longo do rio Purus, próximo à cidade de Boca do Acre (S 08045´07´´O 67023´52´´) no estado do Amazonas na fronteira com o estado do Acre (Figura 1). Os habitantes foram diagnosticados pelos médicos locais como hospedeiros de vermes caninos (D. immitis) em seu sangue e a maioria apresentou dores articulares, doença de pele não-definida e mal-estar geral. De fato, dados anteriores obtidos através de ensaios de ELISA realizados em nosso laboratório com as proteínas recombinantes Ov10, Ov11 e Ov16 do O. volvulus, mostrou que alguns eram reativos aos antígenos parasitários (comunicação pessoal).

Nosso grupo conseguiu uma autorização com o governo local responsável pela Saúde Indígena (DESEI/Boca do Acre) cuja responsável era Maria de Nazareth Pinheiro e o principal líder Kamikuã. Assim, houve uma explicação sobre o estudo parasitológico e as abordagens envolvidas aos habitantes e aqueles que concordaram em ser voluntários assinaram um Termo de Consentimento previamente aprovado pelo Comitê de Ética da Fiocruz (Parecer 281/05). O Termo foi preparado para registrar dados pessoais e clínicos tais como presença/ausência de qualquer tipo de doença de pele, pruríticas, dor de cabeça, frieza nas pernas, linfadenopatia, e dores articulares, que podem estar presentes em pacientes da mansonelose.

Alguns dos habitantes do Kamikuã foram bastante receptivos, mas alguns estavam suspeitos e se recusaram em voluntariar; apenas sete indivíduos concordaram em ser examinados.

Conforme descrito a seguir, realizamos uma coleta de sangue para posterior análise em nosso laboratório, uma vez que condições no campo eram realmente precárias.

Figura 1 - Localização geográfica da Boca do Acre, Amazonas, Brasil. Fonte: adaptado do Google Maps.

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As coletas de amostras de sangue venoso foram rea-lizadas com seringas de 10ml esterilizadas e descartáveis e no momento da coleta foram preparados filmes de sangue espesso seguidos de desemoglobinização, fixadas em metanol e coradas por Giemsa. Para minimizar fal-sos resultados negativos foi depositado 1 ml do sangue venoso em um tubo de poliestireno com 10 ml de uma solução de formalina 2% para o Método Knott e depois de um período de 12 horas, os filmes espessos foram preparados com o sedimento depositado, fixados com metanol e corados com Giemsa.

“O teste de Fischer foi realizado utilizando o programa GraphPad Prism versão 4.00 para Windows, GraphPad Sof-tware San Diego California, USA, www.graphpad.com.”

As análises dos espécimes de sangue obtidas através dos filmes espessos e Método Knott mostraram que 6 dos 7 voluntários estavam infectados pelo M. ozzardi (Tabela). Adicionalmente, nos 4 voluntários infectados (66.7%) foi possível notar altas cargas parasíticas (Fi-gura 2), algumas com mais de 100mf/20µl de sangue e a maioria reclamou de mal-estar generalizado, dores articulares e de cabeça.

Figura 2 – Microfilárias de Mansonella ozzardi com coloração pelo Giemsa isoladas de um voluntário Kamikuã. 100X. Fonte: microfotografia do autor.

Tabela - Infecções por Mansonella ozzardi na aldeia de Kamikuã detectado através de dois métodos de amostragem

Método Infectados (total) Não-infectados (total) Taxa de infecção (%)

Filmes espessos 5 (7) 2 (7) 71.4

Teste de Knott 6 (7) 1 (7) 85.7

Apesar do Método Knott ter sido capaz de detectar uma falsa infecção negativa no filme espesso, não houve significância estatística quando a comparação dos resul-tados dos dois métodos foi realizada (p > 0.05).

Nossos resultados preliminares na aldeia de Kami-kuã mostraram que 85,7% dos voluntários eram positivos para infecção do M. ozzardi como detectado através do Teste de Knott e que isso pode ser uma subestimação da aldeia local por conta de nossa amostra reduzida. De fato, descobrimos que os Kamikuã estavam bastante preocupados com a etiologia de suas infecções e questões relativas ao tratamento.

Esses resultados destacaram uma situação ética crítica: como explicar a população da aldeia que não existe uma política de tratamento oficial estabelecida para a mansonelose?

A Ivermectina é o medicamento escolhido nos programas de tratamento e controle do Onchocerciasis (por sua conhecida atividade microfilaricida) e também por ter se demonstrado útil na depuração sanguínea de microfilárias de W. bancrofti.

Neste último caso, alguns pacientes microfilarêmi-cos mostraram leves reações sistêmicas, tais como febre, dores de cabeça e musculares.

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Tais reações sistêmicas são proporcionais à microfila-remia, sendo despertadas por elevadas cargas parasitárias, mas mostraram um espectro auto-limitado e desapare-ceram depois de 48 horas de tratamento (DREYER et al., 1997).

Da mesma forma com o W. bancrofti, a Ivermectina teve atividade contra as microfilárias M. ozzardi e a depu-ração induzida dessas formas de sangue foram atingidas (NUTMAN et al., 1987).

Nas áreas onde existem programas de controle de oncocercose, o medicamento é empregado em tratamen-to de massa e os habitantes recebem o medicamento duas vezes ao ano sem nenhum custo. Nessas regiões, é comum detectar casos de infecção por M. ozzardi e os técnicos do Ministério da Saúde brasileiro têm enviado medicamento para alguns indivíduos infectados que por sua vez apresentaram reações sistêmicas (comunicação pessoal), como descrito acima para bancroftianas, que pode ter sido causada por conta da rápida destruição dessas formas de parasitas de sangue no sangue venoso. Como esses resultados não eram oficiais, desde então, a recomendação é cautela em relação aos pacientes com mansonelose.

Recentemente, novas perspectivas são represen-tadas pela bactéria simbiótica intracelular do gênero Wolbachia. Esses são encontrados em nematóides filariais de importância médica como O. volvulus e W. bancrofti, e sua presença nas microfilárias M. ozzardi já foram de-monstradas (CASIRAGHI, 2001) apoiando a evidência adicional de que a bactéria poderia ser alvo da quimio-terapia. Na verdade, esses achados poderiam significar um argumento para o uso de drogas antibactericida tais como tetraciclina e doxaciclina para curar a doença filarial (FENN et al., 2004).

Nossa pesquisa epidemiológica sobre a prevalência do M. ozzardi na aldeia de Kamikuã é objeto para outra expedição à Boca do Acre, mas concluímos que os estudos em relação à epidemiologia da mansonelose na Amazônia brasileira devem ser tocados mais seriamente para forne-cer evidências de comprovação para essa patologia e base para estudos quimioterapêuticos e esquemas seguros de administração de medicamentos.

AgradecimentosAo Departamento de Ações Básicas de Saúde/Se-

cretaria Estadual de Saúde do Acre, e a Fundação de Tecnologia do Acre pelo suporte logístico. Ao Dr. Arlindo Serpa Filho pela sugestão do tópico deste manuscrito; Dr. Sixto Coscarón e Dr. Guilherme Herzog pela revisão crítica deste artigo; e Ana Carolina dos Santos Valente pela assistência técnica. Esse trabalho foi apoiado pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro), e pela Coordenação de Pós Gradua-ção em Biologia Parasitária do Instituto Oswaldo Cruz (PGBP/IOC/Fiocruz/RJ).

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62 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.58-62, jan.-jun., 2008

Sobre os autores

Yara Leite AdamiPossui graduação em Bioquímica pela Universidade Federal Fluminense, Mestrado em Biologia Parasitária pelo Instituto Oswaldo Cruz no Laboratório de Pesquisas em Malária da Fundação Oswaldo Cruz, Imunologia. Atual-mente é doutoranda em Biologia Parasitária pelo Laboratório de Referência Nacional em Simulídeos, Oncocercose e Mansonelose do Instituto Oswaldo Cruz-Fiocruz em um projeto cujo objetivo é mapear as infecções humanas por filarídeos e sua distribuição no Alto/Médio rio Purus, epidemiologia.

Marilza Maia HerzogPossui graduação em Ciências Biológicas pela Fundação Técnico Educacional Sousa Marques, mestrado em Medicina Veterinária pela UFRRJ e doutorado em Biologia Parasitária pelo Instituto Oswaldo Cruz-Fiocruz. Atual-mente, é pesquisadora e chefe do Laboratório de Simulídeos – Referência Nacional em Simulídeos, Oncocercose e Mansonelose, Instituto Oswaldo Cruz-Fiocruz.

63RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.63-67, jan.-jun., 2008

ResumoEste trabalho estabelece um novo modelo de cálculo padrão de financiamento para os novos esquemas médicos co-operativos (NCMS). O objetivo principal deste novo modelo é analisar o relacionamento dinâmico entre os padrões de financiamento NCMS, proporção de reembolso, cobertura de doenças e o modo de reembolso de NCMS.

Palavras-chaveNovos esquemas médicos cooperativos, reembolso, modelo de cálculo

Pesquisas em andamento

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

Desenvolvimento e aplicação do modelo – Resolvendo o dilema escopo versus

profundidade na cobertura de eventos catastróficos e de alta-freqüência

DOI: 10.3395/reciis.v2i1.125pt

Hong-man WangCentro de Desenvolvimento de Saúde Global e Social, Universidade de Pequim, Cen-tro de Ciências da Saúde, Pequim, República Popular da [email protected]

As discussões sobre um modelo de cálculo de re-embolso para os novos esquemas médicos cooperativos (NCMS) ocorrem durante um período da recente atenção sem precedente do governo aos desafios do setor de saú-de rural na República Popular da China. O documento de outubro de 2002 do Comitê Central e do Conselho Estadual, “Decision on Further Strengthening Rural Health Work” fornece a base dos esforços do governo para fortalecer os serviços de saúde rurais. Este e outros documentos oficiais estabelecem uma série de desafios que precisam ser tratados se os objetivos do governo para melhorar a qualidade e aumentar o acesso aos serviços de saúde para a população rural tiverem que ser realiza-dos. Estes documentos da política também estabelecem as amplas linhas de uma resposta política, incluindo o

desenvolvimento de novos mecanismos de financiamento nas áreas rurais (NCMS, Esquema de Assistência Médica - MA, e o Programa Básico de Seguro Saúde - BMI), e as propostas gerais para tratar do aumento de custos e deficiências na prestação do serviço. Estes esforços são uma etapa essencial para atender os desafios da saúde rural da China. Porém, desafios significativos permane-cem se o governo tiver que alcançar seus objetivos de melhoria de qualidade e de acesso aos serviços de saúde rurais. Embora os novos recursos financeiros do governo para a saúde rural sejam uma condição necessária para as melhorias, o governo está ciente de que uma série de restrições administrativas e institucionais precisam ser tratadas a fim de garantir que os recursos disponíveis tenham o maior impacto possível sobre os resultados da

64 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.63-67, jan.-jun., 2008

saúde. Estas restrições resultam de duas áreas amplas: financiamento da saúde e entrega do serviço. Pode ser útil observar que muitos países de renda média (na Europa Central e Oriental, América Latina e Ásia) estão enfren-tando desafios semelhantes e desenvolvendo políticas para tratá-los. Portanto, este modelo e algumas destas experiências podem ser aplicáveis não apenas ao uso no contexto chinês, mas, também, em outros.

Em termos de entrega de serviço de saúde, o governo mobilizou recentemente uma quantidade significativa de recursos para sustentar o sistema de prestação de serviço de saúde rural. Estes novos recursos são uma resposta aos compromissos assumidos nos 9º e 10º planos qüinqüe-nais, assim como às deficiências do sistema de saúde que se tornaram aparentes durante o início da SARS. Já foram feitos investimentos em infra-estrutura, equipamentos e desenvolvimento, e outros compromissos foram feitos para o 11º plano qüinqüenal. Esta injeção de recursos – cujos alvos foram inicialmente as instituições de saúde pública, hospitais do condado, e centros de saúde muni-cipais – acarretará uma atualização importante tanto das instalações, quanto dos recursos humanos.

Na área do financiamento de saúde, os esquemas NCMS e MA são inovações importantes. Eles represen-tam uma mudança do financiamento do lado do supri-mento para o lado da demanda e proporcionam novas oportunidades não apenas para aumentar o suporte do governo à saúde para a população rural, mas também melhorar a prestação de contas e desempenho dos pres-tadores de assistência de saúde.

Este trabalho estuda o modelo de cálculo de reem-bolso para os NCMS a fim de resolver o dilema escopo vs. profundidade na cobertura de eventos catastróficos e de alta-freqüência, para que este programa possa efetiva-mente auxiliar o governo a tratar deste desafio.

Desde 2003, de acordo com os documentos do go-verno (CHINA STATE COUNCIL, 2003; 2004) projetos NCMS pilotos têm sido agora implementados em toda a China. Porém, os esquemas são novos e enfrentam desa-fios consideráveis. Em parte, estes desafios se relacionam a como os esquemas são projetados e administrados. Os desafios de projeto importantes incluem a mobilização de recursos (ex: garantir um nível adequado de financiamen-to, contribuições relativas por pessoas físicas e diferentes níveis do governo, e objetivo de subsídios públicos), projeto de um pacote de benefícios proporcional ao financiamento (ex: integridade atuarial, equilíbrio entre a cobertura de eventos catastróficos e de alta-freqüência, escopo vs. profundidade) e regime de participação (que trata da seleção adversa em NCMS, critérios de qualifi-cação em MA). Existem também desafios aos programas NCMS e MA com relação a providências administrativas e de gerenciamento.

Durante os últimos três anos, a implementação dos esquemas foi modificada em um certo grau para resolver conflitos entre a extensão e profundidade dos benefícios. No momento, porém, um dos tópicos mais debatidos é como determinar um modelo adequado para NCMS: continuar a usar o modelo de assistência médica pública existente, usar o modelo de benefício inferior do sistema

de seguro saúde do empregado urbano ou explorar um novo modelo que é adequado às características especiais da população agrícola (WANG, 2006).

O NCMS foi inicialmente criado como um “esque-ma de cooperativa médica destinado principalmente ao tratamento das doenças principais para a população agrícola” (CHINA STATE COUNCIL, 2003; 2004). Porém existem pontos de vista diferentes sobre como definir “doenças principais” em diferentes departamentos e campos. Por exemplo, o sistema de seguro saúde urba-no dirigido pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social define algumas doenças especiais como doenças principais. Além disso, existem pontos de vista diferentes dentro do próprio sistema de saúde. Alguns estudiosos argumentam que “doenças principais” são as doenças cujos custos de tratamento são superiores ao limite máximo estabelecido pelo governo, que normalmente é quatro vezes o salário local médio” (ZHAO LIN-HAI et al., 2006), enquanto outros estudiosos definem “doença menor” como as doenças com breve período de incidência e breve período de recuperação, enquanto o oposto é defi-nido como doenças principais (CONG SHU-HAI, 2006). Além disso, alguns administradores de saúde acreditam que a diferença entre as doenças principais e as doenças menores é se os pacientes recebem atendimento, ou não. Porém, os dados da pesquisa da população agrícola indicam que as próprias populações agrícolas definem “doença principal” e “doença menor” usando padrões múltiplos, incluindo curso da doença, pagamento, neces-sidade de hospitalização e desenvolvimento da doença em diversos níveis. Em resumo, existem várias maneiras de definir a doença principal e estas definições têm um impacto sobre como os padrões de financiamento são calculados. Portanto, existe uma grande necessidade para administradores terem um modelo de cálculo padrão que não apenas define a doença principal, de acordo com o impacto econômico, mas também traz à cena outros aspectos da doença importantes para a segurança da saúde de uma forma intuitiva, razoável, dinâmica e simples. Este trabalho estabelece para projetar tal modelo de cálculo para NCMS, que se destina principalmente a analisar os relacionamentos dinâmicos entre o padrão de financiamento NCMS, a proporção de reembolso, a cobertura da doença e o modelo de reembolso NCMS.

Construção do Modelo1. Obter a população agrícola total da área (F).2. Obter as doenças que ocorrem com maior fre-

qüência (D) e a taxa de prevalência (P) da área, que podem ser obtidos junto ao Departamento de Vigilância de Doenças ou através da avaliação da demanda por tratamento médico.

3. Obter os tipos de doenças, quantidade de casos e pagamento médico destas doenças de hospitais em todos os níveis na área e calcular o custo total de cada doença (C).

Os dados modelos de uma área hipotética estão listados abaixo na Tabela 1 como um exemplo para aju-dar a explicar a interpretação do modelo com os dados simulados na Tabela 2.

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Primeiro, obtenha as informações sobre a situação da doença na área. Estas informações podem ser obtidas ao avaliar a demanda de tratamento médico na área ou pela sua obtenção junto ao Departamento de Vigilância de Do-enças. Por exemplo, após avaliar a demanda por tratamento médico, nós coletamos os dados das doenças mais freqüen-tes nesta área hipotética apresentam: resfriado, apendicite, pneumonia infantil, hipertensão, diabete mellitus, doenças cardíacas, câncer de estômago e câncer de fígado.

Segundo, o pagamento médico de cada doença pode ser calculado ao reunir dados do pagamento mé-dico de hospitais de todos os níveis na área. Aqui, nós listamos estes números na segunda coluna da Tabela 1, em ordem decrescente. Por exemplo, em um ano, houve 2000 casos de resfriados curados nas organizações de tratamento no nível de cidade na área, e foram gastos RMB 40.000 yuans (unidade da moeda chinesa) no total. Da mesma forma, existem 1000 casos curados nos hospitais municipais a um custo de 36.000 yuans. Nos hospitais distritais, 800 casos foram curados a um custo de 32.000 yuans. Finalmente, 500 casos foram curados em hospitais urbanos, a um custo de 30.000 yuan. Destes custos, calculamos que o custo médio para curar um caso de resfriado nesta área é de: C1 = 40000 + 36000 + 32000 + 30000 ÷ 2000 + 1000 + 800 + 500 = 32.09 yuans. Nós, depois, usamos este método para obter o custo de tratamento médio de cada doença nesta área: resfriado, 32,09 yuans; apendicite, 2.000 yuans; pneumonia infantil, 4.500 yuans; hipertensão, 6.400 yuans; diabetes mellitus, 8.500 yuans; doenças cardíacas, 10.600 yuans; câncer de estômago 35.000

yuans; e câncer de fígado, 45.000 yuans.Terceiro, liste as taxas de prevalência de cada doença

na área na terceira coluna da Tabela 1. As taxas de pre-valência de cada doença também podem ser obtidas ao avaliar a demanda de tratamento médico na área, ou do Departamento de Vigilância de Doenças. Neste exemplo simulado, as taxas de prevalência que obtivemos estão listadas na terceira coluna da Tabela 2.

Quarto, de acordo com a população agrícola total, nós calculamos o número de casos para cada doença, e os listamos na quarta coluna da Tabela 1. Se supormos que a população agrícola total da área é de 3.000.000, depois multiplicarmos a população agrícola total da área pela taxa de prevalência de cada doença na área, e o resultado é a quantidade de casos para cada doença. A lista dos resulta-dos simulados estão na quarta coluna da Tabela 2.

Quinto, multiplique o custo médio pelo número de casos de cada doença para obter o pagamento médico total de cada doença na área, e, depois, liste os resultados na quinta coluna na Tabela 1.

Finalmente, de acordo com o pagamento médico total de cada doença na área, calcule o pagamento total acumu-lado e liste os resultados na sexta coluna na Tabela 1.

Através do procedimento apresentado acima, nós obtemos o modelo de cálculo apresentado como Tabela 2. Para fornecer um entendimento mais concreto do modelo, nós usamos uma série de doenças simuladas e taxas de prevalência para cada doença correspondente. Embora os dados simulados não sejam reais, mostram como o modelo pode ser aplicado.

Tabela 1 – O modelo de cálculo para Novos Esquemas Médicos Cooperativos

Doença1

Custo de cada doença

2

Taxa de Prevalência

3

Quantidade de casos

prevalentes4=F×3

Total pa-gamento médico5=2×4

Pagamento médico total acumulado

6=∑X

D1 C6 P6 N6 X6 T6D2 C5 P5 N5 X5 T5D3 C4 P4 N4 X4 T4D4 C3 P3 N3 X3 T3D5 C2 P2 N2 X2 T2D6 C1 P1 N1 X1 T1… … … … … …

Tabela 2 – Modelo de cálculo dos Esquemas Médicos Cooperativos em uma área simulada

Doença1

Custo de cada doença

2

Taxa de Prevalência

3

Quantidade de casos prevalentes

4=F×3

Total pagamento médico5=2×4

Pagamento médico total acumulado

6=∑X

Câncer de fígado 45000,00 0,85 0,26 11475,00 8250,00

Câncer de estômago 35000,00 0,95 0,29 9975,00 18225,00

Doença cardíaca 10600,00 1,20 0,36 3816,00 22041,00

Diabetes mellitus 8500,00 2,00 0,60 5100,00 27141,00

Hipertensão 6400,00 3,00 0.90 5760,00 32901,00

Pneumonia Infantil 4500,00 1,50 0.45 2025,00 34926,00

Apendicite 2000,00 2,00 0,60 1200,00 36126,00

Resfriado 32,09 10,00 3,00 96,27 36222,27

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No modelo, a proporção do reembolso é relacionada a dois fatores: primeiro, as doenças que pretende cobrir, e, segundo, o padrão de financiamento do NCMS, que é o determinante final da proporção reembolsada. As realidades econômicas normalmente ditam que o NCMS não pode cobrir todas as doenças na área. Portanto, para um administrador de NCMS, uma das tarefas mais im-portantes é traduzir a extensão da proteção que o NCMS pode proporcionar contra doenças graves em um padrão econômico com um claro entendimento das restrições orçamentárias governamentais. Neste modelo, as doenças graves que o NCMS planeja cobrir são traduzidas em uma série de custos médios decrescentes de cada doença (Ver coluna 2 na Tabela 1). Diversas aplicações diferentes são listadas abaixo.

Situação 1 – Cálculo da proporção de reem-bolso quando o padrão de financiamento e a cobertura da doença são conhecidos

Suponha que o padrão de financiamento na área seja: 10 yuans para cada membro participante do NCMS, 20 yuans por pessoa dos subsídios governamentais regionais e 20 yuans por pessoa dos subsídios estaduais, com um padrão de financiamento combinado total para cada membro participante de 50 yuans. Agora, suponha que o NCMS planeje cobrir doenças cujo custo médio seja mais de 6.000 yuans. Então, neste exemplo, as doenças que a NCMS planeja cobrir são: hipertensão, diabetes mellitus, doença cardíaca, câncer de estômago e câncer de fígado.

O procedimento de cálculo para o percentual de reembolso é o seguinte:

1. Calcule o valor total do fundo: 3000000 × 50 = 15000 (10.000 yuans).

2. Encontre o pagamento médico total cumulativo das doenças cobertas sob NCMS na sexta coluna na Tabela 1. Neste exemplo, de acordo com a sexta coluna da Tabela 2, o pagamento médico total cumulativo das doenças que a NCMS planeja cobrir (isto é, hipertensão, diabetes mellitus, doença cardíaca, câncer de estômago e câncer de fígado) é de 32.901 (10.000 yuans).

3. Calcule o percentual de reembolso: 15000 ÷ 32901 = 45,59%.

Situação 2 – Cálculo do padrão de financia-mento quando a proporção de reembolso e a cobertura da doença são conhecidos

Suponha que o percentual de reembolso esperado da população agrícola na área seja de 60%. Agora, suponha que o custo médio das doenças que a NCMS planeja recuperar seja, ainda, mais de 6.000 yuans. Então, neste exemplo, as doenças que o NCMS planeja recuperar são: hipertensão, diabetes mellitus, doença cardíaca, câncer de estômago e câncer de fígado.

Depois, o cálculo do procedimento do padrão de financiamento é o seguinte:

1. Encontre o pagamento médico total cumulativo de todas as doenças cobertas sob o NCMS na sexta co-luna na Tabela 1. Neste exemplo, de acordo com a sexta

coluna da Tabela 2, o pagamento médico total cumula-tivo das doenças que a NCMS planeja cobrir (ou seja, hipertensão, diabetes mellitus, doença cardíaca, câncer de estômago e câncer de fígado) é de 32.901 (10.000 yuans), a saber, 329,01 milhões de yuans.

2. De acordo com o percentual de reembolso esperado, calcule o valor total do fundo que deve ser financiado: 32901 × 60% = 19740.60 (10.000 yuans), a saber, 197,406 milhões de yuans.

3. Calcule o padrão de financiamento: 19740.60 ÷ 300 = 65,80 yuans.

Situação 3 – Cálculo da cobertura da doen-ça, quando o padrão de financiamento e o percentual de reembolso são conhecidos

Suponha que o percentual de reembolso esperado da população agrícola na área seja de 60%; suponha que o padrão de financiamento na área seja: 10 yuans de cada membro participante do NCMS, 20 yuans por pessoa de subsídios dos governos regionais e 20 yuans por pessoa de subsídios do governo estadual. Então, o padrão de financiamento total é de 50 yuans por pessoa.

Então, calcule as doenças que o NCMS planeja cobrir através do seguinte procedimento:

1. Calcule o valor total do fundo: 3000000 × 50 = 15000 (10.000 yuans), a saber, 150 milhões de yuans.

2. Calcule o pagamento médico total das doenças que o fundo NCMS pode cobrir: 15000 ÷ 60% = 250 milhões de yuans.

3. Localize o pagamento médico total acumulado das doenças que o fundo NCMS pode cobrir na Tabela. Neste exemplo, encontramos a posição do pagamento médico total acumulado das doenças que a NCMS pode cobrir na sexta coluna na Tabela 2 – 250 milhões de yuans é encontrado entre 22,041 milhões e 27,141 milhões. Se o NCMS planeja cobrir as doenças cujo custo médio seja mais de 8000 yuans, tais como diabetes mellitus, doença cardíaca, câncer de estômago e câncer de fígado, ele gastará a mais: (271,41-250) × 60% = 12,846 mi-lhões de yuans. Se o NCMS planeja cobrir as doenças cujo custo médio seja superior a 10.000 yuans, tais como doença cardíaca, câncer de estômago e câncer de fígado, ele terá um superávit de: (250- 220.41) × 60% = 17,754 milhões de yuans.

4. Equilibre a extensão do gasto em excesso e o superávit e reajuste, de forma razoável, o percentual de reembolso e as doenças cobertas. Neste exemplo, nós poderíamos optar por cobrir algumas poucas doenças tais como doença cardíaca, câncer de estômago e câncer de fígado, pois resultará num superávit de 17,754 milhões de yuans, que poderia aumentar o percentual de reembolso para 150 ÷ 220.41 = 68,05%. Nós poderíamos optar por cobrir mais doenças, para cobrir diabetes mellitus, doença cardíaca, câncer de estômago e câncer de fígado, porque isto gastará a mais 12,846 milhões de yuans, que iria diminuir o percentual de reembolso 150 ÷ 271.41 = 55,27%. A seleção, depende, então, muito da opinião de valor do administrador. Se eles preferirem um percentual

67RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.63-67, jan.-jun., 2008

de reembolso maior, eles irão diminuir na medida da co-bertura. Porém, se eles preferirem estender a cobertura, então, eles diminuirão o percentual de reembolso total.

Situação 4 – Cálculo sob condições dinâmicasAs aplicações apresentadas acima se baseiam em

um ponto fixo no tempo, mas se nós pudéssemos obter dados de uma série de anos contínuos da população agrícola total e incidência da doença, então poderíamos estabelecer uma série de modelos de ponto de tempo. Isto nos permitiria considerar o desenvolvimento econômi-co dinâmico da área enquanto calculamos o padrão de financiamento e o percentual de reembolso.

Se tivermos dados sobre as doenças mais freqüentes na área, nós também podemos usar este modelo. Pode-ríamos apenas listar as taxas de prevalência na ordem decrescente, e, então, da mesma forma, desenvolver o modelo e calcular o padrão de financiamento, o percen-tual de reembolso e a cobertura da doença.

AgradecimentoA Jason Manto, Yuanju Du, da Universidade de

Pequim, e Magnus Lindlow, do Banco Mundial, por seus comentários. Este trabalho é apoiado pelo Fundo Social Nacional e Fundo de Ciências de Pequim, República Popular da China.

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Sobre o autor

Hong-man WangProfessor Associado, Especialista Chefe na Universidade de Pequim, Projeto de Pesquisa da Política de Seguro e Saúde Nacional da China. Supervisor Especialista, Projeto do Banco Mundial “Strengthening Public Health Planning in Rural China”. Especialista de Avaliação, Fundação Nacional da China para Ciências Naturais. Bol-sista Especial de Pesquisa, Centro de Pesquisas sobre Envelhecimento, Academia de Ciências Sociais da China. Membro do Conselho da Academia, Associação de Promoção da Cultura Populacional da China. Membro do Comitê Central de Assistência Médica e Saúde da China da “Jiu San Scholar’s Association”. Especialista chefe, Comitê dos Novos Esquemas Médicos Cooperativos do Município de Pequim.

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Avanços tecnológicos

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

Relatório sobre o Programa de Pesquisa “Biomedicina na África”1

DOI: 10.3395/reciis.v2i1.126pt

ResumoEste programa de pesquisa examina como a ciência e a prática da biomedicina são modeladas através de seus envol-vimentos em vários contextos africanos. Consideramos a biomedicina como um conjunto circulante de tecnologias, práticas, e idéias que – como um subproduto de prevenção e tratamento – une os órgãos individuais à ordem polí-tica. Consideramos a África como um ponto central para entendermos as mudanças globais na criação de órgãos e subjetividades, bem como formas sociais, políticas e jurídicas de governança, exatamente porque o continente é tão marginalizado na economia política global e, assim, representa um local de intenso conflito e experimentação. Os sociólogos e antropólogos da medicina começaram a examinar a biomedicina através de estudos laboratoriais e da vida clínica na região Oeste. Houve pouco escrutínio da biomedicina nas áreas mais difíceis de países não-ocidentais onde crises humanitárias e emergências complexas envolvendo refugiados, guerras e epidemias são comuns. O nosso programa, enfocado regionalmente em Costa do Marfim, Quênia, Tanzânia, Angola e África do Sul tem por objetivo o preenchimento desta lacuna.

Palavras-chavesBiomedicina, criação da medicina tradicional, experimentação biomédica, intervenção humanitária, intervenção de saú-de, saúde e governança, órgãos administrativos, taxonomias biomédicas, personificações de tecnologias biomédicas

Richard RottenburgResearch Group on “Law, Organization, Science & Technology” (LOST)MPI for Social Anthropolo-gy, Halle, [email protected]

René GerretsResearch Group on “Law, Organization, Science & Technology” (LOST)MPI for Social Anthropolo-gy, Halle, [email protected]

IntroduçãoNeste relatório examinamos a criação da biomedi-

cina na África dentro do contexto de mudanças políticas e econômicas, como desregulamentação, privatização, descentralização e a restituição da nação-estado em uma era de mercados e redes de globalização. Estas mudanças afetam as relações entre estado, assistência médica, orga-nizações da sociedade civil e capital. Elas originam novos sistemas de governança que exigem formas mais rígidas de padronização de procedimentos médicos e novos ti-

pos de auditoria, ambos vulneráveis ao uso inadequado e falhas (ROSE, 2007). Procuramos demonstrar como a criação da biomedicina na África é um empreendimento científico com dimensões políticas, econômicas e legais (FLECK, [1935]1994). A dimensão legal abrange a definição de responsabilidades e direitos na área de saúde pública e pesquisa médica bem como assuntos de direitos de propriedade intelectual, seguro médico e administração de organismos humanos através de taxono-mias médicas. Examinando a criação da biomedicina na

69RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.68-73, jan.-jun., 2008

África, também endereçamos assuntos epistemológicos que surgem nas interseções entre diferentes formas de classificação e as idéias sobre distúrbios corporais e seus cuidados médicos (RHEINBERGER, 2006).

O programa compreende dez projetos de pesquisa in-dividuais agrupados ao longo de quatro eixos temáticos:

1. Wenzel Geissler – Estados mutantes da ciência na África Oriental

2. René Gerrets – Administrando a malária através de parcerias na Tanzânia

3. Thamar Klein – Questionando as percepções corporais na África do Sul

4. Stacey Langwick - Tradições globais, medicamen-tos da Tanzânia

5. Julie Laplante – Das raízes sul-africanas para o conhecimento global

6. Babette Müller-Rockstroh - Maternidade segura na Tanzânia na era da ART

7. Vinh-Kim Nguyen – Ajuda à AIDS na Costa do Marfim

8. Ruth Prince - ART e cristianismo carismático no Quênia ocidental

9. Virginie Tallio – Órgãos administrativos na An-gola pós-guerra

10. Julia Zenker - Modernização do tratamento tradicional na África do Sul

Eixo 1 - Tecnologias biomédicas e respectivas personificações

O primeiro eixo lida com assuntos de reprodução biológica e social na África de hoje, focalizando tecno-logias biomédicas que se tornaram significativas sobre como as pessoas imaginam e representam o futuro. Sele-cionamos quatro tecnologias que servem como exemplos paradigmáticos:

(1) a terapia anti-retroviral (ART) é um operador social poderoso para o restabelecimento da saúde dos indivíduos e por permitir que aqueles sob tratamento possam visualizar um futuro;

(2) compreensões biomedicamente sustentadas sobre sexo e práticas que fazem com que o sexo e o gê-nero sejam maleáveis, disponibilizam uma nova gama de identidades de gênero;

(3) tecnologias reprodutivas que variam da contra-cepção ao ultra-som fetal remodelam as relações sociais conforme as mulheres obtêm controle sobre sua saúde reprodutiva;

(4) o desenvolvimento de normas internacionais e práticas de padronização de populações para fazer com que sejam receptivas às intervenções biomédicas estabe-lecem formas particulares de cidadania.

Estes quatro desenvolvimentos paradigmáticos indicam uma mudança da visão antropológica clássica do corpo como uma tela em branco para a impressão de normas sociais a uma visão contemporânea onde as tecnologias biomédicas co-produzem novas personifi-cações e subjetividades originais (LOCK et al., 2000).

Conforme as possibilidades mudam, as subjetividades personificadas onde os indivíduos são interpolados, mal interpretados, ou aos quais o acesso é negado, também mudam (MOL, 2002).

Nossos estudos estão centralizados nas formas como os indivíduos se tornam entrelaçados – ou não – nas tecnologias médicas e nos fatores biológicos, po-líticos e econômicos que afetam estes entrelaçamentos. Isto serve como uma lente etnográfica para o exame da interpretação de tecnologias, práticas e idéias globais em formas locais e, reciprocamente, a interpretação das tecnologias, práticas e idéias locais em formas globais (WHYTE et al., 2002). Estas práticas de interpretação acontecem em estruturas discursivas propagadas por padrões culturais dominantes e disputas, movimentos sociais, regulamentos e controvérsias legais e políticas, e instituições transnacionais (ROTTENBURG, 2002). Nosso foco nos diversos mecanismos legais, bem como políticas, protocolos e estratégias retóricas empregadas pelos participantes do estado e de fora do estado permi-tem examinar como as formas globais entram e moldam a esfera privada de forma global.

O estudo de Thamar Klein examina como a globali-zação de discursos e tecnologias de sexo e gênero molda as identidades de gênero na África do Sul. Este projeto olha para as formas como as tecnologias são usadas – ou não usadas – para alterar organismos e interconexões entre sexo e gênero. A personificação é analisada com respeito à disponibilidade, oportunidades econômicas, acessibi-lidade das tecnologias, bem como consciência étnica, classe e religião. O estudo de Babette Mueller-Rockstroh focaliza a introdução do programa de tratamento ART em assistência médica reprodutiva que normalmente está ligada à propaganda de “sexo seguro” e ignora as normas reprodutivas em muitos países africanos. Ele examina a personificação tecnológica através de novos usos de tecnologias, como ART, que permitem às mulheres no-vos “mundos reprodutivos”. O estudo de Virginie Tallio investiga vacinações em Angola do pós-guerra e técnicas que tentam fortalecer as ligações entre os cartões de vacinação e os órgãos a que se referem.

O trabalho de Vinh-Kim Nguyen analisa o impac-to de tecnologias biomédicas relacionadas com Aids e discursos sobre reprodução biológica e social na África Ocidental, principalmente na Costa do Marfim. Alguns exemplos específicos são as técnicas de pesquisa participa-tiva que produzem relações sociais ao redor de identidades epidemiológicas, como “os trabalhadores sexuais” ou os efeitos da ART em grupos de auto-ajuda de pessoas que convivem com o HIV. De forma similar, o estudo de Ruth Prince explora o impacto de programas de ART em pes-soas jovens no Quênia ocidental, focalizando em como a Aids e ART estão biomedicamente moldando identidades definidas, caminhos para a saúde e relações de gênero e de parentesco. Ele examina o uso dos discursos globais sobre moralidade sexual, relações de gênero, saúde reprodutiva, o ego, delegação de poderes e responsabilidade no contexto das intervenções, perguntando como isto afeta a forma como administram suas saúdes e vidas.

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Eixo 2 - As interseções da biomedicina e da medicina tradicional

O segundo eixo lida com a função das terapias tradi-cionais na criação da biomedicina em África e o papel da biomedicina na moldagem das terapias tradicionais. Nós focalizamos em como as práticas médicas tradicionais e modernas se misturam, rompem e reforçam uma à outra na circulação de medicamentos, médicos, estruturas legais e éticas, e tecnologias de laboratório (RAJ, 2007). As organizações que financiam a profissionalização de médicos tradicionais e a sua integração nos serviços de saúde local impulsionam o movimento das medicinas tradicionais e médicos nas redes de serviços de saúde nacionais e mundiais (MEYER, [1997]2005). Ao mapear as medicinas tradicionais e viagens de especialistas, essa pesquisa irá identificar como a medicina tradicional permeia as paisagens terapêuticas na África e além.

Nossos estudos desafiam dicotomias compreensíveis que moldam a biomedicina como dominante ou liberal e a medicina tradicional como um recurso cultural ou um obstáculo ao desenvolvimento (WHYTE, 1982). Eles examinam como os interesses políticos, burocráticos e científicos na medicina tradicional na África provocam formas modernas de experimentação, sistemas éticos de pesquisa e tecnologias para assistência e distribuição. Eles também levantam perguntas sobre as relações entre a medicina e as novas formas de nacionalismo, regiona-lismo e globalismo.

A pesquisa de René Gerret examina as práticas do conhecimento dos especialistas em saúde nos cenários africanos marcados por pluralismo terapêutico e hibridis-mo. Ele investiga os atos dos corretores da interpretação sobre domínios lingüísticos, culturais e epistemológicos para examinar como a autoridade, o poder e a experiência são produzidos. O estudo de Stacey Langwick focaliza em como o interesse internacional na medicina tradi-cional está moldando a pesquisa científica em terapias herbárias na Tanzânia e como esta pesquisa na Tanzânia contribui para a formação de uma medicina tradicional global. Examina o desenvolvimento da medicina tradi-cional tanto como um projeto político e ético quanto como um projeto científico e tecnológico. A pesquisa de Julie Laplante focaliza na interseção do conhecimento tradicional e biomédico conforme eles são articulados no estudo clínico de um tratamento herbário. Ao investigar como os padrões criam diversidade ou apagam diferenças e como as leis são instrumentalizadas nos contextos da África do Sul e de americanos, este projeto irradia uma luz sobre a ciência no desenvolvimento e nos desafios epistemológicos que surgem quando a biomedicina é localizada e o conhecimento de curandeiros tradicionais é traduzido em epistemologias globalizadoras.

O estudo de Julia Zenker examina as estratégias pelas quais os curandeiros tradicionais são integrados na assistência médica nacional na África do Sul. Ela ques-tiona como a racionalização e a institucionalização da medicina tradicional ordenam o projeto nacionalista de uma nova África do Sul. Ela investiga a cooperação entre os participantes biomédicos, estaduais e tradicionais para

entender como os curandeiros interpretam esta interação e a apropriação das idéias biomédicas nos seus sistemas de crenças. O estudo de Ruth Prince examina como os entendimentos da Aids e as respostas à ART tomam forma dentro do contexto de entendimentos distintos de saúde, doença, corpo, sexualidade, reprodução e cuidado. No Quênia, este contexto inclui explicações tradicionais e respostas às doenças e infortúnios bem como explicações religiosas promovidas pelas dominações cristãs associadas a diversas redes locais, nacionais e internacionais.

Eixo 3 - Taxonomias biomédicas e órgãos administrativos

O terceiro eixo examina a biomedicina como bio-política, como um conjunto de tecnologias políticas que reforçam a ordem social através de órgãos governamentais tornando as populações acessíveis à intervenção. O foco está nas práticas biomédicas, formas de organizar os serviços de saúde e sistemas legais que têm como meta melhorar o bem-estar ao controlar doenças e o corpo em sofrimento. Nós investigamos suas modificações através de encontros com ambientes institucionais e materiais, assim como com indivíduos e populações aflitas.

Os critérios biomédicos são a lente através da qual os funcionários de saúde pública percebem e intervêm na realidade social. As taxonomias médicas e práticas de padronização necessariamente têm por objetivo o controle de órgãos individuais e, no processo, compõem a nacionalidade (JASANOFF, 2005). Uma crise de saúde crescente e a capacidade estatal declinante para lidar com esta crise estão ampliando o escopo de intervenção em toda África (PANDOLFI, 2008). Como resultado, o continente está sendo progressivamente visto através de uma visão biomédica. As noções médicas de estado normal e as práticas que produzem estas idéias moldam as experiências dos indivíduos em termos de saúde, do-enças e corpo. Este processo cria populações dóceis, dis-ciplinadas, bem como subjetividades incontroláveis que podem romper as intervenções biomédicas se refletindo potencialmente além do campo da saúde.

Os assuntos tratados nesse eixo serão estudados ini-cialmente nos cenários onde a assistência médica decaiu parcialmente ou totalmente, exigindo a (re) construção de novas infra-estruturas. Os participantes do estado, de fora do estado e internacionais chamados para fornecer infra-estrutura de serviço médico nas regiões afetadas têm por objetivo os indivíduos e populações específicos e, ao fazer isso, aplicar globalmente taxonomias e tecnologias médi-cas, administrativas e jurídicas (FERGUSON, 2006).

O estudo de Thamar Klein examina a classificação biomédica e a padronização de sexo e gênero e como são mediadas estruturas de potência por conhecimento biomédico. Traça desenvolvimentos em biomedicina e na lei (inter) nacional para o indivíduo e identidades de gênero coletivas que rompem ou afirmam dicotomias macho-feminino. Também analisa o papel das tecnolo-gias biomédicas e categorias ao estruturar e controlar identidades com sexo/gênero e a apropriação, negocia-ção e/ou rejeição de taxonomias biomédicas através de

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movimentos transexuais. O estudo de Wenzel Geissler do trabalho biocientífico no Quênia está centrado na equipe de duas instituições de pesquisa, um laboratório do governo fundado na década de 1930 e um instituto de pesquisa mais novo que tem suas raízes em organizações globais de saúde. Este estudo explora como os vários agentes enfrentam e ordenam a relação entre ciência, estado e cidadão; como as investigações científicas e experiências envolvem formas variáveis de governança; e como a equipe de pesquisa e seus pacientes vivem suas vidas dentro destes sistemas mutantes.

O estudo de René Gerrets examina o crescimento atual súbito de Parcerias Público-Privadas (PPPs), uniões organizacionais transnacionais que são canais principais de recursos, idéias e tecnologias para combater as doenças infecciosas em países pobres. Ele investiga as PPPs como formas nascentes de governança, indicando como elas assumem tarefas de restringir estados-nação e agências multilaterais, gerar novos locais centrais de poder e autoridade e promover ideologias e subjetividades neoli-berais. Virginie Tallio examina o uso da vacinação como uma ferramenta para as autoridades governamentais definirem as populações e mapearem o país. Julia Zenker explora as conseqüências da introdução de novas taxo-nomias na medicina tradicional. Como os curandeiros sul-africanos recorrem freqüentemente ao conhecimento envolvendo sonhos e laços com ancestrais, este estudo investiga a interpretação de tais explicações com relação a regulamentos padronizados e não individualizados, e como novos padrões podem alterar os tipos de questões tratadas pelos curandeiros tradicionais.

O estudo de Vinh-Kim Nguyen focaliza no Programa Presidencial Americano de Emergência de Assistência à AIDS (PEPFAR) na Costa de Marfim, um sistema de saú-de paralelo de fato que produz novas formas de relações sociais mediadas biomedicamente, rompendo normas e formas sociais com profundas conseqüências sociais e políticas. Este estudo descreve o impacto da PEPFAR nas relações sociais e a subjetividade das pessoas que convivem com o HIV; ele identifica os procedimentos, protocolos e estratégias institucionais pelos quais o PEPFAR faz com que as populações tenham acesso ao tratamento e a seus efeitos no longo prazo; e examina o impacto de triagem social (inclusão ou exclusão de benefícios) nas relações sociais. Ruth Prince analisa as práticas biomé-dicas, formas de organização e regimes legais destinados a controlar a epidemia da AIDS e proporcionar acesso à ART, examinando como estas práticas são transformadas no contexto local. Grandes fluxos de ajuda humanitária (organizações, dinheiro, especialistas e tecnologias) fazem do Quênia Ocidental um local propício para os estudos sobre como os esforços direcionados à saúde das pessoas e populações os ligam às organizações governamentais, não-governamentais e transnacionais.

Eixo 4 - Experimentação biomédica e intervenções de saúde

O quarto eixo centra no aspecto de pesquisa da bio-medicina, epidemiologia e farmacologia. Como em outras

ciências, as experiências são a forma padrão para produzir conhecimento na biomedicina. Porém, o contexto ine-vitavelmente influencia o processo da experimentação: estudos clínicos randomizados, intervenções médicas humanitárias em zonas de desastre e esforços para conter epidemias mortais pedem modalidades experimentais diferentes. Condições extremas compelem e permitem que instituições de assistência médica e profissionais desenvolvam estratégias rapidamente para conter crises e suas conseqüências devastadoras. Tais abordagens de emergência dão origem a novas formas de possibilidade de governo e “experimentalidade”, onde novas estraté-gias são testadas, pesquisa e políticas são reordenadas e soluções provisórias são freqüentemente transformadas em formas robustas de assistência à saúde (COLLINS et al., 2005).

A experimentação pressupõe padronização: alguns fatores devem ser mantidos constantes. As intervenções de crises normalmente seguem projetos que se baseiam em experiências anteriores e complementadas com “li-ções aprendidas” (HUBIG, 2002). Adaptando o modelo experimental clássico – prova de que a eficácia justifica a intervenção – estas intervenções procuram evidências para confirmar que elas foram efetivas e que foram aprendidas lições valiosas para intervenções futuras (TIMMERMANS et al., 2003). Resultados iniciais su-gerem que as abordagens de crise são progressivamente aplicadas a situações não desastrosas, tornando rotineiros os estados de emergência.

O estudo de Wenzel Geissler de duas instituições que historicamente dominaram as intervenções de pes-quisa médica emite uma luz sobre as formas mutantes de experimentação na pesquisa de saúde pública pós-inde-pendência no Quênia. Considerando que os experimen-tos anteriores refletiram as metas de uma nação-estado em desenvolvimento e, principalmente, responderam a interesses científicos e exigências médicas, os sistemas contemporâneos de estudos clínicos tendem a ser sepa-rados das estruturas nacionais e governados por habili-dades transnacionais e princípios reguladores, fazendo com que sejam menos flexíveis, mas emprestando-lhes um peso enorme. René Gerrets explora os sistemas de pesquisa demográfica (DSSs), ferramentas vitais de saúde pública para avaliar os efeitos no nível da população das doenças e medidas de controle de doenças em países pobres. Este estudo investiga o envolvimento popular com DSSs – variando da cooperação à sabotagem direta – e expandindo as exigências de padronização científica, modelos experimentais e formas de governança. Ao longo de linhas similares, a pesquisa de Virginie Tallio examina a experimentação com novos sistemas de governança de saúde em Angola do pós-guerra.

Stacey Langwick pesquisa como as medicinas tra-dicionais produzem novas formas de experimentação científica, alterando os limites entre a ciência e a não-ciência. Ele compara três laboratórios que exploram as propriedades médicas de plantas, examinando o trabalho de cientistas com os curandeiros e substâncias de plan-tas e seu trabalho organizacional junto a organismos

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(inter)nacionais. O projeto de Julie Laplante examina como a medicina tradicional se encaixa dentro de um estudo controlado randomizado científico (RCT). Isto fornece a hipótese de que o RCT é um caminho aberto de produção de conhecimento com elementos previsíveis e contingentes onde o medo de resistência aos biofarma-cêuticos funciona como gatilho. Julia Zenker investiga como os diferentes participantes na África do Sul estão tentando modernizar a medicina tradicional (TM). Nos discursos públicos, a TM é descrita como parte de uma nação arco-íris, uma legitimação para o novo Estado pós-apartheid. Na prática, é um lugar central para que curandeiros negociem os termos e condições para sua integração no novo sistema de cuidados médicos. Este estudo explora esta cooperação entre TM, biomedicina e direitos de propriedade intelectual que se cruzam como campos de experimentalidade.

A pesquisa de Thamar Klein examina como as instalações biomédicas e o teatro operacional se tornam locais para definir, descobrir e inventar o patológico e o normal, sexo e identidade. Ele olha para as pessoas que implementam a biomedicina para modificar seus corpos e cujas identidades estão transitando dentro ou além do binário macho/fêmea. Babette Mueller-Rockstroh exa-mina a experimentação de clientes e profissionais com aconselhamento, teste e terapia anti-retroviral padroni-zados de HIV. Oferecida como uma intervenção huma-nitária para mulheres e crianças, a ART pressupõe órgãos aquiescentes, todavia permite um comportamento sexual “resistente”. Este estudo explora como a capacidade de governo e a experimentação se codesenvolvem em termos legais, sócioculturais, organizacionais e econômicos para moldar uma nova “política do útero”. Vinh-Kim Nguyen examina como os programas de Aids na Costa do Mar-fim estão suplantando o fornecimento de serviço pelo Estado. Ele focaliza as novas formas de triagem social usadas ao inscrever ou excluir beneficiários. De forma similar, Ruth Prince explora como a epidemia da aids está reconfigurando as intervenções de saúde pública e as conseqüências que têm sob as formas de governança e nas experiências de saúde, doença e sofrimento.

Notas1. Este trabalho é financiado pela Max Planck Society para o período 2006-2011.

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73RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.68-73, jan.-jun., 2008

Sobre os autores

Richard RottenburgPossui uma cadeira em Antropologia Social na Martin-Luther-Universitaet Halle-Wittenberg (Alemanha) e é Bolsista do Max-Planck no Max-Planck-Institute for Social Anthropology (Instituto de Antropologia Social Max-Planck) (Halle). Sua pesquisa focaliza na antropologia do direito, organizações, ciência e tecnologia (LOST). Ele escreveu e publicou livros sobre o Sudão, organizações, antropologia econômica, produção transcultural de objetividade (Weit hergeholte Fakten. Eine Parabel der Entwicklungshilfe, Stuttgart 2002, a ser publicado em inglês pelo MIT em 2009), e sobre teoria (Construtivismo social e o enigma da estranheza. Em The making and unmaking of differences. Anthropological, sociological and philosophical perspectives, hg. von Rottenburg, Richard, Burkhard Schnepel & Shingo Shimada. Bielefeld: Transcrição, 27-41, 2006).

Rene GerretsPossui Mestrado em Antropologia Social pela Universidade de Nova Iorque, onde também é candidato ao Ph.D. Ele se associou ao grupo de Direito, Organização, Ciência e Tecnologia no Max Planck Institute for Social Anthro-pology (Instituto de Antropologia Social Max Planck) para finalizar sua dissertação, que examina a proliferação de parcerias público-privadas na Saúde Internacional através do foco etnográfico na pesquisa internacional sobre malária e esforços de controle na Tanzânia. Sua pesquisa explora a interação da pesquisa biomédica, desenvolvimento internacional, e governança nas sociedades da África Oriental.

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Avanços tecnológicos

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

Do MASTER-Web ao AGATHE: a evolução de uma arquitetura de manipulação de

informações para a web usando ontologiasDOI: 10.3395/reciis.v2i1.137pt

Fred FreitasCentro de Informática, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil [email protected]

Luciano CabralCentro de Informática, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil [email protected]

Rinaldo LimaCentro de Informática, Universidade Federal de Per-nambuco, Recife, Brasil [email protected]

Eunice PalmeiraCoordenação de Informática, Centro Federal de Edu-cação Tecnológica de Alagoas, Maceió, [email protected]

Guilherme BittencourtDepartamento de Automação e Sistemas, Universi-dade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, [email protected]

Bernard EspinasseLaboratoire des Sciences de l’Information et des Sys-tèmes Universités d’Aix-Marseille, Domaine Universi-taire de St Jerôme, Marselha, Franç[email protected]

Sébastien FournierLaboratoire des Sciences de l’Information et des Sys-tèmes Universités d’Aix-Marseille, Domaine Universi-taire de St Jerôme, Marselha, Franç[email protected]

Resumo Este artigo apresenta duas arquiteturas para sistemas de manipulação de informações que se propõem a tratar do-mínios específicos da Web, como o domínio acadêmico ou o domínio biológico. Este tratamento de texto baseia-se no uso de ontologias sobre o domínio tratado, empregando-a como modelo semântico bem definido e compreensível para o software. Se a solução apresentada aqui não é escalável para toda a Web, por outro lado, os serviços oferecidos têm maior versatilidade e precisão, podendo combinar informações que estão distribuídas na web e que possuam relacionamentos bem definidos. Os sistemas apresentados conseguem ainda realizar inferências sobre as informações presentes na Web sobre estes domínios. Como prova de conceito, são apresentados experimentos com bons resultados em dois domínios distintos, mostrando que a solução é factível e portável entre domínios, além de apresentar um alto grau de reuso durante a portabilidade.

Palavras-chave Multiagentes, agentes de informação, engenharia de software orientada a agentes, manipulação cooperativa de in-formação, classificação de informação

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IntroduçãoAtualmente, a quase totalidade dos artigos cien-

tíficos produzidos encontra-se disponível também em (vários) formatos eletrônicos. A revolução tecnológica inegavelmente elevou o volume de informação e a tor-nou mais acessível, sobretudo aquela que se encontra na internet (PALMEIRA et al., 2006).

O resultado disto terminou por cunhar o termo “sobrecarga de informação” (do inglês “information overload”): uma enorme quantidade de documentos disponíveis coloca ao usuário a difícil tarefa de bus-car informação útil. Para minimizar este problema, os mecanismos de busca - entre eles o Google, que praticamente dominou este mercado - foram então projetados, com base em técnicas desenvolvidas pela área de Recuperação de Informação (RI) (RIBEIRO-NETO et al., 1999).

Porém, os mecanismos de busca, como o Google (GOOGLE, 2008), possuem várias deficiências, essen-cialmente ligadas à forma como foram concebidos. Em primeiro lugar, quando um usuário solicita ao Google uma busca por palavra-chave, é bastante comum que no conjunto de páginas devolvido como resposta exista uma grande quantidade de endereços de páginas inúteis ou irrelevantes. Utilizando algoritmos estatísticos para atribuir relevância às páginas, os mecanismos de busca não conseguem dotar de semântica a busca, porque pos-suem capacidade de representar as páginas baseando-se apenas no nível léxico (FREITAS, 2002). Comparando-se os serviços de mecanismos de buscas com os de Sistemas Gerenciadores de Bancos de Dados, as limitações dos primeiros tornam-se evidentes: Bancos de Dados, dife-rentemente de páginas em texto (sejam na Web ou em bibliotecas digitais), podem ser facilmente consultados por armazenarem dados sobre um contexto restrito, de forma estruturada e sem ambigüidade. Sistemas Geren-ciadores de Bancos de Dados podem, portanto, prover ao usuário consultas semanticamente claras e precisas sobre entidades e relacionamentos entre elas, inclusive combinando e totalizando dados, tarefas que os meca-nismos de busca não conseguem realizar. Por exemplo,

um usuário poderia consultar o sistema sobre artigos da área de “redes neurais” publicados em eventos asiáticos depois do ano 2000.

Por outro lado, uma vez que estejamos tratando de páginas sobre um domínio restrito (como o domínio aca-dêmico, por exemplo) e usando conhecimento sobre este domínio, pode-se oferecer um tratamento mais profundo à informação em contrapartida à simples recuperação, com tarefas que fornecem benefícios adicionais ao usuá-rio. Estas tarefas serão descritas na próxima subseção.

Outras tarefas ligadas à recuperação de informação: classificação e extração de informação

As tarefas que podem ser desempenhadas em coope-ração com a tarefa de recuperação de informação são:

• a classificação de páginas, processo que irá determinar a que classe de páginas uma determinada página pertence. Por exemplo, uma página que descreve um congresso, cairia na classe Evento Científico, mais especificamente em sua subclasse Congresso;

• a extração de informações. Segundo KUSHME-RICK (1999), extração de informações “é a tarefa de identificar os fragmentos específicos de um documento que constituem o núcleo de seu conteúdo semântico”. Por exemplo, da frase “The Parliament was bombed by the guerrillas.” processada como sendo do domínio de terrorismo, foram extraídas três informações: o tipo de ato terrorista: bombardeio (bombing), o alvo do ato terrorista: o Parlamento (The Parliament), os autores do ato terrorista: as guerrilhas (the guerrillas).

Complementaridade entre as tarefas de recuperação, classificação e extração de informação

Este trabalho teve como premissa inicial a hipótese de que as tarefas de recuperação, categorização e extração podem e devem ser integradas, o que pode ocasionar uma melhora de desempenho em todas elas, como ilustra a Figura 1.

Usuário

Refinamento Sugestões

BD recuperação categorização extração

Mecanismos de Busca

Web

interface

Figura 1 - Esboço da arquitetura de um sistema de extração, evidenciando a complementaridade entre as tarefas de recuperação, categorização e extração.

Fonte: FREITAS, F. Sistemas Multiagentes Cognitivos para a Recuperação, Classificação e Extração In-tegradas de Informação da Web. Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina. 2002.

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Sistemas de recuperação podem fornecer o acesso a um conjunto inicial de páginas sobre um determinado domínio, por exemplo, eventos científicos. Após isto, sistemas de categorização deveriam selecionar quais pági-nas pertenceriam às classes a serem processadas, e então extratores poderiam capturar a informação requerida, por exemplo, data e local de realização do evento. Durante o processo de extração, poderiam ainda ser encontrados, dentre as âncoras das páginas processadas, endereços de outras páginas que pertenceriam a outras classes também processadas, por exemplo páginas de pesquisadores. Estas sugestões são encontradas dentro de um contexto se-mântico e seguro, e, assim, o processo de extração estaria auxiliando a recuperação, se os agentes cooperassem (p. ex., o agente de eventos científicos envia endereços de páginas dos membros do comitê de programa ao agente de pesquisadores). A extração poderia ainda refinar a categorização, uma vez que páginas que não contivessem os dados que caracterizam a classe processada seriam desprezadas, por exemplo, eventos sem data.

Note-se que a execução integrada destas três tarefas só é possível graças a um requisito imprescindível: a res-trição de domínios, ou seja, o sistema que as executa só é capaz de processar páginas de um determinado domínio. No entanto, pensando em aproveitar o desenvolvimento de uma solução desta natureza, seria interessante que esta solução pudesse ser portável entre domínios distintos.

Portabilidade entre domínios através de ontologias

A problemática envolvendo a portabilidade de domínios muitas vezes provoca alterações drásticas em sistemas computacionais. Por outro lado, o uso de solu-ções computacionais declarativas, - i.e., aquelas em que

o conhecimento necessário localiza-se fora do sistema e não em seu código executável - facilita a implementação da portabilidade.

Uma solução declarativa muito em voga atualmente é o termo ontologia, uma vez que elas estão presentes em muitos sistemas, ferramentas e produtos de manipula-ção de informação e comércio eletrônico, representadas como hierarquias de palavras-chave, conceitos, e muitas outras formas.

Apesar da palavra “ontologia” denotar uma teoria sobre a natureza do ser ou existência, em informática ela pode ser interpretada como o conjunto de entidades com suas relações, restrições, axiomas e vocabulário. Uma ontologia define um domínio, ou, mais formalmente, especifica uma conceitualização acerca dele (GRUBER, 1995). Normalmente, uma ontologia é organizada em hierarquias de conceitos (ou taxonomias).

Por exemplo, a Figura 2 mostra algumas classes da ontologia Ciência (FREITAS, 2001) e algumas de suas relações. A classe Membro do Corpo Acadêmico (Aca-demic-Staff) é um subconjunto mais específico da classe Pesquisador (Researcher), o que caracteriza a relação conhecida como herança. Esta classe herda, portanto, todo o conhecimento associado a classe Pesquisador, como os relacionamentos, restrições e outros itens de conhecimento desta última classe. Na figura encon-tram-se ainda outras relações entre classes, como por exemplo a relação Coordenador (HeadOf) que liga as classes Membro do Corpo Acadêmico (Academic-Staff) e Projeto (Project), sinalizando que um projeto é coorde-nado por um membro do corpo acadêmico. Um exemplo de restrição seria a restrição de cardinalidade imposta nesta relação: apenas um membro do corpo acadêmico participa desta relação.

Figura 2 - Relacionamentos entre algumas das principais classes da ontologia Ciência.

Fonte: FREITAS, F. 2001. Ontology of Science. http://protege.stanford.edu/plugins/ontologyO-fScience/ontology_of_science.htm.

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Postos estes requisitos, a adoção de manipulação integrada de informação na Web, que envolve recupera-ção, classificação e extração de informações da Web e o uso de ontologias para restringir o domínio a ser tratado, descreveremos, nas próximas seções, a pesquisa realizada pelos autores nesta área de pesquisa. Serão detalhados dois sistemas com arquiteturas diferentes, o MASTER-Web (FREITAS et al., 2003) e o AGATHE (ESPINASSE et al., 2007), bem como suas semelhanças e diferenças e alguns estudos de caso que confirmam a portabilidade destas soluções. No fim do artigo, apresentaremos tra-balhos de pesquisa relacionados a estes tópicos e uma discussão comparativa denotando as qualidades das arquiteturas propostas.

Descrição do Sistema MASTER-WebO sistema MASTER-Web (Multi-Agent System for

Text Extraction, Classification and Retrieval over the Web) (FREITAS et al., 2003) consiste de uma arquitetura de Sistemas Multiagentes Cognitivos para solucionar o problema da extração integrada de entidades perten-

centes às classes que integram um grupo de páginas (ou, em inglês, cluster). Este sistema apresentou bons resultados nas tarefas de recuperação, classificação e extração de informação, e permite a cooperação entre agentes para a realização destas tarefas. Utiliza-se uma abordagem baseada em conhecimento e apresentam-se vários tipos de reuso, já que os agentes compartilham a mesma estrutura em termos de código, serviços dos mecanismos de busca, e boa parte do conhecimento de que dispõem (ontologias e regras de produção), o que facilita e acelera a construção de novos agentes (PALMEIRA et al., 2006).

Este sistema multiagente manipula a informação referente a um conjunto de classes sobre um mesmo grupo, como, por exemplo, o grupo científico, com classes como artigos científicos, eventos, pesquisadores etc. A arqui-tetura em si, visa recuperar, classificar e extrair dados de páginas pertencentes às classes de um grupo, e a motiva-ção principal para o emprego de sistemas multiagentes é beneficiar-se dos relacionamentos entre as classes. A visão geral da arquitetura está ilustrada na Figura 3.

Fonte: FREITAS, F.; BITTENCOURT, G. An Ontology-based Architecture for Cooperative Information Agents. Proceedings of the Internacional Joint Conference on Artificial Intelligence - IJCAI’2003. Acapulco, México, 2003.

Figura 3 - Arquitetura de sistemas multiagentes para manipulação integrada de informação de grupos de classes de páginas.

Os agentes, representados como círculos nesta figura, são habilitados a reconhecer, filtrar e classificar páginas que pertençam (ou não) à classe de páginas processada por eles (por exemplo, o agente PPR processa páginas de artigos científicos enquanto outros agentes do mesmo sistema multiagente são responsáveis por pro-cessar outras classes do domínio científico). Os agentes reconhecem uma página de sua classe principalmente quando reconhecem a existência de atributos referentes a esta classe (vide exemplo a seguir). Os agentes cooperam, trocando mensagens contendo regras de reconhecimento e fatos (conhecimento dos agentes), além das páginas sugeridas entre os agentes.

Os usuários podem beneficiar-se do acesso aos da-dos extraídos através de um agente especial, chamado

mediador (WIEDERHOLD, 1995). Ele possui a função de ajudar às consultas aos dados, provendo visões mais simples da base de dados, permitindo ao usuário formular consultas complexas envolvendo várias tabelas da base de dados. Por exemplo, um usuário poderia realizar a consulta já descrita na seção 1, procurando artigos da área de “redes neurais” publicados em eventos asiáticos depois do ano 2000. Digno de nota o fato de que os mecanismos de busca atuais, como o Google (GOOGLE, 2008), não possuem meios de realizar uma pesquisa como essa.

Ao entrar no sistema, os agentes registram-se e anunciam-se aos outros agentes, mandando fatos e regras de reconhecimento de páginas e links úteis a si próprio, que serão empregadas pelos outros para lhe indicarem sugestões de páginas. O novo agente receberá, em res-

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posta, regras úteis aos outros agentes. Assim, quando um agente acha informação que dispara alguma das regras re-ferentes aos outros, este agente repassa a informação (link ou página) ao agente que lhe enviou a regra disparada, implementando desta forma a cooperação entre eles.

Na seção a seguir, descreveremos o funcionamento de um agente em detalhes.

Funcionamento e estrutura de um agente no MASTER-Web

Cada agente, representado em detalhe na Figura 4, reconhece, filtra e classifica páginas que correspondem a instâncias da classe que ele processa (por exemplo, pá-ginas de pesquisadores, chamadas de eventos científicos - ‘Call for Papers’), extraindo também seus atributos (por exemplo, áreas de pesquisa e instituição dos pesquisado-res). Cada agente possui ainda um meta-robô, que pode conectar-se a múltiplos mecanismos de busca - como Google, Excite e outros. Ele consulta os mecanismos de busca com palavras-chave que garantem cobertura em relação à classe de páginas processada pelo agente. (e.g., os termos ‘call for papers’ e ‘call for participation’ para o agente CFP) (PALMEIRA et al., 2006).

butos que irão compor a instância da classe. Estas fases são executadas através de processos computacionais conhecidos como raciocínio automático ou inferência lógica. Na próxima subseção explicaremos como eles estão implementados no MASTER-Web.

Raciocínio dos agentesCada uma destas classes possui um conjunto de

atributos, que devem ser extraídos ou identificados, e cuja presença pode indicar se uma página é instância de uma classe ou não. Este processo é realizado através da uma combinação de casos, regras e ontologias, que será melhor explanada a partir de um exemplo.

Um caso particular muito comum para o agente de artigos científicos, é a situação em que este reconhece uma página se ela contém no seu início o resumo (abs-tract) e os atributos First-Name (primeiro nome de um dos autores), Org-name (nome da organização à qual um ou mais autores está afiliado) e Location-Place (país ou estado americano onde se localiza esta organização). Este caso está descrito abaixo:

([ppr_00356] of Case

(Description “aff,1st,loc”)

(Concepts-in-the-Beginning [abstract])

(Slots-in-the-Beginning

[First-Name]

[Org-name]

[Location-Place]))

Este caso deve ser associado a uma classe a ser reconhecida através de um reconhecedor de classes (Class-Recognizer). Como quaisquer artigos, sejam eles de revistas ou eventos, normalmente seguem este pa-drão, associamos este caso à classe Publicação-Parte (Part-Publication), pois artigos são sempre partes de uma publicação divisível (e.g. um livro, ou anais de eventos). Segue abaixo esta associação:

([ppr_00528] of Class-Recognizer

(Cases

[ppr_00536]

[ppr_00356])

(Class [Part-Publication]))

O relacionamento é completado por regras reusáveis por instanciação, muitas delas comuns a vários agentes, como a descrita no próximo código.

Regra r_900_slots_hi_funct

Se tenho uma instância de página em estado AR-MAZENADA e

Se tenho um caso que tem

Uma lista de atributos que devem estar no começo da página

E uma lista de conceitos que devem estar no co-meço da página

E um reconhecedor de uma classe abstrata com uma lista de casos

Figura 4 - Um agente e seus passos de processamento.

Fonte: FREITAS, F.; BITTENCOURT, G. An Ontology-based Architecture for Cooperative Information Agents. Proceedings of the Internacional Joint Conference on Artificial Intelligence - IJCAI’2003. Acapulco, México, 2003.

Como pode ser observado na Figura 4, cada agente desempenha quatro tarefas consecutivas no processamento de cada página (PALMEIRA et al., 2006): validação, pré-processamento, reconhecimento e extração.

A Validação elimina as páginas inacessíveis, repetidas ou em formatos que os agentes não possam processar. A fase de Pré-processamento tem por meta representar as páginas de várias maneiras, tais como conteúdo com e sem HTML, palavras-chave e suas freqüências, dentre outras, com dados extraídos delas, aplicando, se necessário, recuperação de informação e processamento de linguagem natural. Esses dados são, então, passados ao motor de inferência. Nas fases de Classificação e Extração de Atributos, o sistema descobre se a página é do domínio tratado, reconhece de que classe a página tratada é instância e extrai atri-

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Teste

Se o caso especificado está na lista de casos

E se algum dos conceitos do começo da página está lá

E se os atributos do caso estão na lista de atributos encontrados

Então

A página passa para o estado de RECONHECIDA como sendo da mesma classe do caso especifi-cado

Assim, como a maior parte das regras de reconheci-mento instancia casos, elas podem ser incluídas em todos os agentes, sendo completamente reusáveis por agentes que tenham outros casos, o que facilita a construção de um novo agente. De fato, um novo agente só precisa definir novos casos de reconhecimento, classificação e extração.

O reconhecimento em geral recai primeiramente sobre uma classe abstrata, que não pode ter instâncias - como Part-Publication no agente de artigos, ou Evento Científico ao Vivo ou Evento de Publicação no agente CFP. A partir do reconhecimento da classe abstrata, regras de classificação incluindo casos tentam classificar a página entre as subclasses dela. Caso isso não ocorra, existe uma classe genérica à qual a classe será classificada, como Parte de Publicação Genérica, no agente de artigos e Evento Cien-tífico Genérico ao Vivo ou Evento de Publicação Genérica.

Estudo de casoEm sua primeira versão, o MASTER-Web foi desen-

volvido usando, para as tarefas de raciocínio, o motor de inferência JESS e o ambiente PROTÉGÉ para especifi-cação e manipulação das ontologias (PROTÉGÉ, 2008). O sistema foi inicialmente testado sobre o domínio científico (FREITAS et al., 2003), usando uma ontologia do meio científico (descrita em (FREITAS, 2001). Para a produção desta ontologia, a ontologia do projeto (KA)2 (Knowledge Annotation Initiative of the Knowledge Acquisition Community) (BENJAMINS et al. 1998) foi reusada e me-lhorada, principalmente, em granularidade. A melhoria principal foi a adição de classes visando reorganizar a ontologia sob a ótica das classes com características co-muns. Como um exemplo prático, pode-se citar a classe Evento-Científico, que, foi dividida em duas subclasses, Evento-Científico-ao-Vivo (com subclasses Conferência e Workshop entre outras) e Evento-de-Publicação-Científica (com subclasses Jornal e Revista). Assim, aumenta-se a capacidade de reconhecimento e adiciona-se granularida-de e coerência à ontologia (FREITAS et al., 2003). Desse modo, entidades do cluster (conhecimento do domínio) podem ser definidas com uma granularidade adequada, representando a classificação mesmo com diferenças sutis entre as entidades (ESPINASSE et al., 2007).

Com cada agente, foram realizados três testes para classificação de páginas (FREITAS et al., 2003). Para dois dos três primeiros testes, lançou-se mão de corpus de páginas recuperadas de consultas a mecanismos de busca (como o Google e AltaVista). O primeiro corpus

foi empregado no processo conhecido como aquisição de conhecimento, que consiste na definição de casos e regras que auxiliarão os processos de classificação e extração rodando interativamente o sistema até que ele atinja o desempenho aceitável. O segundo corpus foi usado para um teste cego. O terceiro teste foi efetuado coletando páginas candidatas diretamente da Web. Estes dois testes, portanto, avaliaram o desempenho dos agentes frente a novos corpora, não consultados durante a elaboração das regras e casos.

Dois agentes do grupo científico foram construídos. O agente CFP processa páginas candidatas de chamadas de trabalhos (“Call for papers”) para eventos científicos, como conferências e jornais, classificando-as em oito classes de páginas (as quatro citadas acima, mais Even-to-Genérico-ao-Vivo, Evento-Genérico-de-Publicação e Edição-Especial-de-Jornal e de Revista). O segundo agente processa páginas candidatas a artigos e documen-tos científicos, classificando-as como artigos de workshop, conferência, jornal e revista, capítulo de livro e artigos genéricos, além de teses, dissertações, relatórios técnicos e de projeto.

ResultadosOs resultados a serem apresentados referem-se a

dois conjuntos de testes. Um primeiro que compreende um total de quatro testes para avaliação de desempenho do sistema na classificação. Na Tabela 1 são exibidas as taxas de desempenho dos agentes CFP e de artigos. Nela, os resultados são categorizados pelo tipo de corpus nas colunas e o tipo de classificação nas linhas.

Os resultados parecem bastante promissores: a maior parte deles está acima de 90%. Os poucos casos de falha, no caso do agente CFP eram páginas longas, geralmente sobre um assunto ou de uma comunidade (ex: Open Source).

Tabela 1 - Desempenho dos agentes CFP e de artigos

Fonte: FREITAS, F.; BITTENCOURT, G. An Ontology-based Architecture for Cooperative Information Agents. Proceedings of the Internacional Joint Conference on Artificial Intelligence - IJCAI’2003. Acapulco, México, 2003.

De forma análoga, o agente PPR, que processou artigos científicos, não conseguiu reconhecer artigos com poucos atributos, com atributos difíceis de identi-ficar (ex.: uma afiliação a uma empresa desconhecida), ou com atributos no final do artigo. Porém, este fato

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ocorre também em sistemas similares como o CiteSeer (BOLLACKER et al., 1998).

Na seção seguinte, veremos evoluções da arquitetura proposta, no sentido de provê-la com dois requisitos relevantes: a portabilidade para outros domínios e a escalabilidade, i.e., a possibilidade de executá-la com muitas páginas mais.

Evolução Um dos maiores benefícios de uma arquitetura

declarativa é a sua genericidade; apenas trocando as ontologias e bases de conhecimento envolvidas, pode-se implementar uma profunda mudança de comportamento do sistema. A descrição do experimento a seguir compro-va que este requisito é aplicável à arquitetura.

Portabilidade para outros domínios: MASTER-Web no domínio de Inteligência Artificial

Este teste comprova que, a portabilidade de domí-nios em sistemas baseados em conhecimento para tarefas relacionadas à recuperação de informação é possível sem alterações bruscas no sistema.

As alterações para a execução deste teste foram as seguintes:

• retirou-se a ontologia de eventos científicos e adi-cionou-se uma ontologia da área de Inteligência Artificial (IA) e algumas de suas sub-áreas;

• estendeu-se no sistema a representação de pági-nas HTML para uma representação de artigos científi-cos, a fim de, facilitar a identificação das seções típicas ocorridas em artigos científicos, tais como introdução, trabalhos relacionados, conclusões, resumo, e outras. Na fase de pré-processamento, foi incluído o reconhe-cimento destas seções, fato que ajudou sobremaneira

durante o reconhecimento e classificação de artigos da área de IA;

• as seções foram divididas em duas classes: seções relevantes e irrelevantes. As seções relevantes tratam especificamente sobre os temas principais do artigo, sendo em geral mais concisas e apresentando aspectos teóricos (e.g. resumo, palavras-chave e conclusão). Já as seções irrelevantes para o reconhecimento e classificação apresentam conteúdos mais gerais e de várias áreas, possuindo, portanto menor especificidade. Citações, trabalhos relacionados e trabalhos futuros estão entre as seções consideradas irrelevantes para a classificação (PALMEIRA et al., 2006).

Os experimentos de reconhecimento e classificação de artigos de IA utilizaram um corpus bastante heterogê-neo colhido da Web, com artigos científicos de diversas áreas de conhecimento, sendo ainda, heterogêneos quanto à divisão das seções. Para este teste, partimos da premissa de que o sistema deveria apresentar robustez frente a esta falta de padronização de seções dos artigos (PALMEIRA et al., 2006).

A base experimental foi composta por documentos em HTML, obtidos em diversos sítios de universidades, páginas de professores e de revistas científicas. Os ex-perimentos realizados classificaram os artigos com base na análise das seções do texto consideradas relevantes e numa ontologia de IA construída especificamente para este fim. Foram desenvolvidas separadamente ontolo-gias de sub-áreas e aplicações que posteriormente são agrupadas para compor a ontologia de IA. O escopo dessa ontologia compreende, a princípio, as áreas de Busca, Representação do Conhecimento, Redes Neurais e Aprendizado de Máquina. Ontologias de outras sub-áreas de IA poderão ser incorporadas estendendo a ontologia existente (PALMEIRA et al., 2006).

Figura 5 - Algumas classes e seus relacionamentos no domínio de Redes Neurais da ontologia de Inteligência Artificial.

Fonte: PALMEIRA, E. and FREITAS, F. Detailed Ontologies and text classification: a promising union, Proceedings of the Workshop on Building Applications with Ontologies for the Semantic Web, Encontro Português de Inteligência Artificial, 2006.

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Na Figura 5, destacam-se alguns relacionamentos entre as principais classes definidas na ontologia de Redes Neurais. Dois tipos de Redes Neurais, Recurrent e Feed Forward ANN, bem como alguns conceitos rele-vantes, como Synapse, Neuron e Layer, são apresentadas nessa figura. Várias relações estão disponíveis entre estes conceitos.

As ontologias dos ramos de Busca, Representação do Conhecimento e Aprendizado de Máquina foram desenvolvidas com um nível de detalhes semelhante

a de Redes Neurais. Os artigos da área de IA, que não tratam de áreas compreendidas na ontologia, não serão classificados dentro deste domínio (PALMEIRA et al., 2006). Outra observação relevante é que um artigo pode abranger mais de uma área, como por exemplo, falar tanto de Aprendizado de Máquina (Machine Learning) quanto de Busca (Search) (PALMEIRA et al., 2006). Os resultados obtidos apresentaram promissores percentu-ais na classificação de artigos de IA, conforme mostra a Tabela 2.

Tabela 2 - Percentuais de acerto de classificação de artigos por área de conhecimento

Fonte: PALMEIRA, E. and FREITAS, F. Detailed Ontologies and text classification: a promising union, Proceedings of the Workshop on Building Applications with Onto-logies for the Semantic Web, Encontro Português de Inteligência Artificial, 2006.

Provada a portabilidade entre domínios, o próximo requisito para a arquitetura passou a ser a escalabilidade. Este requisito foi atacado com uma concepção comple-tamente nova do sistema em termos de funcionalidades e topologia dos agentes, que exigiu a confecção de outra sistema, o AGATHE (Agent GATHEring system, Sistema de agentes de manipulação (ESPINASSE et al., 2007), que será detalhado na próxima seção.

Descrição do Sistema AGATHEO AGATHE (ESPINASSE et al. 2007) é o resul-

tado de uma reengenharia da topologia de agentes do MASTER-Web (FREITAS et al., 2003). O propó-sito específico deste sistema consiste em definir uma arquitetura multiagente que seja escalável, adaptável e extensível, a fim de apoiar o processo de recuperação inteligente de informação na internet. O AGATHE adiciona modularização e distribuição de tarefas em sua arquitetura, impedindo a sobrecarga de funções, que poderia ocorrer no sistema base, podendo-se desta forma obter um melhor desempenho na recuperação, extração e classificação.

Esta nova arquitetura é baseada numa organização de agentes específica que define diferentes tipos de

agentes, que serão descritos na próxima subseção. Esta versão integra a plataforma JADE (Java Agent Develo-pment Environment – Ambiente de Desenvolvimento de Agentes em Java – TILAB, 2008), além do motor de inferência JESS, e do ambiente PROTÉGÉ.

Foram incluídas ainda algumas novas funcionali-dades como, por exemplo, a cooperação entre sistemas multiagentes de domínios diferentes, como, por exemplo, os domínios acadêmico e turístico. Há diversos aspec-tos turísticos associadas a eventos científicos (viagens, acomodação, atividades e eventos turísticos etc), e que estão presentes em páginas de eventos científicos. É possível vislumbrar então a cooperação entre agentes destes domínios diferentes, em que o agente CFP en-viaria a agentes do domínio turístico páginas para que estes classificassem e extraíssem informações que lhes fossem úteis. Este serviço não poderia ser oferecido pelo MASTER-Web em sua concepção original.

ArquiteturaO AGATHE é composto por 3 subsistemas que

interagem entre si, o subsistema de busca, subsistema de extração e o subsistema de acesso, descritos a seguir e apresentados na Figura 6.

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a) O subsistema de busca é responsável por consultar os motores de busca externos (como o Google), selecio-nar e processar as páginas selecionadas repassando-as ao subsistema de extração.

b) O subsistema de extração é composto por diferentes agentes extratores de um mesmo domínio responsáveis por especializar as páginas processadas (i.e. domínio Acadêmico, Inteligência Artificial etc.).

c) O subsistema de acesso tem a função de organizar os dados extraídos das páginas processadas de forma amigável ao usuário ou para agentes inteligentes, usando técnicas de interface homem-máquina e de linguagem de comunicação entre agentes.

Todos os subsistemas citados são sistemas mul-tiagentes, compostos de agentes de informação, que utilizam o domínio descrito pela ontologia para executar suas tarefas (ESPINASSE et al. 2007).

Desta forma podemos exemplificar usando o sub-sistema de extração, que contém diversos agentes de in-formação conforme descrito na Figura 7, diferentemente do MASTER-Web, onde todos os agentes são do mesmo tipo e efetuam todas as tarefas.

Agente SupervisorRecebe os resultados das consultas do Subsistema

de Busca e instancia um ou mais Agentes de Preparação que irão preparar estas páginas para processamento pelos Agentes Extratores e de Recomendação.

Agentes de PreparaçãoEstes agentes têm o seu ciclo de vida (criação e

deleção) controlado pelo Agente Supervisor, recebendo páginas Web do Subsistema de Busca e realizando as tarefas de validação e pré-processamento, já explanadas anteriormente. Estas páginas são então entregues a Agentes Extratores e de Recomendação.

Agente ExtratorEstes agentes executam as tarefas de classificação

e extração descritas, a partir de páginas recebidas dos Agentes de Preparação. Os resultados de seu processa-mento (dados extraídos e classificação das páginas) são enviados aos Agentes de Armazenamento.

Agente de RecomendaçãoEste agente recebe as páginas preparadas pelo

Agente de Preparação e as envia para outros agentes no mesmo domínio (recomendação interna) ou de outros dominios (recomendação externa).

Agente de ArmazenamentoEste agente tem a tarefa de armazenar as informa-

ções extraídas/classificadas de uma página no banco de dados do Subsistema de Acesso para ser consultado pelos usuários do sistema.

No teste da arquitetura AGATHE, foi utilizado o mesmo domínio do sistema MASTER-Web, restrito aos eventos científicos na investigação acadêmica.

No seu primeiro teste, de uma amostra de 310 páginas obtidas da web através de motores de busca, o AGATHE classificou corretamente cerca de 280, atin-gindo um desempenho bastante promissor, com taxa de acerto de 90,32%.

Na seção seguinte discorreremos sobre trabalhos relacionados aos sistemas aqui apresentados, comparan-do-os quando houver similaridade.

Trabalhos relacionadosMuitas áreas estão envolvidas com estas arquitetu-

ras: recuperação de informação, extração, classificação, sistemas multiagentes, processamento de linguagem na-tural e ontologias, entre outras. Porém, iremos focar em

Figura 6 - Arquitetura do AGATHE com subsistema de extração em detalhes.

Fonte: ESPINASSE, B., FREITAS, F. e FOURNIER, S. AGATHE: an Agent and Ontology based System for Restricted-Domain Information Gathering on the Web. Proceedings of the International Conference on Research Challenges in Information Sciences (IEEE-RCIS), April 23-26, Ouarzazate, Morocco, 2007.

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algumas propostas de soluções similares à nossa (WebKB (CRAVEN et al., 1998), CiteSeer (BOLLACKER et al., 1999), DEADLINER (KRUGER et al. 2000) e Ontoseek (GUARINO et al., 1999) comparando estes sistemas com os sistemas aqui apresentados (MASTER-Web e AGATHE), bem como apresentar ferramentas de apoio na tarefa de anotação semântica (KIM Plataform), que consiste na idéia de atribuir a entidades, links para suas descrições semânticas, isto é, fornecer informações de metadados para as instâncias de entidades referenciadas nos textos (POPOV et al., 2004).

WebKB: classificação e extração baseadas em aprendizado e ontologia

O sistema WebKb (CRAVEN et al. 1998) aprende automaticamente regras de categorização e extração in-tegrada de páginas na Web, empregando uma ontologia do domínio com classes e relacionamentos. As páginas da Web são representadas, com título, palavras-chave, freqüências e links.

O sistema emprega uma ontologia do domínio com apenas quatro entidades: atividades (subdivididas em projetos e cursos), pessoas (subdivididas em estudan-tes, professores, membro do corpo acadêmico etc.) e departamentos. Relações também estão presentes nesta ontologia, tais como: instrutores de cursos, membros de projeto e orientadores, entre outras.

O WebKB corresponde aproximadamente ao traba-lho de três futuros agentes do sistema MASTER-Web ou do AGATHE - o de pesquisadores, o de projetos e o de organizações. Por outro lado, estes sistemas visam tratar o domínio científico a partir de pesquisas sobre a Web, enquanto o WebKB processa sítios de faculdades.

O MASTERWeb é ontologicamente mais rico, por abarcar o meio de pesquisa como um todo, com relações mais complexas e capacidade de inferência já durante a classificação e extração. Por isso, ele exige mais esforço na confecção de agentes para cada classe de páginas. O WebKB tem como vantagem adaptar-se rapidamente a novos domínios e usa heurísticas estatísticas de padrões de conexão entre páginas e de palavras-chave (não pro-cessando expressões) enquanto o MASTERWeb baseia-se em palavras-chave e expressões associadas a conceitos, contidas em links para sugeri-los a outros agentes, se estes processam classes de páginas que se relacionam semanticamente com os conceitos referidos.

Os autores do WebKB avaliam a classificação apenas através dos falsos positivos, reportando percentagens entre 73% e 83%, exceto para as classes membro do Staff e outros (rejeitadas). Contudo, se computados os falsos negativos, a classe outros tem boa performance (93,6%), a classe estudante tem 43% e as outras seis classes comportam-se abaixo de 27%, baixando a média de acerto para apenas cerca de 50%. Isto leva à hipótese de que a ontologia empregada no WebKB não tenha sido abrangente o suficiente. Já a ontologia de Ciência usada pelo MASTERWeb possui classes, como projetos e produtos, que não foram usadas por dois motivos: os agentes precisam destes conceitos para suas funções e

futuros agentes que tratem delas podem ser elaborados. Por outro lado, uma ontologia com muitas classes pode dificultar a generalização do aprendizado. Neste caso, seriam necessários mais agentes com aprendizado.

Os Sistemas CiteSeer e DEADLINER

Estes sistemas perfazem uma eficiente recuperação, filtragem e extração da Web, usando métodos estatísti-cos e de aprendizado combinados com conhecimento a priori.

O CiteSeer (BOLLACKER et al., 1999) é um dos mais usados na busca de artigos científicos. O sistema moni-tora newsgroups e editores e mecanismos de busca a partir dos termos publications, papers e postscript. São extraídos dados bibliográficos do artigo e da bibliografia, que atua como lista, ajudando a achar outros artigos. O número de citações de um artigo por outros representa uma medida de sua relevância. Banco de dados de autores e revistas acadêmicas, bem como técnicas complexas são aplicadas para identificar co-referências de autores e artigos.

O DEADLINER (KRUGER et al., 2000) busca anúncios de conferências, extraindo deles: data inicial, final e limite, comitê, afiliação de membros do comi-tê, temas, nome do evento e país. A performance de reconhecimento do DEADLINER está acima de 95%, contudo, sua definição de evento é mais restritiva: todos os atributos têm de estar presentes, exceto país, além de dados de submissão. O MASTER-Web oferece mais flexibilidade e cobertura, aceitando anúncios de capítulos de livros, jornais, revistas e concursos. Os requisitos estão em casos, que são mais flexíveis.

OntoSeek: acesso baseado em conteúdo na Web

OntoSeek (GUARINO et al., 1999) é um sistema para recuperação de informações baseada em conteúdo de um repositório de páginas amarelas e catálogos de produtos. Combina um mecanismo de casamento de conteúdo orientado a ontologias com um formalismo de representação moderadamente expressivo. Ele também faz uso de termos em linguagem natural para obter des-crições de recursos mais precisas, além de possuir uma completa flexibilidade terminológica para consultas, devido a um processo de casamento semântico entre as consultas e as descrições de recursos.

Este sistema faz uso do WordNet, que é um banco de dados lingüístico formado por synsets - termos agrupados em conjuntos de equivalência semântica, cada um atribu-ído a uma categoria léxica (substantivo, verbo, advérbio, adjetivo). Cada synset representa um sentido particular de uma palavra em inglês e é comumente expresso numa única combinação de sinônimos.

Geralmente, cada palavra é associada a mais de um synset e a mais de uma categoria léxica. Assim, para a desambiguação de sentidos de uma palavra, o OntoSeek trabalha interativamente com a ajuda da interface léxica do WordNet, permitindo que se selecione o synset e a cate-goria mais apropriados para a mesma. Ele também possui vários tipos de relações semânticas entres os synsets e que

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são fundamentais no processo de desambiguação. Por exemplo, se desejamos procurar carros que possuem rá-dios, as descrições que devem ser selecionadas são apenas aquelas em que os conceitos “rádio” e “carro”, aparecem ligados pela relação “parte de”, portanto eliminando as lojas que vendem rádios e carros, por exemplo.

KIM: gestão de conhecimento e informação

A plataforma KIM (POPOV et al., 2004) fornece uma infra-estrutura para gerenciamento de conhecimento e informação, além de serviços para anotação semântica automática, indexação e recuperação de documentos. Esta plataforma permite às aplicações fazerem uso dela para fins de anotação semântica automática, recuperação de conteúdo baseada em restrições semânticas e, final-mente, consulta e modificação das ontologias e da base de conhecimento.

Ela combina extração de informações baseada em outra madura plataforma para engenharia de textos, a GATE (Arquitetura geral para Mineração de Textos), que é uma abrangente plataforma de Processamento de Lin-guagem Natural e extração de informação desenvolvida na Universidade de Sheffield, Inglaterra e que tem estado em constante desenvolvimento desde 1995, tendo sido usada em uma grande variedade de projetos de pesquisa (MAYNARD et al., 2000).

Um dos pontos fortes da plataforma KIM é a ge-ração automática de anotações sobre entidades nomeadas (Named-Entities - NE) - entidades do mundo real que são referenciadas por nome, tais como: Pessoa, Organização, Empresa, Localidades, etc. - com referências de classes e instâncias apontando para um repositório semântico. Através destas entidades, uma base de conhecimento com uma vasta cobertura de entidades do mundo real é mantida, usada e constantemente enriquecida, facilitan-do a interpretação de nomes próprios.

Esta plataforma emprega dois repositórios de conhecimento para o desempenho de suas tarefas: a Ontologia KIM (KIM Ontology ou KIMO) e uma base de conhecimento.

Mais especificamente, a KIMO é uma ontologia de topo com cerca de 250 classes de entidades e 100 atri-butos e relações. Este tipo de ontologia declara algumas distinções filosóficas básicas entre tipos de entidades, tais como: Objetos - entidades reais como localidades e agentes; Acontecimentos - definindo eventos e situações; e Abstrações, que não são nem Objetos nem Acontecimen-tos. Vale também notar que a KIM KB é pré-populada com instâncias da ontologia (mais de 80.000), bem como relações entre estas instancias que auxiliam no processo de extração de informações para se ter bom desempenho em conteúdos inter-domínios na Web.

DiscussãoOs fatos apresentados revelam uma ferramenta

promissora que, em todas as fases de seu ciclo evoluti-vo, contrasta positivamente em relação às ferramentas com propósitos similares, e.g., WebKB (CRAVEN et al., 1998), Citeseer (BOLLACKER et al., 1999), DeadLiner

(KRUGER et al., 2000), KIM (POPOV et al., 2004) e Ontoseek (GUARINO et al., 1999), conforme descrito nos parágrafos a seguir.

A grande e inovadora idéia do MASTER-Web/AGA-THE reside em sua arquitetura reusável e a portabilidade entre domínios, conforme evidenciado nos testes com os domínios acadêmico e de Inteligência Artificial.

Nos sistemas similares, o conhecimento está escon-dido dentro de seus algoritmos, não sendo possível o compartilhamento de conhecimento, nem a especificação de contextos em que seriam úteis. Assim nesta aborda-gem, para se processar uma nova classe, um novo sistema precisa ser elaborado, sem maiores reusos (FREITAS et al., 2003).

Considerações finais e trabalhos futuros

A problemática referente à manipulação de infor-mação na internet e em grandes bibliotecas digitais colocou questões de difícil solução para tornar efetivo o acesso ao grande manancial de informação dispo-nível pelos usuários. O presente trabalho partiu da premissa de que sistemas baseados em conhecimento consistem numa alternativa de solução mais flexível e promissora do que as abordagens procedimentais tradicionais. O advento das ontologias, em particular, propicia a estruturação de conhecimento necessária para a especificação do conhecimento necessário às tarefas propostas. Procuramos, ao elaborar os dois sistemas apresentados, melhorar progressivamente a escalabi-lidade de nossa solução, e realizamos experimentos mostrando a viabilidade de explorar domínios novos com a mesma solução.

O presente trabalho e seus protótipos podem, ainda, ser estendidos em vários sentidos. Recuperação, extração e classificação de informação devem envolver o uso de tecnologias capazes de aprender a reconhecer padrões de informação de forma a recuperar acuradamente os itens de informação necessários. Pretendemos empregar estas técnicas basicamente por duas razões: elas aceleram o processo de aquisição de conhecimento necessário para as tarefas (e.g. a extração de cotações de moedas, em que os padrões de reconhecimento e extração são aprendidos das páginas), e também porque melhoram o desempenho destas tarefas.

A habilidade para reconhecer padrões lingüísticos, presentes ou próximos a itens de dados a serem extraídos, permite um bom desempenho na tarefa de extração de informação mesmo diante de textos desestruturados, como só ocorre na Web.

A integração de ferramentas lingüísticas, bases de conhecimento e ontologias de topo e/ou de domínios específicos aponta para uma melhora expressiva de de-sempenho nas tarefas de manipulação de informação, particularmente extração e classificação. Para a língua inglesa, existe uma enorme gama de recursos disponíveis. Entre os recursos mais populares para o inglês, podemos citar a ontologia lingüística Wordnet (MILLER, 1995) e as ferramentas e recursos da arquitetura GATE.

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Pretendemos ainda adequar as nossas soluções às linguagens de representação de conhecimento usadas na Web Semântica, tais como a linguagem de ontologias para a Web Semântica OWL (Ontology Web Language) (HERMAN, 2007) e a linguagem de regras SWRL (Se-mantic Web Rule Language) (HORROCKS et al., 2006).

AgradecimentosAgradecemos à Scopus Tecnologia pelo incentivo

à pesquisa.

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Sobre os autores

Fred FreitasO autor é Ph.D (2002) em Engenharia Elétrica pelo Departamento de Automação e Sistemas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente é Professor Adjunto do Centro de Informática (CIn) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), desde 2005, nos cursos de graduação em Ciência e Engenharia da Computação e membro do colegiado da Pós-Graduação em Ciência da Computação. Suas áreas de interesse são: Ontologias, Inteligência Artificial, Mediadores, Sistemas Multiagentes, Agentes Inteligentes e Recuperação e classificação de informação.

Luciano CabralO autor está em fase de conclusão do Mestrado em Ciência da Computação pelo Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (2008), possui graduação em Bacharelado em Sistemas de Informação / Engenharia de Software pela Faculdade Integrada do Recife (2006). Atualmente é tutor virtual da Universidade Federal Rural de Pernambuco e Analista Trainee na Scopus Tecnologia. Tem experiência na área de Ciência da Computação, com ênfase em Inteligência Artificial, atuando principalmente nas áreas de interesse: Ontologias, Text Mining, KDT, Machine Learning, Extração/Classificação de Conhecimento e Informações.

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Artigo de revisão

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

Psicofisiologia da dor: uma revisão bibliográfica

DOI: 10.3395/reciis.v2i1.133pt

Aline Oliveira VitorInstituto Superior de Ciên-cias Biomédicas, Universi-dade Estadual do Ceará, Fortaleza, [email protected]

Edson Lopes da PonteInstituto Superior de Ciên-cias Biomédicas- Universi-dade Estadual do Ceará, Fortaleza, [email protected]

Paula M. SoaresRede Nordeste de Biotecnologia, Universidade Esta-dual do Ceará, Fortaleza, [email protected]

Maria E. de Sousa RodriguesInstituto Superior de Ciências Biomédicas, Universi-dade Estadual do Ceará, Fortaleza, [email protected]

Raquel C. de Sousa Lima Instituto Superior de Ciências Biomédicas, Universi-dade Estadual do Ceará, Fortaleza, [email protected]

Krihsnamurti de M. CarvalhoInstituto Superior de Ciências Biomédicas, Universi-dade Estadual do Ceará, Fortaleza, [email protected]

Manoel Cláudio A. PatrocínioFaculdade de Medicina Christus. Fortaleza, [email protected]

Silvânia M. M. VasconcelosInstituto Superior de Ciências Biomédicas, Universi-dade Estadual do Ceará, Fortaleza, [email protected]

ResumoA dor é definida pela Associação Internacional para o Estudo da Dor como sendo “uma experiência emocional e sensorial desagradável associada a uma lesão tecidual real ou potencial ou descrita em termos de tal lesão”. O aspecto sensorial da dor está associado ao processo de transmissão do impulso doloroso o qual é denominado de nocicepção. Já o aspecto emocional, por sua vez, está relacionado com as respostas comportamentais à dor. De acordo com a duração, a dor pode ser classificada em aguda ou crônica. É através da dor que se pode perceber um sinal de alerta para um perigo iminente, estando assim relacionada com a proteção do organismo, exibindo os limites que não podem ser transgredidos. Além de induzir anormalidades físicas, a dor pode alterar o equilíbrio psicológico do indivíduo. O objetivo deste trabalho é mostrar uma revisão bibliográfica sobre a psicofisiologia da dor, visando esclarecer as suas vias de ação e sua relação com alterações comportamentais. O tratamento da dor é feito baseando-se na sua etiologia e fisiopatologia e suas repercussões com o uso de fármacos analgésicos e adjuvantes. Além disso, medidas não farmacológicas, como recursos de medicina física e de reabilitação, somados aos procedimentos psicoterápicos, devem ser incluídas no tratamento.

Palavras-chave Dor, nocicepção, psicofisiologia, percepção

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IntroduçãoA dor é definida pela Associação Internacional para

o Estudo da Dor (IASP) como sendo “uma experiência emocional e sensorial desagradável associada com uma lesão tecidual real ou potencial ou descrita em termos de tal lesão”. A sensação dolorosa tem papel fisiológico e funciona como um sinal de alerta para percepção de algo que está ameaçando a integridade física do organis-mo (CHAPMAN et al., 1999). Neste sentido, a dor é um sintoma clinicamente importante para a detecção e avaliação de doenças, bem como, para induzir um com-portamento de precaução e, conseqüentemente, limitar os possíveis danos (MILLAN, 1999; WOOLF, 2000; ALMEIDA et al., 2004).

Já está bem estabelecido que a dor é uma experiência complexa e que não envolve apenas a transdução de es-tímulo nocivo ambiental, mas também o processamento cognitivo e emocional pelo encéfalo (CHAPMAN et al., 1999; JULIUS et al., 2001; ALMEIDA et al., 2004).

O fenômeno doloroso, portanto, possui dois com-ponentes: um que discrimina o estímulo doloroso em relação ao tempo, espaço e intensidade, chamado de perceptivo-discriminativo (componente sensorial); e outro que atribui emoções à experiência dolorosa, sendo responsável pelas respostas comportamentais à dor. Este é caracterizado por comportamentos defensivos, como a retirada reflexa dos membros ou comportamento fuga/luta, denominado de componente aversivo-cognitivo-motivacional (componente motivacional) (MELZACK, 1975; ALMEIDA et al., 2004).

O componente sensorial diz respeito ao mecanis-mo pelo qual o impulso doloroso, gerado pela injúria tecidual real ou potencial, chega ao sistema nervoso central (SNC). Tal mecanismo é chamado de nocicepção (MERSKEY et al., 1979). Já o componente motivacional está relacionado às características do indivíduo no que concerne ao humor, ao significado simbólico dado ao fenômeno sensitivo e aos aspectos culturais e afetivos (TEIXEIRA et al., 2001).

A dor é importante, pois é através dela que se pode perceber um sinal de alerta para um perigo iminente, estando assim relacionada com a proteção do organismo, exibindo os limites que não podem ser transgredidos (DIAS, 2007).

Apesar das sensações dolorosas serem um aviso do qual o organismo se utiliza para sinalizar um processo de agressão, a problemática da dor acompanha a humanida-de na medida em que interfere na homeostasia do indiví-duo e da sua relação com os outros (PIRES, 2007).

Atualmente, pesquisas são realizadas no intuito de elucidar os mecanismos fisiológicos e emocionais da dor, visando à descoberta de novos fármacos que possam reduzir ou até eliminar o processo doloroso.

O objetivo deste trabalho é mostrar uma revisão bibliográfica sobre a psicofisiologia da dor, visando esclarecer as suas vias de ação e sua relação com altera-ções comportamentais. Para isso, o artigo foi construído com consultas a diversos trabalhos que foram obtidos

em diferentes bancos de dados: Pubmed, Sciencedirect, Medline, Lillacs, Scielo e Portal da Capes. Os termos de busca utilizados foram: dor, fisiologia da dor, psicofisio-logia da dor, mecanismos da dor, entre outros, dando preferência, quando necessário, aos artigos mais recentes. Foram utilizados ainda alguns livros da área de fisiologia e farmacologia para definições mais generalizadas.

Fisiologia da Dor

Tipos de dorSegundo OLIVEIRA (1979), dor é um aviso de

alarme que o SNC utiliza para sinalizar um processo de agressão ao organismo com risco para a sua integridade física. Este alarme desencadeia um conjunto de reações de adaptação, de ordem psicológica, autonômica e mo-tora, visando afastar o organismo da causa da agressão, preservando-o.

A dor caracteriza-se por uma resposta orgânica pro-tetora, pois alerta o indivíduo para uma lesão iminente ou real dos tecidos, induzindo ao surgimento de respostas reflexas e comportamentais coordenadas com o intuito de manter o dano tecidual o mais controlado possível (WOOLF et al., 1999). Essa dor é classificada como agu-da (TEIXEIRA et al., 2001). No entanto, quando a dor passa a se repetir ou sustentar-se por período prolongado, deixa de apresentar vantagens biológicas e passa a causar sofrimento, sendo classificada como dor crônica a qual é gerada por impulsos de pequena magnitude produzidos por atividade neural anormal (MELZACK et al., 1999).

A dor crônica pode estar associada com a conti-nuação da patologia ou persistir após a recuperação da doença ou lesão. Se a dor crônica for devido à doença orgânica, ela é efetivamente curada ao se tratar a desor-dem de base. Geralmente não é bem localizada e tende a ser maciça, dolorida, contínua ou recorrente e é dividida em nociceptiva, neuropática e psicogênica (MERSKEY et al., 1994; SMITH et al., 1986; FÜRST, 1999).

A dor nociceptiva consiste na estimulação persisten-te de nociceptores, seja térmico, químico ou mecânico. Nesta dor ocorre ativação contínua das vias centrais da dor e pode ser identificada em pessoas com câncer, Herpes zoster, entre outras (MILLAN, 1999).

Já a dor neuropática, segundo a IASP, é definida como uma dor causada ou iniciada por uma lesão primá-ria ou por disfunção do SNC e/ou Periférico (SNP). Esta desordem pode ser provocada por compressão, transec-ção, infiltração, isquemia, injúria metabólica de corpos celulares de neurônios ou uma combinação desses fatores (GALLUZZI, 2007). Dor do membro fantasma e doenças como Diabetes melittus e Parkinson são as principais causas da dor neuropática (BOWSHER, 1999).

A dor psicogênica, por sua vez, está relacionada à prevalência de fatores psicológicos na gênese da sensação dolorosa. Esse tipo de dor pode ser observado em dis-túrbios psicológicos como na depressão e na ansiedade generalizada (FURST, 1999; MERSKEY, 1986).

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Percepção da dorA percepção da dor ocorre em dois estágios dis-

tintos. O primeiro, denominado nocicepção, refere-se à transdução do estímulo doloroso ao SNC por receptores especializados, os nociceptores (FURST, 1999). O segun-do estágio é referente ao processamento elaborado dessa informação nociceptiva, levando à percepção consciente da dor (BALDO, 1999).

O processo doloroso tem início nos nociceptores, os quais são receptores morfologicamente diferenciados e estão presentes nas terminações livres das fibras nervosas aferentes (FURST, 1999). Eles são sensiblizados quando o estímulo é potencialmente perigoso, ou seja, excede uma determinada faixa considerada fisiológica (estímulo inócuo) (BURGESS et al., 1967; MILLAN, 1999).

Os nociceptores, localizados na porção distal dos neurônios aferentes sensoriais (neurônios de primeira ordem), estão amplamente distribuídos na pele, vasos, músculos, articulações e vísceras (JULIUS et al., 2001). Dividem-se em três classes: os mecanoceptores, sensí-veis a estímulos mecânicos intensos; os termoceptores, sensíveis a estímulos térmicos (acima de 45°C) e os nociceptores polimodais, sensíveis tanto a estímulos mecânicos e térmicos quanto químicos (TEIXEIRA et al., 1994; BESSON, 1999). Esses receptores, como carac-terística fundamental, não exibem acomodação e, além disso, apresentam facilitação e aumento da sensibilidade quando estimulados continuamente (CHEN et al., 1996; LIEBESKIND, 1976).

A estimulação dos nociceptores, que pode ocorrer devido à mudança de temperatura (estímulo nocivo térmico), diferença osmótica ou distensão do tecido (estímulo nocivo mecânico), hipóxia ou lesão tecidu-al seguida de inflamação (estímulo nocivo químico), promove uma liberação local de mediadores químicos, tais como bradicinina, prótons, histamina, serotonina, metabólitos do ácido araquidônico, ATP, adenosina, cito-cinas, aminoácidos excitatórios, óxido nítrico, substância P, neurotrofinas, bombesina, opióides, somatostatina, acetilcolina, entre outros. Estes mediadores interagem com nociceptores específicos conduzindo à propagação do sinal nociceptivo por alteração na permeabilidade da membrana da fibra nervosa gerando o potencial de ação (JULIUS et al., 2001; GRIFFIS et al., 2006).

Há ainda os chamados nociceptores silenciosos (silent ou sleeping) os quais existem em pequena proporção nas fibras aferentes primárias e não respondem normalmente a estímulos. No entanto, quando estimulados por media-dores inflamatórios ou após a administração de agentes flogísticos (pró-inflamatórios), estes nociceptores apresen-tam atividade espontânea ou tornam-se sensibilizados e respondem a estímulos sensoriais (JULIUS et al., 2001).

Os nociceptores transmitem as informações doloro-sas para a medula espinhal através das fibras sensoriais aferentes que podem ser de três tipos: fibras Aβ, que são fibras mielinizadas com diâmetro maior que 10 µm, velocidade de condução de 30-100 m/s e que respondem à estimulação tátil; fibras Aδ, as quais são mielinizadas de diâmetro médio de 2-6 µm, com velocidade de condução

de 12-30 m/s e são responsáveis pela condução rápida do estímulo doloroso; e fibras C, que são amielínicas e de diâmetro pequeno variando de 0,4-1,2 µm, velocidade de condução de 0,5-2 m/s, são responsáveis pela condução lenta do impulso doloroso. As fibras C constituem a maior parte das fibras sensoriais (FURST, 1999; GRUBB, 1998; SHELLEY et al., 1994).

Sabe-se que as fibras Aδ são responsáveis pela condução da “primeira dor” que se caracteriza por ser rápida, aguda e pontual, enquanto as fibras C transmi-tem a “segunda dor”, sendo esta atrasada, difusa e fraca (JULIUS et al., 2001).

Os nociceptores periféricos, situados nas termi-nações periféricas de neurônios primários, apresentam seus corpos celulares constituindo os gânglios das raízes dorsais. Eles transmitem a informação nociceptiva aos neurônios do corno dorsal da medula espinhal. Os prin-cipais neurotransmissores responsáveis pela transmissão do impulso nervoso das fibras aferentes primárias para os neurônios do corno dorsal da medula são a substância P e o glutamato (CALNE et al., 1996; CODERRE et al., 1992). Este processo também depende de canais de cálcio e sódio, sendo os primeiros os principais reguladores da liberação de neurotransmissores (HILL, 2001).

O corno dorsal, por sua vez, apresenta-se dividido em seis lâminas de acordo com as características dos seus neurônios, existindo uma correspondência anátomo-fun-cional. Os neurônios nociceptivos estão localizados nas lâminas I, II e V (ALMEIDA et al., 2004).

Após a interação direta ou indireta com neurônios aferentes primários no corno dorsal, os axônios de neu-rônios de segunda ordem formam tratos aferentes que transmitem os impulsos nociceptivos para estruturas do tronco cerebral e diencéfalo, incluindo tálamo, substância cinzenta periaquedutal, formação reticular da medula, complexo amigdalóide, hipotálamo, entre outras (AL-MEIDA et al., 2004).

O envio da informação dolorosa para os centros superiores ocorre por meio das vias de projeção da dor ou trato anterolateral da coluna. As principais vias de condução da dor no SNC são o trato espinotalâmico, o trato espinorreticular e o trato espinomesencefálico (CAILLIET, 1999; MILLAN, 1999).

O trato espinorreticuular, também conhecido como via de condução lenta, é filogeneticamente mais antigo e cursa medialmente no tronco cerebral. Está ligado ao Sistema Reticular Ativador Ascendente (SARA) e a Substância Cinzenta Periaquedutal Ventral (SCPV) e envia projeções difusas para o tálamo, córtex e estruturas do sistema límbico. Já o trato espinotalâmico, ou vias de condução rápida, é filogeneticamente mais novo e cursa lateralmente no tronco cerebral. Envia projeções para o tálamo ventrobasal e daí para o córtex sensorial (RUSSO et al., 1998).

Outra via importante é a representada pelo trato espinomesencefálico, que termina em algumas regiões do mesencéfalo, onde se incluem a formação reticular mesencefálica e a substância cinzenta periaquedutal. Essa última região mantém conexões recíprocas com o

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sistema límbico por intermédio do hipotálamo (BALDO, 1999).

O trato anterolateral é cruzado no homem, mas possui um componente ipsilateral pequeno, porém significativo, que pode explicar o retorno da dor em pacientes que sofreram secção desse trato, chamada de dor fantasma. As vias de projeção da dor possuem grandes divergências de terminações no tronco cerebral dando suporte neural para a ativação comportamental e o alerta induzido pelo estímulo doloroso. Muitas das fibras anterolaterais ativadas pela dor terminam no teto mesencefálico (BASBAUM et al., 2002).

Muitos neurotransmissores e moduladores envolvi-dos na transmissão do sinal nociceptivo da medula para os centros superiores estão sendo descobertos. Contudo, estudos eletrofisiólogicos sugerem que o glutamato e outros aminoácidos excitatórios, que agem via receptores ionotrópicos e receptores metabotrópicos para gluta-mato, estão envolvidos na transmissão da informação nociceptiva do trato espinotalâmico para o tálamo, e do trato espinomesencefálico para a SCPV (AZKUE et al., 1997; ERICSSON et al., 1995; JENSEN et al., 1992; SALT et al., 1996).

O tálamo desempenha um papel fundamental na integração do impulso doloroso. A partir do tálamo, neurônios de terceira ordem transmitem impulsos para o córtex cerebral, onde ocorre o processamento que resulta em consciência da dor (FÜRST, 1999).

As vias descendentes, que partem do mesencéfalo pelo bulbo ventromedial rostral e chegam ao corno dorsal da medula espinhal, dirigem-se em sentido diametral-mente oposto ao da via sensitiva ascendente. Elas exer-cem um efeito inibitório e modulador sobre estruturas distais, muito particularmente sobre o cordão posterior da medula, onde o balanço entre aferências nociceptivas e não-nociceptivas pode controlar a transmissão de in-formação dolorosa para centros superiores (MELZACK et al., 1965; GUTSTEIN et al., 1998).

Teoria da ComportaA teoria mais aceita para explicar a regulação da dor

é a teoria da comporta. Foi proposta por Ronald MEL-ZACK e Patrick WALL em 1965. Constitui-se em um modelo de percepção da dor no qual há uma regulação da passagem dos impulsos das fibras aferentes periféricas para o tálamo através dos neurônios de transmissão no corno dorsal. Ela funciona como uma estação regulatória para a transmissão da dor. Assim, a percepção da dor se dá pelo somatório da estimulação sensorial e um intenso controle central.

As fibras aferentes nociceptivas transmitem o im-pulso doloroso para o tálamo através de células trans-missoras da dor localizadas no corno dorsal na medula espinhal, constituindo a via de transmissão da dor, a qual é controlada pelos neurônios da substância gelatinosa (SG). Neurônios inibitórios descendentes ou influxo aferente não-nociceptivo ativam os neurônios da SG os quais, por sua vez, inibem as células transmissoras da dor dificultando a passagem do impulso doloroso para os

centros superiores. Já a estimulação das fibras C, inibe os neurônios inibitórios da SG permitindo a passagem do impulso doloroso para o tálamo, constituindo-se então o processo de regulação da passagem do impulso doloroso para os centros superiores (YAKSH et al., 1994).

A teoria da comporta não aborda somente o aspecto sensorial da dor, mas também as variáveis psicológicas e sua influência na sensação dolorosa. Isso ocorre por meio de uma avaliação cognitiva e por informações de experiências anteriores que estão armazenadas em regiões corticais superiores ligadas ao componente motivacional. Alterações neste componente, principalmente na dor crônica, podem modificar as reações à dor mesmo não havendo mudanças no seu componente sensorial (BRO-TON et al., 1982).

Controle central da DorSabe-se que os impulsos dolorosos estão sujeitos a

influências modulatórias centrais e que, em situações de estresse físico ou de grande concentração, os estímulos dolorosos são tolerados. Foi sugerida, então, a existência de um sistema fisiológico de controle central da dor. Esse sistema pode ser ativado também por estímulos como doenças, comportamento cognitivo ou até mesmo pela própria dor (URBAN et al., 1999).

O processo analgésico ocorre pela estimulação de vários locais como a SCPV, locus coeruleus e o Bulbo Raqui-diano Ventromedial Rostral (BRVMR). Projeções diretas conectam o córtex pré-frontal e insular, o hipotálamo, a amígdala e o tronco cerebral à SCPV. Esta se liga ao BR-VMR o qual, por sua vez, projeta-se para o corno dorsal da medula. O BRVMR é a maior fonte de neurônios do tronco cerebral para o corno dorsal, principalmente para as lâminas I, II e V (FIELDS et al., 1999; URBAN et al., 1999). Deste modo, a estimulação da SCPV provoca exci-tação dos neurônios do BRVMR que, por sua vez, liberam neurotransmissores, como serotonina e encefalina, os quais vão inibir as respostas nociceptivas dos neurônios do corno dorsal, provocando assim uma diminuição das respostas à dor (BASBAUM et al., 2000).

Existe também a via noradrenérgica proveniente do locus coeruleus, que possui como principal antagonista a noradrenalina (FRITSCHY et al.,1987; CLARK et al., 1991). Esta exerce um efeito inibitório sobre a transmis-são da dor no corno dorsal (BELCHER et al., 1978).

A administração intratecal de noradrenalina causa antinocicepção comprovando sua participação no con-trole da dor (YAKSH et al., 1979; REDDY et al., 1980). Além disso, antagonistas da noradrenalina reduzem a antinocicepção produzida pela estimulação da medula supraespinhal (BARBARO et al.,1985; JONES et al., 1986).

Receptores e ligantes da DorOs principais receptores da dor são os opióides,

serotoninérgicos, noradrenérgicos e vanilóides. Os receptores opióides possuem uma distribuição

seletiva. Estão mais presentes no sistema límbico e

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na SCPV, podendo também ser encontrado no SNP (HARLAN et al., 2002). Os receptores opióides são ob-servados em áreas correlacionadas com a percepção da dor (lâminas I, II e V), a modulação do comportamento afetivo (amígdala, hipocampo, locus coeruleus e córtex) e a regulação do sistema nervoso autônomo e funções neurodegenerativas (bulbo e hipotálamo) (ARVIDSSON et al., 1995a,b).

Estudos demonstram que o efeito analgésico dos opióides é devido à sua propriedade em inibir, de maneira direta, a transmissão ascendente das informações noci-ceptivas provenientes do corno dorsal da medula espinhal e ativar os circuitos de controle da dor que descem do mesencéfalo pelo bulbo ventromedial rostral e chegam ao corno dorsal da medula espinhal. Os peptídeos opióides e seus receptores são encontrados em todos esses circuitos descendentes da dor (GUTSTEIN et al., 1998).

Os tipos de receptores opióides são µ (mi), κ (kappa) e δ (delta). Eles diferem entre si por diferentes afinidades aos ligantes opióides endógenos e também às drogas opióides exógenas. Os principais ligantes opióides são: encefalina, seletiva para receptores tipo delta; dinorfina, seletiva para receptores tipo kappa; e endorfina a qual possui alta afinidade para receptores tipo delta e mi e baixa afinidade para receptores tipo kappa (LORD et al., 1977). Todos eles são acoplados a proteína G e inibem a adenilato ciclase, reduzindo assim o conteúdo intracelular de monofosfato cíclico de adenosina (AMPc) (DHAWAN et al., 1996).

As encefalinas, por exemplo, que estão presentes nos interneurônios da SG da medula espinhal posterior, apre-sentam efeitos antinociceptivos que parecem ser ativados pelas ações pré e pós-sinápticas para inibir a liberação de substância P e diminuir a atividade das células que se projetam da medula espinhal para os centros mais altos do SNC (HOFFMAN et al., 2003).

Em relação aos receptores serotoninérgicos, estes são metabotrópicos do tipo 5-HT1A e possuem como principal ligante a serotonina (ou 5-hidroxitriptamina – 5-HT) que estão presentes principalmente no núcleo magno da rafe (HOYER et al., 1994). Em particular, esse núcleo possui um papel crucial na integração da nocicepção e informações afetivas através de projeções descendentes para a medula espinhal e projeções ascendentes para o córtex cerebral (YAARI et al., 1985).

A serotonina está envolvida em múltiplos níveis de regulação da nocicepção. A liberação desse neurotrans-missor inibe a transmissão do impulso doloroso para o SNC induzindo à analgesia. Os núcleos serotoninérgicos dorsais da rafe, sob a influência de vias encefalinérgicas, modulam a atividade do núcleo acumbbens, amígdala e habênula (YAARI et al., 1985; MICO et al., 2006).

Já os receptores vanilóides são canais de cátions não seletivos que são ativados pelo calor (temperaturas acima de 43ºC), baixo pH, lipídios endógenos, como a anandamida e produtos da ação de lipoxigenases. Eles encontram-se distribuídos em neurônios aferentes primários, gânglios da raiz dorsal e em todo o cérebro (CATERINA et al.,1997).

Evidências recentes mostram que os receptores vanilóides, estimulados por endocanabinóides ou pela capsaicina na SCPV, induzem analgesia. Este efeito análgesico está associado ao aumento da liberação de glutamato e ativação de células da medula ventromedial rostral. A ativação da via nociceptiva descendente por estimulação desse receptor na SCPV pode ser uma nova estratégia para produzir analgesia (PALAZZO et al., 2008; MAIONE et al., 2006; JIA et al., 2005).

Aspectos motivacionais da DorA dor possui um aspecto emocional que contribui

para uma potencialização dependendo da experiência vivenciada pelo indivíduo (MELZACK et al., 1999). Em determinadas situações sua intensidade e duração não mantêm uma relação de proporcionalidade com o estí-mulo agressor (LOESER et al., 1999; MILLAN, 1999), exibindo a participação do componente emocional na sensação dolorosa.

Os estímulos sensoriais da dor estão ligados a com-portamentos defensivos. Já se sabe que, anatomicamente, existe superposição de substratos neurais que estão liga-dos ao comportamento dor/medo no teto mesencefálico (BASBAUM et al., 2002). Existem também evidências de que o medo inibe a dor em humanos (RHUDY et al., 2004).

Bolles e Fanselow, em 1980, propuseram um modelo para explicar o comportamento medo/dor chamado de modelo perceptivo recuperativo (PDR). Ele mostra que o medo e a dor geram comportamentos distintos.

Após uma lesão dolorosa dois comportamentos podem ser ativados: o comportamento recuperativo, responsável pelo restabelecimento do indivíduo, ou o comportamento defensivo, que inibe tanto o comporta-mento recuperativo quanto a dor e promove a percepção ambiental e a defesa (BOLLES et al., 1980). Isto é, o medo ativa mecanismos opióides endógenos que inibem o sistema motivacional da dor, pois a expressão deste sistema pode competir e até mesmo ser incompatível com o comportamento defensivo (RHUDY et al., 2004).

O modelo PDR pode ser divido em três fases: per-ceptiva, defensiva e recuperativa (BOLLES et al., 1980). A fase perceptiva é uma fase breve onde ocorre à detecção do estímulo e sua aprendizagem a qual é condicionante, ou seja, um estímulo que serve como sinal de memória daquele que gerou algum trauma poderá evocar compor-tamentos defensivos.

O papel dessa aprendizagem é fazer com que o estí-mulo condicionado induza uma expectativa do estímulo não condicionado. Se o estímulo não condicionado ocorre novamente, as suas características reais são confrontadas com as características esperadas. Qualquer discrepância entre os sinais percebidos e esperados gera correções pelo sistema de aprendizagem de forma a evitar expectativas errôneas no futuro. É a expectativa do estimulo não con-dicionado que gera o comportamento defensivo. Assim, na conversão da nocicepção em dor estão envolvidos fatores como experiência prévia, cognitivas, contexto

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cultural e social (BROTON et al., 1982), podendo gerar respostas diferentes à experiência dolorosa em diferen-tes indivíduos e em diferentes momentos (MELZACK, 1975; MELZACK et al., 1994; MELZACK et al., 1971; BOLLES et al., 1980).

A fase defensiva é o momento onde ocorre a reação ao estímulo com o aumento do medo e diminuição da dor ativando o sistema analgésico endógeno e gerando comportamento defensivo. Já na fase recuperativa, ocorre a cura da injúria com ativação do sistema motivacional da dor pelo dano tissular e inibição de qualquer outro tipo de motivação. Nesta fase prevalece o comporta-mento recuperativo com cuidados corporais e repouso e o indivíduo torna-se dependente e afetado (BOLLES et al.,1980).

Alterações psicológicas na Dor A dor é subjetiva e particular, pois cada indivíduo

a expressa de acordo com suas experiências baseando-se nas lesões que ocorreram desde o seu nascimento (MER-SKEY et al., 1979). Observa-se então a subjetividade na interpretação do fenômeno doloroso com seu caráter emocional e sensitivo. A dor, portanto, além de induzir anormalidades físicas, altera o equilíbrio psicológico do indivíduo (TEIXEIRA, 2006).

A dor crônica pode levar a disfunções psicológicas e sociais importantes. Tais disfunções podem ser causadas pelo déficit de neurotransmissores, alterações nos recep-tores, transtorno dos ritmos biológicos, anormalidades neuroendócrinas, imunológicas e/ou fatores genéticos (TEIXEIRA, 2006).

Pessoas que sofrem de dores crônicas apresentam uma maior propensão à doença depressiva quando comparados com indivíduos normais (SULLIVAN et al., 1992). Cerca de 30% a 54% dos pacientes com dores crônicas, como cefaléia, dor facial, cervicalgia, lombalgia, dores torácicas, abdominais, pélvicas e nas extremidades, apresentam freqüentemente transtornos depressivos (BANKS et al.,1996; VON KNORRING et al., 1983) e, geralmente, necessitam de tratamento especializado (WARD, 1990).

Por outro lado, pessoas com depressão ou ansiedade estão mais vulneráveis à dor. Um considerável número de pessoas com depressão, especialmente quando acom-panhada de ansiedade, apresentam queixas dolorosas (WÖRTZ, 1994). Elas freqüentemente queixam-se de dor crônica, muitas vezes em várias partes do corpo na ausência de lesões ou de justificativas para tal (MAGNI et al., 1990).

Situações como estresse, medo, ansiedade e duração da dor interferem na ativação do sistema opióide que está envolvido na modulação da analgesia (BROTON et al., 1982). Neuromoduladores da nocicepção são liberados quando a dor é intensa ou quando há estresse (TERMAN et al., 1984).

A depressão e a ansiedade interagem na percepção da dor via mecanismos inibitórios e facilitatórios (MEYER, 1985). As vias noradrenérgicas e serotoninérgicas estão

envolvidas no mecanismo da ansiedade e da depressão, bem como no controle central da dor. A interação entre as unidades excitatórias e inibitórias, a condição emocio-nal, os traços constitucionais, as experiências pregressas e presentes, a ocorrência de anormalidades orgânicas ou funcionais e as condições ambientais podem interferir na transmissão da informação nociceptiva para centros nervosos os quais participam da percepção ou das re-ações reflexas frente à dor. O estresse psicológico, por exemplo, torna a dor mais intensa ou menos tolerável (TEIXEIRA, 2006).

Tratamento O tratamento deve se basear na etiologia e fisiopa-

tologia da dor e nas suas repercussões (RAMAMURTHY et al., 1993), envolvendo assim a eliminação do fator causal com o uso de fármacos analgésicos e adjuvantes. Substâncias capazes de diminuir a condição inflamatória podem também ser empregadas no tratamento contra a dor. Na verdade, a grande maioria dos fármacos pre-sentes no mercado, que são utilizados para o controle da dor, possui um cunho antiinflamatório (MENDELL et al., 2003).

Também devem ser incluídas medidas não far-macológicas como os recursos de medicina física e de reabilitação somados aos procedimentos psicoterápicos (CATALANO et al., 2004). Em situações excepcionais, procedimentos anestésicos e neurocirúrgicos podem ser valiosos no alívio de determinadas algias resistentes (TEIXEIRA, 1988).

O tratamento visa reduzir a dor e o uso de medica-mentos, reintegrar funcionalmente o doente e melhorar sua qualidade de vida. Em casos de dor aguda, as inter-venções visam à eliminação do desconforto e recorrem fundamentalmente à remoção das causas, à farmacotera-pia analgésica e aos procedimentos simples de medicina física e de medicina comportamental (CANDELETTI et al., 1985).

No tratamento de dor crônica, ocorre o emprego de medidas sintomáticas, especialmente no uso de medicamentos adjuvantes, fisioterapia, psicoterapia e intervenções de reintegração social. A prescrição de me-dicamentos é, geralmente, a primeira atitude analgésica adotada tanto para dor aguda quanto para dor crônica (AMANO et al., 1986).

Os opióides são universalmente utilizados no tra-tamento da dor oncológica e dor aguda, embora alguns clínicos ainda resistam ao uso destes analgésicos prin-cipalmente pelo temor de suas complicações, como a depressão respiratória, e pela falta de conhecimento de respostas fisiológicas individuais frente a alguns aspectos farmacológicos, como a tolerância, a dependência física e psicológica (McQUAY, 1999).

Embora a dor nociceptiva em geral responda aos anal-gésicos opióides, a dor neuropática não costuma responder bem a esses fármacos e pode exigir doses maiores desses analgésicos. Portanto, os opiódes são mais eficientes no tratamento da dor nociceptiva do que na dor neuropática (FIELDS, 1988; COLOMBO et al., 2006).

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O uso de uma variedade de medicamentos antidepres-sivos está associado com a redução do quadro álgico, efeito este independente da mudança de humor e da qualidade destas drogas. Este alívio é uma conseqüência da ampla variedade de ações dos antidepressivos nos mecanismos neurorregulatórios da percepção e transmissão da dor (McCLEANE, 2008). O uso de antidepressivos tricíclicos é eficaz e auxilia no controle da dor (SINDRUP et al., 1999; O’MALLEY et al., 2000). Alguns agem inibindo a recapta-ção de serotonina, contudo existem drogas mais eficientes as quais inibem não apenas a recaptação de serotonina como também de noradrenalina (JANN et al., 2007).

Considerações finaisApós o levantamento realizado, verifica-se que

o estudo da dor é algo extremamente complexo, pois além de apresentar seu aspecto sensorial de cunho aná-tomo-funcional (dependente das vias de transmissão) também possui uma relação com as vias envolvidas com o comportamento motivacional, podendo particularizar sua resposta frente a diferentes indivíduos. Isso acarreta uma dificuldade em seu tratamento, exemplificado pela utilização não exclusiva de fármacos analgésicos. Sendo assim, torna-se uma área de vasto conhecimento e futuras perspectivas no sentido de se entender melhor essas rela-ções com o objetivo de se conhecer melhor e desenvolver novas formas de controle desse fenômeno.

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Sobre os autores

Edson Lopes da PonteGraduado em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Atuou como docente, na disciplina de Fisiologia Geral, no curso de graduação em Enfermagem na Universidade Estadual do Ceará, assim como no curso de graduação de Medicina da Faculdade Christus. Atualmente é mestrando em Ciências Fisiológicas UECE onde desenvolve projeto relacionado com produtos naturais sobre a inflamação e a dor no Laboratório de Fisio-farmacologia da Inflamação.

Aline Oliveira VitorGraduada em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Atualmente é mestranda do Curso de Ciências Fisiológicas da mesma universidade onde atua em pesquisas relacionadas com produtos bioativos provenientes de animais do semi-árido nordestino na dor neuropática no Laboratório de Toxinologia e Farmacologia Molecular.

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Ensaio

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

Tuberculose e TBMR: mecanismos imunológicos e novas ferramentas de

controle da doençaDOI: 10.3395/reciis.v2i1.132pt

Roberta Olmo PinheiroLaboratório de Hanseníase, Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, [email protected]

Margareth Pretti DalcolmoCentro de Referência Pro-fessor Hélio Fraga, UFRJ, Rio de Janeiro, [email protected]

Elizabeth Pereira SampaioInstituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, [email protected]

ResumoEstima-se que um terço da população mundial esteja infectada com o Mycobacterium tuberculosis. Em 2005, a Organi-zação Mundial da Saúde estimou em oito milhões o número de mortes causadas por tuberculose em todo o mundo. Os indicadores oficiais apontam declínio da doença no último século; entretanto, desde 1990 este declínio vem apresentando sinais de reversão. Apesar da existência de medicamentos efetivos no controle da tuberculose, os casos de resistência a múltiplas drogas têm aumentado em todo mundo. Recentemente, esse problema se agravou com a emergência de cepas extremamente resistentes a drogas, denominadas pela OMS como XDRTB (extensively drug resis-tant tuberculosis). A vacina existente contra a doença, o BCG, é capaz de prevenir as formas graves de tuberculose em crianças; no entanto, sua eficácia em adultos é altamente variável e foi demonstrado que a revacinação em jovens e adultos não aumenta o nível de proteção. Diversos estudos demonstraram que as células hospedeiras desenvolveram mecanismos imunorregulatórios e micobactericidas na tentativa de conter a infecção e que falhas nesses mecanismos seriam responsáveis pelo avanço da doença. No presente artigo procura-se revisar os dados relacionados à resposta imune em pacientes com tuberculose e tuberculose multirresistente (TBMR) e como esses achados podem contribuir para o desenvolvimento de novas estratégias de diagnóstico e/ou vacinas para o controle da doença.

Palavras-chaveTuberculose, multirresistente, diagnóstico, IFN-γ, mecanismos imunológicos

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Introdução – controle da tuberculoseO Mycobacterium tuberculosis, em conjunto com o

HIV são os dois principais agentes responsáveis pelas mortes causadas por doenças infecciosas no mundo (WHO, 1996). Em 2005, a Organização Mundial da Saúde estimou oito milhões de novos casos e 1,6 milhões de mortes causadas por tuberculose em todo o mundo (WHO, 2007). Apesar dos indicadores oficiais terem relatado o declínio da doença no último século, desde 1990 este declínio vem apresentando sinais de reversão (LOCHT et al., 2007).

As Américas respondem por 4% das notificações de tuberculose em nível global, notificando em 2003, 227.551 casos de tuberculose. No Brasil, em 2003, foram notificados 83.575 casos novos, correspondendo ao coeficiente de incidência de 47,3/100.000 habitantes, variando de 18,7/100.000 no Tocantins a 79,6/100.000 no Rio de Janeiro (WHO, 2005). O Brasil encontra-se incluído entre os 22 países que concentram 80% dos casos, em números absolutos, ocupando o 150 lugar neste ranking (WHO, 2005).

Estima-se que 1/3 da população mundial esteja in-fectada com o M. tuberculosis. No entanto, a maior parte dos indivíduos infectados não desenvolve qualquer sinal de doença em toda sua vida, mantendo uma infecção latente. No entanto, o diagnóstico dos indivíduos com infecção latente é importante, uma vez que estes apre-sentam risco de desenvolver a doença, especialmente se expostos a condições que favoreçam o desenvolvimento da micobactéria, como a co-infecção com HIV ou ainda quando em utilização de imunossupressores (LOTCH et al., 2007).

O controle eficiente da tuberculose está associado ao diagnóstico tanto da doença quanto da infecção latente, como no tratamento efetivo e/ou vacinas para prevenir a progressão dos indivíduos com a infecção latente para a doença ativa.

Para a melhoria das condições relacionadas ao con-trole da tuberculose, foi introduzida a estratégia DOTS (Directly Observed Treatment Short Course), que é pautada em cinco pilares considerados essenciais para o controle da doença: compromisso político, detecção de casos por baciloscopia, esquemas de tratamento padronizados e tratamento diretamente supervisionado, suprimento regular e ininterrupto dos medicamentos padronizados e sistema de registro e notificação de casos (WHO, 2006). A estratégia DOTS tem sido adotada por mais de 150 países (RAVIGLIONE et al., 2002), apesar de um quarto da população mundial não ter ainda acesso a esse serviço.

Na maioria dos países com elevada prevalência, o diagnóstico da tuberculose ativa é baseado na anamnese clínica seguido pela identificação do bacilo em esfregaços utilizando microscopia ótica. Na tuberculose pulmonar, a tosse não produtiva é o sintoma mais comum no início da doença. Com o desenvolvimento da infecção, o escarro começa a ser produzido quando aumenta a inflamação e a necrose no tecido pulmonar. Devido a isso, a baciloscopia é o método prioritário de diagnóstico e controle durante

o tratamento da tuberculose (TEIXEIRA et al., 2007). No entanto, apesar do baixo custo, a sensibilidade deste método é altamente variável, chegando a índices meno-res que 20% (STEINGART et al., 2006; URBANZIK, 1985).

O teste intradérmico utilizando o derivado protéico purificado (PPD) é pouco específico, uma vez que o PPD contém diversos antígenos micobacterianos que são compartilhados com outros microrganismos, incluindo o BCG.

Desde 1982, as drogas de primeira escolha no tratamento da tuberculose no Brasil são a isoniazida e a rifampicina por seis meses em associação com a pirazinamida nos dois primeiros meses. Cabe ressaltar que os medicamentos são fornecidos pelo governo, sem ônus ao paciente; entretanto, o tratamento é baseado em auto-administração, o que acaba favorecendo os casos de abandono do tratamento, quer em decorrência do aparecimento de reações adversas ou simplesmente devido ao fato do paciente sentir-se melhor e acreditar não precisar mais do tratamento.

A tuberculose multirresistente (TBMR) é descrita como sendo aquela resistente a isoniazida e rifampicina in vitro (YEW et al., 1995). No Brasil, considera-se TBMR a situação na qual o paciente é resistente à rifampicina e à isoniazida e a um terceiro fármaco dos esquemas padronizados (DALCOLMO et al., 2007).

Em um estudo multicêntrico visando avaliar a efi-cácia dos regimes terapêuticos para TBMR foi observado que o tratamento irregular ou incompleto foi o indicador mais importante da multirresistência (DALCOLMO et al., 1999). Outros fatores como a presença de cavitações na radiologia, e a co-infecção com HIV também parecem ser importantes para o desenvolvimento das formas resistentes (GRANICH et al., 2005; VANACORE et al., 2004). Entretanto, no Brasil, a taxa de co-infecção em pacientes com HIV/aids tem sido estimada em 3-4% dos casos. Entre os pacientes com aids, no momento do diagnóstico, o percentual de co-infecção com tuber-culose, que foi de 30% nos anos 1990, apresenta uma tendência de queda, fato que alguns autores associam com a introdução da quimioterapia antiviral (HIJJAR et al., 2005).

Uma vez que os índices de abandono do tratamento estão associados à ocorrência de TBMR, diversos estu-dos têm procurado avaliar o nível de adesão à terapia em pacientes com tuberculose. No Rio de Janeiro dois estudos encontraram taxas de falta de adesão ao trata-mento de 30,5 e 28,9%, respectivamente (DINIZ et al., 1995; KRITSKI et al., 2002). No estado de São Paulo, onde há elevados índices de TBMR, DEHEINZELIN et al. (1996) demonstraram uma taxa de abandono do tratamento de 33%.

Dados da Organização Mundial da Saúde apontam que no Brasil, a prevalência nacional de resistência adqui-rida a qualquer droga é menor do que 20% e a resistência a múltiplas drogas é menor do que 10% (WHO, 2004). No entanto, variações regionais devem ser levadas em consideração. Recentemente, BALIZA et al. (2008) des-

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creveram que na cidade de Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, do total de casos de TB, 14% eram multir-resistentes. Já outro estudo realizado na cidade de São Paulo demonstrou taxa de resistência de 15,5%. Neste estudo, entre os casos previamente tratados, a prevalên-cia de resistência foi de 27% e a resistência a múltiplas drogas foi de 16,7% (TELLES et al., 2005).

Os tipos de resistência do M. tuberculosis podem ser classificados em: natural (decorrente de mutação espon-tânea, independente da exposição prévia a fármacos e proporcional ao número de bacilos); inicial (observada no momento em que o paciente se apresenta para o tratamento. Inclui pacientes com resistência primária ou adquirida, sobre os quais não se conhece informações de tratamentos anteriores); primária (observada em pacientes não tratados anteriormente, infectados por uma fonte com forma resistente) e adquirida ou secun-dária (resultante de uso prévio de medicação de forma inadequada) (MITCHISON, 2005). Estudos anteriores demonstraram que pacientes com TBMR transmitem e causam a doença em pessoas susceptíveis, da mesma for-ma que o fazem os doentes sensíveis às drogas (SNIDER et al., 1985; VALWAY et al., 1994). Por ser facilmente contagiosa, com a conseqüente disseminação de bacilos resistentes na população, o controle da doença torna-se deficiente.

Encontra-se em desenvolvimento no Brasil o II Inquérito nacional de resistência aos fármacos anti-TB que vai atualizar as taxas de multirresistência no país. Espera-se que, apesar da grande variação entre algumas regiões, se encontre taxas de resistência associadas à Rifampicina + Isoniazida ainda em níveis muito baixos. Em revisão recente, ZAGER et al. (2008) descreveram que a prática de expressar a prevalência de TBMR como a proporção dos casos encontrados resistentes não reflete adequada-mente a ocorrência de MR na comunidade. Para obter um painel adequado da incidência ou prevalência da doença em uma determinada população, os autores sugerem que sejam incluídos os casos de multirresistência que apareceram em casos previamente tratados.

O tratamento recomendado para TBMR é menos efetivo, menos eficaz, mais longo, mais tóxico e mais caro do que o tratamento da tuberculose sensível. Requer o uso de medicamentos de segunda e de terceira linhas, por período entre 18 a 24 meses (ISEMAN, 1993; ZIGNOL et al., 2006, DALCOLMO et al., 2007).

Uma nova ameaça para o controle da tuberculose é o aparecimento de cepas extremamente resistentes (XDRTB). A XDR-TB é definida como sendo a resistência à rifampicina, isoniazida, um medicamento injetável de se-gunda linha (amicacina, kanamicina, capreomicina) e uma fluoroquinolona (ESPINAL et al., 2001; CDC, 2007).

Apesar do conhecimento acumulado sobre os me-canismos imunológicos associados à patogênese da do-ença, ainda não há uma completa compreensão sobre os mecanismos de sinalização, as respostas transcripcionais do hospedeiro, a adaptação da bactéria ao hospedeiro ou interações célula-célula que se seguem à infecção com M. tuberculosis. Assim, alguns estudos têm procurado avaliar

os mecanismos imunológicos associados à infecção e ao desenvolvimento de resistência em alguns indivíduos.

Mecanismos imunológicos associados ao controle da tuberculose e da TBMR

A tuberculose é predominantemente uma doença pulmonar, sendo esta responsável por 80% dos casos notificados no Brasil; entretanto, o bacilo pode invadir as correntes sanguínea e linfática e disseminar-se pelo organismo, causando doença virtualmente em qualquer órgão do corpo humano. Logo após a infecção primária por partículas aéreas, os macrófagos alveolares e as células dendríticas que fagocitaram o M. tuberculosis migram através do sistema linfático em direção ao linfonodo regional e formam o complexo de Ghon. Ao mesmo tempo as células fagocíticas podem penetrar no parênquima pulmonar, iniciando um foco inflamatório ao redor do microorganismo, levando à formação do granuloma num processo coordenado por linfócitos T (TEIXEIRA et al., 2007). Estudos envolvendo a análise da interação entre M. tuberculosis e células apresentadoras de antígeno demonstrou que as células dendríticas não permitem o crescimento intracelular de M. tuberculosis, ao contrário do que é observado em macrófagos (HER-MANN et al., 2006). Nos macrófagos, a micobactéria reside nos fagossomas iniciais e escapa do sistema imune por inibir a maturação dos fagossomas e a fusão com os lisossomas (RUSSELL, 2003; 2007). O M. tuberculosis produz lipídios que mimetizam os fosfatidilinositóis de mamíferos e com isso inibe as vias dependentes de fosfatidilinositol 3-fosfato em macrófagos infectados (VERGNE et al., 2004).

A imunidade adaptativa contra o M. tuberculosis envolve principalmente as células T CD4+. A impor-tância das células T CD4+ produtoras da citocina IFN-γ na resistência primária contra o M. tuberculosis já foi descrita (COOPER et al., 1997). No entanto, as células T CD8+ parecem ter um importante papel no controle da doença, uma vez que a perda das células T CD8+ leva à maior susceptibilidade ao desafio micobacteriano (KAUFMANN, 2001).

O efeito micobactericida do IFN-γ produzido pelos linfócitos T envolve a produção de óxido nítrico e ou-tros radicais reativos de nitrogênio e oxigênio na célula hospedeira (macrófagos), mas alguns achados recentes demonstram que isso pode explicar apenas parcialmente a ação desta citocina (MACMICKING et al., 2003). Foi demonstrado que os efeitos do IFN-γ ocorrem pelo menos em parte através de uma GTPase, a LRG-47 (GUTIER-REZ et al., 2004). A LRG-47 é um membro da família de GTPases de resistência que foi descrita como sendo um dos principais fatores de proteção relacionado ao M. tuberculosis. Foi ainda demonstrado que a LRG-47 pode participar na indução de autofagia dependente de IFN-γ e que esse processo está relacionado à diminuição da viabilidade da micobactéria intracelular (GUTIERREZ et al., 2004).

O IFN-γ é crítico em mediar a proteção, como con-firmado por observações no modelo murino. A relevância

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de tais respostas protetoras do IFN-γ é reforçada por informações de que mutações naturais em genes huma-nos que codificam IFNγ-R, IL-12, IL-12R ou STAT-1 e conseqüentemente levam à imunidade mediada por IFN-γ, aumentam a susceptibilidade a infecções por micobactérias (SAHIRATMADJA et al., 2007; HWANG et al., 2007; OTTENHOFF et al., 2003).

Ao mesmo tempo em que uma resposta de IFN-γ parece estar associada com o controle da doença, diversos estudos demonstraram que a tuberculose humana está as-sociada com o aumento da resposta Th2 e o envolvimento das citocinas IL-4 e IL-13, bem como a secreção de IgE dependente de IL-4 (YONG et al., 1989; SEAH et al., 2000). Além disso, a infecção pulmonar leva à produção aumentada das citocinas IL-10 e TGF-β que promovem um ambiente no qual as células do sistema imunológico recém-recrutadas ficam refratárias aos sinais de ativação imunológica (BONECINI-ALMEIDA et al., 2004).

Outra importante citocina no controle da tubercu-lose é o TNF-alfa. Foi observado que pacientes tratados com antagonistas de TNF-alfa exibem um aumentado risco de doença micobacteriana, o que coloca o TNF-alfa como uma importante molécula na defesa do hospedeiro contra patógenos intracelulares (BOURIKAS et al., 2008; JOLOBI, 2007; STRADY et al., 2006).

Nos últimos anos muitos estudos têm procurado caracterizar moléculas de M. tuberculosis para inclusão em uma nova vacina contra a tuberculose e novos métodos diagnóstico. Nossos estudos preliminares demonstraram que a produção de IFN-γ em pacientes com tuberculose estava aumentada em resposta aos antígenos 85B e ferritina quando comparados aos controles (ANTAS et al., 2002; CARDOSO et al., 2002). Estudos anteriores demonstraram que o ESAT-6 (Early secreted antigenic target 6-kDa) é um dos antígenos micobacterianos de-terminantes para a produção de linfócitos T produtores de IFN-γ. O antígeno ESAT-6 foi descrito como tendo um grande número de epítopos de células B e T que são reconhecidos pelos soros de pacientes com tuberculose, implicando o seu papel na indução de memória imune contra o bacilo (HARBOE et al., 1998; MUSTAFÁ et al., 1998). Os genes do ESAT-6 e CFP-10 (culture filtrate protein 10 kDa) estão codificados na região RD1 do ge-noma de micobactérias. Esta região está presente apenas no M. tuberculosis, M. africanum e M. bovis (complexo M. tuberculosis) e em algumas micobactérias do ambiente (M. kansasii, M. marinum e M. szulgai) estando ausente na vacina BCG e na maioria das micobactérias ambientais, o que torna essas moléculas importantes alvos de estudo para avaliar a capacidade imunomodulatória e ainda sua capacidade para discriminar indivíduos com a forma latente da doença.

Na tentativa de avaliar a resposta imune antígeno – específica em uma população no município do Rio de Janeiro, foi avaliada a produção de IFN-γ em sobrena-dantes de culturas de células mononucleares de sangue periférico (PBMCs) de pacientes com tuberculose não-resistente e de pacientes com TBMR. Foi observado que os pacientes com TBMR apresentam baixa produção de IFN-γ em resposta ao ESAT-6 se comparada aos pacientes

com tuberculose não-resistente antes e após o trata-mento (FORTES et al., 2005). Esses dados observados em pacientes TBMR no Rio de Janeiro estão de acordo com outros estudos da literatura, que demonstram que PBMCs de pacientes MDR-TB apresentam diminuída resposta de TNF-alfa a antígenos de 30 kDa de M. tuberculosis. Neste estudo, os autores demonstraram que a resposta diminuída aos antígenos de M. tuberculosis por pacientes portadores de TBMR, é modulada pela citocina IL-10 (LEE et al., 2003). Recentemente, um estudo avaliando a resposta imune de pacientes TBMR a antígenos lipídicos revelou que as PBMCs e células T CD4+ destes pacientes responderam menos aos antígenos lipídicos do que as células de indivíduos PPD-positivos. Em adição, foi observado que a produção de IL-4 em resposta aos antígenos lipídicos estava aumentada nos pacientes TBMR, com baixa resposta de IFN-γ, quando comparados aos indivíduos PPD-positivos, sugerindo que as células T CD4+ de pacientes TBMR polarizam para uma resposta Th2 (SHAHEMABADI et al., 2007).

Apesar de diversos estudos apontarem para a dico-tomia Th1 (IFN-γ) -Th2 (IL-4, IL-10) como sendo parâ-metros associados à resistência-susceptibilidade à doença, uma maior compreensão sobre os mecanismos imunor-regulatórios envolvidos no controle da tuberculose deve ser buscada. Ainda que inúmeras evidências apontem para a importância do IFN-γ no controle da doença em modelos experimentais e em pacientes com tuberculose não-resistente, PARK et al. (2007) demonstraram que em pacientes com TBMR avançada ou crônica, o trata-mento subcutâneo com IFN-γ não resultou em melhora dos parâmetros clínicos, radiológicos, microbiológicos ou imunológicos, sugerindo que outros fatores podem estar envolvidos no controle da doença nesses pacientes. Desse modo, a compreensão sobre os mecanismos imunológicos envolvidos nas diferentes formas clínicas e temporais da doença pode auxiliar no desenvolvimento de medidas profiláticas e mesmo terapêuticas mais efetivas contra a doença.

Novas estratégias de controle da tuberculose

O teste utilizado no diagnóstico da infecção laten-te é o Tuberculin Skin Test (TST), ou teste intradérmico com o derivado protéico purificado. Pode-se afirmar que o TST tem pobre especificidade e não é fácil de ser avaliado (BLANC et al., 2007; MENZIES, 1999). Dois testes diagnósticos baseados na produção de IFN-γ - o T-SPOT.TB e o Quantiferon-TB Gold – foram licencia-dos recentemente. Esses testes requerem somente uma amostra de sangue e seus resultados não são dependentes do examinador. Sua especificidade é maior do que a do TST porque eles não apresentam reação cruzada com a vacinação para BCG e com a maioria das micobactérias ambientais, uma vez que esses testes utilizam os an-tígenos ESAT-6 e CFP-10. Também no diagnóstico da tuberculose latente, esses ensaios apresentam melhor correlação com a exposição ao M. tuberculosis do que o TST. No entanto, a capacidade de detectar TB nesses dois testes é reduzida em pacientes com HIV, especial-

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mente aqueles em tratamento (BLANC et al., 2007). Além disso, não se sabe se esses ensaios serão facilmente realizados em países com pouca estrutura. Desse modo, novos métodos de diagnóstico são ainda necessários.

Entre as novas propostas para diagnóstico destacam-se o MGIT (Mycobacterium Growth Indicator Tube) que permite o rápido crescimento e a detecção da bactéria com uma redução no tempo de detecção. Outra proposta é a Capilia TB, um teste que confirma a presença de bacilo nas culturas em 15 minutos. Também estão sendo desenvolvidos testes com o objetivo de avaliar resistência a drogas em pacientes com esfregaço positivo, como é o caso do FASTPlaque-Response Test e o Genotype MTBDR Test, desenvolvidos pelo Geneva-based Foundation for Inno-vative New Diagnostics (FIND) em parceria com institui-ções privadas como o Biotec Laboratories e Hain Lifescience GmbH, respectivamente. O conhecimento da genética molecular tem levado a outras alternativas que asseguram um diagnóstico mais rápido; no entanto, deve-se levar em consideração que esses testes moleculares dependem de alto investimento na compra de equipamentos, bem como no treinamento da equipe, o que pode levar a dificuldades de implantação de tais métodos em países em desenvolvimento (YEW et al., 2008).

Apesar da existência de medicamentos eficazes no controle da doença, o elevado tempo de tratamento leva muitas vezes à falta de adesão a terapia, o que culmina na ocorrência de casos de resistência aos fármacos. Assim, tem-se buscado medicamentos que reduzam o período de tratamento, uma vez que a redução do tempo de tratamento incorrerá na maior adesão dos pacientes, transmissão reduzida de TB e menor resistência aos fármacos, com conseqüente diminuição no número de óbitos decorrentes da doença.

Dois novos medicamentos encontram-se em fase de testes clínicos. O primeiro é o moxifloxacin, um fárma-co já no mercado, desenvolvido pela Bayer, em fase III de testes clínicos para tuberculose. Além deste, outros fármacos se encontram em estudo, o nitroimidazol (PA-824), desenvolvido em parceria entre a TB Alliance e a Chiron Corporation nos Estados Unidos, está em fase I de testes clínicos, representando um painel promissor, que há muito tempo não se via, desde a descoberta da rifampicina há mais de 40 anos (GARWOOD, 2007).

A vacina BCG foi introduzida em 1921 e é ainda hoje a única vacina contra a tuberculose. A BCG é capaz de prevenir as formas de tuberculose em crianças; no entanto, a sua eficácia em adultos é altamente variável (NABESHIMA et al., 2005) e estudos demonstram que a re-vacinação em jovens e adultos não aumenta o nível de proteção (RODRIGUES et al., 2005). Durante os últimos anos, diversos candidatos a vacinas foram identificados e, ao menos oito vacinas entraram em testes clínicos, que estão ainda em fase inicial (GUPTA et al., 2007). A caracterização do M. tuberculosis H37Rv por métodos de proteômica revelou várias proteínas secretadas que po-deriam ser investigadas. Entretanto, o desenvolvimento de novas vacinas deve levar em consideração os efeitos de marcadores centrais para obter um melhor painel da regulação da resposta imune (WIKER et al., 2006),

desse modo, uma maior compreensão dos mecanismos imunológicos relacionados à tuberculose e ao desenvol-vimento da TBMR podem auxiliar no desenvolvimento de medidas profiláticas mais efetivas. É preciso que o acúmulo de informações obtidas nas pesquisas básicas contribuam efetivamente para o desenvolvimento de estratégias efetivas no controle da doença. Além disso, TEIXEIRA et al. (2007) ressaltam o fato de que ainda que uma vacina mais eficaz do que o BCG seja levada ao mercado, esta não será capaz de prevenir a progressão da doença entre os mais de 2 milhões de indivíduos já infectados, o que reforça a importância de prosseguirem as pesquisas por ferramentas diagnósticas e terapêuticas adequadas ao controle da doença.

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Sobre os autores

Roberta Olmo Pinheiro Possui graduação em Farmácia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998). Mestrado (2000) e Doutorado em Ciências (2004) realizados no Laboratório de Imunofarmacologia, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF/UFRJ). Pós-Doutorado no Laboratório de Biologia Imunitária (IBCCF/UFRJ). Atualmente é Pesquisadora Visitante do Laboratório de Hanseníase, do Pavilhão de Hanseníase (IOC/Fiocruz). Tem experiência nas áreas de Parasitologia e Imunologia, com ênfase em Imunologia, atuando principalmente nos seguintes temas: doenças infecciosas, imunorregulação, morte celular e vacinas.

Margareth Pretti Dalcolmo Graduada em Medicina pela Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórdia de Vitória. Doutorado em Medi-cina (Pneumologia) pela Universidade Federal de São Paulo e Residência-médica pelo Hospital Raphael de Paula Souza. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Pneumologia. Atuando principalmente nos seguinte tema: Tuberculose.

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Resenhas

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

La science sous observation – cent ans de mesure sur les scientifiques 1906 – 2006

Benoît GodinResenha - DOI: 10.3395/reciis.v2i1.161pt

O estímulo à pesquisa científica e ao desenvolvimen-to de novas tecnologias intensivas e com alta capacidade de aplicação no setor produtivo industrial tornou-se centro de um conjunto de ações do poder público e de debates na sociedade civil em muitos países. Todos os anos cifras vultosas são destinadas às instituições de pesquisa públicas e privadas, bem como às instituições de formação de novos pesquisadores. A despeito da di-versidade de relações entre os sistemas público e privado de pesquisa e produção, das formas de governo e do arranjo político das sociedades a dinâmica em torno do processo de produção de conhecimentos técnico-cientí-fico é bastante similar.

Experimentamos no século XX um processo de ho-mogeneização dos dispositivos de fomento à produção, da formação de pesquisadores e técnicos, da produção, circulação e divulgação desses conhecimentos. Processo que atingiu primeiro os países da Europa ocidental e os Estados Unidos da América, mas rapidamente dissemi-nou-se por todo o ocidente e o oriente. Essa engrenagem complexa e gigantesca é acompanhada por estudos sobre a dinâmica e o estado das ciências e das tecnologias mui-tos dos quais associados ao campo de Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT).

No livro La science sous observation – cent ans de mesure sur les scientifiques 1906 – 2006, publicado em 2005, Benoît Godin oferece ao leitor uma análise densa dessa dinâmica, entretanto parte de uma dimensão pouco explorada – a medida da ciência. De fato, Benoît Godin, professor do Centre de Recherche in Urbanisation, Culture et Societê vinculado ao Institut National de la Recherche Scien-

Márcia de Oliveira TeixeiraEscola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, [email protected]

Quebec, Ed. Les Presses de L`Université Laval

ISBN: 978-2-7637-8297-3

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tifique (INRS), especializou-se precisamente na análise crítica das estatísticas da ciência, tecnologia e inovação e em sua relação com as políticas públicas. Nos últimos sete anos, Benoît Godin publicou cerca de 40 artigos e dois livros (entre os quais La Science sous observation) sobre o tema, resgatando inclusive a história de seus precursores e dos principais organismos dedicados à elaboração de normas e à realização de estatísticas. Essa produção faz parte de um projeto, cuja amplitude me autoriza a tomá-lo como programa de pesquisa, intitulado “A Cultura dos Números”, no qual a construção das estatísticas da ciência, tecnologia e inovação é analizada por intermédio de uma perspectiva sócio-histórica. O material utilizado em La science sous observation foi originalmente produzido para o Ciclo de Conferências da Maison des Sciences de L’Homme sob o título Mesurer la science: pour quoi faire? (Medir a ciência: porque fazer?) realizado em 2005. O livro mantém a estrutura proposta para as conferências, dividindo-se em torno de três temas: a construção das estatísticas da ciência; os usos das estatísticas; da ciência à inovação.

Antes de prosseguir considero importante dizer que o livro de Godin não faz um inventário analítico dos dispositivos técnicos utilizados pela estatística. Ele está interessado no processo de construção do objeto da estatística, parte constituinte do exercício de medição. Há no exercício da estatística um aspecto fundamental – sua capacidade de medição depende da produção de categorias e parâmetros capazes de definir e caracterizar o objeto a ser medido. Não é por outro motivo que as enquetes, os censos e as estatísticas de toda sorte geram manuais, nos quais a metodologia seguida é minuciosamente apresen-tada. Há preocupação em assegurar a cientificidade pelo rigor da disciplina metodológica. Mas em igual proporção a medição estatística precisa tornar evidente o seu objeto. Ela constrói o objeto da medição por meio de um exercício de categorização, ou melhor, a partir de uma taxonomia. Para além dos números em si, as estatísticas da ciência, da tecnologia e da inovação permitem analisar as diferentes categorias e conceitos relacionados a cada uma em diferen-tes períodos históricos; registros de arranjos sócio-técnicos entre a ciência, tecnologia e sociedade. Assim, o livro de Godin trata dos deslocamentos conceituais relacionados à ciência, à tecnologia e à inovação ao discorrer sobre as mudanças nos objetos (e em sua construção) e nas práticas de medição da ciência. Segundo ele há uma relação de co-produção entre os conceitos utilizados pela estatística e as concepções circulantes de ciência, tecnologia e inovação. Ou seja, os estatísticos não lançam mão de conceitos definidos alhures para construção de suas categorias; eles próprios participam ativamente da produção de novos con-ceitos e categorias, por conseguinte, de novos arranjos da ciência, tecnologia, inovação e sociedade. Nesse sentido, os estatísticos pensam e organizam a ciência, tecnologia, inovação e sociedade tanto quanto os economistas, soci-ólogos e cientistas dos mais variados campos.

Os arranjos sócio-técnicos e as diferenças na produ-ção de conceitos evidenciam-se logo na primeira parte – os pioneiros. Nela encontramos uma leve e instigante narrativa sobre os pioneiros da medição da ciência – o

suíço Alphonse de Candoll (1873), o britânico Francis GALTON (1874) e o americano James Mckeen CAT-TELL (1906) – dedicando especial atenção aos dois últimos. A medição realizada pelos pioneiros concentra-se no pesquisador. Todavia, a despeito do curto intervalo que separa os trabalhos de Galton e Cattell, já é possí-vel identificar sutis mudanças. Em Galton o foco está inteiramente centrado nos cientistas, na sua formação, na opção pela carreira científica cuja motivação é o gosto pela ciência. Entre as variáveis propostas e analisadas por Galton encontramos a escolaridade, as motivações para ser pesquisador e o papel da família. Embora sua análise tenha uma forte inspiração das concepções eugenistas, é curioso observar que alguns temas reaparecem em estudos contemporâneos de carreira científica.

James Cattell, por sua vez, parte de um repertório totalmente novo, começando pela origem de seu pri-meiro trabalho (American Men of Science). O repertório biográfico sobre cientistas americanos surge da iniciativa de uma instituição filantrópica de distribuir subvenções a pesquisadores. O intuito do repertório biográfico era auxiliar a escolha dos pesquisadores. Considero essa história de origem emblemática de todo o trabalho ul-terior de Cattell, bem como dos muitos usos atribuídos às estatísticas da ciência ao longo do século XX. Porque nessa origem há um embrião da associação contemporâ-nea das estatísticas primeiro com a política de ciência e tecnologia, segundo com a tomada de decisão. Adiante retomarei esse dois pontos, apenas antecipo que a análi-se de Benoît Godin contribui para desconstruir o uso da estatística (ou sua redução) como base para a tomada de decisão. Por hora, quero frisar um deslocamento entre a medida da ciência com base no número dos homens de gênio dedicados ao conhecimento científico (Galton), para uma baseada na qualidade e na quantidade da per-formance dos cientistas (Cattell). O trabalho de James Cattell não perde o foco na figura emblemática do cien-tista, porém Godin destaca como no seu “repertório” já há uma sutil preocupação com o que os cientistas fazem e com onde eles fazem (em termos geográficos). Nesse sentido, Cattell manifesta uma acurada percepção das potenciais relações entre ciência, tecnologia e o mundo produtivo norte-americano. Alias Godin também des-taca o fato de James Cattell ser o primeiro a estimar o valor econômico de “um homem de ciência”, utilizando para tanto o salário (GODIN, 2005: 12). O trabalho de James Cattell e outras iniciativas sinalizadas por Benoît Godin emergem em um contexto favorável ao desen-volvimento de percepções da ciência como “atividade” próxima ao mundo produtivo industrial; distante, por conseguinte, da concepção de ciência como uma ma-nifestação de gênio individual. É sintomático, assim, que o National Research Council divulgue em 1920 (15 anos após a publicação do estudo de Cattell) a primeira edição do repertório sobre os laboratórios industriais americanos (GODIN, 2005: 20).

Gostaria de complementar, antes de finalizar os comentários à parte dedicada aos pioneiros, com duas observações. Cattell, a exemplo de todo uma geração pos-terior de estatísticos da ciência, foi antes de tudo alguém

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preocupado em refletir sobre as relações entre a ciência e a sociedade norte-americana de seu tempo. Benoît Godin conclui suas observações sobre Cattell colocando-o como “origem do que se convencionou chamar de cientometria” (GODIN, 2005: 12). Em segundo lugar, Cattell aponta para uma concentração geográfica na formação de pes-quisadores e apela para a necessidade de adotar medidas para a sua desconcentração. A concentração geográfica de cientistas e instituições de ciência e tecnologia é uma questão válida para pensarmos a ciência na contempora-neidade, com inúmeros desdobramentos para o campo de Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia; com o qual identifico a produção acadêmica de Benoît Godin. Em países como Brasil onde as diferenças regionais são intensas, a desconcentração é alvo de políticas públicas nas últimas três décadas. Porém, a dinâmica mundial do sistema de produção e circulação dos conhecimentos técnico-científicos aprofunda essa concentração. Entre outros fatores, destaco: a) a alta tecnificação da ciência que dificulta o acesso aos equipamentos e as técnicas consideradas de última geração pelos laboratórios lo-calizados fora dos centros mais dinâmicos de produção de conhecimento; b) os critérios utilizados para a con-cessão de financiamentos que privilegiam os índices de publicação e citação, dificultando o acesso de grupos de pesquisa novos; c) a concentração de instituições formadoras de pesquisadores em determinados países, facilitando o fluxo de jovens pesquisadores e sua fixação nessas instituições.

Nos 1930 anos que separam as décadas de 1920 e 1950 do século XX a estatística da ciência tornou-se um elemento fundamental nos escritos acadêmicos sobre a ciência e tecnologia. A partir da década de 1950 as enquetes estatísticas adquiriram regularidade. Na dé-cada de 1960, por sua vez, temos o inicio da confecção e difusão dos manuais de metodologia para enquête de grande envergadura, a exemplo do Manual Frascati produzindo pela Organisation for Economic Co-Operation and Development (OCDE) em 1962. Essa movimentação está relacionada com a posição da ciência e da tecnologia junto aos governos nacionais e ao setor produtivo pú-blico e privado. Nesse período, a ciência e a tecnologia tornaram-se alvos permanentes de políticas públicas. É a fase de criação, institucionalização e crescimento das agencias e organismos dedicados à produção de esta-tísticas da ciência, ao fomento à pesquisa, bem como à produção de estudos e relatórios técnicos governamen-tais sobre as atividades de ciência e tecnologia. Cabe salientar como no pós-guerra ocorre a constituição de organismos internacionais cujas estatísticas influenciam instituições localizadas em diferentes países, além das políticas públicas para a ciência e tecnologia em dife-rentes contextos sócio-político-econômicos ao longo das últimas quatro décadas do século XX. No Brasil, por exemplo, data dos anos 1950 a criação do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), principal agência de fomento à ciência e tecnologia. Em geral, identificamos a homogeneização de políticas e concepções de ciência e tecnologia precisamente com a emergência dessas organizações internacionais. Porém, para os cientistas

sociais, particularmente aqueles comprometidos com os Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia, o ponto é indagar como esse processo (de homogeneização) se instaura e se reproduz. Benoît Godin observa como a disseminação das estatísticas de ciência e tecnologia desempenhou uma posição ativa no processo de homo-geneização. Posição que se deve a prática de definição precisa de metodologias de coleta e de análise dos dados, as quais envolvem antes de qualquer enquête a conceituação do que será medido. Por conseguinte, essa posição está diretamente relacionada à produção e à disseminação mundial dos manuais entre os quais se destacam o Frascati, Oslo, além dos produzido por organizações como National Science Foudation (NFS) a partir da década de 1950.

Godin observa como a posição política das estatís-ticas da ciência é sempre associada ao apoio à tomada de decisão pelos governos e pelas agências internacio-nais. Assim, invariavelmente, ele também observa, as estatísticas assumem uma posição coadjuvante e neu-tra. Ou seja, coletam e sistematizam dados sobre um determinado campo de atividade, o qual a partir de um momento histórico adquiriu valor político-econômico alto; porém, a estatística em si não guarda relação alguma com a produção desse valor. As políticas públicas fazem uso da estatística, mas a estatística e os estatísticos não fazem política. Benoît Godin procura exatamente salien-tar a política dos números, àquela presente na prática estatística, desfazendo sua áurea de neutralidade. O estatístico é um ator político, uma vez que a estatística participa ativamente do processo de tomada de decisão. Novamente o ponto para os pesquisadores influenciados pelos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia é saber como isso ocorre? Para Godin, essa participação ocorre fundamentalmente de duas formas: com as instituições encarregadas das estatísticas da ciência decidindo o que será medido; com essas mesmas instituições conceitu-ando o que será medido. Nos dois casos trata-se de uma atividade de ordenamento; a conceituação, em especial, é uma forma de ordenamento. Ao circunscrever o alvo, definir como a medida será realizada e qual categorização será adotada, a enquête estatística estabelece e baseia sua ação prática em um determinado padrão. Godin lembra como a economia do conhecimento, e nos últimos anos, a economia da inovação fornecem o quadro conceitual das estatísticas da ciência (GODIN, 2005: 5). A eco-nomia da inovação ilustra bem o tipo de dinâmica que Benoît Godin deseja analisar em suas pesquisas sobre a estatística. A economia da inovação produziu um quadro de referencia muito bem acabado para as ativi-dades de pesquisa e desenvolvimento, para as relações entre pesquisa e o setor produtivo, além de propostas de financiamento público às instituições inovadoras. A estatística auxiliou na disseminação desse quadro ao fornecer dados. A proposição de Godin, em torno da qual estrutura sua história das estatísticas da ciência, é que elas participaram do processo de ordenamento da ciência e da tecnologia contemporânea, enquanto supostamente limitavam–se a registrar seus números. E participaram exatamente ao medirem sua atividade

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quantitativa e qualitativamente. Benoît Godin fornece uma série de exemplos para sustentar sua proposição, no entanto irei concentrar-me naquele que considero o melhor aspecto – a análise de como as estatísticas par-ticiparam dos deslocamentos de sentido entre ciência e pesquisa; da pesquisa para o binômio básica e aplicada, acrescentaram o desenvolvimento e, mais recentemente, a inovação. Evidentemente foge aos propósitos de uma resenha reproduzir a riqueza de detalhes que cercam a descrição de Godin desses deslocamentos de sentidos e constituição de novas categorias. Entretanto, considero importante chamar a atenção do futuro leitor de La science sous observation para alguns pontos que mobilizam esses deslocamentos.

O primeiro grande deslocamento ocorre quando o objeto a ser medido pela enquête estatística não é mais o cientista e sim as atividades de pesquisa. Esse deslocamento produz em um primeiro momento a categoria de pesquisa. Assim, “a concepção oficial de ciência veiculada pelas estatísticas sobre a ciência repousa em uma definição centrada na pesquisa” (GODIN, 2005: 15). A atividade de pesquisa reforça a concepção de que não estamos lidando e, portanto, medindo uma atividade diletante de produção de conhecimento; mas um empreendimento organizado e sistemático de produção de conhecimentos por meio de determinados parâmetros e realizada em instituições organizadas segundo um padrão especifico. O caráter e a intensidade dessa sistemática adquirirão uma importância enorme nas enquêtes estatísticas. A definição se uma atividade é ou não sistemática é crucial, por exemplo, para determinar se uma empresa industrial faz ou não pesquisa. Cabe salientar como o desloca-mento de sentidos e a definição de categorias ocorrem simultaneamente à emergência da gestão científica ou da planificação das atividades científicas (GODIN, 2005: 16). Emergência, por conseguinte, de um conjunto de ações governamentais orientadas para a articulação do financiamento, da formação de quadros e da priorização de áreas de pesquisa. Logo as estatísticas e suas meto-dologias compunham um grande esforço de demarcar os limites da pesquisa e em decorrência enumerar as instituições de pesquisa, alvos prioritários da política científica empreendida por organismos governamentais e internacionais.

A produção de dados mais precisos pelas enquêtes estatísticas sobre a atividade de pesquisa implicava na qualificação dessa atividade; além de considerar sua sistematicidade. Enquetes mais amplas dependem de definições e caracterizações do que efetivamente se faz de forma mais precisas. Assim, segundo Godin devemos a NFS e a OCDE o uso de uma série de atividades para definir mais apropriadamente o que estava compreendido sob a macro categoria da pesquisa científica: pesquisa fun-damental, aplicada, engenharia, testagem, prototipagem. Quase imediatamente, as quatro últimas formaram o que designamos atualmente como desenvolvimento (GO-DIN, 2005: 21). A NFS e a OCDE não cunharam essas categorias. Godin lembra como pesquisa fundamental, pesquisa de base, pesquisa aplicada e desenvolvimento já figuravam em reflexões acadêmicas sobre ciência desde

a década 1930. Como exemplo cita a produção de John Bernal (GODIN, 2005: 21). Esse desdobramento não resultou em enquetes sobre cada atividade. A intenção, em grande parte, era separar os alvos, ou seja, caracterizar melhor as atividades realizadas no âmbito dos laborató-rios industriais, as quais suscitaram inúmeras duvidas e discussões em levantamentos feitos antes da década de 1950. A hoje clássica divisão entre pesquisa fundamental (ou básica), aplicada e desenvolvimento aparecerá no quadro elaborado para uma enquête sobre a pesquisa industrial nos Estados Unidos da América em 1953. O quadro foi inspirado no trabalho de R.N. Anthony (DE-ARBON et al., 1953). Esse ponto é instigante, porque as enquêtes para o setor industrial sempre ocuparam parte das discussões metodológicas das estatísticas da ciência. Em países como Brasil, nos quais a pesquisa industrial concentra-se em pouquíssimas empresas públicas, cabe aos pesquisadores indagar quais são os dilemas metodo-lógicos das estatísticas da ciência?

Porém, o destaque ao desenvolvimento surge pouco depois, já na década de 1960. O trabalho de R.N. An-thony teve grande influencia, bem como a intensificação das relações entre estatísticos da ciência e economistas. Para Benoît Godin não se compreenderá o peso da ca-tegoria desenvolvimento, posteriormente a de inovação, sem considerar a origem industrial de ambos. E há mais envolvidos aqui. Há um deslocamento importante das estatísticas e das políticas de ciência e tecnologia nesse movimento. Um deslocamento que aponta para a me-dição da capacidade de gerar e produzir novos produtos e processos. Desenvolvimento deveria assim aglutinar atividades especificas para esses propósitos, tais como a engenharia, o design e a prototipagem. Ao analisar a emergência do desenvolvimento nas enquêtes e nos mo-delos explicativos da ciência a partir da década de 1960, Godin retoma a posição da estatística na produção do mundo contemporâneo ou das relações ciência, tecnolo-gia, inovação e sociedade. Em relação ao modelo linear, alvo nos últimos 20 anos de acaloradas contestações, ele observa que o “(..) modelo foi em parte construído graças aos estatísticos. São os industriais e os pesquisa-dores das escolas de gestão, mas também os indivíduos e organismos que se lançam ao exercício de medir com uma taxonomia baseada nesses três termos, que formalizam o modelo. Contrariamente ao que reporta a literatura, o modelo linear não provém de V BUSH (1945)” (GO-DIN, 2005: 26). Ele considera que as bases do modelo linear repousam no trabalho de pesquisadores em gestão e economistas que buscavam aprimorar categorias e a própria compreensão sobre a ciência para analisarem as empresas com ênfase no mercado. Para tanto, foram influenciados pelas propostas de R. N. Anthony (DE-ARBON et al., 1953).

A inovação é uma construção mais recente, muito embora desde os anos 1950 utilize-se o termo. Mas ino-vação como categoria emergente nas análises de ciência e tecnologia e nas estatísticas de ciência é um fenômeno da década de 1990, portanto um evento do fim de sécu-lo. Considero esse evento como efeito dos estudos sobre a nova economia, nos quais as ciências e as tecnologias

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emergem como sustentáculos e elementos dinamizadores da moderna produção de valor. Creio que essa afirmação encontra uma boa acolhida nos argumentos de Benoît Go-din, sobretudo no capítulo dedicado aos usos da estatística (GODIN, 2005: 54 a 62). O quadro conceitual da nova economia, no qual as biotecnologias e as tecnologias da informação desempenham uma posição preponderante, tem uma grande influencia no desenho das estatísticas da ciência. Porém, em contrapartida, as estatísticas são essenciais para a construção da idéia de uma nova eco-nomia intensiva no uso e na produção de conhecimentos técnico-científicos. Em La science sous observation encontra-mos vários exemplos de como essa co-produção ocorre. Os economistas utilizam extensamente dados estatísticos e lançam mão de argumentos baseados na retórica gráfica, em geral, retirada de enquêtes estatísticas. As análises também capturam largamente categorias produzidas e aperfeiçoadas por estatísticos e economistas que traba-lhavam em organismos dedicados à estatística.

A emergência da inovação marca um novo desloca-mento. A inovação não é um produto ou resultado, mas processo que envolve um conjunto complexo de ativida-des para gerar um produto ou processo. Essa definição figura em 1967 no Relatório Steacie do Departamento de Comércio Norte-americano (US DEPARTMENT OF COMMERCE, 1967). Algumas hipóteses ajudam a com-preender esse deslocamento e a rápida disseminação da categoria inovação junto aos estatísticos e pesquisadores da ciência. Segundo Godin para compreendermos esse deslocamento é preciso considerar a posição política da inovação e sua vinculação instantânea com a produção industrial. Ou seja, a inovação enfatiza o universo produ-tivo do setor industrial, as trocas comerciais e seus dispo-sitivos, o valor de mercado. Uma invenção torna-se uma inovação quando (e apenas se) ela encontra um mercado e um valor de troca. Mas qual é a diferença em relação a categoria de desenvolvimento? Porque é possível tomar os deslocamentos ulteriores entre ciência – pesquisa – desenvolvimento como arranjos para as relações entre ciência, tecnologia e sociedade com ênfase na posição do setor industrial. Entretanto há uma diferença sutil. Talvez pela primeira vez a compreensão da ciência e da tecnolo-gia foi descentrada da pesquisa realizada nas instituições acadêmicas. E o esforço dos estatísticos para apreender a pesquisa realizada nos laboratórios industriais é um elemento importante, senão fundamental, na produção da categoria de inovação. É importante observar que esse esforço está na raiz das estatísticas da ciência tal qual as conhecemos hoje. A categoria de inovação é um efeito emergente do processo de valorização social das atividades realizadas em espaços determinados, bem como de uma questão de ordem prático-conceitual: como medir essas atividades e simultaneamente preservar sua singularidade? As reflexões de Benoît Godin nos levam a indagar como os estatísticos participaram desse processo de valorização ao perseguirem a medida da inovação. Porque ao fazê-lo, estabeleceram suas singularidades, produziram conceitos, firmaram parâmetros. Ao final, participaram do processo de demarcar fronteiras entre o desenvolvimento e a inovação.

Benoît Godin chama atenção para a baixíssima rela-ção entre as estatísticas da ciência e outros levantamentos sociais. No Brasil, por exemplo, as estatísticas da ciência em geral são apresentadas em relação com o produto interno bruto, série histórica de investimentos com P&D e em pouquíssimos casos com dados sobre a escolaridade, o acesso aos serviços de saúde e ao saneamento básico. Considero esse dado instigante quando analisamos o discurso da inovação, amplamente baseado na sua relação com o aumento qualitativo e quantitativo da produção, com o crescimento econômico e com o nível de desenvol-vimento dos países. A medida da ciência e da tecnologia adquire valor no bojo da intensificação da equivalência entre a produção científica e seus impactos econômicos na sociedade. Para Benoît Godin a estatística experi-mentou desde o final do século XIX um deslocamento acelerado entre uma prática “destinada a participar dos avanços da ciência” para um comprometimento com “a planificação da ciência para fins contábeis e econômicos” (GODIN, 2005: 76). Em uma palavra, as estatísticas passaram do foco centrado na produção da ciência para um outro que valoriza a produtividade, entendida em sua dimensão econômica. Isso explica o descolamento entre as estatísticas da ciência e outras estatísticas sociais. Todavia, quando se relaciona a inovação com o nível de desenvolvimento de um país esse distanciamento (entre as enquetes da ciência e as demais) torna-se uma questão instigante para os Estudos Sociais da Ciência e Tecno-logia. Ao menos deveria torna-se, na medida em que podemos problematizar qual é o alvo da medida? Porque caso não se aproximem de outras medições sociais, as estatísticas da ciência não dimensionam a dinâmica das relações entre inovação, tamanho da economia e dados sociais referentes à escolaridade básica (e não apenas de pós-graduação), acesso a saúde, saneamento, habitação e índices de violência.

Por fim, a leitura do trabalho de Benoît Godin nos instiga a olhar para as nossas próprias estatísticas da ciência, tecnologia e inovação. O Brasil ensaia a disseminação de uma concepção de gestão da ciência e tecnologia focada na produtividade. Concepção diversa da que estruturou e ainda opera parte da estrutura or-ganizacional das principais instituições de pesquisa do país. A presença de laboratórios industriais no Brasil é restrita a alguns setores, sendo os mais ativos (petróleo e agrícola) vinculados ao setor público. Isso por si só demarca diferenças com os contextos descritos por Benoît Godin. Logo chamo atenção para a necessidade dos cientistas sociais indagarem qual o suporte sóciopo-lítico dessas categorias e para as concepções de ciência, tecnologia e sociedade que lhes são correlatas? Um dos maiores méritos do trabalho de Benoît Godin (nesse e em outros livros) é sistematizar dados que materializam o processo de produção sóciopolítica das atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação, bem como das categorias que as descrevem. As atividades e as catego-rias não estão descoladas de um universo de práticas econômicas, políticas e um determinado ordenamento legal. Trata-se de uma produção que ocorre em um único, denso e turbulento fluxo do qual emergem as

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sociedades contemporâneas baseadas na economia de mercado capitalista e nos valores sócio-educacionais e morais judaico-cristãos. Trata-se, em última instância, de enfrentar um problema de transposição – transposição de modelos de produção de conhecimento técnico-científico, transposição de modelos de medição e transposição de relações entre ciência, tecnologia e sociedade.

Por outro lado, a produção local de estatísticas sobre a ciência é relativamente recente e muito influenciada pelos manuais internacionais e pelas grandes institui-ções produtoras de dados, como a NFS e a OCDE. Isso a despeito do esforço de países latino-americanos de produzirem um manual próprio, capaz de apreender as especificidades e dificuldades metodológicas desses países (Manual de Bogotá). Novamente cabe aos cien-tistas sociais interessados no campo Ciência, Tecnologia e Sociedade indagarem qual a viabilidade desse esforço? Temos países com realidades sociais, políticas, econô-micas e jurídicas diversas. Por outro lado, os manuais internacionais participam do processo de globalização da produção e da medida da produção de C&T&I. Qual a posição política de tentativas como o Manual de Bogotá na produção de um modelo de produção e medida da produção de C&T&I hegemônico em países latino-americanos? Considero, assim, como tarefa dos historiadores e sociólogos aceitarmos o convite de Benoît Godin e analisarmos como essas diferenças influenciam a apropriação dos Manuais, a produção autóctone de manuais e o exercício da estatística entre nós.

Referencias bibliográficasBUSH, V. 1945. Science: the endless frontier. North Stra-tford. Ayer Co. 1995.

CATTELL, J. M. American Men of Science: a biografhical directory. New York: The Science Press. 1906.

DEARBON, D.C.; KNEZNEK, R.W; ANTONY, R.N. Spending for Industrial Research, 1951 – 1952. Division of Research. Graduate School of Business Administration. Harvard University. 1953.

GALTON, F. English men of science: the nature and nurture. London: Macmillan. 1874.

GODIN, B. La Science sous observation- cent ans de mesure sur les scientifiques 1906 – 2006. Quebec. Lês Press de l´Université Laval. 2005.

US DEPARTMENT OF COMMERCE. Technological Innovation: its environment and management. USGPO. Washington. 1967.

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Resenhas

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

La Gouvernance des Innovations Médicales Virginie Tournay

Resenha - DOI: 10.3395/reciis.v2i1.162pt

O livro Governança das Inovações biomédicas, cole-tânea de artigos organizados por Virginie Tournay, e editado pela PUF em coleção dirigida por Lucien Sfez, apresenta aspectos inovadores no campo da literatura sociológica sobre o avanço atual da biomedicina em relação a procedimentos experimentais e inovações clí-nicas (e seu processo de padronização). A organizadora, que é também introdutora e autora de vários capítulos, adota como abordagem disciplinar as áreas de sociolo-gia política, e de sociologia histórica na obra, em que pese a assumida contribuição de filósofos como Michel Foucault, Maurice Hauriou e (sobretudo) Gabriel Tarde. Partindo desta dupla abordagem teórica, a autora propõe uma leitura de “sociologia pragmática” dos processos de padronização, legitimação e duração sustentada no tempo, de inovações científicas contemporâneas, aplicada ao campo biomédico. A partir desta perspectiva, ao invés de considerar, de acordo com interpretações dominantes no campo sociológico relativas à pesquisa científica, à legitimação social de novos conceitos, ou o avanço de técnicas biomédicas como fruto da “vontade do Estado”, ou de interesses macro sociais (econômicos e políticos), em que a articulação da ciência com poderes econômi-cos e políticos fariam da descoberta de procedimentos e tecnologias inovadoras “matrizes cognitivas de políticas públicas” (Introdução, p. 33-35), a autora nos propõe uma visão teoricamente inovadora de conceber proces-

Madel Therezinha Luz Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, [email protected]

Marilena Cordeiro Dias Vilela CorrêaInstituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, [email protected]

Paris, Presses Universitaires de France – PUF, 2007

ISBN: 978-2130562627

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sos sociais de construção e de legitimação duradoura do discurso e da prática científica, relativo à biomedicina. Visão seguida pelos outros autores da obra, e aplicável ao conjunto de saberes concernentes à vida.

Sua proposta sociológica “pragmática” nos convida a ver o processo de produção, padronização e legitimação social de descobertas decorrentes da pesquisa clínica ou básica como resultado – e proposição – históricos das ações de uma multiplicidade de atores, cujo leque de interesses e de capacidade de movimentação política é muito mais amplo que a conhecida macro relação dual Estado (através de políticas) vs. sociedade, ou ciência vs. sociedade, ou profissionais vs. usuários. Este amplo leque de interesses e de lógicas divergentes, muitas vezes conflitivas, se conjugam num movimento processual constante, cujo resultado, nem sempre previsível, leva à aceitação de tal ou qual procedimento e sua padroniza-ção. Deste modo, a categoria de governança é lançada para indicar que os regimes de produção de conhecimentos propriamente ditos na área biomédica não poderiam mais ser entendidos (ou analisados) a partir apenas de um ponto de vista epistemológico clássico, como algo oriundo da atividade exclusiva de cientistas e experts. Entender a produção de conhecimento demanda a reconstrução dos arranjos que estão na base daqueles regimes de saber, que chegam a incluir, contemporaneamente, o usuário, o paciente, o cidadão, o consumidor, as associações, entre outros atores (ex: as terapia de reposição hormonal e o coletivo de mulheres).

No percurso das mudanças na governança da inova-ção do campo biomédico, Vinck e Weiss (apresentação) apontam três dinâmicas da padronização das práticas e da pesquisa. A primeira se refere à própria “regulação da competência médica”, representada pela concessão de diplomas e autorização para o exercício da medicina, a partir do início do século XIX. Ela se centra no indivíduo médico e visa excluir aqueles qualificados de charlatães, dinâmica que proliferou ao longo da primeira metade do século XX, em sistemas de qualificação, na formação continuada, na certificação periódica de especialistas. No Brasil, por exemplo, várias sociedades de especialidade conferem diplomas e mantém atividades de educação continuada, algumas vezes com a participação do Con-selho Federal de Medicina (órgão máximo de normatiza-ção do exercício profissional no país). Essa dinâmica de padronização do especialista (ou da prática profissional individual) parece não ter limites, culminando, a partir dos anos 1970, com o estabelecimento de instâncias (do tipo Conferências de consenso terapêutico), que visam a estabelecer uma abordagem padronizada para casos que permanecem muito controversos (aplicação de testes genéticos de suscetibilidade de doenças, tratamentos muito complexos como o da aids etc.)

A esta primeira dinâmica de padronização da prática médica soma-se uma segunda, centrada na regulação da prática científica. A pesquisa clínica vai exigir um amplo processo de regulação que engloba não apenas instrumentos de medidas, equipamentos, como também critérios de julgamento padronizados. Essa forte homo-geneização impulsionará o desenvolvimento de estudos

internacionais, os chamados estudos multicêntricos. Com o retorno da pesquisa clínica sobre a prática da medicina, alguns setores, como a cancerologia, tornam-se híbridos de pesquisa/ experimentação e clínica, pas-sando os tratamentos a serem regulados por protocolos científicos padronizados, ditados pelos resultados das pesquisas (ou ensaios), muitas vezes ainda em curso. Do ponto de vista científico, os chamados ensaios clínicos randomizados tornaram-se o padrão ouro da pesquisa de novas substâncias terapêuticas, métodos diagnósticos e de tratamento, impondo-se como critério de prova mais eficaz para a prática da medicina.

A colonização da terapêutica pela pesquisa científica e por produtos tecnológicos em fase de teste comporta riscos importantes e, por isso, a prática médica tornou-se, também, um lócus de dilemas e preocupações ditos bioéticos, que, por vezes, quando excessivamente agudos, demandam regulação mesmo no plano da lei.

A última e terceira dinâmica de padronização do campo biomédico relaciona-se a aquilo que os apresenta-dores do volume denominam lógica das grandes organizações (Winck e Weisz). Incluem-se aí: i) as associações pro-fissionais médicas (como a American Medical Association, American College of Surgeons); ii) os administradores da saúde; iii) os responsáveis políticos pelo serviço público. Em resposta à dificuldade de administrar conflitos e di-ferenças fundamentais entre uma prática médica liberal, uma administração economicista da saúde, a lógica do serviço público (demanda por acesso aos cuidados de saúde), os protocolos e a padronização, sobretudo da medi-cina hospitalar, constituem instrumentos fundamentais de gerenciamento (ou governo) dos sistemas de saúde.

Os artigos deste livro, no seu conjunto, discutem as novas configurações de atores (formas de participação, articulação entre atores diferentes) na produção da “go-vernança” das inovações tecnológicas e nos processos de incorporação pela prática médica (ou biomédica) de novos bens e serviços. Industriais, pesquisadores, clínicos, gerentes e, por vezes, associações de pacientes, movimen-tos sociais, se apresentam no processo de produção de novos conhecimentos e na regulação do uso em práticas de saúde de novas tecnologias geradas, participando das decisões políticas e técnicas. Para além de uma co-gestão das questões de saúde e dos diferenciais de poder neste gerenciamento, a categoria de governança indica a possibilidade de redefinição do problema propriamente dito, a partir do agir de uma rede heterogênea de atores, dotados de saberes (e poderes) diferenciados. Coloca em discussão o processo de objetivação do que seja saúde ou doença, face às inovações biomédicas. As questões postas pela categoria redefinem, por exemplo, os seguintes pro-blemas: quais os dispositivos de governança em jogo na definição da predisposição genética? Por que e até que ponto medicalizar o envelhecimento? Como redefinir cirurgicamente a identidade sexual?

A obra de Virginie Tournay e cols. redefine, assim, substantivamente não apenas as questões do campo da legitimação biomédica, mas o próprio modo de colocá-las.

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Resenhas

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

Epidemiology and Culture James A. Trostle

Resenha - DOI: 10.3395/reciis.v2i1.164pt

O livro de James A. Trostle trata das relações entre epidemiologia e antropologia, mais particularmente a área ou sub-área da antropologia que veio a ser conhecida como “antropologia médica”. Mesmo que possam pesar considerações acerca dessa denominação como uma área da antropologia social aplicada à saúde e seus determi-nantes de ordem cultural, a “antropologia médica” é uma área que vem progressivamente sendo reconhecida nos Estados Unidos e na Europa. Parte desse reconhecimento e da sua progressiva consolidação como área de pesquisa acadêmica, particularmente no âmbito das ciências hu-manas em saúde, deve-se às questões que estão sendo abordadas neste livro, que urge por uma colaboração mais intensiva entre epidemiologia e antropologia no próprio campo da formulação e intervenção de políticas de saúde pública destinadas a prevenir fatores de riscos de doenças epidemiologicamente identificados.

Talvez o principal argumento que sustenta essa concepção e é ilustrativo da problemática tratada no livro tenha sido a constatação do autor do prefácio dessa edição, S. Leonard Syme, professor de epidemiologia da Universidade da Califórnia (Berkeley): “(...) people have been informed about the things they need to do (to avoid disease risks), and they have failed to follow our advice” (p. xi). Sob essa perspectiva, o autor do livro procura introduzir noções básicas sobre o modo como as concepções sobre doença e saúde, os fatores etiológicos e a própria inter-venção terapêutica são amplamente determinados pela “cultura” de um determinado grupo ou comunidade, que também responde sobre a sua diversidade. O termo “cul-tura”, aqui, não é explicitamente definido pelo autor que, em uma nota de pé de página refere-se tanto às possíveis

Marina D. CardosoPrograma de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, [email protected]

Cambridge, Cambridge University Press, 2005

ISBN: 978-052179389-6

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definições do conceito como “modo de vida de um povo” até a formulação de Geertz sobre cultura como “conjunto de símbolos que são organizados em sistemas de signi-ficação” (p. 5). Mas, à aparente falta de imprecisão do conceito pelo autor, subjaz uma concepção amplamente difundida em todo o texto do livro de cultura como “padrões de comportamento”, o que não só é compatível com a influência da chamada “escola norte-americana” no campo do pensamento antropológico, mas até o seu ulterior emprego para simultaneamente identificar estes padrões com os “padrões de riscos” que os estudos de caráter epidemiológico procurariam revelar.

O livro está organizado de modo a introduzir o leitor, especialmente profissionais da saúde e epidemiologistas, na perspectiva que atribuie importância à “cultura” como fator a ser considerado nos estudos epidemiológicos. De fato, a própria epidemiologia como ciência seria cultural-mente “orientada”, porque embasada em concepções sobre risco, e, mais particularmente, sobre noções e correlações entre “pessoa”, “tempo” e “lugar” que seriam próprias a “cultura” científica ocidental. O capítulo 1 introduz o leitor a essas definições mais genéricas sobre epidemiologia e antropologia médica, assim como já dispõe o argumento central que perpassa todo o livro, que é sobre a necessidade de estudos que integrem uma abordagem interdisciplinar entre epidemiologia e antropologia, designada como “epidemiologia cultural”, e que focaria os efeitos do com-portamento e das crenças sobre questões relacionadas à saúde. O capítulo 2 procura reconstituir historicamente as origens desta perspectiva de uma abordagem integrada entre essas duas áreas, analisando o modo como fatores sociais e culturais foram incorporados ao campo das inves-tigações e intervenções de cunho epidemiológico.

Tanto estes capítulos como os seis capítulos subseqüentes, pelos quais o livro está organizado, são permeados por exemplos ilustrativos de pesquisas e intervenções na área de saúde pública que usaram esta abordagem interdisciplinar, assim como indicações de leituras suplementares. Os capítulos 3 e 4 procuram, mais explicitamente, ressaltar as dimensões culturais das variáveis pessoa (de acordo com gênero, idade, status marital, ocupacional, sócio-econômico, étnico e religio-so), lugar (limites territoriais e políticos) e tempo (escala de referência temporal dos dados coletados), usadas na pesquisa epidemiológica, bem como das próprias condi-ções da coleta de dados (entendida, ela própria, como processo de “troca social”) e das noções de medida, probabilidade e risco que fazem parte do escopo concei-tual da constituição da epidemiologia como disciplina. Sob esse aspecto, o argumento central do livro é que a própria epidemiologia é uma prática cultural, no sentido que as variáveis e medidas com as quais opera, ou ain-da, a forma como as informações advindas das análises epidemiológicas são disseminadas e orientam a formu-lação de políticas em saúde, são também culturalmente orientadas. O autor observa que uma “epidemiologia cultural” procuraria justamente “(...) reveals the ways in which measurement, causal thinking, and intervention design are all influenced by belief and habit in addition to deduction and rational decision-making” (p.173).

O capítulo 5 ilustra mais especificamente essa ar-gumentação central do livro, ou seja, a necessidade de uma pesquisa quantitativa e analiticamente integrada entre epidemiologia e antropologia, a partir da cólera, conquanto o capítulo 6 foca mais explicitamente sobre a contribuição dessa integração sob o ângulo da formulação de políticas públicas dirigidas a grupos populacionais específicos, quer sob o ângulo do “compartilhamento cultural” de acepções sobre saúde, cuidados e doenças, quer sob o ângulo de padrões diferenciados de perfis epidemiológicos. Este capítulo é o que mais notadamente reflete sobre as contribuições entre as duas áreas naquilo que concerne à formulação e intervenção de políticas de saúde sob o ângulo da sua “eficácia”, ou “efetividade”.

Ressaltando que as intervenções em saúde são ou deveriam ser formas de comunicação de dados e informa-ções de cunho epidemiológico a serem compartilhados, o autor aponta para a necessidade da participação da comunidade na formulação e gestão das políticas em saúde para a sua maior efetividade. Também conclama os antropólogos a se inserirem de maneira mais efetiva na formulação dessas políticas, por meio da concepção de uma “antropologia participativa”, ou seja, o uso dos dados das pesquisas antropológicas como recurso para a informação, mediação, e comunicação entre os gestores em saúde, epidemiologistas e a comunidade, assim como a participação efetiva do antropólogo na intervenção pre-tendida. O capítulo seguinte, o sétimo, reflete o conjunto dessas proposições articulado a partir de uma noção cen-tral à epidemiologia que é o conceito de “risco”, apontando quer para as variações das representações e percepções populares e profissionais sobre essa noção, quer para os modos da sua comunicação. Por enfim, o último capítulo apresenta a título de conclusão um sumário das principais questões desenvolvidas ao longo do livro e, retomando a sua argumentação principal, defende a interdisciplinari-dade como o caminho profícuo para o balizamento dos dados epidemiológicos, particularmente no que concerne ao seu papel como informação que orienta a formulação e a implementação das políticas em saúde.

Trata-se de um livro essencialmente didático, tanto para epidemiologistas quanto para antropólogos, ou demais interessados nessas abordagens disciplinares e potencialmente interdisciplinares em saúde. Os conceitos usados procuram ser expostos de maneira acessível a qualquer leitor, assim como a exposição do tema recorre sempre a exemplos de pesquisas já realizadas, procu-rando mostrar quão profícua elas foram para sustentar, inclusive, o argumento central do autor do livro sobre a necessidade do balizamento dos dados epidemiológicos pela “cultura”, sobrepondo à “epidemiologia social” uma “epidemiologia cultural”, ou seja, balizada pelas representações ou categorias de cunho “popular” sobre doença, cura, e cuidados em saúde. O autor também procura articular uma ampla revisão bibliográfica sobre os temas a que se propõe a analisar, recorrendo a pesquisas realizadas em vários e distintos países e apresentando dados epidemiológicos referentes a diversos agravos (cólera, malária, epilepsia etc.), índices de mortalidade ou de prevalência de doenças de acordo com o tipo de

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serviço de atenção à saúde, dentre outros, para dar su-porte ao argumento central do livro sobre a necessidade desses dados serem analisados à luz de determinantes de ordem cultural.

O caráter didático do livro é, nesse sentido, também amplificado pela demonstração empiricamente datada da possibilidade desse tipo de pesquisa “culturalmente orientada” vir a ocorrer no âmbito da epidemiologia pelo uso recorrente de exemplos de pesquisas conduzidas sob esta ótica, ou de dados estatísticos que apontam para a variabilidade dos próprios dados epidemiológicos de acordo com o contexto da sua coleta e mesmo do modo como foi formulado o conjunto de questões e as variáveis que compõem o modelo de análise e inferência epidemio-lógica. Dado esse caráter “demonstrativo” e didático do texto, difere de outros livros que ou apresentam resulta-dos originais de pesquisas conduzidas sob esse enfoque, ou procuram formular um modelo de análise que integre conceitualmente e metodologicamente a análise antro-pológica ao campo das pesquisas em saúde (tal como Kleinman, por exemplo1). Trata-se, assim, muito mais de um livro que procura argumentar, por meio da menção a dados de pesquisas, sobre a necessidade e a importância da interdisciplinaridade com a antropologia médica para a área da epidemiologia, do que propriamente formular um modelo metodológico de referência para esse tipo de pesquisa interdisciplinar.

Deve, no entanto, ser observado que o livro baseia-se fundamentalmente em conceitos, postulados e refe-rências bibliográficas de uma corrente da antropologia e antropologia médica norte-americana, ou a autores que as têm como referência. Sob esse aspecto, à clare-za da exposição dos motivos pelos quais as pesquisas epidemiológicas deveriam levar em conta os contextos culturais do adoecimento e dos cuidados em saúde, por exemplo, ao sobrepor “padrões culturais” a “padrões epidemiológicos” revela uma tendência do autor a ver no comportamento e nas representações sobre doença e cuidados o fator primordial para a incidência de agravos e índices epidemiológicos que podem resultar, eventu-almente, em políticas preventivas em saúde orientadas por ações pedagógicas e re-educadoras para “reforçar a mudança do comportamento” de determinados grupos populacionais (p. 133), o que tende a entrar em conflito com o código simbólico mais geral de referência que sustentam estas representações.

Tem sido a tendência mais geral desta corrente, para dar conta dos impasses decorrentes do confronto entre concepções distintas do adoecimento e dos cuidados em saúde (poder-se-ia dizer, uma mais “técnico-operacional”, representados pelos gestores e/ou profissionais da saúde, e outra mais “popular”), glosar as concepções de cunho “popular” mediante um procedimento analítico que as remetem às diferenciações no modo de formular o modelo etiológico e terapêutico (quando não a hábitos e crenças fragmentados e susceptíveis de serem altera-dos por meio da difusão de conhecimentos médicos, e mesmo intervenção), quando, na verdade, trata-se de modelos radicalmente distintos, articulados por lógicas também distintas. Mesmo que esse fato não impeça que

possam vir a ocorrer interpenetrações entre modelos, particularmente, no caso de alguns procedimentos tera-pêuticos tal como o uso de medicamentos, é a diferença que deve ser radicalizada como produtora efetivamente de um outro modelo, de um outro discurso e, portanto, de outra práxis.

Mais do que isto, entretanto, a urgência para que membros da comunidade participem da elaboração das políticas públicas é que eles possam igualmente identi-ficar quais são, para eles, os problemas mais prementes de atenção à saúde, muitas vezes diretamente relacio-nados às condições mais gerais de vida, e das quais os problemas referentes ao adoecimento e aos cuidados de atenção à saúde encontram-se diretamente relacionados, mas por lógicas distintas. Tal como o prefaciador do livro comenta: “We in public health have important messages to give to people, but people have lives to lead” (p. xii). O próprio autor defende, a partir de argumentos elaborados por antropólogos, que : “ (…) planned change in communities must begin with extensive community consultations, emerge from local definitions of need, and be continuously subject to local review and adjustment over time” (p.140). O que deve ser observado é que não se trata simplesmente de um processo de “consulta” (consultative process), mas como pode-se analisar as intervenções em saúde hoje no Brasil, tal como elas são implementadas pelos agenciadores de políticas de saúde e os profissionais da área, trata-se, substancialmente, de promover a integração dos grupos populacionais ou “comunidades” a quem elas são diri-gidas como efetivos gestores, promotores e planejadores dessas políticas, justamente por operarem em códigos distintos do reconhecimento das situações de risco e do modo de preveni-las.

O livro, em suma, é oportuno para a reflexão não só dos epidemiologistas e antropólogos, mas também para os demais agenciadores e profissionais da área da saúde, pela constatação de que não se tem adequado de forma efetiva a formulação e a operacionalização das políticas públicas para atender às novas demandas colocadas pela integralização da atenção à saúde, cujos limites da atuação e da intervenção são amplamente observados pela literatura da própria área, demandando novas refor-mulações metodológicas que incluam, em seu horizonte, perspectivas inter ou multidisciplinares2.

Notas1. Referência ao trabalho do pesquisador Arthur Klein-man, que se tornou paradigmático dos estudos na área de antropologia médica norte-americana: Patients and Healers in the Context of Culture- an exploration of the borderland between anthropology, medicine and psychiatry, Berke-ley: University of California Press, 1980.

2. Para maiores discussões sobre o tema, recomenda-se também a leitura de duas coletâneas publicadas no Brasil: Rouquayrol, M. Z. e Almeida Filho, N. (Orgs.) Epidemiolo-gia e Saúde, Rio de Janeiro: MEDSI, 2003; e Minayo, M. C. S. e Coimbra Jr., C. E. A (Orgs.). Críticas e Atuantes: ciências sociais e humanas em saúde na América Latina, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.

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Resenhas

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

Convergence Culture: where old and new media collide

Henry JenkinsResenha - DOI: 10.3395/reciis.v2i1.165pt

Na seção de “Agradecimentos” do livro Convergence Culture, Henry Jenkins assinala que este culmina após oito anos de uma “jornada épica”, esforço compartilhado com muitos para construir o Programa de Estudos de Mídia Comparativa do MIT, do qual é fundador e diretor. Caracterizando-o como um centro “para conversações sobre mudanças na mídia (passado, presente e futuro)” Jenkins também sublinha seu compromisso com a am-pliação do “diálogo público sobre cultura popular e vida contemporânea”. Nessa direção, a obra examina a relação entre sociedade (audiências e produtores midiáticos) e mídias (canais e conteúdos), considerando as recentes (e vertiginosas) mudanças tecnológicas ocorridas neste ambiente de interseção entre velhas e novas mídias, as implicações sociais destas transformações e suas ten-dências futuras.

O livro é escrito num estilo leve, aliado a um reco-nhecido rigor acadêmico. Tais qualidades atraem tanto estudiosos quanto outros interessados na temática da cultura da convergência: participantes ativos dos novos ambientes de comunicação e de informação, pioneiros e usuários criativos das mídias emergentes, integrando, conforme Jenkins, “comunidades de fãs”, “educadores envolvidos com comunidades de aprendizado informais”, criadores ou consumidores da cultura popular, ativistas, publicitários, executivos e profissionais da indústria de mídia. Seu objetivo é ajudar pessoas comuns a entender

Sandra Lúcia Rebel GomesDepartamento de Ciência da Informação, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil [email protected]

Ana Rebel BarrosUniversidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, [email protected]

New York, London: New York University Press, 2006

ISBN: 978-081474281-5

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como a convergência tem impacto na mídia que conso-mem e, ao mesmo tempo, ajudar líderes desta indústria e legisladores a entender a perspectiva do consumidor sobre tais transformações. Um glossário ao final relaciona termos centrais, vários deles com múltiplos significados conforme os diferentes contextos tratados ao longo do livro.

Premiado em 2007 pela Society for Cinema and Media Studies Katherine Singer Kovacs Book Award, Con-vergence Culture é um dos livros mais recentes escritos por Jenkins, juntamente com The Wow Climax: Tracing the Emotional Impact of Popular Culture (2007), Fans, Blo-ggers, and Gamers: Exploring Participatory Culture (2006), todos focalizando variados aspectos da mídia e cultura popular, nenhum deles publicado no Brasil. Jenkins, um conhecido analista de mídia, muito respeitado nos meios acadêmicos, é professor de literatura, mantém um blog de ensaios em www.henryjenkins.org., assina regularmente uma coluna na revista Technology Review, do MIT (http://www.technologyreview.com/index.aspx) e é um dos principais pesquisadores que integram The Education Arcade (http://www.educationarcade.org/), projeto voltado para a promoção do uso educacional dos computadores e dos vídeo-games.

Jenkins se apresenta como um fã bastante ativo das mídias emergentes, sublinha a sua condição de intelectual da área de mídias, sua participação intensa nas discussões “com gente do lado de dentro do mercado e legisladores”, bem como menciona a sua atuação como consultor de algumas empresas citadas no livro. Portanto, adverte que não é um observador neutro disto tudo, como deixa claro no capítulo introdutório. Mais um ponto deve ser destacado: ele declara ser otimista em relação ao poten-cial democrático de algumas das tendências culturais contemporâneas no contexto da cultura convergente, mas pontua que nem todos os pensadores compartilham tal otimismo, citando, por exemplo, Noam Chomsky dentre aqueles que enxergam sobretudo obstáculos decorrentes do poder da “big media” para se alcançar uma sociedade mais democrática.

“Bem-vindo à cultura da convergência, onde as novas mídias enfrentam as velhas mídias, onde as mídias corpo-rativas e alternativas se cruzam, onde o poder do produtor midiático e o poder do consumidor midiático interagem de formas imprevisíveis”. Assim Jenkins começa a explicar ao leitor a maneira pela qual caracteriza o fenômeno da con-vergência. Também recupera, com equidade, o surgimento do conceito como importante elemento de mudança nas indústrias midiáticas. Segundo o autor, quem o focalizou pela primeira vez foi o cientista político do MIT, Ithiel de Sola Pool, no livro Technologies of Freedom (1983), a quem considera “o profeta da convergência das mídias”.

O conceito de convergência é definido por Jenkins como o fluxo de conteúdo que atravessa mídias distin-tas, a cooperação entre diversas indústrias de mídia e o comportamento migratório das audiências. Tal fluxo é fortemente condicionado pela participação ativa dos consumidores, vista pelo autor como crucial para a cir-culação destes conteúdos. Como sugere o título do livro, para Jenkins o sentido da convergência é, antes de tudo,

cultural. Ela não se explica pelo viés da tecnologia, mas pelo reconhecimento de que são cada vez mais difusas as fronteiras que separam criadores/produtores de con-teúdos e usuários dos mesmos. Jenkins argumenta: “se colocamos o nosso foco na tecnologia, a batalha será perdida antes mesmo de começarmos a lutar”. Parece po-lêmica a opção que faz de se colocar num ponto de vista tão afastado das tecnologias, já que não se pode ignorar que estas têm um papel importante na disseminação dos conteúdos e implicações fortíssimas nos usos das dife-rentes mídias que suportam, exigindo ainda diferentes graus de habilidades dos usuários para acesso, fruição, comunicação e interação entre pares. A explicação que oferece liga-se ao relevo que dá à participação em detri-mento do acesso. Se o exame deste requereria um foco maior nas tecnologias, aquela direciona a ênfase para o exame de protocolos e práticas culturais.

Para definir a cultura da convergência, Jenkins elege três conceitos-chave – convergência das mídias, cultura participativa e inteligência coletiva. A relação entre os três delineia o instigante e atualíssimo tema abordado no livro, permitindo-nos dimensionar o alcance e o significado deste novo patamar de oferta, produção diversificada e uso das novas mídias. Para compreendermos melhor os seus pontos de vista, deixemos, novamente, que fale o autor:

Argumentarei contra a idéia de que a convergência deva ser entendida primeiramente como um processo tecnológico que leva funções múltiplas para um mesmo equipamento. A convergência representa uma mudança cultural na qual consumidores são encorajados a procu-rar novas informações e fazer conexões entre conteúdos midiáticos dispersos (p.3).

Sobre o conceito de cultura participativa, Jenkins assinala que ele contrasta com as antigas idéias de uma audiência passiva:

Ao invés de falar de produtores e consumidores midiá-ticos em papéis separados, podemos vê-los agora como participantes que interagem uns com os outros de acordo com novas regras, que nenhum de nós compreende por completo. Nem todos os participantes nascem iguais. As grandes empresas – e mesmo indivíduos no âmbito da mídia corporativa – ainda exercem mais poder do que cada consumidor e do que a soma destes. E alguns consumidores possuem mais habilidades do que outros para participar desta cultura emergente (p.3).

O conceito de inteligência coletiva, conforme con-cebido por Pierre Lévy, é tomado por Jenkins para mais uma vez sublinhar que a convergência acontece antes no cérebro de cada consumidor e através de sua interação social do que através de máquinas e instrumentos, por mais sofisticados que eles sejam:

Como há mais informação sobre todo tipo de assunto do que alguém poderia guardar na cabeça, há um in-centivo a mais para conversarmos sobre as mídias que consumimos. Esta conversa cria o rumor que é cada vez mais valorizado pela indústria midiática. O consumo tornou-se um processo coletivo – e é a isso que este livro se refere como inteligência coletiva (...) Nenhum de nós sabe tudo; cada um de nós sabe algo; e podemos juntar as peças se somarmos nossos recursos e combinarmos nossas habilidades. A inteligência coletiva pode ser en-

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tendida como uma fonte alternativa de poder midiático. Estamos aprendendo a usar este poder nas nossas inte-rações diárias na cultura da convergência. No presente, usamos este poder coletivo principalmente para nosso lazer, mas em breve aplicaremos estas habilidades para propósitos mais “sérios” (p.4).

Os discursos de analistas contemporâneos versando sobre convergência começam e terminam com o que Jenkins denomina “a falácia da caixa preta”. Ao contrário do que aqueles acreditam - que todos os conteúdos de mídia irão confluir para uma única caixa preta – Jenkins assegura que tal concepção é redutora. A convergência das mídias, para ele, é mais do que uma mudança tecnológica. “A convergência altera o relacionamento entre as tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e audiências (...) e envolve mudanças tanto no modo como as mídias são produzidas quanto na maneira como são consumidas”.

Em seis capítulos, o autor apresenta uma colagem de casos que são fenômenos de mídia recentes e muito expressivos para compreendermos como a convergência remodela a relação entre produtores e consumidores. Cada um deles oferece uma contribuição particular para melhor entendimento de tal processo. Dos que se ori-ginam da televisão, foram selecionados Survivor (2002) e American Idol (2000); dos que provêm do cinema, The Matrix (1999) e Star Wars (1977); Harry Potter (1998) é um caso proveniente da literatura. Tais exemplos são buscados para ilustrar o que acontece quando pessoas resolvem interagir com outras, participar ativamente ou controlar as mídias que freqüentam.

No primeiro capítulo, Jenkins se concentra na aná-lise do reality show americano Survivor, um programa em que participantes disputam um prêmio de um milhão de dólares em provas de resistência em algum lugar do mundo. Mas o que chama a atenção do autor é a comu-nidade organizada de fãs (spoilers) que se cria na Internet, com o intuito de investigar em grupo, beneficiando-se das contribuições de cada um, advindas de sua expertise, para descobrir segredos antes mesmo de as temporadas do programa irem ao ar. Mapear como estas comunida-des agem, adverte, pode nos ajudar a melhor entender a natureza social do consumo contemporâneo de mídia e a maneira pela qual o conhecimento se torna poder na era da convergência midiática. Para Jenkins, este é um exemplo vividamente particular de inteligência coletiva em ação.

No segundo capítulo, American Idol é analisado da perspectiva da indústria midiática numa tentativa de entender como a reality television está sendo moldada pelo que Jenkins chama “economia afetiva” (affective economics), envolvendo consumidores que são convidados a se engajar emocionalmente e produtores que buscam misturar o conteúdo do entretenimento com a mensagem publicitária.

Os dois casos até aqui abordados, tratam da ten-são na relação entre o público e os produtores destas franquias. Jenkins indaga, por um lado, sobre quando a participação pode se tornar interferência e, por outro, so-bre quando os produtores podem exercer poder excessivo sobre esta experiência. No caso de Survivor, os produtores

temem que a revelação dos resultados para o público em geral, em função da eficiência da comunidade spoiler, esvazie o interesse que o programa possa despertar. No caso de American Idol, são os fãs que passam a temer que o controle dos produtores os alije do processo.

O terceiro capítulo examina a franquia The Matrix como exemplo expressivo do que Jenkins chama “narra-tiva transmidiática” (transmedia storytelling). Os irmãos Wachowski, que urdiram a história, distribuíram-na não só pelos longas-metragens da trilogia, mas também por curtas de animação, games, sites – de forma que embora só seja possível entender a trama a partir dos filmes, a busca de informações nas outras obras e o movimento dos consumidores via grupos de discussão online pode enriquecer a compreensão da narrativa. Este talvez seja o capítulo mais emblemático das questões que o autor quis expor ao longo do livro. Os leitores certamente descobrirão o porquê.

Os capítulos quarto e quinto nos aprofundam no reino da cultura participativa. O capítulo quatro mostra como os fãs de Star Wars estão remodelando ativamente a saga para satisfazer suas fantasias e desejos. À medida em que esta se expande por várias mídias, é interessante notar que surgem expectativas diferentes por parte dos produtores: enquanto nos games os consumidores são en-corajados a gerar a maior parte do conteúdo, nos filmes a participação criadora dos fãs é menor e raramente levada em conta pelos produtores. O capítulo cinco lida com os jovens fãs de Harry Potter que escrevem suas próprias histórias sobre Hogwarts e seus alunos. As políticas de participação, neste caso, envolvem duas questões princi-pais: conflitos de interesse entre os fãs e a Warner Bros. e o conflito entre cristãos conservadores e professores que vêem nos livros um meio de estimular jovens leitores. Nos dois casos, existe conflito com os produtores da mídia comercial que não abrem mão de exercer maior controle sobre a sua propriedade intelectual.

No sexto capítulo Jenkins parece querer deslocar seu foco, ao aplicar suas idéias sobre convergência na abordagem das perspectivas oferecidas pela campanha presidencial americana de 2004, explorando aquilo que, sob sua ótica, deverá ser levado em conta para que a democracia se torne mais participativa. Reitera que os cidadãos foram mais bem servidos, na ocasião, pela cultura popular do que pelas notícias da grande mídia ou pelos discursos políticos oficiais, mediante a veiculação de idéias por iniciativa própria dos cidadãos, estimula-dos pela campanha, usando diversas mídias. Para ele, as eleições de 2004 representam um importante momento de transição na relação entre mídia e política e, mais uma vez, todos os lados supõem uma participação maior dos cidadãos e consumidores, ainda que não se tenha um acordo sobre o peso desta participação.

Na Conclusão do livro, Jenkins retoma os três termos-chave que reuniu - convergência, inteligência coletiva e participação - para explorar as implicações da cultura convergente não apenas para o lazer, mas para a educação, reforma da mídia e cidadania democrática. Ele sublinha aqui mais uma vez as idéias de que a cul-tura convergente representa uma mudança nas formas

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em que pensamos as nossas relações com a mídia, que estamos fazendo esta mudança primeiramente através de nossas relações com a cultura popular, mas que as habilidades que adquirimos podem ter implicações na maneira como aprendemos, trabalhamos, participamos dos processos políticos e nos conectamos com as pessoas ao redor do mundo.

O autor reconhece que o público que está mais pro-fundamente integrado a estes novos comportamentos é ainda bastante restrito: trata-se de homens brancos com ensino superior, em sua maioria. Mas na medida em que o acesso dos cidadãos for ampliado, ele vê as audiências fortalecidas por estas novas tecnologias ocupando mais e mais um lugar na interseção entre as antigas mídias e

as emergentes, demandando o direito de maior partici-pação. E assim adverte que os produtores que falharem em negociar com esta nova cultura participativa verão declinar o seu poder: “os compromissos e batalhas resultantes irão definir a cultura pública do futuro”.

Ao analisar as implicações culturais, econômicas e políticas da nova relação entre mídia e sociedade, ou seja, as transformações culturais que delas decorrem, Jenkins nos oferece ao mesmo tempo um mapa dos novos territórios onde as velhas e novas mídias se cruzam e um tesouro: os elementos essenciais para percebermos o que pode advir e o nosso possível papel num presente/futuro convergente.

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Resenhas

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Strategic Management of Technological Innovation

Melissa A. SchilingResenha - DOI: 10.3395/reciis.v2i1.163pt

O objetivo do livro Strategic Management of Te-chnological Innovation é tratar o processo de inovação tecnológica do ponto de vista da gestão estratégica. Analisa este processo a partir da dinâmica competitiva da inovação na indústria, da formulação das estratégias de inovação empresariais e finaliza com os desafios de sua implementação.

Os seus grandes diferenciais são a excelente didática na apresentação dos temas; a preocupação de relacioná-los a exemplos reais de situações de empresas altamente conhecidas; as seções de research brief, onde são apre-sentados pequenos resumos de pesquisas feitas sobre o tema e ainda a indicação de literaturas clássicas sobre cada tópico. Os exemplos, que abrem os capítulos, des-pertam a curiosidade do leitor e são ótimos instrumentos didáticos para um maior aprendizado dos principais con-ceitos e processos abstratos envolvidos com o fenômeno inovação. Os capítulos contam ainda com questões de discussão sobre os estudos de caso e sobre os conceitos teóricos; um sumário das principais questões abordadas; figuras bem elaboradas e elucidativas; e as definições dos principais conceitos destacadas na margem do texto. Uma importante estratégia da autora é apresentar no início de cada uma das três partes, que compõem o livro, e na

Lia HasencleverGrupo de Economia da Inovação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, [email protected]

Rodrigo LopesGrupo de Economia da Inovação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, [email protected]

Julia ParanhosGrupo de Economia da Inovação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, [email protected]

New York, McGraw-Hill, Irwin, 2006

ISBN: 978-0073210582

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introdução, a figura que representa a estrutura do livro, o que facilita o acompanhamento do leitor da linha de raciocínio da autora.

A autora, Melissa Schilling, é formada em adminis-tração pela Universidade do Colorado, com doutorado em gestão estratégica pela Universidade de Washington. Foi professora da Universidade de Boston e da Universidade de Washington, e atualmente é professora associada à Stern School of Business da Universidade de Nova York, Estados Unidos, onde leciona as cadeiras de gestão estratégica e gestão da tecnologia e da inovação. Em 2000, a autora recebeu prêmio por excelência em pesquisa na Univer-sidade de Boston, e foi indicada ao prêmio de melhor artigo da Academy of Management Conference. Suas principais linhas de pesquisa são inovação tecnológica e criação de conhecimento, nas quais recebeu uma bolsa de pesquisa da National Science Foundation para estudos entre 2003 e 2008. Possui diversos artigos publicados em periódicos e seminários internacionais, além de autoria e co-autoria em capítulos de livros. As publicações sobre inovação tecno-lógica focam nos processos de desenvolvimento de novos produtos, especialmente na indústria de jogos virtuais. Na área de criação do conhecimento estuda curvas de aprendi-zado, insights cognitivos e criatividade. A autora tem ainda publicações sobre arquitetura de produto modular e sobre o uso de formas organizacionais modulares. O livro, ora resenhado, é sua principal publicação e alcançou excelente aceitação. Está na sua segunda edição e já foi traduzido para o italiano e o espanhol.

O livro é composto de treze capítulos, além da in-trodução, divididos em três partes. As principais idéias avançadas na introdução são a importância da inovação tecnológica, o impacto da inovação tecnológica na sociedade e a relevância da estratégia de inovação na indústria. No primeiro ponto, é mostrada a importância da inovação tecnológica no contexto de mercados glo-balizados, onde a competição internacional pressiona as firmas a inovarem continuamente como forma de manterem sua posição no mercado e defenderem suas margens de lucro. No segundo ponto, apresentam-se os impactos positivos e negativos da inovação tecnológica na sociedade. Como ponto positivo, é apresentado o grande aumento do Produto Interno Bruto per capita nos países desenvolvidos no período 1971-2003, que em parte pode ser atribuído aos impactos da inovação tecnológica. Os pontos negativos, ou externalidades negativas como as denominam a literatura econômica, os exemplos são: poluição, erosão, eliminação de habitats naturais, e até mesmos dilemas morais (caso da genética, por exemplo). Ainda neste tópico, a autora destaca a participação do governo e das empresas no financiamento da pesquisa e desenvolvimento (P&D). No terceiro ponto, é abor-dada a relevância da estratégia de inovação tecnológica frente às características inerentes ao processo inovativo, tais como o custo elevado, o longo prazo de maturação do investimento e a incerteza. O processo de inovação assemelha-se, na visão da autora, a um funil, onde muitas idéias “entram” e poucos produtos com destino ao mercado, “saem” no final. O exemplo clássico desta imagem é o da indústria farmacêutica.

Na primeira parte do livro – composta dos capítulos 2 a 5, é abordado como se desenvolve o processo de inovação tecnológica em cada indústria e como algumas inovações se tornam dominantes. No Capítulo 2, são descritas as fontes de inovação, os tipos e padrões de inovação, as normas de conduta e o design dominante, e, finalmente o tempo certo de entrada da empresa com a inovação no mercado. O centro do sistema inovativo é a empresa e a inovação deve ser entendida como implementação prática das idéias, discutem-se as diferentes formas de combinar idéias criativas com recursos e conhecimento e transformar criatividade em inovação. Entre as fontes de inovação cita-das destacam-se: P&D na firma, relações com usuários e fornecedores, competidores ou produtos complementares, fundos de pesquisas governamentais e de universidades, de ONGs e de redes de inovação (como clusters tecnoló-gicos e de spillovers tecnológicos). A criatividade pode ser organizacional (de dentro da organização empresarial) ou individual, dependendo da sua origem.

O Capítulo 3 traz uma revisão dos tipos e padrões de inovação, com o exemplo da Honda e do desenvolvimento dos carros híbridos. Como tipos de inovação, são apresen-tadas: inovação de processo versus inovação de produto, inovação radical versus inovação incremental, inovação de arquitetura versus inovação de componente, inovações que reforçam as competências das inovações anteriores versus inovações que destrem as competências anteriores. Continuando o Capítulo 3, a autora apresenta a “curva S da tecnologia”, como uma ferramenta prospectiva, para a melhora e a difusão tecnológicas, bem como suas limita-ções. Finalizando é tratado o ciclo tecnológico.

No Capítulo 4, é apresentado como um padrão de produto ou processo se torna dominante numa indús-tria e como o detentor desse padrão obtém o domínio do mercado e elimina seus concorrentes. Discutem-se como os padrões dominantes surgem e as vantagens de efeito de aprendizado e das externalidades de rede que eles trazem, fazendo com que conquistem o mercado, tornando-se padrão único (ou principal). A partir da vitória do padrão ele passa a ter a vantagem de path dependency, ou seja, depois de algum tempo de mercado as pessoas se acostumam a adotar determinado padrão tornando o custo de mudança muito elevado. Na segunda parte do capítulo, a autora trata das múltiplas dimensões do valor: o valor autônomo da tecnologia e o valor das externalidades de redes.

Esta parte encerra-se com o Capítulo 5, onde se discutem os impactos do tempo de entrada da empresa num determinado mercado e quais seriam as vantagens e as desvantagens de ser o primeiro a entrar neste mer-cado, os fatores de influência nessa tomada de decisão e as estratégias para se fazer a melhor escolha do tempo de entrada.

Na segunda parte do livro, composta dos capítu-los 6 a 9, a autora trata da formulação da estratégia de inovação tecnológica por parte das empresas, que inclui a definição de uma orientação estratégica, esco-lha do projeto de inovação, estratégias de colaboração e proteção da inovação. No Capítulo 6, são revisadas

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as ferramentas básicas de análises estratégicas usadas pelos administradores para avaliar a posição da firma e definir as estratégias para o futuro. São abordadas questões como as fontes de sustentabilidade das van-tagens competitivas, a identificação das competências e das capacidades da firma e a formação das intenções estratégicas. A idéia é que somente depois de a empresa ter avaliado cuidadosamente onde está atualmente, é que ela poderá formular uma estratégia coerente de inovação tecnológica para o futuro.

No Capítulo 7, é examinada a variedade de métodos de escolha de projetos de inovação, tanto quantitativos, quanto qualitativos. No primeiro caso, são citados o fluxo de caixa descontinuado (valor presente e taxa interna de retorno) e as opções reais (avaliação de opções para investimentos em ativos não financeiros). No segundo caso, estão o framework de planejamento agregado do projeto e o método Q-Sort. Finalizando, é apresentada uma combinação entre os métodos quantitativos e qua-litativos para uma análise conjunta dos projetos a partir dos dois métodos.

No Capítulo 8, são apresentados os tipos de colabo-ração (parcerias) estratégica adotadas mais usualmente no desenvolvimento de inovações tecnológicas, as vanta-gens que influenciam a seleção de parcerias e as vantagens de se atuar sozinho, os métodos de escolha da parceria e dos parceiros e o monitoramento das parcerias. Entre as principais formas de parceria estão a aliança estraté-gica, as joint-ventures, o licenciamento, o outsourcing e as organizações de pesquisas coletivas.

No Capítulo 9, são abordadas a questão da apro-priabilidade da inovação (formas de conhecimento tácito ou codificado e grau de complexidade do conhe-cimento) e as opções de mecanismos que as firmas têm para a proteção dos retornos do seu esforço inovativo. Analisam-se os mecanismos de patentes, copyrights, tra-demarks e segredos comerciais. São também discutidos a efetividade e o uso de cada um desses mecanismos em diferentes indústrias, e a complexa série de trade-offs que uma empresa deve considerar, em sua estratégia de defesa, como: sistemas inteiramente proprietários versus sistemas inteiramente abertos e as vantagens da proteção e da difusão da tecnologia como formas de apropriação dos esforços inovativos.

Na terceira e última parte do livro, composta dos capítulos 10 a 13, a autora trata da implementação da es-tratégia de inovação tecnológica por parte das empresas. No Capítulo 10, a questão a ser problematizada é “qual seria a forma de organização da empresa mais propícia para inovar, gerir novos produtos e desenvolvimento de processos, gerir e desenvolver equipes?”. O primeiro

aspecto da organização abordado é o seu tamanho, as vantagens e desvantagens de empresas grandes e peque-nas. Analisam-se como as empresas podem balancear os benefícios e os trade-offs da flexibilidade, economias de escala, padronização, centralização, e como o conheci-mento sobre o mercado local influencia os resultados da taxa de inovação da empresa, empurrando para uma tendência de descentralização, pelo menos em parte, das atividades de P&D.

No Capítulo 11, são apresentadas as melhores prá-ticas na gestão do processo de desenvolvimento de novos produtos. O desenvolvimento de novos produtos é abor-dado a partir de questões como adequação às necessida-des dos clientes, controle dos custos de desenvolvimento e minimização do ciclo de desenvolvimento. A seguir, analisa-se o processo de desenvolvimento seqüencial versus o processo de desenvolvimento simultâneo das partes, o envolvimento de consumidores e fornecedores no processo de desenvolvimento de produtos, as ferra-mentas para melhoria do processo – tais como o Stage-Gate Process, o Quality Function Deployment e o CAD/CAM – e as ferramentas para avaliar o desempenho dos novos produtos desenvolvidos.

No Capítulo 12, é abordada a gestão de equipes de desenvolvimento de novos produtos. Para tal, discute-se a construção da equipe, sua estrutura e seu gerenciamento. No primeiro item, são apresentadas questões relativas ao tamanho e a composição da equipe, no segundo item, os tipos de equipe existentes (incluindo um quadro sumário) e, no terceiro item, os perfis de gerenciamento.

Finalmente, no Capítulo 13, é examinada a imple-mentação da estratégia de desenvolvimento da inovação e como pontos tradicionais do dia a dia da indústria podem influenciar a implementação dessa estratégia. Entre eles examina-se: tempo de entrada da tecnologia, licenciamento e compatibilidades, tarifas e impostos, distribuição e logística e marketing.

Como os leitores podem perceber, além da enorme qualidade didática do livro, ele é um guia completo de conceitos e questões que giram em torno da gestão da inovação tecnológica, podendo ser, sem sombra de dúvida, adotado como um livro texto de cursos de empreendedorismo, gestão da inovação e economia de empresas. O maior desafio para os professores e alunos destas disciplinas em instituições de ensino brasileiras será adotar práticas de inovação em realidades empre-sariais e de patamares de inovação tecnológicas tão distantes da realidade brasileira, mas ainda assim a emulação poderá servir para que avancemos em uma área em que ainda estamos muito longe de estar perto de sermos competitivos.

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Resenhas

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

Innovation without patents: harnessing the creative spirit in a diverse world U. Suthersanen, G. Dutfield & K. B. Chow

Resenha - DOI: 10.3395/reciis.v2i1.166pt

O livro Innovation without Patents é fruto de um estu-do comparativo internacional sobre as diferentes formas de proteção disponibilizadas para inovações menores, que são as inovações que ficam abaixo do padrão requerido pela lei de patentes, e contra cópia desleal. Neste con-texto discute-se o instrumento modelo de utilidade, os formatos que ele possui nos vários países e as vantagens e desvantagens de utilizar este instrumento.

Para isso, além da discussão inicial sobre inovação, desenvolvimento e propriedade intelectual, o livro traz estudos sobre as realidades nacionais de Singapura, Austrália, Japão, Coréia do Sul, China, Taiwan, países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) e alguns países da América Latina (México e países da comunidade andina – Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela).

Os autores apontam que é necessário entender a inovação de forma mais ampla, não tomando como base apenas as indústrias intensivas em pesquisa e cujos produtos são baseados diretamente em descobertas cien-tíficas (como biotecnologia e fármacos), mas também inovações de processo e organizacionais, abertura de novos mercados e conquista de novas fontes de matérias primas. Desta forma os autores entendem a inovação como um processo complexo que combina fatores como a base de conhecimento, arranjos institucionais, quali-ficação da força de trabalho, abertura da economia e a

Ana Maria CarneiroGrupo de Estudos sobre Organização da Pesquisa e da Inovação do Departamento de Política Científica e Tecnológica, Unicamp, São Paulo, [email protected]

Sergio Salles-FilhoProfessor do Departamento de Política Científica e Tecnológica, Unicamp, São Paulo, [email protected]

Cheltenham, UK: Edward Elgar, 2007

ISBN: 978-184542959-1

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habilidade de apropriar-se de melhorias alcançadas em outros países e setores. Neste sentido, o governo adquire um papel fundamental na criação de um ambiente ins-titucional e regulatório que promova a inovação. Entre outros aspectos, o governo necessita estabelecer estrutu-ras regulatórias adequadas que propiciem recompensas e incentivos para a inovação e o investimento. Entretanto, ao longo do livro os autores não levam em conta todos estes fatores na análise que fazem.

Para os autores, a inovação costuma ser mais incre-mental que discreta ou radical. Sendo assim, é preciso ter acesso ao conhecimento para acrescentar-lhe valor por meio de inovação incremental. Sendo conhecimento aces-sível, normalmente esse tipo de inovação é mais difícil de proteger. Assim, muitas invenções importantes para o bem estar social e cumulativas por natureza não são patenteáveis, pois a exigência de novidade e de atividade inventiva é muito alta para o sistema de patentes acomo-dá-las. Estas invenções são também as mais vulneráveis à cópia dita desleal.

O que os autores querem discutir é até que ponto é importante para o fomento da inovação proteger, através da propriedade intelectual, estas invenções in-crementais e até que ponto elas devem permanecer no domínio público. Em outras palavras, discutem até que ponto o aprendizado para inovar requer liberdade para imitar e copiar. Há vários exemplos históricos de como foi importante poder copiar invenções (como o caso da apropriação do circuito integrado, originalmente da Texas Instruments, pelas empresas japonesas que hoje controlam grande parte do mercado norte-americano). Entretanto, apesar de ter sido um comportamento per-mitido no passado – e que propiciou ganhos não apenas para as empresas copiadoras, mas para a economia na-cional – hoje os produtores locais não podem mais agir desta forma.

Quais seriam então as alternativas para a proteção de invenções incrementais? Estas invenções devem ou não ser protegidas? Caso positivo, deve o sistema padrão de patentes ser ampliado para abarcá-las ou de-vem ser criados instrumentos alternativos? Os autores apresentam, então, o modelo de utilidade que se refere a invenções que se situam entre a lei de patentes e a lei de desenho industrial. Trata-se em geral de um tipo de proteção mais barata e que confere um certificado por um tempo menor que uma patente.

Desta forma, o modelo de utilidade é benéfico principalmente para indústrias baseadas em inovação incremental. É normalmente benéfico para pequenas e médias empresas por ser mais barato e rápido que a proteção por patente e por ser adequado ao tipo de inovação gerada por estas empresas (padrão mais baixo de inventividade e mais expostos ao comportamento de “carona” dos competidores).

O modelo de utilidade ocorre de forma bastante va-riada ao redor do mundo, existindo em cerca de 70 países. Modelos de utilidade são reconhecidos na Convenção de Paris da Proteção da Propriedade Industrial, mas não há definição do escopo. Apesar dos acordos internacionais de propriedade intelectual cada vez mais harmonizarem

as legislações, não há dispositivo no Acordo TRIPS que estabeleça padrões mínimos como ocorre com as paten-tes, deixando os países livres para formular ou rejeitar regimes de proteção de segundo nível.

Desta forma, não há consenso global sobre o sig-nificado do termo modelo de utilidade, que também possui variações chamadas innovation patent (Austrália), utility innovation (Malásia), utility certificate (França) e short term patent (Bélgica). O objeto protegido também varia desde conceitos técnicos, invenções ou dispositivos até definições mais restritas a formas tridimensionais. Em alguns casos, modelo de utilidade é uma forma de proteção patentária sem exame e com uma duração mais curta. De toda forma, há pelo menos três características comuns: exclusividade de direitos ao proprietário do direito, novidade e registro (apesar de nem sempre haver exame substantivo dos depósitos).

Os autores destacam os principais benefícios e custos dos modelos de utilidade. Dentre os benefícios chamam atenção para:

• modelos de utilidade encorajam a produção de mais bens de propriedade intelectual e a inovação local, o que é particularmente importante se a região importa muitos bens de propriedade intelectual;

• propicia proteção a bens que não podem ser pro-tegidos por outros instrumentos;

• previne comportamento free-rider de empresas predatórias que não investem em P&D;

• possibilita uma fonte de informação através da publicação das especificações.

Dentre os custos, advertem que o modelo de uti-lidade pode:

• aumentar litígio devido à ausência de exame antes da concessão;

• criar um comportamento rentista, no qual os investimentos são redirecionados para o esforço de con-seguir a proteção;

• provocar o isolamento de áreas de pesquisa usan-do concomitantemente patentes e proteção via modelo de utilidade.

Há países importantes que não possuem lei de mo-delo de utilidade, como Estados Unidos, Reino Unido e Canadá. O caso dos Estados Unidos é interessante de ser analisado, pois trata-se do maior produtor mundial de propriedade intelectual. Os autores especulam algu-mas razões para este país não possuir a lei de modelo de utilidade: as leis de patente e patente de desenho funcionariam bem, o que seria comprovado com a grande exportação de bens protegidos por propriedade intelec-tual; as inovações e invenções não são produzidas nas pequenas e médias empresas mas em corporações trans-nacionais; e, por fim, os legisladores norte-americanos não se preocupariam tanto com a proteção no mercado interno, mas com os mercados estrangeiros. Outra razão seria, segundo alguns estudos1, as reformas da lei de patentes ampliaram o escopo dos objetos patenteáveis (biotecnologia, software e métodos de negócio) e abriram o caminho para níveis mais altos de patenteamento, o que foi amplificado pela criação da Corte de Apelações do

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Circuito Federal (Court of Appeals for the Federal Circuit), que aumentou a taxa de validade das patentes. Desta forma, o clima pró-patente gerado pelas reformas da legislação patentária tornaria desnecessário a existência de uma proteção para inovações de segundo nível, que já estariam protegidas pela própria lei de patentes (ou pelo mau uso desta) e por uma política antitruste mais relaxada. Os autores argumentam que um sistema de proteção do tipo do Modelo de Utilidade seria útil para os EUA no sentido de desafogar o sistema de patentes da grande quantidade de depósitos que recebe e para desencorajar o patenteamento defensivo.

Evidentemente, no caso estadunidense, a ausência de modelo de utilidade deve-se também ao nível eleva-do de investimentos em P&D que geram invenções de primeira linha, bem como ao fato de que sua legislação patentária é cada vez mais permissiva, seja no quesito originalidade, seja no quesito inventividade. Em outras palavras, eles não têm porque não precisam.

Os policy-makers têm pelo menos quatro alternativas para lidar com as invenções de segundo nível:

• deixá-las desprotegidas;• baixar o nível de inventividade para tornarem-se

patenteáveis; • criar novos mecanismos legais para protegê-las,

como modelo de utilidade; ou ainda• introduzir mecanismos de regulação de responsa-

bilidade comercial e industrial como a lei da concorrência desleal.

A partir destas alternativas, os autores propõem que os países em desenvolvimento, que não protegem as inovações menores, têm três opções que podem ser consideradas:

1 – abordagem status-quo – aceitar o regime de propriedade intelectual existente sem inserir nenhum novo direito;

2 – abordagem da abordagem de amplificação do sistema vigente – ajustar o regime de PI sem a introdução de um novo direito, através da expansão dos direitos existentes a novos objetos;

3 – abordagem da emulação – criar novos direitos híbridos, como o modelo de utilidade.

No caso brasileiro, quando se elaborou a Lei de Propriedade Industrial em 1996, adotou-se o chamado status-quo, com adesão ao TRIPS, que em alguns temas superou as próprias exigências daquele Acordo, como no caso do pipeline.

A segunda parte do livro trata dos casos nacionais. Aqui serão apresentados rapidamente os casos da Austrá-lia, Japão e Coréia. O caso australiano é interessante, pois mostra os efeitos da introdução do sistema de modelo de utilidade em 1979, corrigido em 2001. O desenvolvimen-to do sistema de petty patents foi uma resposta para defici-ências do sistema de patentes e desenho industrial. Havia a necessidade de um sistema mais rápido, barato e mais fácil para se obter proteção de invenções com uma vida comercial mais curta. A correção do sistema em 2001, que criou as patentes de inovação (innovation patent), ocorreu

pela necessidade de proteção para inovações funcionais da produção industrial. A maior parte dos proprietários de petty innovation patent são indivíduos e não empresas; são inventores locais e não estrangeiros.

Assim como na Austrália, no Japão os depositantes de MU são majoritariamente indivíduos e pequenas e médias empresas, em sua grande maioria nacionais. Entretanto, o sistema de MU lá não tem sido tão rele-vante, pois desde os anos 1980 os depósitos têm caído drasticamente, de cerca de 191 mil depósitos para cerca de 8 mil. Segundo os autores deste estudo, esta queda deve-se a três fatores: aumento do escopo da patente pa-drão na reforma de 1987; o aumento das inovações mais substanciais na indústria e a reforma da lei de modelo de utilidade de 1993 que retirou o exame do processo, o que teria tornado o sistema menos satisfatório, pois aumentou a incerteza legal da validade da proteção.

Na Coréia do Sul também houve, em 1999, a revisão da lei de MU de 1961, retirando o exame substantivo. Mas ao contrário do Japão, aumentou o número de depósitos e concessões, o que foi acompanhado por uma política de inovação centrada em PMEs e em alta tecnologia.

Os autores concluem que o sistema de propriedade intelectual deve servir para balancear o controle privado e o uso e difusão da informação técnica. A linha entre uma coisa e outra é difícil de determinar e vai variar de acordo com o país e mesmo com o setor econômico. Em países com baixa atividade inventiva, o acesso livre à informação tecnológica pode estimular mais a cons-trução da capacidade tecnológica do que um quadro de direitos fortes.

No entender dos autores, a adoção de um sistema de proteção de segundo nível pode potencialmente estimular inovações nas seguintes bases:

• as indústrias menos baseadas em conhecimento seriam capazes de procurar proteção para inovações que não preenchem os requisitos da patente padrão;

• as indústrias baseadas em conhecimento, como semicondutores e TICs seriam capazes de proteger inovações menores com uma alternativa mais barata e rápida.

Desta forma, sistemas para proteção de inovações de segundo nível seriam úteis para uma diversidade grande de situações – indivíduos, PMEs, indústrias menos e mais intensivas tecnologicamente. Os autores concluem indicando algumas opções de políticas para os países em desenvolvimento que não possuem MU. Em primeiro lugar, indicam que tais países não devem seguir cegamente as experiências alheias. Antes de adotar MU devem refletir sobre as seguintes questões:

• o país necessita de uma forma de proteção rápida e barata para promoção do crescimento da indústria local?

• Há um argumento econômico de que estas inven-ções devem ser protegidas?

• Os regimes de patente e desenho industrial são adequados para as necessidades da indústria em termos de critérios de proteção, custos e facilidade de uso?

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• Há necessidade de reconsiderar as políticas eco-nômicas e legais de proteção via patente? Se sim, até que ponto as novas políticas são mais bem servidas com um regime de um ou dois níveis?

• Há cópia maciça de inovações menores?• Há necessidade de manter um domínio público

grande para apoiar o desdobramento das inovações?• O país estaria em desvantagem se outros países

passassem a utilizar o modelo de utilidade em grande escala?

Por fim, os autores indicam as características de uma lei que consideram ideal para inovações menores, em termos dos objetos a serem protegidos, sistema de exame, renovação, taxas e nível de novidade a ser exigido.

Resta fazer aqui uma pequena consideração sobre o título do livro e o mote da discussão. Parece-nos que há uma pequena contradição entre querer discutir as inovações num ambiente sem patente e, ao mesmo tempo, defender veementemente o instrumento MU, que é considerado um tipo de patente em vários países. A questão que mais intriga é se os autores estavam propondo o fortalecimento do regime de propriedade intelectual ou um mundo sem patentes. Ao final, fica-se com a impressão de que os autores preferem que haja um mundo com patentes, mas com diferentes níveis de proteção. Um sistema de proteção de patentes em várias camadas seria mais adequado do que tentar acomodar a proteção de coisas muito diferentes no regime de patente padrão, o que ocorre nos EUA e Japão. Isto deixaria as regras do jogo mais claras e permitiria patentes de melhor qualidade. Desta forma, os autores estariam em sintonia com outros autores como Coriat e Orsi2, que alegam que em campos de inovação seqüencial, como software, uma generosa concessão de patentes pode obstruir o processo de inovação.

O mundo hoje assiste a um processo de duas frentes: de um lado, um crescimento extraordinário da proteção patentária em várias indústrias, desde o final dos anos 1990, com conseqüente crescimento de custos para os patenteadores; de outro, a emergência de vários movi-mentos que contestam direitos de propriedade (como open source, free software, open science, creative commons etc.). Então, é muito provável que o mundo passe, em breve, por revisões mais ou menos profundas das legislações nacionais de direitos de propriedade, contrariando a tendência de homogeneização colocada pela OMC no Acordo TRIPS. Neste contexto, o modelo de utilidade situa-se no meio do caminho, o que sem dúvida é uma opção para países menos desenvolvidos, desde que ocorra junto com mecanismos de aprendizagem e capacitação tecnológica.

Notas1. Kortum, S & Lerner, J. Stronger protection or tech-nological revolution: what is behind the recent surge in patenting? National Bureau of Economic Research working paper 6204, 1997. Jaffe, A.B. & Lerner, J. Innovation and its Discontents: How our broken Patent System is endangering innovation and progress, and what to do about it. Princenton, NJ: Princeton University Press, 2004. Mowery, D.C. & Rosenberg, N. The US national innovation system. In: Nelson, R.R. (ed). National In-novation Systems: a comparative analysis. Oxford: Oxford University Press, 1993.

2. CORIAT, B. e ORSI, F. Establishing a new intellectual property rights regime in the United States: Origins, content and problems, Research Policy, v.31, n.8-9, p.1491-1507, 2002.

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Resenhas

[www.reciis.cict.fiocruz.br]ISSN 1981-6278

Disease Surveillance: a Public Health Informatics Approach

Joseph Lombardo & David BuckeridgeResenha - DOI: 10.3395/reciis.v2i1.167pt

A coletânea abrange diferentes tópicos essenciais para a implantação de um sistema de vigilância sanitária, integrado e automatizado, ao nível nacional, dinâmico e apto a oferecer respostas rápidas no âmbito do gerencia-mento de dados. A coletânea exemplifica de forma clara os conceitos discutidos por meio de algumas aplicações desenvolvidas, voltadas para problemas específicos, descrevendo seu modus operandi e as etapas necessárias para assegurar o futuro bom funcionamento de sistemas desta natureza.

A coletânea se inicia com um texto que ressalta a importância de dispor de sistemas desta natureza nos dias que correm, em que os meios de comunicação re-duzem as distâncias e abolem as fronteiras, em que está presente o receio quanto à disseminação ampla e rápida de doenças emergentes e reemergentes, como a gripe aviária e a SARS (Severe acute respiratory syndrome), e em que potenciais grupos terroristas podem lançar mão de armas biológicas para ameaçar comunidades espalhadas por todo o planeta. Enfim, situações que podem contri-buir para o surgimento e rápida disseminação de uma epidemia ou catástrofe natural, a ser enfrentada com a devida urgência e os meios e recursos apropriados.

A coletânea discute ainda alguns problemas que têm de ser enfrentados quando da implementação de um sistema de vigilância, e como estes problemas podem ser tratados e resolvidos, embora a ampla maioria dos exemplos iniciais esteja restrita a um país desenvolvido,

Francisco Inácio P.M. BastosInstituto de Comunicação, Informação Científica e Tecnológica em Saúde-Fiocruz, Rio de Janeiro, [email protected]

Jaime BellidoInstituto de Comunicação, Informação Científica e Tecnológica em Saúde-Fiocruz, Rio de Janeiro, [email protected]

John Wiley & Sons, 2007ISBN: 978-047006812-0

128 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.127-129, jan.-jun., 2008

os Estados Unidos, que dispõem, muito mais do que qualquer outro país, dos meios, recursos e pessoal ca-pacitado para tal. Entretanto, as idéias e metodologias propostas não se mostram de difícil aplicação em outros contextos, assim como os recursos indicados não se mostram particularmente caros e/ou complexos. Além disso, na segunda parte do livro, são apresentados e discutidos sistemas de vigilância sanitária integrados de resposta rápida estabelecidos em diferentes países, tanto desenvolvidos como em desenvolvimento.

Os pontos apresentados no livro são oriundos de diferentes áreas de estudo, mas estão adequadamente integradas e interligadas, e se mostram essenciais ao de-senvolvimento do tema e à implementação dos sistemas. Estes são descritos de forma organizada, clara, simples e ilustrativa, o que facilita a compreensão do texto.

A seção inicial do texto (parte introdutória) ressalta a importância da vigilância sanitária nos dias atuais e como as transformações no seu âmbito estão vinculadas ao progresso tecnológico, traçando um breve histórico deste vínculo dinâmico entre tecnologias e sua aplicação concreta em sistemas de informação. Exemplifica então os conceitos formulados, lançando mão de epidemias de grande relevância e magnitude que tiveram lugar no século XX, como, por exemplo, a epidemia da gripe (influenza) espanhola, nas primeiras décadas do século passado. Junto com a emergência de problemas desta grandeza, surgem as primeiras técnicas de vigilância sanitária usadas para a detecção e controle de epidemias, baseadas principalmente na observação e no registro de casos de doenças de rápida disseminação e elevada mortalidade.

Tristemente irônico é o fato de que doenças infec-ciosas do passado, hoje sob absoluto controle médico, como o anthrax, têm sido recuperadas de respositórios de laboratório e eventualmente utilizadas como armas biológicas, constituindo hoje um perigoso arsenal que põe em risco vidas humanas, mas que também tem mobiliza-do grandes recursos visando à sua profilaxia, abortando prontamente a sua propagação em caso de um eventual ataque com armas biológicas.

Nas seções subseqüentes, o texto é dividido em duas partes, a primeira delas constituída pelas seções 2, 3 e 5, que apresenta os elementos relacionados ao desenho de um sistema de vigilância sanitário e as prioridades a levar em conta quando da sua implementação. Nesta parte são abordados elementos e metodologias de todas as áreas envolvidas com o tema, como os indicadores de saúde da população potencialmente associados ao sur-gimento de uma epidemia, o registro de dados, os meios de armazenamento a serem utilizados, as técnicas, e os diferentes recursos oriundos das áreas de informática, da padronização de procedimentos e normas, da formulação e aplicação de legislação pertinente, da estatística e do geoprocessamento.

Na seção 2 são apresentados elementos considera-dos de fundamental importância para a construção de indicadores em saúde populacional, tais como: dados relativos à venda de medicamentos de livre acesso (sem necessidade de prescrição médica), ligações para serviços de emergência, tipo 911 (nos EUA), consultas

com médicos particulares, atendimentos em centros médicos, ambulatórios e serviços de emergência, análises laboratoriais e dados acerca do absenteísmo escolar etc. A descrição exaustiva de dados consistentes relativos a estes elementos exige a capacitação e a colaboração dos diferentes profissionais de saúde. Cabe implementar, de forma consistente e sistemática, dispositivos a serem utilizados na coleta, armazenamento e disponibilização de dados. A organização destes sistemas de informação é ilustrada por meio de diagramas de fluxo e exemplos de aplicações realizadas em diferentes localidades. Cabe assinalar ainda nesta seção a inclusão de indicadores da saúde populacional referentes a doenças que afetam a saúde de humanos e/ou certos animais, como o gado (por exemplo, a febre aftosa), assim como as condições do meio-ambiente enquanto componentes da cesta de indicadores em saúde populacional.

A seção 3 descreve a obtenção, o fluxo, o armaze-namento e a disponibilização de dados, em detalhe. A seção se inicia com uma introdução sobre a internet e as base de dados lastreadas na internet (web-based), e ilustra como deve se proceder à coleta e ao armazenamento des-tes dados de forma automatizada. É importante ressaltar a importância dada à padronização dos dados ao nível internacional, com o objetivo de compartilhar a informa-ção, e a necessidade de uma legislação que permita obter estes dados de forma ágil e integrada, e, ao mesmo tempo, resguardar a privacidade das pessoas e coletividades. O sistema desenhado para a coleta dos dados de diferentes origens compreende drogarias, médicos particulares, centros de emergência, escolas, etc., que têm seus dados introduzidos em um centro de armazenamento digital, utilizando diferentes meios, principalmente, a internet. Os dados a serem de fato incorporados devem ser crite-riosamente selecionados, contemplando exclusivamente os dados considerados úteis para os propósitos do sistema, evitando-se, com isso, a sobrecarga do sistema, e favore-cendo a sua uniformização e armazenamento. A seção se encerra mostrando como realizar a transmissão de dados via internet, através de procedimentos-padrão, seguros.

A seção 4 descreve procedimentos utilizados na análise de dados arquivados automaticamente para fins de vigilância sanitária, com o objetivo de detectar alguma anormalidade que possa eventualmente constituir uma ameaça à saúde da população, o mais rapidamente possí-vel. Estes algoritmos são também usados com o objetivo de minimizar/evitar alarmes falsos. Em primeiro lugar são apontadas as características que estes algoritmos devem possuir, para, em seguida, mostrar quais os algoritmos mais freqüentemente utilizados. De acordo com a ordem de apresentação, um primeiro grupo desses procedimento estás constituído por procedimentos estatísticos visando à análise e monitoramento de séries temporais, com a geração de gráficos de controle e cenários prováveis de futuras ocorrências. A seguir, descrevem-se e discutem-se as variáveis espaço-temporais, que além dos propósitos de monitoramento e sinal de alerta, servem ainda para a localização geográfica das epidemias, lançando mão do geoprocessamento. Um exemplo deste tipo de análises são os métodos de análise de clusters (conglomerados).

129RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.127-129, jan.-jun., 2008

A seção 5 discute a junção de sistemas de infor-mação com as demandas de monitoramento, visando à implementação de um sistema automatizado. Descreve-se como deve ser implantado um sistema informatizado, utilizando os procedimentos e as ferramentas de apre-sentação da informação aos administradores do siste-ma. Este sistema gestor passa a concentrar e integrar a informação a partir de diferentes origens, armazenando os dados de forma hierárquica e inter-relacionada, pro-cedendo a uma análise ágil (por vezes, em tempo real) dos mesmos e servindo de alerta quanto ao eventual aparecimento de alguma epidemia. Estes alertas sani-tários podem ser georreferenciados, gerando com isso alertas sanitárias com efetiva base geográfica. O texto apresenta então exemplos de comunicação entre usuá-rios de sistemas de vigilância de diferentes jurisdições, com o propósito de fomentar o trabalho colaborativo. São tecidas ainda considerações referentes à segurança do sistema informatizado dos dados, indicando-se a utilização de sistemas de segurança similares aqueles utilizados pelas grandes corporações para a proteção da informação. São então apresentadas as três possíveis arquiteturas de um sistema de vigilância, suas caracterís-ticas e orientações. Outro item importante é a natureza da base de dados, o seu desenho, os possíveis softwares a serem escolhidos, além de recomendações sobre a natureza do hardware onde será feito o armazenamento dos dados e os respectivos softwares para a administra-ção das base de dados. O uso da internet é enfatizado, mencionando-se a utilização de servidores para rede, diferentes aplicativos, sistemas de informações geográ-ficas (GIS) para redes e softwares de vigilância sanitários para redes. Segue-se a visualização das aplicações em vigilância sanitária, o que normalmente é realizado utilizando-se um GIS. Apresentam-se protocolos para comunicação dos usuários do sistema. Finalmente, são listados tópicos essenciais à implantação de um sistema de segurança para o sistema de vigilância.

A segunda parte da coletânea, composta pelas seções 6, 7, 8 e 9, apresenta aplicações específicas de sistemas de vigilância sanitária integradas ao nível nacional, capazes de oferecer respostas ágeis, e se caracterizam pela organização, uso da tecnologia e por dispor de pessoal capacitado. É importante ressaltar que além de mostrar as aplicações em curso em países desenvolvidos, como o Canadá, que possui um sistema automatizado, sofisticado e altamente integrado, ou do Reino Unido, que integrou seu sistema de monitoramento à rede telefônica, os países em desenvol-vimento não são esquecidos. São mostrados sistemas de vigilância sanitários implementados em países com menos recursos, como alguns países do sudeste de Ásia e o Peru, com o apoio das respectivas Forças Armadas.

A seção 6 está direcionada a epidemiologistas e de-mais pessoas que trabalham com a vigilância sanitária, e descreve os requisitos necessários para monitorar a saúde das populações e seus aspectos operacionais, discutindo alguns sistemas de vigilância sanitária norte-americanos, com destaque para os CDC (Centros para o Controle e a Prevenção de Doenças), uma iniciativa norte-americana bem sucedida de vigilância ao nível nacional.

A seção 7 descreve as iniciativas canadenses para a implementação de um sistema de vigilância sanitário automatizado, discute o bom uso das novas ferramentas e tecnologias para o desenvolvimento do sistema de vigilância sanitário canadense, orientado para alerta de epidemias em tempo real. O sistema de vigilância cana-dense compreende subsistemas voltados para doenças especificas. Vigilância de epidemias e surtos epidêmicos em tempo real, utilizando procedimentos de fácil visu-alização. Também são apresentadas algumas conclusões otimistas de sistemas avançados, que têm por base novas tecnologias da informação e comunicação.

A seção 8 descreve em detalhe o sistema de vigi-lância sanitário automatizado do Reino Unido, e como este país integrou o sistema nacional de triagem de saúde populacional via telefone – o tele-saúde – para a disseminação de um eventual alerta.

A seção 9 apresenta em detalhe sistemas de vigilância sanitária implantados em países com poucos recursos, com o apoio de laboratórios militares de pesquisa norte-americanos, em alguns casos aa voltas com dificuldades de acesso a certas regiões e problemas na conexão via internet. São apresentados e discutidos diversos estudos de caso. No primeiro estudo de caso é mostrado um sistema de vigilância sanitário implantado no sudeste asiático volta-do para o monitoramento de epidemias como a da gripe aviária. Utilizou-se um software instalado em hospitais de áreas urbanas, o qual serve para organizar e registrar os dados de saúde nestes locais, de onde, com freqüência regular, são transmitidos os dados via e-mail para os cen-tros de coletas, onde estes dados são analisados, visando à detecção e resposta a alguma possível epidemia. O segundo estudo de caso apresenta o sistema de vigilância sanitário instalado no Peru. Desta forma, favorece-se a integração nacional do sistema que nas suas áreas principais contam com melhores recursos para o armazenamento e análise de dados, fazendo uso de softwares específicos.

A terceira parte do livro formada pelas seções 10, 11 e 12, aponta sobre o futuro de um sistema de vigilância sanitário, como deve ser avaliado o seu desempenho. Também esta parte indica a preparação e treinamento dos recursos humanos para assegurar o futuro funcionamento destes sistema. Defende a ampliação uso da informática nestes sistemas, assim como a continua modernização.

Na seção 10 são apresentadas algumas técnicas es-tatísticas e matemáticas para a avaliação do desempenho de um sistema de vigilância. Nesta parte são mostrados tópicos para verificar o correto funcionamento de um sistema de vigilância, a detecção de um surto e os proto-colos de resposta, o que feito alimentando o sistema com dados reais, simulados e falsa alarme. Aproveita-se para avaliar o tempo de resposta e a precisão do sistema.

A seção 11 aborda o caso dos recursos humanos para operar este tipo de sistema nas suas diferentes eta-pas recomenda uma maior informatização dos sistemas e capacitação na área de informática dos pessoal ligado à vigilância sanitaria, alem de fazer uma avaliação do estrutura para treinamento deste tipo de profissional, e indicar a falta de profissionais na área de avaliação de sistemas de vigilância.