disputas políticas e epidemia do cólera (Ceará, 1862-1863)

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JUCIELDO FERREIRA ALEXANDRE

A PESTE SERVE A QUAL PARTIDO?:

disputas políticas e epidemia do cólera (Ceará, 1862-1863)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em História do Instituto de História da Universidade

Federal Fluminense, como requisito parcial à

obtenção do título de doutor em História.

Área de concentração: História Social.

Orientador:

Prof. Dr. Mario Grynszpan

NITERÓI – RJ 2020

JUCIELDO FERREIRA ALEXANDRE

A PESTE SERVE A QUAL PARTIDO?:

disputas políticas e epidemia do cólera (Ceará, 1862-1863)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em História do Instituto de História da Universidade

Federal Fluminense, como requisito parcial à

obtenção do título de doutor em História.

Área de concentração: História Social.

Aprovada em 9 de novembro de 2020.

______________________________________________________

Prof. Dr. Mario Grynszpan – Universidade Federal Fluminense Orientador

______________________________________________________

Profa. Dra. Isabel Idelzuite Lustosa da Costa – Fundação Casa de Rui Barbosa Arguidora externa

______________________________________________________

Profa. Dra. Kaori Kodama – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz Arguidora externa

______________________________________________________

Prof. Dr. Paulo Henrique Fontes Cadena – Universidade Católica de Pernambuco Arguidor externo

______________________________________________________

Prof. Dr. Sebastião Pimentel Franco – Universidade Federal do Espírito Santo Arguidor externo

NITERÓI- RJ

2020

Aos meus pais,

Lúcia e Jossiê.

AGRADECIMENTOS

Chegar ao fim de uma fase importante da vida, como é o doutorado, traz o dever de

destacar o papel de pessoas e instituições na minha trajetória. Assim, agradeço:

Ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense

(UFF) e à Universidade Regional do Cariri (URCA) por terem viabilizado o Doutorado

Interinstitucional junto à Capes. Saliento, especialmente, a sensibilidade das universidades em

lançar edital aberto, não restrito aos professores da URCA, permitindo, assim, a extensão da

qualificação aos professores de outras universidades e da rede estadual de ensino do Ceará.

Particularmente, sou grato às professoras Ana Maria Mauad, Giselle Venâncio e Verônica

Secreto, por terem atuado diretamente na coordenação do projeto.

Ao empenho do Departamento de História da URCA em viabilizar o Dinter e pela

acolhida dada aos doutorandos das outras instituições. A professora Sônia Meneses merece

destaque, por ter liderado a implementação do Dinter e o coordenado localmente. Querida

Sônia, obrigado por fazer parte da minha vida, desde a graduação ensinando o que é ser um

bom profissional de História, e por não medir esforços na coordenação do Dinter.

À Coordenação do PPGH-UFF e à secretaria do programa, pela atenção ao longo dos

quatro anos do curso e por atenderem minhas demandas sempre que solicitei algo.

Ao meu orientador, Prof. Mario Grynszpan, pela parceria, confiança, solicitude e

tranquilidade ao longo do curso, fundamentais para o avanço do meu trabalho.

Aos professores membros da banca de defesa, Isabel Lustosa (Fundação Casa de Rui

Barbosa), Kaori Kodama (COC/Fiocruz), Paulo Henrique Fontes Cadena (UNICAP) e

Sebastião Pimentel Franco (UFES), por aceitarem participar de momento central de minha

trajetória pessoal e profissional. Suas opiniões e sugestões sobre o meu trabalho ajudaram a

melhorá-lo. Reforço os agradecimentos às professoras Isabel e Kaori, pela leitura criteriosa e

crítica que fizeram ao meu trabalho no exame de qualificação, colaborando, significativamente,

para o desenvolvimento final da tese.

Aos professores ministrantes de disciplinas, especialmente a: Ismênia Martins, um

exemplo de energia e paixão pelo ofício; Georgina Santos, pelas maravilhosas aulas sobre Brasil

Colônia; Ana Mauad, pelos inspirastes insights sobre a pesquisa histórica; Mario Grynszpan,

que ofertou um dos módulos mais interessantes sobre teoria da História; Rodrigo Bentes, de

uma erudição absurda ao abordar as ideias políticas modernas; e Giselle Venâncio, de didática

inspiradora, ao fazer compreensíveis os teóricos mais difíceis. Aprendi muito com esses

professores e guardarei na memória aquelas semanas intensas de conhecimento e debate.

À Universidade Federal do Cariri, especialmente aos colegas do Instituto de Estudos do

Semiárido (IESA), pela aprovação de meu afastamento por dois anos, dando tranquilidade para

o desenvolvimento da pesquisa e escrita da tese. Agradeço, ainda, ao Centro de Ciências Sociais

Aplicadas (CCSA) por ter ratificado meu afastamento.

Aos alunos do curso de História em Icó, pelo carinho constantemente manifestado.

Aos servidores e funcionários do Arquivo Nacional, Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, Biblioteca Nacional e Departamento Histórico Diocesano Padre Antônio Gomes de

Araújo, instituições que generosamente me receberam e permitiram o acesso às fontes históricas

fulcrais na escrita da tese. A Biblioteca Nacional merece, ainda, outro agradecimento, pela

manutenção da Hemeroteca Digital, revolucionária para o trabalho dos historiadores, ao

democratizar o acesso à mais relevante coleção de jornais brasileiros.

Aos colegas de doutorado: Airton, Daniela, Fagno, Fatinha, Helonis, Jaquelini, Marcos,

Rafael, Raimundo, Rubia, Simone e Viviane. Sou grato, especialmente, à Priscilla e Sandra,

com quem dividi os melhores dias de 2018, durante o estágio doutoral no Rio de Janeiro. A

convivência com todos os colegas foi um estímulo na caminhada, além de proporcionar

momentos saudosos de riso e companheirismo.

Aos queridos Cicinha e Paulinho, que leram pacientemente a tese, sempre fazendo

sugestões precisas de como deixá-la mais correta gramaticalmente e bonita. Sou grato a Deus

por fazerem parte da minha vida. A admiração por vocês só cresce.

Aos NMCR’s, sociedade quase-secreta, a reunir os sócios Amanda Teixeira, Ítalo

Bezerra, Patrícia Alcântara, Priscilla Queiroz, Sávio Samuel e Simone Pereira. O que seria de

mim sem nosso divertido fórum cotidiano de discussões?

Aos meus pais, Lúcia e Jossiê, a quem devo a vida, a educação e tudo o que alcancei.

Amo vocês! À Luana e Juciano, meus maninhos, parte importante de minha história. A Vinícius

e Miguel, os sobrinhos mais lindos e amados do universo.

Por fim, às políticas públicas de educação do Brasil, que permitiram a um cearense do

interior fazer a graduação, o mestrado e o doutorado em instituições públicas e tornar-se docente

efetivo de uma das novas universidades federais, criadas para ampliar o acesso e a

democratização do ensino superior.

RESUMO

Entre 1862 e 1863 a Província do Ceará foi vítima do cólera morbo. Responsável por grandes

epidemias pelo mundo, no século XIX, o cólera ganhou a atenção dos historiadores,

interessados em problematizar as questões socioculturais por trás das cenas dramáticas ligadas

à doença. No caso do Ceará, o drama epidêmico foi, claramente, utilizado nas disputas político-

partidárias, bem como serviu a indivíduos interessados em granjear honrarias e benefícios

pessoais. Naquela conjuntura, uma celeuma envolvendo o presidente da província, José Bento

da Cunha Figueiredo Júnior, e a cobertura feita pelos jornais sobre a epidemia ganhou destaque,

refletindo também questões mais amplas da política imperial, como a ascensão da “Liga

Progressista” na Corte. É sobre os usos políticos do cólera no Ceará que a tese se deterá. Entre

as fontes históricas utilizadas na pesquisa, destacam-se cinco jornais, disponíveis na

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional: o Pedro II – de propriedade da família Fernandes

Vieira, principal liderança do Partido Conservador no Ceará – e os jornais de inspiração liberal,

O Cearense, O Commercial (rebatizado Gazeta Official), O Sol e O Araripe. Além da imprensa,

as correspondências ativas da presidência da província – acervo do Arquivo Nacional do Rio

de Janeiro – e as missivas privadas enviadas por Figueiredo Júnior ao ministro Marquês de

Olinda – conservadas no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – ocupam função

estratégica na tese. Por fim, alguns documentos impressos e manuscritos de outros arquivos

também contribuem na construção dos capítulos.

Palavras-chave: epidemia do cólera; disputas políticas; Província do Ceará; imprensa.

ABSTRACT

Between 1862 and 1863 the Province of Ceará was victim of cholera morbus. Responsible for

huge epidemics around the world, in the 19th century, the cholera gained attention of historians,

interested in problematizing sociocultural questions behind of the dramatic scenes related to

disease. In the case of Ceará, the epidemical drama was, clearly, used in the political parties

disputes, as well as it served to individuals interested in gaining honors and personal benefits.

In that conjucture, a muddle involving the provincial President, José Bento da Cunha Figueiredo

Júnior, and the coverage by newspapers about the epidemics reached spotlight, reflecting also

larger questions of imperial politics, as the rising of the “Progressive League" at court. It is

about the political uses of cholera in Ceará that the thesis will treat. Between historical sources

used in the research, five newspapers are significant, available in the Hemeroteca Digital at the

National Library: O Pedro II – belonging to the Fernandes Vieira family, main leadership of

the Conservative Party in Ceará – and the newspapers of liberal inspiration, O Cearense, O

Commercial (renamed Gazeta Official), O Sol and O Araripe. Besides the press, the active

Provincial Presidency correspondence – at the National Archive in Rio de Janeiro – and the

private letters sent by Figueiredo Júnior to the minister Marquês de Olinda – guarded at the

Brazilian Historical and Geographical Institute – have a central role in this thesis. At last, some

printed documents and manuscripts from others archives have also contributed to the

construction of the chapters.

Keywords: cholera epidemics; political disputes; Province of Ceará; press.

LISTA DE ABREVIATURAS

ANRJ – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro

BNRJ – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

DHDPG – Departamento Histórico Diocesano Padre Antônio Gomes de Araújo

IAHGP – Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco

ICC – Instituto Cultural do Cariri

IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 – Presidentes nomeados para a Província do Ceará entre 1840 e 1889..................46

QUADRO 2 – Comissões sanitárias criadas pelo Governo Provincial do Ceará entre fevereiro

e abril de 1862..........................................................................................................................189

QUADRO 3 – Indicados às Ordens Honoríficas pelos serviços prestados na epidemia do cólera

de 1862.....................................................................................................................................242

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.........................................................................................................................1

CAPÍTULO 1 – A CONJUNTURA POLÍTICA E EPIDÊMICA........................................32

1.1 - A política nacional entre a Conciliação e a Liga...........................................................36

1.2 - A política e os partidos no Ceará...................................................................................46

1.3 - “Um inimigo em triunfo”..............................................................................................59

CAPÍTULO 2 - PRESIDIR NA EPIDEMIA: O GOVERNO DA PROVÍNCIA E O

CÓLERA NO CEARÁ............................................................................................................94

2.1 - “Calamidade igual, só o cólera”....................................................................................94

2.2 - “O tutor, o salvador da sociedade”..............................................................................106

2.3 - As “folhas da oposição têm censurado o procedimento do Bacharel Franco”.............118

2.4 - Os Cunha Figueiredo: pequenos demais para coisas grandes?...................................148

CAPÍTULO 3 - AUTORIDADES POLICIAIS, COMISSÕES DE SOCORROS E

DISPUTAS NO TEMPO DO CÓLERA..............................................................................161

3.1 - “Eis mais uma autoridade que não merece o posto importante que lhe coube”.........161

3.2 - “Lembrou-se de incumbir as medidas de salvação pública a juntas”.........................186

3.3 - “Braveja detrator, braveja insano”..............................................................................203

CAPÍTULO 4 - À ESPERA DOS PRÊMIOS: O PÓS-CÓLERA NO CEARÁ................217

4.1 - “É a epidemia dos elogios”..........................................................................................217

4.2 - “Estimaria sinceramente ver apreciados seus serviços pelo Governo Imperial”..........237

4.3 - O “Cólera morbo psíquico e moral”............................................................................260

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................282

REFERÊNCIAS....................................................................................................................286

a) Documentos................................................................................................................286

b) Bibliografia.................................................................................................................292

INTRODUÇÃO

No texto “Uma história do presente”, René Rémond retomou afirmativa central sobre o

ofício do historiador: a explicação das mudanças que afetam a sociedade ao longo do tempo é

o objetivo, por excelência, da ciência histórica. Por conta disso, o seguidor de Clio não escapa

de sofrer na pele os efeitos dessas mudanças em seu presente:

[...] o historiador é de um tempo, aquele em que o acaso o fez nascer e do qual

ele abraça, às vezes sem o saber, as curiosidades, as inclinações, os

pressupostos, em suma, a “ideologia” dominante, e mesmo quando se opõe,

ele ainda se determina por referência aos postulados de sua época.1

Os avanços da História sobre determinados objetos de estudo, em muitas ocasiões, se

dão através do abandono de certas temáticas, antes consideradas centrais. Foi o que ocorreu por

décadas no trato da história política. Desde 1929, as proposições do movimento dos Annales

apontaram um modelo historiográfico a ser combatido: uma história factual, descritiva e

essencialmente narrativa, centrada em ações e eventos que tinham indivíduos específicos como

protagonistas e na opinião de que as fontes falavam por si mesmas. Naquele período, o modelo

combatido se confundia com o da história política tradicional, concebida, na maior parte dos

casos, como um espaço por excelência da ação racional e consciente dos indivíduos. Assim, ao

recusarem aquela história, os historiadores dos Annales relegaram a história política a um

segundo plano.

A predileção pelos recortes de média e longa duração, especialmente na chamada “era

Braudel”, contribuiu do mesmo modo para o abandono, pois os fenômenos políticos eram

percebidos como “acidentes de conjuntura”. Eventos de curta duração e traços individuais

seriam insignificantes historicamente, fugidia espuma na superfície das ondas do mar.

Fenômeno atraente, mas a exigir prevenção:

Uma história de oscilações curtas, rápidas, nervosas. Ultrassensível por

definição, o menor passo põe em alerta todos os seus instrumentos de medida.

Mas tal qual é, é a mais fascinante, a mais rica em humanidade, a mais

perigosa também. Devemos desconfiar dessa história ainda palpitante que

seus contemporâneos sentiram, descreveram e viveram no ritmo de suas

existências breves como a nossa2.

1 RÉMOND, René. Uma história presente. In. RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2ª ed. Rio de

Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 13. 2 BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II. São Paulo: Edusp, 2016,

p. 64.

2

A despeito das desconfianças, dentro do próprio movimento dos Annales, havia

historiadores sintonizados com o estudo do político. Mesmo antes da criação da revista Annales

em 1929, um dos seus fundadores, Marc Bloch, publicou “Os reis taumaturgos” (1924). Nele,

o autor partia do estudo comparativo da crença medieval que fazia dos reis franceses e ingleses

“curadores” de uma doença específica – as “escrófulas” (adenite tuberculosa) – para mergulhar

nas concepções da realeza e de legitimação político-religiosa do poder real, em recorte de longa

duração, marcado por aumento dos choques entre o poder secular e religioso em meio ao

processo de centralização política. Desta forma, o olhar apurado e sensível a respeito do ritual

de toque real nas escrófulas apontava possibilidades de pesquisa ampliadoras da forma de

enxergar os fenômenos políticos, articulando-os com elementos da antropologia e psicologia:

Ora, para compreender o que foram as monarquias de outrora, para sobretudo

dar-se conta de sua longa dominação sobre os espíritos dos homens, não é

suficiente apenas esclarecer até o último detalhe o mecanismo da organização

administrativa, judiciária, financeira que essas monarquias impuseram a seus

súditos; nem é suficiente analisar abstratamente ou procurar extrair de alguns

grandes teóricos os conceitos de absolutismo ou de direito divino. É necessário

também penetrar as crenças e as fábulas que floresceram em torno das casas

principescas3.

As proposições inovadoras de Marc Bloch sobre a política ressoaram com mais força

entre historiadores da Terceira Geração dos Annales, também chamada de “Nova História”, a

partir dos anos 1970. Como afirma Rémond, as “oscilações entre a realidade observada e o

olhar que observa”, levaram à renovação das formas como os fenômenos políticos eram

interpretados, concebendo novos processos de configuração analítica. Para o historiador em

questão, essas mudanças não eram uma “restauração” da história política e sim “etapa nova no

desenvolvimento da reflexão que a história faz sobre si mesma4”. Ocupava destaque nesse

cenário a percepção das mudanças a atingir a política ao longo do século XX, com a ampliação

do seu domínio de ação e alargamento das atribuições do Estado. Isso despertou novos olhares

dos historiadores sobre o político, pois “realidade e percepção interferem” em seu ofício5.

A conjuntura historiográfica, a permitir a ascensão de novas abordagens da política,

também engendrou pesquisas históricas a abarcar temas até então pouco estudados. Como

apontou Michel de Certeau, a operação historiográfica dá-se a partir da “combinação de um

lugar social, de práticas ‘científicas’ e de uma escrita”6. Com a ascensão institucional da “Nova

3 BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 44. 4 RÉMOND, op. cit., 2003, p. 14. 5 RÉMOND, op. cit., 2003, p. 22. 6 CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 66.

3

História”, os historiadores encontraram espaço social favorável à promoção de temas, métodos

e estilos narrativos. Privilegiando o diálogo interdisciplinar e os estudos voltados ao cotidiano,

a operação historiográfica abriu-se às representações e atitudes humanas diante do amor,

família, morte, medo, entre outros objetos. Mudanças conceituais e metodológicas como essas

são indícios do funcionamento da história em uma sociedade, do lugar (institucional, político,

econômico etc.) que nela ocupa. Conforme Certeau, tal lugar permite ou interdita determinados

tipos de produção historiográfica:

Ele [o lugar] torna possíveis certas pesquisas em função de conjunturas e

problemáticas comuns. Mas torna outras impossíveis; exclui do discurso

aquilo que é sua condição num momento dado; representa o papel de uma

censura com relação aos postulados presentes (sociais, econômicos, políticos)

na análise7.

Foi no contexto tratado nos últimos parágrafos que a historiografia dedicada ao

fenômeno doença também encontrou lugar para desenvolver-se. A multiplicidade de métodos,

temáticas e abordagens adquiridos pelo diálogo da História com outras disciplinas – Sociologia,

Antropologia, Psicologia etc. –, propiciou estudos que contribuíram com percepções menos

naturalizadas a respeito das enfermidades. Como apontou Charles Rosenberg, a doença

[...] não pode ser reduzida a um processo fisiopatológico unidimensional. Não

importa qual seja a sua base biológica – e, no caso de muitos supostos males,

uma base biológica permanece para ser demonstrada –, uma doença é

socialmente construída, enquadrada por uma configuração particular de

necessidades, percepções e expectativas8.

Dessa forma, os historiadores passaram a problematizar a doença para além da

percepção de um “estado fisiológico abaixo do ideal”9, apontando sua complexidade:

a doença é ao mesmo tempo um evento biológico, um repertório específico de

gerações de construções verbais que refletem a história intelectual e

institucional da medicina, uma ocasião para potencial legitimação das

políticas públicas, um aspecto de papel social e individual-intrapsíquico-

identitário, uma sanção por valores culturais e um elemento estruturante nas

interações médico-paciente. De certa forma, a doença não existe até que

tenhamos concordado que sim, percebendo, nomeando e respondendo a ela10.

7 CERTEAU, op. cit., 1982, p. 77. 8 ROSENBERG, Charles E. The cholera years: The United States in 1832, 1849, and 1866. Chicago: University

of Chicago Press, 1987, p. 239. 9 ROSENBERG, Charles E. Framing disease: illness, society, and history. In. ROSENBERG, Charles E.

Explaining epidemics and other studies in the history of medicine. Cambridge: Cambridge University Press, 1992,

p. 305-318. 10 ROSENBERG, op. cit., 1992, p. 305.

4

A percepção das enfermidades enquanto construções historicamente localizadas alargou

as possibilidades de compreensão dos historiadores. Nas palavras de Jacques Revel e Jean-

Pierre Peter, a doença é um elemento de “desorganização e de reorganização social”, tornando

visíveis articulações, linhas de forças e tensões que marcam os grupos sociais:

O acontecimento mórbido pode, pois, ser o lugar privilegiado de onde melhor

observar a significação real de mecanismos administrativos ou de práticas

religiosas, as relações entre os poderes, ou a imagem que uma sociedade tem

de si mesma11.

Entre as pesquisas dedicadas às doenças, as epidemias foram ganhando destaque.

Eventos extraordinários, os surtos epidêmicos são comumente tidos como “pestes”, metáfora

do “que pode haver de pior em termos de calamidades e males coletivos”12. Momentos

disruptivos, tensos e de forte impacto social, as epidemias oferecem oportunidades férteis aos

pesquisadores. Com fronteiras definidas, no tempo e no espaço, elas são “episódios de

existência breve, mas intensa e arrebatadora”13, representando uma espécie de “drama”, na

concepção de Charles Rosenberg, ao encenar “padrões tradicionais de resposta a uma ameaça

percebida”14. Os estudos acerca das epidemias vêm demonstrando como elas impactaram,

significativamente, diferentes sociedades e temporalidades, encetando rico imaginário, práticas

socioculturais e intervenções no espaço público.

Tendo em vista tais questões, a tese que apresento pretende costurar os temas política e

epidemia, tendo como recorte a Província do Ceará, entre 1862 e 1863, quando o surto do

cólera15 varreu o território provincial, atingindo milhares de pessoas, das quais cerca de doze

11 REVEL, Jacques & PETER, Jean-Pierre. O corpo: o homem doente e sua história. In. LE GOFF, Jacques &

NORA, Pierre. História: novos objetos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 14. 12 SONTAG, Susan. Doença como metáfora/AIDS e suas metáforas. São Paulo: Cia. das Letras, 2007, p. 112. 13 NASCIMENTO, Dilene Raimundo do & SILVEIRA, Anny Jackeline Torres. A doença revelando a história:

uma historiografia das doenças. In. NASCIMENTO, Dilene Raimundo do & CARVALHO, Diana Maul de

(Orgs.). Uma história brasileira das doenças. Brasília: Paralelo 15, 2004, p. 24. 14 ROSENBERG, op. cit., 1992, p. 280. O autor utilizou a metáfora dramatúrgica para indicar tendências de

respostas comuns – guardadas as especificidades próprias de cada evento – em diferentes localidades atacadas por

epidemias. Uma espécie de sequência de “atos”, onde médicos, autoridades públicas e os diferentes grupos sociais

encenam papéis no drama, indiciaria o padrão teatral dos surtos epidêmicos: “As epidemias começam em um

momento no tempo, prosseguem em estágio limitado e duração, seguido uma trama de tensão crescente e

reveladora, movem-se para uma crise de caráter individual e coletivo e depois se aproximam do fechamento”

ROSENBERG, op. cit., 1992, p. 279. 15 O cólera, também conhecido como cólera asiático ou cólera morbos, é enfermidade infectocontagiosa, cuja

transmissão ocorre pelo consumo de água ou alimentos contaminados pela bactéria vibrio cholerae, nome

inspirado no seu formato, a lembrar uma vírgula. Ao instalar-se no intestino humano, a bactéria causa, após período

típico de incubação de um a quatro dias, náuseas, cólicas abdominais, vômitos e violenta diarreia, o que ocasiona

intensa perda de sais minerais e água. A desidratação leva à perda da elasticidade da pele, surgimento de olheiras

profundas e enrugamento das mãos; na sequência, ocorre o resfriamento do corpo, conhecido como algidez, queda

da pressão arterial, supressão da secreção urinária e colapso circulatório. O meio mais eficaz de tratamento é a

reposição imediata dos sais e líquidos perdidos pelas evacuações. Quando bem administrado, reduz a letalidade

5

mil faleceram. Partindo das estimativas da época, o cólera teria sido responsável pela morte de

aproximadamente 2% dos cearenses16.

Abordar as relações entre doença e política é seguir senda aberta por intelectuais como

Marc Bloch, citado há pouco. Ele foi um dos primeiros historiadores a demonstrar a viabilidade

de estudos do tipo: o ritual no qual escrofulosos procuravam o toque real revela muito das

crenças que perduraram na França e Inglaterra entre a Idade Média e o fim da Idade Moderna:

os doentes acreditavam no poder de cura dos reis, capacidade adquirida por estes após as

cerimônias de unção e sagração, simbolicamente oficializando-os como representantes de Deus.

Desta forma, a crença no rito do toque nas escrófulas era aceita socialmente e contribuía para a

legitimação do poder monárquico. Ao mesmo tempo, a prática taumatúrgica estava articulada

à consciência moral, a impor aos soberanos o dever de generosidade para com os súditos menos

favorecidos: “Ora, entre os doentes que vinham pedir a cura ao rei encontravam-se muitos

miseráveis. Muito depressa, formou-se o hábito de dar-lhes algum dinheiro”17. Política e

doença, portanto, articulavam-se de modo rico e complexo na intepretação dada por Bloch.

As articulações entre doença e política podem ser abordadas de múltiplas formas.

Muitos estudos, por exemplo, centraram-se na elucidação das políticas públicas voltadas à área

da saúde e dos choques delas decorrentes, indicando: reformas urbanas implementadas com a

ascensão da chamada “medicina social”18; disputas entre teorias científicas a respeito da

etiologia e terapêutica das doenças; institucionalização do saber médico; a disciplinarização

proposta pela medicina, segregando racial e socialmente os mais pobres; o combate às práticas

para quase zero. Os estudos sobre a doença também identificaram que o grau de acidez dos sucos estomacais do

hospedeiro pode ser determinante na luta contra o vibrião: quanto mais ácido, menor a chance da sobrevivência da

bactéria no organismo (MCNEILL, Willian. H. Plagues and peoples. New York: Anchor Press, 1976, p. 260). Em

meados do século XIX, recorte desta tese, a ciência apenas especulava sobre a etiologia do cólera e o tratamento

adequado. Em 1883, o médico alemão Robert Koch comprovou a existência da bactéria transmissora do cólera.

Ao longo do oitocentos, a doença matou de trinta a quarenta milhões de pessoas no mundo. SOURNIA, Jean-

Charles & RUFFIE, Jacques. As epidemias na história do homem. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 124. 16 BRASIL, Thomaz Pompeo de Souza. Ensaio Estatístico da Província do Ceará. Tomo I. Ed. fac. sim. (1863).

Fortaleza: Fundação Waldemar de Alcântara, 1997, p. 299. 17 BLOCH, op. cit., 1993, p. 95. 18 Para Michel Foucault, a fortificação do capitalismo no século XVIII engendrou uma “medicina social”,

sucessora da medicina de cunho privado, até então vigente. O desenvolvimento dos centros urbanos levantava a

obrigação de construir uma unidade política, liderada por “um poder único e bem regulamentado”, a fim de

organizar e gerir o “corpo urbano de modo coerente, homogêneo”. O poder político também devia oferecer resposta

aos pequenos pânicos nascidos com a urbanidade: “[...] Nasce o que chamarei de medo urbano, medo da cidade,

angústia diante da cidade que vai se caracterizar por vários elementos: medo diante das oficinas e fábricas que

estão se construindo, do amontoamento da população, das casas altas demais, da população numerosa demais;

medo, também, das epidemias urbanas, dos cemitérios que se tornam cada vez mais numerosos e invadem pouco

a pouco a cidade; medo dos esgotos, das caves sobre os quais são construídas as casas que estão sempre correndo

o perigo de desmoronar. A França foi o grande exemplo de resposta política às inquietações urbanas. Suas cidades

passaram a ser organizadas por esquadrinhamento, disciplinador e definidor do uso dos espaços. Nesse projeto, os

médicos foram fundamentais, pois forneceram o modelo básico a ser seguido: o da quarentena vigilante”.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 21ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2005, p. 87-89.

6

de cura populares; autoritárias campanhas de vacinação e reações sociais; a organização das

instituições hospitalares; entre outras questões19.

No caso da minha tese, a relação entre política e epidemia será problematizada a partir

da análise de como um surto do cólera foi usado nas disputas políticas provinciais do Ceará,

entre 1862 e 1863. Na ocasião, argumento, houve nítida apropriação política da “peste”:

determinados sujeitos históricos e grupos políticos viram na conjuntura tensa instalada a

oportunidade para “tomar partido”, polemizar com opositores, bem como forjar oportunidades

de acesso às benesses da administração provincial, vantagens eleitorais e honrarias estatais.

Há algumas décadas o cólera vem despertando a atenção dos historiadores. O britânico

Asa Briggs, no começo dos anos 1960, já chamava a atenção dos colegas para as múltiplas

possibilidades de análise implícitas nos vários surtos do cólera no século XIX20. Segundo o

autor, independente do lugar onde a doença apareceu, ela “testou a eficiência e a resiliência das

estruturas administrativas locais”, expondo, de modo implacável, “deficiências políticas,

sociais e morais”, acarretando “rumores, suspeitas e, às vezes, violentos conflitos sociais”,

como, também, inspirando sermões e obras de arte, escritas e imagéticas21.

Briggs sugeriu, ainda, cinco conjuntos de fatos a serem analisados aos interessados “no

papel do cólera na história social moderna”: os fatores demográficos; os fatos ligados às

estruturas econômicas e sociais, incluindo as relações ricos/pobres e autoridades/sujeitos; as

circunstâncias políticas na conjuntura epidêmica; a estrutura governativa, nos aspectos

administrativos e financeiros, incluindo o apoio “voluntário”, por meio da caridade de terceiros;

a extensão dos conhecimentos médicos e as atitudes populares em relação àqueles22.

Charles E. Rosenberg foi um dos historiadores a aceitarem a provocação de Briggs. Para

Rosenberg, o cólera foi “a doença epidêmica clássica do século XIX”23. Nenhuma outra

enfermidade contemporânea teria alcançado o “impacto emocional imediato” do cólera,

matando “metade das pessoas infectadas”, de “maneira particularmente desagradável”24.

19 São alguns exemplos de estudos com abordagens similares: MACHADO, Roberto et al. Danação da Norma:

medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978; LUZ, Madel. Medicina

e ordem política: política e instituições em saúde, 1850-1930. Rio de Janeiro: Graal, 1982; COSTA, Jurandir

Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1983; CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril:

cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996; SEVCENKO, Nicolau. A revolta

da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Cosac Naify, 2010; SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas

trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas / SP: Editora da Unicamp, 2001. 20 BRIGGS, Asa. Cholera and Society in the Nineteenth Century. Past & Present, n. 19, pp. 76-96, abr. 1961. 21 BRIGGS, op, cit., 1961, p. 76. 22 BRIGGS, op, cit., 1961, p. 89. 23 ROSENBERG, op. cit., 1987, p. 1. 24 ROSENBERG, Charles E. Cholera in nineteenth-century Europe: a toll for social and economic analysis. In.

ROSENBERG, op. cit., 1992, p. 112.

7

Destacou, ainda, o impacto das pandemias do cólera na Europa, nos padrões demográficos e

econômicos, levando à adoção de “medidas de saúde pública instituídas por medo da doença”25.

Desde os primeiros surtos do cólera na Europa e América, nos anos 1830, houve,

também, o estímulo à investigação e experimentação científica, levando médicos a avançarem

no conhecimento patológico e químico, com consequências sociais para a saúde pública ao

longo do século26. Não por acaso, Rosenberg utilizou o cólera para exemplificar o caráter de

“ator social” das doenças: “As percepções da doença são específicas ao contexto, mas também

determinam o contexto”, pois fornecem legitimação e orientação para a tomada de decisões

sociais, seja em questões estruturais, como obras de engenharia urbana, ou em aspectos morais,

ao culpabilizar indivíduos e práticas de setores sociais específicos27.

Richard J. Evans – no livro sobre o cólera em Hamburgo – produziu uma análise

interessante sobre os impactos políticos da epidemia. Destacando as contradições sociais na

cidade portuária alemã, a miséria e degradação das condições de trabalho, Evans demonstrou

como o cólera trouxe consequências consideráveis, ocasionando a perda da autonomia de

Hamburgo, a contestação ao liberalismo lá praticado e a reivindicação por reformas eleitorais28.

Ao longo do século XIX, a cidade gozara de autonomia administrativa, sendo governada

por mercadores liberais de classe média. Mesmo com o processo de centralização política

alemã, a culminar com a formação do Reich, em 1870, Hamburgo permaneceu uma cidade livre,

espécie de Estado autônomo no interior do império. Quando o cólera atingiu Hamburgo, em

1892, o Reich encontrou justificativas e condições para promover a submissão da cidade. Não

por acaso, o médico Robert Koch – que em 1883 tinha comprovado a existência do vibrião

colérico, passando a chefiar as políticas públicas de saúde do império alemão – era apresentado

na imprensa como aquele que “governa Hamburgo hoje”29. A necessidade de intervenções

sanitárias foi, assim, acionada para justificar a centralização política e a perda da autonomia.

Por outro lado, houve pressão, especialmente por parte dos sociais-democratas, por

reformas constitucionais na lei de sufrágio, haja vista a argumentação de serem as principais

causas do desastre sanitário derivadas do domínio do Senado e Assembleia dos Cidadãos de

Hamburgo por pessoas ligadas aos interesses mercantis. Os parlamentares teriam adiado a

tomada de medidas preventivas e o anúncio da manifestação do cólera como meio de proteger

seus interesses econômicos, no intuito de evitar o “quanto possível” a “imposição da

25 ROSENBERG, op. cit., 1992, p. 113. 26 ROSENBERG, op. cit., 1992, p. 116. 27 ROSENBERG, op. cit., 1992, p. 314-315. 28 EVANS, Richard J. Death in Hamburg: society and politics in the cholera years. New York: Penguin, 2005. 29 EVANS, op. cit., 2005, p. 491.

8

quarentena” no porto30. Ao final da crise epidêmica de 1892, além das 10 mil vítimas fatais, o

cólera deixara algo a mais morto: “o antigo sistema de governo amador por notáveis locais sob

os quais Hamburgo havia sido anteriormente governado”31.

Já Kenneth F. Kiple estudou o cólera no Caribe, destacando as altas taxas de mortalidade

negra durante três epidemias na região. Nas primeiras manifestações da doença em Cuba (1833)

e Porto Rico (1855), por exemplo, a mortalidade da população negra teria alcançado 75% (de

um total de 22.705 mortes) e 78% (de 25.820), respectivamente32. O impacto da epidemia sobre

os negros foi tão grande, a ponto de ter sido usado pelos proprietários rurais de Cuba como

arma para tentar perpetuar o comércio de escravizados, em um momento de pressão da

Inglaterra sobre a Espanha pelo fim do tráfico. Por sua vez, autoridades britânicas também

usaram a alta taxa de escravizados mortos, e o respectivo impacto na economia cubana, para

reivindicar mais recursos de Londres na fiscalização e combate ao tráfico oceânico33.

Os observadores da época explicaram a morte massiva dos negros através de critérios

raciais, defendendo a existência de uma predisposição ao cólera. Kiple desconstrói a tese,

apresentando razões históricas para o fenômeno. Por onde passou no XIX, o cólera agiu com

mais vigor sobre as classes marginalizadas, vivendo em áreas sujas e superlotadas, sem acesso

a fontes de água limpa. No caso do Caribe, as ocupações e as condições de alojamento dos

escravizados nas cidades e plantações os colocavam no “caminho do cólera”, majorando a

chance de contaminação. Ademais, a subnutrição dos escravizados caribenhos – a quem era

dada pouca comida e de péssima qualidade, como peixes salgados e rançosos – e o consumo de

grande quantidade de água contaminada – pela sede provocada pelo esforço físico cotidiano –

diminuíam o grau de acidez estomacal, aumentando a chance dos vibriões instalarem-se no

intestino delgado, causando os sintomas do cólera e favorecendo a letalidade dele34.

O cólera no Brasil oitocentista também tem atraído o olhar de diversos historiadores,

pondo em cena: os efeitos catastróficos da epidemia no cotidiano; as cifras mortuárias; as

diferentes teses a respeito das causas e tratamentos da doença; as disputas ou trocas entre

saberes médicos e populares; as revoltas sociais suscitadas; o discurso higienista e o

ordenamento das cidades; a ineficácia dos socorros oficiais; as interpretações religiosas da

doença; entre outras temáticas. São exemplos da historiografia dedicada ao cólera no Brasil:

30 EVANS, op. cit., 2005, p. 539. 31 EVANS, op. cit., 2005, p. vii. 32 KIPLE, Kenneth F. Cholera and race in the Caribbean. Journal of Latin American Studies, v. 17, n. 1, pp. 157-

177, 1985. 33 KIPLE, op. cit., 1985, p. 164. 34 KIPLE, op. cit., 1985, p. 175.

9

Donald B. Cooper, em artigo sobre os efeitos da epidemia do cólera no Império, seguindo o

caminho de Kenneth Kiple, ao frisar a alta taxa de mortalidade entre os negros35; Onildo Reis

David, no livro sobre o cólera na Bahia36; Jane Felipe Beltrão, no Pará, primeira província

brasileira contaminada pelo cólera, em 185537; Ariosvaldo Diniz38 e Rosilene Gomes de

Farias39, estudiosos do cólera no Recife; Nikelen Witter, a historiar a epidemia no Rio Grande

do Sul40; Amâncio Santos Neto, acerca da epidemia na província de Sergipe41; Sebastião

Franco, responsável por estudo centrado nos lances do cólera no Espírito Santo42; e Tânia

Salgado Pimenta, em estudo sobre as artes de curar no Rio de Janeiro no tempo do cólera43.

A ação da doença no Ceará também obteve atenção historiográfica. No mestrado foquei

a análise nas representações sobre o cólera engendradas pelo jornal O Araripe, folha ligada ao

Partido Liberal, impressa na cidade de Crato. Desde a chegada do cólera ao Brasil, a moléstia

tornou-se notícia: os responsáveis pelo jornal o compreendiam como o espaço apropriado para

ditar o que julgavam serem os melhores meios de combate à doença, diante da constatação da

aproximação geográfica da mesma, da falta de médicos no Cariri cearense e da distância da

região em relação à capital provincial, vista como inviabilizadora do socorro imediato em caso

de contaminação44. No referido trabalho, evidenciei, ainda, como O Araripe, ao tratar do cólera,

mesclou de forma criativa discursos políticos, religiosos, científicos e populares, demonstrando,

assim, o caleidoscópio de olhares com que a doença foi apreendida então, ou seja, como o cólera

foi representado pelos sujeitos históricos, responsáveis pelo órgão impresso em meados do

século XIX, a partir do lugar social ocupado por eles.

35 COOPER, Donald B. The new “black death”: cholera in Brazil, 1855-1856. Social Science History. V. 10, n. 4,

pp. 467-488, 1986. 36 DAVID, Onildo Reis. O inimigo invisível: epidemia na Bahia no século XIX. Salvador: EDUFBA/Sahar Letras,

1996. 37 BELTRAO, Jane Felipe. A arte de curar dos profissionais de saúde popular em tempo de cólera: Grão-Pará do

século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 6, pp. 833-866, set/2000. 38 DINIZ, Ariosvaldo da Silva. Medicina e curandeirismo no Brasil. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB,

2011. 39 FARIAS, Rosilene Gomes. O Khamsin do deserto: cólera e cotidiano no Recife (1856). Dissertação (Mestrado

em História). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007. 40 WITTER, Nikelen Acosta. Males e Epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil (Rio Grande

do Sul, século XIX). Tese (Doutorado em História Social). Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007. 41 SANTOS NETO, Amâncio Cardoso. Sob o signo da peste: Sergipe no tempo do cholera (1855-1856).

Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. 42 FRANCO, Sebastião Pimentel. O terribilíssimo mal do oriente: o cólera na província do Espírito Santo (1855-

1856). Vitória: EDUFES, 2015. 43 PIMENTA, Tânia Salgado. Doses infinitesimais contra a epidemia de cólera em 1855. In. NASCIMENTO,

Dilene Raimundo do; CARVALHO, Diana Maul de (Orgs.). Uma história brasileira das doenças. Brasília:

Paralelo 15, 2004, p. 31-51. 44 ALEXANDRE, Jucieldo Ferreira. Quando o anjo do extermínio se aproxima de nós: representações sobre o

cólera no semanário cratense O Araripe (1855-1864). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal

da Paraíba, João Pessoa, 2010, p. 140.

10

Dhenis Silva Maciel, no ano de 2011, defendeu dissertação dedicada ao cólera em

Maranguape, localidade cearense com mais vítimas fatais na província, no ano de 1862. O autor

fez apanhado dos efeitos da epidemia na localidade, da ação dos médicos da comissão local de

socorros públicos e da diversidade de teorias e indicações a tentar explicar e combater os efeitos

da doença. Maciel frisou, especialmente, as reações religiosas da população frente à intensa

mortalidade45. No doutorado, defendido em 2017, Dhenis Maciel deu continuidade à pesquisa

da dissertação, ampliando o recorte geográfico e temporal, ao pôr em cena a “construção social

do cólera” no Ceará entre os anos 1855 e 186346.

Já Mayara de Almeida Lemos dissertou a respeito das representações sobre o cólera em

Quixeramobim, no sertão-central cearense, entre 1862-1863. Partindo da visão de serem as

epidemias eventos únicos e reveladores de tensões sociais, o trabalho da historiadora centrou-

se em demonstrar “os caminhos da epidemia de cólera” a partir da análise de como as ações e

disputas entre personagens locais – tais como os profissionais das “artes de curar” (médico e

curandeiros e seus diferentes saberes), padres, membros das comissões de socorro e autoridades

públicas – representaram e disseminaram práticas a respeito do cólera, em contexto de medo e

abandono para a população local47.

Nos trabalhos dedicados ao cólera no Ceará, a relação entre a epidemia e a política

provincial recebeu pouco destaque. O assunto apareceu em um tópico do meu trabalho, no qual

demonstrei como as facções políticas das elites de Crato, divididas entre conservadores e

liberais, não deixaram de “tomar partido” da epidemia que ceifou tantas vidas, seja para

enaltecer correligionários ou depreciar inimigos, buscando auferir maior legitimidade social e

política naquela conjuntura48. Maciel também produziu, na dissertação, interessante tópico

sobre como a epidemia do cólera serviu de tema na disputa eleitoral para o senado no Ceará de

1863, tema que voltou a visitar, en passant, na conclusão da tese49. Já Mayara Lemos apontou

as contradições entre a correspondência das autoridades locais – a cobrar mais recursos para

45 Para o historiador, a substituição do padroeiro original da vila, São Sebastião, tradicional orago anti-pestilento,

por Nossa Senhora da Penha, quando da fundação da freguesia, em 1849, se fez sentir fortemente no ano de 1862,

quando a população voltou-se ao santo cravejado de flechas para invocar a proteção contra o cólera, visto como

punição divina. São Sebastião acabou sendo entronizado como co-padroeiro após a epidemia, devido à súplica

popular. MACIEL, Dhenis Silva. Valei-me, São Sebastião: a epidemia de cólera morbo na Vila de Maranguape

(1862). Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2011, p. 121. 46 MACIEL, Dhenis Silva. Dos sujeitos, dos medos e da espera: a construção social do cólera-morbus na província

cearense (1855-1863). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017. 47 LEMOS, Mayara de Almeida. O terror se apoderou de todos: os caminhos da epidemia de Cólera em

Quixeramobim (1862-1863). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza,

2013. 48 ALEXANDRE, op. cit., 2010, p. 164. 49 MACIEL, op. cit., 2011, p. 145; MACIEL, op. cit., 2017, p. 249.

11

socorro dos coléricos – e o que era publicado no jornal O Cearense, isentando o presidente do

Ceará de críticas e acusando a população local de ser a principal responsável pelo número de

mortes, pela suposta imprevidência em não procurar o auxílio médico a tempo50.

Diante do exposto nas últimas páginas, minha tese contribuirá para o aprofundamento

da relação política/cólera no Ceará. Em meio ao cenário caótico instalado pela epidemia, as

disputas por parte dos grupos políticos pelo apoio da administração provincial, por cargos e

honrarias ganharam maior visibilidade, como apontam as páginas de jornais e correspondências

oficiais da época, numa avalanche de acusações mútuas. Assim, as cenas miseráveis instauradas

pelo cólera foram agenciadas para atacar opositores ou defender correligionários. Na

conjuntura, o papel do presidente da província da época, José Bento da Cunha Figueiredo

Júnior, teve destaque, mobilizando opiniões na imprensa provincial conservadora e liberal e

favorecendo os apoiadores do governo na crise epidêmica. Por outro lado, as disputas, visíveis

na quadra pestilenta no Ceará, não deixaram de refletir questões mais amplas, como o contexto

de reconfiguração dos partidos políticos imperiais entre os anos 1850 e 1860, com repercussão

na composição dos gabinetes ministeriais, nas câmaras legislativas da Corte e nas províncias.

A seguir, apresento um apanhado sobre as fontes utilizadas na pesquisa, com destaque

para um conjunto de jornais cearenses, esmiuçando suas características, vinculações políticas e

as posturas adotadas durante a epidemia do cólera.

Sobre as fontes históricas consultadas

No que diz respeito à documentação analisada na tese, a imprensa terá destaque. Em

toda pesquisa, o historiador deve estar atento às particularidades socioculturais que

contextualizam o problema de análise no recorte espacial e temporal. Da mesma forma, deve

historicizar as fontes, buscando visualizar quando, como, por quem e por que foram produzidas,

afinal, todo documento, enquanto texto, é objeto de apropriações sociais. É o que Pierre

Bourdieu e Roger Chartier denominaram de “crítica do estatuto social do documento”51.

E como abordar teórico-metodologicamente a imprensa, especialmente a brasileira de

meados do século XIX? Tania de Luca, discorrendo sobre o uso dos jornais na pesquisa no

Brasil, propõe distinções entre o que conceitua “história da imprensa”, “história por meio da

imprensa” e “imprensa como objeto de história”. A primeira teria como escopo a introdução e

50 LEMOS, op. cit., 2013, p. 184. 51 BOURDIEU, Pierre; CHARTIER, Roger. A leitura: uma prática cultural. In. CHARTIER, Roger (org.). Práticas

de Leitura. 4ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2009, p. 234.

12

difusão da imprensa e o itinerário de jornais e jornalistas pelo território nacional. A década de

1970 já contava com significativa bibliografia, somada a uma série de edições fac-símiles e de

catálogos dando conta da circulação dos periódicos nas diversas regiões do país.

A despeito de tal produção, havia certa relutância dos historiadores em admitir a

validade de jornais e revistas “como fontes para o conhecimento de uma história do Brasil”,

pois pesavam desconfianças acerca do caráter “neutro”, “objetivo” e “verdadeiro” dos

impressos, prevenções herdadas da tradição historiográfica de inspiração positivista, dominante

em fins do século XIX e nas primeiras décadas do XX. Assim, os jornais eram vistos como

inadequados para a recuperação do passado, pois conteriam “registros fragmentados do

presente, realizados sob o influxo de interesses, compromissos e paixões. Em vez de permitirem

captar o ocorrido, dele forneciam imagens parciais, distorcidas e subjetivas”52.

Malgrado o olhar de suspeição sobre a imprensa, alguns estudiosos brasileiros já

desenvolviam uma “história por meio da imprensa” – a segunda categoria proposta por Tania

de Luca –, caracterizada pelo uso dos impressos como fonte primária. Gilberto Freyre, Emília

Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso, entre outros autores, não dispensaram, nas

pesquisas, a consulta aos jornais, “seja para obter dados de natureza econômica (câmbio,

produções e preços) ou demográficas, seja para analisar múltiplos aspectos da vida social e

política, sempre com resultados originais e postura muito distante da tão temida ingenuidade”53.

Com a ascensão, nas últimas décadas do século XX, da nova história francesa, o

desenvolvimento da história social inglesa, da micro-história, da história cultural, da nova

história política e da virada linguística, a historiografia brasileira passou a ter olhar mais

acurado no trato com a imprensa. Ainda na década de 1970, começaram a despontar as

primeiras pesquisas a colocar a “imprensa como objeto” de análise54. Os estudos desenvolvidos

a partir dessa perspectiva buscaram evidenciar a vinculação da imprensa aos interesses de

grupos sociais específicos, desmistificando a pretensa neutralidade jornalística e apontando

para a historicidade de suas representações, como corroboram as palavras de Maria Helena

Capelato: “A imprensa, ao invés de espelho da realidade passou a ser concebida como o espaço

de representação do real, ou melhor, de momentos particulares da realidade”. A autora destacou,

52 LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In. PINSKY, Carla Bassanezi (org.).

Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 112. 53 LUCA, op. cit., 2005, p. 117. 54 LUCA, op. cit., 2005, p. 118.

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ainda, como a existência dos jornais é produto de práticas sociais de uma época, pressupondo

“um ato de poder no qual estão implícitas relações a serem desvendadas”55.

As reflexões de Robert Darnton também influenciaram a produção historiográfica

brasileira, ao salientar a “força ativa [ocupada pela imprensa] na história”. Para o autor, os

“historiadores tratam em geral a palavra impressa como um registro do que aconteceu”.

Todavia, ela seria mais “um ingrediente do acontecimento”, afinal ajuda a “dar forma aos

eventos” que registra, como ocorreu na Revolução Francesa, quando a “prensa tipográfica foi

o principal instrumento na criação de uma nova cultura política”56.

Aliás, a relação entre imprensa e cultura política ocupa lugar de destaque em pesquisas

dedicadas ao processo de independência do Brasil. Se a instalação da família real portuguesa

no Rio de Janeiro, em 1808, instituiu a imprensa no território brasileiro, a revolução liberal do

Porto, em 1820, e o decorrente fim da censura estimularam a publicação massiva de jornais,

pasquins e folhetos, repercutindo as ações dos sujeitos históricos do período. Lúcia Bastos

Pereira das Neves partiu da análise da imprensa para demonstrar o desenvolvimento de um

novo “vocabulário” político no Brasil, em meio às disputas entre o “despotismo e

liberalismo/constitucionalismo”, englobando “um conjunto de palavras que enunciavam

princípios, definiam direitos e deveres do cidadão”57. Assim, os impressos debateram e fizeram

circular conceitos como “despotismo”, “constituição”, “liberdade”, “soberania”, “eleição”,

“voto”, entre outros. Ao abordar a circulação desse vocabulário na imprensa, Lúcia Bastos

demonstrou a historicidade dos conceitos, como foram construídos pelos sujeitos históricos e

os sentidos particulares dados naquela conjuntura de fortes disputas.

Já Isabel Lustosa destacou como a “intensa batalha verbal”, travada pela imprensa no

período da independência, deu voz à “língua popular”, geralmente confinada à oralidade e

epistolografia familiar. Com a liberdade de imprensa e a necessidade dos grupos políticos em

litígio de “fazer-se compreender, como também despertar as identidades, provocar paixões”,

autores eruditos e jornalistas com pretensões democráticas foram instados a “participar do

debate na grande arena popular”. Assim, a linguagem popular passou a ocupar as folhas

55 CAPELATO, Maria Helena Rolim. A imprensa na história do Brasil. São Paulo: Contexto/Edusp, 1988, p. 25.

Seguindo caminho parecido, Lilia Schwarcz propôs deixar de lado a ideia dos periódicos serem “expressões

verdadeiras de uma época” ou veículos imparciais de “transmissão de informações”. Devem ser apreendidos

enquanto produtos sociais: “uma das maneiras como segmentos localizados e relevantes da sociedade produziam,

refletiam e representavam percepções e valores da época”. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro:

jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Círculo do livro, 1988, p. 16. 56 DARNTON, Robert. Introdução. In. DARNTON, Robert; ROCHE, Daniel (orgs.). Revolução impressa: a

imprensa na França (1775-1800). São Paulo: Edusp, 1996, p. 15-16. 57 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da Independência

(1820-1822). Rio de Janeiro: Editora Revan/Faperj, 2003, p. 119.

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impressas58. Tais questões reforçam a afirmação da historiadora, sobre como a conjuntura da

independência, período curto e com decisões fulcrais para os rumos do novo país, “foi o

contexto em que política e imprensa se confundiram de maneira mais radical”59.

Outro pesquisador dos anos 1820 e 1830, Marco Morel, ressaltou como o periodismo

aspirou marcar e ordenar a cena pública, caracterizada por transformações profundas nas

relações de poder. Assim, a “circulação de palavras – faladas, manuscritas ou impressas – não

se fechava em fronteiras sociais e perpassavam amplos setores da sociedade que se tornaria a

brasileira”60. A ascensão de discursos arrogando representar a “opinião pública” foi alvo da

apreciação de Morel. Para ele, há quem tome a expressão de modo literal, “como um

personagem ou agente histórico dotado de vontade, tendência e iniciativa próprias”. Fugindo

da visão simplista, o historiador propôs ver a “opinião pública”, antes de tudo, como “palavras”:

A expressão opinião pública é polissêmica – e também polêmica. Conhecer a

trajetória dessa noção numa determinada sociedade, situada cronologicamente

e geograficamente, pode permitir uma aproximação da gênese da política

moderna, isto é, pós-absolutista, cujos discursos invocando a legitimidade

desta opinião continuam a ter peso importante na atualidade. Ou seja, a

opinião pública era um recurso para legitimar posições políticas e um

instrumento simbólico que visava transformar algumas demandas setoriais

numa vontade geral61.

As considerações de Morel sobre a “opinião pública” podem ser aplicadas aos

periódicos de outras épocas do oitocentos. Os jornais do século XIX tentavam convencer os

leitores sobre a importância e urgência das questões levantadas por redatores, líderes partidários

e demais indivíduos que publicavam textos na imprensa, como nas cartas enviadas por leitores.

Não por acaso, a maioria dos impressos não se sustentava apenas com as assinaturas, no geral,

diminutas e alvo de muita inadimplência. Importava contar com apoio financeiro de

correligionários e simpatizantes dos ideais e projetos, pois “o aporte de capitais era fundamental

58 LUSTOSA, Isabel. Insultos impressos: o nascimento da imprensa no Brasil. In. MALERBA, Jurandir (org.). A

independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 266. 59 LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 59. A relação

profícua entre imprensa e história também foi reforçada por Ana Luiza Martins e Tania de Luca, para quem não

há modo de escrever uma história da imprensa “sem relacioná-la com a trajetória política, econômica, social e

cultural do país”. Sobre o papel desempenhado pelos impressos na trajetória da independência do Brasil,

afirmaram: “A nação brasileira nasce e cresce com a imprensa. Uma explica a outra. Amadurecem juntas. Os

primeiros periódicos iriam assumir a transformação da Colônia em Império e participar intensamente do processo.

A imprensa é, a um só tempo, objeto e sujeito da história brasileira. Tem certidão de nascimento lavrada em 1808,

mas também é veículo para a reconstrução do passado”. MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina de (orgs.).

História da imprensa no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2012, p. 8. 60 MOREL, Marco. Os primeiros passos da palavra impressa. In. MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina de

(orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2012, p. 25. 61 MOREL, op. cit., 2012, p. 33, grifos da fonte.

15

para a manutenção do impresso, alimentando uma imprensa política desde então comprometida

com seus financiadores”62. Essa atitude doutrinária, mais que o caráter comercial dos dias de

hoje, era uma das principais características dos jornais oitocentistas:

O caráter doutrinário, a defesa apaixonada de ideias e a intervenção no espaço

público caracterizaram a imprensa brasileira de grande parte do século XIX,

que, é bom lembrar, contava com contingente diminuto de leitores, tendo em

vista as altíssimas taxas de analfabetismo63.

Há ainda de se destacar a reflexão de Wlamir Silva acerca do “caráter pedagógico” da

imprensa oitocentista, ao promover a construção de culturas políticas pela mediação entre

sociedade e Estado, em nível local e regional, promovendo um sistema de referências a alcançar

“estratos mais amplos da sociedade, transformando a filosofia política num conjunto de

conceitos compreensíveis por um contingente mais significativo da sociedade”64.

Marialva Barbosa, por sua vez, frisou a “autorreferenciação” como uma das

características das gazetas do século XIX. A preocupação dos jornais em situar suas falas diante

de outros periódicos, simulando diálogos, como se fosse uma conversa tornada pública, produz

pistas sobre relações com as instâncias de poder e apontam para o “circuito da comunicação”,

ou seja: o que eram tais publicações, quem nelas escrevia, para quem se dirigiam e, em alguns

casos, quais as interpretações engendradas por leitores anônimos ou ilustres, por meio de artigos

e cartas enviadas aos órgãos de imprensa. No diálogo polêmico ou conciliador estabelecido,

“esse regime de autorreferenciação produz também distinção e torna os redatores, símbolos

daquelas publicações, nomes perenes na construção presente e futura dessa história”65.

É pertinente, ainda, refletir sobre o poder dos jornais de selecionar o que é noticiado.

Para Humberto Fernandes Machado, a imprensa tem o poder de “transformar simples

ocorrências em notícias que alcançam repercussão junto aos leitores, ou, então omiti-las,

levando-as ao esquecimento”66. Não obstante, o autor destaca como os jornais, ao escolher as

notícias, “também sofrem influências de seu público leitor”, pois precisam manter a imagem de

“credibilidade quando divulgam os fatos”67. A boa interlocução jornal/leitor dependeria, assim,

62 MARTINS, Ana Luiza. Imprensa em tempos de Império. In. MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tania Regina

de. História da imprensa no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2012, p. 57. 63 LUCA, op. cit., 2005, p. 134. 64 SILVA, Wlamir. A imprensa e a pedagogia liberal na Província de Minas Gerais (1825-1842). In. NEVES,

Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco; FERREIRA, Tânia Maria Bessone da C. (orgs.). História e imprensa:

representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006, p. 38. 65 BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil, 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010, p. 54. 66 MACHADO, Humberto Fernandes. Palavras e brados: José do Patrocínio e a imprensa abolicionista do Rio de

Janeiro. Niterói: Editora da UFF, 2014, p. 118. 67 MACHADO, op. cit., 2014, p. 117-118.

16

de “um ambiente favorável”68 entre as partes. Afinal, como indicou Darnton, “as matérias

jornalísticas precisam caber em concepções culturais prévias relacionadas com a notícia”69.

As considerações citadas nas últimas páginas serviram de inspiração para a minha

interpretação dos jornais cearenses escolhidos para o desenvolvimento desta tese: Pedro II

(Fortaleza), O Cearense (Fortaleza), O Araripe (Crato), O Commercial, rebatizado como

Gazeta Official (Fortaleza), e O Sol (Fortaleza). A escolha pelos órgãos deu-se, principalmente,

pelo recorte temporal escolhido para a pesquisa (1862-1863), pelo amplo espaço dado à

epidemia do cólera e aos usos políticos dela, de acordo com a tendência partidária de cada folha,

e devido à disponibilidade das coleções na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

O desenvolvimento da imprensa na Província do Ceará não deixou de se relacionar com

o contexto brasileiro mais amplo. Segundo Geraldo Nobre, cronologicamente, o Ceará foi a

sétima província a imprimir jornais, sendo precedido por Rio de Janeiro (1808), Bahia (1813),

Pernambuco (1821), Maranhão (1821), Pará (1822) e Minas Gerais (1824)70. Os primeiros

jornais cearenses foram impressos em Fortaleza no ano de 1824. O Diário do Governo do Ceará

foi fundado enquanto órgão oficial da província, tendo número inaugural a 1 de abril. Com o

desenrolar da Confederação do Equador, passou para as mãos do governo revolucionário71.

Aliás, o redator da folha, padre Gonçalo Inácio de Loiola Albuquerque Mororó, foi um dos

fuzilados em Fortaleza, a 30 de abril de 1825, pela participação na revolução72. Sobre o segundo

jornal, Gazeta do Ceará, sabe-se pouco: teria vindo a lume a 6 de abril de 1824 e, também,

tomado o lado dos revoltosos na sequência73. A devassa iniciada com o malogro da

Confederação do Equador resultou na destruição dos exemplares dos dois primeiros jornais

cearenses, restando pouquíssimos números conservados74.

Segundo o levantamento do Barão de Studart, cerca de 120 jornais foram impressos no

Ceará entre 1824 e 1864, a maioria de vida curta, não sobrevivendo aos primeiros números75.

Se Fortaleza foi o espaço de concentração dessas folhas, as prensas tipográficas não deixaram

de adentrar o interior da província. Em 1831, por exemplo, foi criado O Clarim da Liberdade,

68 MACHADO, op. cit., 2014, p. 119. 69 DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras,

2010, p. 108. 70 NOBRE, Geraldo da Silva. Introdução à história do jornalismo cearense. Fortaleza: Nudoc/Secult, 2006, p. 60. 71 NOBRE, op. cit., 2006, p. 65. 72 STUDART, Barão de. Dicionario bio-bibliofraphico cearense. Vol. 1. Fortaleza: Typo-Lithographia a Vapor,

1910, p. 349. 73 NOBRE, op. cit., 2006, p. 65. 74 NOBRE, op. cit., 2006, p. 51. 75 STUDART, Barão de. Os jornais do Ceará nos primeiros 40 anos: 1824-1864. Revista do Instituto do Ceará.

Tomo especial, 1924, p. 48-118.

17

na vila de Aracati76, fazendo oposição à família Castro, importante clã político liberal

cearense77. O segundo jornal do interior do Ceará foi O Araripe, semanário liberal impresso na

cidade de Crato, entre 1855 e 1865. Aliás, da criação d’O Araripe até o fim dos anos 1860,

Crato sediou a publicação de 13 jornais78, demonstrando como os periódicos tiveram destaque

na região do Cariri, no sul do Ceará. Se Aracati e Crato foram as localidades com maior número

de jornais no interior, lugares como Sobral, Icó, Acarape e Cascavel também estrearam no

cenário da imprensa cearense no início dos anos 186079.

O número de folhas publicadas no Ceará entre 1824 e 1864 demonstra como a imprensa

assumiu papel importante na cena pública, corroborando a afirmativa de Geraldo Nobre: “a

história política do Ceará não pode ser completamente, ou pelo menos satisfatoriamente escrita,

sem se valer dos subsídios que a pesquisa jornalística lhe fornecerá”80. Ainda segundo o autor,

o caráter político dos periódicos, “os fazia lidos nos recantos extremos da província, onde quer

que houvesse um liberal ou um conservador, conforme o caso”81. Portanto, a relação entre

imprensa e política no Ceará provincial é indissociável. Tratando do assunto, Ana Carla Sabino

Fernandes mostrou como a crença no caráter civilizador da imprensa era central:

Esses periódicos se colocavam como paladinos da ideia de que, através da

imprensa [...] seria possível civilizar a política e a sociedade cearense,

“independente” da opção partidária, pois acreditavam não haver trincheiras

entre as práticas discursivas produzidas no jornal e as do imaginário social82.

Nestes termos, tanto conservadores como liberais, apresentavam seus periódicos como

agentes de civilização, daí porque o manifesto caráter proselitista dos impressos. Por trás de tal

discurso, os órgãos atuavam na defesa e divulgação de projetos políticos específicos, vinculados

aos interesses dos grupos sociais em disputa, afinal, “todos os jornais procuram atrair o público

e conquistar seus corações e mentes. A meta é sempre conseguir adeptos para uma causa”83.

Os dois principais jornais cearenses do oitocentos, Pedro II e O Cearense, surgiram nos

anos 1840, tendo relação direta com as disputas políticas do fim da Regência, época de

configuração dos partidos conservador e liberal, conjuntura sobre a qual tratarei no primeiro

76 NOBRE, op. cit., 2006, p. 71; STUDART, op. cit., 1924, p. 66. 77 STUDART, op. cit., 1924, p. 66. 78 PINHEIRO, Irineu. O Cariri: seu descobrimento, povoamento, costumes. Fortaleza: edição do autor, 1950, p.

178-186. 79 STUDART, op. cit., 1924, p. 48-118. 80 NOBRE, op. cit., 2006, p. 26. 81 NOBRE, op. cit., 2006, p. 17. 82 FERNANDES, Ana Carla Sabino. A imprensa em pauta: jornais Pedro II, Cearense e Constituição. Fortaleza:

Museu do Ceará / Secretaria de Cultura, 2006, p. 12. 83 CAPELATO, op. cit., 1988, p. 15.

18

capítulo. Entre 1834 e 1837, o padre José Martiniano de Alencar, um dos líderes dos

movimentos liberais de 1817 e 1824, ocupou a presidência do Ceará, estando sintonizado com

a política encetada pelo regente padre Diogo Antônio Feijó. Com a ascensão do “Regresso” e

a posse de Pedro de Araújo Lima, futuro Marquês de Olinda, como regente uno, Alencar perde

a presidência. Foi nomeado Manuel Felizardo de Souza Mello. Para comemorar a derrubada do

padre liberal, os “caranguejos” – como eram conhecidos os segmentos que deram origem ao

Partido Conservador no Ceará – fundaram o Dezesseis de Dezembro, a 1 de julho de 1838. O

título do jornal aludia à data de posse de Manuel Felizardo na presidência do Ceará, em 183784.

Todavia, com o “golpe da maioridade”, no qual Alencar foi um dos patronos85, o padre liberal

retornou à presidência da província natal. Para fazer oposição a Alencar, o Dezesseis de

Dezembro saiu de cena, dando lugar ao Pedro II, a 12 de setembro de 184086.

Descontente com a oposição feroz do jornal, Alencar teria enunciado recado aos

apoiadores: “por muito menos disso quebravam-se tipografias no Rio e em alto dia”87.

Entendida a senha, nos primeiros dias de 1841, a Tipografia Constitucional, na qual o Pedro II

era preparado, foi alvo de empastelamento por parte de aliados do presidente: as portas foram

arrombadas a machadadas, o prelo foi reduzido a pedaços e os tipos usados para impressão

foram postos em sacos e arremessados no mar. Apesar do ocorrido, o jornal continuou a

circular, sendo impresso em outras oficinas da cidade até adquirir tipografia própria88.

O Pedro II foi a principal folha conservadora do Ceará e a de maior longevidade:

circulou de 1840 a 1889, correspondendo ao tempo do Segundo Reinado, de cujo imperador

tomou o nome. Após a Proclamação da República, foi rebatizado como O Brasil, encerrando a

84 Na capa, o Dezesseis de Dezembro trazia versos de Camões, como indicativo do pretenso advento de um novo

tempo na província: “Depois de procelosa tempestade/ Noturna sombra e sibilante vento/ Traz a manhã serena

claridade/Esperança de porto e salvamento”. STUDART, op. cit., 1924, p. 75. 85 O romancista José de Alencar registrou deliciosa memória sobre o “Clube Maiorista”. O pai, o padre José

Martiniano de Alencar, era o secretário do clube: “Morávamos então na rua do Conde n. 55. Aí nessa casa

preparou-se a grande revolução parlamentar que entregou ao Sr. D. Pedro II o exercício antecipado de suas

prerrogativas constitucionais”. Conta o romancista: uma “noite por semana, entravam misteriosamente em nossa

casa os altos personagens” envolvidos no complô. As reuniões ocorriam “em um aposento do fundo, fechando-se

nessas ocasiões a casa às visitas habituais, a fim de que nem elas nem os curiosos da rua suspeitassem do plano

político, vendo iluminada a sala da frente”. Enquanto as personalidades deliberavam em segredo, o menino Alencar

via a mãe acompanhar o “preparo de chocolate com bolinhos, que era costume oferecer aos convidados por volta

das nove horas” e indagava, curioso, sobre o tema do serão secreto. Não tendo resposta dos adultos, o menino

concluía: “O que estes homens vêm fazer aqui é regalar-se de chocolate”. ALENCAR, José de. Como e porque

sou romancista. Rio de Janeiro: Typographia de G. Leuzinger & Filhos, 1893, p. 17-18. Disponível no site:

https://digital.bbm.usp.br/view/?45000018504&bbm/4647#page/1/mode/2up. Último acesso a 03 dez. 2019. 86 Tal como o Dezesseis de Dezembro, o Pedro II estampou Camões na epígrafe da capa: “Os mais

experimentados levantai-os/ se, com a experiência, têm bondade/ para vosso conselho, pois que sabem/ o como, o

quando, e onde as cousas cabem”. STUDART, op. cit., 1924, p. 77. 87 STUDART, op. cit., 1924, p. 80. 88 NOBRE, op. cit., 2006, p. 88.

19

impressão no ano de 189089. Entre 1862 e 1863, recorte temporal da tese, o jornal circulava

diariamente, exceto aos domingos e dias santos, imprimindo mais de 290 edições ao ano. Ele

tinha extensão de quatro páginas, cada uma com quatro colunas verticais. O preço da assinatura

anual em Fortaleza e Maranguape, vila vizinha à capital do Ceará, era de 12$000 (doze mil

réis), pagos adiantadamente. Para as outras localidades do interior do Ceará, a anuidade saía

por 14$000 (quatorze mil réis), o que dava para comprar duas dúzias de “copos para água” no

estabelecimento de Antônio de Castro Laranjeira, anunciante do Pedro II90. O diário não

divulgava na capa se vendia edições avulsas.

O Pedro II foi fundado por Miguel Fernandes Vieira (1816-1862), membro do clã

conhecido como “carcará”, uma das principais lideranças do Partido Conservador no Ceará.

Nascido em Saboeiro, no sertão dos Inhamuns, e filho do proprietário rural Francisco Fernandes

Vieira, futuro Visconde de Icó, Miguel Fernandes Vieira formou-se bacharel no curso jurídico

de Olinda, na turma de 1837, tendo como colegas João Maurício Wanderley (Barão de

Cotegipe) e Zacarias de Góis e Vasconcelos, além de ser contemporâneo na instituição de outros

futuros nomes da política nacional, como João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu (Visconde

de Sinimbu), Ângelo Muniz da Silva Ferraz (Barão de Uruguaiana), Bernardo de Souza Franco

(Visconde de Souza Franco), entre outros91. Miguel Fernandes Vieira foi deputado provincial,

em três legislaturas, e geral, em cinco. Teve nomeação ao Senado a 9 de abril de 1862. Cerca

de dois meses após tomar posse na câmara vitalícia, faleceu no Rio de Janeiro92, passando o

diário Pedro II a ser administrado por outros membros da família.

Miguel Fernandes Vieira, além de proprietário, foi um dos principais redatores do Pedro

II. Além dele, outros redatores destacaram-se, a maioria exercendo cargos políticos ao longo da

segunda metade do oitocentos: Gustavo Gurgulino de Sousa93, Manoel Ambrósio da Silveira

89 FERNANDES, op. cit., 2006, p. 63. Ana Carla Sabino Fernandes mapeou os nomes dos tipógrafos que atuaram

nas oficinas do Pedro II: Raimundo Moreira da Silva, Felisberto da Costa Bastos Leal, Raimundo César da Silva,

Antônio F. dos Santos Júnior, Antônio Gernecino de Q. Saboia, Joaquim José Cardoso, Galdino Marques de

Carvalho, Joaquim José de Oliveira e Raimundo de Paula Lima. FERNANDES, op. cit., 2006, p. 64. 90 Pedro II, n. 282, 11 dez. 1862, p. 4. 91ABREU, Júlio. A velha Academia de Olinda. Revista do Instituto do Ceará. Tomo LX. Fortaleza, 1946, p. 86-

110; ABREU, Júlio. A velha Academia de Olinda. Revista do Instituto do Ceará. Tomo LXIII. Fortaleza, 1949, p.

20-48. 92 STUDART, Barão de. Dicionario bio-bibliofraphico cearense. Vol. 2. Fortaleza: Typo-Lithographia à Vapor,

1913, p. 386. 93 Nascido em São Luiz do Maranhão (1829), veio criança para o Ceará. Foi deputado provincial por seis

legislaturas. Tinha relações com o boticário Antônio Rodrigues Ferreira, liderança do Partido Conservador no

Ceará, junto com os Fernandes Vieira, ao ponto dos correligionários da agremiação serem conhecidos como

“boticário-carcarás”. Além de deputado, Gurgulino exerceu vários cargos na província, como: administrador do

Correio, lente substituto de português no Liceu de Fortaleza e diretor de instrução pública da província. Faleceu

em 1879. STUDART, op. cit., 1924, p. 81; PAIVA, Maria Arair Pinto. A elite política no Ceará Provincial. Rio

de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979, p. 90; CORDEIRO, Celeste. O Ceará na segunda metade do século XIX. In.

SOUZA, Simone de (org). Uma nova história do Ceará. 4ª ed. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2007, p. 144.

20

Torres Portugal94, Luiz Francisco de Miranda95, Francisco Paurilo Fernandes Bastos96 e

Gonçalo de Lagos Fernandes Bastos97. Todavia, nesta tese, um redator do Pedro II terá

destaque: Manoel Franco Fernandes Vieira (1821-1880). Nascido em Maranguape, bacharelou-

se pelo curso jurídico de Olinda na turma de 1844. No mesmo ano, foi eleito deputado

provincial. Entre 1856 e 1857, foi presidente da Assembleia Legislativa do Ceará, o maior posto

político conquistado na carreira. Ao longo da vida, ocupou cargos na magistratura, como

promotor público de Quixeramobim, juiz municipal de Ipu e Sobral e juiz de direito em Sobral,

Viçosa e Cabrobó, esta última na província de Pernambuco98.

Em 1862, quando da chegada do cólera ao Ceará, Manoel Franco ocupava o cargo de

inspetor na Inspetoria do Tesouro, chefiando o controle das finanças provinciais. Além disso,

era vice-provedor da Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza. Sobrinho de Miguel Fernandes

Vieira, Manoel Franco era o principal redator do Pedro II, quando se envolveu em ferrenho

atrito com o presidente da província do Ceará, José Bento da Cunha Figueiredo Júnior, tendo o

cólera como mote central. A celeuma entre Manoel Franco e José Bento, resultando na demissão

do primeiro, teve ampla repercussão na imprensa cearense, como mostrará a tese.

Se o Pedro II foi o porta-voz dos conservadores, O Cearense era a folha liberal por

excelência. Em 1840, foi fundado o jornal Vinte três de julho, em alusão à data do golpe da

maioridade. A primeira edição narrava, com minúcias, a posse de José de Alencar na

presidência da província do Ceará, ocorrida a 20 de outubro de 184099. À época, o redator

principal do periódico era o médico José Lourenço de Castro e Silva, de quem falarei ao longo

da tese. A 1 de dezembro de 1841, quando os liberais já não estavam no poder, o jornal foi

rebatizado, passando a chamar-se A Fidelidade100, sob direção de Frederico Pamplona101 e

94 Bacharel pelo Curso Jurídico de Recife, foi deputado geral, por uma legislatura, e provincial por três vezes, tinha

relações próximas com Gonçalo Baptista Vieira (Barão de Aquiraz), membro da família Fernandes Vieira. Foi

ainda deputado federal, após a proclamação da República. STUDART, op. cit., 1913, p. 297. 95 Nasceu em Sobral (1839). Órfão muito cedo, exerceu por anos o ofício de ferreiro. Apadrinhado por Domingos

José Nogueira Jaguaribe (futuro Visconde de Jaguaribe), foi nomeado promotor público de Ipu. Atuou como

advogado em Ipu, Tamboril e Fortaleza. Conservador e monarquista ferrenho, retirou-se do cenário político após

1889. Morreu em 1905. STUDART, op. cit., 1913, p. 284-285; STUDART, op. cit., 1924, p. 81. 96 Nascido em Saboeiro (1838), membro da família Fernandes Vieira, bacharelou-se em direito no Recife, em

1861. STUDART, op. cit., 1910, p. 317-318. 97 Nasceu em 1845. Formou-se em direito na cidade de São Paulo (1865). Foi deputado provincial, por uma

legislatura, e representante cearense na primeira constituinte republicana. Era irmão do também redator Francisco

Paurilo Fernandes Bastos, e cunhado do senador Miguel Fernandes Vieira e do Barão de Aquiraz. STUDART, op.

cit., 1910, p. 347-348; PAIVA, op. cit., 1979, p. 90. 98 STUDART, op. cit., 1913, p. 336. 99 FERNANDES, op. cit., 2006, p. 19. 100 Como dístico, A Fidelidade trazia máxima de Mariano José Pereira da Fonseca, o Marquês de Maricá: “Em

política os remédios brandos agravam frequentemente vezes os males e os tornam incuráveis”. STUDART, op.

cit., 1924, p. 84. 101 Nascido no Aracati (1814), formou-se bacharel pelo curso jurídico de Olinda (1842). Foi deputado provincial,

por uma legislatura. Atuou como promotor público na cidade natal. Na condição de 2º vice-presidente da província,

21

Tristão de Alencar Araripe102. A 4 de outubro de 1846, outra mudança de nome ocorre no

periódico, passando a chamar-se O Cearense, título conservado até 25 de fevereiro de 1891,

quando parou de circular103.

Ao longo dos quase 45 anos de circulação, o jornal “destinado a sustentar as ideias do

Partido Liberal”104, teve como redatores: Frederico Pamplona, Tristão de Alencar, Miguel

Joaquim Ayres do Nascimento105, João Brígido – sobre quem falarei mais à frente –, Antônio

Joaquim Rodrigues Júnior106, Thomaz Pompeu de Souza Brasil Filho107, João Eduardo Torres

Câmara108 e Francisco Barbosa de Paula Pessoa109.

Na tese, um dos redatores d’O Cearense terá destaque: Thomaz Pompeu de Sousa

Brasil. Em 1850, o padre Pompeu tornou-se proprietário e redator d’O Cearense com a saída

do posto de Frederico Pamplona e Miguel Ayres. Thomaz Pompeu, após a morte de José

governou interinamente o Ceará entre agosto e outubro de 1847. Faleceu no Rio de Janeiro (1865), na condição de

deputado geral, cargo para o qual foi eleito em três legislaturas. STUDART, op. cit., 1910, p. 334-335; PAIVA,

op. cit., 1979, p. 104. 102 Tristão de Alencar Araripe era filho de Tristão Gonçalves de Alencar Araripe – presidente revolucionário do

Ceará em 1824 – e sobrinho de José Martiniano de Alencar. Nasceu em Icó (1821), iniciou o curso jurídico em

Olinda e concluiu a formação em São Paulo (1845). Ocupou diversos cargos no Império e República: deputado

provincial numa legislatura e geral em quatro; juiz municipal em Fortaleza (1847); juiz de direito em Bragança,

Pará (1854); chefe de polícia no Espírito Santo (1856) e Pernambuco (1859); juiz especial de comércio no Recife

(1861); desembargador da relação da Bahia (1870); presidente da relação de São Paulo (1874) e da Corte (1875);

presidente das províncias do Rio Grande do Sul (1876) e Pará (1885); ministro do Supremo Tribunal de Justiça

(1886); membro do Supremo Tribunal Federal (1890); e ministro da Justiça e dos negócios interiores do presidente

Deodoro da Fonseca. Entre dezenas de textos históricos publicados ao longo da vida, destaco o livro “História da

Província do Ceará” (1850), tido como um dos marcos fundadores da historiografia cearense. Foi membro do

IHGB, Academia Cearense e Instituto do Ceará. Era oficial da Ordem da Rosa. Faleceu a 3 de julho de 1908.

STUDART, Barão de. Dicionario bio-bibliofraphico cearense. Vol. 3. Fortaleza: Tipografia Minerva de Assis

Bezerra, 2015, p. 159-161. 103 NOBRE, op. cit., 2006, p. 82. 104 O Cearense, n. 1509, 28 jan. 1862, p. 1. 105 Deputado geral em 1848. PAIVA, op. cit., 1979, p. 106. 106 Nasceu em Sobral (1837) e formou-se bacharel em direito no Recife (1857). Foi duas vezes deputado provincial

e cinco vezes deputado geral. Na condição de vice-presidente de província, administrou interinamente o Ceará

(1868). Foi ministro da Guerra no Gabinete chefiado por Lafayette Rodrigues Pereira, em 1883. Faleceu em 1904.

STUDART, op. cit., 1910, p. 102; PAIVA, op. cit., 1979, p. 103. 107 Filho do padre Thomaz Pompeu de Souza Brasil, nasceu em Fortaleza (1852) e bacharelou-se pela academia

de direito do Recife (1872). Foi um dos fundadores da Academia Cearense (1872). Atuou como professor de

Geografia no Liceu de Fortaleza. Foi deputado geral por três legislatura, entre 1878 e 1885. Em 1880, fundou,

junto com João Brígido, o jornal Gazeta do Norte. Em 1889, foi nomeado diretor de instrução pública da província.

Como vice-presidente, governou interinamente o Ceará, entre 1888-1889. Fez parte do Instituto do Ceará, Instituto

Histórico da Bahia e Sociedade de Agricultura do Rio de Janeiro. Publicou diversas obras, entre as quais estudos

sobre irrigação. STUDART, op. cit., 1915, p.146-149; PAIVA, op, cit., 1979, p. 107. 108 Nasceu em 1840. Elegeu-se vereador em Fortaleza e deputado provincial, entre 1878-1879. Foi diretor da

Secretaria de Governo Provincial e diretor-secretário da Junta Comercial. Além d’O Cearense, atuou nos jornais

Gazeta do Norte, Libertador, A República, Echo Juvenil, A Beata, A União Artística e A Lua. Publicou o

“Almanaque da cidade de Fortaleza” (1895) e o “Almanaque administrativo, estatístico, mercantil e industrial do

Estado do Ceará” (1896). STUDART, op. cit., 1910, p. 455-456. 109 Filho do senador do Império Vicente Alves de Paula Pessoa, nasceu em Fortaleza (1853). Bacharel em Direito

pela faculdade do Recife (1877). Foi promotor nas cidades paraenses de Belém e Cachoeira e juiz substituto de

Belém. Elegeu-se deputado provincial em três ocasiões, entre 1878 e 1883. Atuou como procurador dos feitos da

Fazenda Nacional (1884-1890). STUDART, op. cit., 1910, p. 270-271.

22

Martiniano de Alencar, em 1860, ocupou o posto de líder máximo dos liberais no Ceará.

Pompeu nasceu a 6 de julho de 1818, em Santa Quitéria. Em Olinda, cursou o seminário e a

academia de ciências jurídicas, ordenando-se padre (1841) e formando-se bacharel em direito

(1843). Entre 1845 e 1849 foi diretor do Liceu, em Fortaleza, voltando a ocupar a função em

1853. Atuou como deputado provincial, entre 1846-1847, e deputado geral em duas

legislaturas110. Em janeiro de 1864, o Imperador nomeou Pompeu para o Senado, sucedendo na

câmara vitalícia o principal adversário, Miguel Fernandes Vieira, como analisará a parte final

desta tese. Intelectual de vasta produção bibliográfica, teve como obra mais importante o

“Ensaio Estatístico da Província do Ceará”, publicado em dois tomos, entre 1863 e 1864. Era

sócio de diversas instituições: IHGB, institutos históricos de Pernambuco, Bahia e Maranhão e

Sociedade Geográfica de Paris. Morreu a 2 de setembro de 1877111.

Em 1862, O Cearense de Tomaz Pompeu tornou-se um dos principais defensores das

ações do presidente José Bento da Cunha Figueiredo Júnior frente ao cólera, fazendo

contraponto aos ataques lançados pelo diário Pedro II contra o governo provincial. A conjuntura

política nacional também influenciou a postura d’O Cearense, como ficará claro ao longo da

tese. A fortificação de propostas conciliadoras, via “Liga Progressista”, na Corte, em 1862,

abriu brechas para o enfraquecimento dos conservadores no Ceará e para possibilidades de

ganhos políticos aos liberais. O agastamento das relações dos Fernandes Vieira com o

presidente Figueiredo Júnior acabou potencializando o jogo112 dos liberais cearenses, fazendo

de Thomaz Pompeu o maior beneficiado da ocasião.

Ao tempo do recorte da tese, a assinatura d’O Cearense custava dez mil réis, não

havendo distinção de valores para assinantes da capital e interior. Era impresso em quatro

páginas, diagramadas em quatro colunas verticais cada. Em 1862, circulava uma vez por

semana, às terças-feiras, tendo 50 edições no ano. Já em 1863, passou a sair às sextas-feiras.

110 PAIVA, op. cit., 1979, p. 107. 111 STUDART, op. cit., 1915, p. 144. 112 A metáfora do “jogo”, usada ao longo da tese, tem como inspiração as considerações de Pierre Bourdieu, a

respeito da concorrência a marcar, indelevelmente, o campo político. Nessa percepção, os “jogadores” são agentes

em competição: colocados em posições diferenciadas – com distribuição desigual de recursos, ou “capitais” –

agem para preservar ou melhorar suas posições no tabuleiro, tentando antever os lances dos adversários. Os

partidos políticos podem ser lidos como “agentes por excelência desta luta”, ao buscar mobilizar “o maior número

possível de agentes dotados da mesma visão do mundo social e do seu porvir”. Aos jogadores, nada seria mais

exigido que a adesão fundamental ao jogo e as suas regras: “todos os que têm o privilégio de investir no jogo (...),

para não correrem o risco de se verem excluídos do jogo e dos ganhos que nele se adquirem, quer se trate do

simples prazer de jogar, que se trate de todas as vantagens materiais ou simbólicas associadas à posse de um capital

simbólico, aceitam o contrato que está implicado no facto de participar no jogo, de o reconhecer deste modo como

valendo a pena ser jogado, e que os une a todos os outros participantes por uma espécie de conluio originário bem

mais poderoso do que todos os acordos abertos ou secretos”. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa:

Difel, 1989, p. 172-173, grifos no original.

23

Todavia, a partir de 7 de julho, virou bissemanal113, saindo às terças e sextas, totalizando 71

edições no referido ano.

O Araripe também ocupará atenção nesta tese. Impresso na cidade de Crato, circulava

semanalmente, aos sábados. O primeiro número saiu a 7 de julho de 1855 e já no dístico

anunciava claramente a vinculação partidária e objetivos: “O ARARIPE é destinado a sustentar

as ideias livres, proteger a causa da justiça, e propugnar pela fiel observância da Lei, e interesses

locais”114. A impressão dava-se na Tipografia de Monte e Cia., localizada na Rua da Matriz, de

propriedade de José do Monte Furtado, dono de engenho e ligado ao Partido Liberal115.

Produzido no Cariri, região fronteiriça a Pernambuco – funcionando como porta de

entrada no Ceará das revoltas de 1817 e 1824, e palco do combate ao movimento

restauracionista de Pinto Madeira, em 1831 –, O Araripe era porta-voz dos simpatizantes do

Partido Liberal no sul cearense, reunindo proprietários rurais, donos de engenho de rapadura,

comerciantes e profissionais liberais, sempre polemizando com as autoridades do Partido

Conservador no nível local e provincial116.

O Araripe foi o jornal de Crato com maior longevidade no século XIX, circulando entre

1855 e 1865, com algumas interrupções temporárias117. Como os jornais da capital, era

113 O Cearense, n. 1584, 7 jul. 1863, p. 1. 114 O Araripe, n. 1, 7 jul. 1855, p. 1, grifos da fonte. A legenda vinha ao lado do desenho de um índio, com cocar

e saia de plumas, arco numa das mãos e porção de flechas sobre as costas, em alusão aos antigos habitantes da

chapada do Araripe: os índios Cariris. O ícone deixou de ser impresso a partir da edição n. 52, em 12 de julho de

1856. Provavelmente, o conhecimento existente à época sobre o caráter combativo dos Cariris ajude a entender a

escolha do símbolo do semanário. Nos “Apontamentos para a história do Cariri”, João Brígido, redator de O

Araripe, onde a obra foi originalmente publicada, representava os Cariris como “nação em extremo belicosa”,

habitantes da chapada, com “belos regatos, desfrutando um clima temperado, dispondo de inumeráveis frutos

silvestres, que lhes forneciam um alimento rude, mas abundante, tinham amor a seu paraíso, e lutavam de contínuo

contra outras hordas, que o queriam roubar” (BRÍGIDO, João. Apontamentos para a história do Cariri. Typ. da

Gazeta do Norte, 1888, p. 5). Desta forma, ao imprimir o índio na capa, Brígido talvez, quisesse apresentar O

Araripe como um aguerrido defensor da região e dos princípios políticos liberais, tal como os antigos moradores

do Cariri defendiam seu “paraíso”. Por outro lado, a imagem do índio já se associara com as representações da

jovem nação brasileira, graças à ação dos intelectuais do IHGB, da Academia Imperial de Belas-artes e dos literatos

sintonizados com os cânones do romantismo. O próprio Imperador estimulava tais representações, seja por meio

do mecenato junto àquelas instituições ou pelo uso ritualístico de objetos inspirados na cultura indígena, como a

murça do traje imperial, confeccionada com penas de galos-da-serra e de tucanos. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As

barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 141. 115 Em julho de 1856, a iniciativa proprietário de comprar o prelo e instalá-lo no Crato, foi enaltecida em texto

tecendo loas ao propalado papel “civilizador” desempenhado pela imprensa: “De facto a seu nome [do proprietário]

se liga uma reminiscência de generosidade, desinteresse e patriotismo, que o põe ao nível, dos que nesta terra se

fizeram um nome glorioso pelo seu devotamento à causa pública”. O Araripe, n. 51, 05 jul. 1856, p. 3. 116 Tais personagens ambicionavam conquistar maior autonomia política para a região, ao ponto da defesa da

criação da chamada “Província dos Cariris Novos” – que, caso criada, reuniria parte dos sertões do Ceará,

Pernambuco, Paraíba e Piauí, tendo Crato como capital – ter sido uma das reivindicações centrais dos primeiros

anos d’O Araripe. ALEXANDRE, op. cit., 2010, p. 111. 117 Houve períodos de paralisação nas impressões d’O Araripe por problemas técnicos. Em fins de 1859, por

exemplo, a falta de alguns “utensílios indispensáveis”, possivelmente tipos móveis ou outras peças necessárias às

prensas mecânicas, foi a justificativa para “suspender por um ou dois meses” a impressão (O Araripe, n. 206, 26

nov. 1859, p. 4). Levando em conta serem os instrumentos tipográficos adquiridos em Fortaleza e Recife, distantes

24

impresso em quatro páginas por número. Todavia, seus textos eram diagramados em duas

colunas verticais. Comparado ao Pedro II e ao O Cearense – organizados em quatro colunas e

impressos com tipos pequenos –, O Araripe veiculava menos textos por edição. Por outro lado,

a assinatura anual do semanário cratense era bem mais barata em comparação aos congêneres

de Fortaleza: em 1862, custava 5$000 (cinco mil réis)118, metade do valor cobrado pela

assinatura d’O Cearense e quase 1/3 da anuidade do Pedro II para assinantes do interior.

A redação d’O Araripe esteve a cargo de João Brígido dos Santos, considerado “uma

das maiores expressões” do jornalismo cearense entre a segunda metade do século XIX e o

início do XX119. Aos 71 anos de vida, Brígido representou, assim, sua trajetória política:

Devo prevenir ao público que fui sempre liberal. Assim como conservador

vem a ser todo o bicho humano, que subscreve os caprichos do seu tempo,

liberal é todo aquele que não se conforma com eles e dá-lhes pontapés,

reclamando sempre cousa melhor, à sua imagem ou fantasia120.

A orientação partidária do redator deu ao O Araripe caráter militante, envolvendo-se

“em violentas refregas políticas em defesa dos interesses de seu partido”121. Para Ana Carla

Fernandes, Brígido via a imprensa como “válvula para se reparar, sem violência, os abusos das

autoridades, os atos contrários ao interesse público e os desentendimentos de caráter

pessoal”122. Assim, a violência física era substituída pelas agressões impressas do “panfletário

cruel”, como Jáder de Carvalho qualificou João Brígido123.

Nascido na província do Rio de Janeiro, em 1829, Brígido pertencia a uma família

originada de Icó, para onde mudou no ano de 1831. Residiu em diversas outras localidades

cearenses ao longo da vida: São Mateus, Quixeramobim, Crato, Barbalha e Fortaleza. Em parte

desses lugares atuou como professor e, mesmo sem curso superior, advogado, ou rábula,

do Crato mais de quinhentos quilômetros, é fácil deduzir como o concerto ou reposição de peças defeituosas

demandava tempo considerável, resultando na paralisação das prensas até a solução da questão. Eventos

inesperados também afetavam a periodicidade: em 1862, a impressão foi suspensa por quatro meses, devido ao

surto do cólera analisado nesta tese. O impacto da epidemia foi tanta, ao ponto do jornal não circular em 1863.

Quando retornou, em 1864, o editorial afirmou: “A epidemia do cólera, que pesando horrivelmente sobre esta

cidade, trouxe o vácuo a confusão a todas as associações, por tal modo influiu sobre a empresa do Araripe, que

tornou impossível a sua publicação”. O Araripe, n. 295, 16 jan. 1864, p. 1. 118 Em 1856, o custo da edição avulsa d’O Araripe era de $80 (oitenta réis). O periódico deixou de divulgar a

informação a partir do ano de 1858. 119 NOBRE, op. cit., 2006, p. 93. 120 BRÍGIDO, João. Apud. CARVALHO, Jáder de (org.). Antologia de João Brígido. Fortaleza: Terra de Sol,

1969, p. 44. 121 PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1963, p. 151. 122 FERNANDES, op. cit., 2006, p. 44. 123 CARVALHO, op. cit., 1969, p. 20.

25

seguindo os passos do pai, Inácio Brígido dos Santos124. Após deixar Crato, em 1865, escreveu

para diversos órgãos impressos de Fortaleza, inclusive, assumindo a redação d’O Cearense. As

crônicas históricas que redigiu – iniciadas com os “Apontamentos para a história do Cariri”, em

fascículos n’O Araripe – renderam reconhecimento dentro e fora do Ceará: em 1862, tornou-se

sócio correspondente do IHGB125. Foi deputado provincial em duas ocasiões, entre 1864 e 1867,

e geral na legislatura de 1878 a 1881126. Morreu aos 92 anos de idade (1921)127.

Na conjuntura de 1862, João Brígido usou as páginas d’O Araripe, bem como

correspondências enviadas a O Cearense, para criticar o papel de desafetos políticos durante a

crise epidêmica, especialmente autoridades ligadas aos conservadores, acusadas de fugirem das

responsabilidades no tempo do cólera. Foi, ainda, uma das vozes a levantar-se contra o Pedro

II na defesa do presidente da província. Desta forma, o jornal cratense corroborou os usos

políticos da doença naquela ocasião, inclusive para benefício pessoal do redator.

Outro periódico a atuar na seara da politização da epidemia, foi O Commercial. Fundado

em 1853, era propriedade de Francisco Luiz de Vasconcelos, dono de tipografia onde jornais

como O Cearense, O Sol, União Artística, O Cirineu, Imparcial, O Saquarema, entre outros,

foram impressos. Além de possuir a tipografia, Francisco Luiz de Vasconcelos constantemente

ganhava contratos para construção de obras junto ao governo provincial. Faleceu em 1882,

quando ocupava o posto de capitão de polícia em Canindé. No necrológio impresso sobre

Vasconcelos, o jornal conservador A Constituição afirmou: “Era um cidadão estimável: contava

mais de 70 anos, e aderia às ideias liberais”128.

O Commercial teve como principais redatores o padre Carlos Augusto Peixoto de

Alencar129 e Manoel Rufino de Oliveira Jamacaru130. Juvenal Galeno da Costa e Silva131,

124 RIOS, Renato de Mesquita. João Brígido e sua escrita de uma história para o Ceará: narrativa, identidade e

estilo (1859-1919) Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2013, p. 36.

João Brígido explicou o motivo para atuar na advocacia da seguinte forma: “[...] à falta de advogado nos sertões,

para os muitos processos que os caranguejos me forjicavam, entrei para o ofício”. Segundo ele, a decisão rendeu

“muito dinheiro, que queimava em eleições”, comprando votos: “Sempre no fim de uma eleição, os votantes me

deixavam limpos; até parte da roupa tinham conduzido”. BRÍGIDO. Apud. CARVALHO, op. cit., 1969, p. 38-39. 125 Comentando a entrada para o IHGB, João Brígido, afirmou: era “matuto ainda e professor primário, isto aos 33

anos, quando era uma honra muito ambicionada pela gente mais letrada do Brasil”. BRÍGIDO apud. CARVALHO,

op. cit., 1969, p. 126 PAIVA, op. cit., 1979, p. 105. 127 CARVALHO, op. cit., 1969, p. 3. 128 A Constituição, n. 104, 15 nov. 1882, p. 1. 129 Do clã Alencar, foi deputado provincial (1835-1837) e geral três vezes. PAIVA, op. cit., 1979, p. 86. 130 Dirigiu o Colégio de Educandos (Fortaleza) em fins dos anos 1850. Pedro II¸ n. 1701, 18 jul. 1857, p. 2. 131 Nasceu em Fortaleza (1836). Primo de Capistrano de Abreu, Clóvis Bevilaqua e Rodolfo Teófilo, outros

reconhecidos intelectuais cearenses do oitocentos. No Rio de Janeiro, travou amizade com Francisco Paula Brito,

convivendo com literatos e publicando os primeiros poemas na Marmota Fluminense. Antes de regressar ao Ceará,

publicou o livro “Prelúdios” (1856). Foi deputado provincial (1858-1859). Proprietário rural, produzia café na

Serra da Aratanha, onde morou até 1886. Mudando para Fortaleza, exerceu o cargo de bibliotecário público. Foi

26

também atuou no jornal. Há passagem na história d’O Commercial reveladora sobre como os

órgãos de imprensa cearenses sofriam pressões pelas críticas neles veiculadas. Se os redatores

eram, no geral, poupados de atos de violência e perseguição, os tipógrafos, cuja função era

essencial para o funcionamento dos jornais, tornaram-se os alvos principais de reprimendas.

Haja vista a existência de poucas pessoas na província com domínio do ofício, o recrutamento

militar forçado de tipógrafos foi comumente acionado pelas autoridades provinciais para

“impedir a circulação de órgãos oposicionistas”132. Como a tipografia de Francisco Luiz de

Vasconcelos imprimia diversas gazetas, um dos recrutamentos a atingiu. Guilherme Studart, o

primeiro a narrar o caso dos impressores recrutados, afirmou que a circulação d’O Commercial

não foi interrompida na ocasião: a esposa e cunhada de Francisco Luiz de Vasconcelos

assumiram as funções na tipografia133.

Nos primeiros anos de circulação, O Commercial apresentava-se, na capa, como “jornal

dos interesses comerciais, agrícolas e industriais”134. Em 1859, assumiu mais claramente um

posicionamento político, passando a afirmar-se “jornal dos interesses comerciais, agrícolas e

político liberal conciliador”135. No começo dos anos 1860, a assinatura anual do periódico

custava 6$000 (seis mil réis), tinha quatro páginas, diagramadas em três colunas verticais, e

circulava às sextas-feiras.

No ano de 1862, O Commercial foi uma das primeiras folhas a tomar o lado do

presidente José Bento da Cunha Figueiredo Júnior no conflito deste com o Pedro II. A postura

do jornal de Francisco Luiz de Vasconcellos rendeu benefícios: em julho daquele ano, o

empresário ganhou do governo provincial o contrato para publicar o expediente oficial, até

então impresso no Pedro II. Assim, O Commercial mudou de nome, passando a denominar-se

Gazeta Official136. O novo periódico saía duas vezes por semana, nas quartas e sábados.

A vinculação da Gazeta Official com a pessoa do presidente era notória. O Pedro II

chegou a afirmar ter Figueiredo Júnior virado um dos redatores dela137. A simbiose do jornal

de Francisco Luiz de Vasconcelos com o presidente rendeu novas vantagens ao primeiro: a ele

Cavaleiro da Ordem de Cristo. Escreveu diversas obras, sendo pioneiro nos estudos folclóricos no Ceará. Faleceu

em 1931. STUDART, op. cit., 1913, p. 230-235; PAIVA, op. cit., 1979, p. 97. 132 NOBRE, op. cit., 2006, p. 95. 133 STUDART, op. cit., 1924, p. 99. 134 O Commercial, n. 47, 21 fev. 1854, p. 1. 135 O Commercial, n. 354, 1 jul. 1859, p. 1. 136 Gazeta Official, n. p. 1, 16 jul. 1862, p. 1. 137 Pedro II, n. 179, 07 ago. 1862, p, 1

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foram concedidos os contratos de construção do matadouro público de Fortaleza138 e de reforma

do Lazareto da Lagoa Funda, assinados em fins de 1862139.

O último jornal com destaque na tese será O Sol. Autodenominado “jornal literário,

político e crítico”, foi impresso entre 1856 e 1865, nas seguintes oficinas: Tipografia

Brasiliense, Tipografia Brasileira de Paiva e Cia. e Tipografia Americana140. A impressão

esteve a cargo de Manoel Félix Nogueira141. O Sol era propriedade de Pedro Pereira da Silva

Guimarães, também seu redator. Nascido em Aracati (1814), faleceu na capital do Ceará (1876).

Formou-se em ciências jurídicas na academia de Olinda (1837)142, na mesma turma de Miguel

Fernandes Vieira. Retornando ao Ceará, passou a compor o Partido Conservador, escrevendo

no Dezesseis de Dezembro, iniciando profícua carreira na imprensa143.

Para além dos periódicos, Pedro Guimarães atuou como promotor, juiz municipal e de

paz em Fortaleza, bem como exerceu as mesmas funções em Cintra e Vigia, no Pará, nos anos

1840. Foi, ainda, lente de geometria do Liceu de Fortaleza. Na política, os maiores feitos foram

as eleições para cinco legislaturas na Assembleia Provincial e duas deputações gerais144. Como

deputado na Corte, destacou-se por apresentar projeto, na legislatura de 1850-1852, “de

emancipação do ventre escravo, o qual foi rejeitado como uma extravagância e que anos depois

constituiu a lei Rio Branco”145.

No ano 1856, as relações de Pedro Pereira da Silva Guimarães com núcleo do Partido

Conservador no Ceará – liderado pelo ex-colega de faculdade, Miguel Fernandes Vieira,

proprietário do Pedro II – azedaram. Segundo O Cearense, o motivo do agastamento foi a

recusa de apoio à candidatura de Pedro Guimarães a deputado geral em 1856146, primeiro pleito

realizado conforme o sistema distrital. Ele acabou derrotado na eleição. Em novembro daquele

ano, o Pedro II atacou o ex-aliado, acusando-o de, na condição de juiz de paz e presidente da

138 MENEZES, Antonio Bezerra de. Descrição da cidade de Fortaleza. Revista do Instituto do Ceará. Ano IX.

Fortaleza, 1895, p. 186. 139 Gazeta Official, n. 48, 7 jan. 1863, p. 2. 140 STUDART, op. cit., 1924, p. 100. 141 O jornal A Constituição publicou o necrológio do impressor: “No lugar Bajara, sucumbiu no dia 22 do corrente,

o Sr. Manoel Félix Nogueira, um dos artistas tipógrafos mais velhos desta cidade [de Fortaleza] e que há muitos

anos vivia em residência no interior da província, e dedicava-se ao ensino Primário. Contava 70 anos de idade.

Paz a sua alma e pêsames à sua família”. A Constituição, n. 163, 29 set. 1888, p. 2. 142 VASCONCELLOS, Barão de. Pedro Pereira da Silva Guimarães (documentos históricos). Revista do Instituto

do Ceará. Tomo XX. Fortaleza, 1906, p. 187-189. 143 Em 1838, fundou O Popular. A partir de 1841, passou a escrever no Pedro II. No ano de 1946, fundou O

Periquito. Em 1855, escreveu, n’O Commercial, “folhetins muito jocosos”, intitulados “Alforjes”. Por fim, de

1856-1865, esteve à frente d’O Sol. STUDART, op. cit., 1915, p. 42. 144 PAIVA, op. cit., 1979, p. 100. 145 BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario bibliographico Brazileiro. Vol. 7. Rio de Janeiro:

Imprensa Nacional, 1902, p. 62. 146 O Cearense, n. 31, 16 abr. 1876, p. 2. A informação foi publicada em artigo sobre o falecimento de Pedro

Pereira da Silva Guimarães.

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mesa eleitoral de Fortaleza, tentar intervir na eleição para a câmara municipal e juizado de paz,

no intuito de favorecer aliados. Pari passu, Pedro Guimarães tinha encaminhado ofício à

presidência do Ceará denunciando ter sido a urna do pleito violada147.

Destarte, não foi um acaso ter, em setembro de 1856, Pedro Guimarães fundado O Sol:

o periódico marcava a ruptura de seu proprietário com os “carcarás”. A capa do jornal –

encabeçada pela representação de um sol antropomorfo, com rosto sereno e raios luminosos a

espraiarem-se – trazia simbólica epígrafe em latim, cuja tradução aparecia ao lado:

Do cidadão a liberdade

Este celeste Tesouro

Não usurpam os mandões

Não se vende a peso de ouro148.

Quando da epidemia do cólera no Ceará, O Sol era reconhecido como jornal liberal149,

apesar de não se anunciar assim na capa, como faziam O Cearense, O Commercial e O Araripe.

O Sol circulava aos domingos. Tinha quatro páginas, diagramadas em duas colunas verticais, e

a assinatura quadrimestral custava 2$000 (dois mil réis). Tendo em vista o rompimento de Pedro

Pereira da Silva Guimarães com os “carcarás” do Pedro II, em 1856, o cólera também foi

politizado nas páginas d’O Sol. O semanário aliou-se aos jornais liberais – O Cearense, O

Araripe e O Commercial – na detração à política editorial do Pedro II, sob redação de Manoel

Franco Fernandes Vieira. Assim, assumiu a defesa da presidência de Figueiredo Júnior e de

suas ações frente à crise epidêmica, contestando a isenção e imparcialidade da folha

conservadora do Ceará. Por outro lado, O Sol também usou a epidemia para defender

recompensas a personalidades do agrado da redação, ou que, naquela conjuntura, estavam em

atrito com os Fernandes Vieira, como ocorreu na eleição ao senado em 1863.

Além dos cinco jornais apresentados, outros periódicos brasileiros serão usados,

pontualmente, ao longo da tese, no intuito de oferecer maiores esclarecimentos a questões

147 Pedro II, n. 1634, 22 nov. 1856, p. 3-4. 148 O Sol, n. 5, 16 set. 1856, p. 1. Ao dotar O Sol de linha editorial crítica, sarcástica e implacável com os inimigos,

Pedro Guimarães não deixou de sofrer sério revés. Segundo Geraldo Nobre, o redator, em 1864, foi “condenado a

oito meses de prisão, por calúnias impressas contra a Câmara Municipal de Fortaleza”. Com a posse de novos

vereadores, no início de 1865, a instituição retirou o processo. Todavia, a desistência da ação não foi gratuita,

tendo sério ônus: “o ardoroso jornalista teve que suspender” a circulação d’O Sol. NOBRE, op. cit., 2006, p. 103. 149 Em ofício enviado ao Marquês de Olinda, o presidente Figueiredo Júnior incluía O Sol entre os jornais liberais

que apoiavam seu governo na briga contra o Pedro II: “A prova disto é que bem longe de poder alegar em seu

favor uma só concessão indevida de minha parte, o partido liberal não se mostra descontente, ao pano que todos

os homens que conheço do partido conservador, à exceção dos Vieiras e seus aderentes, não cessam de dar-me as

provas mais significativas de adesão, como se vê das folhas que se publicam nesta cidade e no interior da Província.

O ‘Cearense’, o ‘Sol’, o ‘Artista’, o ‘Araripe’, o ‘Jornal do Icó’ e o ‘Aracaty’ são liberais”. ANRJ. Ofício

confidencial. 11 out. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

29

específicas do recorte temático e temporal ou sobre indivíduos citados no texto. Os jornais

também servirão para visualização da circulação das notícias entre o Ceará e demais províncias

entre 1862 e 1863.

Ao tomar a imprensa como fonte central da pesquisa, acompanho tendência comum em

grande parte dos estudos dedicados ao cólera, no Brasil e no mundo. Para Nikelen Witter, a

maioria dos estudos sobre o cólera no século XIX, utilizou como fonte de pesquisa os artigos

publicados em jornais da época150. As pesquisas sobre o cólera no Ceará corroboram a

afirmação. Estudando a veiculação dos temas saúde e doença na imprensa cearense, da segunda

metade do século XIX, Francisco Carlos Jacinto Barbosa afirmou terem eles ganhado as páginas

dos jornais da província a partir da década de 1850, “virando notícia” devido ao estourar de

grandes epidemias de febre amarela, varíola e cólera151.

Tratando do cólera na América Latina, James Trostle, afirmou: “Surtos de doenças

quase sempre merecem a atenção dos jornais e são temas de grande preocupação do público.

Este, por sinal, lê muitas histórias sensacionalistas de doenças e heroísmos, reais e imaginários”.

Para os pesquisadores, portanto, a imprensa torna-se interessante fonte para a compreensão

cultural do fenômeno epidêmico: “Os surtos e as notícias que eles originam também dão ao

público uma chance de ver a cultura sendo criada e transmitida [...]”152.

Além das fontes impressas, um conjunto de documentos manuscritos ocupará parte

importante da tese: a correspondência ativa da presidência da província do Ceará com o

Ministério dos Negócios do Império, então chefiado pelo Marquês de Olinda. Tais documentos

integram os acervos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro. São fontes riquíssimas a elucidar várias questões a respeito dos conflitos

políticos vindos à tona quando da epidemia. Apontam, ainda, para os bastidores das relações

políticas entre o Ceará e a Corte. Nestes termos, as fontes manuscritas usadas na tese não só

ampliam a compreensão do que foi publicado na imprensa cearense, como também trazem

elementos novos para a compreensão dos jogos políticos entre 1862 e 1863.

Documentos manuscritos e impressos de outras instituições, como Biblioteca Nacional

do Rio de Janeiro, Departamento Histórico Diocesano Padre Antônio Gomes de Araújo do

Crato, Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco e Instituto Cultural do

Cariri, também aparecerão ao longo da tese.

150 WITTER, op. cit., 2007, p. 57. 151 BARBOSA, Francisco Carlos Jacinto. As doenças viram notícia: imprensa e epidemias na segunda metade do

século XIX. In. NASCIMENTO, Dilene Raimundo do & CARVALHO, Diana Maul de (Orgs.). Uma história

brasileira das doenças. Brasília: Paralelo 15, 2004, p. 76-90. 152 TROSTLE, James A. Epidemiologia e cultura. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013, p. 127-128.

30

Uma última informação sobre as fontes: nas citações presentes na tese, optei por

atualizar a ortografia, mantendo a pontuação original, como forma de tornar a leitura mais

dinâmica e acessível aos leitores

Estrutura da tese

A tese está organizada em quatro capítulos. No primeiro, intitulado “A conjuntura

política e epidêmica”, os objetivos centrais são: oferecer um panorama geral sobre a política

Imperial no começo dos anos 1860, demonstrando as especificidades político-partidárias do

período, especialmente a respeito da chamada “Liga Progressista”; discorrer sobre a

administração provincial e a formação dos partidos no Ceará, de modo a melhor contextualizar

as disputas locais e a relação com as questões gestadas na Corte; e expor os efeitos traumáticos

do cólera sobre o cotidiano do Ceará de 1862, a fazerem da epidemia o assunto mais relevante

nas disputas políticas daquele ano.

No segundo capítulo, de título “Presidir na epidemia: o governo da província e o cólera

no Ceará”, evidencio como a doença repercutiu na administração do Presidente da Província do

Ceará, José Bento da Cunha Figueiredo Júnior, tomando como objeto central a cobertura dada

pelo Pedro II ao cólera, assumindo o posto de opositor máximo ao chefe do executivo cearense

e os motivos particulares por trás da ofensiva. Analiso, ainda, a ação de quatro jornais (O

Cearense, Gazeta Official, O Araripe e O Sol) que fizeram das suas páginas o espaço de defesa

do presidente e de exaltação das suas ações no socorro às localidades vitimadas pelo cólera,

como forma de confrontar o Pedro II e buscar benesses junto ao governo provincial. A reação

do presidente às acusações de ter sido irresponsável no socorro aos vitimados pela epidemia

também é analisada no capítulo, tendo como base a correspondência oficial e privada do mesmo

com o Marquês de Olinda, então Presidente do Gabinete de Ministros e Ministro dos Negócios

do Império. Por fim, aponto para como as polêmicas veiculadas pela imprensa, a respeito da

epidemia, não deixaram de causar desconfianças na Corte, ao ponto da exoneração do

presidente do Ceará ter sido ventilada pelas maiores autoridades do Império.

O capítulo “Autoridades policiais, comissões de socorros e disputas no tempo do

cólera” aprofunda a discussão sobre os usos políticos da epidemia, ao demonstrar como a ação

de delegados foi alvo de elogios ou críticas na imprensa, sendo tratados de acordo com as

afinidades político-partidárias de cada órgão. O capítulo trata, ainda, das comissões de socorro

montadas nas localidades da província, por determinação da Presidência do Ceará, para prestar

assistência durante a epidemia. Na maioria das vezes, o presidente compunha as comissões a

31

partir da nomeação de autoridades residentes nas localidades, proprietários rurais,

comerciantes, médicos etc. Ter o nome indicado para tais juntas denotava status, prestígio

social e oportunidades políticas. Por isso, a ação dos comissionados também obteve amplo

destaque na imprensa.

O quarto capítulo, intitulado “À espera dos prêmios: o pós-cólera no Ceará”, analisa as

expectativas das pessoas que teriam se destacado pelos serviços prestados durante a epidemia,

indicando o papel do presidente da província na definição dos possíveis agraciados com ordens

honoríficas. Não por acaso, entre os indicados, Figueiredo Júnior tratou de incluir indivíduos

que usaram a imprensa para defender o governo provincial dos ataques do Pedro II. O último

tópico do capítulo centra-se na observação do cenário político do Ceará em 1863, reconfigurado

devido a fatores externos e internos. A eleição ao Senado naquele ano é usada para exemplificar

como os rearranjos políticos, ocorridos durante a epidemia do cólera e por conta das mudanças

políticas promovidas pela Corte, levaram os liberais cearenses a uma nova posição na província.

Coincidentemente, ou não, o segmento partidário a contrapor-se ao presidente José Bento da

Cunha Figueiredo Júnior durante a epidemia – os Fernandes Vieira, conservadores, donos do

Pedro II – foi o maior derrotado da conjuntura.

Adendo introdutório

A escrita desta tese estava, praticamente, terminada quando uma pandemia atingiu o

mundo. Com minhas ideias postas na pesquisa sobre o cólera no Ceará do oitocentos, vi-me

acompanhando como a Covid-19 também tem sido apropriada politicamente em 2020. No

Brasil, a politização da pandemia é notória: a negação pertinaz da gravidade da crise; os choques

entre autoridades federais, estaduais e municipais; as pressões econômicas sobre o isolamento

social e o afrouxamento do mesmo; os processos de impeachment envolvendo governadores

acusados de desviar recursos da saúde; as propagandas oficiais sobre remédios que prometem

ser panaceias, mas não têm validade científica; a tomada do Ministério da Saúde por militares;

o debate sobre o adiamento das eleições municipais; os efeitos das políticas de socorro sobre a

popularidade de governantes; a celeuma a respeito das vacinas; os choques entre as notícias da

imprensa e as fake News; a busca por favorecimentos pessoais e políticos em meio à crise

humanitária. Muitos outros exemplos podiam ser dados. Guardadas as especificidades, no

tempo e espaço, de cada epidemia, a minha tese acabou ganhando uma atualidade inesperada.

Espero que ela possa contribuir, minimamente, para a compreensão de como os eventos

epidêmicos e a política se ligam de forma intensa e complexa.

32

CAPÍTULO 1 - A CONJUNTURA POLÍTICA E EPIDÊMICA

Em início de maio de 1862, José Bento da Cunha Figueiredo Júnior (1833-1885)

desembarcou no porto de Fortaleza, tomando posse no cargo de Presidente da Província do

Ceará no dia 5 do referido mês153. Bacharel pela Faculdade de Direito do Recife, formado na

turma de 1855, assumia, pela segunda vez, o posto máximo do executivo provincial: entre 1860

e 1861, governou o Rio Grande do Norte. Na carreira política, ocuparia, ainda, as presidências

de duas outras províncias: Alagoas (1868-1871) – onde foi um dos fundadores do Instituto

Arqueológico e Geográfico Alagoano154 – e Maranhão (1872). Como deputado geral, por

Pernambuco, seria eleito para duas legislaturas, em 1872-1875 e 1878155, sendo a última

dissolvida durante a primeira sessão.

Como era comum entre as elites políticas imperiais, o jovem bacharel seguia os passos

do pai, José Bento da Cunha Figueiredo (1808-1891), de vasto currículo: doutor em direito pelo

curso jurídico de Olinda, onde tornou-se professor; membro do Partido Conservador, foi

presidente das províncias de Alagoas (1849-1853), Pernambuco (1853-1856), Minas Gerais

(1861-1862) e Pará (1868-1869); deputado e senador; Conselheiro do Estado; e Ministro dos

Negócios do Império, no Gabinete de 25 de junho de 1875, liderado por Caxias156. Por seus

serviços políticos, foi agraciado como grande dignitário da Ordem da Rosa e com o título de

Visconde do Bom Conselho, no ano de 1888157.

Tratando da política, Bourdieu afirmou: a não posse dos meios de produção políticos

entre a maioria que compõe uma sociedade é correlata ou consecutiva à concentração desses

meios nas mãos de profissionais com competências específicas necessárias ao jogo político. A

posse das competências define as probabilidades, ou não, de sucesso no jogo158. Bacharel e

153 ANRJ. Ofício s/n. 5 mai.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 154 Durante a estada enquanto presidente de Alagoas, organizou viagens de reconhecimento ao interior da

província. As expedições produziram relatórios – redigidos pelos secretários Olímpio Euzébio de Arroxelas

Galvão e José Antônio de Magalhães Bastos – e fotografias – de autoria de Abílio Coutinho – de relevante valor

documental para a história de Alagoas. Posteriormente, o material foi publicado na forma de livro. Ver:

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE ALAGOAS. Viagens do Excelentíssimo Senhor Doutor José

Bento da Cunha Figueiredo Júnior a cidade de São Miguel e vila de Coruripe, as comarcas de Camaragibe e

Porto Calvo, Penedo e Mata Grande, ao Rio São Francisco até Piranhas e as comarcas de Imperatriz, Anadia e

Atalaia. Maceió-AL: Grafmarques, 2010. 155 BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário bibliográfico brasileiro. Vol. 4. Rio de Janeiro:

Imprensa Nacional, 1898, p. 337; JAVARI, Barão de. Organizações e programas ministeriais. Rio de Janeiro:

Imprensa Nacional, 1889, p. 355-362. 156 JAVARI, op. cit., 1889, p. 171. 157 BLAKE, op. cit., 1898, p. 336. 158 BOURDIEU, op. cit., 1989, p. 169.

33

filho de personalidade com relações estabelecidas na Corte, José Bento da Cunha Figueiredo

Júnior possuía alguns dotes consideráveis para os que ambicionavam seguir no jogo da política

oitocentista. A educação superior, mormente na área do direito, era importante elemento

unificador da elite política imperial: os formados nos cursos jurídicos assumiram dois terços

das vagas de senadores e ministros durante o Império159. Os bacharéis formados em Coimbra,

base da administração portuguesa e de suas colônias, cumpriram papel central nos lances da

Independência, Primeiro Reinado e Regências, sendo acompanhados, por novas gerações

advindas dos cursos jurídicos criados em Pernambuco e São Paulo, em 1827. Formando uma

“ilha de letrados em um mar de analfabetos”160, as gerações de bacharéis atuaram no longo e

conflituoso processo de construção do Estado brasileiro. Pari passu, disputaram intensamente

os cargos na administração pública – especialmente os da magistratura –, bem como os postos

no legislativo e executivo. Nesta disputa, largavam na frente os bacharéis nascidos no seio de

lares abastados com laços familiares, econômicos e políticos estabelecidos em diferentes níveis

nas províncias e na Corte, o que ajuda a entender a ascensão de Figueiredo Júnior.

Seus 29 anos de idade, quando da nomeação para a presidência do Ceará, denotam como

subiu cedo na carreira, alavancada, certamente, pela influência paterna. Formado em 1855,

Figueiredo Júnior assumiu a administração do Rio Grande do Norte apenas cinco anos depois.

O curto intervalo entre a formação superior e a posse no cargo do executivo provincial fica mais

evidente quando se considera que a média de idade dos presidentes de província, na década de

1860, foi de 41 anos161. A primeira nomeação como mandatário provincial de um político

ocorria, geralmente, por volta dos 37 anos. A maior parte dos neófitos eram encaminhados para

províncias pequenas, como Piauí, Alagoas, Rio Grande do Norte, Ceará, entre outras. Quanto

mais importante política e economicamente fosse a província, maior era a faixa etária do

presidente: a média de Pernambuco e Pará, girava entre 42 e 43 anos; Rio de Janeiro e Minas

Gerais, 46; cabendo à Bahia a média de 47 anos162, maior registrada na história do Império163.

159 BARMAN, Roderick J. A formação dos grupos dirigentes políticos do Segundo Reinado: a aplicação da

prosopografia e dos métodos quantitativos à história do Brasil Imperial. Anais do Congresso de História do 2º

Reinado (1975) - Comissão de História Política e Administrativa. Vol. 2. Rio de Janeiro: IGHB, 1984, p. 62. 160 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem/Teatro de Sombras. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2008, p. 65. 161 BARMAN, op. cit., 1984, p. 69. 162 Idem, p. 69-70. 163 O caso baiano, provavelmente, pode ser explicado pela proeminência dos políticos daquela província no

governo central: dos 36 ministérios estabelecidos entre 1840 e 1889, apenas 5 não tinham representantes baianos.

Outro indício da força dos políticos da província está no número de vezes que baianos ocuparam a presidência do

conselho de ministros: 11 vezes num total de 29 gabinetes. Como os presidentes eram nomeados pelos gabinetes,

fica patente a preferências por políticos mais experientes para ocupar o executivo provincial com sede em Salvador.

Ver: CARVALHO, op. cit., p. 218-219.

34

Era de praxe, ainda, salvo raras exceções, que nas províncias relevantes os nomeados fossem

políticos mais experimentados, de preferência parlamentares da câmara temporária164.

Destarte, as nomeações de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior como presidente de

província ocorreram relativamente cedo. Malgrado isto, foram circunscritas espacialmente a

quatro províncias de menor projeção política, todas localizadas no norte do Império. Em

Pernambuco e Minas Gerais – não por acaso províncias em que o pai foi presidente – ocupou

apenas o cargo de secretário de governo165. Temporalmente, as experiências de Figueiredo

Júnior no cargo de presidente de província foram anteriores à primeira eleição dele para a

câmara provisória, em 1872, aos 39 anos. A presidência de uma província era mais cargo

político que administrativo. Além do bom salário e experiências administrativas, dava ao

presidente a oportunidade de acelerar a carreira, mediante a possibilidade de eleição para a

Câmara Geral, que poderia facilitar aspirações maiores, como vagas nos ministérios e

Senado166.

Após deixar o posto de deputado, com a dissolução da Câmara de 1878, Figueiredo

Júnior não governou mais nenhuma província, nem ascendeu em cargos políticos e legislativos.

Fora dos postos mais vistosos do parlamento e executivo, e por isso melhor documentados,

torna-se mais difícil mapear sua trajetória. No entanto, através de notas divulgadas na imprensa

é possível confirmar que entre os anos de 1878 e 1885, ele ocupou colocações burocráticas na

Secretaria de Estado da Justiça, chegando à diretoria geral dela167. José Bento da Cunha

Figueiredo Júnior possuía, portanto, cargo a lhe garantir relação direta com o Ministro da

Justiça, personagem estratégica da engrenagem imperial, tendo em vista o centralismo judicial

e policial do Segundo Reinado, com repercussão direta em todas as províncias. Além disso, ao

longo da vida pública, Figueiredo Júnior granjeara honrarias muito ambicionadas pela

sociedade imperial: o título de conselheiro do Imperador168, o hábito de cavaleiro da Ordem de

Cristo e a dignidade de comendador da Ordem da Rosa.

A proximidade com o poder e as distinções auferidas anunciavam mais oportunidades

de ascensão, não fosse o imprevisto a marcar, indelevelmente, a existência humana: aos 52

164 CÂNDIDO, Antônio. Um funcionário da monarquia: ensaio sobre o segundo escalão. 2ª ed. Rio de Janeiro:

Ouro Sobre o Azul, 2007, p. 43. 165 Jornal do Commercio, n. 216, 4 ago. 1885, p. 2. 166 CARVALHO, op. cit., 2008, p. 123. 167Jornal do Recife, n. 52, 3 de março de 1878, p. 1; Diário de Pernambuco, n. 249, 28 out. 1884, p. 1. 168 Conforme explica Antônio Cândido, o título de conselheiro em questão não deve ser confundido com o do

Conselho de Estado. O último era restritíssimo, composto apenas por doze membros, com mesmo número de

suplentes, exercendo funções efetivas no assessoramento do Imperador, como, por exemplo, na tomada de decisão

sobre exoneração de ministro e dissolução da câmara. O título de conselheiro dado a Figueiredo Júnior era

puramente honorífico, distribuído, no geral, para homens que tivessem ocupado as funções de juízes do supremo

tribunal de justiça, ministros de Estado, bispos, presidentes de províncias etc. CÂNDIDO, op. cit., 2007, p. 36.

35

anos, pelas 5 horas da manhã do dia 3 de agosto de 1885, faleceu Figueiredo Júnior, na cidade

de Lorena169. Não há indicação do que fazia no interior de São Paulo, fora da Corte, onde

exercia a chefia da secretaria do Ministério da Justiça. Chegada a notícia, o ministro suspendeu

os trabalhos e oito dias de luto foram decretados pelos empregados da repartição. A partir do

anúncio da missa de sétimo dia, sabe-se ter morrido sem possuir esposa ou filhos, deixando o

genitor, irmã e cunhado enlutados170.

Na referida missa, celebrada na Matriz do Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro,

houve mostras do prestígio alcançado pelo morto e seus familiares. Estiveram presentes: “o

Presidente do conselho de ministros [José Antônio Saraiva], os ministros da Justiça [Afonso

Augusto Moreira Pena] e da Marinha [Luís Felipe de Sousa Leão], grande número de senadores,

deputados, membros do supremo tribunal de justiça, magistrados de 1ª instância, outros

funcionários civis e militares e pessoas gradas, acompanhadas de suas famílias”171. Os ritos

fúnebres refletiam, assim, o espaço social ocupado pela família do finado.

Mas, quando em 5 de maio de 1862, José Bento da Cunha Figueiredo Júnior assumiu a

presidência do Ceará, bem longe estava da campa: era jovem, tinha boas relações e apenas

iniciava a carreira. Na trajetória política dele, 1862 mostrou-se desafio não muito fácil. No

cenário nacional, o ano foi agitado. A instabilidade rondava as relações entre o parlamento e o

poder executivo, e, em curto espaço de tempo, deu-se sucessão atabalhoada de dois gabinetes.

Tais conflitos não deixariam de se refletir nas disputas do Ceará, agravadas pelas cenas

catastróficas do cólera, nas quais o presidente ocupava espaço estratégico. Como chefe do

executivo, tinha função de coordenar os socorros, prestando conta, ao ministério sobre as

decisões administrativas tomadas durante a crise, em meio ao número assombroso de mortes

por todo Ceará. Os usos políticos da doença colocavam a presidência em situação delicada,

sendo alvo de disputa entre jornais de matizes conservadoras e liberais.

Neste capítulo, farei apanhado da conjuntura política nacional entre os anos 1850 e

começo de 1860 e de seu reflexo no Ceará, apontando as condições nas quais José Bento da

Cunha Figueiredo Júnior foi alçado ao cargo de presidente da província. No último tópico,

apresento o cenário epidêmico, demonstrando as cenas de desespero protagonizadas pela

população acossada pela ameaça coletiva de morte. A visualização dos efeitos do cólera sobre

o Ceará será fundamental para a compreensão de como a epidemia foi alçada ao cume dos

debates políticos provinciais, marcando, indelevelmente, o governo de Figueiredo Júnior.

169 Jornal do Commercio, n. 216, 4 ago. 1885, p. 2. 170 Jornal do Commercio, n. 221, 10 ago. 1885, p. 5 171 Jornal do Commercio, n. 222, 11 ago. 1885, p. 2.

36

1.1 - A política nacional entre a Conciliação e a Liga

A instabilidade política de 1862 não foi ponto fora da curva na trajetória do Segundo

Reinado. Para Sérgio Buarque de Holanda, a estabilidade administrativa foi exceção, tendo em

vista os “abalos causados insistentemente no país pela rotação caprichosa dos Governos, com

o cortejo necessário das demissões ou remoções em massa de empregados públicos”, pondo por

terra projetos e ações que não dessem resultados imediatos. Os presidentes de província eram

exemplos claros disto: nomeados na Corte, passavam curtas temporadas no cargo, muitas vezes

abarcando apenas o tempo necessário para favorecer as orientações partidárias do gabinete no

poder. Usavam as nomeações para os cargos policiais e postos da Guarda Nacional, o

recrutamento forçado, bem como a sinalização positiva sobre as pretensões de aliados nas

cidades e vilas, como forma de afastar opositores e garantir resultados eleitorais alvissareiros

para o grupo político a que serviam172.

No panorama de inconstância, uma peça importante do jogo político atuava sem abalos:

o Poder Moderador. A ingerência ativa do Imperador nos rumos do governo foi marco do

processo de centralização promovido no pós-maioridade, sendo que ao longo dos anos tornou-

se alvo de contestação e desgaste crescentes do regime. Conforme, Sérgio Buarque de Holanda,

a Constituição “real e legal” não vedava ao Chefe do Estado a participação no jogo partidário,

afinal, garantia ao soberano “nomear e demitir livremente ministros”, bem como dissolver a

“Câmara dos Deputados, nos casos, em que exigir a salvação do Estado”, convocando, na

sequência, nova eleição173. Todavia, argumenta: as convenções políticas, fortemente presentes

nos debates parlamentares, instituíram uma “constituição não escrita” ou “invisível”, com falsos

traços de parlamentarismo inglês, não presentes no texto da carta outorgada em 1824174.

Pedro II usava de forma nada parcimoniosa suas prerrogativas. Se, ao menos abertamente,

não podia tomar lado político, pois o poder privativo pairava acima dos partidos, e buscasse,

em algumas ocasiões, inspiração em códigos do parlamentarismo inglês, na prática, não

aceitava que lhe restringissem à posição de “mero espectador dos acontecimentos”, como

sinalizavam alguns políticos liberais. Como chefe do executivo, apetecia “ser mesmo o supremo

inspetor da coisa pública”175.

172 HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Brasil Monárquico: do Império à República 10ª ed. Rio de Janeiro, 2012

(História Geral da Civilização Brasileira t.2, v.7), p. 15. 173 NOGUEIRA, Octávio (Org.). 1824. Coleção Constituições Brasileiras. Vol. 1. 3ª ed. Brasília: Coordenação de

Edições Técnicas/Senado Federal, 2015, p. 76. 174 HOLANDA, op. cit., 2012, p. 28-29. 175 Idem, p. 22.

37

Demonstrando aversão às proposições políticas extremadas, sendo “mais inclinado a

cordura do que a afoitezas”176, Pedro II resolvia, ao menos temporariamente, melindres

manobrando na composição dos ministérios e no uso da dissolução da câmara dos deputados.

Liberais e Conservadores esperavam o momento conveniente de ver o dedo do soberano ser

apontado para si: “Podiam, sim, reclamar contra uma interpretação abusiva da Carta de 24, mas

só o haviam de fazer quando relegados à oposição”177. Por meio da escolha do presidente do

Conselho de Ministros, criado em 1847, elemento da fachada parlamentarista, o Imperador

encetava o revezamento dos partidos, com consequências estendidas pelo território nacional.

O período compreendido entre os anos 1850 e 1860 abrange capítulo interessante da

política imperial, no qual foram experimentadas medidas para minorar as tensões e disputas

entre as “parcialidades”178. O fim da década de 1840 foi marcado pela predominância dos

“saquaremas”. Para Ilmar Rohloff de Mattos, ao redor de um grupo de proprietários rurais da

província do Rio de Janeiro, que se afirmou enquanto classe dirigente ao longo do final das

Regências, encetou-se a hegemonia política entre os conservadores, obtendo ressonância pelo

território imperial, sacodido por revoltas políticas e sociais. Por meio da busca do consenso e,

primordialmente, pelo uso da força, tal grupo conseguiu atrair os liberais para o princípio da

“ordem e civilização” que ajuizavam ser o modelo adequado para o Império brasileiro. Para

Mattos, estabeleceu-se, assim, um “tempo saquarema”, entre o fim das Regências e o começo

dos anos 1860, quando houve a consolidação do Estado sobre a orientação dos

conservadores179.

Com o fracasso das revoltas “luzias”, nas quais alguns dos proprietários rurais mais ricos

de Minas Gerais e São Paulo rebelaram-se por conta da dissolução da câmara liberal de 1842,

e com o desbaratar da Praieira, em Pernambuco, no ano de 1848, os “saquaremas” formaram

governos em que tinham o apoio pleno do Conselho de Estado e da câmara, formada

176 HOLANDA, op. cit., 2012, p. 29. 177 Idem, p. 29. 178 O termo “parcialidade” era usado, comumente, nas fontes da época para tratar dos partidos políticos. Entre os

sentidos da palavra “partido”, Raphael Bluteau indicava: “parcialidade, facção”; “Lançar-se ou acoitar-se ao

partido de alguém”; e “Seguir o partido, ou as partes de alguém”. Já para “parcialidade”, o dicionarista apresentava

as acepções: “Bando”; “Empenho em seguir as partes de alguém”; e “Partido”. Portanto, a expressão

“parcialidade”, usada ao longo da tese, funcionará como sinônimo de “partido”. Ver: BLUTEAU, Rafael.

Vocabulario portuguez, e latino, aulico, anatomico, architectonico, bellico, botanico ...: autorizado com exemplos

dos melhores escritores portuguezes, e latinos; e offerecido a El Rey de Portugal D. Joaõ V. Coimbra, Collegio

das Artes da Companhia de Jesus: Lisboa, Officina de Pascoal da Sylva, 1728. Disponível no site:

https://www.bbm.usp.br/pt-br/dicionarios/. Último acesso a 18 out. 2019. 179 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do Estado Imperial. 6ª ed. São Paulo: Hucitec

Editora, 2011, p. 296.

38

hegemonicamente por deputados conservadores180. Assim, tiveram condições de terminar a

obra do Regresso, aprovando medidas – como a reforma da Guarda Nacional, de 1850, colocada

sob controle do governo central, dando ao ministro da Justiça o poder para nomear o oficialato,

entre outras mudanças – que restabeleceram o centralismo solapado, consideravelmente, pelas

reformas regenciais. Outros marcos do período foram a extinção do tráfico atlântico de

escravos, a Lei de Terras e o Código Comercial do Império, promulgados no ano de 1850.

Principiado o decênio de cinquenta, o tirocínio político apontava para a conveniência de

mudanças na organização da política nacional. Não havia como alijar totalmente os liberais do

poder, haja vista que entre eles estavam grandes proprietários rurais com relações fortemente

estabelecidas em suas províncias. Insistir na manutenção dos mesmos fora dos espaços de

representação era abrir brechas para novas revoltas a curto ou médio prazo, ameaçando o

sistema político vigente181. Diante desse pano de fundo, era necessário alguma “autoridade

política e moral”182 para tomar a liderança e emergir a Conciliação.

O Gabinete de 6 de setembro de 1853 é o símbolo maior da conjuntura, liderado pelo

conservador Honório Hermeto Carneiro Leão, Marquês de Paraná, que governou Pernambuco

após a Praieira, na qual facções das elites locais municiaram-se de “armas para derrubar um

governo provincial e tentar impor a vontade do grupo sobre os interesses políticos mais amplos

do governo Imperial”183. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, a personalidade de Paraná tinha

as virtudes e defeitos – sendo conhecida por sua poderosa vontade, despertando deferência e

temor – adequados para encabeçar o movimento da Conciliação184. Para além da força como

180 Na opinião de Jeffrey D. Needell, o período de 1848 a 1853 seria o ponto culminante do “Partido da Ordem”,

como os conservadores também eram conhecidos. A diminuta oposição aos mesmos era geralmente chamada de

“luzia”, referência irônica a um dos principais espaços das revoltas de 1842, quando os liberais foram derrotados

por Caxias na cidade de Santa Luzia, Minas Gerais. Desta forma, as identidades dos dois partidos, que foram sendo

gestadas ao longo das lutas regenciais, se consolidaram ao longo dos anos 1840, na corte e em várias províncias,

entre o chamado “quinquênio liberal” (1844-1848) e os gabinetes dominados pelos “saquaremas” (1848-1853).

Nesta conjuntura, as denominações Partido Conservador e Partido Liberal foram assumindo o lugar de outras.

NEEDELL, Jeffrey D. Formação dos partidos políticos no Brasil da Regência à Conciliação, 1831-1857. Almanack

Braziliense. São Paulo, n.10, p. 5-22, nov. 2009 a. 181 CARVALHO, op. cit., 2008, p. 398; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de história do Império. São

Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 44. 182 ESTEFANES, Bruno Fabris. Conciliar o Império: Honório Hermeto Carneiro Leão, os partidos e a política de

Conciliação no Brasil monárquico (1842-1856). Dissertação (Mestrado em História). Universidade de São Paulo,

São Paulo, 2010, p. 167. 183 CARVALHO, Marcus J. M. de. Movimento Sociais: Pernambuco (1831-1848). In. GRINBERG, Keila;

SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 175. 184 A execução do projeto do Marquês de Paraná também foi possível por ocorrer numa conjuntura livre de grandes

abalos, em que as cicatrizes abertas por revoltas da década anterior se fechavam. Na economia, um fluxo de capitais

fora liberado por conta do fim do tráfico atlântico de escravos, dinamizando empreendimentos modernizadores -

como os de Irineu Evangelista de Sousa, futuro Visconde de Mauá -, e a produção cafeeira se expandia. Havia,

ainda, tranquilidade na política internacional, com a diminuição das tensões com a Inglaterra e arrefecimento dos

conflitos no Prata. Ver: HOLANDA, op. cit., 2010, p. 46.

39

político, Paraná – “o braço mais forte que a nossa política produziu”, na opinião de Joaquim

Nabuco185 – tinha o maior aliado de todos: o Imperador. Em correspondência privada, Pedro II

gabou-se de todos os ministros do gabinete de 1853 serem seus conhecidos, alguns quase

íntimos, além de talentosos e bons oradores. Com esses dotes, deixava claro a expectativa sobre

eles: “espero que desempenhem com habilidade o meu programa”186.

À frente de gabinete, a mesclar conservadores moderados e liberais históricos, Paraná

empenhou-se pessoalmente em aprovar uma reforma eleitoral. Os elementos centrais eram: 1)

a introdução do voto distrital, que, por meio da divisão das províncias em distritos, também

chamados círculos, visava possibilitar maior representação às facções políticas locais no

parlamento, chocando-se com o “monolitismo das grandes bancadas provinciais” e com os

chefes nacionais dos partidos; 2) a instituição das incompatibilidades eleitorais, proibindo a

candidatura de funcionários públicos – presidentes de província, secretários provinciais,

comandantes de armas, juízes de direito, juízes municipais, chefes de polícia, delegados,

subdelegados, inspetores etc. – nos distritos onde exerciam cargos. A justificativa central para

as duas medidas era a busca por maior diversidade e autenticidade aos representantes eleitos187.

A Conciliação desgostou parcelas de liberais e conservadores mais aferrados. Os

primeiros interpretavam a política como manobra para encobrir suas ideias, o que, ao cabo,

levaria ao enfraquecimento do Partido Liberal. Já os segundos, sentindo-se traídos por um

correligionário, viam nas medidas sinais de fraqueza do Partido Conservador e do governo. Os

críticos da política dirigida por Paraná enxergaram nela ou elemento de risco ao ordenamento

sociopolítico ou mote para a corrupção geral dos partidos. Para Marcelo Basile, se a

Conciliação não tinha como fito eliminar os partidos, trazia implícita a estratégia de atenuar

agitações e de “cooptar liberais sob uma direção conservadora”188.

Jeffrey Needell levanta a hipótese de que o principal trunfo da Conciliação – a reforma

eleitoral – pode ser lido como estratégia de Paraná visando o fortalecimento do Gabinete em

detrimento da musculatura dos partidos, especialmente o enfraquecimento do grupo saquarema

empedernido, que inclusive barrara proposta de reforma judicial defendida pelo ministério

conciliador. O objetivo do ministro tinha a aprovação tácita do Imperador. Rebaixando

drasticamente a intervenção dos partidos nas eleições, ao centrá-la nos círculos, Honório

185 NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. Vol. 1. 5ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 346. 186 PEDRO II apud BARMAN, Roderick J. Imperador cidadão. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 238, grifos

meus. 187 CARVALHO, op. cit., 2008, p. 399-401. 188 BASILE, Marcello Otávio N. de. C. O império Brasileiro: panorama político. In. LINHARES, Maria Yedda

(Org.). História Geral do Brasil. 9ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 253.

40

apostaria na possibilidade dos gabinetes tornarem-se relativamente mais fortes para realização

dos projetos e reformas189. Por conta disso, Needell discorda da visão de Ilmar Mattos de ter o

“tempo saquarema” se estendido até o início dos anos 1860: se a conciliação foi liderada por

um conservador, ela estava muito longe de ser “saquarema”190.

Ao morrer, a 3 de setembro de 1856, o Marquês de Paraná deixou inesperadamente o

gabinete reformista decapitado, sem tempo de presidir a primeira eleição geral segundo a lei de

círculos191. A perda do homem público de reconhecida força não deixou de levantar conjecturas

sobre a continuidade da política conciliadora192. Neste cenário, a figura do Imperador mostrou-

se, como de praxe, fulcral. A escolha dos nomes para o novo gabinete seria categórica para a

continuidade, ou não, da obra principiada por Paraná. A vinculação de Pedro II com a

Conciliação era patente: o indicado foi Luiz Alves de Lima, Marquês de Caxias, Ministro da

Guerra no Gabinete Paraná. Político de longo histórico de serviços prestados ao Estado, figura

de proa do Partido Conservador, aos olhos de Pedro II, Caxias representava alguém afinado

com o projeto do ministro morto, além de fidelíssimo aos desejos augustos: era um “homem do

Imperador”193. O presidente do conselho tomou para si tarefa de chefiar um gabinete transitório,

que seria responsável por garantir eleições tranquilas e afinadas com a reforma, saindo de cena

antes do início da sessão legislativa de 1857, quando outro ministério palatável ao perfil da

nova câmara pudesse ser formado194.

Coube, a partir de 4 de maio de 1857, a Pedro de Araújo Lima, o Marquês de Olinda,

continuar a Conciliação. Junto com os saquaremas Euzébio de Queiroz e Paulino Soares de

Souza, Olinda fora uma das vozes do parlamento mais mordazes na oposição à política de

Paraná. Os choques entre os dois marqueses, em 1856, foram tão comuns e intensos, a ponto

de circular história dando conta de ter Olinda alterado os nervos de Paraná, ao acusá-lo de

ceticismo195 em discurso de 16 de agosto, levando o presidente do Gabinete a passar mal, não

189 NEEDELL, Jeffrey D. Formação dos Partidos Brasileiros: questões de ideologia, rótulos partidários, liderança

e prática política, 1831-1888. Almanack Braziliense. São Paulo, n.10, p. 54-63, nov. 2009b. 190 Idem. 191 ESTEFANES, op. cit., 2010, p. 194. 192 Escrevendo a Sinimbu, Nabuco de Araújo, então Ministro da Justiça, traçou frase que captou as incertezas do

momento: “Morreu o Paraná, [...], e nos legou dificuldades que não estão removidas e que talvez sejam

invencíveis”. NABUCO, op. cit., 1997, p. 349. 193 Como demonstra Needell, enquanto parcela dos conservadores permaneciam fiel à liderança ideológica

tradicional dos chefes saquaremas, tendo assim posição mais orgânica dentro do partido, outros políticos da

parcialidade optaram por outra postura: eram “homens no imperador”, pois “preferiam lhe servir ao invés de servir

à liderança do partido ou à sua ideologia”. Caxias seria um destes últimos. NEEDELL, op. cit., 2009b, p. 57. 194 HOLANDA, op. cit., 2010, p. 56. 195 Analisando uma das versões publicadas sobre o discurso de Olinda, Paulo Henrique Fontes Cadena identificou

a imputação de que Paraná estaria comprando o “silêncio e a calma dos Liberais/Luzias com lugares na

administração”. Desta forma, o “ceticismo político”, a que se referia Olinda, tratava do “uso da máquina do Estado

para produzir o silêncio e, portanto, a descrença e apatia na então política tomada pelo ministério”. CADENA,

41

conseguindo terminar de rebater às insinuações do ex-Regente. Poucos dias depois, finava

Paraná. No delírio febril da morte, teria balbuciado palavras desconexas, remetendo à crítica de

Olinda: “Ceticismo....... o nobre senador...... pátria...... liberdade......” 196.

O teor anedótico da história revela, pois, o aparente contrassenso de ter Pedro II escolhido

Araújo Lima para prosseguir a política gestada por Honório. O que elucida a conversão de

opositor a propugnador da Conciliação em Olinda, desfazendo ainda mais os laços saquaremas,

é a aliança do estadista pernambucano com a Coroa, posta acima dos partidos197. Sérgio

Buarque de Holanda afirma ser a ascensão do gabinete Olinda de 1857, “um dos muitos casos

de difícil explicação que ponteiam toda a história do Segundo Reinado”, só explicada pelo fato

das ideias do antigo Regente não serem muito nítidas em matéria de política, costumando ter

seus limites, quando exercia as funções executivas, “nas opiniões da entidade irresponsável”,

ou seja, no Imperador, opiniões essas que o experiente pernambucano parecia adivinhar198.

Não obstante a afinidade com o pensamento do trono, o ministério de 1857 não teve vida

fácil. A reforma eleitoral surtira o efeito previsto por Paraná, diversificando a representação

política entre os ocupantes das cadeiras da câmara dos deputados. Por outro lado, a mudança

trouxe dificuldade para a sustentação política dos gabinetes. O perfil da câmara mostrava-se de

difícil síntese. Houve acréscimo de representantes liberais em comparação à legislatura

passada: calculava-se em mais de vinte os eleitos199. Porém, a lei dos círculos elegera muitos

novatos, com tendências políticas opacas. Já os parlamentares experientes que conseguiram se

reeleger estavam “frequentemente divididos por despeitos e ressentimentos”200.

O presidente do Conselho era visto com desconfiança por aliados históricos,

conservadores inquietos com as atitudes do governo e os nomes integrantes dele201. Assim, o

ministério estendeu-se, aos trancos e barrancos, até 12 de dezembro de 1858, com a ascensão

Paulo Henrique Fontes. O vice-rei: Pedro de Araújo Lima e a governança do Brasil no século XIX. Tese

(Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2018, p. 215. 196 CADENA, op. cit., 2018, p. 212-213. 197 Idem, p. 227. Joaquim Nabuco, tratando do assunto, afirma que o Imperador não poderia se inclinar para os

“conservadores puros”, ante a simpatia do monarca pela Conciliação e o próprio perfil da Câmara eleita. Optou

pelo nome que lhe era fiel para continuar a política iniciada em 1853: “O marquês de Olinda era politicamente de

uma ductilidade extrema. Se ninguém o torcia, ele mesmo achava sempre as razões mais inesperadas e sutis para

mudar com o Imperador ou com a opinião”. NABUCO, Joaquim. op. cit., 1997, p. 363. 198 HOLANDA, op. cit., 2010, p. 56. 199 CARVALHO, op. cit., 2008, p. 399. 200 HOLANDA, op. cit., 2010, p. 59. 201 Paulo Cadena apresenta um estudo minucioso das críticas a Olinda naquele contexto de fins dos anos 1850. Por

exemplo: o padre Pinto de Campos – conservador embrenhado nos bastidores da política, com laços de clientela

estreitos com o Visconde de Camaragibe, do clã pernambucano Cavalcanti de Albuquerque, grupo do qual Olinda

se aliava e distanciava quando lhe era conveniente – não poupou o ministro de críticas: “Não creia que o Marquês

é o homem de outrora. Está inteiramente mudado no físico e no político”, dando a entender que o velho já não

mandava e a ambição por se manter no poder o fazia aliar-se a qualquer um. CADENA, op. cit., 2018, p. 236-237.

42

do gabinete liderado por Paulino Limpo de Abreu, Visconde de Abaeté. O desgaste final do

marquês ficou a cargo do apoio às medidas do Ministro da Fazenda, o liberal Bernardo de Sousa

Franco, responsável por disparada do câmbio202. O próprio Imperador exibia contrariedade,

tirando o apoio ao Gabinete: antes mesmo do ministério apresentar oficialmente a renúncia

coletiva, Pedro II chamou Euzébio de Queiroz para organizar o novo governo, que recusou o

convite. Optou então pelo nome de Abaeté203. Aparentemente, o monarca percebera ser a

Conciliação de difícil sustentação naquele cenário. Mesmo com maior diversidade da câmara,

prevalecia maioria do Partido Conservador, daí a razão de optar por Abaeté, um ex-liberal204.

De vida curta, o governo de Paulino Limpo de Abreu durou cerca de um semestre, sendo

trocado, em 10 de agosto de 1859, pelo ministério chefiado por Ângelo Muniz da Silva Ferraz

(Barão de Uruguaiana)205. O novo estafe ministerial também não encontrou respaldo seguro na

Câmara, ante a continuação da conjuntura de crise econômica. Não obstante, durante o gabinete

Ferraz, os conservadores procuraram adaptar a lei dos círculos, garantidora da ampliação do

número de liberais e da exclusão de sumidades políticas na legislatura de 1857. Na acepção dos

conservadores, a votação de um deputado por distrito favorecia as “notabilidades de aldeias”,

os “tamanduás”, como eram descritos os chefes locais, vistos como incapazes de conceber e

tratar dos grandes assuntos de interesse nacional206.

Na esperança de auto favorecimento, os conservadores conseguiram aprovar mudança no

voto distrital – rejeitada amplamente pelos liberais – modificando os círculos, ao ampliar para

três o número de deputados eleitos por distrito. A estratégia mostrou-se equivocada e o tiro saiu

pela culatra: quando foi aplicada a reforma, na eleição de 1860, houve aumento considerável

de liberais na Câmara. Emergia oposição numerosa e aguerrida207. Em tom de hipérbole, disse

Nabuco: “A oligarquia fora desarraigada, derrubada por um verdadeiro furacão político”208. O

202 Segundo Basile, uma das causas do problema foi o empréstimo externo que Sousa Franco fizera junto a firma

inglesa Rothschild. Em face da carência de moeda circulante e da situação precária do Banco do Brasil, o ministro

da Fazenda autorizou que diferentes bancos regionais pudessem passar a emiti-las, o que acabou elevando a

especulação e o custo de vida. BASILE, op. cit., 2000, p. 253. 203 HOLANDA, op. cit., 2010, p. 63. 204 BASILE, op. cit., 2000, p. 253. 205 JAVARI, op. cit., 1889, p. 121. 206 CARVALHO, op. cit., 2008, p. 399. Tal percepção, não deixava de refletir o enfado, identificado por Needel,

de alguns líderes nacionais do partido em relação aos membros menos cultos da própria agremiação nas

provinciais, vistos como movidos apenas por motivações intestinas e ciosos por presidentes que usassem o cargo

para perseguição implacável da oposição nas localidades, postura incompatível com a visão mais ilustrada sobre a

civilização e o papel do homem de Estado. NEEDELL, op. cit., 2009a, p. 18-19. 207 HOLANDA, op. cit., 2010, p. 69. 208 NABUCO, op. cit., 1997, p. 423.

43

governo Ferraz, não esperou sequer a primeira sessão legislativa: renunciou a 3 de março de

1861, sendo substituído por Caxias209.

A situação da nova Câmara era desafiadora para a organização dos partidos nacionais. A

ampliação do voto distrital tinha trazido liberais históricos de volta à casa. Pari passu, alguns

conservadores adotaram postura mais moderada, incluindo alguns herdeiros da Conciliação.

Houve, além disso, aumento de chefes locais nas cadeiras da casa temporária. Como afirmou

Carvalho, os partidos nacionais não tinham maturidade suficiente para enquadrar os novos

deputados. As eleições por círculos traziam a incerteza sobre a real composição das bancadas,

visto existir “maior possibilidade de aparecimento de candidaturas rebeldes, ou simplesmente

não perfeitamente entrosadas com os chefes nacionais dos partidos”210.

A nova configuração da câmara se desenhava. O senador Nabuco de Araújo – de origem

conservadora, mas que fez parte do Gabinete da Conciliação211 –, em discurso de 1862, atribuiu

a instabilidade dos governos ao “partido Conservador puro”, cioso por dominar todas as

posições oficiais: “Eu não sou liberal, mas digo, que não é possível admitir essa perpétua

exclusão dos brasileiros... É condição da paz pública que uns respeitem as opiniões dos outros,

pois este Brasil é de todos os brasileiros”212. Bradava pela garantia de representação das

minorias como condição única para a paz pública e para a civilização. Batizando um movimento

político que marcaria os anos 1860, convocava liberais e conservadores moderados a fazerem

liga: “O que não admito, e contra o que eu protesto em honra do Brasil, em honra da nossa

civilização, é que se não possa fazer uma liga com os liberais, porque em razão do seu passado

eles estão perpetuamente excomungados”213.

Em maio de 1862, Zacarias de Góis e Vasconcelos liderou votação de moção contrária a

Caxias. O resultado foi apertado, sendo a declaração aprovada por um voto. Para salvar o

ministério Caxias, o Imperador poderia recorrer à dissolução da Câmara, mas não o fez.

Manifestou a pretensão de conservá-la até o fim da legislatura, em 1864. Se pela primeira vez

209 JAVARI, op. cit., 1889, p. 121-125. 210 CARVALHO, op. cit., 2008, p. 410. 211 Gladys Ribeiro e Beatriz Momesso, analisando a produção jornalística, discursos e missivas trocadas por

Nabuco de Araújo e Justiniano José da Rocha, percebem, no contexto pós-Conciliação, a manifestação do que

conceituam “conservadorismo liberal”, a congregar políticos não identificados com as ideias mais ortodoxas

defendidas por fundadores do Partido Conservador que eram avessos ao que as autoras conceituam de “humanismo

cívico”, pautado na rejeição do absolutismo, na valorização das esfera judiciária e da identidade dos partidos, de

“modo a não impedir a monarquia constitucional na realização da missão de conduzir o Brasil aos patamares da

civilização e progresso.” RIBEIRO, Gladys Sabina; MOMESSO, Beatriz Piva. Ideias que vão e que vem: o diálogo

entre Nabuco de Araújo e Justiniano José da Rocha. In. BESSONE, Tânia et al (orgs.). Imprensa, livros e política

no oitocentos. 1ª ed. São Paulo: Alameda, 2018, p. 274-275. 212 NABUCO, op. cit., 1997, p. 434. 213 Idem, p. 433-434.

44

um gabinete caía “à inglesa”, pelo voto de desconfiança do parlamento, Pedro II seguiu também

“a praxe britânica de fazer do chefe de uma oposição triunfante na Câmara dos Comuns o chefe

do Ministério a organizar-se”214. Zacarias de Góis foi escolhido presidente do conselho de

ministros, a 24 de maio de 1862215.

Todavia, o triunfo de Zacarias de Góis era apenas aparente. A divisão entre as forças

liberais e conservadoras dissidentes – a “liga” aludida por Nabuco de Araújo –, de um lado, e,

de outro, conservadores empedernidos, chamados de “emperrados”, não demonstrou ter

confiança no novo Gabinete e programa. Sales Torres Homem apresentou moção contrária ao

Governo, sendo aprovada por diminuta margem: 49 votos contra 43. Ante a curta existência do

governo Zacarias de Góis, o mais breve da história do Império, ficaria conhecido como o

“gabinete dos três dias” – em alusão ao ministério de Necker, nomeado por Luís XVI às

vésperas da queda da Bastilha –, malgrado ter se arrastado por meia dúzia de dias216.

Coerente com a atitude assumida dias antes, quando da demissão de Caxias, Pedro II

recusou-se ainda uma vez a atender ao pedido de dissolução da Câmara. Teria, aliás, estudado

a possibilidade de trazer Caxias de volta, fazendo ajustes nos nomes do ministério, de modo a

fugir da pecha de “emperro” que Zacarias de Góis e Vasconcelos lhe imputou. Desistiu da ideia

ao acatar ponderação de Abaeté, para quem nomear o ministro caído seis dias antes poderia ser

interpretado como provocação destinada a mostrar a fraqueza dos “ligueiros”217.

Para contornar o impasse e tentar garantir um governo que tivesse condições de ter

sustentação numa Câmara marcada pelo equilíbrio de facções – visível nas duas eleições

apertadas que definiram as quedas de Caxias e Góis – Dom Pedro, tal como fizera em 1857,

quando ainda tinha esperanças na continuidade da Conciliação, chamou o experimentado

Marquês de Olinda, arranjando o chamado “ministério dos velhos”, iniciado a 30 de maio de

1862, formado por nomes conhecidos da política nacional, saídos quase inteiramente do

Senado, como os viscondes de Maranguape, Albuquerque e Abrantes218. O Gabinete foi

recebido sem entusiasmo. Não obstante, não se desenhou aversão clara ao mesmo. Ele fora

gestado, com o acompanhamento próximo do Imperador, que chegou a traçar e apresentar, a

Olinda, lista prévia com alguns nomes219. Ademais, aos conservadores “emperrados” assustava

214 HOLANDA, op. cit., 2012, p. 17. 215 JAVARI, op. cit., 1889, p. 128. 216 HOLANDA, op. cit., 2010, p. 90. 217 HOLANDA, op. cit., 2012, p. 21. 218 JAVARI, op. cit., 1889, p. 130-133. 219 CADENA, op. cit., 2018, p. 244. Segundo Needell, os gabinetes posteriores a 1853 tiveram maior presença do

Imperador na definição de suas composições: negociava com os presidentes do Conselho quais políticos deveriam

ocupar as pastas. Neste cenário, “embora houvesse ministros claramente representando os blocos de interesse

45

agora a possibilidade de, em caso de refregas duras contra o governo Olinda, Pedro II, enfim,

optasse pela dissolução da Câmara, com risco de aumento do número de “ligueiros” via

eleições220.

A sucessão de crises ministeriais narrada acima é sintomática do cenário de recomposição

partidária derivada das reformas da Conciliação. A silhueta da Liga, ou Liga Progressista –

sendo, em 1864, rebatizada Partido do Progresso, quando lançou o primeiro programa

partidário do Império221 – era mal delineada, sem chefia clara, mesclando nomes como o do

vulto liberal mais popular da época, Teófilo Otoni, com grupo numeroso de dissidentes do

Partido Conservador, tais como Zacarias, Nabuco de Araújo e Saraiva. Independente disto, a

Liga é estratégica para a compreensão da feição política do Império nos anos 1860.

Foi neste cenário conturbado que José Bento da Cunha Figueiredo Júnior, deixado de lado

faz algumas páginas, assumiu a presidência da província do Ceará. Sua nomeação e posse

ocorreram em meio ao sobe e desce de gabinetes de 1862. Nomeado para o cargo em 9 de abril,

ainda no Gabinete Caxias, tomou posse no dia 5 de maio. Seus primeiros ofícios, entre 5 e 13

do mês, foram dirigidos a José Ildefonso de Sousa Ramos – futuro Visconde de Jaguari –, titular

do Ministério dos Negócios do Império222. Como narrado há pouco, no dia 24 do mesmo mês,

subia Zacarias de Góis ao gabinete, caindo seis dias depois. A demora na comunicação entre a

Corte e Fortaleza era considerável. A viagem marítima a vapor demorava mais de dez dias para

singrar a distância entre as duas capitais. Desta forma, a notícia da ascensão e ruína ministerial

chegaram com atraso no Ceará. Alheio às mudanças no Paço carioca, José Bento da Cunha

Figueiredo Júnior continuava a endereçar seus ofícios a José Ildefonso de Sousa Ramos223.

Somente em 5 de junho endereçou ofício a Zacarias de Góis, quando a presidência do conselho

de ministros e o ministério dos negócios do Império já eram chefiados pelo Marquês de

Olinda224. Apenas no dia 18 de junho passaria a se corresponder com o marquês225.

regionais, ou alas de um ou dos dois grandes partidos, a grande política permaneceu nas mãos do monarca e dos

ministros que ele privilegiava por meio de repetidas indicações”. NEEDELL, op. cit., 2009 b, p. 63. 220 HOLANDA, op. cit., 2012, p. 32. 221 O programa do Partido Progressista esteve centrado nas ideias de seu principal líder, o senador Nabuco de

Araújo, por isso, detinha-se nos problemas do judiciário, como a separação entre as funções judiciais e policiais.

Por outro lado, trazia apelos à descentralização, bandeira histórica dos liberais, sem, contudo, sugerir mudanças

concretas no sistema político. CARVALHO, op. cit., 2008, p. 206. 222 ANRJ. Ofício n. 36a. 13 mai. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 223 ANRJ. Ofício n. 41. 26 mai. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 224 ANRJ. Ofício n. 41a. 5 jun. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 225 ANRJ. Ofício n. 49. 18 jun. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

46

A instabilidade política não deixava de ser ameaça a Figueiredo Júnior, pois as nomeações

para os cargos de presidente estavam afinadas com a formatação dos gabinetes. Nestes termos,

o então presidente do Ceará teria de aderir claramente aos propósitos de Olinda, como forma

de garantir a posição no executivo provincial, após a queda do ministério que o nomeara. Diante

desta conjuntura, ao presidente recém empossado seria útil a manutenção de relações cordiais

com os políticos cearenses, como forma de se fortificar no cargo, evitando desgastes que

pudessem tornar mais delicada sua sustentação perante o ministério. Esta seria uma tarefa

bastante complicada, seja por conta da complexa feição da política cearense, como pelos efeitos

devastadores do cólera.

1.2 - A política e os partidos no Ceará

A compreensão da dinâmica política do Ceará foi, provavelmente, um desafio ao

presidente Figueiredo Júnior, o que não devia ser diferente para seus antecessores e sucessores

no cargo, como demonstra o quadro a seguir:

Quadro 1

Presidentes nomeados para a Província do Ceará entre 1840 e 1889

Presidente Naturalidade Nomeação

José Martiniano de Alencar Ceará 10.09.1840

José Joaquim Coelho Portugal 01.05.1841

José Maria da Silva Bittencourt Rio de Janeiro 02.04.1843

Ignácio Correia de Vasconcellos Bahia 04.11.1844

Casemiro José de Moraes Sarmento Piauí 12.09.1847

Fausto Augusto de Aguiar Rio de Janeiro 05.04.1848

Ignácio Francisco Silveira da Motta Goiás 19.06.1850

Joaquim Marcos de Almeida Rego Rio de Janeiro 31.05.1851

Joaquim Villela de Castro Tavares Pernambuco 21.03.1853

Vicente Pires da Motta São Paulo 12.01.1854

Francisco Xavier Paes Barreto Pernambuco 15.09.1855

João Silveira de Sousa Santa Catarina 06.06.1857

Antonio Marcelino Nunes Gonçalves Maranhão 04.07.1859

Manoel Antonio Duarte de Azevedo Rio de Janeiro 20.03.1861

José Bento da Cunha Figueiredo Júnior Pernambuco 09.04.1862

Laffayette Rodrigues Pereira Minas Gerais 23.01.1864

Francisco Ignácio Marcondes Homem de Mello São Paulo 08.04.1865

João de Sousa Mello e Alvim Santa Catarina 22.09.1866

Pedro Leão Velloso Bahia 16.11.1867

Diogo Velho Cavalcante de Albuquerque Paraíba 27.08.1868

João Antonio de Araújo Freitas Henriques Bahia 26.07.1870

José Fernandes da Costa Pereira Júnior Rio de Janeiro 20.01.1871

47

José Antonio Calazans Rodrigues Portugal 29.06.1871

João Winkens de Mattos Pará 15.12.1871

Francisco de Assis Oliveira Maciel Pernambuco 07.12.1872

Francisco Teixeira Sá Pernambuco 13.11.1873

Heráclito de Alencastro Pereira da Graça Ceará 13.10.1874

Francisco de Farias Lemos Pernambuco 22.03.1876

Caetano Estelita Cavalcanti Pessoa Pernambuco 10.01.1877

João José Ferreira de Aguiar Pernambuco 24.11.1877

José Júlio de Albuquerque Barros Ceará 08.03.1878

André Augusto de Pádua Fleury Mato Grosso 02.07.1880

Pedro Leão Veloso Bahia 01.04.1881

Torquato Mendes Viana Maranhão 26.12.1881

Sancho de Barros Pimentel Bahia 22.03.1882

Domingos Antonio Raiol Pará 12.12.1882

Sátiro de Oliveira Dias Bahia 21.08.1883

Carlos Honório Benedito Ottoni Minas Gerais 12.07.1884

Sinval Odorico Moura Maranhão 12.02.1885

Miguel Calmon du Pin e Almeida Bahia 01.10.1885

Joaquim da Costa Barradas Maranhão 09.04.1886

Enéas de Araújo Torreão Maranhão 21.09.1886

Antonio Caio da Silva Prado São Paulo 21.04.1888

Henrique Francisco D’Ávila Rio Grande do Sul 10.07.1889

Jerônimo Rodrigues de Morais Jardim Goiás 11.10.1889 Fontes: PAIVA, Maria Arair Pinto. A elite política do Ceará Provincial. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979;

THÉBERGE, Dr. P. Esboço histórico sobre a Província do Ceará. Vol. 3. Edição fac-sim. (1895). Fortaleza:

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cearense. Vol. 2. Fortaleza: Typo-Lithographia a vapor, 1913; HOMEM DE MELLO, Barão. Relação dos

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Nacional, 1899; e Relatórios dos Presidentes de Província do Ceará, disponíveis no site http://www-

apps.crl.edu/brazil/provincial/ceará. Acesso a 20 ago. 2018.

O quadro apresenta a lista de presidentes nomeados para o Ceará durante os 49 anos do

Segundo Reinado. No período, ocorreram 45 nomeações. Destas, apenas 3 foram de políticos

nascidos no Ceará, indício de algo corriqueiro na política imperial, especialmente nas

províncias de menor prestígio político e peso econômico. Tendo em vista o caráter centralizador

da pós-Maioridade, a estratégia das indicações para o cargo de presidente priorizava políticos

advindos de outros lugares do Império, forma de impedir que disputas localizadas tomassem de

todo o controle do executivo provincial, intensificando as tensões entre opositores, dificultando

48

a aplicação dos programas ministeriais e a realização dos pleitos eleitorais. Ao mesmo tempo,

a circulação geográfica dos presidentes contribuía para o treinamento político, dando

oportunidade de conhecerem melhor o país e desenvolverem perspectiva menos provinciana226.

No caso do Ceará, fica claro que os gabinetes priorizaram a indicação de presidentes

advindos da região norte do Império ou da própria Corte: pernambucanos (8 presidentes),

baianos (7), maranhenses (5) e fluminenses (5) ocuparam por 25 vezes o governo do Ceará,

56% das nomeações. Empatados com paulistas, os cearenses foram, apenas, 7% do total.

A abundância de nomeações deixa patente como a estadia do presidente no cargo era

curta. Poucos tiveram mais de um ano de governo. Como grande parte dos presidentes

provinham da câmara geral, era comum que o trabalho nas províncias ocorresse apenas no

período das férias legislativas. Nomeado presidente do Ceará a 17 de setembro de 1855,

Francisco Xavier Paes Barreto teve licença do cargo durante a legislatura de 1856, ficando fora

de Fortaleza entre 9 de abril e 11 de outubro do mesmo ano. Reeleito como deputado por

Pernambuco, saiu, em 25 de março de 1857, definitivamente, do cargo no Ceará para tomar

posse na nova legislatura227.

As crises ministeriais e trocas de gabinetes, com eventual dissolução da Câmara,

também tinham potencial para encurtar mandatos presidenciais, pois o gabinete poderia usar

mãos de pessoas do círculo de apoio para garantir os resultados eleitorais favoráveis nas

províncias. A mobilidade dos presidentes também era usada pelos ministros como forma de

premiar os amigos228. Uma vez na posse do cargo, os presidentes, dependendo da conjuntura

política provincial e das orientações do Gabinete em exercício, poderiam se aproximar de uma

ou outra parcialidade para cumprir seus propósitos. Nos discursos proferidos, no geral, os

presidentes afirmavam-se neutros, acima das contendas partidárias, quando na prática não

deixavam de imiscuírem-se nos jogos de poder provincial, sendo peças estratégicas para a

garantia das vitórias eleitorais. Deste modo, teciam relações com os grupos políticos, buscando

226 CARVALHO, op. cit., 2008, p. 124. 227 HOMEM DE MELLO, Barão. Relação dos presidentes e vice-presidentes que tem administrado a Província do

Ceará, desde 1824 até 1866. Revista do Instituto do Ceará. Ano IX. Fortaleza, 1895, p. 58; BARRETO, Francisco

Xavier Paes. Relatório com que o excelentíssimo senhor doutor Francisco Xavier Paes Barreto passou a

administração da província ao segundo vice-presidente da mesma, o excelentíssimo senhor Joaquim Mendes da

Cruz Guimarães, em 9 de abril de 1856. Fortaleza: Typographia Cearense, 1856, p. 3. Disponível no site

http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial/ceará. Acesso a 20 ago. 2018.; e BARRETO, Francisco Xavier Paes.

Relatório com que o excelentíssimo senhor doutor Francisco Xavier Paes Barreto passou a administração da

província ao terceiro vice-presidente da mesma, o excelentíssimo senhor Joaquim Mendes da Cruz Guimarães,

em 25 de março de 1857. Fortaleza: Typographia Cearense, 1857, p. 3. Disponível no site http://www-

apps.crl.edu/brazil/provincial/ceará. Acesso a 20 ago. 2018. 228 CARVALHO, op, cit., 2008, p. 124.

49

construir base de apoio na Assembleia e nas localidades, por meio da ação de delegados,

subdelegados, juízes etc., e pela aliança com os grupos litigantes nas vilas e cidades.

Compreender as lógicas internas da política provincial era, destarte, desafiador aos

presidentes nomeados para o Ceará. Como demonstra Evaldo Cabral de Mello, a integração da

província ocorreu tardiamente e até 1889 sua vida política e econômica, era razoavelmente,

descentralizada. Do ponto de vista econômico, as diferentes regiões da província manifestavam

alta margem de autonomia em relação à Fortaleza, de quem dependiam na esfera administrativa.

A capital – que ao longo de 1840 ganhou força como porto de exportação algodoeiro – era um

polo econômico regional a concorrer com outros, como Aracati, Sobral e Crato, dinamizadores

das trocas comerciais do sertão cearense com as províncias fronteiriças. Exemplo disso é a

relação comercial profícua de Aracati, centralizadora do comércio pecuarista do extenso vale

do Jaguaribe com a praça do Recife, desde o século XVIII. O entreposto recifense era, também,

mais atrativo ao vale do Cariri, localizado na fronteira com Pernambuco e distante mais de

quinhentos quilômetros em relação à Fortaleza. Não por acaso, em meados do século XIX, a

região do Cariri almejava separar-se do Ceará, criando nova província, cuja sede seria Crato229.

Se economicamente o cenário era de descentralização, só ao final da primeira metade

do oitocentos, Fortaleza iria, a duras penas, avançar em centralidade política. O consenso em

prol da unidade cearense foi engendrando-se nos próprios passos do processo de construção do

Estado imperial. É sintomático ter do interior do Ceará partido a adesão às revoltas liberais de

1817 e 1824, bem como de lá surgiu o movimento restauracionista liderado por Pinto Madeira,

em 1831. As agitações espelhavam, conforme Almir Oliveira, as “condições sócio-políticas das

autonomias locais e das arregimentações políticas das famílias que dominavam as regiões”230.

Também das ribeiras do Ceará, sem a menor coesão interna, surgiram nomes que entre

os anos 1820 e 1840 ocuparam espaços nos lances políticos do Império, como o padre José

Martiniano de Alencar (1794-1860), com raízes no Cariri cearense231. Revolucionário de 1817,

Alencar foi eleito representante nas cortes de Lisboa (1821) e constituinte (1823). Em 1824,

toma parte da Confederação do Equador, tendo o irmão, Tristão Gonçalves, como presidente

revolucionário do Ceará. Malograda a revolução, caiu no rol dos desgraçados junto com a

família, mas, suplicando perdão a Pedro I, foi logo anistiado. Em 1830 era eleito deputado geral,

229 MELLO, Evaldo Cabral de. O norte agrário e o Império: 1871-1889. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999,

p. 122-123. 230 OLIVEIRA, Almir Leal de. A construção do Estado Nacional no Ceará: autonomias locais, consensos políticos

e projetos nacionais. In. SOARES, Igor de Menezes; MORAIS, Ítala Byanca (orgs.). Cultura, política e

identidades: Ceará em perspectiva. Vol. 2. Fortaleza: IPHAN, 2017, p. 17. 231 Idem, p. 23.

50

por Ceará e Minas Gerais. A consagração política viria com a nomeação para a câmara vitalícia,

no ano de 1832, em eleição ocorrida após o titular da cadeira, Marquês de Aracati, ter partido,

sem licença, acompanhando Pedro I à Europa, quando da abdicação deste232. O senador Alencar

foi, ainda, um dos líderes que articulou o Golpe da Maioridade de 1840233.

A primeira presidência de Alencar, entre 1834 e 1837, coincidiu com a organização do

poder legislativo na província, com a instalação da Assembleia na capital, composta de 28

deputados. O Ato Adicional de 1834 buscou organizar a vida política das províncias de acordo

com os debates de construção do Estado Nacional ocorridos no Rio de Janeiro, integrando parte

das medidas descentralizadoras defendidas pelos liberais moderados, aos quais o próprio

Alencar estava vinculado234.

A escolha dos deputados provinciais dava-se bienalmente e entre suas principais

prerrogativas, ditadas pelo Ato Adicional, estavam: legislar e fiscalizar a fixação das despesas

municipais e provinciais; repartição da contribuição direta pelos municípios; fixar impostos

provinciais; criar ou suprimir cargos no funcionalismo público e estipular ordenados; tratar do

policiamento, segurança, instrução e obras públicas; decidir sobre a divisão civil, judiciária e

eclesiástica da província; analisar as medidas econômicas e de policiamento votadas nas

Câmaras Municipais; e autorizar a criação de prisões, casas de socorro público, conventos e

qualquer associação civil ou religiosa, como as irmandades235.

232 Alencar foi o sexto político a representar o Ceará no Senado. Dos 19 senadores nomeados pela província ao

longo do Império, 14 eram cearenses natos. Os outros cinco se dividiram em dois grupos: 1) personagens que

tiveram passagens em cargos no Ceará nos primeiros decênios do oitocentos, casos do português João Carlos

Augusto Oyenhasen Gravenburg (Marquês de Aracati), govenador da capitania entre 1802 e 1807, e do fluminense

João Antônio Rodrigues de Carvalho, ouvidor entre outubro de 1814 e agosto de 1815, tendo ainda atuado no

fomento da revolução de 1817 no território cearense; 2) Políticos de projeção nacional sem nenhuma relação com

o Ceará, mas eleitos e nomeados por interesse do governo central, como o português João Viera de Carvalho

(Marquês de Lages), o gaúcho Cândido Batista de Oliveira e o baiano Miguel Calmon Du Pin e Almeida (Marquês

de Abrantes). Representante do Ceará por 25 anos no Senado e um dos políticos mais influentes do Império,

Abrantes nunca pisou na província, “chegando, inclusive, a negar-se trabalhar em prol de uma iluminação a óleo

para Fortaleza, alegando ironicamente que a cidade era de palha e poderia queimar” (GIRÃO, Valdelice Carneiro.

O Ceará no Senado Federal. Brasília: Editora do Senado, 1992, p. 27). Dos senadores não-cearenses, 4 foram

nomeados entre o Primeiro Reinado e o último ano das Regências, caso de Abrantes, escolhido para a câmara

vitalícia por Pedro de Araújo Lima após eleições marcadas por fraudes e violência (CADENA, op. cit., 2018, p.

188). Como demonstra Barman, as nomeações feitas por Dom Pedro I para o Senado tiveram por preferência

políticos mais experientes e de maior faixa etária, e não levavam em consideração os sentimentos das províncias,

de modo que a metade dos senadores do Primeiro Reinado não representavam a província natal. As escolhas tinham

como estratégia reforçar a Câmara Alta enquanto espaço de fidelidade e aconselhamento ao Imperador, que

enfrentava a crescente oposição da Câmara Baixa (BARMAN, op. cit., 1984, p. 64). O porto alegrense Cândido

Batista de Oliveira, nomeado em 1849, foi o último não nascido no Ceará a representar a província no Senado,

sendo outro que não a conheceu (GIRÃO, op. cit., 1992, p. 37). 233 STUDART, op.cit., 1913, p. 155-157. 234 OLIVEIRA, op. cit., 2017, p. 23-24. 235 NOGUEIRA, op. cit., 2015, p. 92-93.

51

Malgrado o fato das medidas votadas na Assembleia terem de passar pela sanção do

presidente da província para terem validade, é perceptível o poder de decisão do legislativo

sobre assuntos centrais do cotidiano provincial. Sua força estava bem posicionada acima dos

municípios, com Câmaras de Vereadores esvaziadas de autonomia e com quase toda a economia

municipal dependente das decisões da assembleia provincial236. Se o poderio do Executivo

permaneceu superior ao longo do oitocentos, não há como desconsiderar o papel estratégico do

legislativo na estruturação do sistema político no país. Segundo Gouvêa, a legislatura abriu

espaço para diferentes homens de origens sociais e localidades diversas se juntarem nas

assembleias representativas municipais, provinciais e nacionais, afirmando status, assumindo

posturas e tomando decisões sobre a vida política do país: “a legislatura teve o papel-chave ao

dar suporte e ajuda para consolidar a nova organização política no nível do governo geral”237.

Conforme Miriam Dolhnikoff, a construção do Estado imperial só foi possível devido a

um arranjo institucional – decorrente de embates e negociações entre as múltiplas elites

regionais que aderiram à nova Nação. Somente com a concessão de certa autonomia às

províncias era possível combater as rebeliões de cunho separatista, envolver os grupos regionais

no aparelhamento do Estado e fazer as determinações e ações do mesmo chegarem a todos os

municípios do Brasil. Em outras palavras, mesmo durante o Segundo Reinado, quando a

proposta conservadora superou a descentralizadora liberal, as províncias continuaram a deter

autonomia política em aspectos estratégicos da sociedade, tais como: a indicação de nomes para

empregos públicos, “poderosa moeda de troca no jogo clientelista e [...] peça fundamental na

cooptação dos grupos locais”238; cobrança de tributos provinciais; organização e uso de uma

força policial; indicação de magistrados; construção de obras públicas; e poder de decisão sobre

a implementação ou revogação de leis advindas das câmaras municipais. Nestes termos, as

assembleias legislativas eram instituições importantes na formatação da política imperial.

No caso do Ceará, a Assembleia tornou-se espaço de agregação das fragmentárias elites

advindas de diferentes regiões da província e de reconfiguração de identidades políticas. Para

Almir Oliveira, o estabelecimento do legislativo provincial, desde as primeiras legislaturas e no

longo processo de “desagregação das realidades coloniais”239, favoreceu a organização de

236 BASILE, Marcelo. O laboratório da nação: e era regencial (1831-1840). In. GRINBERG, Keila e SALLES,

Ricardo (Orgs.). O Brasil Imperial. Vol. II (1808-1831). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 81. 237 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O império das províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2008, p. 91. 238 DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Editora

Globo, 2005, p 191. 239 OLIVEIRA, op. cit., 2017, p. 37.

52

centro hegemônico na província (Fortaleza) e afastou a desintegração político-administrativa,

promovendo, ainda, o desenvolvimento da vida partidária.

A construção da identidade dos partidos no Ceará esteve profundamente arraigada à

formação de alianças familiares e ao desenrolar dos lances políticos dos anos 1820 e 1840.

Segundo Oliveira, para compreensão da organização da política na província naquela

conjuntura, faz-se necessário “acompanhar as disputas entre projetos nacionais que discutiam a

organização do Estado e seu funcionamento a partir das lutas travadas entre os grupos locais”.

Eventos como a Confederação do Equador, as reformas implementadas pelo governo regencial,

nos anos de 1830, e os acertos centralizadores implementados após a Maioridade refletiram-se

em reconfigurações nas alianças de grupos oligárquicos e parentelas dilatadas da província240.

O predomínio liberal dos primeiros anos da década de 1830 levou ao poder o grupo

liderado por José Martiniano de Alencar e pelos irmãos Manuel do Nascimento Castro e Silva

e Vicente Ferreira de Castro e Silva. Com raízes em duas regiões importantes na dinâmica

econômica e política do Ceará – Crato e Aracati – e participantes dos lances de 1824 em lados

opostos, acabaram iniciando uma aproximação a partir de 1825: Alencar, que estava sendo

julgado pela comissão militar instalada após a revolta, solicitou a ajuda a Manuel do

Nascimento de Castro Silva241. Eleitos deputados gerais em 1830, na Corte, os três acabaram

compondo politicamente com os liberais moderados. Manuel do Nascimento de Castro Silva,

inclusive, chegou a ser Ministro da Fazenda, em 1833.

Conhecidos como “chimangos”, terminologia também empregada em outros lugares do

Brasil242, o grupo Alencar/Castro e Silva foi o responsável pela implementação de políticas

descentralizadoras encetadas por Feijó: a presidência de Alencar na província, entre 1834-1837,

coincidiu com a, já citada, instalação da Assembleia Legislativa, com a aplicação do Código do

Processo Criminal, instituindo júri popular e a eleição de juízes de paz nas paróquias, e com a

organização da Guarda Nacional, intervindo no poder repressivo local243.

A contenção da violência era grande desafio, por estar arraigada no cotidiano cearense.

Como evidencia Vieira Júnior, a violência foi marca indelével do período colonial cearense,

240 OLIVEIRA, op. cit., 2017, p. 22. 241ARAÚJO, Reginaldo Alves de. A parte no partido: relação de poder e política na formação do Estado Nacional

Brasileiro, na província do Ceará (1821-1841). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Ceará,

Fortaleza, 2018, p. 310. 242 Durante as Regências, o termo “chimango” era usado pelos liberais exaltados, também chamados

“farroupilhas”, para se referir aos liberais de tendência moderada. Enquanto os farroupilhas faziam apelos ao

federalismo e descentralização, os chimangos aspiravam um Estado forte e centralizado, com autonomia limitada

para as províncias. MOREL, Marco. O Período das Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 34-

35. 243 ARAÚJO, op. cit., 2018, p. 26-27.

53

herança que o Império teve sempre dificuldade em administrar. O poder instituído era frágil

para impor a força de polícia e justiça contra o interesse dos grandes fazendeiros do sertão,

contribuindo para o uso indiscriminado da violência na resolução dos conflitos cotidianos. A

própria toponímia cearense trazia o registro memorialístico dos palcos de conflitos,

perpetuando a lembrança do histórico de assassinatos e agressões engendrados por facções em

disputa: Batalha, Pendência, Tropas, Emboscada, Matança, Defunto, Ossos, Trincheiras,

Várzea da Perdição, Riacho de Sangue etc.244

Malgrado os preconceitos inerentes a um estrangeiro diante dos outros, o relato feito

por George Gardner, viajante escocês que visitou o Ceará entre 1838 e 1839, traz indícios sobre

tal questão. Tratando da região sul cearense, conta:

Os habitantes desta parte da província, geralmente conhecidos de cariris, são

famigerados no país por sua rebeldia às leis. Aqui foi, e até certo ponto ainda

é, embora em menor extensão um esconderijo de assassinos e vagabundos de

toda a espécie vindos de todos os cantos do país. Embora haja um juiz de paz,

um juiz de direito e outros representantes da lei, seu poder é muito limitado e,

ainda assim, quando o exercem, correm o risco de tombar sob a faca do

assassino245.

Como indicia Gardner, o poder das autoridades judiciais em fins de 1830 era limitado e

podia trazer consequências negativas, com risco de vida, aos funcionários que contrariassem

interesses particulares estabelecidos na localidade. Os indivíduos descritos na fonte eram

conhecidos pela alcunha “cabras”, o que revela a origem mestiça. Eram, basicamente, homens

livres pobres, vivendo no limite mais baixo da subsistência e ligados à terra de algum

proprietário abastado. Obviamente, suas tarefas não se resumiam à lida no campo: “Em tempos

de rivalidade entre os proprietários, aos trabalhadores da fazenda eram entregues armas para

que defendessem com lealdade os interesses de seus patrões”246. Dessa forma, muitos acertos

de contas eram perpetrados por tais sujeitos a mando dos ricos mandatários.

Ante a violência renhida e a mobilização armada dos potentados locais, Alencar buscou

formas de garantir a ordem e o funcionamento das instituições no Ceará. Particularmente, tratou

de organizar a Guarda Nacional para dar ao governo provincial o poder de reprimir distúrbios,

colocando a população sertaneja sob o jugo do Estado em construção, assentando “nas áreas

sediciosas e desconfiadas do poder provincial, os homens revestidos do poder militar necessário

244 VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. Entre paredes e bacamartes: história da família no sertão (1780-1850).

Fortaleza: Demócrito Rocha/Hucitec, 2004, p. 168-169. 245GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975, p. 93-94. 246 DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 32.

54

à manutenção da ordem monárquica” 247. Obviamente, como conta Araújo, as medidas não

deixaram de ser direcionadas, também, contra os grupos opositores de Alencar, forma de se

fortificar politicamente e promover o interesse de aliados nas localidades. A perseguição

sistemática que fez aos Mourões, família representada por Alencar como séquito de “criminosos

prepotentes”, com forte influência na região do Vale do Acaraú, é exemplo disto248.

A aliança Alencar/Castro e Silva, somada ao grupo Paula Pessoa – que faria dois

senadores ao longo do Império – foi, assim, a base do futuro Partido Liberal no Ceará,

estruturado entre as décadas de 1830 e 1840. As relações estabelecidas com os liberais da Corte

e com o governo regencial – tendo em vista ter Manoel Nascimento Castro e Silva sido ministro

– e o controle do governo provincial, entre 1834 e 1837, estimularam as alianças no nível

provincial dos “chimangos”, reunindo proprietário rurais do Crato, Sobral e outras localidades,

com comerciantes de Fortaleza e Aracati249.

A oposição ao grupo que dominou a administração do Ceará até 1837 ficava por conta

dos chamados “caranguejos”, alcunhados desta forma pelos chimangos, por suposta

incapacidade daqueles de andar para a frente, resistência a mudar a sociedade e a progredir.

Como demonstra Marco Morel, os partidos políticos da primeira metade do Oitocentos eram

“formas de agrupamento” em torno de líderes, a “partir de interesses e motivações específicas,

além de se delimitarem por lealdade ou afinidades (intelectuais, econômicas, culturais etc.)”250.

Tais agrupamentos, corriqueiramente, “eram identificados por rótulos ou nomeações,

pejorativos ou não”251. No caso dos “caranguejos”, o termo acabou sendo incorporado

positivamente pelos membros do grupo que daria origem ao Partido Conservador no Ceará252.

Ele reunia, de forma não muito homogênea, os defensores do modelo monárquico mais

centralizado, autodenominando-se “Partido da Ordem”. Desta forma, entre seus apoiadores

havia: pessoas que tinham lutado contra os chamados “republicanos” ou “patriotas” de 1824;

antigos “imperialistas”, como eram chamados os defensores, no início de 1830, do absolutismo,

do retorno da ligação do Brasil com Portugal e da restauração de Pedro I ao trono; e bacharéis

propugnadores de uma monarquia centralizada, com justiça profissional e acadêmica,

rejeitando, assim, o modelo de justiça eletiva patrocinada pelos liberais moderados, líderes da

247 OLIVEIRA, op. cit., 2017, p. 34-35. 248 ARAÚJO, op. cit., 2018, p. 344-345. 249 Idem, p. 325. 250 MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade

imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2010, p. 67. 251 Idem, p. 67. 252 ARAÚJO, op. cit., 2018, p. 304.

55

Regência até 1837253. Entre os apoiadores dos caranguejos havia, ainda, ex-patriotas de 1824,

como também proprietários rurais ligados ao grupo não por questões ideológicas, mas por conta

das disputas internas de poder nos municípios. Tal como entre os chimangos, comerciantes dos

dois principais portos, Aracati e Fortaleza, também figuravam nas fileiras caranguejas254.

Na Câmara Geral da década de 1830, os caranguejos cearenses tinham como

representantes figuras como o padre Antônio Pinto de Mendonça – que em meados do

oitocentos mudaria para o lado liberal, como demonstrarei mais à frente –, Jerônimo Martiniano

Figueira de Melo e José Antônio Ibiapina. Na Corte, articularam-se com proprietários rurais

fluminenses, os “saquaremas”, na defesa da monarquia constitucional centralizada e do Poder

Moderador como garantias da ordem e hierarquia social255. Na capital do Ceará, destacava-se a

liderança do boticário Antônio Rodrigues Ferreira. Já no interior, a família Fernandes Vieira,

com bases em Saboeiro, era um dos pilares do grupo. A influência dessas personagens foi tão

forte a partir dos anos 1840 que o grupo político no qual atuavam era conhecido como

“boticário-carcará”256, em referência à profissão de Ferreira e à fazenda Carcará, uma das

propriedades dos Fernandes Vieira257.

Com o avanço dos anos 1830 e 1840, a rivalidade histórica entre facções familiares de

proprietários rurais pelo controle de suas localidades foi assumindo fachada partidária. Por essa

época, as parcialidades nacionais iam ganhando contornos e posicionamentos políticos que se

aproximavam, ou não, dos interesses das alianças políticas do Ceará. A disputa por cargos nos

munícipios e de representação na Assembleia e na Câmara Geral deixava patente aos políticos

locais a importância da vinculação partidária, para assim melhor se posicionar nos pleitos

eleitorais e defender interesses. O caso do sertão dos Inhamuns é exemplo disso. As famílias

Feitosa e Fernandes Vieira eram as duas mais influentes da área, assumindo o lado liberal e

conservador, respectivamente. Os habitantes da região dividiam-se entre um e outro partido, de

acordo com a afinidade ou dependência em relação aos dois clãs258.

Neste cenário de disputas, os potentados rurais passaram a investir mais na educação

dos filhos, fenômeno visível por todo o período imperial. Ter parentes padres e bacharéis abria

maiores possibilidades de inserção nos espaços de representação política no legislativo. A partir

do estudo quantitativo de Maria Arair Paiva, sabe-se: das 423 pessoas que tomaram posse como

253 OLIVEIRA, op. cit., 2017, p. 26-27. 254 ARAÚJO, op. cit., 2018, p. 372. 255 OLIVEIRA, op. cit., 2017, p. 28. 256 CORDEIRO, op. cit., 2007, p. 144 257 CHANDLER, Billy Jaynes. Os Feitosas e o Sertão dos Inhamuns: a história de uma família e uma comunidade

no Nordeste do Brasil – 1700-1930. Fortaleza: Edições UFC; Rio de Janeiro: Civilização Brasileiras, 1980, p. 75. 258 CHANDLER, op. cit., 1980, p. 75.

56

deputados provinciais do Ceará, 28,8% eram bacharéis em direito. Outros 19,9% eram padres,

3,5% médicos, 0,5% engenheiros, 0,5% farmacêuticos e 0,2% agrônomos. Em outras palavras:

53,4% dos deputados da Assembleia possuíam ensino superior259. A porcentagem de

diplomados era bem maior para os representantes cearenses da Câmara Geral: dos 100 políticos

que ocuparam as cadeiras, 81% tinham curso superior. Destes, 62,2% eram bacharéis em

direito, 10,6% padres, 5,4% médicos e 2,8% engenheiros260. Para além dos cargos eletivos, a

formação superior, especialmente nos cursos jurídicos, abria oportunidades para a ocupação de

cargos burocráticos no executivo e no judiciário. A investidura em posições políticas era a

principal ambição dos cerca de 300 cearenses formados pelos cursos jurídicos de Recife e São

Paulo entre 1832 e 1889261.

Se durante os anos 1834 e 1837 os liberais cearenses assumiram o poder na província,

uma nova configuração política nacional os desalojou da posição: o Regresso. O movimento

foi articulado na Corte por nomes como Bernardo de Vasconcelos, Carneiro Leão, Rodrigues

Torres, Araújo Lima e Miguel Calmon. O processo de formação do Regresso se fez ao longo

de 1835 e 1837 e as adesões não foram imediatas, mas sim conquistadas aos poucos, a partir do

desgaste dos moderados e do governo Feijó, ante o descontentamento com as reformas

descentralizadoras e a disseminação de revoltas provinciais262. O grupo agia na busca por

instrumentos que dessem ao Estado a capacidade para assegurar o progresso dentro da ordem,

combatendo o que representavam como anarquia, simbolizada nas revoltas. Neste sentido, um

governo centralizador não era visto como despotismo, e sim como o único capaz de garantir a

liberdade, ao conter os arbítrios dos poderes locais facciosos263.

Com a queda de Feijó e a posse do então senador Pedro de Araújo Lima, futuro Marquês

de Olinda, teve fim o governo do padre Alencar no Ceará. Para substituir Alencar, foi nomeado

o fluminense Manuel Felizardo de Souza Mello, governando entre outubro de 1837 e dezembro

de 1838264. Em sua passagem pelo cargo buscou formar alianças com políticos da localidade,

tratando de destituir aliados dos chimangos e nomeando caranguejos para cargos,

reorganizando a Guarda Nacional e orientando as eleições para os juizados de paz. Em outras

palavras: usou os mesmos instrumentos legais utilizados por seu antecessor no cargo265.

259 PAIVA, op. cit., 1979, p. 126. 260 Idem, p. 126. 261 CORDEIRO, op. cit., 2007, p. 138. 262 BASILE, op. cit., 2009, p. 64. 263 BASILE, op. cit., 2009, p. 93. 264 HOMEM DE MELLO, op. cit., 1895, p. 56. 265 ARAÚJO, op. cit., 2018, p. 372.

57

Dois outros presidentes conservadores governaram o Ceará, o fluminense João Antônio

de Miranda e o piauiense Francisco de Sousa Martins266, até que o Golpe da Maioridade deu a

oportunidade aos liberais de voltar ao poder na província. Alencar, após cerca de três anos,

tomou posse, mais uma vez, na presidência provincial em 20 de outubro de 1840.

O chamado “Gabinete da Maioridade” foi entregue aos liberais Antônio Carlos de

Andrada e Martim Francisco de Andrada, Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque,

Antônio Francisco de Paula Holanda Cavalcanti de Albuquerque, Antônio Paulino Limpo de

Abreu e ao áulico, com forte influência sobre o jovem Pedro II, Aureliano Coutinho. Tinha

início o sistema de rotatividade periódica dos partidos no poder, utilizada para regular os

conflitos entre as elites políticas imperiais267.

Os ventos da política nacional que haviam levado Alencar de volta ao poder provincial

mudaram de direção rapidamente. A série de arbitrariedades utilizadas pelo Gabinete para

garantir a vitória nas eleições para a Câmara Geral em 1840 levou ao desgaste dele, sendo

substituído a 23 de março de 1841 por novo ministério, composto pelos conservadores

sintonizados com os ideais do Regresso. Em poucos meses, o gabinete aprovou a reforma do

Código de Processo Penal e o restabelecimento do Conselho de Estado, avançando no desmonte

das medidas implantadas pelos liberais moderados durante a Regência268. Alencar foi

exonerado do cargo em 1 de abril de 1841. No seu lugar foi nomeado um português, brigadeiro

José Joaquim Coelho. Segundo Celeste Cordeiro, com a posse do brigadeiro como presidente,

os caranguejos assumem totalmente o controle da vida política, tendo início “o predomínio

boticário-carcará, trazendo a agudização da violência”269. As reformas da conjuntura deram

maior poder aos presidentes que se articularam com os conservadores da província para garantir

as vitórias eleitorais, com o uso da polícia e justiça para perseguição dos liberais.

Um dos símbolos dessa fase foi o assassinato do major João Facundo, vice-presidente

do Ceará e membro da família Castro e Silva, portanto, das principais lideranças liberais da

província. Na lápide do túmulo, conservada na Igreja do Rosário de Fortaleza, é possível ver a

acusação latente de quem seria o responsável pelo homicídio: “Aqui jazem os restos mortais do

Major João Facundo de Castro Menezes, Vice-Presidente da Província, assassinado a 8 de

dezembro de 1841, sendo Presidente o português José Joaquim Coelho. Nasceu aos 12 de julho

de 1787. Tributo de amizade da sua infeliz esposa, Dona Florência D’Andrade Bezerra e Castro,

266 HOMEM DE MELLO, op. cit., 1895, p. 56. 267 BASILE, op. cit., 1990, p. 238-239. 268 Idem, p. 239. 269 CORDEIRO, op. cit., 2007, p. 144.

58

a 8 de dezembro de 1842”. Ao registrar em pedra o nome do presidente do Ceará, Florência

pretendeu eternizar a memória do finado esposo e de seu suposto assassino270.

O predomínio boticário-carcará não se modificaria nem durante a Conciliação. Para

Celeste Cordeiro, os conservadores cearenses não abriram espaço que permitisse a composição

com os adversários e o ambiente político eleitoral permaneceu tenso nos anos 1850, com o uso

da presidência da província para garantir a proeminência política daqueles271. Já Geraldo Nobre

afirmou: o interesse das parcialidades cearenses em garantir as posições conquistadas nos

distritos eleitorais explica o fracasso na província da política implantada por Paraná272.

As eleições do período eram indícios claros da dificuldade de implementação da

Conciliação na província. O padre Manuel Joaquim Aires do Nascimento registrou, no livro de

óbitos da Paróquia de Nossa Senhora da Penha do Crato: em 8 de setembro de 1856, pelas três

horas da tarde, José Gonçalves Landim, de vinte sete anos, “foi assassinado pelos soldados do

Governo com uns tiros de granadeiro e de quatro baionetadas”273. A acusação não podia ser

mais direta. O crime ocorreu dentro da igreja matriz, durante a eleição para os cargos de juiz de

paz e para membros da Câmara Municipal. O falecido era eleitor do Partido Liberal, o mesmo

seguido pelo padre Aires do Nascimento. À frente da celeuma toda esteve o delegado da cidade,

José Ferreira de Meneses, membro do Partido Conservador, acusado pelo jornal liberal O

Araripe, em texto assinado pela viúva, Izabel de Macedo Landim, de mandar atirar nos liberais

que se encontravam dentro da igreja274.

O conflito na cidade de Crato não fora exceção, sendo perceptível por toda a província

naquele 8 de setembro de 1856. Segundo Studart, na povoação de Santana, “recusando a

respectiva mesa receber a cédula de um indivíduo, não qualificado, o povo apoderou-se da urna

e papéis, resultando desse conflito uma morte e muitos feridos”275. Sobral também teve

transtornos, com morte por “punhal de quatro liberais e mais cinquenta ferimentos em pessoas

de ambos os partidos”276. Na vila de Imperatriz, houve o “ferimento e espancamento de muitas

pessoas e a morte de um votante por um soldado”277. Tratando desta eleição, um documento

270 BATISTA, Henrique Sérgio de Araújo. Assim na morte como na vida: arte e sociedade no Cemitério São João

Batista (1866-1915). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2003, p. 42. 271 CORDEIRO, op. cit., 2007, p. 145. 272 NOBRE, op. cit., 2006, p. 89. 273 DHDPG. Livro de Óbitos da Paróquia de Nossa Senhora da Penha do Crato (1853-1859), p. 162. 274 O Araripe, n. 61, 13 set. 1856, p. 2-3. 275 STUDART, Dr. Barão de. Datas e factos para a história do Ceará. Edição fac-sim. (1896). Fortaleza: Fundação

Waldemar de Alcântara, 1997a, p. 156. 276 FIGUEIREDO FILHO, J. de. História do Cariri. Vol. 3. Crato: Faculdade de Filosofia do Crato, 1966, p. 138. 277 STUDART, op. cit., 1997a, p. 156.

59

oficial da presidência do Ceará contabilizou oito mortes “e muitos ferimentos foram o resultado

dessas lutas desgraçadas, que tanto depõem contra os nossos interesses e civilização”278.

Em 1860, primeiro pleito com a aplicação da eleição de três deputados por círculo,

novos conflitos foram registrados. O mais grave ocorreu na vila de Telha (hoje Iguatu), no

centro sul da província, evento estudado por Bruno Freitas. Telha estava politicamente

subordinada à cidade de Icó, mas se encontrava nas imediações da região de Saboeiro, reduto

conservador, berço da facção política vinculada à família Fernandes Vieira, os “carcarás”.

Durante a eleição, o delegado e o subdelegado da vila teriam atuado para impedir a concorrência

liberal ao local da votação, trancando as portas da igreja com eleitores conservadores dentro.

Os liberais reagiram, tentando forçar a entrada no templo. Teve início o tiroteio, resultando na

morte de quatorze pessoas, a maioria da facção liberal, malgrado ter perecido também o

delegado da vila. Outras trinta pessoas foram feridas279.

Era, portanto, essa a feição da política cearense em 1862, quando da posse de José

Bento da Cunha Figueiredo Júnior. Em momento marcado pela ascensão das propostas da Liga

na Corte, sendo responsável pela queda de dois gabinetes em curto espaço de tempo, o

presidente teria de lidar com as tensões políticas constantes das parcialidades cearenses e seguir

as orientações emanadas do governo central. Uma vez empossado, Figueiredo Júnior poderia

esperar tentativas das facções do Ceará de cooptá-lo para a defesa de seus interesses. Ter a

aceitação das parcialidades em tempo de Liga foi um desafio, afinal, não era desejável ter uma

oposição ferrenha contra si naquele contexto: a estabilidade no cargo poderia ser abalada ante

a acusação de postura facciosa. Todavia, um evento maior que as vontades dos grupos políticos

provinciais acabou embaralhando tudo, dando intensidade às disputas e aumentando as

cobranças sobre a presidência: antes mesmo da posse de Figueiredo Júnior em Fortaleza, o

cólera atingiu o interior do Ceará.

1.3 - “Um inimigo em triunfo”

No dia 9 do corrente chegou o vapor Imperador procedente dos portos do norte, pelo

qual tivemos jornais, e cartas.

278 BARRETO, Francisco Xavier Paes. Relatório com que o excelentíssimo senhor doutor Francisco Xavier Paes

Barreto passou a administração da província ao terceiro vice-presidente da mesma, o excelentíssimo senhor

Joaquim Mendes da Cruz Guimarães, em 25 de março de 1857. Fortaleza: Typographia Cearense, 1857, p. 3.

Disponível no site http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial/ceará. Acesso a 20 ago. 2018. 279 FREITAS, Bruno Cordeiro Nojosa de. A exaltação dos eleitos: evolução eleitoral e política do Império (Ceará,

1846-1860). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2011, p. 122-124.

60

Na ordem política nada tinha ocorrido nas províncias do norte; porém no Pará se tinha

desenvolvido uma terrível moléstia que ia fazendo grande número de vítimas. Dizem

geralmente ser o cólera morbo, e o Estandarte do Maranhão o diz positivamente280.

Com essas palavras, o jornal O Cearense divulgou a chegada do cólera ao Pará, em

1855, repercutindo notícias de periódicos e cartas advindos desta província e do Maranhão.

Responsável por cerca de trinta a quarenta milhões de mortes no mundo oitocentista281, o cólera

manifestou-se pela primeira vez no Brasil a 15 de maio de 1855, escondido no organismo de

passageiros vindo de Portugal, na galera Defensor, conduzindo três centenas de colonos, vindos

da cidade do Porto e de outras localidades lusas, para serem engajados na Companhia de

Navegação e Comércio do Amazonas, com sede em Belém282.

A Ásia foi o nicho ecológico original do vibrião colérico, especificamente, a região do

baixo-Bengala, no Delta do Ganges. As condições climáticas quentes da área favoreceram o

desenvolvimento de rica variedade de minúsculos organismos infecciosos, que, quando

migravam para hospedeiros humanos, encontravam temperaturas corporais similares para

proliferação. O bacilo do cólera pode viver como organismo independente na água por longo

período, adicionando maiores chances de contaminação humana: endêmico por séculos na

região de origem, comumente, causava surtos epidêmicos em outras áreas da Índia,

especialmente por conta das grandes peregrinações hindus envolvendo o rio sagrado283.

A doença permaneceu, por séculos, de forma endêmica no Oriente, tornando-se

pandemia mundial a partir das primeiras décadas do oitocentos. Em época marcada pelo

imperialismo, a ação militar e as trocas comerciais encetadas pela Europa em outras regiões do

planeta – principalmente, por ingleses na Ásia – e o desenvolvimento dos transportes no século

XIX, com as vias férreas e os navios a vapor, facilitavam o contato e deslocamento de pessoas

e produtos pelo mundo. A tecnologia a encurtar o tempo das viagens e aproximar lugares

longínquos, favorecia, igualmente, um maior deslocamento das epidemias284.

Para McNeill, os surtos do cólera no oitocentos foram as mais significativas

manifestações de como a industrialização alterou as relações humanas com as doenças, ao

propiciar a “peregrinação global” do vibrião endêmico no Baixo- Bengala285. Não por acaso, as

cidades portuárias da Europa oitocentista, com ajuntamentos populacionais cada vez maiores,

280 O Cearense, n. 833, 12 jun. 1855, p. 1, grifos da fonte. 281 SOURNIA; RUFFIE, op. cit., 1986, p. 124. 282 BELTRÃO, Jane Felipe. Cólera, o flagelo do Grão Pará. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual

de Campinas, Capinas, 1999. 283 MCNEILL, Willian. H. Plagues and peoples. New York: Anchor Press, 1976, p. 266. 284 Ver: ROSEN, George. Uma história da saúde pública. São Paulo: Hucitec; Editora da Unesp; Rio de Janeiro:

Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva, 1994. 285 MCNEILL, op. cit., 1976, p. 266.

61

foram dominadas por grandes epidemias de cólera286. Tratando do assunto, Richard Evans,

afirmou: como todas as epidemias, o cólera não foi um evento autônomo e fortuito, mas produto

da agência humana, da desigualdade social, da agitação política e da industrialização287.

Diante das questões expostas acima, a contaminação do Pará, no ano de 1855, ocorreu

durante a terceira pandemia mundial do cólera288. Os primeiros casos deram-se a partir do

desembarque de europeus contratados como colonos por empresa com sede em Belém. Uma

vez em solo brasileiro, o cólera alastrou-se velozmente para outras províncias. Interpondo-se às

tentativas de quarentena, seguindo a rota marítima dos vapores a interligar as capitais

provinciais litorâneas, assim como as vias terrestres, unindo estas às localidades interioranas,

logo a doença espraiou-se pelo território imperial. A partir do foco inicial, a cidade de Belém,

a contaminação difundiu-se pelo interior paraense, atingindo o Amazonas. Tendo relações

comerciais estreitas com Belém, o Maranhão teve a manifestação da epidemia em julho289. No

mesmo mês, deram-se os primeiros casos na Bahia290 e no Rio de Janeiro291. Em outubro, foi a

vez de São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul receberem o trágico visitante292. No

Espírito Santo293, Alagoas e Sergipe294 o surto principiou em novembro. Dezembro teve

Pernambuco295 e Paraíba atacados pela moléstia, logo seguindo na direção do Rio Grande do

Norte, em janeiro de 1856.

Tratando da chegada do cólera ao Brasil, o médico José Pereira Rego, futuro Barão do

Lavradio, afirmou: “Estava reservado ao ano de 1855 o triste papel de inscrever a mais negra

286 RÉMOND, René. O século XIX: introdução à história do nosso tempo. São Paulo: Cultrix, 1989, p. 145. 287 EVANS, op. cit. 2005, p. 564. 288 A historiografia estabeleceu cronologias para as ocorrências pandêmicas do cólera. Há variações quanto às

datas e locais de cada vaga. As cronologias mais consensuais dividem em sete ou oito as pandemias. Lewinsohn

sintetizou-as da seguinte forma: 1ª) 1817-1823 – Muitas partes da Ásia; 2ª) 1829-1851 ou 1826-1837 – Rússia,

Europa Ocidental, Inglaterra, Estados Unidos, México e ilhas Caraíbas; 3ª) 1852-1859 ou 1846-1862 – Europa e

América; 4ª) 1863-1879 ou 1864-1875 – Ásia, África, Europa e América; 5ª) 1881-1896 ou 183-1896 – Oeste da

Ásia, Egito, Rússia, Europa Ocidental e Inglaterra; 6ª) 1899-1923 – Egito, sudeste e oeste da Europa e Rússia; 7ª)

A partir de 1961 – surgimento do novo vibrião do cólera, o El Tor, com casos na Ásia, Oriente Médio, África,

Europa e Estados Unidos; e 8ª) De 1991 em diante, com a identificação do sorotipo 0139 em casos da América do

Sul e Central (LEWINSOHN, Rachel. Três epidemia: lições do passado. Campinas: Editora da Unicamp, 2003, p.

116). Já Nikelen Witter sintetizou a cronologia em sete pandemias: 1ª) 1817-1824 – Ásia, Oriente Médio e

Madagascar; 2ª) 1829-1837 – Ásia, Austrália, Oriente Próximo, Europa, Américas do Norte, América Central e

África; 3ª) 1840-1860 – Ásia, Oriente Médio, Rússia, Europa, América do Norte, América do Sul e África; 4ª)

1863-1877) – Ásia, Oriente Médio, Rússia, Europa, América do Norte, América do Sul e África; 5ª) 1881-1896 –

Ásia, Oriente Médio, Rússia, Europa, América do Norte, América do Sul e África; 6ª) 1899-1923 – Ásia, Oriente

Médio, Rússia, sul da Itália, Europa Central e África; 7ª) de 1936 até nossos dias. WITTER, op. cit., 2007, p. 39. 289 DINIZ, op. cit., p. 57. 290 DAVID, op. cit., 1996, p. 41. 291 PIMENTA, op. cit., 2004, p. 31. 292 WINTER, op. cit., 2007. 293 FRANCO, op. cit., 2015, p. 37. 294 SANTOS NETO, op. cit., 2001. 295 FARIAS, op. cit., 2007.

62

página nos anais da história médica contemporânea em nosso país com a invasão deste terrível

flagelo do gênero humano”296. Pereira Rego era membro da Junta Central de Higiene Pública,

principal órgão sanitário do Império, criado pela lei n. 598, de 14 de setembro de 1850, com o

nome inicial de Junta de Higiene Pública297. Ao longo da primeira metade do século XIX, o

território imperial esteve isento de grandes epidemias, fato explicado por médicos, de modo

simplista, pelo clima e localização geográfica do país. Entre o verão dos anos de 1849 e 1850,

o Rio de Janeiro e outras cidades portuárias foram duramente atacadas pela febre amarela,

derrubando a crença nos efeitos benéficos da Linha do Equador sobre as epidemias. Na ocasião,

nem a família imperial ficou incólume: Pedro II e a princesa Isabel ficaram doentes e o príncipe

Pedro Afonso, de apenas um ano e meio de idade, faleceu. Passado o surto, a estimativa oficial

sobre a epidemia na Corte falava em quatro mil cento e sessenta óbitos, enquanto,

extraoficialmente, houvesse quem calculasse em mais de dez mil o número de vítimas fatais298.

Nesta quadra, a instituição da Junta Central de Higiene significava “mudança na forma

como o Estado lidou com a saúde pública no século XIX”299. A assistência à saúde, até então,

estava, basicamente, ligada à lógica caritativa das Santas Casas de Misericórdia e ordens

religiosas. A eclosão da febre amarela acendeu o alerta às autoridades imperiais para a

necessidade de agir mais ativamente na esfera da saúde pública. Em conjuntura de centralização

do poder político, sob a ótica Saquarema, citada anteriormente nesta tese, e de fim do tráfico

atlântico de escravos300, a Junta foi criada para ser o “centro de todo o serviço sanitário do

296 REGO, José Pereira. Memória histórica das epidemias da febre amarella e cholera-morbo que têm reinado no

Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1873, p. 79. Disponível no site da Biblioteca Digital Luso

Brasileira: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or1467051/or1467051.pdf. Acesso a 8

ago. 2019. 297 BARBOSA, Plácido; REZENDE, Cássio Barbosa de. Os serviços de saúde pública no Brasil, especialmente

na cidade do Rio de Janeiro de 1808 a 1907: esboço histórico e legislação. Vol. I. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial,

1909, p. 64. Disponível no site do acervo digital de Obras Raras Fiocruz:

https://www.obrasraras.fiocruz.br/media.details.php?mediaID=243. Acesso a 8 ago. 2019. 298 CHALHOUB, op. cit., 1996, p. 61. 299 KODAMA, Kaori et al. Mortalidade escrava durante a epidemia de cólera no Rio de Janeiro (1855-1856).

História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 19, supl., p. 59-79, dez. 2012. 300 Segundo Sidney Chalhoub, na conjuntura de estouro da febre amarela, houve quem relacionasse a chegada da

doença com o tráfico atlântico de africanos. Como não se conhecia ainda ser a doença propagada por mosquitos,

as péssimas condições higiênicas dos navios negreiros eram apontadas como focos da corrupção atmosférica

propiciadora da infecção. Tal explicação chegou a ser usada como uma das justificativas para aprovação da lei

Eusébio de Queiroz, de 1850. Cessado o tráfico externo de africanos e com o aumento exponencial da entrada de

imigrantes, especialmente europeus, nas décadas seguintes, a febre amarela ganhou mais atenção das autoridades.

Segundo os dados da época, a doença causava maior letalidade em pessoas não “aclimatadas” às condições do

Brasil, funcionando como propaganda negativa no estrangeiro. Chalhoub demonstra, assim, como as políticas

sanitárias da segunda metade do século XIX foram tomadas pela “ideologia da higiene”, protagonista de ações

autoritárias, refletindo o racismo científico e problemas sociais do período, como a precariedade das moradias

populares. Neste cenário, o projeto acalentado pelas elites de “embranquecimento” da população ganhou espaço,

chegando à República. CHALHOUB, op. cit., 1996, p. 94-95.

63

Império”301, dando-lhe direção por meio das orientações voltadas a órgãos subordinados,

criados nas províncias em 1851, batizados, a partir de 1857, de Inspetorias de Saúde Pública302.

A criação da Junta também refletiu o avanço da institucionalização da medicina no país.

Desde 1832, quando ocorreu a fundação das faculdades de medicina de Salvador e do Rio de

Janeiro, os médicos ascendiam em destaque na sociedade imperial, combatendo práticas de

curas não oficiais e hábitos da população tidos como anti-higiênicos, além de programarem

reformas urbanas que prometiam melhorar as condições sanitárias das grandes cidades303.

A epidemia do cólera, em 1855, significou o primeiro grande desafio aos médicos da

Junta Central de Higiene. Contudo, o órgão enfrentou sérios problemas na ocasião. Para

começar, entre os médicos, prevalecia o dissenso em relação à causa do cólera. De modo similar

à Europa, prevalecia no Brasil a concorrência ou mescla entre os paradigmas do contágio e

infecção304. Nessas circunstâncias, Tânia Salgado Pimenta, tratando do Rio de Janeiro, afirmou

ter a Junta evitado tomar posição definitiva sobre uma ou outra tese, pois era “interessante

poupar a autoridade recém instalada de desgastes com a comunidade médica e com os leigos

que haviam se posicionado”305. Ademais, num contexto de epidemia, as “opiniões se tornam

mais exacerbadas e explícitas, intensificando os conflitos”306.

Assim sendo, o órgão máximo de saúde adotava, pari passu, ações de quarentena, como

o sequestro de doentes, e de combate aos miasmas, como a limpeza de ruas, valas, praias e a

desinfecção de casas onde habitavam coléricos, com o uso de “cal nas paredes e fumigação com

301 BARBOSA; REZENDE, op. cit., 1909, p. 65. 302 BARBOSA; REZENDE, op. cit., 1909, p. 72. 303 Ver: CHALHOUB, op. cit., 1996; REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no

Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 304 Na metade do oitocentos, o cólera era tratado a partir de terapêuticas embasadas em duas teorias seculares que

procuravam elucidar a causa e transmissão das doenças: o infeccionismo e contagianismo. A teoria de infecção

defendia que as doenças eram ocasionadas no organismo pela ação deletéria dos miasmas, substâncias orgânicas

em putrefação que contaminavam o ar de determinado ambiente. Já o contagionismo acreditava que algumas

moléstias tinham a propriedade de se comunicar de um indivíduo a outro pelo contato direto ou por intermédio do

ar. Dina Czeresnia afirma que até o século XVI, não havia conflito entre as duas noções, pois ambas se

relacionavam com a teoria dos humores de Hipócrates. Os choques emergiram, principalmente, nos séculos XVII

a XIX, sendo causada por divergências a respeito das medidas profiláticas no trato das epidemias nas urbes

europeias em expansão. Via de regra, os contagionistas se posicionavam em prol das quarentenas, significando

severo cerceamento e vigilância sobre os doentes. Já os adeptos da teoria dos miasmas, ao relacionarem a origem

dos surtos epidêmicos a fenômenos atmosféricos, acentuavam práticas direcionadas ao controle e limpeza

ambiental (CZERESNIA, Dina. Do contágio à transmissão: uma mudança na estrutura perceptiva de apreensão da

epidemia. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Vol. IV (I), mar.-jun. 1997, p. 75-94). Para William McNeill,

as epidemias de cólera nas grandes cidades oitocentistas acrescentaram nova urgência ao debate de longa duração

entre as escolas rivais (MCNEILL, op. cit., 1976, p. 270). Malgrado a contenda entre as teorias da infecção e

contágio, Sidney Chalhoub mostra que, no contexto das epidemias imperiais, elas acabaram se combinando com

frequência, de formas imprevista e original. CHALHOUB, op. cit., 1996, p. 169. 305 PIMENTA, Tânia Salgado. O exercício das artes de curar no Rio de Janeiro (1828 a 1855). Tese (Doutorado

em História). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003, p. 190. 306 PIMENTA, op. cit., 2003, p. 177.

64

vinagre, ácido sulfuroso (enxofre queimado) ou cloro e aspersão com água de labarraque”307.

Tal dubiedade atraía a crítica de parlamentares, médicos opositores e de leigos, alguns

diretamente atingidos pelas medidas de profilaxia da Junta, expondo suas ideias livremente nos

jornais cariocas. Por outro lado, os médicos não eram unânimes quanto aos tratamentos mais

adequados no socorro aos coléricos, indo do uso violento da sangria, cáusticos e vesicatórios

da medicina alopática às “doses infinitesimais” da homeopatia308. Portanto, as divergências

entre os médicos, e entre esses e os leigos, ficaram mais patentes durante o surto epidêmico.

As cisões dos esculápios não foram exclusividade do Brasil oitocentista. A partir de

1830, quando o cólera se alastrou pela Europa, alguns cientistas levantaram hipóteses

verossímeis sobre a etiologia dele, sem repercussão e aceitação imediata. O inglês John Snow,

em 1849, indicou a relação entre a transmissão do cólera e a água, ao mapear as mortes nas

áreas de Londres abastecidas pelo rio Tâmisa309. Já o italiano Filippo Pacini, na década de 1850,

realizou estudos nas vísceras de coléricos, nas quais identificou a presença de microrganismo

estranho310. Malgrado os estudos de Pacini, a história oficial da medicina deu ao médico Robert

Koch (1843-1910) o mérito da descoberta do agente transmissor da doença, enquanto liderava

comissão científica alemã no Egito, no ano de 1883311.

Em meio às incertezas da medicina, o cólera foi responsável pela morte de cerca de

duzentas mil pessoas no Brasil de 1855 a 1856, sendo cento e trinta mil só na região do atual

Nordeste. As províncias da Bahia, Pernambuco e Paraíba tiveram as maiores mortalidades

registradas, ultrapassando a casa de trinta mil cada312. A produção historiográfica dedicada ao

assunto demonstra terem sido negros, libertos ou escravizados, a maioria dos vitimados no

Brasil, somados a brancos e pardos situados nas camadas mais miseráveis. Para Donald Cooper,

“nada menos que dois terços das vítimas do cólera no Brasil eram negras. Foi um holocausto

sul americano do século XIX”, o “maior e mais dramático desastre demográfico do Brasil”313.

Tratando da mortalidade negra por cólera no Rio de Janeiro, Kodama et al afirmaram:

307 PIMENTA, op. cit., 2003, p. 228. 308 PIMENTA, op. cit., 2004, p. 51. 309 SNOW, John. Sobre a maneira da transmissão do cólera. Rio de Janeiro: USAID, 1967. 310 LEWINSOHN, op. cit., 2003, p. 125. 311 ROSENBERG, op. cit., 1987, p. 3. A descoberta de Koch, ao isolar o vibrião, não deixou de ser alvo de

acaloradas contestações. Na Alemanha, Max Von Pettenkofer, principal autoridade médica no país por décadas, e

defensor da teoria miasmática, travou renhidas discussões com o colega Koch, ascendente em poder e prestígio no

país. Pettenkofer chegou a tomar um copo de água contaminada pelo vibrião, para tentar provar que o adversário

estava errado. EVANS, op. cit., 2005, p. 497. 312 DINIZ, op. cit., 2011, p. 57. 313 COOPER, op. cit., 1986, p. 486. As taxas indicadas por Cooper lembram as considerações de Kenneth Kiple

sobre a relação raça/epidemia no Caribe, reforçando a constatação de ter sido o cólera um ceifador de vidas negras

na América Latina oitocentista (KIPLE, op. cit., 1985). Segundo Cooper, a “perda de milhares de trabalhadores

para o cólera foi um golpe terrível para o Brasil, especialmente porque a importação de novos escravos da África

65

Ainda que nem todos os livres possam tampouco figurar em situações de vida

diferentes daquelas dos escravos e dos libertos, é notória a mortalidade nos

dois últimos grupos, seja por sua maior exposição aos dejetos, por falta de

acesso à água limpa ou por condições físicas já precárias314.

Além do desastre demográfico, o cólera horrorizava pelos efeitos degradantes da doença

sobre a aparência. O espetáculo nauseabundo dos vômitos e dejeções incontroláveis modificava

em pouco tempo o corpo mais rijo, transformando-o em algo ressequido, enrugado e

esquelético. Para Charles Rosenberg, o cólera marcou o século XIX como a peste bubônica o

XVI, não só pelos estragos produzidos, mas, principalmente, pelas marcas deixadas na memória

dos sobreviventes, devido aos sintomas espetaculares, similares ao do envenenamento agudo

por arsênico315. Horrorizava, sobretudo, a cianose, decorrente do colapso circulatório, deixando

os doentes com a pele azul. Susan Sontag afirmou: o pavor ocasionado pelo azul do cólera está

na origem do termo francês une peur bleue, usado para definir “um medo paralisante”316.

Diante dos funestos feitos da primeira leva de epidemias do cólera no Império do Brasil,

o Ceará conviveu com o medo de ser visitado por tão indesejado viajante. Com a peste agindo,

ao mesmo tempo, em três províncias ligadas ao território cearense, a maior parte de suas

fronteiras estava sitiada entre 1855 e 1856. A apreensão em relação à proximidade dos surtos

epidêmicos está fartamente documentada na imprensa e nos relatórios oficiais dos presidentes

da província, sendo escopo da análise feita pela historiografia sobre o tema317. A peste poderia

cruzar os limites do Ceará por Crato, na fronteira com Pernambuco, ou por Icó, fronteiriço da

Paraíba e Rio Grande do Norte, ou ainda em Aracati, vizinho do território potiguar. Todas as

possibilidades pareciam verossímeis, pois os “pontos limítrofes dessas comarcas com o das

províncias vizinhas têm sido atacados daquela epidemia, e não é impossível que ela, por um

dos seus numerosos caprichos, passe imediatamente para o território desta província”318.

Sem embargo do receio sentido entre 1855 e 1856, o cólera não cruzou a fronteira do

Ceará naquela ocasião. Passadas as cenas de pânico dos surtos iniciais, a doença permaneceu a

errância pelo território brasileiro. Manifestações bem mais amenas, em comparação à

temporada de estreia, ocorreram em 1857 e nos anos seguintes nas províncias da Paraíba, Rio

havia terminado em 1850, e as recentes e devastadoras epidemias de febre amarela complicaram o recrutamento

de substituições” por colonos europeus. COOPER, op. cit., 1986, p. 484. 314 KODAMA et al, op. cit., 2012, p. 65. 315 ROSENBERG, op. cit., 1987, p. 2. 316SONTAG, op. cit., 2007, p. 108. 317 ALEXANDRE, op. cit., 2010; LEMOS, Mayara de Almeida. Terror no sertão do Ceará: o cólera e seus

flagelos. Fortaleza: EdUECE, 2016; MACIEL, op. cit., 2017. 318 CUNHA, Herculano Antonio Pereira da. Relatório com que abriu a Assembla Legislativa Provincial do Ceará,

o 1º Vice-Presidente da mesma o Excelentíssimo Senhor Doutor Herculano Antonio Pereira da Cunha, no dia 1º

de julho de 1856. Tipografia Cearense, 1856, p. 24. Disponível no site http://www-

apps.crl.edu/brazil/provincial/ceará. Acesso em 31 ago. 2018.

66

Grande do Norte, entre outras que já haviam sido palco para o terrível drama epidêmico. Entre

1858 e 1861, o cólera parecia ter desaparecido, sumindo quase completamente da mira dos

jornais e dos discursos dos políticos no Ceará. Não obstante, no ano de 1862, novos surtos

ocorreram, atingindo com força, regiões do sertão paraibano, limítrofes ao território cearense.

Desta vez, a província não teve escapatória.

Situada na fronteira da Paraíba, tendo relações comerciais com localidades então

atacadas por surtos, a cidade de Icó temia ser a porta de entrada do cólera no território cearense.

As publicações da imprensa nos primeiros meses de 1862 reivindicavam providências das

autoridades para evitar a contaminação de Icó, bem como sugeriam o envio de médicos e

remédios para tratamento dos eventuais doentes, caso se manifestassem no lugar. As indicações

de formas de tratamento da doença, que ocuparam bastante espaço na imprensa cearense de

1855 e 1856, foram retomadas.

O temor da contaminação tornou-se maior a 22 de março: um homem enviado em busca

de remédios para tratamento dos coléricos de Sousa, na Paraíba, caiu doente a apenas duas

léguas de distância de Icó. Pedro Théberge, médico francês residente na cidade, foi chamado a

socorrer o enfermo. Até então, o médico tinha publicado textos contestando a existência do

cólera em Sousa. É provável estarem nas inquietações de Théberge, a respeito da confirmação

da moléstia, algo recorrente nos lugares vitimados por epidemias. Conforme Jean Delumeau,

“o medo legítimo da peste levava a retardar pelo maior tempo possível o momento em que seria

encarada de frente. Médicos e autoridades procuravam então enganar a si mesmos”319. As

considerações de Rosenberg, sobre o “primeiro ato” do drama protagonizado pelas epidemias,

também ajudam a entender a atitude de Théberge. A demora em aceitar e reconhecer a presença

da doença invasora foi uma constante em outras epidemias, afinal, confirmá-la provocava

consequências concretas sobre questões políticas, sociais e econômicas da localidade afetada:

admitir a presença de doença epidêmica trazia riscos de “dissolução social”320.

Confrontado com a situação do doente vindo de Sousa, o doutor Pedro Théberge foi

obrigado a revelar a presença do cólera: “Quando chegamos encon[trei]-o já em termos de

expirar, e com todos [sin]tomas do cólera álgido321 o mais bem pro[v]ado: diarreia e vômitos

319 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das

Letras, 1989, p. 118. 320 ROSENBERG, op. cit., 1992, p. 281-282. 321 Considerada a etapa mais grave do cólera, a algidez era caracterizada pelo rápido esfriamento da temperatura

corporal. As orientações médicas do período sugeriam que, uma vez identificada a fase álgida, era necessário

buscar imediatamente restabelecer o calor no paciente. Texto publicado no jornal O Araripe sugeria que a ação

em prol da elevação da temperatura se desse em duas frentes: internamente, por meio da ingestão de infusão à base

de “café preto bem forte, do vinho do Porto ou de Madeira, aguardente ou álcool, ajuntando-se lhe de 8 a 20 pingos

do licor Stragnoff ”; e externamente, pela fricção, “com toda prontidão”, de baeta, flanela ou escova, embebida

67

pertinazes de más mucosas e de cor esbranquiçadas, dores [atro]zes no estômago e sobretudo

nos membros”322. No dia 5 de abril de 1862, José Leandro Tavares, “um forasteiro chegado do

Rio do Peixe [localidade da Paraíba]”323, morreu no núcleo urbano icoense: não havia mais

como negar a presença do visitante indesejado no Ceará. A partir de lá, a doença rapidamente

se alastrou pela província, seguindo os passos de boiadeiros – Icó era polo de distribuição de

gado desde o século XVIII – ou de pessoas que fugiam de localidades contaminadas324,

carregando o vibrião colérico nos organismos e mantimentos.

Como demonstra Dhenis Maciel, a entrada do cólera no Ceará não se deu pelo litoral:

acabou reproduzindo as rotas de ocupação do sertão cearense no século XVIII, o caminho do

gado, das ribeiras a ligar a região sul ao porto do Aracati325. Tendo em vista a posição estratégica

de Icó no comércio provincial, o vice-presidente do Ceará, José Antônio Machado, em meados

de março, fora taxativo em correspondência com o então Ministro de Negócios do Império,

Ildefonso de Lima Ramos: “Se o cólera morbo acometer a cidade do Icó, [...], é muito provável

que esta capital não escape à sua perniciosa influência atentas às frequentes comunicações e o

comércio bastante ativo, que ligam as duas localidades”326.

Em ofício de 4 de maio, quase um mês após o registro da primeira morte no Icó, o vice-

presidente informou: não “eram infundados os receios” manifestados na correspondência

anterior ao ministro, sobre a “invasão do cólera-morbo nesta província que está hoje a braços

com este terrível flagelo”. Comunicava o “quadro doloroso” de Icó, no “seu auge de

intensidade, apresentando o cortejo de horrores que a acompanha”. Anexado ao ofício, estava

cópia de comunicação feita pelo juiz de direito, Luís José de Medeiros, presidente da comissão

nomeada pelo governo provincial para socorrer os icoenses. Escrito a 18 de abril, descrevia o

ânimo abatido da população frente aos “verdadeiros triunfos” ostentados pela peste, com

dezenas de mortes contadas diariamente. Devido ao grande número de acamados os “médicos

já não têm forças e nem tempo para tanto trabalho, não lhes sendo possível acudir a todos”. A

situação ainda se complicava pela falta do pessoal necessário para trabalhar no hospital

em pimenta malagueta, mostarda ou cantáridas. Complementando tal tratamento, “o sumo do limão em doses

pequenas repetidas e progressivamente maiores, começando por uma colherzinha”, seria apropriado para o doente

que não estivesse totalmente álgido e demonstrasse muita sede. O Araripe, n. 307, 13 mai. 1864, p. 3. 322 O Cearense, n. 1519, 08 abr. 1862, p. 1. A edição do jornal consultada apresenta rasgos que comprometem

parte da leitura da correspondência do Dr. Théberge. As informações nos colchetes tentam, assim, completar as

brechas do documento a partir dos demais elementos textuais visíveis. 323 STUDART, Dr. Barão de. Climatologia, epidemias e endemias do Ceará. Ed. fac-sim. (1909). Fortaleza:

Fundação Waldemar Alcântara, 1997b, p. 54 324 STUDART, op. cit., 1997b, p. 54 325 MACIEL, op. cit., 2017, p. 97. 326 ANRJ. Ofício n. 28, 15 mar. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

68

improvisado e no cemitério. Ademais, a doença atingia prestadores de assistência à população,

como “um velho sacerdote que ontem sucumbiu e de dois outros que tem sofrido, e que eram

no seu elemento religioso, bons colaboradores na presente quadra”. O próprio Dr. Théberge

adoecera, de modo que a “cidade se comoveu sensivelmente a esse duplo golpe que [a atingiu]

espiritual e materialmente” ante a falta “desses seus guardas vigilantes e ativos zeladores”.

Tratava, ainda, das dificuldades enfrentadas pela comissão de socorros e de um empréstimo

contraído pela mesma, em nome do governo, para custear as ações. Neste cenário desolador, as

ruas da cidade estavam esvaziadas:

Quase todos os seus habitantes se recolhem, se concentram no recinto de suas

casas ou fazendas em leitos de dor ou velando à cabeceira dos amigos[,] dos

parentes que sofrem. Há uma verdadeira desolação, um como abandono

covarde aos acometimentos de um inimigo em triunfo327.

Recuperado da doença, o dr. Théberge enviou ao O Cearense relato da situação

epidêmica de Icó, datado a 8 de maio de 1862. Nele, ironizava a tendência geral do cólera no

mundo, de vitimar as camadas sociais marginalizadas, ao compará-la com o observado na

cidade. Segundo Théberge, os sobrados “mais bem arejados e mais asseados” de Icó, e que,

portanto, “deveriam ser mais poupados”, foram por onde o cólera principiou a ação “com um

furor inaudito a exercer sua espantosa tarefa”. Em contraste com tal situação, na cadeia da

cidade, onde “perto de 70 pessoas” se “achavam entulhadas”, e, por isso, havia a expectativa

do cólera agir com violência, “morreram dois [presos], já de muito tempo afetados de moléstias

mortais, e outros dois sucumbiram aos efeitos da epidemia. Todos os outros se

restabeleceram”328. Ante tais dados, Théberge ironizava o saber científico, do qual era

representante, como médico e naturalista, ao mesmo tempo em que demonstrava desconforto

com a proporção de mortos entre as elites locais, considerada alta por ele:

A cidade [de Icó] acha-se colocada numa imensa várzea; admiravelmente

assentada numa das margens do rio Salgado, sua elevação acima do seu álveo,

a preserva de suas maiores inundações, um declive natural do terreno favorece

o escoamento das águas fluviais, que favorece a abertura de valados em todas

as ruas que são largas, umas de perto de cem palmos, outras de mais de

duzentos; as casas são boas, espaçosas e asseadas. Ora a ciência ensina que

estas são as condições mais favoráveis à salubridade; logo o cólera não pode

deixar de a respeitar e de a poupar.

Sim, se a ciência não falhasse. Pois, por um capricho incompreensível desta

bizarra epidemia, assolou-a com uma sanha ainda sem exemplo no Brasil. No

327 ANRJ. Ofício n. 35. 04 mai. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 328 O Cearense, n. 1526, 27 mai. 1862, p. 4.

69

decurso do mês de abril, de cinco mil habitantes que conta o recinto da cidade,

levou quinhentos. Fez em um mês uma coleta exata do dízimo das vidas, e

ainda continua a fazer numerosas vítimas; e só Deus sabe até onde e quando

ele continuará a nos coletar[...].

Diz-se geralmente que o cólera é rasteiro e não alcança senão a gente baixa,

pobre e proletária. No Icó entre quinhentas vítimas que já se fez contam-se

mais de cem pessoas de notabilidade329.

Ainda segundo o médico, nos primeiros dez dias da epidemia, “só morriam mulheres”.

Passado o período inicial, o cólera teria se atirado nos “homens, como se o cruel se arrependesse

de ter sido tão descortês para com o belo sexo”330. A incidência de mortes femininas, indicada

por Théberge, pode ser explicada pelo papel desempenhado pelas mulheres no cotidiano

doméstico na época. Das mulheres, por exemplo, se esperava o cuidado com os doentes

domésticos e a lida com alimentos e outros potenciais focos de transmissão do vibrião colérico.

Tratando da epidemia de cólera de 1892, em Hamburgo, Richard Evans indicou como, seja nas

classes favorecidas ou não, as atribuições dadas às mulheres as expunham a maiores riscos:

[...] comprar, preparar e cozinhar alimentos, limpar a casa, inclusive os

banheiros, trocar fraldas [..] e lavar as roupas de cama, na verdade lavar tudo,

não apenas as vestimentas, mas também as panelas e frigideiras, os pratos, as

facas e os garfos. Todas essas atividades, é claro, ofereciam grandes riscos

durante uma epidemia do cólera331.

Após iniciar a matança de mulheres e homens de Icó, o cólera seguiu pelos caminhos

do Ceará. Saindo do polo inaugural de contaminação, seriam atingidas pelo cólera, ao longo de

1862, as localidades: Aquiraz, Assaré, Aracati, Barbalha, Baturité, Canindé, Cascavel, Crato,

Fortaleza, Imperatriz, Jardim, Lavras, Maranguape, Milagres, Missão Velha, Morada Nova,

Quixeramobim, Russas, Saboeiro, São João do Príncipe, Telha, Várzea Alegre, entre outras.

Das quatorze comarcas existentes no Ceará, sete foram atingidas entre abril e junho332. O cólera

abrangeu, desta forma, parte significativa do território cearense, marcando presença nas regiões

do Cariri e Inhamuns, no sertão central e norte da província e em parte do litoral, incluindo a

própria capital. A imagem a seguir sinaliza o ponto inicial da contaminação e indica os lugares

afetados pela epidemia:

329 O Cearense, n. 1526, 27 mai. 1862, p. 3-4. 330 O Cearense, n. 1526, 27 mai. 1862, p. 4. 331 EVANS, op. cit., 2005, p. 458. 332 ANRJ. Ofício n. 53. 30 jun. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

70

Fonte: Sinalização das localidades cearenses afetadas pelo cólera em 1862 sobre a imagem da “Carta corográfica

da Província do Ceará com divisão eclesiástica e indicação da civil judiciária até hoje” (1861), elaborada por Pierre

Théberge. A carta se encontra disponível no site: https://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/20.500.12156.3/27310.

Acesso a 9 nov. 2020.

Nos primeiros lances da epidemia, o presidente em exercício nomeou comissões de

socorro nas localidades, remeteu remédios e autorizações para criação de enfermarias nas

principais cidades, vilas e povoados, “onde sejam tratados os indigentes, que assim acharão um

abrigo contra a intempérie do tempo a que ficariam exposta em suas habitações insalubres”333.

333 MACHADO, José Antonio. Relatório com que o 4º. Vice-Presidente Comendador José Antonio Machado

passou a administração da província ao Excelentíssimo Senhor Doutor José Bento da Cunha Figueiredo Junior,

71

No próximo capítulo, mostrarei como as medidas da presidência no socorro aos lugares

contaminados, especialmente quando da posse de Figueiredo Júnior, tiveram destaque nas

disputas políticas, preenchendo as páginas da imprensa e a correspondência oficial com a Corte.

O pequeno número de médicos habitantes da província, especialmente do interior, era

problema na organização dos socorros públicos334. Almejando contornar a questão, o governo

do Ceará remeteu ofícios à Bahia, Maranhão, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte,

pedindo que as presidências destas províncias arregimentassem profissionais e os

encaminhassem à Fortaleza. Vários facultativos, como eram chamados também os formados

em medicina, foram enviados, sendo contratados e conduzidos para diferentes lugares. Ao todo,

35 médicos foram comissionados pelo governo provincial para tratamento dos coléricos335. O

pagamento dos facultativos era negociado individualmente, pelas comissões de socorro e pela

presidência. Tais tratativas levaram a recusa do governo em empregar alguns médicos de outras

províncias, por conta do alto valor pedido, chegando à cifra de cinquenta mil réis diários336.

Em algumas ocasiões, o pagamento acordado com médicos foi alvo de reprimenda por

parte do Ministério, cobrando cautela nos gastos da verba destinada aos socorros públicos. Ao

saber que o Dr. Antônio Manoel de Medeiros, comissionado nas comarcas de Crato e Jardim,

fora contratado por 400$000 (quatrocentos mil réis), mais gratificação de 450$000 e diárias de

30$000, um servidor ministerial registrou, nas margens do ofício no qual o vice-presidente do

Ceará comunicava tais valores, que as diárias eram excessivas, cabendo empregar “toda

vigilância para que os seus comissários abusem o menos possível, e assim a Tesouraria pague

mais do que deve os socorros aqueles habitantes”337. Para tentar resolver o problema, o governo

chegou a propor a alguns profissionais que se engajassem nas comissões “sob promessa de uma

remuneração pecuniária paga segundo os seus serviços no fim da epidemia, em vez de

perceberem diárias desde que começaram as visitas domiciliares”338. Obviamente, poucos

médicos aceitaram tal proposta. Para as localidades onde não foi possível encaminhar

em 5 de maio de 1862. Typographia Cearense. 1862, p. 4. Disponível no site http://www-

apps.crl.edu/brazil/provincial/ceará. Acesso a 31 ago. 2018. 334 A falta de médicos era um problema na maior parte do Brasil. Segundo Donald Cooper, as “duas escolas de

medicina do país [Rio de Janeiro e Salvador], formavam juntas menos de cem médicos por ano, em um país de

oito milhões de pessoas” em meados do século XIX. Os poucos formados acabavam concentrando-se nas grandes

capitais, sendo “raramente encontrados nas províncias pobres e remotas do norte”. COOPER, op. cit., p. 468. 335 ANRJ. Ofício n. 53. 30 jun. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 336 ANRJ. Ofício n. 57. 28 jul.1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 337 ANRJ. Ofício n. 28. 15 mar. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 338 ANRJ. Ofício n. 53. 30 jun. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

72

esculápios, o governo contratou práticos – pessoas que, mesmo sem formação acadêmica, eram

reconhecidas nas localidades como entendedoras das artes de curar – e enfermeiros.

A chegada do cólera também deu azo a práticas penitenciais amparadas no imaginário

da peste como “castigo divino”, uma das mais antigas representações sobre o fenômeno doença.

Devido ao caráter coletivo, pois durante sua manifestação “não é apenas um indivíduo que fica

doente, mas todos os que estão à sua volta”, atos coletivos também eram encetados para vencê-

la339. Para Delumeau, “as iniciativas individuais não bastavam”. Se a cidade inteira era tomada

pela doença, toda ela era considerada “culpada”. Logo, “sentia-se a necessidade de implorações

coletivas e de penitências públicas cuja unanimidade e o aspecto, [...], quantitativo, poderiam

talvez impressionar o Altíssimo”340. Orações públicas, procissões e outras práticas penitenciais,

eram, assim, instituídas para “remissão dos pecados” e vitória sobre a “peste” no Ceará. Studart

descreveu uma procissão de penitência, ocorrida nas ruas de Baturité durante o surto de 1862:

[...] na frente uma grande cruz cingida com uma toalha branca, uma matraca

a soar, o padre de alva e estola preta a entoar em voz cavernosa e soturna o

Paenitet e após a multidão dos fiéis, uns com grandes pedras sobre a cabeça,

outros com barricas ou pesados madeiros, descalços, todos a percutirem o

peito a clamar misericórdia ou a verter o sangue a mercê dos azorragues; as

casas de portas e janelas fechadas, ninguém ousando olhar os penitentes

porque então sobrecarregaria a consciência com os pecados deles; ao chegar

ao templo, mal alumiado, ao clarão dúbio de poucas velas, muitos se atiravam

ao chão para que a multidão lhes passasse por cima, outros permaneciam

imóveis de braços abertos, e a cada canto gemidos e o tilintar das disciplinas

[lâminas presas a um chicote] a cortarem as carnes sem piedade341.

Relatos de penitentes a se flagelar para abrandar a “ira dos Céus”, ou de celebrações

pias realizadas nos templos, também se deram em outros pontos da província, indicando como

a epidemia amedrontou àquelas pessoas. O pároco de Barbalha foi repreendido pelo O Araripe,

por, supostamente, incentivar a ação de penitentes, mesmo depois da passagem da epidemia. O

ritual aconteceria ao meio-dia, reunindo “bandos confusos de homens descalços e meio nus,

que cantando alto e descompassado rasgam as carnes com disciplinas!”. Em tom irônico,

afirmava que as pessoas não habituadas com os “costumes da paróquia”, achavam aquilo

“desordem” e “assuada”. Mas, concluía, os penitentes, “se açoitavam, porque o cólera estava

para vir, e agora se açoitam, porque não têm o que fazer”, com autorização do dito vigário342.

339 ADAM, Philippe; HERZLICH, Claudine. Sociologia da doença e da medicina. Bauru-SP: EDUSC, 2001, p.

17. 340 DELUMEAU, op. cit., 1989, p. 146. 341 STUDART, op. cit., 1997b, p. 55-56. 342 O Araripe, n. 291, 19 out. 1862, p. 2-3. O redator d’O Araripe, João Brígido, era inimigo do vigário de Barbalha,

o que ajuda a entender o tom agressivo na notícia. A rivalidade entre as personagens será discutida mais à frente.

73

A epidemia não deixou de servir pedagogicamente aos padres para incutir em suas

ovelhas elementos da catequese católica, em meio ao medo e caos instalados. Da freguesia de

Assaré, o pároco José Tavares Teixeira escreveu ao bispo diocesano informando “aproveitar a

boa disposição e mesmo situação desses infelizes” fregueses, “agora assombrados com o horror

de sua lamentável situação”. Por isso, pedia autorização ao pastor diocesano para simplificar os

proclamas matrimoniais, acelerando, assim, a oficialização dos enlaces dos casais que viviam

em concubinato e demonstravam a vontade de se casarem por medo de morrerem em pecado343.

Em Missão Velha, a situação dos que viviam em mancebia também era alvo das

prédicas, assim como várias celebrações de cunho penitencial tomaram o cotidiano da paróquia.

Félix Aurélio Arnaud Formiga, o vigário, informou a Dom Luís Antônio dos Santos que, desde

o surgimento do cólera, conservava “o povo de minha Freguesia em continua penitência,

fazendo novenas a São Sebastião, a Nossa Senhora das Dores, a Santa Rita, a São José,

Padroeiro da Freguesia, celebrando a Festa da Semana Santa e finalmente fazendo os exercícios

do Mês Marianno”. Nos sermões, padre Félix se esforçava em convencer os fiéis de que o cólera

não era tão terrível e que menor se tornaria com “súplicas e mortificações do que temos muitos

exemplos na História”. Diante das mortes sucessivas e do medo que tomava conta da vila, o

vigário almejava comover fiéis, emendar atos, reconciliá-los com a Igreja, por meio dos

sacramentos, e superar conflitos entre os fregueses, como insinua o trecho a seguir:

Devo dizer mais a V. Exª. que tenho pregado em quase todos os Domingos,

como me tem permitido a minha fraqueza e incapacidade intelectual, foi meu

primeiro cuidado falar sobre o perdão das injurias, inimizades, e tenho a

fortuna de asseverar a V. Exª. que tem havido uma geral reconciliação nesta

Freguesia, de sorte que não me consta haver presentemente alguma

malquerença: muita gente que por indiferença, ou outros motivos não se

confessavam havia muito tempo, e pareciam rebeldes, tem procurado a

confissão sacramental, alguns amancebados se estão habilitando para se

casarem e outros tem saído desse miserável estado; e finalmente, Exmº.

Senhor, não me tem parecido sem fruto o chamamento à penitência, em cuja

prática, muitos se tem convertido à vista da penitência doutros344.

Se a penitência era preocupação compartilhada amplamente, por conta da força da

cultura católica na província, médicos e autoridades públicas não deixaram de procurar as

causas naturais da doença. Sem a clareza de que a água, alimentos e demais objetos em contato

343 DHDPG. Carta do Pe. José Tavares Teixeira a Dom Luís Antonio dos Santos. 22 mai. 1862. Pasta CRA, 19,

120. Onildo David também registrou fenômeno parecido na Bahia de 1855, quando da epidemia do cólera:

“Durante a epidemia, grande número de casais que viviam amancebados, [...], trataram de formalizar suas uniões

através do matrimônio”. DAVID, op. cit., 1996, p. 128. 344 DHDPG. Carta do Pe. Felix Aurélio Arnaud Formiga a Dom Luís Antônio dos Santos. 21 mai. 1862. Pasta

CRA 15, 47.

74

com as dejeções dos coléricos eram os principais meios de transmissão, demonstraram clara

preocupação com o risco dos “miasmas”. A Câmara Municipal de Fortaleza chegou a demandar

do governo provincial o aterro de dois pântanos da cidade, bem como a queima de grandes

fogueiras, “convencida de que eram condição indispensável de salubridade em tempo de

epidemia”. Tendo consultado o Dr. José Lourenço de Castro e Silva – maior autoridade sanitária

da província, como demonstrarei nos próximos capítulos, ocupante dos cargos de Provedor de

Saúde do Porto de Fortaleza e Inspetor de Saúde Pública – sobre a validade das medidas e,

preocupado com os gastos decorrentes delas, o presidente recusou as propostas dos

vereadores345. Não obstante, conta o Barão de Studart que, em diferentes lugares da província,

recursos do governo foram gastos na armação de fogueiras com o propósito de purificar o ar e

suspender o avanço da epidemia. Na vila de Baturité, piras de alcatrão foram acesas em fendas

cavadas pelas ruas: “assemelhavam-se a círios colossais a iluminar o esquife da cidade”346.

O combate aos miasmas justificou a caçada aos criadores de porcos da província. Edital

de 21 de abril de 1862, publicado pela Secretaria de Polícia do Ceará, dava aos habitantes de

Fortaleza prazo de três dias para que “removam de seus quintais porcos e outros animais que

fazem lodaçais focos de imundices, e que tenham suas casas e quintais com o devido asseio e

limpeza, o que será examinado depois do referido prazo sendo punidos os transgressores com

as penas da lei”347. Mayara Lemos mostrou as consequências econômicas desastrosas da

proibição dos suínos em Quixeramobim: Pedro Jaime de Alencar, tendo empregado seus parcos

recursos na criação, foi obrigado a sacrificar e enterrar a vara numa cova profunda348. Em Crato,

a manifestação dos casos de cólera nas províncias vizinhas, no começo de 1862, já tinha

provocado massacre de animais. Os criadores pobres da cidade esboçaram resistência à medida,

escondendo porcos dos fiscais ou levando-os para fora da cidade, como indicia O Araripe: “Uns

deixam os muros da cidade, amarrados sobre cargas, tremendo pela sua sorte, gritando de

espavoridos; outros se acham trancados em escuros quartos, para evitar a sanha dos

massacradores! Que dias aziagos para estas inocentes criaturas!”349.

345 ANRJ. Ofício n. 83, 11 set. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 346 STUDART, op. cit., 1997b, p. 55. 347 Pedro II, n. 90, 22 abr. 1862, p. 4. 348 LEMOS, op. cit., 2016, p. 68. A matança de animais em época de epidemia não foi fato isolado do Ceará de

1862. Jean Delumeau identificou tal prática nos surtos medievais da peste negra. Ante a violência da moléstia e as

inquietações sobre suas causas, porcos, cães, gatos e pombos foram mortos em massa na Europa. DELUMEAU,

op. cit., 1989, p. 121. Daniel Defoe, reproduzindo as orientações do Prefeito de Londres, quando da epidemia de

peste bubônica de 1665, registrou a proibição de que animais domésticos fossem mantidos na cidade durante o

surto, especialmente porcos: “Caso qualquer bedel ou outro funcionário encontre porcos soltos, o proprietário deve

ser punido”. DEFOE, Daniel. Um diário do ano da peste. 3ª ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2014, p. 63. 349 O Araripe, n. 277, 08 fev. 1862, p. 3.

75

Ante os avanços da moléstia letal, os jornais não deixaram de publicar orientações

voltadas a público bem específico: os senhores de escravizados. Já em 1856, no intuito de evitar

a contaminação dos cativos, O Araripe reproduziu artigo do médico pernambucano Joaquim

d’Aquino Fonseca. Para ele, os afazeres excessivos, quer intelectual ou corpóreo, facilitavam o

desenvolvimento do cólera. Por isso, era forçoso evitar a labuta em horas de muito calor ou

umidade. Assim, os proprietários de engenhos e estabelecimentos rurais deviam impedir a

escravaria de trabalhar pela madrugada ou noite, quando o clima favorecia o resfriamento dos

corpos. Durante o dia, era recomendável evitar que ficassem expostos ao sol nas horas de maior

calor, dando, ainda, aos mesmos uma hora de descanso após as refeições. Pela manhã, não era

conveniente deixá-los ir para o trabalho em jejum. Seus donos deveriam oferecer xícaras de

café puro ou pequenos cálices de genebra ou aguardente de cana ao alvorecer350.

A higiene dos cativos também era escopo de preocupação. Os senhores, dizia o Dr.

Fonseca, deviam “obrigar seus escravos a banharem-se uma vez por dia, fazendo-o de modo

que não haja supressão da transpiração ou resfriamento”. Como a aglomeração dos escravizados

favorecia a disseminação do cólera, o médico alvitrava a organização de uma subdivisão deles,

pois não era bom muitos sujeitos dormindo em “lugares acanhados”, como em certas senzalas.

De preferência, deviam ser alocados em casas situadas em pontos altos e arejados, onde

pequenas fogueiras podiam ser acesas à noite, para combater os miasmas351.

A inquietação do artigo em guiar os senhores sobre os procedimentos com a escravaria

não se assentava totalmente em princípios humanitários e caritativos. A própria orientação

sobre coisas aparentemente básicas – oferta mínima de refeições diárias, regras de higiene

corporal, entre outras recomendações elencadas –, assinala a precariedade das condições de

vida a que os cativos estavam subordinados. Contudo, o cólera representava prenúncio grave

aos interesses dos senhores, pois, como já informado, muitos escravizados pereceram nos surtos

do oitocentos352. Pelo visto, O Araripe, ao apregoar as considerações do Dr. Aquino ambicionou

acordar as elites locais para os riscos do cólera, afinal escravizados eram mercadorias que se

tornaram mais caras e raras no Ceará, especialmente a partir de 1850, quando o tráfico externo

foi abolido e intensificou-se o interno, com os cativos sendo vendidos para o sul do Império.

No início da década de 1860, a população escrava no Ceará era estimada em 35.441 e a de livres

em 468.318353. Portanto, a preocupação era conservar a vida escrava para melhor explorá-la.

350 O Araripe, n. 33, 16 fev. 1856, p. 3. 351 O Araripe, n. 33, 16 fev. 1856, p. 3. 352 KODAMA et al, op. cit, 2012. 353 BRASIL, op. cit., 1997, p. 299.

76

Não por acaso, muitas correspondências publicadas nos jornais davam conta da morte

de escravizados, destacando o prejuízo dos proprietários. Em julho de 1862, carta publicada no

Pedro II, descrevia como se encontrava o “infeliz Maranguape”. Em meio às mais de trezentas

pessoas mortas na vila até o dia 4 de julho, o missivista destacava pesaroso: “Aqui os escravos

têm-se acabado; o vigário tem perdido 4; o Faustino perdeu a mulatinha, e assim muitas outras

pessoas”354. O vigário em questão era Pedro Antunes de Alencar Rodovalho, que, em meados

de agosto, aparece noticiado como morto. Ao todo, o padre teria perdido doze escravizados por

conta da epidemia. Aparentemente, a morte dos cativos e de alguns familiares debilitou mais

ainda o enfermo sacerdote, levando-o à campa355. Outra carta, de Quixeramobim, descrevia a

“cena tão triste e aterradora” do cólera. O missivista afirmava que “felizmente” ele e família,

“na parte em que respeita aos brancos”, não tinham sido atingidos pela moléstia. O mesmo não

teria ocorrido entre as pessoas de cor agregadas sob seu domínio: “quanto aos negros e escravos

não tem sido o mesmo; quase todos têm sido atacados, e já morreram dois”. Afirmava,

demonstrando felicidade, que os cativos enfermos se mostravam fora de perigo. Todavia, temia

pela sorte de dezesseis escravizados mantidos fora da cidade, em sua fazenda: “já me dão algum

cuidado porque se diz que a epidemia vai grassando por fora”356.

A epidemia deu visibilidade ao grau de pobreza da maioria dos cearenses. Tratando da

comarca de Quixeramobim, o presidente Figueiredo Júnior a descreveu como extensa, “sendo

paupérrima a maior parte de sua população, aliás mui numerosa”. Para lá enviara “uma

ambulância, duas carteiras homeopáticas, duas caixas com tinturas e duas peças de baeta;

devendo-se fornecer numa botica ali existente os remédios que vierem a faltar”. Autorizou ainda

à comissão de socorros local que até “600$000 poderiam ser gastos com as dietas e outros

socorros aos “pobres desvalidos”, que se somariam a outros 800$000 arrecadados em

subscrição organizada pela dita comissão357. A grande presença de miseráveis marcava outros

lugares, como Crato e Jardim, no sul da província, vivendo, ainda, conjunção climática

considerada perniciosa, favorecendo o avanço do surto: “a epidemia encontra naquela região

todos os elementos para desenvolver-se, tais como um clima úmido, inverno rigoroso e

população numerosíssima e paupérrima, disseminada em vastos povoados, morando em

pequenas choças de palmeiras, e dispondo somente de alguns legumes” para se alimentarem358.

354 Pedro II, n. 153, 08 jul. 1862, p. 2-3 355 O Cearense, n. 1538, 19 ago. 1862, p. 1. 356 Pedro II, n.162, 18 jul. 1862, p. 2. 357 ANRJ. Ofício n. 14, 26 mai. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 358 Idem.

77

Parte da população miserável acabava nos hospitais improvisados pelas comissões de

socorro. Sofrendo as agruras da doença, tomado por dores, diarreia e náuseas incontroláveis,

destruindo a aparência e força física, na maioria das vezes o enfermo tinha a situação piorada

nas enfermarias. Em tempo de epidemia, elas faziam parte da estratégia das autoridades para

evitar o risco de contágio, ao concentrar os adoentados em determinada área, facilitando, ainda,

a distribuição de remédios e alimentos. Não deixava, também, de ser medida segregadora,

circunscrevendo a pobreza doente em determinadas áreas. Todavia, a estratégia nem sempre foi

aceita pelos enfermos. A repulsa dos pobres ao ambiente hospitalar foi algo recorrente no século

XIX, ante as péssimas condições de higiene e a vinculação do local com a morte359. Para além

disso, havia a concepção de que era preferível ser tratado em casa, sob a vigilância dos parentes.

Motivos semelhantes levavam coléricos e familiares, a não comunicarem às autoridades, ou

procurarem médico, quando dos primeiros sintomas. Antônio Manoel de Medeiros, médico

enviado pelo governo provincial para socorrer as comarcas de Jardim e Crato, assim se referiu

à resistência da população desta última em ser levada para o hospital:

A pobreza sentia a maior repugnância em deixar as suas choças, embora sua falta de

recursos, e a impossibilidade de se lhe prestar outros socorros, quando não bastavam

já, os que voluntariamente faziam de enfermeiros. Muitos preferiam morrer quase nus,

tendo por cama o chão úmido de suas cabanas. Profundamente tristes e contrariados,

os enfermos [do hospital] queriam a todo transe voltar às suas habitações, houve até

quem fugisse!360

O medo dos enfermos de Crato tinha razão efetiva de existir. Instalado no dia 19 de

julho de 1862, o hospital foi fechado, por decisão do Dr. Medeiros, a 27 do mesmo mês, pois

de 22 pessoas lá internadas, apenas 2 saíram vivas361. Para o médico, tal resultado derivava do

fato dos doentes chegarem já na fase álgida da doença, mas, principalmente, pela “inabilidade

dos enfermeiros, que melhores não era possível obter por preço algum”362. Tamanho foi o

fracasso do hospital, que Medeiros propôs a adoção de outra estratégia, dando maior espaço

para o tratamento dos doentes pelos próprios familiares:

359 DAVID, op. cit., 1996, p. 66-67. 360 MEDEIROS, Antônio Manoel de. Relatório apresentado ao Ilm. Exm. Sr. Dr. José Bento da Cunha Figueiredo

Júnior, presidente da Província do Ceará pelo Dr. Antônio Manoel de Medeiros, 1º cirurgião do corpo de saúde

do exército, em comissão nas comarcas do Crato, e Jardim, durante a epidemia do cólera-morbo em 1862. Ceará,

Imp. na Typ. Brazileira, 1863, p. 11. Três cópias do relatório, em formato brochura, se encontram como anexos

no documento: ANRJ Ofício n. 28. 12 fev. 1863. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de

diversas autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182. Agradeço ao professor Darlan Reis,

da Universidade Regional do Cariri, pela descoberta do relatório, e por, gentilmente, ter me passado cópia digital

do mesmo e indicado fundos do Arquivo Nacional que interessavam à minha pesquisa. 361 MEDEIROS, op. cit., 1863, p. 11. 362 Idem.

78

Os povos do interior de nossas províncias, em geral ainda pouco civilizadas,

repelem a ideia de hospital, o que dá lugar a morrerem muitos doentes, por

ocultarem os seus sofrimentos com medo de serem conduzidos para o hospital.

Por outro lado a impossibilidade de achar em alguns povoados um edifício

bastante cômodo para conter à vontade muitos doentes, a inaptidão dos

enfermeiros, que a cada passo contraria o médico, em uma palavra, é mau

desempenhado um serviço, que se aproveita sendo bem feito, frustram as

melhores intenções do governo, e um estabelecimento que não é dos menos

gravosos para os cofres públicos, nenhuma vantagem oferece ao povo

desvalido. Em vez de um só edifício para grande número de doentes mal

servidos, e onde por consequência desenvolvem-se em grande escala

princípios deletérios que se opõem ao restabelecimento dos mesmos doentes;

em vez de um pessoal mercenário e desajeitado, melhor seria que cada um

tivesse por hospital a própria casa e por enfermeiros seus parentes ou

aderentes, o que além de ser econômico, seria também mais acomodado ao

grau de civilização da maior parte dos que carecem de meios para se tratarem.

O médico percorreria diversas vezes entre dia e noite, essas enfermarias menos

insalubres do que uma enfermaria comum, distribuiria seus conselhos a esses

enfermeiros às mais das vezes interessado na cura dos doentes, e espero que o

mister de tratar doentes se exerceria sem tamanhos inconvenientes, como os

que oferecem os hospitais improvisados nos lugares e no tempo em que é

inexequível a regularidade deles363.

A proposta de Antônio Manoel de Medeiros não encontrou eco no que foi praticado no

resto da província, onde a atitude de horror aos hospitais era representada apenas como fruto da

ignorância da população, sendo apontada como causa do alastramento da epidemia, assim como

os hábitos alimentares e higiênicos da pobreza364. Desta forma, as maiores vítimas da doença

eram culpabilizadas pela própria desgraça, seja pela demora em comunicar às autoridades nas

primeiras manifestações dos sintomas ou pela resistência às enfermarias. No caso de Fortaleza,

para contornar a aversão à internação, o governo redobrou a vigilância sobre os subúrbios,

recorrendo, inclusive, à violência policial. Não obstante, também buscou incentivar medidas

menos incisivas, como a atuação de intermediários habilitados a chegar mais facilmente nas

alcovas dos vitimados, como demonstra a fala do chefe do executivo provincial:

Segundo as informações creio que raríssimos enfermos veem a sucumbir, se

porventura recebem prontos socorros logo que se manifestam os primeiros

sintomas. Infelizmente grande número de pessoas ignorantes só denunciam a

existência do mal quando este já vai mui adiantado. Surpreendidos em seus

leitos pelos agentes do Governo e pessoas caridosas, não poucos moradores

em choupanas nos arredores da cidade são conduzidos para o hospital quando

já se acham em estado incurável. As visitas domiciliares dos médicos, a

constante vigilância da polícia, dos enfermeiros e vigias que o Governo fez

distribuir em diversas circunscrições, e a solicitude com que alguns sacerdotes

e outras pessoas caridosas frequentam as casas dos desvalidos para ministrar-

363 MEDEIROS, op. cit., 1863, p. 19-20. 364 LEMOS, op. cit., 2016, p. 304.

79

lhes prontos socorros devem ter concorrido eficazmente para poupar grande

número de vítimas365.

O auxílio de padres e “pessoas caridosas” era assim elogiado pelo governo. O apelo à

caridade foi contumaz durante a quadra epidêmica. Particularmente, era dirigido às pessoas

mais abastadas dos lugares vitimados, como forma de arrecadar recursos para compra de víveres

e medicamentos dados à pobreza, “em auxílio do governo e do cofre público”366. Como

demonstrarei em outro capítulo, os atos de caridade realizados durante a epidemia poderiam ser

recompensados pelo governo imperial, um estímulo a mais para os filantropos cearenses

agirem. No intuito de sensibilizar os particulares com recursos e aliviar os gastos da tesouraria

provincial, Figueiredo Júnior apelou à ação da recém-criada Diocese do Ceará, na pessoa de

Dom Antônio Luís dos Santos, bem como às comissões sanitárias instituídas no interior:

Um dos primeiros cuidados que aqui tive foi o de invocar a caridade dos

particulares para aliviar um pouco o cofre público, atentas as circunstâncias

financeiras do país. Nomeei uma comissão central sob a presidência do

Prelado Diocesano com o fim de obter donativos em favor da classe pobre

durante a quadra epidêmica. O mesmo apelo fiz para o interior da Província,

a todas as comissões que ali então só se haviam limitado a distribuir os

socorros do Governo, ou a tomar medidas, que, como o estabelecimento de

enfermarias, acarretaram despesas por conta da Fazenda367.

Contudo, o governo nem sempre conseguia o apoio desejado. O medo da contaminação

levou, inclusive, à fuga de muitas pessoas ricas, autoridades públicas e padres que,

teoricamente, deviam socorrer aos coléricos. Foi o caso de Maranguape, na qual quase “todas

as pessoas mais salientes” abandonaram a vila, indo “procurar a salvação” na capital, a poucas

léguas de distância. Descrevendo o cenário do lugar, Figueiredo Júnior afirmou que o comércio

permanecia fechado e que muitas residências estavam vazias. Quanto às habitadas, “continham

maior ou menor número de doentes, além dos que eram tratados na enfermaria montada por

conta do governo”. Em Maranguape restava, assim, a “numerosa população paupérrima, e parte

dela apresentando sinais mui visíveis de sofrimento”, implorando medicamentos e socorros. A

atitude das pessoas “mais salientes” da vila era reprovada no ofício ao Marquês de Olinda:

Mas Vossa Excelência compreende que em circunstâncias tão calamitosas,

quando as pessoas de certa ordem, que podiam permanecer na localidade para

animarem a população e aconselharem a gente incauta ou timorata, deixam

seu posto manifestando o maior desânimo que produz sempre maus efeitos na

classe ignorante e desvalida, os esforços do Governo, por maiores que sejam,

365 ANRJ. Ofício n. 41a. 05 jun. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 366 ANRJ. Ofício n. 53. 30 jun. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 367 ANRJ. Ofício n. 41a. 05 jun. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

80

apenas podem minorar de modo mui deficientes as terríveis consequências de

uma epidemia que lavra com espantosa intensidade368.

O medo chegou a ser apontado como a causa de algumas mortes ocorridas em 1862. O

caso de Domingos Carlos de Saboia, vigário da vila de Cascavel, foi um dos apresentados sob

tal ótica. Escrevendo a Thomaz Pompeu, dono d’O Cearense, o médico Thomaz do Bonfim

Espíndola narrou, em carta de 23 de junho de 1862, com riqueza de detalhes, o passamento de

Saboia, ao ponto de ultrapassar o limite da discrição devida ao sacerdote morto:

Transido de dor vou dar-lhe a infausta notícia de que, às 8 horas do dia de

ontem, depois de horríveis e aturados padecimentos por espaço de quatro dias,

entregou a sua alma ao criador o nosso bom e mui prezado amigo, o vigário

desta freguesia, Domingos Carlos de Saboia, vítima de um fortíssimo ataque

hemorroidário das vias urinárias e do reto, o qual ataque manifestou-se

repentinamente por estranguria, devida mais a uma grande carnosidade, por

agudíssimas dores nos rins, bexiga e uretra por calafrios, febres suores e

hemorragias, seguindo-se ultimamente uma inflamação da bexiga e sub-

inflamação dos órgãos sexuais que terminaram em poucas horas pela gangrena

da bexiga e do pênis369.

Após expor a situação de Saboia no momento do óbito, ao ponto de citar o pênis

gangrenado do padre no texto enviado ao jornal, o dr. Espíndola afirmava ter sido o quadro

clínico do finado agravado pelo “abatimento em que se achava” e “pela dieta rigorosa e

constante em que vivia com receio do cólera morbo, o medo da morte”370. Portanto, segundo a

interpretação do médico, o medo do padre Saboia de contrair o cólera e morrer era tanto, que

acabou afetando outros problemas do organismo, levando-o à campa tão temida.

Assim como Saboia, outros sacerdotes tiveram o nome associados ao medo. A fuga de

padres dos lugares empesteados também teve repercussão negativa sobre o ânimo das

populações acossadas pela moléstia. Quando a epidemia atingiu o auge no Crato, não “existia

[um sacerdote] na cidade que prestasse socorros espirituais aos moribundos”, visto que o vigário

Aires do Nascimento tinha contraído a doença e o padre João Marrocos Teles, que “deixou por

vezes o leito para socorrer alguns doentes, quanto ele mesmo estava às portas da morte”, tinha

falecido. Os demais padres, “conservaram-se a distância conveniente, alguns resistiam mesmo

a todo o empenho”371 em socorrer aos jazentes. Mais de trezentos teriam morrido sem confissão

por conta deste comportamento, denunciava o relatório do Dr. Medeiros.

368 ANRJ. Ofício n. 56. 11 jul. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 369 O Cearense, n. 1531, 1 jul. 1862, p. 2. 370 O Cearense, n. 1531, 1 jul. 1862, p. 2. 371 MEDEIROS, op. cit., 1863, p. 13. Grifo da fonte.

81

O caso do padre Marrocos circulou pela província. Carta de Antônio de Almeida,

capelão do povoado de Juazeiro, endereçada ao Bispo do Ceará, afirmou: Marrocos fora “vítima

de sua dedicação”, pois não se recusou a oferecer os socorros espirituais a todos os enfermos

que o buscavam, mesmo estando acometido pela doença desde seu estouro por aquelas plagas.

Até o “final da prostração”, teria continuado as atividades sacerdotais. Quando viu chegar a vez

dele próprio seguir o caminho já trilhado por seus fiéis, pediu, invocando o “Santíssimo

Sacramento”, ao “menos absolvição de seus pecados e não a obteve”, pois um irmão de

sacerdócio, “coitado, teve a fraqueza de negar-se absolutamente” a ouvi-lo em confissão372.

Se a missiva do padre Almeida silenciava sobre o nome do colega de batina que se

recusou a socorrer ao padre Marrocos na última agonia, o semanário O Araripe não manteve o

anonimato: acusava o octogenário Pe. Joaquim Ferreira Lima Seca373. Apesar da recusa do

padre Lima Seca, aparentemente, o padre Marrocos não finou sem antes receber a confissão.

Seu registro de óbito afirma ter morrido confessado. Pelo visto, algum padre caridoso, ou menos

medroso, foi ao seu socorro a tempo de ministrar-lhe o pasto espiritual. João Marrocos faleceu

no dia 2 de julho de 1862, junto com um filho (Manoel Marrocos Teles) e dois escravos (Félix

e Francisco)374. Muitos outros sacerdotes finaram pelo “mal de Ganges”, como o cólera era

chamado. A mortalidade de clérigos foi tanta, que o padre Manoel Francisco de Araújo viu nela

possibilidade de ascensão: insatisfeito com o posto ocupado, de assistente do vigário de Assaré,

Araújo pediu ao bispo que o nomeasse pároco em uma das muitas freguesias vagas, “cujos

vigários morreram agora vítimas do terrível flagelo, que tem-nos batido à porta”375.

A narrativa sobre a morte de Marrocos aponta, também, para como o cólera foi pródigo

na simplificação dos ritos fúnebres. Os limites entre a vida e a morte eram bastante tênues no

imaginário social do oitocentos. A crença cristã na qual o corpo é perecível, mas a alma é eterna,

fazia as pessoas se preocuparem com os ritos que antecediam e sucediam a morte. Os

moribundos e familiares se empenhavam, assim, em cumprir as práticas garantidoras da “boa

morte”, pois a transição malfeita podia fazer do moribundo alma penada, alongar a passagem

pelo purgatório ou, até mesmo, condená-lo ao inferno. Destarte, as cerimônias e a simbologia

eram acionadas para promover a “boa viagem” ao “outro mundo”, de modo a integrar o morto,

o mais breve possível, no novo lugar, “para seu próprio bem e a paz dos vivos”376.

372 DHDPG. Carta do Pe. Antônio de Almeida a Dom Luís Antônio dos Santos (Bispo do Ceará). 18 jul. 1862.

CRA 19, 127. 373 O Araripe, n. 288, 13 set. 1862, p. 1. 374 DHDPG. Livro dos Coléricos da Paróquia de Nossa Senhora da Penha do Crato, p. 1. 375 DHDPG. Carta do Pe. Manoel Francisco de Araújo a Dom Luis Antônio dos Santos (Bispo do Ceará). 31 mai.

1862. Pasta CRA 19, 127. 376 REIS, op. cit, 1991, p. 96.

82

Philippe Ariès afirmou ser a “boa morte” precedida por aviso prévio, como a doença,

pois, “sabendo de seu fim próximo, o moribundo tomava suas providências”377. A produção de

testamento, a reconciliação com membros da família ou da comunidade, o reconhecimento e

pagamento de dívidas e a procura pelos sacramentos eram algumas das providências a tomar.

Finar no leito doméstico, arrodeado por familiares e amigos, após receber a confissão, seguida

da comunhão e da extrema-unção, quando o sacerdote untava, com os “óleos santos”, orelhas,

olhos, nariz, mãos e boca do enfermo, era o modelo idealizado pela “pedagogia do bem morrer”,

ensinada aos fiéis pelos padres e por manuais populares até o oitocentos378.

Após o traspasse de alguém, os rituais prosseguiam: era preciso amortalhar o corpo,

velá-lo, contratar missa de corpo presente e encomendação do defunto com os sacerdotes, e,

enterrá-lo, enfim, em “campo santo”, como igrejas e cemitérios. Na sequência à cerimônia de

enterro, outros ritos seriam realizados: a manutenção do luto, missas expiatórias, o acendimento

de velas, as visitas de cova etc. A “boa morte”, assim, exigia empenho dos familiares do finado,

bem como recursos financeiros. Se algumas famílias faziam da morte de seus membros um

espetáculo barroco, por meio do qual reafirmavam o status social, pessoas pobres, com poucos

recursos, se esforçavam para minimamente ver garantidos os ritos de passagem, filiando-se a

irmandades religiosas ou legando parte de seus parcos bens para os gastos fúnebres379.

Em contraponto ao modelo descrito acima, a “morte terrível” assaltava de forma súbita,

não dando tempo ao moribundo de se preparar para a passagem. Não por acaso, os surtos

epidêmicos e as guerras eram colocados como exemplos de “má morte”380. Conjunturas

extraordinárias, de tensão social, alteravam as práticas fúnebres corriqueiras, ante o aumento

avassalador dos doentes e mortos. Os ritos cotidianos a unir o morto ao seu círculo não são os

mesmos em tempo de peste ou guerra. A liturgia fúnebre que ordinariamente deveria se

“desenrolar na ordem e na decência”, era substituída, “em condições insustentáveis de horror”,

pela “anarquia e de abandono dos costumes mais profundamente enraizados no inconsciente

coletivo”381. O abandono dos ritos apaziguadores, por conta da epidemia, não deixava de ser

trágico para os vivos, por dessacralizar a morte, tornando-a indecente: “uma população inteira

377 ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro,

2003, p. 31. 378 Para aprofundamento sobre os ritos tidos como garantidores do bem morrer, ver: RODRIGUES, Claudia. Nas

fronteiras do além: a secularização da morte no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo

Nacional, 2005, p. 31-83. 379 REIS, op. cit., 1991. 380 ARIÈS, op. cit., 2003, p. 27. 381 DELUMEAU, op. cit., 1989, p. 123.

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corre o risco do desespero ou da loucura, sendo subitamente privada das liturgias seculares que

até ali lhe conferiam nas provações dignidade, segurança e identidade”382.

Primeira localidade vitimada pelo cólera, Icó vivenciou de forma dolorosa o espetáculo

da “má morte”: viu as ruas tomadas por trânsito constante de corpos em direção ao cemitério

construído por conta da epidemia383. Escrevendo a 18 de abril, Luís José de Medeiros,

presidente da comissão sanitária da cidade, relatava ao presidente da província que o campo

santo não cessava “de receber cadáveres aos, 10, 12, 13 e 20 por dia, e hoje até este momento

cinco horas da tarde já se contaram 26 e provavelmente ainda excederão de 30!”384. Em outra

correspondência, Medeiros informou sobre dias nos quais o número de passamentos na cidade

ultrapassou a casa dos cinquentas385. Médias diárias semelhantes foram registradas em outros

lugares, tais como Crato e Maranguape. Não por acaso, nas narrativas sobre os corpos dos

coléricos estão sempre embutidas imagens de horror, por conta da forma como eram tratados,

sem a obediência aos ritos. As fontes falam de corpos amontoados indecentemente em carroças,

jogados pelas ruas, à mercê dos urubus, de enterros em valas comuns, sem encomendação da

alma feita por sacerdote e sem o acompanhamento de parentes e amigos, indícios da

dessacralização da morte propiciada pela erupção do cólera e do impacto dela sobre os vivos.

382 DELUMEAU, op. cit., 1989, p. 125. 383 Mesmo antes da chegada do cólera, o medo de contaminação, por conta das notícias dos surtos na Paraíba,

estimulou algumas localidades cearenses a preparar cemitérios específicos destinados ao enterro de eventuais

coléricos. Carta enviada da vila de Jardim, escrita pelo padre Joaquim de Sá Barreto, e dirigida ao bispo diocesano,

dava conta da apreensão da localidade com os casos de cólera na fronteira com a Paraíba: “Sendo muito de recear

que um terrível flagelo em sua marcha acelerada e sempre perniciosa, nos venha também acometer, acha-se esta

população pela mor parte miserável e desvalida, fortemente atemorizada e aflita, esperando a hora de ouvir dizer,

estamos com o cólera!”. Ante tal expectativa, o pároco solicitou ao prelado: “peço a Vossa Excelência

Reverendíssima autorização para mim, ou o Reverendo Coadjutor desta Freguesia, benzermos um terreno nesta

Vila, outro na Povoação de Porteiras, e outro no sítio Brejo, que sirvam de cemitérios especiais para os cadáveres

dos coléricos” (DHDPG. Carta do Padre Joaquim de Sá Barreto a Dom Luís Antônio dos Santos, s/d.). Após a

confirmação do cólera no Ceará, a presidência da província e o Diocese do Ceará estimularam a criação das

necrópoles. Em Crato, por exemplo, o livro de tombo paroquial, transcreveu ofício de Dom Luís Antônio dos

Santos orientando a construção do novo cemitério. O livro conserva a ata de benção do lugar, cerimônia realizada

em 17 de junho de 1862 (DHDPG. Livro de Tombo da Paróquia de Nossa Senhora da Penha do Crato). Os espaços

escolhidos para tais enterramentos aparecem, comumente, nas fontes alcunhados como “cemitério dos coléricos”.

A preocupação em instituir campos santos para os defuntos pela epidemia refletia preocupações higiênicas, como

a garantia de maior inviolabilidade dos túmulos, ao contrário dos cemitérios comuns, nos quais as covas eram

reabertas com regularidade, para retirada de restos mortais e colocação de novos cadáveres. No caso das epidemias,

a teoria miasmática orientava cuidado redobrado com a gestão das covas, haja vista o risco de infecção do ar pelos

corpos em putrefação. Além disso, os cemitérios dos coléricos foram erguidos mais distantes dos núcleos urbanos.

Em Crato, o primeiro cemitério da cidade foi erguido entre 1853 e 1856, ficando a cerca de 200 metros em relação

à Matriz da Penha, onde até então eram inumados os defuntos. Com a chegada do cólera, a necrópole criada para

a epidemia foi erigida a cerca de 2 quilômetros de distância das ruas. ALEXANDRE, op. cit., 2010, p. 146. 384 ANRJ. Ofício n. 35, 04 mai. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 385 ANRJ. Ofício n. 41, 26. mai. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

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O Livro dos Coléricos de Crato, que documentou parte dos enterros no cemitério criado

por conta da epidemia, traz o caso do “rapaz de nome Antônio”, recolhido no “hospital desta

cidade” – aquele onde finara 20 dos 22 doentes lá tratados – e falecido a 23 de junho de 1862.

O pároco responsável pelo registro deixa claro as lacunas existentes sobre a vida de Antônio:

“ignora-se seu nome inteiro, sua idade, sua cor, o nome de seus pais, onde morava”386. Em meio

aos doentes da enfermaria onde morreu, Antônio, desamparado, tinha de seu apenas o primeiro

nome. Nem sua cor fora identificada, talvez por conta da coloração azul que a peste lhe dera.

Seus parentes podiam ter morrido pela epidemia, ou, talvez, deixado o doente na enfermaria,

ante o medo de contágio, pobreza ou impossibilidade de cuidar do rapaz. Nos registros, há

também os casos de algumas crianças abandonadas sem identificação: “Sepultou-se no

Cemitério dos Coléricos um párvulo sem encomendação, que ali foi achado no dia vinte e seis

de junho de mil oitocentos e sessenta e dois; ignora-se seu nome, idade, cor, de quem é filho e

nem onde morava”387. Provavelmente, o “anjinho” finara no meio dos familiares que levaram,

rapidamente, o pequeno corpo ao cemitério.

Devia ser doloroso às pessoas sãs e aos doentes observar o trânsito constante de corpos

a percorrer as cidades cearenses em direção aos cemitérios. Provavelmente, o sentimento de

medo era algo que as paralisava e, em seu íntimo, sentiam-se envergonhadas por isso. Afinal,

entes queridos finavam e eram sepultados sem a obediência mínima aos ritos tradicionais.

Para alguns observadores, era indecente e imoral a forma como os corpos eram levados.

Dhenis Maciel encontrou cartas que narram o incômodo provocado pela imagem dos cadáveres

levados com a “roupa do corpo”, que vestiam quando do falecimento, sem mortalhas ou lençóis

lhes cobrindo com dignidade. Particularmente, incomodava aos missivistas as defuntas

“donzelas”, expostas de forma “escandalosa” aos olhares e ao manuseio dos coveiros, descritos

com “vis e corrompidos pelo vício e devassidão”388. As cenas de desrespeito aos corpos,

especialmente das virgens, fixaram-se no imaginário dos maranguapenses. A possibilidade de

mortas terem sido profanadas era algo a atormentar familiares, servindo, inclusive, de

inspiração à literatura. Em 1899, o farmacêutico Rodolfo Teófilo publicou novela intitulada

“Violação”. A trama mescla elementos românticos com o naturalismo em voga em fins do

oitocentos. O enredo combina ficção e memória: o pano de fundo contextual da narrativa é dado

pelas lembranças do autor sobre 1862, quando, aos nove anos de idade, testemunhou a epidemia

do cólera em Maranguape. Seu pai, Marcos José Teófilo, foi um dos médicos residentes na

386 DHDPG. Livro dos Coléricos da Paróquia de Nossa Senhora da Penha do Crato, p. 12. 387 Idem, p. 17. 388 MACIEL, op. cit., 2017, p. 226-227.

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localidade contratados pelo governo provincial para socorrer a população indigente389. Já o lado

ficcional da novela, tem como eixo um caso de necrofilia: o corpo de colérica de quinze anos é

violado por dois presidiários, representados de forma pejorativa como “mestiços” e “ébrios”,

enviados de Fortaleza para trabalhar no transporte e sepultamento dos cadáveres.

Teófilo, ao mesmo tempo, autor e personagem da obra – a narrando, na maior parte, em

primeira pessoa –, capricha na tinta a fim de colocar o leitor na dúvida sobre onde termina as

lembranças pessoais e onde começa a ficção. Para isso, apresenta o caso de necrofilia como se

tivesse sido lhe contado duas décadas depois da epidemia, pelo noivo da defunta. Este teria

assistido à profanação, sem poder nada fazer, visto estar paralisado por efeito do cólera. Em

tom dramático, o noivo narra como os coveiros disputaram na sorte quem seria o primeiro a

violar o corpo, consumando o que classifica como “o mais nefando delito da bruteza humana”:

A carne havia triunfado nas bestas humanas, à mercê das quais estava a

virgindade dela e a paz de toda a minha vida. Eles tinham perdido a razão e

com ela todos os escrúpulos da moral. Nem o espetáculo da morte e nem

tampouco o receio da peste embotavam nos celerados os lúbricos desejos

carnais! [...]. Os dois monstros, cada qual mais repelente pela sua moral, mais

imundo pelo seu físico, mais asqueroso pelos seus vícios, indignos mesmo do

amor de um cadáver, cevaram-se à farta na virgem morta [...]390.

Após o ato, os necrófilos são punidos por morte fulminante: contaminados pelo cólera,

caíram nus aos pés da moça profanada. Ao noivo, restaria a memória dolorosa da cena e o

remoer por sua impotência: “E saí, com o passo vacilante, em rumo à vila onde o senhor me

encontra vinte anos depois, ainda enclausurado dentro de mim, evitando o convívio dos homens

e chorando a viuvez do meu espírito”391.

Alguns presidiários foram de fato enviados à vila para o exercício do funesto trabalho

de ajudar no tratamento dos doentes e transportar mortos. Em fins de agosto de 1862, quando o

presidente do Ceará Figueiredo Júnior, equivocadamente, julgava que a epidemia declinaria de

vez em Maranguape, comunicava, ao Marquês de Olinda, ter mandado “recolher à cadeia desta

cidade [Fortaleza] os presos que ali estavam prestando serviços, como enfermeiros,

conservando-se na vila quatro coveiros para enterramento de alguns cadáveres de coléricos”392.

A prática de colocar presos no trabalho de sepultamento de corpos em época de epidemia

era algo comum. Na primeira manifestação do cólera em Cuba (1833), “criminosos perigosos

389 ANRJ. Ofício s/n. de 9 jul. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 390 TEÓFILO, Rodolfo. A Fome/Violação. Rio de Janeiro: Livraria José Oympio; Fortaleza: Academia Cearense

de Letras, 1979, p. 255. 391 TEÓFILO, op. cit., 1979, p. 256. 392 ANRJ. Ofício n. 72 de 20 ago. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

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eram perdoados desde que dirigissem as ‘carroças mortas’”393. Ricardo Augusto dos Santos, ao

estudar a gripe espanhola no Rio de Janeiro de 1918, afirmou: diante do quadro tenebroso dos

cadáveres abandonados pelas ruas e não “havendo pessoal suficiente para recolher e enterrar os

mortos, foram utilizados os presidiários”394. Segundo o Barão de Studart, o pagamento

acordado com os detentos enviados à Maranguape incluía o perdão das penas395, o que,

obviamente só valeria o sacrifício se conseguissem sobreviver ao cólera. Entre a prisão e a

campa, restava o fio tênue da esperança de liberdade.

Ao contrário do teor negativo dado pela novela de Rodolfo Teófilo aos detentos

enviados à Maranguape, alguns homens que viveram de fato a situação foram saudados pela

imprensa. O Cearense informou, em agosto de 1862, terem morrido 5 dos 10 presos

“voluntariamente” engajados nas enfermarias. Entre os sobreviventes, 4 retornaram à capital e

“1 ficou convalescendo”. Solicitava, para os mesmos a piedade do Imperador: “Os que

escaparam são dignos da atenção do governo Imperial”396. Já o Pedro II publicou os nomes

deles: “Joaquim Cândido Carneiro Monteiro, José Thomaz Gomes Moreno, João Alves

Ferreira, Inocêncio Correia da Silva e Cristóvão de tal”397. Em benefício do quinteto, solicitava:

“Tendo nós ciência de seus relevantes serviços e em uma quadra de morte, onde outros seus

infelizes companheiros pereceram, julgamos que a humanidade e a justiça reclamam um pronto

perdão para esses cinco presos que escaparam”398. O caso, aparentemente, recebeu atenção da

Corte: Figueiredo Júnior solicitou ao Chefe de Polícia “as peças dos processos dos presos que

durante o período da maior intensidade do cólera morbo em Maranguape se prestaram

voluntariamente ao serviço de enfermeiro”, a fim de atender pedido do Ministério da Justiça399.

O caso dos presos indicia a preocupação com o sepultamento célere dos coléricos.

Informado por cartas enviadas de Sucatinga sobre a existência de “cadáveres insepultos” pelas

ruas, José Bento da Cunha Figueiredo Júnior diz ter enviado imediatamente “um destacamento

de 8 praças para aquela povoação”400. A preocupação com o potencial de transmissão dos

mortos fez com que o presidente mobilizasse também delegado e juiz municipal para verificar

393 KIPLE, op. cit., 1985, p. 162. 394 SANTOS, Ricardo Augusto dos. Representações sociais da peste e da gripe espanhola. In: NASCIMENTO,

Dilene Raimundo do; CARVALHO, Diana Maul de (Orgs.). Uma história brasileira das doenças. Brasília:

Paralelo 15, 2004, p 136. 395 STUDART, Dr. Barão de. Climatologia, epidemias e endemias do Ceará. Ed. fac-sim. (1909). Fortaleza:

Fundação Waldemar Alcântara, 1997b, p. 55. 396 O Cearense, n. 1537, 12 ago. 1862, p. 2. 397 Pedro II, n. 181, 9 ago. 1862, p. 3. 398 Pedro II, n. 181, 9 ago. 1862, p. 3. 399 Gazeta Official, n. 26, 11 out. 1862, p. 3. 400 ANRJ. Ofício n. 41. 26 mai. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados - Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

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o estado sanitário da localidade. Assim pôde “então saber que a notícia era completamente falsa,

pois que não se havia dado ainda um só caso do cólera” em Sucatinga401.

A contratação de pessoal para transportar doentes para as enfermarias e cadáveres para

os cemitérios, ou para exercer o trabalho infindo de abrir covas e valas comuns, não foi fácil

para várias comissões de socorro espalhadas pela província. Apenas indivíduos miseráveis

aceitavam arriscar suas vidas por pagamentos irrisórios ante os riscos do ofício. No geral, a

população se recusava a cumprir tais tarefas, seja pelo medo do contágio ou pela repugnância

da situação. Em muitos casos, a repulsa era tão forte que o governo e as comissões confiaram a

soldados o cumprimento da função. Foi o caso de Acarape, no qual os enterramentos foram

“feitos por um cabo e um soldado, visto [que] o povo dali recusa-se a fazer esse serviço”402.

Tratando da dificuldade de reforçar o policiamento de Crato durante eleição a ser realizada por

ordem do governo imperial – que anulara o pleito para juiz de paz e vereadores municipais

ocorrido em 1861, por conta de fraudes –, o presidente da província informava ao ministério ter

sido “obrigado a destacar mais algumas praças em diferentes lugares, a fim de auxiliarem as

respectivas autoridades, concorrendo sobretudo para que não se dê o fato lamentável de ficarem

cadáveres insepultos, como noutras Províncias aconteceu em crises semelhantes”403.

Em São Bernardo, não “havendo meios para prover ao enterramento dos coléricos”, pois

“o povo recusa-se a carregá-los”, a comissão teve de negociar medida que não deixava de ser

polêmica. Instituiu a remuneração por produtividade: contratou quatro indivíduos “mediante a

paga de 1.280 réis por cada corpo”404. Francisco Rodrigues Sette, juiz de direito e presidente

da comissão de socorros do Crato, também preocupado com o serviço de enterramento, adquiriu

duas carroças para recolhimento dos defuntos, “conduzidas por oito indivíduos que trabalham

alternativamente dia e noite, vencendo 1# rs (mil réis) por dia e 1#500 rs (mil e quinhentos réis)

por noite”405. Se a ceifa do cólera agia 24 horas por dia, era necessário impedir o acúmulo de

mortos nas ruas, daí porque o serviço de transporte para o cemitério não podia parar.

A dificuldade de contratação de indivíduos para lidar com o transporte de doentes e

mortos era proporcional ao grau de violência da doença na localidade. Não por acaso,

401 ANRJ. Ofício n. 53. 30 jun. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados - Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 402 ANRJ. Ofício n. 84. 12 set. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados - Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 403 ANRJ. Ofício n. 77. 30 ago. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 404 ANRJ. Ofício n. 47. 9 jun. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 405 ANRJ. Ofício n. 65. 12 ago. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

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Maranguape recebeu mais pessoas enviadas pela presidência com tais fins. Além dos presos

mandados da capital, no começo de julho de 1862, foram enviados “21 indivíduos, que se

contrataram por 5.000 réis [diários] cada um, a fim de fazerem o serviço da abertura de covas,

e condução de doentes para as enfermarias e cadáveres para o cemitério”. Uma outra pessoa já

tinha sido contratada por 8 mil réis diários e sete praças do destacamento, enviados para cumprir

as funções, tinham falecido406. Ante o alto número de doentes nas enfermarias da vila, só a

muito custo a presidência conseguiu contratar uma mulher que aceitasse lavar as roupas dos

enfermos indigentes: “tal é o terror que inspira o estado de Maranguape”407.

As informações recolhidas nas fontes expostas nos últimos parágrafos reforçam o que

foi dito sobre o abandono dos ritos fúnebres em tempo de peste. Nascido em Crato em fins do

oitocentos, Irineu Pinheiro teve a oportunidade de conhecer sobreviventes da epidemia408. Em

cima dos relatos coletados, escreveu que mesmo a pequena parcela de abastados da cidade, que

podia ter seus corpos enterrados em caixões, não teve o préstito de amigos e familiares em seu

cortejo ao cemitério. Os pobres, grande maioria dos vitimados, quando muito, tinham seus

cadáveres levados em “fiangos”409 ou eram simplesmente amontoados em carroças, sem

consideração às diferenças de sexo e idade, puxadas por animais até as valas comuns410.

Os responsáveis por guiar as carroças de mortos em Crato trajavam roupas específicas:

vestes, gorro e meias que subiam até o joelho, todos na cor vermelha411. Provavelmente, ao

trajar rubro, os “farricocos”412 cratenses anunciavam sua presença à distância, facilitando a

406 ANRJ. Ofício s/n. 9 jul. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 407 ANRJ. Ofício n. 56. 11 jul. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 408 PINHEIRO, op. cit., 1963, p. 422-423. 409 A palavra “fiango” diz respeito à rede de dormir velha, surrada. Não obstante, Irineu Pinheiro usou o termo

para se referir às redes usadas no Crato para transporte dos coléricos defuntos pobres, sem condições de adquirir

caixões de madeira (PINHEIRO, op. cit. 1963, p. 422). O uso de redes nos funerais era comum no sertão cearense

do período. Geralmente, usava-se uma peça velha com os punhos atravessados por varas de madeira. Assim, o

corpo era levado nos ombros, por duas ou quatro pessoas, até o local do sepultamento. Cândida Galeno descreveu

alguns cortejos fúnebres que observou no Ceará de meados do século XX nos quais as redes permaneciam sendo

utilizadas: “A rede usada para enterro é a comum, com varandas de croché ou de malha, de preferência branca. O

morto vem envolto em lençol. Na ocasião do enterro, tanto a rede como o lençol são retirados e voltam para a

família que, depois de lavá-los, passa a usá-los como dantes. O cadáver é lançado à cova apenas com a mortalha”.

GALENO, Cândida. Ritos fúnebres no interior cearense. Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno, 1977, p. 46. 410 PINHEIRO, op. cit. 1963, p. 422-423. 411 Idem, p. 423. 412 Segundo Câmara Cascudo, “farricoco” era o nome dado à personagem com capuz, representando a morte,

presente em procissões, como a do Senhor dos Passos e as de penitência. Herança ibérica, o caráter macabro do

encapuzado assustava as crianças, sendo confundido com a “Coca” ou “Cuca”, espécie de “bicho papão”. Por outro

lado, os dicionários do século XVIII e XIX traziam sentido mais específico para a palavra. Segundo Raphael

Bluteau, farricoco “era o gato pingado, que traz [o corpo] à tumba”, assim como os responsáveis por “enforcados”.

Acrescentava serem “acomodações do vulgo”, ou seja: ofícios praticados por miseráveis. Já Silva Pinto, afirmava

que o termo definia o sujeito “que leva à tumba da Misericórdia, em que vão os cadáveres dos pobres”. Portanto,

os encapuzados do Crato, seja pelo medo que despertavam ou pelos enterros realizados nas valas do cemitério dos

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identificação dos que necessitavam comunicar a presença de mortos em casa. Por outro lado,

sinalizavam o perigo de aproximação às pessoas saudáveis, temerosas de contato com

indivíduos que manuseavam os corpos contaminados. Pari passu, os carregadores portavam

uma cor simbolicamente vista como capaz de despertar a força, com qualidades mágicas e

medicinais413. A busca por defesas profiláticas também explica porque tais homens atuavam,

ordinariamente, sob efeito da cachaça414, ante a crença generalizada, defendida até por parte da

medicina do período, de que assim estariam imunizados. Para além da crença no poder

preventivo do álcool, a bebida também devia ter efeito no ânimo de indivíduos exercendo o

penoso ofício, que poucos achavam digno ou tinham medo de executar.

A mais interessante descrição dos coveiros do Crato foi dada por Manoel de Medeiros,

no relatório sobre a epidemia no sul do Ceará. Conta o documento: entre fins de junho e início

de julho de 1862, houve dia no qual 48 pessoas morreram na cidade, ocasionando o atropelo no

serviço das inumações, com 60 cadáveres esperando sepultura. Foi preciso pagar a muitos

homens para regularizar, durante o dia inteiro de trabalho árduo, a situação no cemitério,

enquanto as duas carroças “percorriam as ruas, tomando os cadáveres aqui e ali, e um homem

as percorria a cavalo, sabendo onde eles existiam, para os fazer conduzir”. Parte considerável

das personagens prestadoras de tal serviço pereceu, de modo que “os carroceiros levaram para

a sepultura hoje os que na véspera tinham sido seus companheiros nesse trabalho, e foi preciso,

organizar muitas vezes essa companhia, ou antes renová-la tanta foi a perda que experimentou”.

A despeito do caráter letal do serviço, a deixar seus executores no limiar da contaminação e

morte, espantava ao médico a “afoiteza” com que o ofício era exercido por indivíduos

miseráveis, a aceitarem o parco salário oferecido:

[...] teve-se gente bastante para conduzir e sepultar os cadáveres, o que foi

talvez um facto singular no Ceará, porque também a população pobre do Cariri

é uma gente única na província pela sua audácia e afoiteza. Naturalmente

desasada, ou negligente, prima por sua coragem é capaz de afrontar os maiores

perigos. Homens mal vestidos e descalços, os coveiros e carregadores

andavam ao sol ardente, e durante o frio intenso da noite, sem a menor

precaução; tomavam os cadáveres e conduziam; levando pendurada no carro

[a] carne que compravam [para consumo], comiam sobre ele, e ai [nas

carroças] deitados voltavam do cemitério procurando novos cadáveres para

sepultar!415

coléricos, lembravam, de fato, os antigos farricocos. CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos mitos

brasileiros. São Paulo: Global, 2002; BLUTEAU, op. cit., 1728, p. 37; PINTO, Luís Maria da Silva. Diccionario

da lingua brasileira. Ouro Preto, Typographia de Silva, 1832, s/p. Dicionários disponíveis no site:

https://www.bbm.usp.br/pt-br/dicionarios/. Acesso a 12 nov. 2019. 413 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,

figuras, cores, números. 27 ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015, p. 945. 414 PINHEIRO, op. cit., 1963, p. 423. 415 MEDEIROS, op. cit., 1963, p. 13.

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Se a suposta “audácia e afoiteza” dos pobres – sujeitos a penoso e perigoso trabalho,

rejeitado pela maioria da população, por salário que nem de longe valia o risco de vida –

espantou Antônio de Medeiros, o médico não deixou de compartilhar visão carregada de

preconceito e acusações. Narrando fato “que muito escandalizou a população”, acusou os

“incumbidos de dar sepultura aos cadáveres” de terem exumado Manoel Sisnando Baptista,

“sepultado com um rosário de ouro ao pescoço”. A profanação ao túmulo teria consequências,

coincidido “com a morte quase instantânea, de alguns indivíduos na cidade, e de um que

casualmente passando aspirava as exalações cadavéricas”416.

Histórias como essas faziam dos coveiros pessoas temidas e vistas de forma negativa

pelos outros. Contou Irineu Pinheiro ter ouvido de senhora nonagenária, testemunha na

juventude da epidemia de 1862, que a passagem dos coveiros assustava a quem tinha enfermos

sendo tratados em casa. Quando da aproximação daqueles, “os pobres e desprotegidos que

choravam seus parentes agonizantes” calavam-se, pois temiam ter casebres invadidos e que

seus moribundos fossem levados ainda vivos para as valas comuns417.

Aliás, o relato de pessoas enterradas vivas foi recorrente, devido à pressa em abreviar o

máximo possível o contato dos vivos com os eflúvios maléficos que a medicina e o senso

comum julgavam emanar dos cadáveres, levando a enganos graves. Guilherme Studart, após

afirmar que pessoas foram enterradas vivas em Maranguape, registrou o caso do marinheiro

Raimundo. Voltando do mar durante o surto epidêmico em Fortaleza, Raimundo não encontrou

a mãe em casa, pois “fora levada a sepultar”. Alarmado, correu aos prantos até o cemitério.

Encontrou a progenitora numa vala. Tomado pelo amor filial, retira o corpo e vê “que a pobre

mulher estava ainda viva”. Nos braços dele, a mãe exarou o último suspiro418.

Irineu Pinheiro registrou história similar. Contou que a pressa dos responsáveis pelo

transporte e enterro dos coléricos era tanta, que circulava entre os sobreviventes da epidemia o

relato de que numa manhã foi achado o corpo de uma mulher, dada como morta na véspera,

“sentada no chão da vala, vestida na sua mortalha de madapolão, um cordão de São Francisco

a amarra-lhe a cintura”419. Memórias como esta fizeram o cemitério dos coléricos de Crato

tornar-se espaço interdito: “Muita gente após vários anos da calamidade, temia até entrar no

cemitério dos coléricos. Contavam histórias de arrepiar cabelos de muitos doentes que foram

enterrados ainda vivos, com a pressa da arrecadação de cadáveres para a vala comum [...]”420.

416 MEDEIROS, op. cit., 1963, p. 15. 417 Idem, p. 13. 418 STUDART, op. cit., 1997b, p. 55. 419 PINHEIRO, op. cit., 1950, p 134. 420 FIGUEIREDO FILHO, J. de. História do Cariri. Vol. 3. Crato: Faculdade de Filosofia do Crato, 1966, p. 143.

91

A partir de agosto de 1862, a epidemia declinou na maioria da província. Casos

eventuais e surtos mais leves continuaram a se manifestar em várias localidades, incluindo a

capital, até, pelo menos, o primeiro semestre de 1863. A situação de Maranguape permaneceu

delicada. Um balanço da mortalidade causada pelo cólera, publicado pelo O Cearense em

março de 1863, calculava em 2850 o número de pessoas falecidas naquela vila, o maior índice

registrado no Ceará421. A persistência dos sinais da doença na província foi incomum, em

comparação ao ocorrido em outras, com surtos mais virulentos, porém, de menor duração

temporal. Em fevereiro de 1863, Figueiredo Júnior registrou a infeliz peculiaridade: “Já se

conta, portanto, um longo período de nove meses em que lavra essa epidemia; e em parte

alguma do Império há exemplo de haver ela durado tanto tempo”422.

Alongando-se temporalmente, a doença também se espraiou espacialmente pelo Ceará.

A crer no balanço feito pelo O Cearense, 24 freguesias foram visitadas pelo “mal de Ganges”

até 20 de março de 1863, e ele já dava sinais de viajar para mais três 423. Para se ter ideia do que

esta informação significava na prática, o “Ensaio Estatístico da Província do Ceará” informava

a existência de 34 freguesias na província no início dos anos 1860424. Portanto, o cólera agiu na

maior parte das freguesias cearenses.

Não há consenso sobre o cálculo geral da mortalidade entre 1862 e 1863. Studart

estimou em 11.000 o número dos vitimados425. Por sua vez, O Cearense contabilizou taxa

maior: 12.284426. Já o médico José Pereira Rego, em sua “Memória histórica das epidemias da

febre amarela e cólera morbo que têm reinado no Brasil”, indicou 12.735 mortes no Ceará427.

A crise dificultou o registro preciso das mortes. Afinal, o colapso social instaurado pelo cólera

não foi desprezível, afetando diretamente o cotidiano dos lugares afetados. Neste cenário, nem

mesmo os registros paroquiais de óbito deram conta da infinidade de mortes ocorridas428. No

421 O Cearense, n. 1568, 20 mar. 1863, p. 1. 422 ANRJ. Ofício Reservado. 11 fev. 1863. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182. 423 O Cearense, n. 1568, 20 mar. 1863, p. 1. 424 BRASIL, Thomaz Pompeo de Souza. Ensaio Estatístico da Província do Ceará. Tomo I. Ed. fac. sim. (1863).

Fortaleza: Fundação Waldemar de Alcântara, 1997, p. 235. 425 STUDART, op. cit., 1997b, p. 57. 426 O Cearense, n. 1568, 20 mar. 1863, p. 1. 427 REGO, op. cit., 1873, p. 188. Os dados sobre o Ceará teriam sido compilados de um manuscrito de Thomaz

Pompeu de Souza Brasil sobre a epidemia do cólera, cujo original Pereira Rego disse ter encontrado no IHGB.

Nas pesquisas que realizei na instituição, não encontrei o manuscrito. 428 Na minha dissertação de mestrado, apontei para as lacunas existentes no Livros dos Coléricos da Paróquia de

Nossa Senhora da Penha de Crato, que apresenta pequena parte dos enterros ocorridos durante o surto na cidade.

O livro, aparentemente, fora escrito até dois anos depois do surto de 1862, por misturar registros deste ano com

mortes por cólera em 1864, quando nova epidemia tomou o lugar. Além disso, o livro não apresenta os enterros

que se deram em cemitérios existentes nos sítios que cercavam o núcleo urbano. Há ainda registros repetidos, com

dados diferentes sobre as mesmas pessoas. A existência de registros em que nem o nome do defunto é conhecido

também indicia a dificuldade da paróquia de cumprir fielmente a tarefa de documentar a morte dos fregueses na

92

caso de pequenos povoados e sítios, os enterros deram-se sem registro algum. Nem sempre

médicos, padres, delegados e membros das comissões sanitárias tinham certeza dos dados

comunicados à presidência da província ou enviados aos jornais. Há ainda o componente

político que poderia fazer autoridades locais subestimarem a mortalidade nas áreas sob suas

responsabilidades, como forma de defenderem-se da acusação de negligência ou para se

autopromoverem.

De qualquer modo, se nos atermos às estimativas que tiveram maior divulgação na

época, fixando o número de mortos entre 11.000 e 12.735, e tomando por base a estimativa de

que a população do Ceará no ano de 1860 foi calculada em 503.759 indivíduos429, a epidemia

teria sido responsável pela morte de cerca de 2% dos cearenses. A percentagem aumenta quando

se considera a estimativa apresentada por José Pereira Rego a respeito da soma da população

das localidades afetadas pela doença, excluindo espaços do Ceará onde o cólera não se

manifestou: 360.060 pessoas430. Nesse caso, o cólera teria levado ao túmulo 3% das pessoas

que habitavam lugares do Ceará por onde passou.

Para além das taxas de óbitos, não encontrei projeções claras do número geral de

acometidos pela doença, ou seja, a soma de todos que a contraíram, tanto mortos quanto os

sobreviventes dela. Há apenas dados imprecisos, muito circunscritos a determinados lugares ou

datas. Na capital, por exemplo havia 2014 acometidos e 177 mortos, a 27 de julho de 1862431.

Até o declínio em 1863, a peste mataria de 362432 a 839433 fortalezenses, mas não localizei qual

teria sido o computo geral dos acometidos na capital. Tratando de Crato, Irineu Pinheiro

encontrou registros de ter o número de doentes na freguesia alcançado 8.000, quando o total

geral de habitantes dela era estimado em 18.230434. Nas informações existentes sobre as mortes

de coléricos em Crato, as fontes apontam valores díspares: 760435, 871436 e 1100437 pessoas.

Para Maranguape, Studart calculou em mais de 5.000 os acometidos438. Levando em

consideração os cerca de 2.850 óbitos registrados em Maranguape, a taxa mortuária dos

quadra epidêmica. Portanto, o próprio processo de produção do Livro dos Coléricos, como suas aparentes falhas e

lacunas, aponta para a força de intervenção da doença no cotidiano e no funcionamento da sociedade cratense da

época. ALEXANDRE, op. cit., 2010, p. 148-149. 429 BRASIL, op. cit., 1997, p. 299. 430 REGO, op. cit., 1873, p. 188. 431ANRJ. Ofício n. 52. 27 jun. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação: IJJ 9-181 432 STUDART, op. cit., 1997b, p. 57. 433 REGO, op. cit., 1873, p. 187. 434 PINHEIRO, op. cit., 1950, p. 130. 435 O Cearense, n. 1568, 20 mar. 1863, p. 1. 436 MEDEIROS, op. cit., 1863, p. 17. 437 O Araripe, n. 287, 06 set. 1862, p. 2. 438 STUDART, op. cit., 1997b, p. 5.

93

coléricos teria sido de quase 60% na vila. Se não há meios para determinar com exatidão o

número de pessoas que adoeceram e morreram pelo cólera, muito menos é possível indicar o

cálculo dos cearenses afetados, direta ou indiretamente, pela tragédia. É provável que parte

significativa das mais de 500.000 almas ocupantes da província tenha sofrido com as perdas

humanas e contingências socioeconômicas da conjuntura.

Tratando do fenômeno epidemia, Michel Foucault destacou sua dubiedade: fenômeno

coletivo, pois seus efeitos se fazem sentir sobre grandes grupos humanos, é, também, individual,

“processo único”, jamais se repetindo de forma similar no tempo e no espaço. Portanto, há um

“núcleo individual e único desses fenômenos coletivos”439. Eventos sociais com fronteiras

temporais e espaciais definidas, as epidemias são intensas e arrebatadoras, sendo vivenciadas

de formas singulares pelos sujeitos históricos que se veem cercados pela ameaça coletiva de

morte. Nas palavras de Dilene Nascimento e Anny Jackeline Silveira, as respostas e choques

engendrados por um surto assumem nuances diversas em diferentes conjunturas sociais,

políticas e culturais: “O sentido desses eventos e suas consequências são modulados segundo

realidades específicas – ecológicas, políticas, religiosas, econômicas”440.

O périplo do cólera no Ceará, portanto, esteve repleto de singularidades. A explanação

que fiz sobre a epidemia, ao longo desse tópico, demonstrou o caráter disruptivo sobre o

cotidiano e as diferentes reações sociais nas diversas localidades onde agiu. Dentre o leque de

possibilidades de pesquisa abertas pelo fenômeno, o que interessa nesta tese é um aspecto

específico: como o cenário instalado pela epidemia serviu às disputas políticas na província,

bem com a interesses pessoais. O próximo capítulo ajudará a vislumbrar parte dessas questões,

ao apresentar como o cólera tornou-se o mote para um conflito na imprensa, envolvendo o

presidente José Bento da Cunha Figueiredo Júnior e os partidos políticos do Ceará provincial.

439 FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 26. 440 NASCIMENTO; SILVEIRA, op. cit., 2004, p. 27.

94

CAPÍTULO 2 - PRESIDIR NA EPIDEMIA: O GOVERNO DA PROVÍNCIA E O

CÓLERA NO CEARÁ

2.1 - “Calamidade igual, só o cólera”

Quando toda a província geme sob a pressão do cólera morbo, que a tem

enlutado; quando todos os espíritos preocupam-se das funestas, e tristes

consequências de tão horrível epidemia, [...], os chimangos desta vila

fomentam intrigas, e entendem ser esta a melhor oportunidade para

reabilitarem seu partido, pretendendo montá-lo, apossando-se de todas as

posições como outrora, com sacrifício dos interesses públicos, fazendo de

alguns empregos, que ainda por desgraça lhes estão confiados, uma arma que

manejam contra nós, seus adversários, sem procurarem salvar as aparências a

todos os respeitos441.

Com essas palavras, uma carta anônima enviada da vila de Ipu, com data de 27 de junho

de 1862, acusava os chimangos de agirem, sordidamente, no exercício dos cargos públicos, na

promoção de interesses políticos particulares na localidade. O texto publicado no diário Pedro

II, principal porta-voz dos caranguejos no Ceará, acusava o promotor de Justiça, Francisco

Barboza Cordeiro, de pressionar e questionar as decisões do juiz de direito de Ipu. Segundo a

carta, o magistrado inocentara o réu Victor Ferro, conservador octogenário local, de processo

no qual a promotoria pedira punição de vinte anos de cadeia. Ao tempo em que a missiva se

rasgava em elogio à decisão do juiz, o acusador, Francisco Cordeiro, era detratado: os negócios

públicos decidiriam-se pelo espírito partidário do promotor, usando o cargo para satisfação dos

interesses do grupo político do qual fazia parte.

Escrita com o propósito de tornar-se pública, sendo inclusive exposta na primeira página

da folha conservadora, a carta aponta a suposta prevaricação de Francisco Cordeiro, além do

pretenso abuso de poder, como agravados pela situação delicada vivida na província em meados

de 1862. No tempo do julgamento em Ipu, no qual a promotoria teria agido de má-fé, movida

por interesses intestinos, o cólera fazia gemer e enlutar a população do Ceará. Nesse sentido, o

texto acabava por detratar ainda mais os adversários liberais, levantando a pecha de serem

desumanos e impiedosos nas ambições, ao ponto de não se envergonharem de ações políticas

descritas como baixas numa época de medo e morte assolando os cearenses.

A missiva de Ipu é apenas um exemplo de como o Pedro II apropriou-se do cenário

caótico do cólera com vista às disputas políticas provinciais. O cólera ocupou destaque nas

441 Pedro II, n. 179, 7 ago. 1862, p. 1

95

páginas do Pedro II entre 1855 e 1856, quando do desembarque da doença no Brasil e dos

surtos nas províncias circunvizinhas ao Ceará. O jornal ocupava, à época, a função de folha

oficial da província, haja vista o controle quase completo do governo do Ceará pelo Partido

Conservador após a substituição de Alencar, em 1841. Como já informado, a família Fernandes

Vieira, os “carcarás”, era a proprietária do Pedro II e tinha proeminência no partido. Nesse

sentido, no biênio 1855-56, ao mesmo tempo em que o Pedro II demonstrava a tensão pela

ameaça epidêmica, a forma como tratou o fenômeno não deixou de imprimir uma valorização

das ações das autoridades públicas provinciais e locais, elogiando as ações profiláticas com fins

políticos e como forma de acalmar os leitores, tementes da chegada da epidemia. Com a

manifestação do cólera e após a posse de Figueiredo Júnior, em 1862, a postura adotada, no

biênio citado acima pelo jornal na cobertura da epidemia mudou completamente.

De início, a recepção de Figueiredo Júnior por parte do Pedro II pareceu anunciar-se

promissora. Nomeado por Caxias e filho do então conselheiro Cunha Figueiredo – futuro

Visconde do Bom Conselho, de relações estabelecidas com personalidades da política imperial,

como demonstrarei mais à frente –, o jovem presidente do Ceará aparentava ser o novo aliado

dos conservadores na luta por espaços de poder entre as elites políticas locais.

Na edição de 6 de maio de 1862, o órgão publicou na seção “Interior” – dedicada a

notícias sobre a Corte e outras províncias brasileiras – uma correspondência, enviada do Recife

e assinada por um certo “Rubim”. Nela, havia críticas ao vice-presidente do Ceará – José

Antônio Machado, então no exercício da presidência –, por seu trato da epidemia do cólera,

pois “esperava a vinda do S. Exc. Dr. José Bento para de comum acordo regularem o que fosse

mais conveniente”, em vez de agir imediatamente na contratação de médicos e envio de

remédios às localidades afetadas pela epidemia. Na sequência, a correspondência comentava

ter o novo presidente de lidar com dois “males terríveis”: o cólera e as eleições que se dariam

em Icó. Após anunciar os desafios abertos ao mandatário recém-nomeado, provocava a “folha

liberal da província” (O Cearense), pois esta estaria a ridicularizá-lo: “É bom que S. Exc. vá

desde logo conhecendo quem são os liberais daí com quem terá de lutar”442. Ao publicar a carta,

nota-se: O Pedro II não só se mostrava simpático ao chefe do executivo provincial como

tentava, igualmente, captar simpatia, ao instá-lo a desconfiar dos liberais cearenses.

Mesmo com a epidemia grassando por todo o Ceará, a relação amistosa entre o diário e

o presidente manteve-se ao longo dos números seguintes. Dedicando parte das páginas a

publicações oficiais, serviço contratado a prestar pelo governo provincial, o Pedro II transcrevia

442 Pedro II, n. 102, 6 mai. 1862, p. 3.

96

ofícios e outros documentos, dando conta das orientações a comissões de socorro espalhadas

pelas províncias e da contratação de médicos para tratamento dos doentes, ações descritas de

forma positiva em outras seções do periódico, nas quais não se poupavam elogios ao chefe do

governo. A 20 de maio, informava ter Figueiredo Júnior visitado a Santa Casa de Misericórdia,

onde parte dos coléricos de Fortaleza eram tratados. Destacava o fato dele ter agido “tão bem

para que no hospital se fizesse um pequeno depósito de gêneros por conta do governo”443.

Em artigos, correspondências e notícias, o Pedro II não deixava, porém, de solicitar

ações mais enérgicas ao administrador, adjetivado como “ilustrado, e dotado das melhores

intenções”. Um artigo dedicado ao cólera na capital afirmou: a preocupação do presidente em

não “abrir os cofres à exageração e superficialidades” refletia boa intenção e as “ordens que

têm sido dadas”, no geral, eram “suficientes”. Todavia, opinava: “algumas dessas providências

não satisfazem as necessidades da quadra em que nos achamos, ou são mal executadas”, por

falta de profissionais a auxiliarem na condução imediata, ao hospital, das pessoas acometidas

dos primeiros sintomas da doença. Em tom de súplica respeitosa, arrematava:

Confiamos que estas nossas mal esboçadas considerações serão acolhidas com

indulgência, e no sentido com que as escrevemos pelo distinto cavalheiro a

quem dignamente estão confiadas as rédeas do governo da província.

Minore, Sua Excelência, quanto estiver a seu alcance o peso dos males que

acabrunham o Ceará, que seu governo será abençoado e recolherá em sua

consciência o mais precioso galardão que possa ambicionar sua filantropia e

patriotismo444.

Não obstante, a cortesia no trato ao presidente da província e os elogios às ações de

combate ao cólera mudariam radicalmente nas páginas do Pedro II, entre fim de maio e início

de junho de 1862. Essa virada brusca foi capitaneada por uma questão particular envolvendo a

redação do Pedro II, mas também refletiu as leituras que as personagens daquele contexto

fizeram das alterações no cenário político nacional e, por extensão, refletiu-se nas disputas por

espaços de poder no Ceará. Nessa conjuntura, a imprensa ocupava papel estratégico nos jogos

políticos provinciais, tentando convencer a chamada “opinião pública” sobre a superioridade

ou inferioridade de determinados projetos sociais e ideias políticas. Unida aos interesses de

grupos sociais específicos e em competição, longe de professar a neutralidade jornalística que

alardeava, a imprensa cearense da segunda metade do século XIX promoveu acirradas lutas

políticas.

443 Pedro II, n. 114, 20 mai. 1862, p. 3. 444 Pedro II, n. 116, 22 mai. 1862, p. 2.

97

A ruptura da ordem cotidiana promovida pela doença, com enfermos espalhados por

todo Ceará, despertando um clima de medo e ceifando milhares de pessoas, oportunizou um

tema para as contendas, com forte apelo ao público. Aliás, por sua excepcionalidade e

dramaticidade, o cólera tornou-se um dos assuntos com maior espaço nos impressos de 1862.

Neste sentido, as críticas lançadas pelo Pedro II ao presidente Figueiredo Júnior, não

deixaram de ser catalisadas em benefício próprio pelos órgãos de inspiração liberal impressos

no Ceará de 1862: O Cearense (Fortaleza), O Araripe (Crato) e O Commercial (Fortaleza).

Como informado anteriormente, o último jornal mudou de nome, tornando-se a Gazeta Official,

em julho de 1862. Impressa duas vezes por semana, a Gazeta ocupou papel de destaque na

interposição ao Pedro II. Por fim, O Sol (Fortaleza) também ocupava a cena pública nessa

conjuntura. Se não se assumia liberal, como faziam as folhas citadas acima, O Sol era notório

opositor do Pedro II, pois o proprietário e redator do primeiro, Pedro Pereira da Silva

Guimarães, rompera politicamente com os Fernandes Vieira, em 1856, quando teve recusado o

apoio “carcará” nas eleições para a Câmara Geral. Aliás, o próprio presidente do Ceará entendia

O Sol como um jornal liberal, tratando-o assim em sua correspondência oficial445.

Tais periódicos, a partir de fins de maio de 1862, passaram a atuar nitidamente em

conjunto para defender Figueiredo Júnior e suas ações contra a epidemia, contrapondo-se às

opiniões publicadas pela redação do Pedro II. Alargando o circuito de comunicação, inclusive,

com o apelo a folhas de diferentes matizes políticas de outras províncias, com quem trocavam

cartas e artigos, ou repercutindo entre si os mesmos textos que imprimiam em formas de

transcrições, respostas ou comentários, os quatro órgãos citados promoveram intensa campanha

de detração do Pedro II e de promoção do presidente do Ceará.

Para compreensão da adesão entusiasmada dos jornais liberais ao presidente no contexto

da epidemia, é preciso esclarecer a motivação da mudança na forma moderada e diplomática

com que o Pedro II tratava Figueiredo Júnior e a coordenação dos socorros aos lugares atingidos

pelo cólera. Uma personagem ocupou papel de destaque na dinamização das disputas políticas

de 1862: Manoel Franco Fernandes Vieira. Desde 1854, Manoel Franco ocupava o cargo de

inspetor na Inspetoria do Tesouro Provincial, chefiando assim o controle das finanças do Ceará.

Competia, por lei, ao inspetor de tesouraria chefiar a repartição responsável pela “exata

administração, arrecadação, contabilidade e fiscalização das rendas provinciais”, atuando

debaixo da imediata orientação do presidente da província, a quem prestava juramento quando

da posse no cargo. Era do Inspetor que partia a ordem para pagamento das despesas

445 ANRJ. Ofício confidencial. 31 jan. 1863. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182.

98

estabelecidas por lei da Assembleia, bem como as extraordinárias, determinadas pelo presidente

da província. Cabia ao mesmo, ainda, a definição dos períodos para arrematação dos impostos,

a partir da ação das coletorias espalhadas pelo Ceará, cujos coletores e arrecadadores eram

nomeados e demitidos livremente pelo titular da Inspetoria. O inspetor tinha autorização para

corresponder-se diretamente com todas as autoridades da província, espedindo resoluções e

ordens às repartições imediatamente subordinadas a ele, com o escopo de garantir a execução

das determinações da repartição e favorecer a arrecadação dos impostos446. Pelo cargo exercido,

recebia ordenado anual no valor de 1.800$000 (um conto e oitocentos mil réis)447.

Manoel Franco conciliava o cargo na Inspetoria com outra função: era um dos redatores

do Pedro II. Sobrinho de Miguel Fernandes Vieira, que, em 1862 foi à Corte tomar posse no

Senado, morrendo pouco tempo depois448, Manoel Franco passou a ser o principal responsável

pela edição do jornal na ocasião. As relações políticas estreitas entre os conservadores e os

governos provinciais do Ceará garantiram ao periódico a publicação do expediente, editais e

demais comunicações do governo da província, com contrato estipulado por lei da Assembleia

Legislativa, em 1850449. Desta forma, a dupla função de inspetor/redator, somada à origem

“carcará”, fazia de Manoel Franco Fernandes Vieira, figura influente entre os conservadores

cearenses. Além das duas atribuições profissionais, era vice-provedor da Santa Casa de

Misericórdia de Fortaleza, tendo na quadra epidêmica, então, maior visibilidade social.

A intensificação do cólera no interior do Ceará estimulou Manoel Franco a publicar

mais artigos, cartas e notícias, com destaque para a mortalidade. Do mesmo modo, tais textos

aumentavam o apelo e as críticas à agilidade do governo provincial no trato da crise epidêmica.

Nesse cenário, os jornais liberais de Fortaleza passaram a reproduzir e comentar as informações

do Pedro II sobre o cólera, destacando especialmente os trechos com críticas ao presidente

Figueiredo Júnior. Nitidamente, as folhas “chimangas”, aproveitando as tensões existentes por

conta da epidemia, passaram a insinuar a existência de conflitos no interior do grupo

446 Lei n. 252, 15 nov 1842. OLIVEIRA, Almir Leal de; BARBOSA, Ivone Cordeiro. (Org.). Leis provinciais:

Estado e cidadania (1835-1846) Tomo I. Fortaleza: Instituto de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do

Ceará INESP, 2009, p. 336-344, CD-ROM. 447 Lei n. 830, 22 set. 1857. OLIVEIRA, Almir Leal de; BARBOSA, Ivone Cordeiro. (Org.). Leis provinciais:

Estado e cidadania (1835-1846) Tomo III. Fortaleza: Instituto de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do

Ceará INESP, 2009, p. 147, CD-ROM. 448 O ano de 1862 não foi alvissareiro para o clã “carcará”. Em 15 de junho, morreu por cólera, em Saboeiro, o

deputado José Fernandes Vieira. A 9 de julho, Francisco Fernandes Viera, Visconde de Icó, patriarca da família,

faleceu. Na sequência, em 6 de agosto, pereceu o senador Miguel Fernandes Vieira. Em menos de dois meses, a

família perdeu o visconde e seus dois filhos, fragilizando a liderança exercida pelos “carcarás” no Partido

Conservador da província, como exibirei mais à frente no corpo da tese. 449 Lei n. 517, 01 ago. 1850. OLIVEIRA, Almir Leal de; BARBOSA, Ivone Cordeiro. (Org.). Leis provinciais:

Estado e cidadania (1835-1846) Tomo II. Fortaleza: Instituto de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do

Ceará INESP, 2009, p. 180, CD-ROM.

99

“caranguejo”. Essa postura não deixou também de se apropriar das notícias sobre as mudanças

no cenário político nacional, chegadas ao Ceará no início de junho de 1862.

Em 10 de junho, por exemplo, O Cearense publicou correspondências de um mesmo

autor anônimo – datadas em 23 e 25 de maio, portanto entre a queda de Caxias e a nomeação

de Zacarias de Góis –, enviadas do Rio de Janeiro, traçando informações da situação política

na Corte. Em texto repleto de índices de oralidade – com o autor formulando várias perguntas,

respondidas na sequência, simulando uma conversa ao vivo com o leitor, convidando a uma

leitura em voz alta450–, narrava que um vapor tinha trazido ao Rio de Janeiro as “desagradáveis

notícias do cólera” no Ceará. Da mesma embarcação, teriam descido conservadores cearenses,

espalhando “graves acusações ao seu presidente José Bento, por não dar providências” contra

a epidemia. As críticas, inclusive, teriam chegado à imprensa da Corte por meio de carta -

atribuída pelo O Cearense ao deputado conservador Domingos José Nogueira Jaguaribe -,

“pintando” o presidente do Ceará como “novel, desprestigiado, ignorante, desumano”. Em tom

irônico, o texto d’O Cearense indagava a razão de correligionários “abocanharem assim ao

amigo” Figueiredo Júnior. Como resposta, insinuava que a crise do governo Caxias estimulava

as críticas dos conservadores cearenses, dado à expectativa de Figueiredo Júnior cair junto ao

Gabinete que o nomeou: “Quer você saber? Duvido que se o ministério não caísse, que o

Jaguaribe, ou outro correligionário do Sr. Figueiredo Júnior mandasse publicar essa carta”451 .

Impressa dezesseis dias depois da sua suposta produção (25 de maio) – indiciando como

o tempo entre a postagem de uma correspondência do Rio até a publicação em um jornal do

Ceará podia levar algumas semanas –, a carta anunciava o gabinete Zacarias de Góis. Não

obstante, na data da publicação pelo O Cearense, a 10 de junho de 1862, esta folha ignorava

que o ministério Zacarias já tinha sido substituído pelo chefiado por Pedro de Araújo Lima, o

Marquês de Olinda. Se de fato houve, como sugere a folha liberal, o cálculo por parte dos

“caranguejos” de que a substituição de Caxias resultaria na prematura queda de Figueiredo

Júnior – o qual, ao tempo da publicação, tinha pouco mais de um mês no cargo de Presidente

450 Tratando dos periódicos do século XIX, Marialva Barbosa, chama atenção para a importância de se identificar

os “dispositivos de leitura” ou “índices de leitura” – escolhas gráficas fixadas pelo jornal, tais como títulos, fios,

colunas, resumos introdutórios etc., para tentar diminuir a distância entre o texto e o leitor, servido como guia de

leitura – e os “índices de oralidade” – como, por exemplo, a impressão de pequenos traços direcionando as

mudanças de temáticas entre um assunto e outro, letras maiúsculas em profusão no meio de frases, o uso de negrito

etc. –, “instrumentos implícitos ou explícitos que destinam os textos aqueles que os leriam em voz alta ou os

escutariam”. O próprio teor provocativo de alguns textos aponta para como sua leitura convidava mais à oralização

do que ao silêncio. Para a autora, havia “contaminação do mundo oral nas letras impressas” dos jornais brasileiros

oitocentistas, o que, em uma sociedade majoritariamente analfabeta, intensificava a circulação das informações

impressas para além dos grupos sociais letrados, ampliando o alcance de leitores e/ou ouvintes delas. BARBOSA,

op. cit., 2010, p. 44-45. 451 O Cearense, n. 1528, 10 jun. 1862, p. 2.

100

da Província do Ceará –, os fatos que se deram na Corte no final de maio de 1862 – a decisão

do Imperador de não dissolver a Câmara, indicando Olinda para a missão de organizar governo,

quando a “Liga” reconfigurava o jogo parlamentar – frustraram tal previsão.

Diante da mudança do Gabinete e das provocações das folhas liberais, o Pedro II rebatia

os adversários, alegando não haver desgaste nas suas relações com a presidência do Ceará.

Respondendo ao O Commercial, e abusando das ironias para detratar seu opositor, típicas da

imprensa do oitocentos, o Pedro II explicava os artigos sobre o cólera como movidos “pelo

amor” à província e por um suposto dever da imprensa. Negava fazer oposição à presidência.

Ela, inclusive, estaria “convencida disso”. Desta forma, o “colega [O Commercial] perde o seu

tempo descendo a essas misérias pelo mero desvanecimento de prestar serviços à nossa custa”.

Afirmava ainda: se fosse de seu entendimento “fazer oposição ao Sr. José Bento”, a faria “com

franqueza, lealdade e sem mistérios”, pois “teria consciência dos encargos que assumimos como

jornalistas”. Finalizava reforçando um discurso de imparcialidade editorial:

Deixar de usar da livre emissão do pensamento, segundo as condições legais

de nossa existência política e da causa da civilização para que todos devem

concorrer, seria uma fraqueza humilhante e um anacronismo repugnante que

o colega não deve esperar de nossa parte452.

Na conjuntura de trocas de farpas impressas e de mudança no gabinete ministerial, os

periódicos liberais, aparentemente, atingiram o alvo: insatisfeito com a repercussão na imprensa

de críticas ao governo no gerenciamento da quadra pestilenta, Figueiredo Júnior pediu

satisfações ao inspetor de tesouraria, Manoel Franco Fernandes Vieira, sobre a postura do Pedro

II. A criação de uma seção no jornal, denominada “Cholera”, teria sido o ingrediente

intensificador do mal-estar. Como demonstrarei mais à frente, as correspondências oficiais do

presidente, emitidas em 1862, tiveram os atritos com Manoel Franco como tema constante.

Sentindo-se pressionado, O Pedro II aumentou o tom de voz no rebate aos rivais e

continuou tergiversando sobre o interesse em desqualificar o governo provincial. Na defesa de

si, argumentava que apenas o interesse público e a busca de auxiliar o governo na lida contra o

cólera movia a redação. A 21 de junho de 1862, o Pedro II publicou o expediente oficial, repleto

de comunicações atinentes à epidemia, bem como cartas enviadas de Maranguape, nicho

político do redator, com o relato dos estragos feitos pela doença. Na coluna “Noticiário”,

lembrava à presidência da urgência no envio de recursos e médicos aos lugares ameaçados:

452 Pedro II, n. 138, 18 jun. 1862, p. 3.

101

O cólera vai-se avizinhando ao Cariri, a esse grande foco de população,

cercado em grande parte de serras e de terrenos embrejados; e muito receando

pela sorte daquele remoto e importante ponto da província, lembramos a S.

Exc. a conveniência de tomar com urgência as providências que forem

compatíveis com o atual estado de coisas, e recursos de que dispõe.

A ida de alguns médicos e socorros amplos parece-nos urgente, podendo

serem aproveitados alguns médicos que estiverem em localidades onde o

cólera já estiver em vias de declinação ou a extinguir-se visto que não há

tempo a perder se atendermos aos estragos que vai fazendo com direção a

aquele lugar, que se vê hoje ameaçado de ser atacado ao mesmo tempo por

todos os lados453.

A referência à aproximação da doença em relação ao Cariri, presente na citação, era, no

mínimo estranha, pois a epidemia já tomava vários espaços da região no mês de maio, conforme

mostrei no capítulo anterior. Não parece crível que o Pedro II desconhecesse as notícias sobre

a situação, tendo em vista as cartas vindas do sul da província, dando conta do surto, com

circulação na capital quando da publicação do noticiário.

Em 27 de maio, o jornal O Cearense, inclusive, tinha publicado carta de João Brígido

dos Santos, redator do semanário O Araripe, com o relato da epidemia no Cariri454. A própria

correspondência oficial da presidência tratava do assunto fazia pelo menos um mês. Em 26 de

maio, por exemplo, o presidente tinha registrado, em ofício ao Ministro dos Negócios do

Império, o cerco da epidemia ao Crato e já narrava casos de mortes em Milagres, como os do

povoado “Cachorra morta, onde existe uma aldeia de índios boçais, e em Salgadinho”, contando

“cinco vítimas de cólera, entre trinta e seis pessoas acometidas”455.

Por equívoco ou cálculo político – para reforçar a narrativa de que a redação propugnava

pelo interesse público, simbolizado na reivindicação de socorros amplos e de ações preventivas

–, a nota sobre o cólera no Cariri não deixava de tornar mais tensa a situação do inspetor de

Tesouraria – um dos responsáveis legais, inclusive, pela liberação dos recursos que reivindicava

na imprensa – frente ao seu chefe imediato, o presidente Figueiredo Júnior.

Na edição de 2 de julho, mais uma vez comentando a situação da vila de Maranguape,

o Pedro II voltou a citar o nome do presidente e provocar a imprensa liberal, reforçando o

discurso de agir com imparcialidade e buscando o bem da província. Sobre o chefe do executivo

provincial, afirmava satisfazer “quanto é possível” as “exigências e reclamações daquela

localidade, feitas por médicos em serviço ou pela comissão de socorros”. Dizia assim fazer

“homenagem à verdade”, o que deveria tranquilizar O Comercial “quanto às suspeitas

453 Pedro II, n. 140, 21 jun. 1862, p. 3. 454 O Cearense, n. 1526, 27 mai. 1862, p. 2. 455 ANRJ. Ofício n. 41, 26. mai. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

102

infundadas que concebeu, de que estávamos de ânimo deliberado a censurar a administração do

Sr. Dr. José Bento com relação às providências de S. Exc. sobre a epidemia”. Reiterava o artigo:

a criação da coluna “O Cólera” tinha em vista “justificar a conveniência, a necessidade mesmo,

que tinha S. Exc.” de se libertar, acaso estivesse circunscrito, de “certas regras de economia por

ventura recomendadas pelo governo geral”. A afirmação não deixava de ser problemática, pois

aludia ser o presidente influenciável e fraco, temeroso, supostamente, de enfrentar o Governo

Imperial, recomendando cautela nos gastos com os socorros no contexto da epidemia. O Pedro

II, ainda, sugeria condicionar o apoio ao presidente à leitura positiva ou negativa dos atos deste:

“Sempre porém que Sua Excelência merecer os nossos aplausos, não lhos [sic] recusaremos;

não temos para com o Sr. Dr. José Bento nenhum motivo nem pensamento de hostilidade; e

pelo contrário razões bem fundadas para aderirmos com lealdade à sua administração”456.

No mesmo dia de circulação do texto acima, ante a insubordinação do chefe da

Inspetoria de Tesouraria Provincial, manifesta em outras publicações do Pedro II, o presidente

assinou ato despedindo Manoel Franco do cargo ocupado há oito anos. Publicamente, a

justificativa para a demissão foi uma suposta má situação financeira da repartição, com a

instauração de sindicância para investigá-la.

A reação do Pedro II foi instantânea: a 3 de julho de 1862, Manoel Franco assinou texto

rechaçando insinuações aventadas n’O Cearense. Em sua manifestação, o ex-inspetor negava

ter tentado negociar a permanência na Tesouraria e afiançava, categoricamente, que a

“presidência em sua veleidade” tentara esmagá-lo com a portaria de demissão. Insinuava ser

alvo de uma chantagem: ceder ao presidente da província, saindo da redação do Pedro II,

sacrificando os “interesses políticos do partido [conservador]”, já “tão contrariado e solapado

por todas as presidências a pretexto de conciliação”, para assim manter o emprego457.

Confirmada a exoneração, o presidente passou a ser descrito pelo Pedro II como alguém

possesso e raivoso, “obcecado por uma vingança indigna, só própria de espíritos mesquinhos”.

A demissão seria acintosa, uma “revoltante injustiça que tem indignado a todo o público desta

capital”. A pretensa indignação pública contra a demissão, era, notoriamente uma forma do

jornal legitimar o discurso contrário ao governo, apresentando-se como opinião geral e não

partidária. Sobre o futuro do presidente, vaticinava: “um remorso eterno há de persegui-lo pela

injustiça revoltante e picardia infame que acaba de cometer”458.

456 Pedro II, n. 148, 2 jul. 1862, p. 3. 457 Pedro II, n. 149, 3 jul. 1862, p. 3. 458 Pedro II, n. 150, 4 jul. 1862, p. 3.

103

A cada novo número, cresciam as acusações. A 5 de julho de 1862, o diário descrevia a

versão de como fora a audiência na qual José Bento inquirira Manoel Franco sobre as críticas

constantes feitas ao governo por conta do cólera. O então inspetor de tesouraria teria reagido

afirmando, na ocasião, “nada tinha que ver [a presidência] com a empresa do Pedro II nem tão

pouco exercer menor inspeção sobre a direção da folha; mas não querendo criar embaraços a

sua administração, faria por evitar de tocar no cólera que era a fibra delicada”459. Tais

publicações tentavam reforçar a imagem do Pedro II como defensor da liberdade de imprensa,

ante um governo ansioso por barrar a mesma, censurando os temas delicados da administração,

especialmente sobre a premente epidemia.

A respeito de Manoel Franco, o jornal investiu na representação enquanto cidadão

benemérito, caridoso e ciente das responsabilidades no socorro dos conterrâneos. Seria a voz

humanitária e generosa, bradando pela imprensa em “termos enérgicos e convenientes em prol

da humanidade aflita e desvalida, que caía exangue mais à falta de recursos do que à intensidade

da peste que, no seu introito, se manifestava benigna”. As experiências, como inspetor da

tesouraria, redator e vice-provedor da Santa Casa, somavam-se a uma pletora de adjetivos:

“ilustrado”, “probo”, “honrado” e “exemplar pai de família”. Todavia, o presidente “não pôde

suportar as comedidas e justas censuras do Sr. Dr. Franco; ficou desatinado, e pretendeu sufocar

a nobreza de sentimentos e patriotismo” com a ameaça de demissão na Tesouraria:

Sua Excelência, pois, em vez de aproveitar as lições de quem mais inteligência

e experiências tinha dos homens e das cousas; pelo contrário timbrava em seu

capricho e amor próprio, e sem atender a prudência tão necessária aqueles que

se acham encarregados de autoridade pública e de dirigir povos, mormente em

circunstâncias difíceis e excepcionais, abusou do poder da força e do alto do

cargo que ocupava para demitir do emprego de inspetor da tesouraria

provincial o Sr. Dr. Franco, deixando com essa sua medida injusta, arbitrária

e vingativa essa repartição fiscal acéfala460.

Revoltava, especialmente, ao jornal o anúncio da instauração da sindicância, com uma

comissão realizando devassa na Tesouraria Provincial que, segundo a presidência, encontrava-

se em má situação. A ilação punha em xeque a competência e honestidade de Manoel Franco

na administração das finanças provinciais, daí a necessidade do Pedro II engrandecer o máximo

possível seu editor, desqualificando a acusação de estar a tesouraria em crise:

Já tivemos ocasião de demonstrar de modo categórico e irrespondível, que

nunca a tesouraria provincial atingiu a um estado mais florescente do que no

459 Pedro II, n. 151, 5 jul. 1862, p. 3. 460 Pedro II, n. 183, 12 ago. 1862, p. 1.

104

tempo do Sr. Dr. Franco, pois ao passo que duplicou a receita, deixou no

arquivo da repartição monumentos imorredouros não só do zelo com que

fiscalizava os interesses da fazenda, como da esclarecida inteligência com que

auxiliava o governo e imprimia na marcha da repartição a direção mais

conveniente. Entretanto o Sr. José Bento tem o inqualificável cinismo de dizer

em uma folha que podia ser lida no Ceará, que se o Sr. Dr. Franco continuasse

na gerência dos negócios fiscais, seria preciso mandar fechar as portas da

repartição!!!461

Ante as insinuações a respeito do caráter e competência do redator, o Pedro II

intensificou a leitura negativa acerca das experiências administrativas do presidente. Segundo

o jornal, a saída de José Bento da presidência do Rio Grande do Norte, em 1861, fora marcada

por “lama”, “desatinos”, “perseguição” à imprensa, como a prisão de tipógrafos, e pela covardia

e abuso da força. Arrematava, citando jornal pernambucano: em um país sério o “Sr. José Bento

nunca sairia do fundo empoeirado de uma secretaria”, porém, “no Brasil, país das raridades,

entregava-se uma província da categoria e civilização do Ceará e numa época de crise” a tal

homem. Nada se aproveitaria de sua administração no trato do cólera. Isso seria compartilhado

pela opinião pública: “questão vital para a província, o Sr. José Bento está condenado no

conceito de todos como inepto e imprevidente com suas providências póstumas”462.

Em meio à intensa artilharia de críticas contra si, o governo provincial desfechou novo

ataque, dessa vez ao bolso do Pedro II: rompeu o contrato que fazia deste a folha onde era

impresso o expediente oficial. Nas primeiras semanas de julho, a presidência fechou contrato

com a tipografia de Francisco Luiz de Vasconcelos, pela quantia de novecentos mil réis. A 16

de julho, O Commercial passou a se chamar Gazeta Official, publicando o expediente e mais

atos oficiais do governo provincial. Sobre o contrato em questão, a Gazeta afirmava ser o valor

do novo contrato cem mil réis inferior ao do Pedro II, alegando, assim, economia aos cofres do

Ceará463. Ao assumir o espaço de órgão oficial, a Gazeta passou a intensificar as críticas, já

encetadas enquanto se chamava O Commercial, ao Pedro II, destacando a performance do

presidente no socorro aos vitimados pela epidemia, também ancorando essas questões no

âmbito de uma pretensa opinião geral da população.

De sua parte, com redator demitido de cargo de extrema importância, com a perda de

um conto de réis no contrato de publicação do expediente provincial e sem perspectiva de

qualquer intervenção do Governo Imperial neste cenário, o Pedro II reagiu desqualificando as

publicações da Gazeta Official. Em matéria encabeçada pelo dístico “anões quanto mais alto

sobem, mais diminuem em proporções”, o presidente era acusado de improvisar um “novo

461 Pedro II, n. 221, 27 set. 1862, p. 1. 462 Pedro II, n. 151, 05 jul. 1862, p. 3. 463 Gazeta Official, n. 1, 16 jul. 1862, p. 3.

105

contrato em prejuízo do cofre provincial e da expedição e pontualidade com que era feito o

serviço”, pois não conseguira uma “folha grátis que servisse de receptáculo de suas salsadas”.

O governante, inclusive, dividiria seu tempo entre enviar cartas à imprensa de outras províncias

“narrando façanhas que não fez” e redigir os textos da Gazeta, “onde tem revelado seu

toupeirismo” e “até que ponto é amante da verdade na exposição dos fatos”464. Assim, o Pedro

II intensificou o uso do cólera para detratar Figueiredo Júnior, pessoalmente responsabilizado

pelos milhares de mortos e pelos prejuízos econômicos decorrentes:

NOTICIÁRIO

Já monta a 8.500 as vítimas que o cólera tem ceifado, achando-se, alguns

lugares acometidos de recente data, e outros apenas ameaçados pelos sintomas

precursores da colerina.

Infelizmente a maior mortalidade tem sido nos pontos agrícolas de Pacatuba,

Maranguape, Baturité, e ultimamente do Crato, onde o mal já eleva o número

dos mortos a 1.500.

Essa grande mortalidade deve ser imputada antes a incúria do Sr. José Bento,

em não tomar providências a tempo, do que a intensidade do mal em si.

O que é certo é que por muito tempo se há de fazer sentir a falta dos milhares

de braços laboriosos, que tem sucumbido, e que são tanto mais para lamentar,

atendendo-se a pouca escravatura que temos na província.

São incalculáveis os estragos e prejuízos que se tem sofrido sob todos os

pontos de vista, parecendo, entretanto, que a epidemia não chegará a sua

terminação com menos de doze mil vítimas!

Pobre Ceará, a que mãos estás entregue em uma quadra destas!

O Sr. José Bento é um elemento dissolvente em todas as cousas em que se

mete; mas o pior de tudo são as lágrimas sem remédio da pobre humanidade465.

Em outra edição, o Pedro II asseverava: na “administração da província nunca tivemos

cousa mais desasada: calamidade igual, só o cólera”. Continuava afirmando parecer impossível

que o governo imperial – a quem nitidamente o periódico evitava criticar de forma direta

naquele contexto – continuasse sem condoer-se da sorte dos cearenses, diante de um inepto

administrador, causa das desgraças da população466. Os efeitos nefastos da epidemia eram,

reiteradamente, indicados como resultados da ação da presidência:

Sua Excelência acreditando demasiado em sua sabedoria, experiência e tino

administrativo, recolheu-se inteiramente em palácio, fez-se invisível e

desconfiou de todos e de tudo, desprezou as reclamações que surgiam de todos

os pontos ao sul e norte da província, desgostou por sua indiferença as

comissões locais, que pediam socorros suficientes e a tempo, visto o cólera

achar-se iminente aos diferentes pontos donde partiam os pedidos das

referidas comissões, mandando para aqui, para ali e algures, uma carteirinha

464 Pedro II, n. 179, 07 ago. 1862, p, 1, grifos da fonte. 465 Pedro II, n. 173, 31 jul.1862, p. 1. 466 Pedro II, n. 179, 07 ago. 1862, p, 1.

106

homeopática, uns 50# réis, uns 100# réis com a recomendação favorita, eterna

e obrigada de [que] recorressem a caridade particular!467

Segundo o jornal do ex-tesoureiro, o governo provincial não tomou medidas

preventivas, enviando médicos, recursos financeiros e ambulâncias de remédios para as

localidades do interior apenas após serem atingidas. Nesta versão, o presidente recusava-se a

despender um pouco do tesouro provincial com medidas profiláticas, com prevenção, para

gastar verdadeira fortuna após centenas de pessoas morrerem, e isso apenas pelo brado da

imprensa, a lhe pressionar: “Quando [...] chegavam os socorros públicos enviados por S. Exc.

já os cemitérios se achavam repletos de cadáveres, e em seu auge os focos mortíferos de

infecção, que, hoje e por muito tempo, farão sentir os seus efeitos”468.

Tendo consciência da notória quebra de braços entre o Pedro II e Figueiredo Júnior,

bem como tomando partido da conjuntura política favorável, a imprensa liberal cearense

procurou ao máximo capitalizar a situação em seu favor. É o que demonstrarei a seguir.

2.2 - “O tutor, o salvador da sociedade”

Empregando estratégia discursiva similar ao Pedro II, os jornais de inspiração liberal

também tomaram as ações de Figueiredo Júnior contra a peste vigente, como estratégia para as

disputas do jogo político. Nos artigos, também evocavam a pretensa opinião pública existente

no Ceará. A ideia de opinião pública era, assim, utilizada como elemento de legitimação por

tais impressos nos combates pela hegemonia política e social entre as parcialidades cearenses.

Compartilhando ainda o discurso sobre o papel social que desempenharia a imprensa, o teor das

posturas de Figueiredo Júnior frente ao cólera era, todavia, apresentado de modo

diametralmente oposto pela imprensa liberal ao exposto no jornal Pedro II.

De início, os liberais não manifestaram entusiasmo com a indicação do presidente do

Ceará. A primeira referência sobre o ato de nomeação apareceu no O Cearense, de modo breve,

em duas linhas, no noticiário publicado na capa de 29 de abril de 1862: “Consta que se acha

nomeado presidente do Ceará o Dr. José Bento Figueiredo Júnior”469. Uma vez empossado, a 5

de maio, o jornal do padre Tomaz Pompeu manifestou a desconfiança em relação ao nome do

novo presidente, ante a reconhecida vinculação dele ao Partido Conservador:

467 Pedro II, n. 183, 12 ago. 1862, p. 1, grifos da fonte. 468 Pedro II, n. 183, 12 ago. 1862, p. 1. 469 O Cearense, n. 1522, 29 abr. 1862, p. 1.

107

Posse – Ontem tomou posse o Exm. Sr, Dr. Figueiredo da presidência desta

província. Sua Excelência passa por ultraconservador; o partido liberal só

espera que se não negue ao menos justiça.

Cumprimentamos ao novo administrador, e esperamos que corresponda ao

programa escrito do gabinete – de fiel execução das leis, economia, justiça e

moderação470.

A desconfiança em relação a Figueiredo Júnior não era despropositada. Cerca de um

ano antes da posse no Ceará, quando ainda governava o Rio Grande do Norte, tal político fora

alvo de textos depreciativos. Reproduzindo notícia impressa originalmente no jornal Rio

Grandense do Norte, O Cearense tornou pública, em março de 1861, a acusação de ter

Figueiredo Júnior usado o poder do cargo para perseguir opositores e censurar a imprensa. O

mote da acusação era o recrutamento que o presidente teria determinado contra Joaquim

Francisco de Souza Lima. Apelando para o sentimentalismo dos leitores, informava que Souza

Lima se viu, inesperadamente, recrutado para o Exército, tendo de abandonar o trabalho na

redação e a mãe enferma, de quem era arrimo. Na opinião da imprensa liberal potiguar, um

“governo fraco, imoral e corrompido, também como o sicário, se horroriza da luz da

publicidade, e traiçoeiro e covarde recua da imprensa que altiva lhe descobre as pústulas”.

Figueiredo Júnior governaria de “arbítrio em arbítrio a precipitar-se nos abismos profundos”

que cavou na “sua desastrada e miseranda administração”. O texto apelava aos “tipógrafos da

corte e de todas as províncias”: ajudem “a delatar o arbítrio, a violência, o despotismo que sofre

um vosso irmão, um artista honrado e inofensivo” 471. O arremate invocava a ação daquele

“que, colocado na maior altura social, vela incessantemente pela sorte dos Brasileiros, lançando

sobre nós suas vistas de paternal solicitude”: o Imperador. Ao mesmo caberia livrar o Rio

Grande do Norte do ato “absurdo e escandaloso” praticado pelo presidente: “Seja o país o

tribunal perante que ele [Figueiredo Júnior] compareça, e o Imperador o juiz que lavre a sua

sentença”472.

A mudança de postura da imprensa liberal cearense em relação a Figueiredo Júnior foi

sendo construída mais claramente ao longo do mês de junho, quando o cólera parecia ganhar

mais força e os textos do Pedro II passaram a cobrar mais ações da presidência, indiciando

dissensos no apoio dos “carcarás” ao correligionário. Da mesma forma, após a metade de junho,

chegaram ao Ceará as notícias das mudanças ministeriais envolvendo a queda de Caxias, o curto

governo de Zacarias e a ascensão de Olinda, sem a dissolução da Câmara dos Deputados.

470 O Cearense, n. 1523, 06 mai. 1862, p. 1, grifos da fonte. 471 O Cearense, n. 1423, 15 mar. 1862, p. 4. 472 O Cearense, n. 1423, 15 mar. 1862, p. 4.

108

Mesmo não havendo clareza sobre o assunto, a formação da “Liga” foi saudada com

entusiasmo pelo O Cearense. A saída de Caxias do cargo foi vista como uma mudança da

“situação política do país”, pois o partido que “há 14 anos no poder das posições oficiais”,

perdia terreno, “um fato imenso”, visível “em todo o país”, enquanto liberais e “conservadores

moderados” - agora “ligados” - ganhavam espaço. Sobre o gabinete Olinda, apresentava-o como

“composto de cidadãos que têm combatido a oligarquia, destacando os nomes dos ministros

que “não poderão deixar de considerar um partido em grande maioria por todo o país”473.

Neste cenário de recepção das notícias políticas da Corte, O Cearense reforçou o tom

moderado na cobertura das ações de Figueiredo Júnior no combate ao cólera. Provavelmente,

em seu cálculo político, a folha liberal de Tomaz Pompeu percebeu que não haveria mudança

na presidência do Ceará, ante a instalação do gabinete “ligueiro”. Por outro lado, O Cearense

reforçou as críticas à forma como o Pedro II tratava o assunto. Para a folha liberal, a demissão

do correligionário e redator da folha “carcará”, Manoel Franco Fernandes Vieira, do cargo de

inspetor do tesouro provincial, era o principal escopo dos ataques a Figueiredo Júnior.

A 8 de julho de 1862, O Cearense imprimiu texto intitulado “oposição”. Nele,

comentava a postura oposicionista adotada pelo Pedro II a partir do dia 2 de julho, numa nítida

alusão à data na qual a demissão de Manoel Franco tornou-se pública. O jornal conservador

teria se tornado “oposicionista extremo à administração, não só nos atos como à pessoa do

presidente”. O Cearense prosseguia dizendo respeitar as intenções do Pedro II. Malgrado tal

“respeito”, as leituras sobre o assunto faziam a folha liberal considerar “essa oposição tão

inconveniente, como injusta na presente quadra, quando devia, senão por outra razão, ao menos

pelas circunstâncias excepcionais em que estamos, procurar dar todo apoio, e peso à autoridade”

do presidente. O texto prosseguia, aludindo: diante das circunstâncias delicadas encetadas pelo

cólera, o governo provincial deveria ser considerado “o tutor, o salvador da sociedade”. Nesse

sentido, era importante serem preservados o prestígio e o respeito necessários à sua missão. A

imprensa teria então papel central nesse panorama, pois “convém que os órgãos da opinião"

não contradissessem tal respeitabilidade474.

Provocativo, O Cearense expunha ter “o contemporâneo” (Pedro II) “motivos pessoais

para seu desgosto”. Apesar destas motivações, asseverava: “acima de nossa individualidade

deve estar o bem da sociedade”. Findava lembrando: tanto os redatores do Pedro II quanto o

presidente Figueiredo Júnior eram notórios conservadores. Portanto, um jornal liberal não devia

intervir nessa “contenda entre correligionários”. Malgrado a premissa, “não se trata aqui agora

473 O Cearense, n. 1520, 24 jun. 1862, p. 1. 474 O Cearense, n. 1532, 8 jul.1862, p. 2.

109

de [fazer] política. A questão interessa a todos, trata-se de não desconsiderar a autoridade do

governo quando ela precisa de toda força para salvar a província”. Com isso, a redação se

autorrepresentava como a promotora do interesse público em um contexto de calamidade, acima

do partidarismo atroz, em detrimento dos supostos litígios individuais do concorrente no campo

da imprensa e política provincial475.

As críticas ao Pedro II se apropriavam, inclusive, dos dissensos visíveis entre os

membros do Partido Conservador no Ceará, adensados após a morte do senador Miguel

Fernandes Vieira, em agosto de 1862. Em outubro do mesmo ano, O Cearense repercutiu nota

de felicitação aprovada na Câmara Municipal do Crato – onde os conservadores eram maioria

– ao presidente José Bento da Cunha Figueiredo Júnior, pelos serviços prestados quando do

surto de cólera, que flagelou a cidade entre fins de abril e princípio de agosto. A nota de

felicitação tinha sido, inclusive, divulgada pela Gazeta do Cariry, órgão conservador impresso

em Crato. Ao citar as feições partidárias da Câmara e do jornal cratense, uma série de perguntas

retóricas foram então pronunciadas pelo O Cearense: “Poderá inda dizer o Pedro II que as

populações dos Cariris morreram ao abandono de providências?”; Quem mentia a respeito dos

atos de Figueiredo Júnior era “a redação do Pedro II, ou a da Gazeta do Cariry?”; Poderia “o

público crer no que diz o Pedro II, quando é ele apanhado na mais flagrante mentira?”476.

A explicação para as “mentiras” do Pedro II era dada no mesmo artigo de O Cearense

a partir de elementos macro e micro, que, na sua opinião, demonstravam a tacanhez dos

responsáveis pelo jornal opositor. Em primeiro plano estaria a inconformidade dos “homens do

Pedro II” com a “Liga”, pois “não se querem desenganar que longe vai a história de sua

peregrina dominação; imbecis, creem na restauração de uma política exclusivista que os elevou

ao poder, expelindo da gestão dos negócios públicos caráteres nobres, e distintos”.

Acostumados com o domínio partidário exclusivo, foram golpeados pela ação de “vultos

proeminentes” de ambas parcialidades que combatiam “nas câmaras temporária e vitalícias os

vícios do decrépito partido conservador que caprichosamente não se dando por vencido,

conspira-se contra a vontade da nação, que o repele e condena”. Para O Cearense, o país vivia:

um pronunciamento espantoso em favor do partido progressista, ou ligueiro;

acabando destarte com as dissidências, com os ódios, com as paixões

inveteradas, que tanto concorreram para entorpecer a marcha do progresso

moral, e material da nação, trancando as partes ao mérito que transluzia em

fileiras adversas.

475 O Cearense, n. 1532, 8 jul.1862, p. 2. 476 O Cearense, n. 1545, 7 out. 1862, p. 3.

110

Nestes termos, em vez de aderir ao progresso, o Pedro II, mesquinho, se condoía pela

perda de poder na província e pela demissão de Manoel Franco no cargo da Tesouraria

Provincial, enxovalhando o nome do presidente no Ceará e em outras províncias:

O Pedro II, porém, que por este prisma não lhe faz conta encavar a marcha

dos negócios públicos, nem lhe convém dizer a verdade a província, habituado

a impor sua vontade alguma vezes ao governo provincial, entendeu que o

Exm. Sr. Dr. J. B. da Cunha Figueiredo Júnior se amoldaria à ameaça de suas

censuras, e que de tal modo conseguiria sua camarilha governar a província a

seu bel talante. Frustrado seu plano, porque o Exm. Sr. Dr. José Bento, moço

de vontade própria, e de ilustração bastante puniu a ousadia do empregado de

confiança que veio à imprensa censurar atos de um governo que, em

circunstâncias tão apertadas, só tinha motivos para ser louvado; ei-lo com

linguagem ardente e viperina a adulterar todos os fatos administrativos, a

torcer a verdade, a negar a justiça, com o fim de fazer impressão com suas

calúnias, não, no teatro dos acontecimentos, onde ninguém se ilude; mas nas

províncias por passando esse rebate falso477.

Outro periódico a polemizar com o Pedro II foi O Commercial, de Francisco Luiz de

Vasconcelos. Ao tempo do rompimento do contrato que fazia do Pedro II a folha oficial da

Província do Ceará, O Commercial assumiu a função, mudando seu título para Gazeta Official.

No primeiro número, a Gazeta Official justificava, em editorial, a mudança do título do

periódico, afirmando ser a decisão reflexo da compreensão do novo lugar que passava a ter ao

assumir a responsabilidade pela impressão do expediente oficial. Outros temas de interesse para

a “prosperidade da província” - como o comércio e a indústria -, afiançava, não seriam

abandonados em suas colunas. Todavia, em clara provocação ao Pedro II, comunicava o novo

órgão jamais admitir que a injúria e a calúnia substituíssem “o raciocínio e a censura decente e

comedida”. A Gazeta faria de tudo para apresentar discursos polidos e, uma vez não alcançando

a postura desejada, cederia “o campo [a função de folha oficial] a qualquer adversário”. Em

contraposição aos “deploráveis abusos da imprensa”, a animar “alguns”, o editorial afirmava:

o “silêncio que desdenha polêmicas indignas é um triunfo para o contendor sensato”, visto que

a “invocação prestigiosa da opinião pública” serviria, não poucas vezes,

à triste origem de paixões ruins. Pusilânime para não expor sua

individualidade à franca apreensão dos ânimos esclarecidos e justiceiros, o

homem [da imprensa] dominado pelo despeito ou interesse, procura de

ordinário iludir alguns incautos, e sobretudo fazer efeito ao longe, ocultando-

se sob uma simulada manifestação coletiva o verdadeiro móvel do seu

procedimento478.

477 O Cearense, n. 1545, 7 out. 1862, p. 2, grifos da fonte. 478 Gazeta Official, n. 1, 16 jul. 1862, p. 2.

111

Em arremate, o texto asseverava: a “todo o escritor bem-intencionado” caberia o dever

de esclarecer os fatos, e não “concorrer de sua parte para que de qualquer modo se desvaire a

opinião pública”. Não por acaso, na sequência, reproduzia artigo publicado no Correio

Natalense, precedido de pequena sinopse, na qual informava tratar-se da “folha conservadora

do Rio Grande do Norte”. O destaque nitidamente representava um reforço na estratégia de

autorreferenciação479 da Gazeta e de desqualificação da imprensa conservadora cearense, tendo

em vista o conteúdo do artigo em questão, favorável a Figueiredo Júnior, posto ter presidido a

província potiguar antes de assumir a do Ceará.

No texto, o jornal natalense criticava o Pedro II pelas censuras tecidas à forma

parcimoniosa como on presidente do Ceará tratava a distribuição de socorros públicos e ao

apelo do mesmo à caridade particular no trato dos doentes. O órgão conservador potiguar

enaltecia, na sequência, a postura “brilhante” d’O Commercial – agora, Gazeta Official – na

defesa de José Bento, por considerar que “boatos adrede espalhados” sobre a epidemia não

deveriam levar o governo a agir imprudentemente e sem planejamento, como, por exemplo, não

exigir a apresentação de documentos comprobatórios das despesas dos comissionados e

contratados no socorro às localidades atingidas pela epidemia. O Commercial, sublinhava

ainda, repelira a “injúria feita aos cearenses” pelo Pedro II, do povo ter recebido de mau humor

ao convite à caridade e à esmola na conjuntura pestilencial, pois “os fatos provam o contrário”.

O texto do Correio Natalense terminava reafirmando apoio ao presidente do Ceará: “Continue

o Sr. José Bento firme em seu posto de honra, que os homens sensatos lhe farão a devida

justiça”480. Portanto, no tabuleiro das disputas da imprensa cearense, a reprodução desse artigo

por parte da Gazeta Official buscava pôr em xeque os textos do Pedro II, ao utilizar artigo de

folha conservadora de outra província como jogada tática no ataque de seu adversário

conterrâneo.

Como folha oficial, a Gazeta reproduziu a correspondência remetida pelo presidente às

autoridades das localidades afetadas pela epidemia, tratando da contratação de médicos, envio

de remédios, compra de mantimentos para a alimentação dos doentes desvalidos etc. Desta

forma, buscava reforçar a impressão de que Figueiredo Júnior não se omitia no socorro aos

coléricos. A reprodução dos ofícios acabava servindo de objeto para outras matérias, centradas

no elogio às decisões do presidente e na crítica da postura do Pedro II em contestá-las.

Cartas remetidas do interior dirigidas à Gazeta Official reforçavam a postura editorial.

Em fins de agosto, texto assinado pelo codinome “Cidadão Independente” tratava das ações do

479 BARBOSA, op. cit., 2010, p. 53-54. 480 Gazeta Official, n. 1, 16 jul. 1862, p. 3.

112

governo provincial no confronto ao cólera em Baturité. Principiava afirmando serem as

“censuras que constantemente [o Pedro II] dirige à inteligente governança do Sr. José Bento

Júnior” motivadas pelo “desapontamento do seu redator pelo desgosto ou decepção, porque

passara com o ato de sua demissão”. Afirmando-se testemunha ocular do zelo do presidente em

seus esforços para “salvar a população de Baturité”, o “Cidadão Independente” punha-se na

obrigação de “esclarecer o público da verdade, para que a hipocrisia e a má fé não ganhem

prosélitos em um país onde há uma tendência irresistível para o descrédito do princípio de

autoridade”. Pontuava os atos demonstrativos da prontidão com que os socorros teriam sido

realizados em Baturité. Circunscrevia, enfim, os motivos das acusações do Pedro II à demissão

de Manoel Franco, provocando-o com o resultado da sindicância realizada na Tesouraria

Provincial, a indicar problemas, pondo a honestidade e competência do ex-tesoureiro em xeque:

Por que não nega essa soma enorme de faltas que deu, soma que denuncia-o

ao público, como empregado negligente, e portanto incapaz de dirigir uma

repartição fiscal, que é a chave da riqueza provincial, faça isso que é seu dever,

mas não mostre despeito por um ato de justiça do governo do qual já o público

está convencido de sua precisão481.

No mesmo número, a Gazeta Official publicou carta enviada de Quixeramobim,

assinada pela “Sentinela do Deserto”, reiterando os elementos centrais dos argumentos do texto

sobre Baturité. Todos os habitantes de Quixeramobim, dizia a missiva, “bendizem dia e noite a

marcha salvadora do Sr. José Bento”, a quem deviam “a salvação de tantas vidas, pois a não

serem tão prontas providências, necessariamente teríamos perecido todos: nossas requisições

foram de pronto satisfeitas, dinheiro, medicamentos e médico chegaram a tempo, multiplicou-

se nossa coragem”. As acusações do Pedro II eram assim postas no descrédito: “como acusar-

se a um governo que solícito, ativo e previdente tomou todas as medidas ao seu alcance para

debelar o mal? Como fazer ele responsável pelos caprichos de uma epidemia? É muita

fascinação, é muita intolerância, senão muita cegueira”482.

Como já informei, na desqualificação das versões do Pedro II, os periódicos liberais

agiram em grupo, produzindo representações positivas a respeito do assunto.

Concomitantemente, as explicações para diferentes interpretações eram imputadas ao

partidarismo do Pedro II, malgrado tal característica ser comum a todos os órgãos impressos

envolvidos nas disputas e polêmicas do Ceará de 1862.

481 Gazeta Official, n. 13, 27 ago. 1862, p. 3. 482 Gazeta Official, n. 13, 27 ago. 1862, p. 4.

113

Mesmo não se autodenominando liberal, o jornal O Sol também alegava só ser explicada

a oposição do Pedro II ao chefe do executivo cearense pela demissão do ex-inspetor, pois,

pouco tempo antes, esta folha “liberalizou encômios à presidência”, todavia, “volta-se hoje”

com um “desabrimento descomedido” contra ela. Sem citar as mudanças políticas no ministério,

para O Sol, a culpa da demissão era exclusivamente do ex-inspetor. Ele não soubera equilibrar

sua função no cargo público com a outra, de redator:

É verdade, que foi demitido o inspetor da tesouraria provincial, mas este

empregado que era redator do Pedro II, que sabia, que a sua conservação no

emprego dependia da confiança do governo, e que a destituição lhe faria falta,

se devia conter prudentemente dentro dos limites de uma grave e decente

análise dos atos governamentais, quando não guardasse silêncio, deixando que

outros menos dependentes dos empregos tomassem a tarefa, que ele preferiu

tomar, para agora estar a lastimar a perda do pão, que lhe dava o cofre

provincial483.

A 13 de julho, em texto de capa, com extensão de mais de duas páginas, intitulado “OS

SOCORROS PÚBLICOS”, a redação d’O Sol, a cargo de Pedro Pereira da Silva Guimarães,

corroborava a defesa da administração de Figueiredo Júnior. Ao fazê-la, afirmava não ter como

escopo o “espírito de partido ou de interesse pessoal feito ou por fazer”. Sua coesão com a

“marcha governativa”, desse modo, não devia ser “interpretada negativamente”. Era, tão

somente, “um sentimento inato” da redação em não sofrer impassível com as hostilidades e

linguagem carregada de vitupérios com que os redatores do Pedro II tratavam o presidente.

Deste modo, recusando as acusações de ser “oficioso”, O Sol não cantaria “hinos à

administração”, mas não deturparia a “tarefa de escritor público, quando rendemos homenagem

à verdade, e profligamos vinganças do prelo”. Ao contrário dessa postura, o Pedro II era

acusado de “martirizar” o governo, imputando-o a pecha de ser “imprevidente”, “moroso” e

“mesquinho” na prestação dos socorros às localidades empesteadas. Citando os textos d’O

Commercial, O Sol acusava a redação do Pedro II de se deixar dominar por “paixões ardentes

e desarrazoadas”. Passava a narrar, então, um apanhado do governo provincial. Assumindo o

posto em meio ao ataque pestilencial, Figueiredo Júnior teria estudado atentamente por alguns

dias os negócios públicos, se inteirando da situação na qual se achava a província, para não

cometer erros em sua missão, especialmente na gestão da receita provincial e na destinação da

mesma para medidas mais urgentes nas localidades afetadas pela epidemia. Diante dessa

contextualização, provocava: Como o Pedro II poderia ralhar com essa atitude do governo?

483 O Sol, n. 283, 06 jul. 1862, p. 2, grifo da fonte.

114

Acaso quereriam que S. Exc. mandasse logo ao chegar, pôr no meio da praça

o cofre da tesouraria aberto, para dele tirarem todos os que quisessem a sua

soma, ou a qualquer que tomado de um terror pânico da peste; pedia excesso

de socorros, lhes mandasse prestar sem critério, e sem exame?484

Para O Sol, durante um tempo de calamidade, a afligir a sociedade, não deixam de surgir

“gênios especuladores e monopolistas”, que “sob a capa de interessados pelo bem público, a

pretexto de caridosos, o seu desejo é locupletarem-se e estacarem cada um a fonte da qual

correm os socorros”. Tomados pela voracidade, por uma “gana insaciável de fazer fortuna”,

muitas pessoas ofertam uma “caridade de [São] Francisco de Paula”, e, no entanto, brigam

“como o lobo da fábula” em busca da presa485. Seria contra tal situação que as ações previdentes

de José Bento se elucidavam para O Sol.

As acusações ao redator do Pedro II foram repetidas nas páginas d’O Sol ao longo do

segundo semestre de 1862, demonstrando defesa incondicional ao presidente da província. O

Sol chegou a republicar textos seus de 1857, com críticas a Manoel Franco Fernandes Vieira,

nítida forma de reforçar a detração ao opositor. Um dos artigos, intitulado, ironicamente, de

“Franqueza e desinteresse”486, mostrava quadro com “a progressão do ordenado que tem tido o

inspetor da tesouraria provincial, o Sr. Dr. Manoel Franco Fernandes Vieira nos três anos

últimos”. Trazia, ainda, os valores pagos pelo governo provincial ao Pedro II, “do qual é

colaborador o mesmo Sr. Franco”. Segundo O Sol, ao ser nomeado inspetor, a 14 de maio de

1854, Manoel Franco recebia como ordenado um conto de réis anual. O valor fora estabelecido

por lei da Assembleia Provincial de 1836. Todavia, uma série de mudanças tinham sido

aprovadas nos anos seguintes na Assembleia: em 1855, o ordenado subiu para 1.400$00; em

1856, foi para 1.500$000; já em 1857, alcançou 1.800$000. Evolução parecida teria ocorrido

nos valores aprovados na Assembleia para pagamento ao Pedro II pelos serviços de folha oficial

da província: de 600$000 pagos em 1854, tinha alcançado 1.800$000 em 1857. Após exibir a

variação nas cifras, O Sol fazia ilação séria, afirmando terem os aumentos no ordenado do

inspetor sido criados para atender questões pessoais, estando articulados a situações da vida

privada do funcionário: “[...] o Sr. Dr. Franco para casar teve dotação 400$000 réis; pelo

nascimento do primeiro filho teve outra dotação de 100$000; e agora para alimentos deste

príncipe lhe foram dados pela deste ano 300$000 réis. Que desinteresse não domina este

senhor!”487. A gravidade da acusação estava nas entrelinhas, afinal, entre 1856 e 1857, Manoel

484 O Sol, n. 284, 13 jul. 1862, p. 2. 485 O Sol, n. 284, 13 jul. 1862, p. 2. 486 O Sol, n. 289, 17 ago. 1862, 2. O texto original tinha foi publicado pelo O Sol, n. 58, 29 set. 1857. 487 O Sol, n. 289, 17 ago. 1862, 2

115

Franco Fernandes Vieira tinha ocupado o cargo de presidente da Assembleia Provincial do

Ceará488, dando a entender ter mobilizado a casa legislativa para benefício próprio.

Até mesmo sonetos foram impressos no O Sol contra Manoel Franco. Em 24 de agosto

de 1862, o jornal publicou um, onde o narrador passava-se pelo próprio ex-inspetor, a lamentar

a perda das vantagens e do emprego por ter, “por arte do demo”, virado redator do Pedro II:

Enquanto no meu ócio de inspetor

Vivia venturoso, e sem cuidados,

Choviam cortesias, mil agrados,

E era um Nababo, um grão-senhor.

Fiz-me por arte do demo redator,

E para logo os tempos malfadados

Correram após mim despiedados,

E perdi o meu sólio de esplendor.

Hoje voltado estou ao que antes era,

Bacharel in minoribus sem nome,

A carpir minha sina dura e fera.

Do que me aconteceu exemplo tome,

O que for empregado nesta era,

Se não quiser por aí berrar com fome489.

Em setembro, O Sol publicou texto com título em caixa alta, “PROTESTOS”. Nele,

levantava-se contra as “alicantinas” [velhacas] acusações do “Pedro II dirigidas ao atual

administrador da província por falta de providências na quadra epidêmica”. Contra elas, dizia

O Sol, se levantavam “não só todos os periódicos da província, mas ainda outros de fora,

informados como estão convenientemente dos fatos”. À “gritaria” do Pedro II, restava a falha

de ser apenas fruto da exoneração de Manoel Franco, “demitido por graves faltas de sua

repartição”490. Em seu derradeiro número de 1862, quando a epidemia atuava de forma mais

leve no Ceará, O Sol não poupou adjetivos para justificar o apoio voltado ao presidente:

Sem medo de sermos contraditados, o cavaleiro, que tem as rédeas da

governança atualmente, tem apresentado até hoje tanta discrição na prática de

seus atos governativos, tanta justiça em suas decisões, tanta prudência em seus

conselhos, tanta energia e prontidão nas providências a tomar, tanto zelo pela

economia das rendas, tão bom desempenho em tudo o que é concernente ao

bem público, que nós que temos um natural pendor para estarmos sempre em

oposição e temo-la feito a muitos de seus predecessores, não temos motivo

algum que nos haja dado S. Exc. para censurarmos sua administração. E nem

488 STUDART, op. cit., 1913, p. 336. 489 O Sol, n. 290, 24 ago. 1862, p. 2. Outros sonetos sobre o assunto foram publicados nas edições: O Sol, n. 287,

3 ago. 1862, p. 3 e O Sol, n. 288, 10 ago. 1862, p. 4; 490 O Sol, n. 292, 7 set. 1862, p. 3.

116

alvitrem os nossos contrários, que somos levados a não censura, porque temos

recebido graças do poder, porque não apontam nenhuma491.

Do sul do Ceará, na região do Cariri, também houve defesa do presidente da província.

Coube ao semanário O Araripe, impresso em Crato, cumprir esse papel. Redigido por João

Brígido, O Araripe foi duramente afetadado pelo cólera em 1862: deixou de circular entre fins

de abril e agosto, justamente por conta do forte surto que atingiu a cidade de Crato. Passada a

epidemia, O Araripe, porta-voz dos “chimangos” no interior cearense, entrou na contenda sobre

a avaliação dos socorros públicos encetados pela presidência da província. Em editorial, de

mais de uma página, rebatia críticas apregoadas no Pedro II, a respeito de Figueiredo Júnior.

Para a redação da folha cratense, os artigos estampados no jornal conservador trariam “injustas

acusações”, fazendo crer ao “país” – em referência às autoridades do poder central, a quem

cabia nomear e destituir os chefes das províncias – que as milhares de vidas ceifadas pelo cólera

eram consequência de falta de “providências prontas e enérgicas” ou do “desacerto e

inconveniência” das medidas tomadas pelo governo cearense492.

Autopromulgando-se juiz imparcial, sem compromissos de ordem alguma com aquela

administração ou relações entretidas com o presidente, O Araripe dizia ter testemunhado o

“zelo, solicitude e prontidão” do mesmo no auxílio das comarcas do Crato e Jardim, de forma

que protestava contra o que escreveu o Pedro II, “sem dúvida, guiado por informações desleais

ou inexatas.” Por isso, como “acima de tudo está a religião do dever, e a verdade que deve

caracterizar a pena do escritor público”, O Araripe voltava a voz à província e ao país para

pronunciar “aquilo que verdadeiramente passou-se a nossos olhos”493.

Acrescentava, então, ter o envio, pela presidência, de um médico e de remédios à região

antecedido à chegada do cólera, malgrado as mais de cem léguas a separar o Cariri da capital.

Aliás, o médico enviado, Antônio Manoel de Medeiros, por suas prescrições publicadas nos

jornais de Crato (O Araripe e a Gazeta do Cariri), teria habilitado diversos curandeiros,

prestando serviço considerável à população. A presidência também emitira ordens à coletoria

provincial e a particulares autorizando o fornecimento do dinheiro necessário para garantir a

dieta dos desvalidos e outras precisões do momento. Destacava, ainda, o fato do executivo

provincial ter enviado outros facultativos às localidades afetadas, criado comissões de socorro

público e liberado a contratação de enfermeiros e curiosos e a instalação de hospitais, como

eram conhecidas as enfermarias de emergência.

491 O Sol, n. 308, 28 dez. 1862, p. 2. 492 O Araripe, n. 286, 30 ago. 1862, p. 1. 493 O Araripe, n. 286, 30 ago. 1862, p. 1.

117

Isentava o presidente, do mesmo modo, pelo não envio de médicos para todos os pontos

afetados, pois, argumentava, o número desses profissionais não era suficiente para fazê-lo.

Além do mais, defendia que uma quantidade superior de médicos não era garantia efetiva de

menor ceifa de vidas, dando como exemplo fatos ocorridos em outros lugares do Brasil:

Não sabe porventura o colega do Pedro 2º os estragos que na Bahia, Rio de

Janeiro, Pará e Pernambuco produziu a primeira invasão deste terrível

hóspede? Pois bem; nós lhe dizemos: na primeira e segunda destas províncias

tinha o governo ao seu dispor legiões de médicos, acadêmicos e boticários,

empregou a todos, e todos não foram bastantes para as necessidades da

época494.

Concluía, comparando a cobertura a respeito do cólera feita pela imprensa das

províncias citadas com a do Ceará: a primeira “falava a verdade calma, e prudentemente”,

enquanto parte da segunda “fala pelo choque de pequeninos interesses individuais”495.

Após a publicação de defesa apaixonada da presidência, apresentada, pela redação,

como pautada em uma pretensa verdade, O Araripe seguiu polemizando com o Pedro II, ao

informar ter a Câmara do Crato, corporação “saquarema genuína” – ou seja, conservadora –,

dirigido a Figueiredo Júnior “um voto de gratidão pelos serviços que prestou durante a

epidemia”. Para o semanário, o procedimento dos vereadores desmentia e desmoralizava o que

o jornal conservador da capital apregoava, apesar de ambos pertencerem ao mesmo partido:

“Agora ajustem suas contas”, provocava496.

De modo similar à Câmara cratense, a de Barbalha também enviou protesto de

reconhecimento pelos serviços do presidente na quadra epidêmica. Nele, fazia clara alusão às

críticas tecidas pelo Pedro II:

É, pois, seu único fim, de presente, se dirigindo a V. Exc., fazer-lhe uma

pública manifestação de seus sentimentos, e traduzir a estima, em que o nome

grato de V. Exc. é dito pela população deste termo, depois da quadra de

perigos porque passa, vendo-o acompanhar todas as suas atribuições, e

prestar-lhe socorros prontos e eficazes, sempre e constantemente, sem

embargo da distância e dos minguados recursos de que dispõe.

Sirva este tributo de seu reconhecimento como de prova do apreço em que tem

os serviços de V. Exc. e como um protesto que faz diante do país, de que não

compartilha a ingratidão daqueles, cujas paixões têm abafado o eco de sua

consciência, e ousam maldizer o que as bençãos da terra rememoram497.

494 O Araripe, n. 286, 30 ago. 1862, p. 1. 495 O Araripe, n. 286, 30 ago. 1862, p. 1. 496 O Araripe, n. 287, 06 set. 1862, p. 1 497 O Araripe, n. 288, 13 set. 1862, p. 2. O ofício trazia a assinatura de seis vereadores da vila de Barbalha:

Raimundo José Camello, Cesário Deodato de Pontes, Gregório Pereira Pinto Calou, Antonio Duarte Grangeiro,

Sebastião Rodrigues Vieira e Manoel Antonio Tavares de Sá. O primeiro nome da lista foi, poucas semanas após

118

Para O Araripe, por trás de todas as críticas negativas ao presidente do Ceará estava

uma campanha do Partido Conservador cearense, simbolizado no seu órgão de imprensa, para

derrubar Figueiredo Júnior. Por conta disso, o hebdomadário comemorou a confirmação da

conservação da autoridade no cargo. Segundo O Araripe, a resolução ministerial representava

uma derrota ao grupo político do Pedro II, sendo sinal das mudanças promovidas pela Liga:

Cartas da Corte anunciam que foi resolvida definitivamente a conservação do

senhor José Bento na presidência do Ceará, motivando esta resolução

ministerial a viva oposição às instâncias que faziam a gente do Pedro segundo

pela sua demissão. Bem mudados que se acham os tempos!498.

Ao longo deste tópico, demonstrei como, no jogo da política cearense de 1862, as folhas

liberais agiram conjuntamente na busca do convencimento da opinião pública sobre os supostos

méritos da administração provincial no tempo do cólera, em detrimento das versões proferidas

pelo Pedro II.

A seguir, demonstrarei, a partir da análise das correspondências oficiais, o modo pelo

qual o presidente Figueiredo Júnior leu e usou as contendas políticas dos partidos e jornais

cearenses, a respeito das ações governamentais na conjuntura epidêmica, como forma de

garantir a permanência na cadeira de chefe do executivo provincial.

2.3 - As “folhas da oposição têm censurado o procedimento do Bacharel Franco”

No conjunto das correspondências que a Presidência do Ceará remeteu à Corte, no ano

de 1862, a epidemia de cólera ocupou papel de destaque. Já nos primeiros ofícios endereçados

ao Ministério dos Negócios do Império, no começo de maio, Figueiredo Júnior registrou os dois

pontos mais preocupantes a seu início de governo: a epidemia do cólera e o “notável

decrescimento das rendas provinciais”. Não por acaso, as duas preocupações elencadas

relacionavam-se diretamente: os socorros públicos exigiam recursos provinciais, daí porque a

arrecadação de impostos pelas coletorias, subordinadas à Tesouraria Provincial, era elemento

primordial naquela conjuntura. Nas palavras do presidente, se era necessário garantir a ajuda às

a publicação desse documento, nomeado delegado de polícia da Barbalha. Segundo O Araripe, a nomeação

premiava “um dos homens mais respeitáveis e que melhores serviços têm prestado àquele termo, o qual se

assinalou ultimamente durante a epidemia do cólera-morbo, em que com seu desinteresse e dedicação mostrou-se

digno dos maiores elogios” (O Araripe, n. 291, 19 out. 1862, p. 1). Aparentemente, o presidente do Ceará

recompensou Raimundo José Camello por seu apoio, dando importante cargo municipal ao mesmo. 498 O Araripe, n. 293, 22 nov. 1862, p. 4.

119

localidades afetadas pela doença, também era preciso manter em “vista a conveniência de fazer

toda a economia compatível com as necessidades imperiosas da situação, restringindo mesmo

algumas despesas que têm corrido pela verba socorros públicos”499.

No mesmo ofício, encontrei indícios de como a situação da Tesouraria era vista por

Figueiredo Júnior. Citando a diferença de valores, entre 1861 e 1862, arrecadados em 19

freguesias com o dízimo dos “gados grossos” - um dos principais impostos cearenses, tendo em

vista o peso da pecuária na economia provincial -, o presidente registrava a diminuição de dois

contos e novecentos e trinta mil réis. Comentava terem outras 15 freguesias ainda não

contribuído com tal dízimo, o que punha na conta dos “coletores especiais” nomeados pela

Tesouraria para a realização da arrecadação. A demora na ação dos coletores se agravava com

a chegada do cólera “em diversos pontos onde ela [a arrecadação] se tem de efetuar”.

O presidente não deixava, do mesmo modo, de acusar o ex-presidente de imprevidente,

ao afirmar que o antecessor não podia prever a chegada da epidemia “quando [...] deixou de

aprovar a arrematação das 15 Freguesias”, influindo “consideravelmente para o mau regulado

da cobrança, e as informações já obtidas vão confirmar esse juízo”500. Neste cenário, a situação

financeira do Ceará encontrava-se em péssimas condições, tendo em caixa recursos a cobrir

apenas os gastos ordinários, em um momento de aumento da demanda de dinheiro por conta da

doença. Por isso, as despesas com “melhoramentos”, ou seja, as obras públicas, estavam

ameaçados, dependendo de novos recursos do Governo Imperial:

Consideravelmente diminuída a importância do dízimo, que é um dos

principais ramos da receita provincial, e existindo apenas no cofre público um

diminuto saldo obrigado aos pagamentos de ordenados, e aos que são

provenientes de contratos e outros serviços impreteríveis, estou na rigorosa

necessidade de restringir muito a despesa, ainda quando tenha de ver

paralisados certos melhoramentos que eu desejava poder continuar [..]. Nestas

circunstâncias, lutando a Província atualmente com uma calamidade que tende

a escassear a renda pública, resta-me esperar que o Governo Imperial, na

distribuição de crédito para obras gerais e auxílio às províncias, se digne

habilitar-me com os meios necessários para que eu não fique na desagradável

posição de limitar-me ao expediente ordinário501.

Diante do problema nas finanças provinciais e da demanda crescente de recursos por

conta do avanço da peste, José Bento da Cunha Figueiredo Júnior, aparentemente, tentou

precaver-se, junto ao Gabinete, da acusação de ser imprevidente com os gastos destinados ao

499 ANRJ. Ofício n. 36a. 13 mai.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 500 ANRJ. Ofício n. 36a. 13 mai.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 501 Idem.

120

socorro público. Inclusive, não deixou de censurar na correspondência oficial atos do vice-

presidente José Antônio Machado, de quem recebeu a administração provincial. Em longo

ofício de 26 de maio de 1862, com 37 laudas descrevendo a situação epidêmica em cada

comarca infectada, Figueiredo Júnior criticava medidas preventivas autorizadas pelo

antecessor, como a ordem para abertura de enfermarias por toda a província, mesmo onde a

ameaça do cólera não se mostrasse claramente, ou a autonomia dada às comissões nomeadas

nas localidades, inclusive na autorização de gastos em nome do governo provincial: “Estou bem

certo de que algumas despesas com medidas de mera prevenção podiam ter sido evitadas, ao

menos enquanto circunstâncias imperiosas não aconselhassem avanços mais avultados”502.

Segundo o ofício, o território do Ceará era muito extenso e assustador o caráter da

epidemia, podendo induzir a autoridade provincial a optar por não “esquivar-se aos reclamos

mui frequentes e quase suplicantes das autoridades do interior”, afinal, a “população alterada

parecia só esperar do Governo a salvação e a recusa de socorros, mesmo para os lugares donde

apenas se avizinhava o cólera, agravaria o mal, levando para ali o desespero e o desânimo”.

Nestes termos, “nas grandes calamidades públicas a solicitude do Governo produz ao menos

um efeito moral muito saudável”, ao diminuir o medo de desamparo nas populações ameaçadas.

Mas era preciso evitar maiores dispêndios ao cofre público. Figueiredo Júnior afirmava, sua

“pouca experiência” adquirida nos negócios públicos era suficiente para o fazer recear “algumas

larguezas” dadas às comissões de socorros nomeadas “com a faculdade ilimitada de tomar

medidas convenientes para o caso da invasão do cólera”. Segundo o presidente, certos fatos já

iam “confirmando essa suspeita”. Desta forma, sem “faltar com os recursos indispensáveis para

socorrer os indigentes acometidos do cólera”, procurava por limites razoáveis à despesa:

Apesar de serem as comissões de socorros compostas dos principais

funcionários e pessoas gradas dos lugares, entendi que não devia deixar

exclusivamente ao seu juízo a apreciação das necessidades que reclamassem

dispêndio. Receei que não obstante suas boas intenções, tivessem tais

comissões, muitas vezes, de ceder ao desejo de não passarem por mesquinhas

ou a pressão de exigências desarrazoadas e que sem grande força de vontade

não se pode resistir em circunstâncias apressadas503.

O presidente passou a determinar, de acordo com a análise da população e distância em

relação à Fortaleza, as somas a serem gastas pelas comissões “com as dietas e outros socorros

aos miseráveis, fazendo as coletorias respectivas o abono preciso até a importância fixada”. Seu

502 ANRJ. Ofício n. 41. 26 mai.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 503 ANRJ. Ofício n. 41. 26 mai.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

121

cálculo levaria em consideração, inclusive, os “recursos que se deviam esperar da caridade dos

particulares”, ou seja: as pessoas mais abastadas das localidades afetadas eram estimuladas a

fazer subscrições para auxiliar no atendimento dos miseráveis acometidos pela doença.

A criação de enfermarias provisórias, aprovada pelo vice-presidente José Antônio

Machado para o tratamento dos coléricos, não mais seria decisão das comissões, passando a

presidência a autorizá-las “só no caso de maior necessidade”. Tais enfermarias acarretavam

“dispêndios avultados e não poucas vezes abusivos”, e os resultados obtidos nelas eram, no

geral, insatisfatórios, “como faz crer a cifra da mortalidade e o número diminuto de doentes

recebidos em tais estabelecimentos, ainda mesmo nos lugares populosos”504.

Os gastos com o transporte de médicos, remédios, baetas e alimentos para o interior

foram, também, alvo da intervenção do presidente. Tendo em vista a condução feita “em

animais comprados ou alugados [pelo governo] por alto preço [em Fortaleza]”, pois “não faltam

especuladores em tais épocas”, recomendou às comissões solicitantes que fornecessem:

os meios de condução para maior celeridade nas remessas, poupando-se além

disto um dispêndio mais avultado à Fazenda pública como acontecerá sempre

que as pessoas prestimosas dos lugares quiserem mandar à sua custa animais

e condutores, ou pelo menos alugá-los ali por menos preço [dos que

encontrados na capital]505.

Jogando a responsabilidade do transporte dos socorros às comissões, o presidente

terceirizava responsabilidades e custos em nome da austeridade financeira. Ao adotar tais

medidas, a presidência investiu em apresentar-se ao Gabinete como gestora responsável, tendo

em vista a situação delicada das finanças provinciais e as solicitações ascendentes das

localidades atingidas ou ameaçadas pelo cólera. Comentando os esforços em Fortaleza, onde a

doença agiu com menos furor em relação a outros pontos do Ceará, afirmava:

Entretanto quem fizer um exame consciencioso dos fatos ocorridos, e quiser

levar em conta os esforços por mim empregados no intuito de minorar os

terríveis efeitos da presente calamidade, reconhecerá que os meus bons

desejos de economia, sem prejudicar os indigentes, têm conseguido que se

restringissem certas despesas que para a Capital tinham sido planejadas em

maior escala506.

504 ANRJ. Ofício n. 41. 26 mai.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 505 Idem. 506 ANRJ. Ofício n. 53. 30 jun.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

122

Todavia, a postura de moderação na liberação de recursos dava margens para

interpretação negativa, ante a opinião de algumas pessoas sobre os gastos nas localidades

afetadas ou ameaçadas pelo cólera, vistos como fundamentais na situação emergencial vivida,

portanto, determinantes para vida ou morte da população. O uso político desta questão foi um

dos marcos de 1862. Como evidenciei anteriormente, a deliberação de Figueiredo Júnior por

maior controle dos gastos públicos no trato do cólera foi alvo de críticas do jornal Pedro II,

redigido pelo inspetor de tesouraria provincial Manoel Franco Fernandes Vieira, com ampla

repercussão na imprensa cearense, resultando na demissão deste do cargo, a 2 de julho de 1862.

O Pedro II foi implacável nas críticas. Em texto de capa, no mês de agosto, adjetivava

Figueiredo Júnior de “medíocre”, “inepto” e “preconceituoso”, defeitos “inseparáveis de certos

bobos com fumaças de sábio”507. A busca pela economia do erário e a lentidão da presidência

em atender as solicitações das localidades atacadas teriam sido responsáveis por muitas mortes

e, inclusive, pelo aumento exorbitante dos gastos públicos:

Quando, porém, o cólera invadia alguma localidade em distância de 60, 80,

100 e mais léguas da capital, e chegava a fatal notícia de que o mal fazia cair

centenas de vítimas, que não havia remédios e nem facultativos, e que os

desvalidos pereciam à míngua; então é que S. Exc. tomava o caso ao sério, e

vendo a imprensa bradar; tratava, malgrado seu, de providenciar [socorros]

despendendo o quádruplo, daquilo que em tempo podia despender evitando

aliás milhares e milhares de vítimas. Quando, pois, chegavam os socorros

públicos enviados por S. Exc. já os cemitérios se achavam repletos de

cadáveres, e em seu auge os focos mortíferos de infecção, que, hoje e por

muito tempo, farão sentir os seus efeitos508.

A celeuma publicizada na imprensa sobre o caso Manoel Franco foi silenciada, por um

certo tempo, na correspondência oficial da chefia provincial ao Marquês de Olinda. Como tratei

nos tópicos anteriores, desde fins de maio o Pedro II adotara atitude crítica em relação à política

executada pela Presidência da Província no trato do cólera, postura usada como munição pelos

jornais de matiz liberal, como O Cearense e O Commercial, auxiliados pelo O Sol, para

polemizar com o fato do inspetor do tesouro tecer críticas ao chefe e correligionário.

Ao longo de junho de 1862, os artigos sobre tal questão pulularam na imprensa. Todavia,

nada foi relatado pelo presidente à Corte. Provavelmente, José Bento da Cunha Figueiredo

Júnior tentava evitar o desgaste de sua imagem junto ao Gabinete, afinal a comunicação do caso

podia ser entendida como fraqueza ou incapacidade para disciplinar um subordinado direto da

administração provincial. Talvez o presidente se imaginasse capaz de contornar o caso

507 Pedro II, n. 182, 12 ago. 1862, p. 1. 508 Idem.

123

pressionando o tesoureiro a moderar o tratamento que o Pedro II dava ao cólera. Se a situação

fosse superada, por que avisar ao Presidente do Conselho de Ministros sobre o burburinho dos

jornais partidários, ainda mais em uma conjuntura de instabilidade, com duas trocas de gabinete

em menos de um mês? Portanto, não estando mais no poder o Gabinete Caxias, a quem devia a

nomeação à presidência do Ceará, não parecia prudente a Figueiredo Júnior demonstrar, ao

novo ministério, tibieza no trato de questões de pequena monta.

Mas não houve escapatória: sem conseguir dobrar o Pedro II, a presidência optou pela

demissão do tesoureiro. Ora, ao exonerar alguém do grupo “carcará”, com forte influência sobre

o Partido Conservador no Ceará e parentes ocupando vagas nas câmaras temporária e vitalícia

da Corte, não havia como evitar a repercussão do caso junto ao Gabinete. Por isso, ofício com

17 laudas, classificado como confidencial, foi remetido ao Marquês de Olinda, contendo a

versão de Figueiredo Júnior atinente ao imbróglio. O ofício demonstra a percepção e as

estratégias de defesa adotadas por seu autor para justificar a demissão do subordinado e

defender-se de eventuais críticas desabonadoras da administração do Ceará junto à Corte.

A desqualificação de Manoel Franco Fernandes Vieira é o elemento central da fonte.

Logo de partida, Figueiredo Júnior afirma: ao tomar posse no cargo de presidente recebera

“informações desfavoráveis” vindas de “pessoas insuspeitas” sobre o caráter e a competência

do Inspetor de Tesouraria, fato logo confirmado pela “própria experiência pouco tempo depois”.

A descrição do ex-funcionário investiu na desconstrução completa da personagem, tanto nos

traços comportamentais quanto no exercício das funções inerentes ao cargo:

De uma desídia habitual, que até se revela no seu gosto e expressão, e de um

caráter aparentemente pacato mais traiçoeiro, esse Bacharel não era assíduo

na Repartição, onde mui pouco fazia, comutando quase todo o trabalho a

empregados subalternos, em quem cegamente confiava. E tão alheio se

mostrava ele aos negócios que corriam pela Tesouraria, que um de meus

predecessores, sem ter algum motivo de indisposição pessoal, quase nunca o

chamara [ao] Palácio, e dele prescindia ordinariamente, consultando outro

empregado, e até um subalterno sobre assuntos que o Inspetor de Tesouraria

não deve ignorar509.

Manoel Franco teria dificuldade em responder a inquirições simples sobre o

funcionamento da repartição, dando respostas “ordinariamente tão demoradas e cheias de

hesitação”, que o presidente se via “obrigado a exigi-las por escrito, dando-lhe ocasião de

examinar os negócios, e tomar algum conselho esclarecido”. Mesmo diante da má impressão

509ANRJ. Ofício confidencial. 8 jul.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

124

inicial, Figueiredo Júnior afiançava tratar o inspetor com deferência, dando-lhe a “força moral”

precisa ao exercício do cargo510.

Sobre a epidemia do cólera, dizia Figueiredo Júnior: a princípio, teve conversas pontuais

com Manoel Franco, nas quais este limitava-se a solicitar “socorros para alguns lugares onde

tinha parentes ou amigos políticos”, o que, razoavelmente, procurava satisfazer. Mas quando o

assunto passou a ocupar o Pedro II, “folha que aqui se diz órgão do partido conservador”, a

questão tomou outra proporção. Responsável pela redação, desde quando Miguel Fernandes

Vieira tomara posse no Senado, o “bacharel Franco” não teria “tino” nem “inteligência bastante

para uma tarefa tão importante”, limitando-se a “dirigir o material da tipografia, publicando,

além do expediente do governo, e de algumas correspondências do interior, diversos noticiários

que por si sós revelaram bem pouco critério da parte de quem os redigiu”511.

Figueiredo Júnior afiançava: no princípio de sua administração tomara a decisão de não

interferir na imprensa local. Para “não criar compromissos tácitos”, teria deixado a opinião se

manifestar livremente, “sem inspiração alguma do Governo”. Não obstante, demonstrava

inquietação a respeito da forma diferenciada como as ações no combate ao cólera eram

veiculadas pelo Pedro II, em contraste com o tom dos órgãos liberais da província:

Não deixei de notar que quando os liberais, tendo talvez algum motivo de

prevenção política, tratavam-me com toda a deferência, e quando as 4 folhas

do seu partido que se publicam na cidade mostraram reconhecer as boas

intenções do Governo, limitando-se a esclarecer e a indicar uma ou outra

providência útil, só o Pedro 2º, folha oficial, e órgão do partido conservador,

fazia exigência de médicos quando eles já tinham sido por mim requisitados

com instância de várias Províncias; reclamava para diversas localidades

socorros públicos quando estes já haviam sido prestados, e publicava

correspondências exageradas do interior sobre o estado da epidemia e sobre a

necessidade de recursos aliás remetidos anteriormente por mim512.

No afã de apresentar-se como tolerante e moderado, Figueiredo Júnior afirmava, “a par

desses pequenos desvios” na cobertura do Pedro II, ter tido “ocasião de fazer observações justas

e amigáveis ao redator”. Este, por outro lado, não deixou de publicar “apreciações favoráveis

de diversos atos administrativos, e até expressões encomiásticas ao governo da província”.

Contudo, depois da divulgação “da notícia da retirada do gabinete” responsável pela nomeação

de Figueiredo Júnior, a edição n. 131, de 10 de junho de 1862, do Pedro II trouxe artigo “que

discordava inteiramente de outras manifestações anteriores”:

510 ANRJ. Ofício confidencial. 8 jul.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 511 Idem. 512 Idem.

125

Sob o pretexto de auxiliar censurava-se a administração por imprevidente,

evitava-se cuidadosamente a revelação das providências dadas, pediam-se

socorros, providências mui amplas de dinheiro, medicamentos e gêneros,

inculcava-se a necessidade de se contratar mais médicos, além dos 24 já

comissionados; e o que mais é, pintava-se com cores exageradas o estado

sanitário das localidades, e o desgosto e murmuração do público, procurando-

se tornar odioso o apelo feito pelo Governo à caridade particular para auxiliar

a despesa enorme exigida do cofre público513.

Teria então chamado Manoel Franco ao palácio do governo, e, em “confidência”, dito:

sendo o Pedro II a “folha oficial” do Ceará, havia inconveniências naquelas “manifestações

com que ele [Franco] talvez na melhor intenção desvairava a opinião pública”514, apesar de

“bem de perto” observar “os constantes esforços da Presidência” no combate ao cólera, tendo

em vista o papel da Tesouraria na liberação dos recursos. Diante das ponderações, o inspetor

teria se desculpado, asseverando não ter a intenção de censurar a conduta de Figueiredo Júnior.

A publicação, justificava, tinha como fim abonar “perante o Governo Imperial” a necessidade

de mais recursos para os socorros públicos. Ao fim da reunião, Franco teria declarado: “como

prova de amizade, nada mais publicaria que pudesse parecer inconveniente” ao presidente.

No entendimento do autor do ofício, as atitudes do inspetor talvez fossem estratégias

para verificar o grau de sensibilidade do presidente “à lisonja”: “quis talvez mostrar-se esquivo

a ver se ajeitava futuras complacências”. Ademais, poderia “cegá-lo a vangloria de inculcar

independência” em relação ao chefe do executivo provincial como modo de “adquirir

popularidade nalguns lugares prediletos por meio de manifestações filantrópicas no tempo do

cólera”515. Em outras palavras: Manoel Franco estaria usando as críticas à presidência para

fortificar-se politicamente em Maranguape, sua vila de origem, fustigada pela epidemia.

Enquanto o Pedro II prometia brandura, conta Figueiredo Júnior, O Commercial, n. 505,

“publicou um artigo polido e inofensivo”, evidenciando as ações do governo, realizando o

“humanamente possível e razoável para minorar os terríveis efeitos da calamidade do cólera”.

A resposta ao O Commercial veio a lume no Pedro II de 18 de junho de 1862. O texto

confirmava admoestações feitas à Presidência, “procurando desfigurar e tornar odiosos os atos

administrativos” concernentes ao cólera. Dirigindo-se diretamente à pessoa do Marquês de

Olinda, Figueiredo Júnior ponderava:

Melhor que eu, Vossa Excelência compreende que nestas circunstâncias não

me era lícito viver em contato com um empregado que procedia tão

513 ANRJ. Ofício confidencial. 8 jul.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. Grifos da fonte. 514 Idem, grifos da fonte. 515 Idem.

126

deslealmente, fazendo garbo de ser o redator da folha oficial que se

pronunciava de um modo tão injusto e agressivo. A opinião pública se

manifestou por tal forma que eu não podia conservá-lo na Repartição sem

quebra da minha força moral516.

Malgrado tais palavras, a demissão ainda foi adiada por algumas semanas, pois

“diversos motivos e constrangimentos” inquietavam o missivista. O principal escrúpulo era de

cunho pessoal: “pesava em meu espírito a consideração de amizade que meu Pai e eu entretemos

com o Senador Miguel Fernandes Vieira, o deputado Manoel Fernandes Vieira, e o

Desembargador André Bastos de Oliveira, parentes do Bacharel Manoel Franco”517. Portanto,

havia relações ligando José Bento pai e José Bento Júnior a políticos e a um magistrado

familiares de Manoel Franco. Tais laços, em parte, podiam decorrer do fato de todos serem

correligionários do Partido Conservador. Além do mais, Cunha Figueiredo foi estudante e lente

do Curso Jurídico, em Pernambuco, onde os Fernandes Vieira se bacharelaram: o contato inicial

deles podia ter se dado nas condições de colegas ou professor e alunos. Para além das relações

existentes, os escrúpulos de Figueiredo Júnior também podiam esconder o temor de ganhar a

indisposição geral dos conservadores no Ceará e de ver seu nome ecoar em críticas dos parentes

de Manoel Franco e seus aliados nas câmaras da Corte, o que poderia contribuir para a corrosão

da presidência junto ao Gabinete.

A crer no ofício confidencial, o redator do Pedro II percebeu a ameaça à sua sustentação

na chefia da repartição responsável pelas finanças provinciais. A narrativa do presidente

investiu na insinuação de Manoel Franco enquanto covarde, passando a evitar o contato direto

com o chefe imediato: “conservava-se afastado, tendo até, como vice-provedor da Santa Casa,

mandado entender-se comigo um dos mesários sobre certo negócio, de que ele devia tratar”.

A 30 de junho de 1862, “um indivíduo que se dizia” amigo do Inspetor de Tesouraria

teria ido “interceder por ele” perante Figueiredo Júnior. Tal emissário afiançara: “o bacharel

Franco tinha cometido uma imprudência, mas que as manifestações ulteriores do Pedro 2º

desfariam qualquer impressão”. Em outras palavras: os novos números do diário trariam artigos

para desfazer o mal-estar entre as personagens em litígio, não mais agastando a presidência com

críticas sobre as ações contra a epidemia. Nas palavras de Figueiredo Júnior, a fala do “amigo”

de Franco foi outro motivo a fazê-lo rever a decisão de assinar a carta de exoneração do

516 ANRJ. Ofício confidencial. 8 jul.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 517 ANRJ. Ofício confidencial. 8 jul.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

127

funcionário provincial: “Movendo-me à compaixão esse ato que denunciava um

arrependimento, deixei de publicar nesse dia a portaria”.

Segundo Figueiredo Júnior, indícios do mensageiro ser de fato ligado a Manoel Franco

estariam presentes na edição do dia 1 de julho, quando o Pedro II teria veiculado “espécie de

retratação do seu redator que bendizia a administração e aderia a ela com lealdade”518. Não

obstante tal informação, ao ler a edição da data citada, não encontrei nenhum artigo que pudesse

ser interpretado como uma retratação da redação519. Talvez o presidente tenha se confundido

com as datas ou tenha blefado, para reforçar os propósitos da narrativa enviada à Corte.

Apesar da suposta retratação, continuava o ofício, na edição subsequente do Pedro II,

“estimulado por uma tática do Cearense, folha liberal, o Bacharel Franco publica [...] sob sua

assinatura um artigo em que de novo ofendia a administração”. Provavelmente, desagradou a

Figueiredo Júnior, na edição citada, a passagem do artigo do Pedro II com a seguinte afirmação:

“Sempre, porém, que S. Exc. [o Presidente] merecer os nossos aplausos, não os

recusaremos”520. A declaração dava a entender ser Manoel Franco o juiz responsável por

sentenciar os atos da Presidência, sendo ele, na realidade, pelo cargo ocupado, um subalterno

direto dela. Caberia ao presidente acatar, quieto, os aplausos ou reprimendas do funcionário?

Aparentemente, o ego do mandatário provincial não se adequava a tal posição.

Para Figueiredo Júnior, “fiando-se talvez na proteção de seus parentes”, o inspetor

submetia-se “à condição pouco honrosa, de servir com um Presidente, cuja estima não podia

merecer”. Ainda investindo na representação negativa do oponente, o autor do ofício

confidencial informava ter Manoel Franco enviado requerimento solicitando licença do cargo,

provavelmente um meio de dirimir o desgaste com a Presidência do Ceará e de garantir a

manutenção do ordenado de quase dois contos de réis. Mas o requerimento não encontrou

acolhida: a exoneração de Franco foi, enfim, assinada por Figueiredo Júnior521.

Consumada a demissão, o Pedro II intensificou as publicações contra o presidente,

resultando em segunda estocada do governo. O contrato que fazia do diário o órgão oficial da

província, publicando o expediente do governo, foi rompido, acarretando perda financeira

considerável à redação: “Desde então o Pedro 2º [...] tem publicado contra o Presidente diatribes

tão virulentas, que me obrigaram a retirar-lhe a publicação do expediente, mandando contratá-

518 ANRJ. Ofício confidencial. 8 jul.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. Grifos da fonte. 519 Pedro II, n. 147, 1 jul. 1862. 520 Pedro II, n. 148, 2 jul. 1862, p. 3. 521 ANRJ. Ofício confidencial. 8 jul.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

128

lo pela Tesouraria com quem melhores condições oferecer à Fazenda” 522. No jogo político do

momento, a presidência punha em ação suas armas, atingindo o bolso do oponente pela

demissão e pelo cancelamento do vínculo do governo com o Pedro II. A honra de Manoel

Franco também seria contraditada, pois o presidente instituiu “comissão composta de

empregados da Tesouraria de Fazenda” para examinar a situação da repartição523, insinuando

ter o ex-inspetor cometido maus feitos no cargo.

A estratégia adotada pela presidência consolidou o apoio das folhas opositoras aos

Fernandes Vieira. Se os jornais O Cearense, O Commercial e O Sol já vinham polemizando

com o Pedro II a respeito das críticas atinentes às ações oficiais no combate ao cólera, a

demissão do Inspetor de Tesouraria e a retirada da publicação do expediente do diário

conservador deram mote para o recrudescimento dos embates, como exibi no tópico anterior.

Obviamente, o presidente passou a usar as publicações liberais a seu favor na

correspondência com o Marquês de Olinda, equiparando a versão das mesmas à suposta opinião

pública da capital, símbolo de sensatez contra as atitudes apresentadas como desarrazoadas do

Pedro II: “Todas as folhas da oposição têm censurado o procedimento do Bacharel Franco,

fazendo justiça ao ato do Governo, e não há nesta capital uma só pessoa sensata que não

condene o procedimento do ex-Inspetor; e não reconheça a necessidade de sua exoneração”524.

Como não era interessante ao Presidente do Ceará ser acusado de partidarismo e nem se

abespinhar completamente com os conservadores da província, podendo desgastar a imagem e

pôr em xeque a estadia no cargo, o ofício ao Marquês de Olinda investia na ofensiva contra

Manoel Franco,

que movido por um despeito pessoal, e aproveitando-se da acefalia do partido

conservador pela ausência de seus membros, que estão nas Câmaras, e com os

quais estou em boas relações, vai abusando da folha entregue provisoriamente

à sua direção por seu tio o Senador Miguel Fernandes Vieira, que é

proprietário da tipografia525.

Investindo na versão, Figueiredo Júnior queria convencer o poderoso destinatário do

ofício de que Manoel Franco não inspirava confiança em seus correligionários e mesmo em

parentes. Assim, a campanha difamatória do Pedro II não teria capacidade de fazer prosélitos:

Obrando por sua própria conta, sem ter ao menos consultado os seus parentes

e os representantes naturais do partido conservador atualmente na Corte, tem

522 ANRJ. Ofício confidencial. 8 jul.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 523 Idem. 524 Idem. 525 Idem.

129

levado ao maior descrédito o Pedro 2º com suas contradições e linguagem

extremamente injuriosa. É o que todos lamentam526.

A fragmentação do Partido Conservador no Ceará era também utilizada por José Bento

da Cunha Figueiredo Júnior para corroborar a versão relativa à credibilidade do jornal dos

Fernandes Vieira. Segundo o ofício, a eleição ao senado de 1861, culminada com a nomeação

imperial do desembargador Antônio José Machado para a câmara vitalícia, tinha demonstrado

fraturas entre os conservadores cearenses, com pessoas “notáveis e prestimosas” divergindo de

Miguel Fernandes Vieira. Como o senador Machado morreu poucos meses após ter tomado

posse, nova eleição realizou-se, consagrando Miguel Fernandes Vieira, que, tal como o

antecessor, gozou pouco da vitaliciedade senatorial.

As cizânias emergidas entre os conservadores cearenses nos pleitos de 1861 e 1862

seriam, para Figueiredo Júnior, agravadas pela “má direção do Pedro 2º”. Supostamente, a

política editorial tornou nomes importantes “indiferentes ao movimento dos partidos”,

favorecendo a musculatura dos liberais, mais coesos e melhor liderados: “os liberais vão

ganhando terreno, e já teriam engrossado mais suas fileiras, se desde certo tempo houvessem

tido sempre melhor direção, embora seu chefe, o Padre Pompeu se mostrasse agora razoável”527.

Encerrando o assunto central do ofício, o presidente do Ceará afiançava que

conservadores e liberais ocupavam cargos públicos na província, malgrado os primeiros terem

a maioria deles. A declaração servia como mote para reafirmação do caráter apartidário do

presidente, numa conjuntura de nova “conciliação” em ascensão na Corte. Nestes termos,

nenhum de seus pronunciamentos políticos e atos de governo podiam ser explicados pelo

“espírito de partido”. Assim, asseverava demonstrar fidelidade aos princípios do ministério em

tempo de “Liga”, não intervindo nas disputas políticas e centrando-se nas questões prementes

da província:

Supondo que interprete bem as intenções do Governo Imperial, não hostilizo

nenhuma das parcialidades, procuro proceder segundo os ditames da luz, da

justiça e das conveniências públicas, e tenho-me abstido inteiramente de

intervir de qualquer forma na eleição de deputado que tem de preencher a vaga

do Dr. Miguel. Sem esquecer outros negócios públicos urgentes, ocupo-me

principalmente com as medidas preciosas em consequência do cólera, como

Vossa Excelência conhecerá das minhas comunicações oficiais528.

O cálculo político de demonstrar-se acima dos partidos, bem como a preocupação em

não desagradar parcela ampla das facções do Partido Conservador no Ceará, foi,

526 ANRJ. Ofício confidencial. 8 jul.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 527 Idem. 528 Idem. Grifos da fonte.

130

provavelmente, o que levou Figueiredo Júnior a indicar Domingos José Nogueira Jaguaribe

como o substituto de Manoel Franco Fernandes Vieira na Inspetoria do Tesouro Provincial.

Como já tratei anteriormente, Jaguaribe foi quadro importante dos “caranguejos” no Ceará da

segunda metade do século XIX. Para além do conceito entre os pares, o indicado tinha

desavenças políticas com o grupo “carcará”, com quem disputava a liderança dos conservadores

na província. Não obstante, aparentemente, a escolha soou estranha aos ouvidos do Marquês de

Olinda, não pela conhecida surdez deste529, mas pelo fato de Jaguaribe ocupar cadeira na

Câmara Geral em 1862, considerando incompatível o cargo de Inspetor de Tesouraria.

Olinda não comunicou diretamente a inquietação ao presidente do Ceará por meio da

correspondência oficial. Escolheu via mais privada, demonstrando os pesos das relações

pessoais na política imperial, o que, nas entrelinhas, não deixa de indiciar certo desabono, talvez

menosprezo, a Figueiredo Júnior: Olinda manifestou as dúvidas sobre o acerto da indicação de

Jaguaribe em conversa privada com José Bento da Cunha Figueiredo. Tendo escutado a crítica

do marquês, o progenitor escreveu ao rebento, que sentiu-se na obrigação de justificar-se: “Meu

pai, a quem Vossa Excelência fez o favor de falar a meu respeito, comunicou-me o reparo que

Vossa Excelência manifestou pela nomeação do Dr. Jaguaribe para Inspetor de Tesouraria,

sendo ele deputado, e não podendo exercer bem o lugar”530.

Tratando do assunto, Figueiredo Júnior explicou: a “demissão do Dr. Franco, embora

mui regular e até necessária, podia despertar alguma suspeita de envolver um pensamento

público”, haja vista ser o Ceará “província onde as suscetibilidades dos partidos, não sendo tão

exageradas como outrora, ainda fazem sentir de um modo mui pronunciado, principalmente nas

Câmaras do interior”. Neste sentido, argumentava, a demissão de Manoel Franco, um Fernandes

Vieira, família influente entre os conservadores do Ceará, poderia levantar suspeitas sobre o

presidente da província ter aderido aos liberais, tão elogiosos na imprensa:

Nessas circunstâncias, o feito da exoneração, coincidindo com o

pronunciamento, embora gratuito que faziam em meu abono as folhas liberais,

excitara, talvez, alguma desconfiança, mesmo em certos ânimos que não

estivessem muito dominados da ideia de exclusivismo [partidário].

529 Como demonstra a tese de Paulo Henrique Fontes Cadena, a surdez do Marquês de Olinda teve espaço

importante nos textos políticos, jornalísticos e literários produzidos no oitocentos sobre o último regente do

Império. A deficiência auditiva e a “velhice”, em referência ao fato de que desde o Primeiro Reinado até o fim da

vida, em 1870, Olinda ocupou cargos de destaque da política imperial, sendo por quatro ocasiões presidente do

Conselho de Ministros, plasmaram parte das representações sobre Pedro de Araújo Lima, presentes no O Velho

Senado de Machado de Assis, nos Escritos Políticos de José de Alencar, entre outras fontes. Muitas vezes, a surdez

física do estadista era usada como metáfora da suposta surdez política que caracterizaria a personalidade forte de

Olinda. CADENA, op. cit. 2018. 530 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 28 ago. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 216, doc. 20.

131

Acresce que ao ato da demissão seguiu-se, como consequência imperiosa, a

rescisão do contrato feito pela publicação do expediente no “Pedro II”531.

Portanto, a nomeação de Domingos José Nogueira Jaguaribe como Inspetor de

Tesouraria seria, em primeiro lugar, antídoto para a acusação do presidente perseguir

conservadores: “A impressão, porém, que tudo isto pudesse produzir ficaria desfeita com a

nomeação de pessoa insuspeita como é Dr. Jaguaribe”. Para além do cálculo político,

Figueiredo Júnior destacava a qualificação de Jaguaribe para o cargo como o principal motivo

para a indicação, “porque quando se trata do bem público” não se deixaria “prender por

considerações de outras ordens”. Segundo a explicação, faltavam pessoas no Ceará qualificadas

para o cargo. O indicado teria a favor de si a qualificação e o prestígio político: “inteligente,

probo, conhecedor da Província, tendo tido sempre bom crédito como Juiz de Direito, e gozando

além disto do prestígio que lhe dá a sua posição de deputado, estava nas melhores condições de

bem servir o emprego”. Quanto ao problema de incompatibilidade indicado pelo Marquês de

Olinda, sugeria, por fim, Figueiredo Júnior, poderia ser resolvido pela licença de “cinco meses”

na Tesouraria a cada sessão legislativa da Câmara Geral na qual Jaguaribe tivesse de estar.

Malgrado todo o esforço de Figueiredo Júnior em defender o plano, a nomeação de

Jaguaribe não se concretizou, em parte pelo interesse do último em permanecer exclusivamente

na função de Deputado Geral e de concorrer à vaga ao Senado aberta com a morte de Miguel

Fernandes Vieira. Ademais, Jaguaribe acabaria tornando-se desafeto de José Bento da Cunha

Figueiredo Júnior ao longo da administração deste na Presidência do Ceará. As animosidades

entre eles se estenderam para além da exoneração de Figueiredo Júnior do cargo, no começo de

1864. Há, inclusive, um opúsculo, de 9 páginas, no acervo da Biblioteca Nacional do Rio de

Janeiro, intitulado “O Bacharel J. B. da Cunha Figueiredo Júnior e o Sr. Deputado Domingos

José Nogueira Jaguaribe”, datado de 1866, com indícios sobre a desavença.

Escrito por Figueiredo Júnior, o exemplar consultado traz manuscrito, sobre a capa

impressa, a quem ele se destinava: “Para subir a Augusta Presença de Sua Majestade O

Imperador”. Antes de ser transformado em brochura, o texto foi publicado no Diário de

Pernambuco, n. 221, de 25 de setembro de 1866, sendo uma resposta de Figueiredo Júnior a

discurso proferido por Jaguaribe na Câmara dos Deputados, acusando aquele de ser parcial

durante o tempo em que ocupou a presidência do Ceará, favorecendo pessoas do Partido Liberal

nas eleições e na distribuição de cargos. Ao longo do opúsculo, Figueiredo Júnior faz um

531 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 28 ago. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Grifos da fonte. Lata 216, doc. 20.

132

apanhado do tempo de governo no Ceará – citando o cólera, os conflitos com o Pedro II de

Manoel Franco Fernandes Vieira, a situação dos partidos, as eleições que presidiu etc. –,

negando a pecha de partidário, sempre com acentuada ironia contra o oponente: “O Sr.

Jaguaribe, que ostenta tamanha erudição citando fatos da história europeia com aplicação à

nossa política interna, devia ter mais escrúpulos na apreciação dos acontecimentos

contemporâneos de um teatro pequeno como é a sua terra natal” 532.

Percebe-se por trás do malogro da indicação de Jaguaribe para inspetor, o empenho de

Figueiredo Júnior em defender-se dos ataques sofridos na imprensa. Em ofício de fins de julho

de 1862, repercutindo publicação do Pedro II de carta de deputados gerais demandando ao

Marquês de Olinda providências devido ao avanço do cólera no Ceará, sobre a qual discorrerei

mais à frente, Figueiredo Júnior insistiu na defesa de seus atos e na desqualificação do jornal

adversário. Indicava o desejo de comprovar os esforços empregados nos socorros aos coléricos,

fazendo:

historiar com toda a individuação os sucessos ocorridos durante a epidemia, a

fim de se ficar conhecendo do melhor modo possível a intensidade desta, a

mortalidade havida, os socorros de diversas espécies que têm sido prestados

oportunamente, e além disto a despesa realizada533.

Na sequência, declarava: o suposto “clamor universal que se levanta na imprensa pela

falta de socorros” limitava-se unicamente às manifestações do Pedro II, tomando “por tema o

cólera para censurar à Presidência”. As opiniões deste jornal seriam contraditadas pela leitura

de outros órgãos, da capital e interior: “Vossa Excelência se convencerá de que toda a imprensa

daqui, com exceção do Pedro 2º, não cessa de confessar os esforços do mesmo Governo em

socorrer os indigentes, e providenciar sobre o serviço sanitário”. Até mesmo as cartas

publicadas no Pedro II, com relatos dramáticos das localidades onde grassava o cólera, eram

relativizadas por Figueiredo Júnior, uma estratégia para eufemizar a situação da conjuntura

epidêmica e defender-se das críticas à presidência do Ceará:

[...] é forçoso ao menos reconhecer que em tempo de epidemia, quando os

ânimos por medo, especulação ou outros motivos se mostram exigentes e até

incontáveis, tendendo ordinariamente a afeiar o quadro da desgraça pública,

nem sempre as missivas são os meios mais seguros de se entrar no

conhecimento da verdade, que se deve antes procurar nos dados oficiais, e no

532 FIGUEIREDO JÚNIOR, J. B. da Cunha. O Bacharel J. B. da Cunha Figueiredo Júnior e o Sr. Deputado

Domingos José Nogueira Jaguaribe. Ceará: Tipografia da Aurora Cearense, 1866, p. 5. BNRJ. Obras Gerais. V-

270, 3, 1n. 33. 533 ANRJ. Ofício n. 60. 28 jul. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. Grifos da fonte.

133

testemunho daqueles que por um dever mui rigoroso são levados a

fundamentar suas informações534.

No conjunto da correspondência oficial do presidente do Ceará com o Ministério dos

Negócios do Império, nota-se como a imprensa foi alvo de apreensão por parte de Figueiredo

Júnior. Ela ameaçava desgastar a imagem do administrador, numa quadra delicada e tensa. Por

outro lado, podia também ser usada como arma no jogo político. Não por acaso, vários ofícios

remetidos à Corte continham jornais em anexo. No corpo da correspondência, o presidente

indicava ao ministro trechos para serem lidos, no geral, passagens demonstrando contradições

do Pedro II, mas também artigos elogiosos às decisões administrativas atinentes ao auxílio aos

coléricos e a medidas preventivas tomadas.

Aparentemente, o próprio presidente redigia ou orientava parte dos artigos publicados

na Gazeta Official, órgão fundado após o rompimento do contrato com o Pedro II para

publicação do expediente da província. O jornal dos Fernandes Vieira, inclusive, costumava

acusar Figueiredo Júnior de perder tempo redigindo cartas para a imprensa de outras províncias,

bem como estar “atarefado com a redação da sua Gazeta Official”535. Apesar dos ofícios

falarem da abstenção da Gazeta no trato da “discussão política”536, na prática, a defesa do

presidente do Ceará e desqualificação dos adversários dele foram pilares editoriais:

Rogo a Vossa Excelência que tenha a bondade de ler a Gazeta nº 4 que contém

o relatório apresentado pela Comissão que nomeei para examinar o estado da

Tesouraria, no mesmo dia em que exonerei o Bacharel Manoel Franco

Fernandes Vieira. A peça a que me refiro denuncia os abusos que se davam

naquela Repartição, como eu previa com muito bom fundamento à vista das

informações que tinha, e do que havia sondado por mim mesmo537.

Como venho demonstrando, nas disputas políticas no Ceará de 1862, o cólera era

constantemente evocado. O caráter violento da epidemia e as disposições do presidente

ofereciam oportunidades para contendas partidárias. No final de agosto de 1862, o presidente

do Ceará comunicou ao Marquês de Olinda ter agendado para o final de outubro a eleição para

vereadores e juiz de paz na Comarca de Crato. Desde o final de 1861, aviso ministerial ordenara

a realização da votação, pois a anterior tinha sido marcada por fraudes, sendo anulada. Segundo

Figueiredo Júnior, seus antecessores na presidência não organizaram a eleição, alegando

534 ANRJ. Ofício n. 60. 28 jul. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. Grifos da fonte. 535 Pedro II, n. 179, 7 ago. 1862, p, 1, grifos da fonte. 536 ANRJ. Ofício s/n. 2 ago. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 537 ANRJ. Ofício s/n. 2 ago. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

134

ausência de guarnição militar suficiente, haja vista a violência comum aos pleitos na localidade.

Informava, ainda, que ao tomar posse, não teve condições de marcar a eleição, devido à invasão

do cólera. Passado o surto em Crato, Figueiredo Júnior decidiu não mais adiar a questão: “Agora

porém que o mal já deve estar quase extinto [...], segundo as mais recentes participações, julguei

que não devia por mais tempo retardar a expedição das ordens para a eleição municipal”538.

Não obstante a extinção da epidemia na localidade, a dificuldade com o destacamento

militar persistia. Apenas 22 praças atuavam na cidade, número considerado pequeno. Para o

presidente, não era possível aumentar a força, pois diversas localidades demandavam homens

para “captura dos criminosos, guarnição das cadeias, e condução de presos e recrutas”. Por

outro lado, as “exigências desta quadra epidêmica” pioravam a situação, obrigando o governo

“a destacar mais algumas praças em diferentes lugares, a fim de auxiliarem às respectivas

autoridades, concorrendo sobretudo para que não se dê o fato lamentável de ficarem cadáveres

insepultos, como noutras Províncias aconteceu em crises semelhantes”.

Mesmo diante da impossibilidade de reforçar o destacamento do Crato, Figueiredo

Júnior atinava não ser “lícito adiar por mais tempo a eleição de vereadores e Juízes de Paz a

que o Governo Imperial mandou proceder”. Para justificar a decisão, citava correspondência do

ex-ministro dos Negócios do Império, José Ildefonso de Sousa Ramos, de 3 de dezembro de

1861, com cópia anexa, afirmando que o excesso de força policial, em muitos casos, podia

agravar os conflitos nas eleições. A afirmação do ministro era bem realista, porque a polícia

ocupava papel relevante nas eleições imperiais, garantindo, inclusive, por meio da força,

vitórias eleitorais aos grupos aliados ao partido do Gabinete539.

Ao estabelecer o dia 22 de outubro de 1862 para a votação, apesar do não reforço

policial, Figueiredo Júnior evocava os pretensos resultados do cólera sobre as parcialidades de

Crato. Na sua visão, a tragédia teria enfraquecido as rivalidades partidárias, criando a

oportunidade para ação amistosa entre os competidores políticos em prol de causas comuns:

Os ódios de partidos arrefeceram um pouco naquela localidade em

consequência da epidemia reinante, que me consta ter feito congraçar alguns

ânimos profundamente divergentes. Adversários políticos se aproximaram em

quadra tão calamitosa, movidos por sentimentos de filantropia, e pelo interesse

de se auxiliarem para a salvação comum540.

538 ANRJ. Ofício n. 77. 30 ago. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 539 GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997,

p. 190. 540ANRJ. Ofício n. 77. 30 ago. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

135

Baseado nesta leitura cor-de-rosa, de um hipotético abrandamento das rivalidades

políticas por conta da epidemia, o presidente insinuava: a “boa disposição” influiria

“provavelmente em prol da tranquilidade pública durante o processo eleitoral”. Inclusive, os

dois partidos poderiam chegar a um acordo, definindo a composição da câmara municipal e a

eleição do juizado de paz previamente. Para garantir o término do pleito a contento, Figueiredo

Júnior vinha se dirigindo “a todas as autoridades locais recomendando-lhes instantemente o

maior empenho para que a eleição corra regular e pacificamente, evitando-se conflitos

perigosos”. Escrevia, também, “particularmente no mesmo sentido às influências das duas

parcialidades”, animando lideranças da capital a fazer o mesmo, insinuando aos correligionários

da comarca de Crato “toda a calma e regularidade na eleição”. Segundo essa interpretação, a

votação seria tranquila, reforçando a imagem de imparcialidade que a presidência do Ceará

queria passar: “Por ora acredito no bom resultado dos meus esforços, tanto mais quanto todos

devem estar tranquilos na justiça e neutralidade do Governo”541.

A definição de Figueiredo Júnior sobre as eleições de Crato foi alvo de novas críticas

por parte do Pedro II, a 29 de outubro de 1862. No “Noticiário”, o diário reproduziu carta do

tenente coronel da Guarda Nacional Miguel Xavier, líder dos conservadores no Crato. Pequeno

resumo, escrito pela redação do Pedro II, guiava o leitor para o objetivo central da missiva: “a

inconveniência de haver o Sr. José Bento marcado ultimamente a eleição de câmara daquele

lugar para um tempo em que a população mal começa a ir respirando mais livremente dos

estragos do cólera com que esteve a braços”. O índice de leitura542 usado para introduzir a carta

de Miguel Xavier tinha como conclusão a condenação explícita ao presidente do Ceará: “Um

mau fado parece arrastar o Sr. José Bento a ser precipitado e violento em todos os seus atos”.

O teor da carta era mordaz quanto ao agendamento da eleição. Comparava o ato a um

“açoite”, tal como o cólera. Para o missivista, o resultado do escrutínio era imprevisível e,

apesar de dizer-se comprometido na busca de “conciliação”, estava preparado para defender os

amigos e a si próprio, imputando aos liberais a culpa por eventuais conflitos:

O nosso presidente depois de um açoite terrível que nos deu o cólera, permitiu

que vamos passar por outro mandando proceder a eleição de câmara, sendo

como se sabe esta eleição de caprichos, e para a qual estavam juradas os

partidos; não sei o que sortirá; todavia vou tentar os meios para uma

conciliação; porque quero sempre ter a minha defesa, e dos amigos preparada;

se os contrários recusarem-na não há outro remédio senão lutar-nos; a culpa

541 ANRJ. Ofício n. 77. 30 ago. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 542 BARBOSA, op. cit., 2010, p. 44

136

das consequências será daqueles que rejeitarem uma eleição amigável, e não

minha543.

A carta do líder conservador do Crato, tornada pública pelo Pedro II, punha por terra a

versão otimista de Figueiredo Júnior sobre a suposta distensão motivada pela epidemia nos

ânimos das parcialidades cratenses. Não por acaso, o presidente do Ceará viu-se forçado a

reafirmar, junto ao Gabinete, o acerto da disposição em realizar a eleição. Em ofício de 30 de

outubro, com direito ao envio de edições anexas do Pedro II, Figueiredo Júnior narrava, ao

Marquês de Olinda, o teor do “artiguito” – expressão que denotava o tamanho curto da

publicação, mas também menosprezo ao seu conteúdo – publicado pelo Pedro II com censuras

“por se ter mandado proceder a eleição para vereadores e juiz de paz do Crato, em consequência

de haver o Governo Imperial anulado a que anteriormente tivera lugar”544.

O cólera, assegurava, estava “extinto no Crato” há bastante tempo. Nem médicos mais

lá encontravam-se. Por isso, julgava não haver razões para “retardar por mais tempo” a eleição,

já remarcada, pelo próprio Figueiredo Júnior, para o último domingo de novembro. Relembrava

o esforço supostamente empregado com vista ao processo eleitoral correr “pacificamente”,

como as cartas enviadas aos “principais influentes de ambas as parcialidades”, os quais

prometeram o “maior empenho em manter a ordem”.

A explicação para o “artiguito” do Pedro II era dada pela desqualificação dos

proprietários do diário: “Mas os Vieira queriam que eu açodasse os liberais com o aparato de

força, ou então que deixasse funcionar indefinidamente a Câmara do quadriênio passado,

ficando sem cumprimento as determinações do Governo Imperial”. Acusava de vileza o jornal

por trazer “à baila um ato tão justo e natural para pensar que o Presidente tem sido precipitado

e violento em todos os seus atos”545.

O ofício sugeria ter o deputado geral Manoel Fernandes Vieira, privadamente,

manifestado que o sobrinho Manoel Franco Fernandes Vieira, fora “imprudente” ao hostilizar,

quando ocupava cargo na Tesouraria Provincial, a Figueiredo Júnior. Todavia, diz o documento,

demitido Franco do cargo, não caberia ao tio “desmoralizar o mesmo”, reconhecendo “razão à

administração, em prejuízo do brio da família”. Assim, os novos vilipêndios do Pedro II eram

explicados por Figueiredo Júnior recorrendo, mais uma vez, aos atritos com Manoel Franco546.

543 Pedro II, n. 248, 29 out. 1862, p. 3. 544 ANRJ. Ofício confidencial. 30 out. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 545 Idem. Grifos da fonte. 546 Idem.

137

Figueiredo Júnior empregava todas as oportunidades disponíveis para detratar o Pedro

II e, pari passu, defender-se das acusações de má atuação na quadra epidêmica. No geral,

insistia na versão de ser perseguido por conta da insatisfação dos Fernandes Vieira com as

questões relacionadas à Tesouraria Provincial e à perda do contrato de publicação do expediente

oficial. Ademais, se empenhava, em fazer o Marquês de Olinda crer que a Presidência do Ceará

agia de modo imparcial. Nesta versão, a maioria dos conservadores da província não

compartilhariam a postura dos Fernandes Vieira. Do mesmo modo, o apoio entusiástico dos

liberais não denotaria interesses políticos, refletindo, de forma gratuita, uma suposta “opinião

pública” sobre os governos central e provincial: “O Cearense, órgão principal do partido liberal

manifesta-se de um modo mui lisonjeiro a respeito do Gabinete, do Presidente, e da situação.

As outras folhas do mesmo credo não desmentem estas manifestações”547.

Obviamente, na prática, o apoio dos liberais não era tão descompromissado assim.

Como tratei anteriormente, os liberais vislumbraram, no imbróglio entre o Pedro II e o

presidente, excelente oportunidade para beneficiarem-se. A cobertura positiva das ações de

Figueiredo Júnior frente ao cólera, em contraposição à campanha difamatória do diário

conservador, oportunizou a aproximação entre “chimamgos” e o mandatário provincial, relação

utilizada, também, na busca por benesses pessoais e partidárias, como demonstrarei nos

próximos capítulos.

De todo modo, os impressos dos órgãos liberais, especialmente da Gazeta Official, em

favor do governo provincial, tornavam-se anexo recorrentes dos ofícios enviados à Corte. No

princípio de setembro de 1862, Figueiredo Júnior chamava a atenção para a edição n. 16 da

Gazeta Official, com a publicação de mensagem, enviada da Corte, pelos deputados gerais do

Ceará548. O texto dos representantes cearenses, retificava artigo divulgado pelo Pedro II,

ecoando documento enviados por eles ao Marquês de Olinda. Assinada por Raimundo Ferreira

de Araújo Lima, Domingos José Nogueira Jaguaribe, Jerônimo Martiniano Figueira de Mello,

Manoel Fernandes Vieira, João Capistrano Bandeira de Mello e José de Alencar, a carta original

solicitava ao ministério providências no socorro ao Ceará, atacado pelo cólera. Não obstante, a

versão publicada pelo Pedro II trouxe pequenas mudanças no corpo do documento, estimulando

seus autores a escreverem para a Gazeta Official e solicitarem a publicação do texto original:

Senhores Editores da Gazeta Official.

547 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 10 nov. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 213, doc. 103. Grifos da fonte. 548 ANRJ. Ofício n. 82. 09 set. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

138

Tendo sido publicada no periódico Pedro 2º com alguma inexatidão, a carta,

que dirigimos como Deputados por essa província ao Exm. Sr. Marquês de

Olinda, acerca das tristes circunstâncias em que a mesma se achava em

consequência da epidemia do cólera que a atormentava, rogamo-lhes favor de

inserir nas colunas do seu jornal a referida carta, que abaixo encontrarão, livre

de erros da cópia que foi para ali remetida e que tal qual foi entregue ao Sr.

Presidente do Conselho [...]549.

A carta “livre de erros” publicada na Gazeta Official fazia apanhado da situação do

Ceará, em cima de missivas e jornais chegadas à Corte, com notícias de ter o cólera “invadido

quase toda a província, derramando o luto e a consternação no seio de todas as famílias, fazendo

uma mortandade espantosa, e causando estragos horrorosos”. Em meio às “cenas deploráveis”,

os deputados afirmavam perceber certo “clamor universal nas cartas e na imprensa, contra o

abandono” da província, “condenada pela falta de dinheiro, medicamentos e facultativos, que

acudissem aos cearenses sob o açoite implacável daquele medonho flagelo”550.

Malgrado reconhecer “as intenções patrióticas do governo geral e Provincial”,

isentando-os das “queixas que exala a impaciência atribulada”, os deputados sugeriam: a

“profundeza da torrente do mal” fora calculada de modo incerto, não sendo capaz de opor, em

tempo, “diques assas poderosos a conter a impetuosidade de seu curso”. Acrescentava, ainda:

os “princípios salutares da economia” não deviam se sobrepor a questões mais “sagradas”,

como o respeito da Constituição aos “socorros públicos à humanidade aflita” e o “interesse do

Estado na conservação de tantas vidas prematuramente ceifadas”551.

Feitas tais ponderações críticas, os missivistas demandavam ao Marquês de Olinda

algumas providências: o envio de remédios e facultativos; a suspensão do recrutamento militar

“até que a província volte ao seu estado normal”; e o reforço do cofre provincial “para satisfazer

as necessidades públicas, se a peste houver estancado, ou diminuído notavelmente as fontes da

renda provincial”. O documento terminava afirmando que o Brasil reconhecia os méritos e

“serviços eminentes prestados ao estado” pelo Marquês de Olinda e pelos “honrados membros

do gabinete”, cabendo aos cearenses a oportunidade de acrescentar mais um: “o de enxugar as

lágrimas da província que representamos, e que é tão digna de melhor sorte”552.

Confrontadas a versão publicada na Gazeta Official com a do Pedro II553, é fácil

perceber que as adulterações desta foram mínimas, não modificando o teor crítico e de cobrança

do documento originalmente enviado ao Presidente do Conselho de Ministros. Em apenas dois

549 Gazeta Official, n. 16, 06 set.1862, p 3. 550 Idem. 551 Idem. 552 Idem. 553 Pedro II, n. 167, 24 jul. 1862, p. 2.

139

trechos houve omissão ou substituição de palavras. A primeira diferença estava no segmento

de frase “a província se reputou condenada”, que na versão do Pedro II saiu como “a província

se viu condenada”. A outra mudança foi a omissão da palavra “provincial” presente na frase

original: “[...] fazemos justiça às intenções patrióticas do governo geral e provincial”. Não

obstante as dessemelhanças pequenas, claramente, o diário redigido por Manoel Franco

Fernandes Vieira alterou o teor da carta para dar a entender que os deputados gerais do Ceará

não reconheciam os esforços de Figueiredo Júnior no combate ao cólera. Todavia, o envio da

comunicação dos deputados à Gazeta Official, repondo a versão original, fez o tiro sair pela

culatra. Ademais, o próprio tio de Manoel Franco, o deputado Manoel Fernandes Vieira,

subscreveu a corrigenda, dificultando a situação do sobrinho.

Neste cenário, Figueiredo Júnior se aproveitou para atacar o adversário, ao remeter à

Corte a edição da Gazeta Official “que restabeleceu o sentido” da carta alterada “na publicação

que fez o Pedro 2º”554. O texto escrito pela redação do órgão de imprensa oficial da Província

do Ceará, para apresentação da comunicação dos deputados, acusava o Pedro II de

desonestidade, grafando com asteriscos os trechos adulterados no documento. Para a Gazeta, a

folha conservadora teria se açodado ao dar “estampa a dita carta, quando seus autores não o

fizeram na corte, esperando seguramente, por um escrúpulo e delicadeza mui louváveis, que o

governo imperial o fizesse por si”. O açodamento em publicar o documento era motivado pela

“pressa de avançar a verdade”, passando a versão, “tão sobejamente desmentida”, de estar a

população do Ceará “à mercê da Providência [Divina]!”555.

Ante “as manifestações insuspeitas de caráteres distintos, de homens cuja fé política não

pode ser posta em dúvida”, provocou a Gazeta Official, o Pedro II talvez aclarasse a sua vista

“obscurecida pelo despeito”. Exigia deste jornal uma “retratação, ainda que fosse acerca do

cólera”. Se assim fizesse, “pagaria agora um tributo solene à verdade, e já ninguém teria a

malignidade de enxergar” no caso da adulteração “o receio de uma demissão”. Incisivamente,

declarava não mais haver pretextos para Manoel Franco recusar “à razão tão clara como a luz

meridiana”, pois um “emperramento tão insólito, um gosto tão esquisito de viver nas trevas,

não tem justificação possível”. Encerrava, pondo em xeque a credibilidade do conjunto das

publicações do diário, especialmente as cartas que lamentavam a demissão de Manoel Franco:

Com que fidelidade não terão sido publicadas as cartas anônimas forjadas na

tipografia do Pedro 2º para mostrar-se que nas províncias do império e nas

554 ANRJ. Ofício n. 82. 09 set. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 555 Gazeta Official, n. 16, 06 set.1862, p 3. Grifos da fonte.

140

cidades, vilas e povoações do Ceará se lamenta a demissão do inspetor de

tesouraria provincial e se rogam pragas ao governo!556

O cólera repercutiu, também, em instituição relevante da política cearense: a Assembleia

Legislativa Provincial. A epidemia, inclusive, postergou o início da sessão legislativa de 1862

por alguns meses. O adiamento foi tomado por decisão de Figueiredo Júnior. No ofício em que

comunicava à Corte a suspenção, o presidente afirmava que “os relatórios parciais e

documentos sobre o estado da epidemia” tinham motivado a definição. Como a maioria dos

deputados residiam no interior, muitos em localidade acometidas ou ameaçadas pelo cólera,

“não poderiam eles desamparar suas famílias e interesses em semelhante conjuntura para virem

demorar-se na capital, onde também lavra a epidemia”. Não obstante, para além da situação

sanitária, a medida de postergar a reunião da Assembleia também contribuiria nas finanças, pois

o numerário do cofre provincial estava combalido, inclusive, com alguns empregados sem

receber os salários em dia557.

Com o adiamento, a Assembleia só se reuniu a partir de 1 de outubro de 1862. Era a

primeira reunião dos representantes políticos das diferentes regiões do Ceará após as mudanças

ministeriais de maio de 1862, que tiveram a “Liga” como protagonista, intensificando a

recomposição dos grupos políticos nas Câmaras da Corte. Neste sentido, os debates da

Assembleia não deixaram de ressoar a conjuntura política nacional e, provavelmente, havia

expectativas sobre as possíveis mudanças nos jogos políticos provinciais decorrentes daquela,

em espaço marcado pelo acirramento permanente entre “caranguejos” e “chimangos”. No nível

provincial, a epidemia do cólera permanecia assunto premente, seja pela matança realizada em

diversas localidades ou pela persistência de focos pestilenciais em outras. Ademais, os

deputados reunidos em Fortaleza já deviam estar a par das disputas políticas promovidas pela

imprensa provincial a respeito do governo de Figueiredo Júnior na organização dos socorros

públicos, pois as folhas do interior e capital deram amplo espaço ao tema desde o mês de junho.

Não obstante as limitações decorrentes do processo de centralização do pós-Maioridade,

as Assembleias Legislativas ocupavam espaço importante na dinâmica política brasileira. A

política provincial era permeada por debates intensos, nos quais a barganha do poder estimulava

acirradas disputas entre as parcialidades. O legislativo provincial, por exemplo, podia ser um

campo de batalha entre deputados e a presidência da Província558. Por outro lado, podia oferecer

556 Gazeta Official, n. 16, 06 set.1862, p 3. Grifos da fonte. 557 ANRJ. Ofício n. 51. 23 jun. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 558 GOUVÊA, op. cit., 2008, p. 336.

141

uma base de apoio importante para o chefe do executivo provincial, poupando-o de desgaste e

facilitando a tarefa administrativa.

Não por acaso, Figueiredo Júnior, aparentemente, empenhou-se em cortejar os

deputados provinciais que lhe procuravam. O presidente afirmava entreter “relação de

civilidade” com “os deputados provinciais residentes na capital”. Com os deputados do interior

também havia mesuras: “Chegando à Capital os deputados do interior, pouco me fizeram logo

sua visita, que me apressei em retribuir”. A etiqueta política das visitas não deixava de sinalizar

sobre o possível apoio ou animosidade que a Assembleia poderia oferecer ao chefe do executivo

provincial. Era também oportunidade para solicitações e cooptação, afinal: “certas adesões só

se conseguem com esses grandes favores que o administrador nem sempre pode fazer sem

prejudicar o cumprimento de seus deveres”559. Não por acaso, incomodava ao presidente a

persistência de certos deputados em não o visitar no Palácio do Governo: “Os outros

mostravam-se esquivos”. Tais ausências seriam explicadas pelo cálculo político, como

argumentarei mais à frente.

Segundo a narrativa de Figueiredo Júnior, a sessão da Assembleia Legislativa do Ceará

de 1862 não ofereceu problemas sérios. Apenas dois pontos votados no parlamento provincial

foram reprovados pela Presidência do Ceará, conforme reportado ao Presidente do Conselho de

Ministros. O primeiro atinente a mudanças realizadas na estruturação da secretaria da

Assembleia Provincial, com a criação de novo cargo, que, na opinião de Figueiredo Júnior, fora

instituído apenas para dar emprego a deputado “assistente dos Vieira”: “Refiro-me a Gustavo

Gurgulino de Sousa, demitido do cargo de Administrador do Correio”, que “sem dúvida perdeu

a esperança” de ser “empregado nalguma repartição” por nomeação da Presidência do Ceará560.

Figueiredo Júnior vetou a mudança, alegando ser “inconstitucional a Lei Regimental da

Assembleia, que alterou o pessoal da respectiva secretaria”, argumentando o aumento da

despesa sem a sanção da presidência561. Como informei na introdução da tese, Gurgulino fora

redator do Pedro II. Portanto, o presidente tinha motivos extras para barrar a nomeação.

A segunda medida da Assembleia censurada por Figueiredo Júnior era mais séria:

O ato mais grave da Assembleia foi a condenação do Juiz Municipal de

Cascavel a dois anos de suspenção. É força contestar que este funcionário,

contra quem clama há tanto tempo o jornal Pedro II, não procedeu ali com

559 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 23 dez. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 213, doc. 103. Grifos da fonte. 560 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 15 dez. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 213, doc. 103. 561 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 23 dez. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 213, doc. 103.

142

toda a imparcialidade e circunspecção que se devia desejar; mas também não

se pode deixar de se reconhecer que a Assembleia obrou por espírito de

partido, prevalecendo-se de uma faculdade de que no Império se tem usado

com tanta parcimônia. Devo mesmo confessar que pelo fato que deu lugar a

condenação, e pelas circunstâncias ocorridas, não havia fundamento para a

decisão da Assembleia562.

Dizia o ato da Assembleia, anexado ao ofício que Figueiredo Júnior encaminhou ao

Marquês de Olinda, ser a condenação de Joaquim Tavares da Costa motivada pelo desrespeito

ao artigo 160 do Código Criminal563, por ter julgado, de modo ilegal e definitivo, “um processo

de competência do júri, que subiu ao seu conhecimento, como Juiz de Direito interino, por via

de recurso da pronúncia, que ele substituiu por sentença condenatória, da qual procedendo ainda

contra a lei, negou apelação ao ofendido”564. A parte condenada apelou à Assembleia

Legislativa, que pelo Ato Adicional tinha a competência para decretar “a suspensão, e ainda,

mesmo a demissão do Magistrado, contra quem houver queixa de responsabilidade”565.

Para Figueiredo Júnior, “não havia fundamento para a decisão da Assembleia”, sendo

motivada pelos conflitos do juiz municipal com os conservadores de Cascavel. Apesar de não

ter publicamente interferido no caso, nos bastidores Figueiredo Júnior aconselhou Joaquim

Miranda a recorrer diretamente à Corte. Ao Marquês de Olinda, o presidente do Ceará solicitou

a acolhida do caso, indicando, inclusive, decisão similar do Conselho de Estado, favorecendo

outro juiz municipal condenado pela Assembleia Provincial cearense: “O Dr. José Lourenço de

Castro e Silva [...] obteve perdão do Poder Moderador, depois de ouvida a Sessão competente

do Conselho de Estado”566. Indicava, ainda, ter sido o parecer datado a 1 de dezembro de 1855,

que não reconheceu o acerto da Assembleia na demissão de Castro e Silva, assinado pelos

Visconde de Sapucaí, Marquês de Abrantes e Visconde de Maranguape. A alusão aos dois

últimos políticos não era por acaso: ambos compunham o gabinete liderado por Olinda567.

Apesar da condenação de Figueiredo Júnior às duas decisões da Assembleia Provincial

descritas acima, o presidente dizia considerar, em seu conjunto, positiva a sessão legislativa de

1862: “Encerrou-se a Assembleia Provincial, e foram votadas as leis anuais. Todos os

562 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 03 dez. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 213, doc. 103. 563 “Art. 160. Julgar, ou proceder contra lei expressa. Penas - de suspensão do emprego por um a três anos”.

BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830. Disponível no site:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LIM/LIM-16-12-1830.htm. Acesso em: 22 out. 2018. 564 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 03 dez. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 213, doc. 103. 565 NOGUEIRA, op. cit., 2015, p. 93. 566 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 23 dez. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 213, doc. 103. 567 JAVARI, op. cit., 1889, p. 130-131.

143

deputados provinciais se abstiveram até ao fim, de qualquer manifestação hostil. Entre a

Assembleia e a Presidência não houve a menor falha de cortesia nas relações oficiais”568.

O balanço positivo feito no ofício transcrito acima não correspondeu à realidade: a

administração de Figueiredo Júnior foi sim, ao menos minimamente, constrangida na

Assembleia Provincial, com conseguinte repercussão na imprensa e na própria correspondência

oficial. O motivo do constrangimento foi o tema de maior destaque no Ceará de 1862: o cólera.

Em ofício relatando o início dos trabalhos anuais da Assembleia Legislativa Figueiredo

Júnior relatou: “No dia seguinte antes de organizar-se a Mesa [Diretora] um deputado propôs

que viesse uma deputação felicitar o Presidente da Província pelos serviços prestados durante

a quadra epidêmica”. O presidente da Assembleia, Gonçalo Baptista Vieira569, não aceitou a

submissão do requerimento, alegando haver “outro em discussão”. Encerrada a análise deste,

Baptista Vieira alegou “ter passado a hora dos requerimentos”. Decorridos cinco dias, “um

deputado propôs o adiamento da moção de felicitação até que se discutisse a lei do

orçamento”570, causando desagrado entre os defensores da monção de congratulação.

Como era de se esperar, o episódio envolvendo o adiamento do voto de gratidão da

Assembleia a Figueiredo Júnior, por seus atos no combate ao cólera, não poderia deixar de

ocupar destaque nas páginas do Pedro II. O diário tinha investido pesadamente em artigos

ácidos atinentes ao empenho e agilidade do Presidente da Província em socorrer localidades

vitimadas pela epidemia, chegando a atribuir à responsabilidade deste pela mortandade de

milhares de cearenses. Quando uma instituição do porte político da Assembleia pôs em dúvida

o merecimento de votos de congratulações ao Presidente da Província, abriu-se a oportunidade

para reforçar a linha discursiva adotada pela redação do Pedro II.

Na capa da edição de 7 de outubro de 1862, o jornal transcreveu trecho da sessão

ordinária da Assembleia do dia 6 do mesmo mês. Nela estava o debate travado entre os

defensores da menção honrosa ao presidente versus os deputados patrocinadores do adiamento

da discussão. José Maximiano Barroso, autor do pedido de suspensão, afirmou estar “muito

embaraçado para obrar neste negócio” proposto pelo deputado Joaquim Mendes da Cunha

568 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 15 dez. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 213, doc. 103. 569 Gonçalo Batista Vieira (1819-1896) formou-se na Academia de Ciências Jurídicas de Olinda (1843). Foi

deputado geral em 1877 e deputado provincial em 9 legislaturas. Em 1871, foi agraciado com o título de Barão de

Aquiraz. Foi uma das lideranças do Partido Conservador, ganhando destaque a partir de 1862, quando da morte

do primo, o Senador Miguel Fernandes Vieira. No começo dos anos 1870, a aprovação da Lei do Ventre Livre

veio cindir de vez o conflituoso Partido Conservador do Ceará, passando o Barão de Aquiraz a liderar a facção

conhecida como “miúda”, em contraposição à “graúda”, sob batuta do Barão da Ibiapaba, Joaquim da Cunha

Freire. STUDART, op. cit., 1910, p. 344-345; PAIVA, op. cit., 1979, p. 90; CORDEIRO, op. cit., 2007, p. 140. 570 ANRJ. Ofício confidencial. 11 out. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

144

Guimarães, pedindo felicitações ao “Excelentíssimo presidente da província pelos serviços que

acaba de prestar por ocasião da epidemia que reinou e reina em nossa província”. Morador da

capital, Barroso dizia-se não habilitado para fazer um juízo sobre o tema, seja “para condenar

ou glorificar a administração”. Outros deputados do interior teriam a mesma dificuldade, porque

“as comunicações estiveram quase que interrompidas durante este fatal tempo, aonde as notícias

só podiam chegar desfiguradas”. Por isso, afirmava haver “inconveniência” e “sofreguidão da

parte do nobre deputado [Guimarães] em apresentar” o requerimento. Analisando a

“individualidade” do presidente, Barroso afirmava ser ela digna de “todos os votos”. Todavia,

[...] nós vamos tratar do presidente da província, nós fazemos abstração da

pessoa do presidente, nós vamos em nome dos nossos comitentes dar um voto

que talvez não seja conforme o pensar deles. Neste caso, Senhores, quando os

honrados membros ainda não tiveram tempo de ler o relatório da presidência

[sobre o cólera], quando mesmo ainda não apreciaram os seus atos, parece que

o adiamento da matéria será o mais conveniente meio de sairmos do embaraço

em que a irreflexão nos tem colocado (Apoiados)571.

Concluiu a proposta considerando poder votar a favor da felicitação se a decisão sobre

ela fosse adiada. Caso fosse votada naquele dia, ele votaria contra. Sugeria que o ponto voltasse

à pauta somente quando da aprovação da lei orçamentária. Joaquim Mendes da Cunha

Guimarães protestou contra a possibilidade de adiamento da votação sobre a menção honrosa.

Argumentava ter o requerimento sido “submetido à consideração da casa há muitos dias”, já

discutido, “e dependia tão somente da votação”. Apontava para a manobra do adiamento, visto

“que o orçamento só entrava em discussão no fim da sessão anual da assembleia”, insinuando

que não haveria mais tempo para outras votações.

O deputado José Nunes de Mello também se manifestou contrário ao adiamento da

apreciação do requerimento, “porque entendo que o atual presidente da província é merecedor

de uma felicitação pelos serviços que prestou durante a epidemia colérica”. A dignidade da casa

legislativa estava em jogo, daí a razão para ser votada logo: “Aqueles que entendem que o

presidente não é digno de ser felicitado, votem contra, estão no seu direito; porém apresentar

um requerimento de adiamento para quando se tratar do orçamento, é o que não me parece

razoável”. Acrescentava que os serviços do presidente “são de todos conhecidos”, habilitando

a votação imediata. Tal afirmação foi rebatida por Frutuoso Dias Ribeiro, dizendo ignorar os

atos do presidente. Além do mais, acrescentava: quem merecia felicitações era o comendador

571 Pedro II, n. 229, 07 out. 1862, p. 1.

145

Machado, a quem Figueiredo Júnior sucedeu, visto ter sido aquele quem “mandou remédios

para o Icó”572, cidade de Dias Ribeiro.

José Nunes de Mello rebateu, perguntando aos colegas: “o atual presidente da província

não remeteu remédios para todos os pontos; ainda mesmo para aqueles lugares aonde não se

tinha desenvolvido a epidemia?”. As provocações mútuas continuaram. Outros deputados

manifestaram-se, sugerindo que os padres e o comendador Machado deviam também ser

felicitados por ações no socorro aos coléricos. A discussão entre Nunes de Mello e José

Maximiano Barroso esquentou, com acusações mútuas e tentativas de ridicularização da

discussão. Barroso afiançou ser mais “amigo da administração, do que talvez muita gente que

hoje se proclama seu defensor”, ouriçando Nunes de Mello e Mendes Guimarães a perguntarem

se a indireta era para eles. As altercações prosseguiram com as considerações de Barroso:

Se o presidente da província procedeu muito bem na quadra epidêmica, fez

mais do que aquilo a que pelo seu cargo era obrigado, porque se prestou os

serviços a que por força de seu dever era obrigado, não fez mais do que o que

lhe cumpria, mas se ele foi além, eu [sem] dúvida nenhuma terei em por essa

felicitação uma vez que me chegue ao conhecimento de que realmente o

presidente é dela credor. Mas como hei de eu chegar a esse conhecimento, se

os nobres deputados nem ao menos querem a discussão? É no que eu não

posso concordar573.

Quando o debate findou, o requerimento de Barroso foi votado, com derrota

acachapante para os defensores da imediata definição das congratulações ao presidente: 12

votaram a favor do adiamento; só Mendes Guimarães e Nunes de Mello deram votos contra574.

Como era de se esperar, a polêmica na Assembleia repercutiu na imprensa liberal,

defensora contumaz do presidente do Ceará. No sul da província, por exemplo, O Araripe viu

no debacle da proposta do deputado Cruz Guimarães o sinal de facciosismo político por parte

dos conservadores. Lembrava: felicitações similares tinham sido aprovadas na mesma

Assembleia, como a encaminhada ao Bispo do Ceará por seus serviços durante a epidemia. O

empenho em postergar a discussão sobre os votos a José Bento da Cunha Figueiredo Júnior até

a aprovação do orçamento, asseverava O Araripe, atestava como “importava a queda” da

proposta ao Partido Conservador, que tinha maioria na casa legislativa575.

572 Pedro II, n. 229, 07 out. 1862, p. 1. 573 Idem. 574 Idem. 575 O Araripe, n. 292, 26 out. 1862, p. 2.

146

Para Figueiredo Júnior, o incidente na Assembleia era reflexo da ação dos carcarás, a

quem estava ligada a maioria dos deputados, tendo inclusive a presidência da casa legislativa.

No meio do imbróglio sobre a menção de gratidão estaria, mais uma vez, o ressentimento:

É preciso notar que a família do falecido senador Miguel Fernandes Vieira

parece que ficou bastante ressentida com a demissão do Inspetor da Tesouraria

Provincial. Acostumada a dominar sem embaraços, não podia levar a bem um

ato que jugasse ofensivo do seu pundonor e interesses pessoais; tanto mais

quanto o Presidente, não provocando justos ressentimentos, tem-se mantido,

todavia, no seu posto com dignidade, sem comprar adesões, nem aceitar a lei

de ninguém576.

Como a assembleia “compõe-se em sua quase totalidade de homens eleitos sob a

influência dos Vieira, com exclusão absoluta não só dos liberais, como dos conservadores que

não eram do seu peito”, a votação que adiou a definição sobre as felicitações à presidência pelos

feitos contra o cólera não podia ser diferente. Os aliados aos Fernandes Vieira teriam, inclusive,

feito um pacto anterior à abertura dos trabalhos da Assembleia: “assentaram, naturalmente por

sugestões dos Vieiras, que nem diriam uma palavra em desabono do Presidente, nem fariam

uma manifestação congratulatória, que eles entendiam desmoralizar o Franco!”577. Tais

deputados seriam aqueles que se “mostravam esquivos”578 em realizar a visita de cortesia ao

Presidente, etiqueta política anterior ao início da sessão anual do legislativo provincial.

Portanto, o requerimento de Mendes Guimarães a respeito das felicitações deixara

deputados “em posição embaraçosa, não tendo ânimo de dar um voto contrário à

administração”. Nesta perspectiva, Figueiredo Júnior sugeria haver cálculo político dos

deputados ao postergar a discussão do assunto:

Recorreram ao adiamento, ou porque esperavam que eu fosse removido

segundo um boato espalhado por meio de carta vinda da Corte; ou porque

queriam ver se a administração pelo interesse de um voto congratulatório faria

favores que eles costumavam pretender durante a sessão, principalmente os

deputados do interior579.

576 ANRJ. Ofício confidencial. 11 out. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. No anexo do ofício, Figueiredo Júnior

colocou a edição n. 229 do Pedro II, na qual se publicou o debate da Assembleia a respeito do adiamento do voto

de gratidão. 577 Idem. Grifos da Fonte 578 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 23 dez. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 213, doc. 103. 579 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 23 dez. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 213, doc. 103.

147

Assim, os deputados ganhariam tempo para observar se o Presidente permaneceria no

cargo ou se sujeitaria à concessão de favores em troca do voto de congratulações. Ademais,

parte dos deputados que votaram pelo adiamento, em privado, teriam se desculpado, alegando

“favores que devem à família Fernandes Vieira”. Interessante é perceber o uso da pretensa

inquietação dos deputados com a possível substituição na Presidência do Ceará como forma de

insinuar ao Presidente do Conselho de Ministros que a relação com a Assembleia seria

pacificada quando houvesse garantia de que Figueiredo Júnior permanecesse no cargo:

Vou indo por meu caminho, mostrando-me sobranceiro a essas veleidades de

família; que por ora se traduzem em cochichos. Trato bem os deputados que

me procuram, e faço sempre que não quero outra coisa senão o benefício da

Província. Deste modo, vejo-me desembaraçado para ir obrando como

convém, e acredito que a Assembleia manterá comigo a melhor harmonia se

tiver certeza da minha conservação na Presidência580.

Na conclusão do ofício, reforçava, mais uma vez, o lamento sobre o “desmantelo” em

que se acharia o Partido Conservador no Ceará por “falta de uma direção prudente”. Com a

morte do Senador Miguel Fernandes Vieira, seus parentes pareciam não chegar a um consenso

sobre a direção do partido. Insinuava, inclusive, que o deputado geral Manoel Fernandes Vieira

repelia a “chefatura”, não indicando nenhum outro chefe “porque não conhece em nenhum dos

Vieiras inteligência e tino para diretor”. A outra opção era Gonçalo Baptista Vieira, “um dos

homens mais abastados da Província”, e, dentre os membros da família, “o que tem mais

simpatias”. Todavia, na opinião de Figueiredo Júnior, faltava ao candidato “capacidade e

cultura intelectual” para a função de líder, além de disposição para “sacrificar seus interesses

particulares à política”, como abandonar a fazenda no sertão para morar em Fortaleza581.

A visão depreciativa de Figueiredo Júnior sobre Gonçalo Vieira, futuro Barão de

Aquiraz, era, no mínimo, exagerada, pois a personagem ocupou papel importante na liderança

do Partido Conservador entre 1860 e 1880582. De todo modo, ao detratar Gonçalo, não por

acaso, presidente da Assembleia Legislativa do Ceará em 1862, responsável pela recusa original

do requerimento congratulatório, Figueiredo Júnior reforçava a narrativa desqualificadora dos

Fernandes Vieira, opositores declarados da administração do Presidente do Ceará.

A seguir, aponto como as questões discutidas até aqui repercutiram no núcleo central da

política imperial, ao ponto da exoneração de Figueiredo Júnior ser aventada no Paço. Optei por

580 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 23 dez. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 213, doc. 103. 581 Idem. 582 CORDEIRO, op. cit., 2007, p. 140.

148

fazer tal discussão a partir da apresentação de como o presidente do Ceará e seu pai, José Bento

da Cunha Figueiredo (futuro Visconde do Bom Conselho), então presidente de Minas Gerais,

eram vistos na Corte, bem como falar, brevemente, das alianças por trás de suas carreiras.

2.4 - Os Cunha Figueiredo: pequenos demais para coisas grandes?

Como apresentado através da correspondência oficial do presidente do Ceará ao

Marquês de Olinda, Figueiredo Júnior buscou proteger-se de eventuais problemas na Corte

apresentando-se como apartidário, cumprindo com prudência a conciliação das parcialidades

no Ceará, atendendo aos apelos do Gabinete em tempo de “Liga”. Para isso, investiu na versão

de que o conjunto dos conservadores do Ceará não demonstravam oposição à Presidência, mas

apenas o grupo “carcará” dos Fernandes Vieira, acusado de promover o enfraquecimento do

partido na província. Desta forma, tentava anular a enxurrada de impropérios desfechados pelo

diário Pedro II contra a administração provincial da crise epidêmica no Ceará.

Não obstante o esforço, a situação do Ceará não deixou de causar discussões na Corte.

Emissário dos intermináveis ofícios de Figueiredo Júnior sobre as polêmicas atinentes ao

cólera, o Marquês de Olinda pareceu não se convencer totalmente da veracidade da versão

daquele, sobre o assunto. É provável ter pesado na situação o olhar pessoal que o velho estadista

tinha a respeito de José Bento da Cunha Figueiredo, progenitor do presidente do Ceará.

As relações existentes entre o Marquês de Olinda e Cunha Figueiredo tinham momentos

nada amistosos. Indícios disto podem ser vistos em carta do padre Joaquim Pinto de Campos,

deputado geral, a Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (Visconde de

Camaragibe). Conhecido por abastecer Camaragibe com notícias públicas e de bastidores da

Corte, sendo “olheiro”583 deste, o padre Pinto de Campos comentava, a 5 de junho de 1854, que

o “rei de São Cristóvão” – alusão ao Marquês de Paraná, então Presidente do Conselho de

Ministros – lhe fizera perguntas sobre “o estado da província [de Pernambuco] e do modo por

que marchava” o presidente José Bento da Cunha Figueiredo. O padre viu-se “um pouco

apertado” com as indagações, respondendo “em poucas palavras o que entendia” sobre

Figueiredo, “que aliás, não tem aqui [na Corte] bom crédito, como presidente”. A exoneração

dele não teria sido feita ainda, “porque a ideia de quem o substitua preocupa demasiado os

Ministros”. Neste ponto, comenta, que o então Visconde de Olinda estava cheio das “inépcias

583 CADENA, op. cit. 2018, p. 237.

149

do mesmo José Bento”. A língua ferina de Pinto de Campos demonstrava compartilhar a visão

negativa esboçada por Olinda a respeito de Figueiredo:

Por Deus, José Bento é muito pequeno para as coisas grandes; ele antepõe as

suas afeições particulares ao bem-estar da Província; mas, enfim, como não

há quem o substitua, calar-me-ei. Só sei que os Ministros fazem dele a pior

ideia...584.

Apesar da percepção negativa registrada em 1854 sobre a administração de Cunha

Figueiredo em Pernambuco, ele foi mantido no cargo até o início de 1856. Nesse ínterim,

envolveu-se no problemático “desembarque de Sirinhaém”, bem como causou polêmica na

epidemia de cólera que atingiu Pernambuco entre fins de 1855 e começo de 1856.

No primeiro caso, no dia 11 de outubro de 1855, um palhabote ancorou na praia de

Sirinhaém traficando africanos. Aparentemente, a carga tinha como destino o engenho do

Coronel João Manoel de Barros Wanderley, aliado pessoal e político do Marquês de Olinda. O

responsável pelo barco cometeu um erro, ao procurar outro coronel para tratar do desembarque,

falando com Gaspar de Menezes Vasconcelos de Drummond, delegado afastado de Sirinhaém,

o que fez o assunto vir a público. O caso de tráfico ilegal trouxe repercussão nacional e mesmo

internacional, por engendrar incidente diplomático sério com a Inglaterra585.

As autoridades de Pernambuco, entre as quais o presidente José Bento da Cunha

Figueiredo, trataram de abafar o caso, pois muita “gente política, de largo porte, entrava”

nele586. As contradições pululavam nas versões dadas, complicando a situação de pressão

exercida pelo cônsul inglês em Recife, Henry Cowper. O próprio Menezes não conseguia

explicar por que não prendeu o emissário que lhe procurou, nem a razão de não ter rapidamente

apreendido o palhabote. Numa das versões dadas, entrou em contradição sobre o dia no qual

fora informado a respeito da embarcação e seu conteúdo: falou em 12 de outubro, quando o

ocorrido se deu um dia antes. Ardilosamente, os traficantes usaram o cólera, que ameaçava

entrar em Pernambuco, como desculpa para aportar e camuflar a embarcação por alguns dias.

Contou Vasconcelos de Drummond, no relatório enviado ao presidente de Pernambuco, a 13

de outubro de 1855: “Ao meu conhecimento chegou no dia 12 do corrente, pelas oito horas da

584 IAHGP. Carta do Padre Pinto de Campos ao Visconde de Camaragibe. Rio de Janeiro, 05 jun. 1854. Caixa 1.

Fundo Visconde de Camaragibe. Grifos da fonte. Agradeço ao professor Paulo Henrique Fontes Cadena pela

gentileza de ter me passado cópia da carta citada. 585 Uma boa análise do assunto encontra-se no artigo: CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de; CADENA, Paulo

Henrique Fontes. A política como “arte de matar a vergonha”: o desembarque de Sirinhaém em 1855 e os últimos

anos do tráfico para o Brasil. Topoi. Rio de Janeiro, v. 20, n. 42, p. 651-677, set/dez. 2019 Disponível no site:

http://www.scielo.br/pdf/topoi/v20n42/2237-101X-topoi-20-42-651.pdf. Acesso a 28 nov. 2019. 586 CADENA, op. cit., 2018, p. 103.

150

noite, que junto da ilha denominada de Santo Aleixo se achava fundeado um pequeno navio,

que a princípio se disse trazer pessoas assaltadas de cólera morbo”587.

Como demonstrou Paulo Henrique Fontes Cadena, a imprensa pernambucana não

deixou de acusar Cunha Figueiredo. O presidente não teria empenhado esforços na coleta de

provas do caso de tráfico. Da Corte, no primeiro dia de dezembro de 1856, em carta ao Visconde

de Camaragibe, o então Ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, com raízes políticas em

Pernambuco, acusava ter dado “um golpe de Estado”, aposentando dois dos três

desembargadores que deveriam julgar o caso. Mesmo o desembargador não-aposentado,

acabou, por ordem do Ministro da Justiça, removido do Tribunal da Relação de Recife. No ano

de 1857, o caso foi julgado. Por falta de provas, os acusados foram absolvidos588.

O governo de Cunha Figueiredo também foi alvo de polêmica quando da passagem do

cólera por Pernambuco, com mais de 37.000 mortes ocorridas589. A epidemia chegou no último

mês de 1855, agindo com força nos primeiros meses de 1856. De modo similar ao ocorrido em

algumas cidades europeias durante os surtos do “mal de Ganges”, as ruas de Recife, a “Veneza

Brasileira”, foram tomadas por protestos populares, acusando os médicos e o governo de

estarem matando deliberadamente os pobres, especialmente, os negros590.

A celeuma fora causada pela ação de um curandeiro, o escravizado “Pai Manoel”591,

que afirmara descobrir remédio para o cólera, logo conseguindo a aceitação de negros (cativos

587 DRUMMOND, Gaspar de Menezes Vasconcelos de. Apud VEIGA, Gláucio. Estudos: O Gabinete Olinda e a

política pernambucana; O desembarque de Sirinhaém. Recife: Editora Universitária de Pernambuco, 1977, p. 50. 588 CADENA, op. cit., 2018, p. 221. 589 DINIZ, op. cit. 2011, p. 57. 590 O medo diante do cólera desaguou em rompantes populares sanguinolentos na Europa dos anos 1830, em que

pessoas inocentes foram massacradas simplesmente por transportarem substâncias estranhas, pois se suspeitava

que a epidemia fosse fruto de um envenenamento proposital. Diante da falta de respostas eficazes da medicina no

combate ao avanço do surto, a população estendeu esse imaginário do veneno aos médicos. Na Rússia e na Polônia,

em 1831, médicos e enfermeiras foram assassinados e hospitais destruídos. O contexto caótico instaurado na

França pelo estouro da peste em 1832, também engendrou tensão política e mal-estar social. Nos primeiros dias

de julho daquele ano, milhares de artesãos e operários, residentes dos bairros pobres de Paris, onde a mortandade

alcançou os maiores números, foram às ruas, entrando em conflito com as tropas do governo. Mais de duzentas

pessoas saíram mortas e centenas ficaram feridas nas manifestações. Para dissipar novas revoltas, o governo

francês chegou a exigir que os profissionais de saúde delatassem todos os indivíduos feridos por bala que

procurassem socorro médico. SOURNIA; RUFFIE, op. cit., 1986, p. 121. Richard Evans também identificou

rompantes populares na Prússia, onde camponeses, artífices e comerciantes afirmavam: “a doença era produto de

envenenamento por médicos envolvidos em campanha secreta para reduzir o excesso populacional”. Segundo tal

versão, os médicos receberiam remuneração proporcional ao número de mortos, provocando forte resistência

popular à hospitalização em algumas áreas prussianas. EVANS, op. cit., 2005, p. 244-245. 591 O caso de Pai Manoel na epidemia do cólera em Recife é bastante conhecido na historiografia, como demonstra

as indicações a seguir de obras que o narram: FREYRE, Gilberto. Sobrados e mocambos. 15ª ed. São Paulo:

Global, 2004, p. 641; ANDRADE, Gilberto Osório de. A cólera-morbo: um momento crítico da história da

medicina de Pernambuco. Recife: Secretaria de Educação e Cultura, 1956, p. 46; CHALHOUB, op. cit., 1996,

p.135-136; MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. Os curandeiros e a ofensiva médica em Pernambuco na primeira

metade do século XIX. Clio: Revista de Pesquisa Histórica. Nº 19. Recife, 2001, p. 95-110; DINIZ, op. cit., 2003,

p.331-385; FARIAS, op. cit., 2007, p. 74-75.

151

e livres) e de uma parcela de brancos, entre os quais se incluíam figurões locais e sacerdotes.

Tendo em vista a pressão popular a respeito da figura do curandeiro, apelidado de “Dr. Manoel

da Costa” – uma alusão à costa da África, sua procedência, além de provocação aos detentores

do diploma em Medicina –, o presidente Cunha Figueiredo autorizou aquele a tratar coléricos

no hospital do Arsenal da Marinha de Recife592.

Em momento no qual os médicos buscavam centralizar as práticas de cura, como

demostrado no capítulo anterior, combatendo a ação de terapeutas populares, o caso ganhou

proporções nacionais e a atitude do governo provincial foi bastante criticada. José Bento da

Cunha Figueiredo teve de prestar esclarecimentos à Corte, precisamente à Academia Imperial

de Medicina e ao Ministério dos Negócios do Império.

Luís Pedreira do Couto Ferraz (futuro Visconde do Bom Retiro) era amigo próximo de

Cunha Figueiredo. Contudo, na condição de Ministro do Império, parecia descrer das notícias

chegadas ao Rio de Janeiro a respeito das ações da presidência de Pernambuco. Em carta a

Cunha Figueiredo, datada de 8 de março de 1856, o ministro afirmava: “Saiba, pois, Vossa

Excelência, que é acusado aqui geralmente de ter nesta quadra praticados atos, que a serem

reais, seriam injustificáveis”. A mais grave acusação ouvida por Couto Ferraz era a de ter dado

“licença a qualquer [um] para curar, sem ter para isso as habilitações legais”. Destacava,

especialmente: “aponta-se que com certeza Vossa Excelência autorizou, ou tolerava que um

preto da Costa se apresentasse como curador de cólera, e impunimente tenha andado por lá

medicando”. O ministro dizia supor serem as informações inexatas. Porém, se confirmadas:

“qual for o motivo que Vossa Excelência tenha tido para assim obrar, seu ato é insustentável”.

“Aguardo ansioso suas explicações”, concluía a carta593.

Um dos denunciantes das ações de Figueiredo, foi o médico Joaquim de Aquino

Fonseca, presidente da Comissão de Higiene Pública de Pernambuco, principal órgão sanitário

da província, instituição subordinada à Junta Central de Higiene Pública, da Corte. Em carta,

de mais de 50 laudas, a Couto Ferraz, relatava lista interminável de ações de Cunha Figueiredo,

tomadas ao longo de todo o governo, que teriam contrariado as orientações e as prerrogativas

da Comissão de Higiene Pública, levando o presidente desta a pedir licença do cargo:

Vendo que o Excelentíssimo Presidente desta Província não dá à Comissão,

de que sou chefe a importância que ela merece, e não respeita o Regulamento,

que seus membros juraram cumprir e fazer cumprir, julgo conveniente não

592 DINIZ, op. cit., 2003, p. 364. 593 ANRJ. Carta de Luís Pedreira do Couto Ferraz a José Bento da Cunha Figueiredo. 08 mar. 1856. Fundo

Visconde do Bom Conselho. Doc. 33.

152

estabelecer conflitos com a primeira autoridade nem devo subscrever a perda

das forças morais da Repartição que dirijo594.

Excluindo a quase totalidade das queixas de Aquino sobre o presidente – como a de ter

pressionado contra quarentenas no porto, desconsiderado orientações sobre obras públicas,

pressionado pela liberação de um caixão, transportado “ocultamente” entre mercadorias vindas

da Corte, contendo o filho do desembargador Figueira de Mello, “que exalava mau cheiro,

dizendo-se, e havendo razão para crer-se, que o cadáver era de um menino que tinha falecido

de cólera-morbo”, entre outras acusações interessantíssimas aos pesquisadores do higienismo

oitocentista –, tratarei do caso de curandeirismo nos tempos do cólera em Recife.

Carregando preconceitos de classe e ofendido pela afronta à categoria médica, sem citar

o nome de “Pai Manoel”, Aquino Fonseca ridicularizava a crença de um “preto” poder

“conhecer remédios apropriados ao tratamento da doença pois “se o cólera fosse conhecido na

costa da Guiné e aqui houvesse preto que soubesse curar, na Bahia, foco de pretos da Costa

d’África, não teria deixado de aparecer alguém que o conhecesse e soubesse curá-lo”595.

A Comissão de Higiene pública sentiu-se ultrajada pela autorização dada ao curandeiro

para tratar doentes no Hospital da Marinha, pondo em xeque o saber médico oficial em nome

da suposta descoberta do remédio por um escravizado. Para além disto, o que mais frustrou

Aquino foi perceber como pessoas abastadas e autoridades públicas apoiaram “um preto da

Costa d’África”, criando um clima de hostilidade aos detentores do saber de cura oficial, e

mesmo de medo, ante a pressão popular alimentada pela conjuntura tensa da epidemia:

Um sacerdote, lente do Ginásio, na Igreja de Sta. Cruz contra eles [os médicos]

pregava ao púlpito, dizendo só os que morriam eram os pretos e pardos, e que,

como o preto do sogro do Dr. Gonçalves da Silva os curava, os médicos

queriam matá-lo; a população insuflada, exaltava-se, e os pretos cativos se

tornavam insolentes, os desordeiros, à espera da ocasião favorável formavam

grupos que, percorriam as ruas, vociferando contra os médicos e boticários

que se viam expostos a ditos insultosos; jornais procuravam dar força à

exultação popular; entretanto que fazia a autoridade policial? Nada: permitia

os grupos que se preparavam para dar assalto às boticas, e fazia acompanhar

o preto por ordenanças do Corpo de Polícia, o que animava a população; e os

membros da Comissão recebiam avisos de pessoas fidedignas, que se

preparava uma sublevação, em que os médicos seriam as vítimas, vindo-me

apontado em primeiro lugar596.

594 ANRJ. Carta do Dr. Joaquim d’Aquino Fonseca ao Ministro dos Negócios do Império, Luiz Pedreira de Couto

Ferraz. 23 fev. 1856. Fundo Saúde Pública. Notação IS4-25. 595 Idem. 596 Idem.

153

As atitudes de Cunha Figueiredo durante a epidemia do cólera levaram à renúncia

coletiva da Comissão de Higiene Pública. Já a morte de enfermos tratados pelo Pai Manoel

acabou o levando à prisão. Em resposta, os adeptos dele foram às ruas, intensificando as

hostilidades aos boticários e médicos. Parte da população acreditava ser a prisão do curandeiro

um plano urdido pelas autoridades para que médicos matassem a gente de cor, parcela da

sociedade mais atingida pelo cólera597. Ante a incapacidade dos médicos em estancar a

mortalidade pelo surto, as pessoas achavam que os preceitos curativos do “Dr. Manoel da

Costa” eram mais efetivos, inclusive por se aproximar das concepções populares de cura, com

uso de ervas e práticas reconhecidas.

Cobrado por explicações pelas autoridades da Corte, o presidente José Bento da Cunha

Figueiredo afirmou que a autorização dada ao curandeiro justificava-se, justamente, por ser um

meio de evitar distúrbio popular, pois era forte a aceitação de “Pai Manoel” na localidade. “A

força dele era tão avassaladora que não havia como coibir suas atividades”598. Em meio ainda

às polêmicas do caso, em fins de maio de 1856, terminava o governo de Cunha Figueiredo em

Pernambuco, iniciado em 1853.

Pode-se perceber, através do que mostraram as últimas páginas, como acontecimentos

polêmicos – a exemplo do tráfico ilegal de africanos desembarcados em Sirinhaém e das

decisões sobre o cólera em Pernambuco –, contribuíram para arranhar a imagem de José Bento

da Cunha Figueiredo. O Marquês de Olinda, que em 1854 já estava, segundo o padre Pinto de

Campos, cheio das “inépcias” de Figueiredo599, era uma das personagens da política imperial a

compartilhar desconfianças a respeito deste. Ao assumir a Presidência do Conselho de

Ministros, em 30 de maio de 1862, Olinda encontrou José Bento da Cunha Figueiredo ocupando

a presidência de Minas Gerais e José Bento da Cunha Figueiredo Júnior na do Ceará.

A percepção crítica sobre os Cunha Figueiredo foi registrada pela pena mais poderosa

do Império: Pedro II. Em seu diário, escreveu: “O Olinda observou que convinha à política tirar

algum presidente da Câmara [dos Deputados] para atender a certas aspirações, e disse que o

Cunha Figueiredo por fraco não deveria continuar [na presidência de Minas Gerais]”600.

Se Olinda tinha escrúpulos a respeito de Figueiredo, o Imperador demonstrava

incômodo com a figura de Figueiredo Júnior. Quando, em fevereiro de 1862, Caxias ventilou a

possibilidade de “o filho do José Bento, presidente de Minas”, assumir a Presidência do Ceará,

597 DINIZ, op. cit., 2003, p. 358. 598 Idem, p. 357. 599 IAHGP. Carta do Padre Pinto de Campos ao Visconde de Camaragibe, Rio de Janeiro. 05 jun. 1854. Caixa 1.

Fundo Visconde de Camaragibe 600 PEDRO II, op. cit., 1956, p. 206.

154

ante a recusa de Ângelo Tomás Amaral em aceitá-la, o monarca manifestou discordância:

“objetei o procedimento do proposto quando presidira o Rio Grande do Norte durante as

eleições e o Souza Ramos [Ministro dos Negócios do Império] disse que oferecera a mesma

consideração em conselho”. José Bento da Cunha Figueiredo Júnior tinha intervindo nas

eleições da primeira província onde foi presidente, criando ressalvas em Pedro II.

Uma vez empossado no cargo no Ceará, o Imperador permaneceu a olhar com-

desconfiança para “o filho do José Bento”. Coincidentemente, assim como o pai entre 1855-

1856, Figueiredo Júnior governou uma província em meio à conjuntura caótica do cólera. A

celeuma sobre as ações do presidente do Ceará a respeito do surto e os conflitos na imprensa

cearense, explanados ao longo deste capítulo, não passaram despercebidos ao monarca. Em dois

de agosto de 1862, Pedro II comentou ter entregado a Olinda um ofício recebido do Ceará no

qual Figueiredo Júnior explicava “suas providências por causa do cólera e demissão do inspetor

da tesouraria provincial”. Sobre o último ponto, o Imperador afirmava concordar com Olinda,

de que o “presidente [tinha] defendido cabalmente o seu ato”, não se opondo, assim, à

exoneração de Manoel Franco Fernandes Vieira. Contudo, Pedro II discordava de questão mais

sensível. Criticava as medidas econômicas tomadas por Figueiredo na prevenção ao cólera: “o

presidente não procedera acertadamente esperando os estragos da epidemia para mandar

socorros a certas localidades, ainda que assim fizesse com receio de gastar inutilmente”601.

Registrado no diário pessoal do Imperador e não em documento tornado público

imediatamente, o julgamento a respeito das ações encetadas contra o cólera pelo presidente do

Ceará assemelhava-se ao propalado no jornal Pedro II, crítico mordaz da política de contenção

de gastos nos socorros públicos. Como já evidenciei, a questão da economia foi arduamente

defendida na correspondência oficial enviada pelo governante do Ceará ao Marquês de Olinda.

Figueiredo Júnior insistia na narrativa de ter agido com cautela, mas com precisão, no auxílio

às localidades afetadas ou ameaçadas pelo cólera, imputando às análises do Pedro II apenas ao

sentimento de despeito e desejo de vingança por parte dos Fernandes Vieira. Todavia, tal versão

estava longe de convencer as autoridades da Corte. Talvez isso explique porque, em meados de

setembro de 1862, Olinda tenha relatado, a Pedro II, o fato de colegas de ministério defenderem

como “indispensável mudar” algumas presidências provinciais, incluindo o Ceará602.

Mas se os Cunha Figueiredo despertavam tanta desconfiança na Corte, como explicar

que permanecessem sendo indicados para cargos? Se José Bento da Cunha Figueiredo fosse de

601 PEDRO II, op. cit., 1956, p. 180. 602 Idem, p. 213.

155

fato “muito pequeno para as coisas grandes”603 e os procedimentos de seu filho despertavam

reprovação no próprio Imperador, como entender as carreiras políticas exercidas? A resposta

para tais questões pressupõe o entendimento do peso que as redes – entendidas aqui enquanto

“conjunto de relações que põem em conexão umas pessoas com outras”604, favorecendo

“interesses coletivos e/ou individuais, de acordo com as várias circunstâncias em causa”605 –

pessoais e políticas exerciam sobre os jogos do Império.

Como demonstrou Paulo Cadena, em tese de doutorado sobre a trajetória política do

Marquês de Olinda, a carreira de Pedro de Araújo Lima é exemplar para a compreensão do

papel das redes na construção do sucesso de um político imperial. O Marquês de Olinda ocupou

o cargo mais importante do Império, o de Regente, foi Senador e por várias vezes, chamado

pelo Imperador, compôs e liderou ministérios. Mas isso não se deu por acaso. Nascido no

Engenho Antas, em Sirinhaém, proprietários rurais e comerciantes de Pernambuco, bem como

traficantes de escravos, fizeram parte da sua realidade desde cedo, sendo acionados, com maior

clareza, quando dos estudos em Coimbra. Paulo Cadena conseguiu mapear como os recursos

enviados a Portugal por Manoel de Araújo Lima, para sustento e gastos com a educação do

filho Pedro, tinham traficantes como emissários, e como parte de tais recursos era proveniente

do comércio de gente na costa africana. E os laços foram se ampliando na Universidade de

Coimbra, importante espaço de integração e formação da elite política luso-brasileira. Seus

estudos foram contemporâneos aos de outros brasileiros “coimbrãos”, como Miguel Calmon du

Pin e Almeida (futuro Marquês de Abrantes), Bernardo Pereira de Vasconcelos, Caetano Maria

Lopes Gama (futuro Visconde de Maranguape), entre outros. Após doutorar-se, Pedro de

Araújo Lima retorna ao Brasil. Mas os movimentos de 1820 agitaram a política do Reino Unido

de Portugal, Brasil e Algarves, fazendo-o voltar à Europa já num cargo eletivo: deputado das

Cortes de Lisboa. Lá fez laços e conviveu com indivíduos que ocupariam papel de destaque na

política brasileira: Diogo Antônio Feijó, José Martiniano de Alencar, Antônio Carlos Ribeiro

de Andrada, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, entre outros. Feita a Independência, virou

deputado geral e, com apenas 30 anos, passou a ocupar pastas centrais da administração, como

o Ministério do Império e o Ministério da Justiça. O casamento com Luíza Bernarda de

603 IAHGP. Carta do Padre Pinto de Campos ao Visconde de Camaragibe. Rio de Janeiro, 05 jun. 1854. Caixa 1.

Fundo Visconde de Camaragibe. 604 IMÍZCOZ BEUNZA, José Maria; OLIVERI KORTA, Oihane (eds.). Economía doméstica y redes sociales en

el Antiguo Régimen. Madrid: Sílex, 2010, p. 48. 605 FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. Introdução: desenhando perspectivas e ampliando abordagens

– O Antigo Regime nos trópicos e na trama das redes. In. FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.).

Na trama das redes: política e negócios no Império Português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2010, p. 23.

156

Figueiredo, em 1828, oportunizou a ampliação da rede de relações. Seu sogro, o

Desembargador José Bernardo de Figueiredo, detinha relações estabelecidas com a

magistratura e com as elites fluminenses, o que renderia muito ao genro. Em 1837, a rede de

Araújo Lima era tão estruturada, com suas trocas de favores mútuas, ao ponto de lhe conferir a

conquista do posto mais alto na estrutura política do Império, abaixo apenas do cargo de

Imperador: Regente606.

O exemplo do Marquês de Olinda aponta para como “relacionamentos constituídos a

partir das ações e das relações vivenciadas entre diversos indivíduos com acesso a informações

e recursos diferenciados entre si”607 favoreciam os interessados em seguir a carreira política no

Brasil Império. No caso de Araújo Lima, as relações construídas – de traficantes de escravos

ao Imperador – propiciaram oportunidades aproveitadas ao máximo, fazendo dele um dos

políticos mais bem sucedidos, influentes e longevos do Império: seu primeiro cargo eletivo foi

anterior à Independência e o último Gabinete que chefiou, na tumultuada conjuntura da Guerra

do Paraguai, terminou em 1867, pouco antes de sua morte, em 1870, aos 77 anos de idade.

O caso dos Cunha Figueiredo, embora longe do curriculum vitae de Olinda, também

pode ser melhor compreendido quando visto à luz da rede de relações que construíram. José

Bento da Cunha Figueiredo - malgrado as críticas desabonadoras proferidas por figurões da

política imperial acerca de seus governos em Pernambuco e Minas Gerais, exibidas ao longo

deste tópico -, tinha também um conjunto de amigos com projeção social para lhe garantir

oportunidades de atuação política.

Em sua formação superior, no curso jurídico de Olinda, José Bento da Cunha Figueiredo

pôde conviver com estudantes que no futuro teriam peso na política nacional: Eusébio de

Queiroz608, Nabuco de Araújo, Zacarias de Góis, Cansanção de Sinimbu (Visconde de

Sinimbu), João Maurício Wanderley (Barão de Cotegipe), Joaquim Saldanha Marinho, entre

outros.609. Após a formação, o doutor Cunha Figueiredo ainda permaneceria a conviver com a

jovem nata da elite matriculada na instituição, pois tornou-se professor610.

Mas foi enquanto estudante que Figueiredo fez amizade com Pedro Francisco de Paula

Cavalcanti de Albuquerque (Visconde de Camaragibe), um elo central na trajetória política do

primeiro. Os Cavalcanti de Albuquerque foram um dos clãs familiares de forte projeção no

Império, ao ponto de fazer senadores e viscondes a três irmãos. Em 1848, os praieiros,

606 CADENA, op. cit., 2018, p. 299-300. 607 FRAGOSO; GOUVÊA, op. cit., 2010, p. 23. 608 CADENA, op. cit., 2018, p. 35. 609 NABUCO, op. cit., 1997, p. 45. 610 BLAKE, op. cit., 1898, p. 336.

157

opositores dos Cavalcanti, cantavam pelas ruas uma quadra, ainda hoje lembrada em

Pernambuco, indiciando o poder conquistado pela família no passado:

Quem viver em Pernambuco

Deve estar desenganado

Que ou há de ser Cavalcanti

Ou há de ser cavalgado611.

A ligação de Cunha Figueiredo com o Visconde de Camaragibe, principal nome do

Partido Conservador em Pernambuco, era conhecida por todos. Quando dos preparativos para

a primeira eleição segundo a lei de círculos, meses após deixar a presidência de Pernambuco,

foi a Camaragibe que recorreu Figueiredo, para definir em qual distrito deveria concorrer como

candidato a Deputado Geral. Em carta de setembro de 1856, Figueiredo implorava: “não deixe

de ir cuidando de mim; visto que me dizem que os candidatos surgem de todos os lados”612. Na

Corte, Figueiredo podia contar ainda com o apoio de Antônio Francisco de Paula Holanda

Cavalcanti de Albuquerque, o Visconde de Albuquerque, senador, ministro em seis ocasiões e

com influência no Partido Liberal.

Outro amigo bem posicionado da rede de José Bento da Cunha Figueiredo já foi citado

aqui: Luís Pedreira do Couto Ferraz (Visconde do Bom Retiro), um dos “homens do

Imperador”. Sérgio Buarque de Holanda afirmou ser Bom Retiro uma das poucas pessoas a

quem Pedro II deu “acesso mais franco e menos formal”, compartilhando seus pensamentos

mais íntimos. A amizade forte entre eles permitiu o vislumbre de momento raro nas aparições

públicas do contido Imperador: “não conseguiu, uma vez, impedir que o vissem enxugar os

olhos, e foi diante do corpo de um amigo que acabava de morrer, o visconde do Bom Retiro”613.

Na ocasião, Pedro II, após passar 4 horas diante do leito de morte do amigo, teria dito: Bom

Retiro era “a consciência mais pura que tenho conhecido”614.

Como já dito anteriormente, Luís Pedreira do Couto Ferraz era Ministro dos Negócios

do Império quando da tumultuada presidência de Cunha Figueiredo em Pernambuco. Nas cartas

enviadas a este, Bom Retiro escrevia de forma afetuosa, muitas vezes sem formalismo,

chamando-o “amigo”. Pedia, inclusive, favores pessoais: “Diga-me agora o meu amigo. Como

vai o meu parente Antonio Joaquim de Magalhães Castro? ”615. A personagem citada era primo

611 CADENA, Paulo Henrique Fontes. Ou há de ser Cavalcanti, ou há de ser cavalgado: trajetórias políticas dos

Cavalcanti de Albuquerque (Pernambuco, 1801-1844). Recife: Editora Universitária da UFPE, 2013, p. 77. 612 FIGUEIREDO, José Bento da Cunha. Apud CADENA, op, cit., 2018, p. 225 613 HOLANDA, op. cit., 2010, p. 114. 614 BLAKE, op. cit., 1899, p. 448. 615 ANRJ. Carta de Luís Pedreira do Couto Ferraz a José Bento da Cunha Figueiredo. 25 nov. sem ano. Fundo

Visconde do Bom Conselho. Doc. 11.

158

de Bom Retiro, e estava matriculado na Faculdade de Direito, transferida de Olinda para Recife

em 1854. Preocupava a Couto Ferraz a timidez do rapaz, responsável pela reprovação dele na

Faculdade de Direito de São Paulo, donde transferiu-se para Pernambuco. A José Bento da

Cunha Figueiredo, solicitava: “o mande chamar, e indague se ele está de ânimo e segurança de

fazer o seu ato sem risco. É moço estudioso, muito bem educado [...], mas excessivamente

tímido. Assusta-me isto”. Na carta, Bom Retiro afirmava contar “com a bondade” de

Figueiredo, pondo o primo “à mercê de seus conselhos e proteção”. Pedia, ainda, que o

Presidente da Província, também professor da instituição, discretamente, conversasse com os

“lentes” do curso sobre a questão616.

O pedido de discrição não era por acaso: os cursos de Direito e Medicina do Brasil

estavam diretamente subordinados à pasta dos Negócios do Império, ministério ocupado,

justamente, por Bom Retiro quando da escrita da missiva. Portanto, não era prudente que se

tornasse pública a suposição de estar o Ministro do Império pressionando docentes para garantir

a aprovação de protegido seu.

A troca de favores e amabilidades entre Cunha Figueiredo e amigos não deixava de criar

obrigações mútuas, engendrando oportunidades de retribuição, inclusive na política: a

indicação para uma província, o apoio numa eleição, a concessão de graças honoríficas, a

nomeação para um ministério etc. Não por acaso, ao receber uma graça do Imperador,

Figueiredo entendeu ser ela fruto da intervenção de Bom Retiro junto ao imperial amigo. É o

que indicia carta do início de 1855. Nela, Bom Retiro negava a intervenção: “Vossa Excelência

nada tem que me agradecer pela condecoração, que o Imperador Dignou-se Conceder-lhe. Foi

ato da Imperial Munificência que muito deve satisfazer a V. Exa. pela importância”617.

Portanto, as relações tecidas por José Bento da Cunha Figueiredo não eram de se

menosprezar. Os elos com políticos influentes do Império oportunizavam a carreira política –

culminada com a eleição ao Senado, o posto de Ministro dos Negócios do Império, no Gabinete

de 25 de junho de 1875, liderado por Caxias, outro amigo poderoso, e com o título de Visconde

do Bom Conselho – e a do filho – vivendo à sombra do pai e recebendo favores dos amigos

dele, até morrer, a 3 de agosto de 1885, interrompendo a trajetória pública aos 52 anos. Destarte,

mesmo sofrendo depreciações públicas por seus erros administrativos, os Cunha Figueiredo

encontraram apoio suficiente para seguir em posições de destaque até o fim das suas vidas.

616 ANRJ. Carta de Luís Pedreira do Couto Ferraz a José Bento da Cunha Figueiredo. 14 nov. sem ano. Fundo

Visconde do Bom Conselho. Doc. 10. 617 ANRJ. Carta de Luís Pedreira do Couto Ferraz a José Bento da Cunha Figueiredo. 11 jan. 1855. Fundo Visconde

do Bom Conselho. Doc. 20. Infelizmente, não identifiquei a qual graça se referia o documento.

159

Mesmo o Marquês de Olinda, com manifestas críticas aos Cunha Figueiredo, estava

envolvido na trama a os favorecer. Como demonstrou Paulo Cadena, havia alianças – mesmo

que não perenes, pois eram suspensas quando os choques de interesse eram inconciliáveis –

unindo os três principais grupos políticos de Pernambuco oitocentista: o dos Cavalcanti de

Albuquerque, o dos Rego Barros e o do Marquês de Olinda. Tais grupos estavam sempre a se

articular ou desarticular ao sabor das circunstâncias618. Sendo Cunha Figueiredo do círculo de

apoio do Visconde de Camaragibe, Olinda, em muitas ocasiões, acabava sopesando as críticas

ao primeiro e favorecendo os interesses dele. Como diretor do curso jurídico situado em

Pernambuco, função que ocupou entre 1830 e 1839, Pedro de Araújo Lima deve ter sido o

responsável pela nomeação de Cunha Figueiredo, formado na instituição, para o cargo de lente.

Inclusive, a primeira nomeação de Figueiredo para uma presidência de província – Alagoas, em

1849 – deu-se por ocasião de Gabinete liderado pelo então Visconde de Olinda619.

Todavia, como vimos, no ano de 1862, o Marquês de Olinda tinha manifestado, ao

Imperador, desejar retirar Figueiredo da presidência de Minas Gerais, por considerá-lo

“fraco”620. Já o Imperador acompanhava com ressalvas o que fazia Figueiredo Júnior no Ceará,

onde grassava a epidemia. Ainda no mês de junho, Pedro II manifestara: “disse ao Olinda que

eu preciso examinar como procederam as autoridades do Ceará na invasão [do cólera]”621.

Talvez por isso, o nome de Figueiredo Júnior figurasse entre os cotados para substituição nas

províncias, como registrou o diário do monarca, a 15 de setembro de 1862622.

A exoneração de Figueiredo Júnior significaria vitória para o jornal Pedro II, dos

Fernandes Vieira. Ao que parece, comentários sobre a possível exoneração chegaram ao Ceará

em fins de setembro, como demonstram a imprensa e a correspondência do presidente. Lembro

ao leitor, que, quando da celeuma na Assembleia Legislativa Provincial a respeito do voto de

felicitações a Figueiredo Júnior pelos socorros prestados na epidemia, o presidente afirmou, ao

Marquês de Olinda, acreditar “que a Assembleia manterá comigo a melhor harmonia se tiver

certeza da minha conservação na Presidência”623.

Para desagrado dos Fernandes Vieira, a campanha de difamação empreendida não

rendeu o resultado almejado: a exoneração não se concretizou e José Bento da Cunha

Figueiredo Júnior governou o Ceará até o princípio de 1864, quando da substituição do

618 CADENA, op. cit., 2013, p. 202. 619 JAVARI, op. cit., 1889, p. 104. 620 PEDRO II. op. cit., 1956, p. 206. 621 Idem, p. 141. 622 Idem, p. 213. 623 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 23 dez. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 213, doc. 103.

160

Gabinete Olinda. Todavia, o pai de Figueiredo Júnior não teve o mesmo destino. No O Cearense

de 7 de outubro de 1862, a reprodução de decretos imperiais dava conta que o “Conselheiro

José Bento da Cunha Figueiredo” tinha sido exonerado, “a seu pedido”, da presidência de Minas

Gerais, junto aos presidentes de São Paulo, Pernambuco e Bahia624. A crer na notícia, a saída

de Figueiredo de Minas Gerais deu-se por mote pessoal. Mas, talvez, a expressão “a pedido”

fosse apenas uma forma mais honrosa e diplomática de esconder outra questão, a saber: a

determinação do Gabinete em substituir o “fraco” presidente de Minas Gerais.

Neste cenário, a manutenção de Figueiredo Júnior na província do Ceará podia ser uma

forma de evitar especulações sobre a imagem dos Cunha Figueiredo na Corte. De todo modo,

o pai era retirado da frente de uma província de primeira grandeza, enquanto o filho era mantido

noutra de menor importância. Em meio às críticas mordazes sobre a atuação de Figueiredo

Júnior na epidemia do cólera - amplamente publicizada na imprensa, reverberando, inclusive,

no Imperador –, a manutenção no cargo, talvez fosse, um prêmio de consolação, garantido pela

rede de apoio construída pelo seu progenitor.

De toda forma, como exibi ao longo do capítulo, a epidemia de cólera no Ceará de 1862

foi assunto amplamente apropriado, afetando a forma como o presidente da província e seu

governo foram lidos localmente e na Corte, ao ponto da manutenção do mesmo no cargo ser

posta em discussão no Paço Imperial.

No próximo capítulo, mostrarei como nas localidades cearenses surgiram conflitos

políticos, bem como oportunidades para a projeção e notabilização de autoridades e indivíduos,

especialmente delegados e membros das juntas de socorros montadas pelo governo da província

para auxílio aos pobres ameaçados pela epidemia, demonstrando como o cólera permaneceu

disponível aos usos políticos no Ceará de 1862.

624 O Cearense, n. 1545, 07 out. 1862, p. 2.

161

CAPÍTULO 3 - AUTORIDADES POLICIAIS, COMISSÕES DE SOCORROS E

DISPUTAS NO TEMPO DO CÓLERA

3.1 - “Eis mais uma autoridade que não merece o posto importante que lhe coube”

A 20 de abril de 1862, saiu, em Crato, a edição 284 do semanário O Araripe. Seus textos

davam conta do temor a cercar a região do Cariri, noticiando os mais de cem casos de cólera

diagnosticados em Icó e as primeiras dezenas de mortes lá registradas. As relações familiares e

comerciais fortemente estabelecidas entre o Cariri e Icó davam azo à preocupação, afinal, como

demonstrava o noticiário daquele sábado, a doença espalhava-se em direção ao sul da província,

haja vista a existência de casos confirmados na vila de Lavras.

A edição destacava a chegada de Antônio Manuel de Medeiros, médico enviado pela

Presidência do Ceará para coordenar os socorros nas duas comarcas do Cariri: Crato e Jardim.

O texto de capa d’O Araripe, inclusive, foi assinado pelo Dr. Medeiros. Nele, anunciava a

estadia em Crato “para prestar os socorros de minha profissão na quadra de perigos que está

iminente”. A população, assegurava, “sem distinção de pobres ou ricos”, poderia “com toda a

confiança, procurar-me em minha casa, ou em qualquer parte em que me ache, sem atenção de

horas: porque estarei sempre pronto a acudir a quem quer que reclame os meus serviços”625.

Após oferecer os préstimos, Antonio Manuel de Medeiros reproduziu conselhos,

anteriormente publicados por ele no Pedro II626, a respeito de remédios, regras de higiene e

procedimentos a serem adotados em caso de manifestação do cólera. Particularmente,

direcionava a fala ao que classificava como “pessoas abastadas”, com condições de adquirir nas

boticas as substâncias tidas como eficientes no combate aos sintomas da doença. Tais produtos

deveriam ser misturados com ingredientes disponíveis nas cozinhas. Por exemplo: para as

câimbras e resfriamento do corpo, pernas e espinha dorsal deveriam ser esfregadas com “uma

baeta embebida” em composto feito à base de vinagre, álcool retificado, cânfora pulverizada,

amoníaco, cantáridas em pó (feito à base de uma espécie de inseto), farinha de mostarda,

pimenta em pó e alho pisado627.

O Araripe não exagerou ao tornar a doença o mote central da edição 284. Poucos dias

após a publicação, o cólera manifestou-se no Crato, com as primeiras mortes sendo registradas

625 Araripe, n. 284, 20 abr. 1862, p. 1. 626 O texto tinha sido publicado no Pedro II, n. 29, 5 fev. 1862, p. 3. 627 Araripe, n. 284, 20 abr. 1862, p. 1.

162

a partir de 30 de abril628. O Araripe, inclusive, sofreu o impacto da chegada do “filho de

Ganges” à cidade: deixou de circular por cerca de quatro meses. Apenas em 23 de agosto de

1862, a edição 285 foi publicada, quando o surto declinou em Crato.

Os mais de cem dias de interregno entre as edições 284 e 285 d’O Araripe dão indícios

da força da epidemia no cotidiano da cidade: tempo carregado de tensão, no qual parte da

população – incluindo correligionários e correspondentes do jornal – ficou enferma ou morreu,

o medo alastrou-se e as atividades cotidianas sofreram sério revés. Na tipografia do semanário,

correu-se o risco de “não ter mais um compositor”629 apto a preparar os tipos para impressão.

O próprio redator, João Brígido dos Santos, sentiu os efeitos devastadores da doença: “Eu caí

ferido do mal e extenuado de trabalho de maneira, que reputo meu restabelecimento a uma

ressureição”630, afirmou em carta enviada ao O Cearense, em fins de julho de 1862. Algumas

décadas depois, em texto autobiográfico, Brígido lembrou o drama vivido: “No Crato [...] tive

o cólera, ficando uma múmia”631.

Passado o momento crítico, o número de retorno d’O Araripe seria marcado pelo pesar:

o editorial, tomando praticamente toda a capa do número 285, tratava dos “tristes

acontecimentos que enlutaram esta cidade durante os climatéricos dias de junho e julho”, pico

da epidemia. O tom do artigo era de pesar:

Quando de todas as partes nos ameaça a epidemia do cólera morbo, esse

enigma terrível proposto à humanidade, quantas vezes não perdemos a

esperança de um dia voltar a este posto, sobrevivendo à tamanha calamidade?

E quanto é temerosa a solidão que reina em torno de nós!

O monstro cruel devorou centenas de amigos, tão caros, como necessários, e

é imenso o vácuo que deixou, assim nas famílias, como nas fileiras das

políticas. Esta recordação nos é muito incômoda632.

Na sequência, elencava o nome de algumas pessoas devoradas pelo “monstro cruel”:

Mas temos a alma repassada de dó, e tamanha perda é a nossa preocupação de

muitos tempos, hoje, pois, retomando a pena, não podemos começar, se não

tributando uma lágrima à desventura de tantas famílias, tão infelizes hoje,

quanto outrora viviam afortunadas. Choremos com elas a perda de seus chefes.

[...] Não existem os nossos especiais amigos, o Sr. Antonio José de Carvalho,

membro do conselho diretor do Partido liberal desta comarca, negociante

abastado e cavalheiro leal; o Sr. Padre mestre Marrocos, sacerdote virtuoso,

inélito soldado da fé que afrontou a morte, cumprindo seu mandato sagrado

628 PINHEIRO, op. cit., 1963, p. 147. 629 Araripe, n. 285, 23 ago. 1862, p. 1. 630 O Cearense, n. 1535, 29 jul. 1862, p. 3. 631 BRIGIDO, João. O Ceará (lado cômico): algumas chronicas e episódios. Typographia Moderna a vapor –

Ateliers-Louis, Ceará, 1899, p. XIV. 632 Araripe, n. 285, 23 ago. 1862, p. 1.

163

[...]; o Sr. Joaquim Romão Baptista, um dos corações mais bem formados que

o Crato possuía; o Sr. Antonio Ferreira Lima Sucupira, tipo do pai de família;

os Srs. José Martiniano da Costa, Manoel Teixeira do Nascimento, Manoel

Sisnando Baptista, Manoel da Silva Carneiro, nomes caros a tantos respeitos;

o Sr. Manoel de Assis Pacheco, alma angélica, cujo sacrifício se diria capaz

ele só de expiar todas as culpas, que suscitaram tão medonho flagelo; os Srs.

capitão Antonio Correia Lima e Antonio Ferreira Lima, veteranos da

independência, o Sr. Leonardo de Chaves e Mello, bela inteligência, um dos

moços que mais honra faziam ao seu torrão pelo seus princípios de honra e de

justiça; os Srs. Venceslau, Rufino e Pedro Sátiro, moços cheios de esperança

e em bom caminho para chegarem a uma boa posição entre seus conterrâneos;

e finalmente uma infinidade de amigos, que nos desvanecíamos de contar!633

As pessoas relacionadas eram gradas no lugar: comerciantes, políticos, um sacerdote,

proprietários de terra, entre outros “nomes ilustres nesta terra, pelos seus serviços e pelas

afeições que deixaram”. O editorial não poupou adjetivos aos finados, “que eram nossos mais

caros amigos” e “agora [são] o pasto dos vermes!”634. Não por acaso, entre os nomes listados,

a maior parte era de pessoas do círculo político-social d’O Araripe, portanto, ligadas ao Partido

Liberal. O relato do semanário, como de praxe, voltava-se para o grupo que representava: a ele

interessava exaltar os pares mortos. A ideia do cólera como agente democrático, sugerida pela

fonte, é um tanto equivocada, pois esconde o fato de que a maior parcela de vítimas do “monstro

cruel” não se encontrava entre os “caros e necessários” indivíduos elencados pelo periódico.

Na lista publicada, não há alusão a mulheres, homens pobres ou escravizados. Nas

páginas d’O Araripe, não houve espaço para lamento da morte dos escravizados Calisto, Félix,

Francisco, Raimundo, Damião, Tertuliano, Benedito e João, muito menos para as cativas

Tereza, Maria, Delfina, Rita, Vitorina, Faustina, Merenciana, Benedita, Felizarda e Suzana,

nem mesmo para a forra Vicência Maria d’Anunciação635. As estimativas de mortes em Crato

por cólera em 1862 variaram entre 760636 e 1100637 pessoas. Malgrado tais números, apenas

quinze foram nomeadas no editorial da edição 285 d’O Araripe. A grande maioria dos nomes

dos coléricos mortos foi silenciada no jornal, mantendo-se fiel ao lugar social de fala, marcado

pelo partidarismo político e pelo viés patriarcal da sociedade oitocentista. Importava apenas

elencar homens proeminentes levados pelo cólera: “chefes” políticos, de negócios e de famílias.

Se a edição de retorno d’O Araripe destacou os defuntos com quem a redação

simpatizava, não deixou também de atacar desafetos, usando o cólera como mote. O alvo

633 O Araripe, n. 285, 23 ago. 1862, p. 1. 634 O Araripe, n. 285, 23 ago. 1862, p. 1. 635 Os nomes citados são de alguns escravizados e libertos registrados no Livro dos Coléricos de Crato, que

registrou parte dos sepultamentos ocorridos no cemitério criado por conta da epidemia. DHDPG. Livro dos

Coléricos da Paróquia de Nossa Senhora da Penha de Crato. 636 O Cearense, n. 1568, 20 mar. 1863, p. 1. 637 O Araripe, n. 287, 06 set. 1862, p. 2.

164

principal do dia foi o delegado de polícia da vila de Milagres, o tenente coronel da Guarda

Nacional, Manoel de Jesus da Conceição Cunha, a quem o jornal Pedro II elogiou efusivamente

pelas pretensas ações realizadas em uma aldeia indígena, localizada na serra da Cachorra Morta,

em Milagres638. No artigo “O Sr. Manoel de Jesus e o Cólera”, o semanário cratense reproduziu

parte do que a folha conservadora da capital publicou, mas com o propósito de desconstruí-la

linha a linha. Para começar, provocava: em “certas épocas não falta quem queira vender o seu

peixinho a bom dinheiro”, pois Manoel de Jesus “mandou escrever no Pedro 2º um panegírico

de seus serviços” no qual, com “gaiatice, quer ele disputar as honras de filantropo”639.

O suposto “panegírico” fora publicado a 28 de julho de 1862, quando o cólera ainda

mostrava força em algumas localidades do Cariri. A coluna “Correspondência” do Pedro II

veiculou carta vinda de Milagres, assinada por pseudônimo deveras sugestivo: O Veritas.

Depois de traçar apanhado sobre a situação sanitária da província, afirmava que a doença não

tinha adentrado a vila de Milagres, mas atingira seu município. Por isso, censurava a presidência

da província por não ter enviado os “indispensáveis socorros a fim de que o mal produzisse

menos calamidades”640, corroborando, assim, o padrão editorial do Pedro II, discutido no

capítulo anterior, de usar a epidemia para agredir o presidente Figueiredo Júnior. Continuava a

mensagem: apenas a “Providência Divina” elucidava o fato da vila ter sido poupada, a despeito

dos seis meses de cerco vividos, desde a manifestação do cólera em Cajazeiras, na Paraíba, com

638 A aldeia era composta por índios Chocó. Através de relatos deixados por membros da Comissão Científica de

Exploração – instituída em 1856 pelo IGHB e pelo Governo Imperial, que percorreu o Ceará entre 1859 e 1860 –

é possível levantar algumas informações sobre o aldeamento. Francisco Freire Alemão, médico, naturalista e

presidente da comissão, conversou em Fortaleza com membros da família de Franklin Lima. Um dos seus

antepassados teria atuado como “capitão de bandeira desses índios”. A família, ainda, teria usado duas

“indiazinhas” da aldeia no serviço doméstico, demonstrando como havia exploração da mão de obra indígena,

aproximando-se, inclusive, da escravidão: “destas indiazinhas em casa; uma criou-se muito gordinha, era muito

inteligente, e servia muito bem, e fugiu de casa aqui na Fortaleza, quando para aqui vieram, provavelmente

aconselhada; a outra logo que chegou à casa começou a cobrir-se de um fuá (caspa) e a emagrecer até que morreu,

o que foi atribuído a mudança de alimentação”. Os “50 ou 60” indígenas existentes em 1860 em Milagres, segundo

Freire Alemão, tinham advindo de “uma nação que habitava por Piancó, Brejo Verde e Pajaú de Flores”. Tais

localidades, da Paraíba e Pernambuco, localizavam-se nas proximidades da fronteira com o Ceará. A nação

conservava-se praticamente “inteira” por volta de 1816, quando foi “aldeada pelo Padre Frei Ângelo, que ali fez

uma grande casa quadrada com pátio dentro, onde ele os doutrinava”. Após o falecimento do frei, “cessou esse

ensino” e os índios passaram a ser acusados de causar “grandes estragos nas fazendas matando-lhes os gados”,

estimulando a perseguição por parte dos proprietários. Freire Alemão – usando informações repassadas por

Gonçalves Dias, poeta e membro da Comissão Cientifica de Exploração, à frente do setor etnográfico dela –,

registrou que os conflitos com os fazendeiros se somaram com as agruras da seca de 1845, levando a migração

dos indígenas para o Piauí, “sendo aí também perseguidos, debandados e mortos muitos”. Os remanescentes do

grupo teriam retornado ao Ceará, dando origem a aldeia no “lugar existente hoje” (ALEMÃO, Francisco Freire.

Índole e costumes dos indígenas. Anais da Biblioteca Nacional. Vol. 81. 1961, p. 314). Para Gonçalves Dias, quase

inexistiam indígenas “puros” no Ceará. A exceção estava justamente nos poucos Chocó existentes em Milagres.

KODAMA, Kaori. Os índios no Império do Brasil: a etnografia doo IHGB entre as décadas de 1840 e 1860. Rio

de Janeiro: Editora Fiocruz; São Paulo: Edusp, 2009, p. 285. 639 O Araripe, n. 285, 23 ago. 1862, p. 2. 640 Pedro II, n. 170, 28 jul. 1862, p. 3.

165

quem fazia fronteira. Nestes termos, a depender do tempo de envio, por parte do governo

provincial, de uma “dúzia de drogas e uns dois médicos”, nas comarcas vizinhas já teriam

“perecido todos” muito antes da chegada dos socorros oficiais.

Na sequência, rasgava elogios a Manoel de Jesus, apresentado como “caridoso

proprietário”. Uma vez que os recursos oficiais faltaram, os proprietários teriam aberto “suas

bolsas em prol dos desvalidos acometidos da peste; já socorrendo-os com remédios que a suas

custas mandaram comprar em tempo, já fornecendo alimentos, já mesmo tratando [possíveis

adoentados]”. Sobre Manoel de Jesus, destacava o protagonismo no socorro aos índios

habitantes da aldeia situada na serra da Cachorra Morta, onde o cólera manifestou-se:

O nosso distinto amigo tenente coronel Manoel de Jesus, como outros mais

membros proeminentes de sua família, tem praticado atos mui meritórios e

prestando-se o mais que é humanamente possível, a providenciar, para que,

nada falte aos infelizes. Aos próprios índios tem ele fornecido remédios,

alimentos, baetas, roupas; de forma que, nunca esses índios, tiveram quem os

socorresse e por eles velasse. O médico Dr. Medeiros, a quem nosso amigo

chamou no Crato, para tratar deles, foi testemunha do quanto os índios se

achavam contentes com o bom tratamento que lhes prestava o nosso amigo641.

O Pedro II, portanto, representava o tenente coronel, não por coincidência,

correligionário do Partido Conservador, de forma positiva: Manuel de Jesus seria benemérito e

filantrópico. O destaque central da carta estava no elogio ao modo como teria amparado aos

índios de Cachorra Morta. Como testemunha da ação caritativa da personagem no auxílio aos

“desvalidos” indígenas, o texto indicava o Dr. Antônio Manoel de Medeiros. Ao citar o

ocupante do posto principal no combate à epidemia no Cariri, o missivista buscava legitimar as

afirmações atinentes aos méritos de Manoel de Jesus da Conceição Cunha.

A publicação trouxe, ainda, duras palavras contra certo “gênio do mal, lá do Crato”, que

teria qualificado o delegado de Milagres como “desumano”. Nas palavras d’O Veritas: “Há

seres tão miseráveis e degradantes que, só com o bico da bota, se deve responder”. Na busca

por detratar o crítico de Manoel de Jesus, o texto veiculado no Pedro II afirmava: “Esse

audacioso caboclo tem horror a tudo quanto há de mais grado! É filho de pai! Mas, pior!... é um

composto de maldade!”642. Numa sociedade escravocrata e marcada por critérios de distinção

social, na qual “não havia limites para o preconceito de cor”643, as insinuações impressas no

641 Pedro II, n. 170, 28 jul. 1862, p. 3. 642 Pedro II, n. 170, 28 jul. 1862, p. 3. 643 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império. In. ALENCASTRO, Luiz Felipe

de (org.). Império: a corte a modernidade nacional (Coleção História da Vida Privada, vol. 2). São Paulo:

Companhia das Letras, 1997, p. 86.

166

Pedro II, provavelmente, impactaram ao destinatário das críticas. Elas divulgavam a público

amplo um estigma, ao misturar elementos morais com a pretensa origem “cabocla” do

adversário. Como demonstrou Ana Sara Cortez, a denominação “caboclo” figurava junto a

outras, tais como “cabra”, “mulato” e “pardo”, classificando diferentes tonalidades de pele

existentes no Cariri da segunda metade do oitocentos, região onde a quantidade de pessoas

qualificadas como brancas e pretas era bem pequena644. Desta forma, ao citar a palavra

“caboclo”, O Veritas utilizava termo amplamente difundido no Ceará para desqualificar o

adversário por sua suposta origem paterna e tom de pele.

Mas a quem se dirigiam tais ataques? A elucidação sobre a identidade da personagem é

dada por outras edições do Pedro II. Tratando das disputas eleitorais de Crato em 1863, o diário

“carcará” citava “insultos e ameaças do caboclo João Brígido”645. Em 1868, tecendo críticas

sobre nomeações e gratificações de funcionários públicos, o Pedro II citou mais uma vez o

“caboclo João Brígido”646. Portanto, o “gênio do mal do Crato” era um dos liberais mais

aguerridos do Ceará, especialmente por atuar como redator d’O Araripe. Inclusive, em agosto

de 1862, o Pedro II definiu Brígido como “o chimango mais ardente de toda a província”647.

Não encontrei qualquer outro indício documental apontando para a suposta origem

mestiça de João Brígido dos Santos. Acredito que ela não escaparia de ser documentada, direta

ou indiretamente, tendo em vista a atuação jornalística e política da personagem, abrangendo

meados do século XIX até o ano de sua morte, em 1921, os livros de memória e história que

publicou e os perfis e estudos escritos sobre ele em instituições como o Instituto do Ceará e

universidades648.

Independente da veracidade, ou não, das insinuações do Pedro II a respeito de João

Brígido, fica claro: elas esquentavam as disputas existentes na imprensa do Ceará em 1862. Por

isso mesmo, O Araripe n. 285 expôs versão diametralmente oposta à descrita pelo O Veritas a

respeito do protagonismo do delegado de Milagres. Como estratégia para reforçar a opinião

contrária sobre Manoel de Jesus - demonstrando, também, a circulação das notícias para além

do Ceará -, O Araripe reimprimiu correspondência divulgada no Rio de Janeiro, pelo jornal

Correio Mercantil, a 9 de junho de 1862. Narrando a situação epidêmica em várias localidades

644 CORTEZ, Ana Sara Parente Ribeiro. Cabras, caboclos, negros e mulatos: a família escrava no Cariri Cearense

(1850-1884). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2008, p. 48. 645 Pedro II, n. 239, 21 out. 1863, p. 3. 646 Pedro II, n. 107, 17 mai. 1868, p. 2. 647 Pedro II, n. 181, 9 ago. 1862, p. 2. 648 São exemplos de produções sobre a trajetória política e intelectual de João Brígido dos Santos:

MONTENEGRO, João Alfredo. João Brígido: uma revisão histórica. Revista do Instituto do Ceará. Tomo CXIII.

Fortaleza, 1999, p. 173-185; RIOS, Renato, op. cit., 2013; CARVALHO, op. cit., 1969.

167

cearenses, destacava Milagres, onde o cólera “tinha feito várias vítimas, e uma bem sensível na

pessoa do homem mais filantropo daquele lugar, o capitão Manoel Joaquim de Sousa, diretor

de uns índios que ele domesticou e criava com o desvelo de pai”649.

Após a declaração acima - que não deixa de indiciar a visão patriarcal e preconceituosa

existente à época sobre os indígenas, animalizados ao serem descritos como “domesticados” e

“criados” pelo diretor -, o Correio Mercantil informava: quando dos primeiros casos do cólera

na aldeia, Manoel Joaquim de Sousa “pediu auxílio ao delegado, um tal Manoel de Jesus

Conceição Cunha, que aliás tem dinheiro do governo para auxiliar os índios”. Malgrado o apelo,

a autoridade policial, “por ódio talvez ao Sousa, não quis dar sequer um prato de arroz” aos

indígenas. Por conta disso, “parte dos índios morrem e com eles o seu benfeitor, vítima do seu

zelo”. Diante de tais circunstâncias, o aldeamento corria o risco de esfacelamento: “O resto da

aldeia abandona [o local] e volta às brenhas[,] à vida selvática, chorando o homem a quem

chamavam seu pai”650.

Observando as datas de publicação dos textos do Correio Mercantil (9 de junho de

1862) e do Pedro II (28 de julho de 1862), é possível levantar uma hipótese: a correspondência

divulgada pelo último funcionou como resposta às acusações impressas no jornal da Corte.

Cerca de um mês e vinte dias separaram a divulgação das duas versões. Ao Pedro II,

provavelmente, importava pôr em circulação opiniões positivas a respeito do caso, afinal, o

correligionário Manoel de Jesus foi enxovalhado na folha carioca. Aliás, como o texto do Pedro

II foi assinado por pseudônimo (O Veritas), talvez tivesse por autor o próprio Manoel de Jesus,

preocupado em propagar a sua “verdade” sobre os acontecimentos quando da epidemia em

Milagres. Por outro lado, o fato da publicação do Correio Mercantil ter sido reimpressa no

interior do Ceará, pelo O Araripe, quase dois meses após a publicação original, também indicia

a forma pela qual os liberais cearenses ressoaram as acusações sobre o delegado de Milagres.

Após expor as duas versões da história, O Araripe afiançava: uma consulta a Antonio

de Medeiros - citado pelo Pedro II como testemunha do desvelo do delegado de Milagres no

trato aos índios - era necessária para elucidar a questão, pois ele:

deve saber quem o chamou a Milagres e se [Manoel de Jesus] tratava de salvar

os índios. Ele deve ter sido testemunha desse contentamento, que o senhor

Manoel de Jesus diz sentiram os pobres selvagens, em vista da humanidade

com [que] ele os tratava. Dirá quem lhes forneceu baetas, remédios etc. e se

mesmo a ele algum obséquio se fez651.

649 Correio Mercantil, n. 158, 9 jun. 1862, p. 1. 650 Correio Mercantil, n. 158, 9 jun. 1862, p. 1. 651 O Araripe, n. 285, 23 ago. 1862, p. 3.

168

Na visão d’O Araripe, a eventual resposta do médico sobre a questão não seria

auspiciosa para o delegado: “O sr. Medeiros tudo fez, o sr. Manoel de Jesus, que nem sequer

gastou o dinheiro que desde 1856, tinha em seu poder, faz[-se] de herói!”. Este era, então,

acusado de nunca ter “posto seus pés na aldeia da Cachorra Morta”, enquanto o diretor dela

“perecia, vítima de sua dedicação”. Inimigo declarado de Manoel Joaquim de Sousa – uma das

principais lideranças liberais no Cariri, a quem O Araripe qualificara, em outra coluna do

número 285, como “o civilizador dos índios, o chefe extremo do partido liberal” em Milagres652

-, Manuel de Jesus teria agido de forma vil mesmo diante do cadáver daquele, pois “lhe vedou

a sepultura no cemitério dos coléricos”, necrópole erguida pelo mesmo Manoel Joaquim de

Sousa e parentes. Uma vez enterrado o corpo em solo não consagrado, Manoel de Jesus ainda

ordenara a exumação do rival: “O nosso prestante amigo foi inumado em uma mata, e isto

acabava de ter lugar, quando o sr. Manoel de Jesus ordenava ainda que o levasse para mais

longe!”. Após tão graves acusações, ironizando pela última vez o pseudônimo O Veritas, O

Araripe arrematou: “Ódio e medo ditavam ao sr. Manoel de Jesus o procedimento mais

desonroso. A verdade é o que temos dito, e antes de nós o Correio Mercantil”653.

Malgrado o esforço do Pedro II em defender Conceição Cunha, as versões negativas a

respeito dele continuaram a vicejar. A 13 de setembro de 1862, O Araripe tratou o cólera como

o “inimigo traiçoeiro”, fazendo mais de cento e quarenta vítimas nos subúrbios de Milagres.

Em quadra tão ameaçadora, dizia o artigo, o presidente do Ceará tinha “mandado para esta vila

bastante remédios e dinheiro”. Todavia, os socorros remetidos estavam sob guarda do

“celebérrimo delegado Manoel de Jesus”. A autoridade, disparava O Araripe, encontrava-se há

vários dias no distrito de Coité, para realizar alguns inventários, trabalho lucrativo, pois a cada

inventário era cobrada taxa de 200$000 a 300$000, valor dividido entre o delegado, o escrivão

e “outro espoleta” que os acompanhava. Desta forma, enquanto diferentes distritos clamavam

diariamente por remédio, o delegado andaria longe, com a “chave da ambulância nos bolsos”.

O próprio médico enviado para tratar dos acometidos pela doença ficara sem nada poder fazer,

pois os medicamentos permaneciam trancados na vila. Para a publicação, a atitude de Manoel

de Jesus tinha propósito escuso. Ele agiria de forma calculada, esperando assenhorear-se dos

recursos e medicamentos enviados, como já teria feito sete anos antes, quando o cólera ameaçou

invadir o Ceará:

[...] entendo que o sr. Delegado quererá fazer com os remédios e dinheiro do

governo, o que fez em 1856 com 200$ que o governo mandou para os pobres,

652 O Araripe, n. 285, 23 ago. 1862, p. 1. 653 O Araripe, n. 285, 23 ago. 1862, p. 3.

169

e como a epidemia não se desenvolvesse naquele tempo[,] o sr. Delegado

abocou esta quantia até ontem, fazendo com ela o seu negócio654.

Para além das páginas da imprensa, a fama de Manoel de Jesus da Conceição Cunha foi

registrada em outros documentos. Citado tanto no Pedro II quanto n’O Araripe como

testemunha das versões díspares atinentes ao delegado de Milagres, o médico Manoel Antônio

de Medeiros, em relatório apresentado à Presidência do Ceará, registrou informações

interessantes. Um dia após chegar a Milagres, a 15 de abril de 1862, Medeiros dirigiu-se à

localidade Cachorra Morta, onde encontrou “quatro índios afetados do cólera morbo”,

medicando-os e “deixando-os fora de perigo”. Antes de deixá-los, o médico passou instruções

ao “mestre de rezas da aldeia, única pessoa de certas habilitações” disponível, com quem deixou

“alguns medicamentos para ir socorrendo aos selvagens, que se achavam em um estado de

miséria indizível, quase nus, e sem alimento”, salvo “algum milho verde, algum feijão”,

substâncias, opinava, “por demais nocivas à alimentação de um doente, e mesmo perigosa para

os que não sofrem, quando no lugar tem-se manifestado uma epidemia”655.

Quando da passagem pela aldeia, Medeiros não encontrou o diretor dos índios, “o major

Manoel José de Sousa, homem filantropo, que mais logo vindo em socorro de seus tutelados,

pereceu no meio deles, [junto] com o mestre [de rezas] da aldeia, ambos vítimas de seu zelo e

dedicação”. No retorno a Milagres, o médico requisitou à comissão sanitária da vila e ao

“delegado de polícia [Manoel de Jesus]” o envio de “socorros aos índios, procurando fazer-lhes

compreender, quanto a miséria podia agravar a sorte daqueles infelizes”. Não obstante os

apelos, “nada, porém, ou quase nada se fez neste sentido, e tanta apatia não deixou de contristar-

me”656. Pelo relatório de Antonio Manoel de Medeiros, pode-se deduzir que o texto d’O Veritas,

publicado no Pedro II, estava longe de ser verossímil, corroborando a versão defendida pelo O

Araripe.

A repercussão a respeito da atuação de Manoel de Jesus no socorro à aldeia Cachorra

Morta chegou ao centro do Império. O redator d’O Araripe, João Brígido, tão duramente

admoestado pela imprensa conservadora do Ceará, escreveu diretamente ao Imperador,

narrando a sua versão dos acontecimentos. Em 18 de julho de 1862, enquanto despachava com

o Marquês de Olinda, o monarca manifestou a necessidade de “examinar como procederam as

autoridades do Ceará na invasão [do cólera]”, pois lera “carta do Dr. João Brígido, do Crato a

654 O Araripe, n. 288, 13 set. 1862, p. 4 655 MEDEIROS, op. cit., 1863, p. 5. 656 Idem, p. 6.

170

respeito do procedimento do delegado de Milagres Manuel de Jesus por ocasião da moléstia e

morte de Manuel José de Sousa protetor dos índios de Cachorra-Morta”657.

Talvez a circulação de notícias negativas sobre as posturas de Manoel de Jesus na

conjuntura epidêmica, propagandeada pela imprensa liberal cearense, fosse um dos motivos

para a exoneração dele do cargo de delegado de Milagres, em 22 de junho de 1863658. Todavia,

ele retornou ao posto poucos anos depois. Continuou, inclusive, a produzir polêmicas no trato

dos indígenas sobreviventes do cólera. Em 1867, mesmo ano no qual recebeu a Ordem da

Rosa659, foi acusado de atacar ilegalmente a aldeia. Antônio Lopes da Silva, juiz municipal de

Milagres, contou, em relato enviado ao vice-presidente do Ceará, Sebastião Gonçalves, a

ocorrência de “grave conflito” na aldeia Cachorra Morta, promovido por José Ignácio da Silva,

fazendeiro e inspetor de quarteirão, com apoio de força policial liberada pelo delegado Manoel

de Jesus da Conceição Cunha. Os responsáveis pelo ataque teriam justificado a ação alegando

a busca de armamentos na aldeia, fato negado por Antonio Lopes da Silva, para quem as armas

em mãos dos índios eram “finas[,] próprias de caçar de que fazem esses infelizes profissão e

parte de sua alimentação”660.

A ofensiva esconderia outros interesses. O relato de Antônio Lopes da Silva trazia cópia

de missiva escrita pelo juiz de direito, Américo Militão de Freitas Guimarães, para quem “o

lamentável acontecido” foi “crime premeditado” com vistas a “exterminar a esses infelizes

[índios]”. Por trás da ação, estaria o fato da serra da Cachorra Morta ser “composta de terrenos

próprios para a agricultura”, sendo usada, também, para criação de gado por parte de “muitos

fazendeiros”, prejudicando a agricultura da aldeia. Por ordem da Câmara Municipal, os

criadores foram obrigados a tirar os rebanhos da área. Não obstante, José Ignácio da Silva “não

quis retirar seus gados”, com a “benevolência de certas autoridades”, “menosprezo da lei e em

prejuízo dos índios”. Assim, continuou a criação, “danificando a lavoura dos índios”, que

revidaram maltratando “algumas rezes daquele”. Por conta disto, o criador desejava “reduzir a

cinzas essa pequena aldeia”661. Em conluio com o “Tenente Coronel e Delegado de Polícia”

Manuel de Jesus, José Ignácio partiu com “força de setenta e duas praças”, na madrugada de 28

657 PEDRO II, op. cit., 1956, p. 141. 658 A exoneração foi divulgada na Gazeta Official, n. 85, 2 jul. 1863, p. 1. 659 O nome do delegado figurava na lista de cearenses condecorados em outubro de 1867, conforme o Pedro II, n.

237, 26 out. 1867, p. 1. 660 ICC. Cópia - Reservado. Juízo Municipal da Vila de Milagres. 20 jul. 1867. Manuscritos diversos, século XIX.

Disponível no site: https://institutoculturaldocariri.com.br/wp-

content/uploads/2018/09/manuscritusilovepdf_merged.pdf. Acesso a 16 jun. 2019. 661 Idem.

171

de abril de 1867, invadindo a aldeia, sem nada comunicar ao responsável por ela, Manoel

Fortunato de Souza, não por acaso, filho do ex-diretor vitimado na epidemia de 1862662.

Na opinião do juiz de direito, o ataque feria as “disposições da lei/decreto nº 426 de 24

de julho de 1845663 e os princípios da humanidade”. A força militar teria “invadido e violado

choupanas”, cometendo “toda a sorte de excessos nas famílias”. Um dos índios, chamado

Mariano, foi preso e conduzido amarrado para fora da aldeia. Quando quatro índios apareceram,

solicitando “a soltura de seu companheiro”, foram “espingardeados”, resultando na “morte de

um índio e ferimentos graves e leves em outros, e também a morte de um soldado, vítima não

dos índios, mas das balas de seus próprios companheiros”664.

Segundo pronunciamento feito na Assembleia Legislativa do Ceará, em 27 de novembro

de 1867, publicado pelo O Cearense, outro motivo moveu a agressão aos índios. Nas palavras

do deputado Livino Lopes de Barros e Silva, Manoel de Jesus era “um dos heróis dos quatorze

anos do domínio conservador, acumulando o cargo de delegado e de substituto de juiz

municipal, durante todo este período”. O poder concentrado teria reduzido “o termo de Milagres

a uma feitoria sua”, onde “perseguiu e massacrou tanto o partido liberal daquela importante

localidade” que “quase o aniquila”. Os adjetivos dados pelo deputado ao delegado de Milagres

eram fortes: “assassino, ladrão e prevaricador”665.

Para Livino Lopes, o conflito com os índios ocorrido em 1867 revelava trama visando

atingir “nosso prestimoso capitão Francisco José de Sousa e a seu sobrinho, Manoel Fortunato

de Sousa, o diretor da aldeia Cachorra Morta”. Nesta interpretação, Manoel de Jesus preparou:

uma escolta de setenta e tantos homens armados e bem municiados e manda à

Cachorra Morta cercar a aldeia dos índios, a fim de que os nossos amigos não

consentindo na prisão dos mesmos se opusessem e fosse motivo para serem

processados, e talvez assassinados, e por conseguinte inutilizados para a

eleição666.

662 ICC. Cópia - Reservado. Juízo Municipal da Vila de Milagres. 20 jul. 1867. Manuscritos diversos, século XIX. 663 A lei em questão trazia o regulamento acerca dos aldeamentos indígenas e missões de catequese. Ela instituía

os cargos que organizariam as aldeias: “o de diretor-geral dos Índios para cada província, nomeado pelo imperador

e responsável por todas as informações das aldeias; o do diretor do Aldeamento que deveria ser nomeado para

cada núcleo pelo presidente da província e ficaria a cargo da administração local do aldeamento; o do tesoureiro e

almoxarife, a ser indicado pelo diretor da Aldeia para atuar como contador e escrivão; o de missionário e o de

cirurgião” (KODAMA, op. cit., 2009, p. 250). O regulamento incentivava a demarcação e o registro de terras de

aldeias. Todavia, a Lei de Terras, promulgada em 1850, assumiu ambiguidade ao tratar da posse efetiva da terra,

pois condicionava sua existência à observação do “grau de civilização” dos índios. Tais questões davam

“transitoriedade” aos aldeamentos, na medida em que a condição indígena era definida a partir do “estado ainda

não alcançado de civilização, e não a um atributo de suas identidades” (Idem, p. 258-259). O texto legal pode ser

consultado no link: http://legis.senado.leg.br/norma/387574/publicacao/15771126. Acesso a 18 jun. 2019. 664 ICC. Cópia - Reservado. Juízo Municipal da Vila de Milagres. 20 jul. 1867. Manuscritos diversos, século XIX. 665 O Cearense, n. 2522, 8 dez. 1867, p. 1. 666 O Cearense, n. 2522, 8 dez. 1867, p. 2.

172

Portanto, seriam as disputas político-eleitorais entre conservadores e liberais um dos

motivos do conflito. Em meio às mesmas, os indígenas tornaram-se alvos sensíveis: “De fato,

[...], chegada a escolta à aldeia dos índios, sem que eles fossem criminosos, e nem estivessem

no caso de serem recrutados, espancam homens e mulheres, prendem os que podem e

conduzem-nos para Milagres”667.

Diante do exposto nas últimas páginas, é provável que o não empenho do delegado de

Milagres no socorro à aldeia Cachorra Morta, quando do surto de 1862, refletisse tanto o

interesse de proprietários rurais em tomar posse da terra onde ela localizava-se, quanto os

conflitos políticos internos do município, afinal, os índios estavam sob responsabilidade do clã

Sousa, formado por políticos liberais, os maiores opositores do delegado de polícia.

Os casos envolvendo os Chocó corroboram, também, os estudos que mostram como

eram vulneráveis os aldeamentos no Brasil oitocentista, pois sujeitos ao colapso pela ação de

epidemias, má atuação de diretores e autoridades públicas ou conflito constante com brancos,

interessados nas terras das aldeias e no uso da mão de obra indígena668.

As polêmicas envolvendo Manoel de Jesus da Conceição Cunha são exemplares para o

entendimento de como a politização do cólera levada a público pela imprensa chegou também

às autoridades policiais que ocupavam postos nas localidades cearenses. Se, como exibi no

capítulo anterior, o próprio presidente da província viu-se envolvido em fortes contendas,

delegados e subdelegados também viram seus nomes e feitos frente ao cólera estamparem as

páginas dos jornais. As autoridades policiais foram das mais atacadas, pela imprensa, durante

a epidemia de 1862. Em outubro daquele ano, por exemplo, O Araripe publicou:

Boas novas – É chegado o impagável sr. Francisco José de Pontes Simões, o

subdelegado deste distrito, que andou refocilando, durante o cólera, pelo

termo da Barbalha. A pátria agradecida lhe deve remuneração do grande

serviço, que prestou à humanidade, favorecendo esta cidade com sua ausência

durante aqueles maus dias. Com efeito, aguentar o cólera e o sr. Xico, era uma

dupla calamidade. A natureza que lhe pregou errados os dois olhos, cravando-

lhe um mais baixo, outro mais acima, com vistas para este bordo e bom bordo,

quis em compensação dotá-lo de uma saúde de Hércules. Ele veio gordo e

rechonchudo prometendo prestar bons serviços; bem entendido, se não se falar

mais em cólera669.

Com palavras mordazes, o semanário anunciava, em tom artificialmente alvissareiro, o

retorno de Francisco José de Pontes Simões ao Crato, onde atuava como subdelegado de polícia.

667 O Cearense, n. 2522, 8 dez. 1867, p. 2. 668 KODAMA, op. cit., 2009, p. 262. 669O Araripe, n. 291, 19 out. 1862, p. 3.

173

Segundo o jornal, a autoridade mantivera-se fora da cidade entre fins de abril e agosto de 1862,

período marcado pelo cólera. No ímpeto de representar “Xico” como covarde, O Araripe

descrevia-o refocilado, gordo e rechonchudo no regresso ao Crato, em clara antítese com os

sintomas causados pelo cólera, fazendo dos vitimados esqueletos, ante o espetáculo mórbido

do vômito e evacuações intestinais incontroláveis. Sem pudores, o texto usava até uma provável

má formação facial do subdelegado – um dos seus olhos seria mais baixo que outro – para fazer

contraste com a “saúde de Hércules” do mesmo, insinuando ser a suposta robustez

antagonicamente equivalente à covardia e deficiência física: o vigor corporal seria, portanto, o

oposto do perfil moral, mais próximo à imperfeita fisionomia do subdelegado.

Após proferir palavras tão depreciativas, o texto jornalístico agradecia a ausência de

Francisco José, adjetivando-a como “grande serviço prestado à humanidade”, pois conviver ao

mesmo tempo com a epidemia e o subdelegado seria desgraça demais, “uma dupla calamidade”

para a população. Carregada de ironia, a nota reforçava outros textos do periódico com

acusações de que, por medo, Francisco José fugira, abandonando, ao estourar do surto

epidêmico, as responsabilidades enquanto agente público. Segundo O Araripe, o subdelegado

devia ser condecorado com a Ordem de Cristo, por ter sumido durante a quadra pestilenta:

Pergunta-se ao Sr. subdelegado de polícia Francisco José de Pontes quando

pretende voltar a seu distrito: dá-se-lhe [sic] a grata notícia de que o cólera já

é passado, e agradece-se a sua ausência por tanto tempo, a qual é um serviço

tão meritório, que só por ele se lhe devia pregar ao peito um habito de

Cristo670.

Outro subdelegado foi alvo das críticas d’O Araripe. Em fins de setembro de 1862, o

jornal publicou, na primeira página, texto intitulado “MAIS UM FUGIDO”. Nele acusava

Felisberto Gomes de Amorim, “digno subdelegado de polícia de S. Anna do Brejo-Grande” –

atualmente, a cidade de Santana do Cariri – de integrar a lista de autoridades que fugiram das

localidades afetadas pelo cólera, anteriormente publicada pelo semanário. Tendo a redação

esquecido de mencionar Felisberto antes, “agora o fazemos para sua glória”. O subdelegado

teria “abandonado a povoação, logo que a epidemia se desenvolveu”, deixando em tal estado

de “anarquia, que os cadáveres ficaram insepultos muito tempo e seriam devorados pelos cães,

a não vir de seu sítio o Sr. Juiz [de Paz, Pedro] Onofre [de Farias], com pessoas, ajudar ao Sr.

[José Joaquim] Cidade e outros que, a sós faziam frente à calamidade”. Segundo O Araripe,

670O Araripe, n. 285, 23 ago. 1862, p. 4.

174

apesar da epidemia ter findado na área, Felisberto, “ainda tomado de pânico”, permanecia “não

somente fora do distrito, mas até da comarca”. O arremate do texto reforçava a crítica:

Eis mais uma autoridade que não merece o posto importante que lhe coube

para essas e outras ocasiões de supremo perigo, onde o homem filantropo e

corajoso soube ilustrar o seu nome, adquirir as simpatias dos homens sensatos

e bons de todos os partidos. Entretanto, quanto não foi prejudicial e

vergonhoso seu proceder! 671

Uma autoridade em momento de crise social, argumenta a citação anterior, teria a

oportunidade de demostrar grandeza, auferindo, em troca, o apoio das pessoas sensatas de

diferentes partidos. Por outro lado, a conjuntura epidêmica poderia demonstrar o contrário: a

inconveniência de ver pessoa despreparada em postos estratégicos, trazendo prejuízo às

localidades e vergonha ao nome da autoridade.

A correspondência de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior com o Marquês de Olinda

registrou como delegados e subdelegados de polícia estiveram em lugar destacado nas ações de

combate ao cólera em 1862. Eles foram nomeados membros na maioria das comissões sanitárias

instituídas por toda província e estavam entre os que mais reportavam notícias a respeito da

situação epidêmica ao presidente do Ceará. Por outro lado, cabia a eles usar os destacamentos

militares no auxílio aos inspetores de quarteirão672, médicos e enfermeiros comissionados,

garantindo a localização dos doentes e transporte para as enfermarias, inclusive com o uso

eventual da força673. Os medicamentos, cobertores e alimentos enviados pelo governo

provincial, bem como recursos doados por particulares, foram administrados, em algumas

localidades, por tais autoridades, como no caso de Assaré, onde o “Bacharel Gonçalo Baptista

Vieira” – personalidade do Partido Conservador, do clã “carcará”, e presidente da Assembleia

Legislativa do Ceará em 1862, citado no capítulo anterior, – pôs à disposição do subdelegado

671O Araripe, nº. 289, 27 set. 1862, p. 1. 672 Antes indicados pelos juízes de paz eleitos, a reforma do Código Penal, em 1841, transferiu à polícia a nomeação

dos inspetores de quarteirão, “levando assim a autoridade do governo central, pelo menos em teoria, a todos os

cantos do Império” (GRAHAM, op. cit., 1997, p. 80). Cada inspetor tinha autoridade sobre, pelo menos, vinte e

cinco “fogos”, atuando sobre orientação dos delegados e subdelegados. Em nome da manutenção da “ordem”, aos

inspetores era dada a autorização para interferir em “qualquer aspecto da vida de uma pessoa”. Cabia aos mesmos:

observar o estado higiênico das áreas sob sua alçada; expedir passes para quem se deslocava de um distrito a outro;

atestar a conduta dos interessados em portar armas de caça; verificar se as rondas noturnas da polícia uniformizada

estavam sendo cumpridas; e denunciar aglomerações suspeitas nas ruas e estradas, especialmente de escravos,

mendigos, bêbados e prostitutas. Em épocas de eleição, também podiam ser usados para pressionar eleitores: na

Província de São Paulo, por exemplo, em fins de 1860, um delegado ordenou aos inspetores de quarteirão a

intimação de votantes, que deveriam receber as cédulas eleitorais no prazo determinado. Em caso de desobediência

da intimação, os eleitores podem ser multados ou presos por uma quinzena. Ante tal leque de atribuições, não

faltava quem acusasse inspetores de manobrar seus poderes com vistas à conquista de vantagens pessoais.

GRAHAM, op. cit., 1997, p 88-89. 673 ANRJ. Ofício 41. 26 mai. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

175

“todo o gado preciso para socorrer os desvalidos na povoação”674. Nos lugares onde houve

acúmulo de corpos insepultos e dificuldade para contratar carregadores e coveiros, coube às

autoridades policiais mobilizarem homens para resolução do problema. Em Maranguape, por

exemplo, oito “camaradas” do delegado morreram após cumprir tais serviços675. Não por acaso,

Figueiredo Júnior registrou o falecimento, por cólera, de alguns delegados, como os da comarca

dos Inhamuns676 e da cidade de Aquiraz677.

O presidente do Ceará, por outro lado, não deixou de repreender e afastar do cargo,

autoridades policiais suspeitas de fazerem pouco caso da epidemia ou de fugirem das

obrigações nos lugares atingidos. As recriminações tornaram-se públicas, pois os jornais

reproduziam parte da correspondência interna e externa relacionada à Presidência da Província,

bem como os atos de nomeação e exoneração. Na vila de Maranguape, por exemplo, o delegado

Antonio de Castro Vianna foi denunciado em uma correspondência enviada ao presidente

Figueiredo Júnior. O delegado estaria “no seu sítio”, enquanto “grande desenvolvimento” da

“epidemia reinante” tomava as ruas da vila. A situação levou Figueredo Júnior a intervir, afinal

“uma autoridade ativa e enérgica” precisava permanecer na localidade, “para eficazmente

auxiliar o serviço sanitário, a que mui poucas pessoas se têm prestado naquela localidade”.

Pressionado, o delegado acabou pedindo exoneração do cargo678.

O caso de maior repercussão na imprensa cearense de 1862, envolvendo um delegado,

foi, sem dúvida, o de Pedro José de Castello Branco679. Além de delegado da cidade de Baturité,

ele exercia, à época do cólera, a função de Juiz Municipal na mesma localidade. O segundo

número da Gazeta Official, em 19 de junho de 1862, reproduziu ofício no qual o presidente

Figueiredo Júnior, escrevendo ao Chefe de Polícia provincial, Francisco de Farias Lemos,

afirmava ter recebido informações do juiz de direito de Baturité atinentes ao comportamento do

delegado de polícia, Pedro Castello Branco. Este permanecia “muitos dias no seu sítio quando

é indispensável a presença desse funcionário na cidade, visto que já vai ali [se] desenvolvendo

674 ANRJ. Ofício 65. 12 ago. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 675 ANRJ. Ofício 56. 11 jul. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 676 ANRJ. Ofício 41 a. 05 jun. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 677 ANRJ. Ofício 52. 27 jul. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. Sobre o assunto, em de tom de lamento, O Sol

publicou: “Faleceu no Aquiraz o delegado do termo Alcino Gomes Brasil, proprietário, e agricultor abastado. Foi

uma ilustre vítima da epidemia reinante. Cidadão probo, prestimoso amigo, bom pai de família, sua perda foi

grandemente sensível” (O Sol, n. 281, 22 jun. 1862, p. 3). 678 Pedro II, n. 152, 7 jul. 1862, p. 2. 679 Foi eleito para três legislaturas na Assembleia Provincial do Ceará. PAIVA, op. cit., 1979, p. 99.

176

a epidemia”. O presidente do Ceará, orientava, então, ao Chefe de Polícia a tomar “providências

que a este respeito lhe parecessem necessárias”680.

Como de praxe, os jornais Pedro II e O Cearense adotaram posturas opostas ao tratar

do assunto. Em 26 de julho de 1862, correspondência escrita por João Pereira Castello Branco,

irmão do delegado de Baturité, foi publicada pelo Pedro II. A missiva, escrita a 21 de julho, foi

endereçada a um compadre de João, de nome Luiz Ribeiro da Cunha. Continha apanhado geral

da situação epidêmica enfrentada em Baturité: “São oito horas da noite, e a epidemia não nos

deu ainda esperanças de declinar a mortalidade nesta infeliz cidade”. A carta trazia críticas aos

socorros oferecidos pelo presidente Figueiredo Júnior, talvez a motivação central do Pedro II

em reproduzi-la: “vamos bem mal, porque o Exm. Sr. presidente autoriza à comissão [de

socorros] a gastar o preciso, mas aonde vamos ver dinheiro? O coletor geral tem ordem para o

suprimento, mas aonde ele tem fundos disponíveis da Fazenda?”681.

Todavia, em meio à listagem das personalidades locais atuantes no socorro aos coléricos

desvalidos, João indicou a ausência do “mano Pedro José Castello Branco” na cidade. Talvez

por lapso ou por não prever a divulgação da carta na imprensa, o autor reconheceu o fato que,

como mostrado há pouco, levou o Presidente da Província a repreender a autoridade policial682.

Pela carta transcrita no Pedro II, fica claro: o delegado estava longe da cidade tomada pelo

cólera. O próprio João Castello Branco, após o adoecimento por cólera do subdelegado

Raimundo Sampaio, remeteu carta a Pedro, instando-o a “vir tomar conta da delegacia”683.

Junto com o convite de retorno à cidade, João sugerira ao irmão o engajamento de “uma

companhia de índios que um tal Perigoso trouxe para serra”, a fim de atuar na colheita do café.

Com agenciador de nome tão simbólico, pode-se deduzir o quanto tais indígenas eram

explorados nos trabalhos agrícolas da Serra de Baturité. O plano de João era colocar os

indígenas para trabalhar na cidade, tanto nos serviços públicos relacionados ao cólera, quanto

sob ordem privada, afinal, por conta do surto, faltavam braços para realização das tarefas

cotidianas: “isto para serem aqui aplicados ao serviço de enterramentos, ver lenha, água, e

ocorrer a todas as precisões diárias; pois meu amigo, ainda lutamos com mais este oneroso

empecilho, não há quem faça serviço algum”684.

Segundo a carta de João, o “mano” Pedro respondera positivamente às propostas,

sinalizando “vir com essa corporação de índios”. O delegado teria afirmado mais: caso não

680 Gazeta Official, n. 2, 19 jul. 1862, p. 2. 681 Pedro II, n. 169, 26 jul. 1862, p. 2. 682 Gazeta Official, n. 2, 19 jul. 1862, p. 2. 683 Pedro II, n. 169, 26 jul. 1862, p. 2. 684 Pedro II, n. 169, 26 jul. 1862, p. 2.

177

conseguisse engajar os indígenas “ele mesmo se apresentaria para providenciar [...] o que esta

quadra calamitosa urge”. Tal promessa animava João, pois, aparentemente, tinha uma visão

positiva sobre o desempenho do delegado Castello Branco: “Deus o traga, pois como sabe:

energia, e ação para qualquer terminante medida, não lhe falta, e pode-nos ajudar muito”685.

Todavia, Pedro Castello Branco não permaneceria por muito tempo no cargo para

concretizar as aspirações do irmão João. O desgaste criado pelas correspondências oficiais,

como as de Luiz de Cerqueira Lima, juiz de direito da Comarca de Baturité, dando conta do

comportamento fugidio do delegado, levaram a Presidência do Ceará a decidir pela exoneração

da autoridade policial. A 9 de agosto de 1862, a Gazeta Official publicou a dispensa, reiterando

os motivos pouco honrosos dela:

Por ato da presidência foi exonerado o delegado de polícia do termo de

Baturité, Pedro José Castello Branco, por continuar ausente daquela cidade,

apesar das terminantes recomendações que lhe foram feitas logo que a

epidemia invadiu o referido termo; sendo nomeado para substituí-lo o alferes

Pompílio da Rocha Moreira686.

A escolha do novo delegado, aliás, esteve diretamente ligada à conjuntura epidêmica.

Os impressos d’O Cearense eram unânimes nos elogios aos feitos do alferes Pompílio Moreira

durante a quadra epidêmica em Baturité. Ele teria destaque, especialmente, no trabalho de

organização de abertura de túmulos, “[...] de maneira que têm sempre havido sepulturas de

sobra, e as inumações têm sido feitas com toda a regularidade e zelo, sem que[,] contudo[,]

fosse preciso uma só vez lançar-se mão dos presos da cadeia para tal fim”687. O próprio

presidente do Ceará registrou, na correspondência com o Marquês de Olinda, o desempenho do

alferes. Cerca de uma semana após a exoneração de Castello Branco, falando dos socorros em

Baturité, Figueiredo Júnior registrou: graças à “atividade e energia” de Pompílio Moreira “se

deve não permanecerem insepultos os cadáveres de coléricos”688. Desta forma, a nomeação do

delegado de Baturité reconhecia os feitos do alferes durante o cólera, ao mesmo tempo em que

a exoneração de Castello Branco atestava o mau proceder.

Confirmada a queda de Pedro Castello Branco, O Cearense não perdeu a oportunidade

para criticá-lo em várias edições, dando repercussão ao caso e mote para respostas do Pedro II.

Ambos os jornais usaram, sobretudo, correspondências remitidas de Baturité para defender suas

685 Pedro II, n. 169, 26 jul. 1862, p. 2. 686 Gazeta Official, n. 8, 9 ago. 1862, p. 4 687 O Cearense, n. 1537, 12 ago. 1862, p. 3, grifos da fonte. 688 ANRJ. Ofício 72. 20 ago. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

178

teses sobre a justeza, ou não, da exoneração. Na edição 1537, datada a 12 de agosto de 1862, o

principal jornal liberal do Ceará publicou três textos sobre o cólera em Baturité. Todos

advinham, originalmente, de cartas enviadas da cidade à redação d’O Cearense. A primeira e a

terceira eram anônimas e mordazes nos comentários concernentes ao comportamento de Pedro

Castello Branco. A correspondência datada a 3 de agosto de 1862 reafirmava: “o delegado de

polícia e juiz municipal em exercício, Pedro José Castello Branco”, mantinha-se afastado da

sede de Baturité devido ao cólera. Assegurava, inclusive, que ele não mais se encontrava na

propriedade serrana, pois teria partido “com a família para o sertão”, por “se ter avizinhado o

cólera do seu sítio”. Na sequência, o missivista provocava a redação do Pedro II, ao indicar

relatos, remetidos ao jornal conservador, sobre o mau comportamento de Castello Branco. Não

obstante, como nada fora publicado a respeito, troçava se haveria algum problema tipográfico

a impedir críticas a Pedro Castello Branco no Pedro II: “creio que quando o impresso chegar

ao § [parágrafo] que dele trata inutiliza os tipos da tipografia ou por mais que se lhes meta tinta

não chegam a pegar nenhuma”689.

Ainda segundo a carta, a ausência da autoridade na cidade era agravada por não ter

transferido o exercício das funções exercidas como delegado e juiz municipal para os suplentes

imediatos. Em uma situação calamitosa, com cerca de 922 mortos na cidade e distritos, algumas

“pessoas têm falecido deixando testamentos cerrados e nuncupativos690”. Ora, caberia

justamente ao juiz municipal em exercício validar tais documentos e orientar a execução das

vontades dos testadores. Portanto, a não-presença de Pedro Castello Branco em Baturité

causava problemas, prejudicando, especialmente, os órfãos dos coléricos falecidos:

[...] aqueles [testamentos cerrados] se são abertos não têm o legal

cumprimento, e estes [nuncupativos] não se reduzem logo à publica forma por

falta de juiz, e se falecerem algumas das testemunhas em tempo como o atual,

que não se pode dizer que amanhã ainda serei vivo? É claro o prejuízo dos

pobres órfãos. Achava conveniente que o Exm, Sr. Presidente, desse alguma

providência, mandando entrar em exercício algum dos outros suplentes a

benefício do público691.

689 O Cearense, n. 1537, 12 ago. 1862, p. 3. 690 O testamento “nuncupativo” ou “testamento público” era produzido na presença de um tabelião e de cinco

testemunhas, todas homens, livres e maiores de 14 anos de idade. O testador, tabelião e testemunhas deviam assinar

o documento. Caso o testador não soubesse assinar, outra testemunha firmava o nome dele. O testador colocava,

então, uma cruz ao lado do seu nome, de onde vinha a expressão “assinar em cruz”. Já no testamento “cerrado”,

também conhecido como “solene”, o testador mantinha em segredo absoluto as decisões sobre o destino dos bens

dele, que se tornavam públicas após seu falecimento. FURTADO, Junia Ferreira. Testamento e inventários: a

morte como testemunho da vida. In. PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (Orgs.). O historiador e

suas fontes. São Paulo: Editora Contexto, 2009, p. 95. 691 O Cearense, n. 1537, 12 ago. 1862, p. 3.

179

A outra carta anônima, veiculada na mesma edição d’O Cearense, seguia a linha de

desqualificação de Castello Branco. Datada a 4 de agosto de 1862, e publicada na sessão “A

Pedidos”, a carta afirmava serem, no contexto adverso do cólera, poucas as pessoas com

coragem de colocar o bem geral acima dos medos particulares. Em alguns casos, o assombro

tomava feição de egoísmo, com indivíduos afastando-se, inclusive, dos familiares mais

próximos, ante o risco de contaminação:

Nas épocas como esta, em que a desgraça fere a todos, e quase todos os

espíritos se acham indecisos e incapazes de deliberar sobre qualquer coisa,

poucos são os que, armados de coragem, se levantam do meio dessa multidão

desanimada para velar pela saúde e bem-estar público. Cada um recolhe-se o

interior de sua casa para nunca mais ser visto à luz do sol, e muito menos à

escuridão da noite, repele as notícias, porque ao egoísta pouco lhe importa os

sofrimentos da humanidade, contanto que não sofra ele, em muitas vezes o tal

apego que tem à vida, que é com grande sacrífico que se aproxima da esposa

ou dos filhos, quando doentes692.

Após elencar nomes de pessoas que estavam acima das atitudes mesquinhas descritas,

assumindo postura ativa nos socorros aos coléricos baturitenses, a missiva atacava Pedro

Castello Branco, inclusive ironizando palavras publicadas por João Castello Branco no Pedro

II, citadas anteriormente, acerca do caráter enérgico a caracterizar o irmão:

É, porém, para admirar a maneira repreensiva porque se tem portado o

delegado de polícia e 2º suplente em exercício do juiz municipal e órfãos

Pedro José Castello Branco!!!... Na verdade, não nos consta ter havido lugar

algum, em que a autoridade abandonasse o seu posto de honra tão desairosa e

covardemente!... Os interesses dos órfãos, abandonados, estes vagando pelas

ruas e sua moralidade deles sacrificada ao seu desleixo, tudo isto não abala a

sua consciência de ferro, estimulando-o a vir ao menos uma vez a esta cidade,

ou a fazer passar a outro o exercício de suas funções. E ainda há quem diga no

Pedro II número 169 que energia e ação para qualquer terminante medida

não lhes faltam693.

Os números seguintes d’O Cearense continuaram a ofensiva. A reprodução de carta

anônima, datada de 14 de agosto, afirmava: “Só agora depois do tormento foi que o chefe

valente¸ porém, fujão, delegado e juiz municipal de órfãos, Pedro Castello Branco, aparece e

sempre com patacadas, para se mostrar enérgico”694. Nas palavras da correspondência, a

autoridade teria se instalado em “esconderijo” na “serra”. Interpelado por um comandante de

destacamento, Pedro Castello Branco teria orientado o interlocutor a entender-se “com o juiz

de direito e subdelegado Sampaio, e que com ele [Pedro] não contasse, enquanto aqui existisse

692 O Cearense, n. 1537, 12 ago. 1862, p. 3. 693 Idem, grifos da fonte. 694 O Cearense, n. 1538, 19 ago. 1862, p. 4, grifos da fonte.

180

a bicha cólera”695. O arremate da carta, em tom irônico, solicitava a publicação de tais

informações, “para que o governo conheça o delegado daqui e que já tem uma medalha, e uma

felicitação da assembleia provincial para ser valentão lá no Inhamuns”696.

Já a edição 1543 d’O Cearense, trouxe missiva assinada por “O Justiceiro”, pondo em

xeque a informação, publicada no Pedro II, a respeito do agenciamento de indígenas por Pedro

Castello Branco no trabalho de abertura de covas: “Ora pelo amor de Deus, diga-nos Sr.

Castello qual foi as providências que deu Sua Senhoria! Quais foram estes índios que trouxe da

serra e que cavaram sepulturas!”697. Nas palavras do “Justiceiro”, “todo público desta cidade”

conhecia “que logo que Vossa Senhoria soube do cólera aqui, foi para seu sítio na serra, e só

veio para cá uma vez pela moléstia de seu filho”698.

Frente à proliferação de textos desfavoráveis a Pedro Castello Branco, o diário Pedro II

partiu para o contra-ataque, defendendo o ex-delegado das denúncias. Em 26 de setembro de

1862, texto assinado pelo pseudônimo “O Baturitense” veio a público. O autor demonstrava

repulsa pela “demissão do nosso patrício, o Sr. Pedro José Castello Branco, de delegado de

polícia do termo de Baturité”, classificando-a de “irritante e odiosa injustiça”, resultando da

“ominosa pressão de um grupo, que abusando dos mais nobres sentimentos” disputava a “justa

influência, que soube aqui granjear por muitos, e nobres títulos o Sr. Castello Branco, e sua

família”699. O texto não poupava detrações aos inimigos do ex-delegado, sendo descritos como

oportunistas a utilizar o cólera para atingir o adversário:

[...] vis poltrões, intrigando, caluniando, cuspindo asquerosas máculas à honra

do cidadão prestante, e probo, cuja única falta foi confiar-se infantilmente nas

carícias dolosas, nas zumbaias fementidas desses flibusteiros, que se lhe

associando para tirarem partidos de sua boa-fé, trama-lhe nas trevas a queda

para sobre seus destroços se erguerem, e disporem e manejarem a seu talante

os negócios desta terra, tão vazia de espírito público, e balda de cinismo700.

Faltava ao governo provincial, continuava o texto, o reconhecimento dos serviços

prestados por Pedro Castello Branco, “um desses raros empregados policiais, que honram, e

notabilizam o país” pela “acrisolada dedicação ao serviço público”, “ardente zelo, alta

imparcialidade, e atividade inteligente”. Lembrava episódio no qual a personalidade foi

condecorada com a Ordem da Rosa, pela prisão de um assassino atuante nos sertões dos

695 O Cearense, n. 1538, 19 ago. 1862, p. 4, grifos da fonte. 696 Idem, grifos da fonte. 697 O Cearense, n. 1543, 23 set. 1862, p. 1. 698 Idem, p. 2. 699 Pedro II, n. 220, 26 set. 1862, p. 1-2. 700 Idem, p. 2.

181

Inhamuns. Tal precedente seria prova cabal dos méritos e senso de dever de Castello Branco,

tornando sinuoso o contraste com a punição sofrida ao ser exonerado: “Malfadado país, que

mau gênio preside a teus destinos!”. Para “O Baturitense”, o presidente da província fora “presa

de uma indigna e falaciosa mistificação”, dando a entender ter Figueiredo Júnior sido usado

pelos inimigos políticos de Castello Branco, privando Baturité “dos serviços de um cidadão

honesto, inteligente, e prático nos misteres do seu emprego e que o servia há 3 ou 4 anos, sempre

com distinção, e boa nota de outros administradores”. O presidente era representado como

pouco experiente, e assim ludibriado por pessoas que tiravam:

o partido da situação lastimosa, em que a atenção do administrador não podia

fixar-se, e prender-se acuradamente a qualquer objeto, o ilaquearam, e

abusando indignamente de sua boa-fé, de sua pouca prática, e não inteiro

conhecimento do pessoal da província, que rege há poucos meses, lhe

arrancariam um ato, que por si só marearia, imprimiria mesmo um borrão, a

administração, a que pudesse caber a sua imputação moral701.

Partindo para a análise do mérito da demissão de Castello Branco, “O Baturitense”

classificava como “frívolo e banal pretexto” a ausência do então delegado nas ruas da cidade

nos “nefastos dias em que uma viçosa população caía”. Alegava: mesmo estando na serra, ele

permanecia dentro do território do distrito policial. Ademais, asseverava, “sérios interesses, e

graves motivos retinham” Castello Branco no sítio, uma provável alusão à doença e morte de

seu filho por cólera702. Interrogava, então, em tom provocativo, qual lei “assina a um delegado

um assento imóvel na cabeça de seu distrito[?]703”.

Na sequência, ironizava a opinião de que a presença de Castello Branco na cidade traria

alguma alteração no quadro epidêmico. Segundo o texto, a ausência do delegado não trouxe

qualquer consequência sanitária. Ademais, considerava excessivo o seguinte julgamento: não

fosse a energia e a “coragem estoica do juiz de direito da comarca, o Baturité seria um outro

infeliz Maranguape”704, em referência ao lugar onde o cólera agira com mais furor no Ceará.

Ao criticar a narrativa sobre a atuação do juiz Luiz de Cerqueira Lima, “O Baturitense” dava

uma estocada em quem delatou, ao Presidente do Ceará, o sumiço de Castello Branco.

Após lançar dúvidas sobre os méritos filantrópicos do Juiz de Direito, o texto atacava o

subdelegado de Baturité, Raimundo Cícero Sampaio, tratando-o como “o dedo móbil da

traição”, quem “agenciou a destituição de um empregado do quilate do Sr. Castello Branco”. O

701 Pedro II, n. 220, 26 set. 1862, p. 2. 702 O Pedro II, n. 169, 26 jul. 1862, p. 2, registrou a morte de Pedro José Castello Branco Filho por cólera. 703 Pedro II, n. 220, 26 set. 1862, p. 2. 704 Idem, grifos da fonte.

182

subdelegado, nesta versão, ambicionaria tomar o posto de delegado. A desqualificação de

Raimundo Sampaio foi feroz, colocando, também, em xeque a capacidade do Governo

Provincial em nomear substituto à altura do ex-delegado:

Este moçoilo, incapaz de dirigir o mais simples ofício (e prova o que fez

publicar contra o Sr. Pedro, de estranha lavra), verdadeiro analfabeto, e tão

dócil nas mãos de quem nas suas lhe meteu o cargo, [...], cumpriu um odioso

mandato, insultando, em uma peça pública a seu superior, o delegado,

taxando-o de desleixado, inepto, usurpador de seus méritos, invejosos de sua

glória, e outras quejandas belezas oficiais! Terá a vara do comando este nobre

arreganho! Esta insubordinação, esse criminoso, e repreensível excesso o

põem a bom caminho, porque desgraçadamente o nosso governo não cura as

vezes das grandes, quanto mais das pequenas cousas [...]705.

Três dias após a publicação da carta do “Baturitense”, o Pedro II voltou ao assunto,

reproduzindo ofício remetido por Pedro José Castello Branco ao Chefe de Polícia do Ceará,

Francisco de Farias Lemos. Comentando o teor do documento, a redação do jornal classificava

como “injusta” e “acintosa” a demissão do ex-delegado, fruto dos “torpes manejos de seus

inimigos”. “É esta a sorte do empregado honrado e encarecido no serviço do país?”, interrogava

em tom irônico. No ofício, Castello Branco dava ciência ao chefe imediato de já ter entregado

“o expediente ao indivíduo que me substituiu”, fazendo, também, balanço da atuação dele no

cargo. Afiançava estar o termo de Baturité “livre de criminosos” e que nas “quadras eleitorais

por qual passamos houve a maior calma possível”. Acrescentava: as prisões e punições por ele

realizadas foram tomadas “sem distinção de cores políticas”706.

Após descrever quadro tão benfazejo, nítida estratégia de autoelogio, Castello Branco

classificava como “um pouco caprichosa” a demissão sofrida. Punha a conta da mesma no

subdelegado da cidade, pois teria “feito ultimamente acusações por haver eu prendido

incontinente um criminoso de morte que ele havia solto, do termo do Icó, Vicente Ferreira

Lima”707. Se a publicação do “Baturitense” apresentava o subdelegado Raimundo Sampaio

como parvo e movido pela ambição de tornar-se delegado, o ofício de Castello Branco acusava-

o de conivência com criminosos, aprofundando a detração do adversário.

Sobre permanecer longe da cidade durante o surto do cólera, o ex-delegado alegava ter

estado “dentro do termo”, a três léguas de distância, donde teria prestado “serviços aos arraiais

do Mulungu, Correntes e Piranás, prevenindo que o mal se não desenvolvesse com intensidade

aos referidos lugares”. Teria, inclusive, mandado “enterrar os mortos, em número de 36, sem

705 Pedro II, n. 220, 26 set. 1862, p. 2, grifos da fonte. 706 Pedro II, n. 223, 30 set. 1862, p. 2. 707 Idem.

183

que o governo despendesse dinheiro dos cofres públicos”. Ao citar o pecúlio gasto por conta

própria, Castello Branco atacava seus “inimigos”, aproveitando a “quadra epidêmica para me

desconceituarem perante o governo, porque temi ser vítima da epidemia na mudança do ar, pois

me achava ao tempo em que o mal se desenvolveu na minha fazenda de café em cima da serra”.

Poupando de críticas apenas o juiz de direito, “que sempre se mostrou zeloso a favor dos

indigentes”, insinuava: muitos dos que o criticaram e contribuíram para a exoneração

almejavam “honras por mandar enterrar os mortos à custa do governo”. Desta forma, os

adversários eram representados como indignos e sem honra, “ganhadores de dinheiro”. Para

além dos “salários”, desejavam “títulos” pela atuação desempenhada na conjuntura epidêmica,

quando “nada mais fizeram do que cumprirem realmente suas obrigações”708.

Diante das informações apresentadas ao longo deste tópico, especialmente na exibição

dos casos envolvendo os delegados de Milagres e Baturité, ficam mais claras as razões da crítica

ou defesa de delegados terem ganhado espaço nos jornais publicados em 1862. A conjuntura

deu visibilidade às boas e más ações das autoridades policiais no desempenho das funções frente

ao cólera. Todavia, a compreensão mais ampla da questão exige reflexão sobre o lugar político

ocupado por delegados e subdelegados na sociedade brasileira do período.

Com a reforma do Código de Processo Criminal, no ano de 1841, em meio à conjuntura

pós-Maioridade de revisão das leis regenciais descentralizadoras, o cargo de delegado foi

instituído. Segundo Miriam Dolhnikoff, o escopo básico da reforma foi esvaziar os juízes de

paz – que, por serem eleitos localmente, eram vistos como agentes do localismo – das

atribuições referentes ao processo criminal, a fim de favorecer maior centralização do aparato

judicial709. Assim, competências, como a realização de inquéritos, por exemplo, passaram às

mãos dos delegados e subdelegados, autoridades nomeadas pelo executivo.

Para Richard Graham, o chefe de polícia, delegados e subdelegados tornaram-se os

assistentes mais importantes dos presidentes provinciais. Entre a alçada daquelas autoridades

estava o poder para “prender suspeitos, emitir ordens de busca, ouvir testemunhas e redigir o

processo contra acusados – a única base para o julgamento – assim como julgar alguns casos

menores”. Além do mais, partia deles a nomeação de inspetores de quarteirão, o recrutamento

compulsório para o Exército e Guarda Nacional, e, não menos importante, a partir de lei

eleitoral de 1842, a supervisão da votação nas mesas eleitorais e a manutenção da ordem em

tais situações, dando às autoridades policiais as ferramentas para atuar de modo partidário710.

708 Pedro II, n. 223, 30 set. 1862, p. 2. 709 DOLHNIKOFF, op. cit., 2005, p 13.5. 710 GRAHAM, op. cit., 1997, p. 79-80.

184

A ideia da “manutenção da ordem” era essencial nos jogos eleitorais do Império, pois

servia como justificativa para atitudes repressoras das autoridades. Se uma das atribuições dos

delegados era justamente garantir a ordem nos locais de votação, qualquer atitude mais ousada

por parte do outro partido poderia ser interpretada como desordem, permitindo assim o uso da

força na repressão aos opositores. Norteados por “impulsos contraditórios”, segundo Graham,

os pleitos eleitorais do Brasil deviam ser “ordeiros e livres”, não obstante a obrigatoriedade da

vitória do partido do Governo711.

Para o sucesso efetivar-se, os delegados, independentemente de serem liberais ou

conservadores, usavam todas as estratégias possíveis e, não raro, tornavam-se protagonistas de

cenas sangrentas, como na eleição para vereadores e juiz de paz em Crato em 1856, culminando

com a morte de um eleitor liberal na Matriz da Penha712, ou no massacre de quatorze pessoas

durante as eleições em Telha, no ano de 1860713, casos já narrados no primeiro capítulo.

Pelo exposto, fica claro: possuir o cargo de delegado significava deter poderes

consideráveis para garantir benesses para si e para seu grupo político-partidário, daí a razão do

ocupante de tal função ser, geralmente, visto com maus olhos pelos segmentos políticos em

situação de oposição. Não por acaso, quantidade significativa de textos da imprensa cearense

da segunda metade do século XIX tinha como mote denúncias de abusos perpetrados por

delegados e subdelegados de polícia.

Com a chegada do cólera, os jornais encontraram oportunidade extraordinária para dar

continuidade à política de denúncias contra desafetos. O período de medo e os problemas

decorrentes da mortalidade por cólera davam espaço para a produção de textos que analisavam

a atuação das instituições e homens públicos no cenário de crise.

Defensor dos mais aguerridos de Figueiredo Júnior na celeuma envolvendo a demissão

do inspetor de tesouraria, analisada no capítulo anterior, O Sol não deixou de criticar um dos

auxiliares principais da presidência na gestão da crise epidêmica na capital, Francisco Fidelis

Barroso, delegado de polícia e juiz municipal substituto. A autoridade teria superado sua

jurisdição ao intervir em assunto delicado no município de Maranguape: a adoção dos filhos de

“um tal Demétrio”, falecido por conta do cólera no distrito Macacos.

Sua Senhoria deve saber, que ou seja na qualidade de juiz municipal ou de

delegado, não pode expedir ordem à uma autoridade daquele outro termo para

ser cumprida senão por precatória, e que depois disso é autoridade

incompetente para distribuir órfãos à soldada, que são de uma jurisdição

711 GRAHAM, op. cit., 1997, p.107. 712 O Araripe, n. 61, 13 set. 1856, p. 2-3. 713 FREITAS, op. cit., 2011, p. 122-124.

185

diversa, e se o tem feito como nos consta é por um abuso, que cumpre ser

corrigido para evitar conflitos de jurisdição. A lei e não sua vontade deve guiar

seus passos na distribuição da justiça. Cada autoridade tem limites territoriais,

além dos quais não pode ir o seu poder sem culposa invasão714.

Se o delegado de Fortaleza foi acusado de exceder o espaço de jurisdição, o de Baturité,

Pompílio da Rocha Moreira – o substituto do polêmico Pedro José Castello Branco –

descumpriu orientação emanada do Governo Imperial. A 10 de julho de 1862, o Ministro da

Guerra, Polydoro da Fonseca Quintanilha Jordão, remeteu ofício ao presidente do Ceará

determinando a suspensão dos recrutamentos militares nos locais onde o cólera aparecesse.

Demonstrando obediência à orientação da Corte, Figueiredo Júnior informou, em ofício de 28

de julho, que o recrutamento “tem estado quase paralisado”, por conta da epidemia. Afirmava

que desde abril, quando confirmou-se a manifestação do cólera em Icó, apenas vinte e um

homens tinham sido recrutados para o Exército e outros quatro para a Marinha, apesar do

contingente fixado para o Ceará ser “de 384 para o Exército e 40 para Armada, faltando para

completar o dito contingente 305 para o Exército e 36 para a Marinha”715.

Apesar de Figueiredo Júnior ter indicado a paralisação dos recrutamentos, o novo

delegado de Baturité continuava a recrutar homens, como demonstra uma correspondência da

Presidência, datada a 28 de agosto de 1862, reproduzida na Gazeta Official716. É importante

recordar: os delegados tinham a prerrogativa de recrutar, de forma compulsiva, tanto para o

Exército quanto para a Guarda Nacional. Essa atribuição era usada, “muitas vezes por capricho

e inimizades”717, como arma para perseguição de adversários, especialmente em períodos

eleitorais. Mesmo com a ordem de suspensão em vigor, em Baturité, o delegado Pompílio

Moreira recrutou “Marcolino da S.”. Aparentemente, o recruta reagiu ao ato, sendo por isso

“recolhido à cadeia”. Diante da atitude da autoridade policial, Figueiredo Júnior emitiu ordem,

“declarando que deve ser posto em liberdade o recruta Marcolino da S.”, lembrando ao

recrutador: “segundo as ordens Imperiais deve ficar suspenso o recrutamento nos lugares em

que reinar o cólera morbo”718.

Conclui-se, portanto, que a visibilidade dada à ação das autoridades policiais na

imprensa cearense de 1862, no contexto do cólera, não deixou de indiciar o papel estratégico

ocupado por aquelas nos jogos políticos e eleitorais do Brasil da segunda metade do oitocentos.

714 O Sol, n. 291, 31 ago. 1862, p. 2. 715 ANRJ. Ofício 60. 28 jul. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 716 Gazeta Official, n. 14, 30 ago. 1862, p. 2. 717 GRAHAM, op. cit., 1997, p. 89-90. 718 Gazeta Official, n. 14, 30 ago. 1862, p. 2.

186

Desta forma, evidenciam-se os usos políticos do cólera pela imprensa, expostos ao longo deste

tópico, no ataque ou defesa dos ocupantes dos principais postos policiais no Ceará. A seguir,

tratarei das comissões sanitárias, ou de socorros, instituídas pela Presidência do Ceará,

demonstrando como também foram alvo de intensas disputas políticas na conjuntura epidêmica.

3.2 - “Lembrou-se de incumbir as medidas de salvação pública a juntas”

Como já dito no primeiro capítulo, Icó foi a porta de entrada do cólera no Ceará de 1862.

As primeiras mortes na cidade foram reportadas a partir de 5 de abril719. Mas, desde janeiro, as

autoridades locais demandavam ações da Presidência da Província do Ceará, haja vista o risco

iminente de contaminação do município, fronteiriço com trechos da Paraíba então

contaminados pelo cólera.

O jornal Pedro II, à época folha oficial do governo provincial, reproduziu ofício datado

a 4 de fevereiro com mostras das medidas iniciais direcionadas a Icó. Em retorno a ofício de 8

de janeiro, enviado pela Câmara Municipal icoense, “pedindo providências contra a epidemia

do cólera morbo, de que se acha ameaçada a população”, o vice-presidente José Antônio

Machado – então no exercício do executivo provincial – informou a decisão de nomear

“comissão sanitária, a quem remeto porção de remédios, e dou autorização para contratar os

dois médicos aí existentes”, para encarregarem-se “do tratamento dos doentes, e prestarem aos

mesmos todos os recursos de que carecerem, montando um lazareto e providenciando acerca

de tudo o mais que for preciso para que não faltem à população os socorros públicos”720. José

Antônio Machado sinalizava, ainda, enviar outro médico “dentre os que existem na capital”,

caso a epidemia se desenvolvesse “e com tal intensidade que reclame esta providência”721.

Por outros ofícios da mesma data, a presidência comunicou-se, individualmente, com as

pessoas escolhidas para compor a comissão sanitária, apontando também o escopo de atuação

esperado para os comissionados na hipótese de aparecimento do cólera no Icó722. A lista dos

nomeados reunia sacerdotes, militares, funcionários públicos, médicos e alguns dos indivíduos

mais abastados da localidade: Luiz José de Medeiros (juiz de direito da comarca), Bernardo

Duarte Brandão (bacharel em direito, filho de rico proprietário rural, posteriormente, deputado

719 STUDART, op. cit., 1997b, p. 54 720 Pedro II ̧n. 61, 14 mar. 1862, p. 1. 721 Pedro II ̧n. 61, 14 mar. 1862, p. 1. 722 Pedro II ̧n. 61, 14 mar. 1862, p. 1.

187

geral e agraciado com título de Barão do Crato723), Frutuoso Dias Ribeiro (promotor público724

e deputado provincial725) os médicos Pedro Théberge e Rufino Antunes d’Alencar (futuro

deputado provincial726), major Joaquim Pinto Nogueira (delegado de polícia), coronel

Francisco Manoel Dias (comandante superior do Icó727), tenente coronel Casimiro Pinto

Nogueira, major José Frutuoso Dias (vereador728 e esposo de Glória Fernandes Vieira Dias,

filha do Visconde de Icó729), padre Miguel Francisco da Frota (vigário paroquial) e padre

Manoel Caetano da Silva.

A cada um dos onze componentes da comissão de socorros, José Antônio Machado

instava valores filantrópicos e patrióticos. Falando ao delegado de Icó, o vice-presidente

afirmava: o comissionado “não se recusará ao desempenho dos deveres que por esse cargo lhe

são impostos”. Machado solicitava, inclusive, algo difícil de ser garantido numa crise

epidêmica: a comissão deveria evitar o medo generalizado, não poupando “esforços de

qualidade alguma” para incutir “coragem no ânimo da população, caso apareça a epidemia do

cólera morbo”. Em outra comunicação com os indicados, o vice-presidente reforçou tal ponto:

No caso de que essa epidemia aí apareça, cumpre que [...] considerem como

um dos principais deveres o evitar que a população deixe-se dominar pelo

terror, que a experiência tem mostrado servir somente para aumentar a

influência e devastação do mal, tornando-se ao contrário muito menos fatal e

até benigno quando encontra na população coragem e firme vontade de

combatê-lo730.

A recomendação traz indícios de crença antiga, na qual o abatimento moral numa quadra

epidêmica era interpretado como algo a predispor os indivíduos à contaminação731. Isso era

validado pelo discurso médico oitocentista, ansioso por disciplinar até mesmo o dobre de sinos

pelos finados, pois tais sons atingiriam os “nervos” da população, debilitando-a ao ponto de

favorecer o adoecimento732.

Ante o perigo do advento do cólera em Icó, a presidência nomeou, ainda no começo de

fevereiro de 1862, comissões menores em Lavras, Telha e Pereiro, localidades circunvizinhas

723 STUDART, op. cit., 1910, p. 178. 724 Idem, p. 337. 725 PAIVA, op. cit., 1979, p. 89. 726 Idem, p. 100. 727 Pedro II, n. 28, 4 fev. 1862, p. 1. 728 Idem. 729 STUDART, op. cit., 1913, p. 117. 730 Pedro II ̧n. 61, 14 mar. 1862, p. 1. 731 DELUMEAU, op. cit., 1989, p. 125. 732 REIS, op. cit., 1991, p. 264-265.

188

àquela cidade733. Desta forma, no segundo mês do referido ano, a presidência do Ceará instituiu

as quatro primeiras comissões sanitárias destinadas ao socorro das localidades ameaçadas pelo

cólera, seguindo padrão comum nas províncias brasileiras em crises sanitárias734.

Iniciado o mês de março, com o acréscimo das notícias a respeito dos surtos de cólera

na Paraíba e Pernambuco, a Presidência do Ceará tratou de nomear comissões sanitárias –

também chamadas, em documentos do período, de “comissões de socorros” ou “juntas

sanitárias” - no Cariri, fronteira sul da província. A de Crato foi nomeada a 10 de março735,

reunindo dez homens proeminentes da cidade. Dela, faziam parte: Antônio Manuel de Medeiros

(médico enviado de Fortaleza pelo governo provincial), Francisco Rodrigues Sette (juiz de

direito da comarca), Gervásio Cícero d’Albuquerque Mello (promotor público, deputado

provincial e ex-deputado geral), Antônio Luiz Alves Pequeno (dono de engenho de rapadura,

comerciante e ex-presidente da Câmara Municipal), Miguel Xavier Henriques d’Oliveira

(presidente da Câmara Municipal e ex-deputado provincial), Manoel Coelho Bastos do

Nascimento (juiz municipal), Benedicto da Silva Garrido (boticário), Tenente Antônio Maria

de Castro (comandante de destacamento), Pedro José Gonçalves da Silva (comerciante) e

Manuel Joaquim Aires do Nascimento (vigário paroquial e ex-deputado provincial). Na mesma

data da composição da junta de Crato, o vice-presidente nomeou outras três em vilas do Cariri:

Barbalha, Missão Velha e Milagres736.

No mês de abril de 1862, com a confirmação do estouro do cólera em Icó e rápido

alastramento da doença pelas cercanias, o governo provincial dividiu Fortaleza em seis distritos.

Em cada um, instituiu comissão sanitária própria, com cinco membros e encabeçada por um

médico737. Logo na sequência, José Antônio Machado emitiu portarias formando comissões de

733 Pedro II ̧n. 61, 14 mar. 1862, p. 1. 734 Quando em 1849 estourou a epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro, o governo imperial nomeou uma

“Comissão Central de Saúde Pública”. Sob proposta desta, criou “comissões paroquiais” em todas as freguesias

da Corte. Tais comissões teriam “o dever de velar, durante a epidemia, pela fiel observância das leis, ordens e

providências relativas à saúde pública e o de visitar gratuitamente todos os doentes pobres da sua freguesia”

(BARBOSA; REZENDE, op. cit., 1909, p. 58). Após a criação da Junta Central de Higiene Pública, o recurso a

criação de comissões de socorros tornou-se medida recorrente, uma forma de tentar garantir, dentro das limitações

existentes, a coordenação dos serviços sanitários em época de crise. Em minha dissertação de mestrado, por

exemplo, apresentei sucinto apanhado de como algumas províncias responderam às manifestações epidêmicas do

cólera em 1855 e 1856 criando comissões sanitárias nas localidades (ALEXANDRE, op. cit, 2010, p. 32-46). No

mesmo trabalho, mostrei como na província do Ceará era recorrente a instalação de comissões do tipo em surtos

de febre amarela, varíola e outras doenças. Aliás, em 1856, comissões sanitárias foram criadas no território

cearense por conta da manifestação do cólera em províncias fronteiriças. ALEXANDRE, op. cit., 2010, p. 47-56. 735 Pedro II, n. 66, 21 mar. 1862, p. 2. 736 Idem. 737 Pedro II, n. 96, 29 abr. 1862, p. 3.

189

norte a sul da província738. Desta forma, em fins de abril, as comissões de socorros instaladas

no Ceará tinham a seguinte configuração:

Quadro 2

Comissões sanitárias criadas pelo Governo Provincial do Ceará entre fevereiro e abril de 1862

Localidade Composição Nº. de

membros

Fortaleza

Distrito 1: José Lourenço de Castro; Manoel Soares da Silva

Bezerra; José Smith de Vasconcelos; João Severiano

Ribeiro; Luiz Antônio da Silva Viana.

30

Distrito 2: José Joaquim Gonçalves de Carvalho; Francisco

de Farias Lemos; João Antônio Machado; Francisco Fidelis

Barroso; José Nunes de Mello.

Distrito 3: Manoel Mendes da Cruz Guimarães; Thelesphoro

Caetano d’Abreu; Rodrigues José Ferreira; Victoriano

Augusto Borges; José Joaquim Carneiro.

Distrito 4: Jaime Gomes Robson; Antônio Nogueira de

Braveza; Severiano Ribeiro da Cunha; José Mendes da Cruz

Guimarães; Manoel Antônio da Rocha Júnior.

Distrito 5: Antônio Domingues da Silva; Gonçalo

d’Almeida Souto; Cândido José Pamplona; José Maximiano

Barrozo; Manoel Caetano de Gouvêa.

Distrito 6: Joaquim Antônio Alves Ribeiro; Manoel Franco

Fernandes Vieira; Theofilo Rufino Bezerra de Menezes;

Thomaz Pompeu de Souza Brazil; Francisco Coelho da

Fonseca.

Icó Joaquim Pinto Nogueira; Luiz José de Medeiros; Bernardo

Duarte Brandão; Frutuoso Dias Ribeiro; Pedro Théberge;

Rufino Antunes d’Alencar; Francisco Manoel Dias;

Casimiro; Pinto Nogueira; José Frutuoso Dias; Miguel

Francisco da Frota; Manoel Caetano da Silva.

11

Telha Cândido Antônio Barreto; Antônio Luiz de Vasconcelos

Drumond; Arlindo Cândido Ayres; Cardim Ferreira Lima;

Ignácio Ferreira da Gama.

5

Lavras Presidente da Câmara Municipal*; Ildefonso Correia Lima;

Luiz Antônio Marques da Silva Guimarães; Raymundo

Thomaz de Aquino; José Joaquim de Sousa Brasil.

5

Pereiro Antônio M. Porto; Daniel Fernandes Moura; José Manoel

dos Santos Brígido; João de Holanda de Albuquerque

Cavalcante; Joaquim Xavier Maia.

5

Crato Antônio Manuel de Medeiros; Francisco Rodrigues Sette;

Gervásio Cícero d’Albuquerque Mello; Antônio Luiz Alves

Pequeno; Miguel Xavier Henriques d’Oliveira; Manoel

Coelho Bastos do Nascimento; Benedicto da Silva Garrido;

Antônio Maria de Castro; Pedro José Gonçalves da Silva;

Manuel Joaquim Aires do Nascimento.

10

738 Pedro II, n. 98, 1 mai. 1862, p. 1-2.

190

Barbalha Antônio Manoel de Sampaio; José Pacifer de Sousa Santo

Maior; João Quesado Filgueiras; Pedro de Castro Silva;

Padre João Francisco Nogueira da Costa; Raymundo José

Camelo; Antônio Faustino de Figueiredo Genro; Lúcio

Aurélio Brígido dos Santos.

8

Missão Velha Aurélio Arnaut Formiga; Joaquim Jussilino Viriato Formiga;

Bernardino Gomes d’Azevedo; João Antônio de Jesus; Pedro

Antônio de Jesus; Manoel Homem de Figueiredo; João

Marinho Falcão.

7

Milagres Manoel de Jesus da Conceição Cunha; Cesário Claudiano

d’Oliveira Araújo; Meceno Cladualdo Linhares; Domingos

João Dantas Rothéa; Francisco Gonçalves Linhares; Antônio

Furtado de Figueiredo.

6

Pacatuba Joaquim Victoriano d’A. Pinheiro; José Antônio Gonçalves

da Justa; José Ignacio de Morais Navarro; Ignácio Gaspar

d’Oliveira; Juvenal Galleno da Costa e Silva; Chrisanto

Pinheiro de Almeida e Mello; Antero da costa Albano;

Estevão José d’Almeida.

8

Jubaia Subdelegado do distrito; Capelão; Francisco; José Pereira

Pacheco; José Bento Taveira; Vicente Fernandes do

Nascimento.

5

Maranguape Presidente da Câmara; Vigário da freguesia; Delegado de

Polícia; Marcos José Theophilo; Joaquim Felício d’Almeida

e Castro; Ignacio Pinto d’Almeida e Castro; Joaquim José de

Souza Sombra; Manoel Francisco de Paula Barros;

Raymundo Francisco da Costa Tavares; Antônio Ribeiro do

Nascimento; Agostinho Luiz da Silva.

11

Aquiraz Presidente da Câmara; Vigário; Delegado; Vicente José de

Farias; Luiz Ignacio d’Oliveira Maciel; Manoel da Silva

Menezes.

6

Cascavel Juiz Municipal do termo; Vigário; Sebastião S. Branquinho;

João Segismundo Liberal; Luiz Liberato Ribeiro; José

Marcos de Castro Silva.

6

Aracati Domingos José Pereira Pacheco; Irineu Brasiliano de Castro

Silva; Juiz de direito da comarca; Juiz municipal do termo;

Promotor público; Hyppolito C. Pamplona; Manoel José

Pereira Pacheco; Antônio Ferreira dos Santos Caminha; Tito

José de Castro Silva; José Teixeira Castro.

10

São Bernardo Juiz municipal; Vigário; Lino D. R. de Carvalho; Francisco

das Chagas Araújo; Antônio Ayres de Miranda Henrique;

João de Souza Neves Pinto.

6

Riacho do

Sangue

Vigário; Manoel Pinheiro d’Almeida; João Rodrigues

Nogueira Pinheiro; Pedro Pinheiro Landim; Simeão Correia

Lima; José Bernardo Bezerra Menezes Júnior.

6

Quixeramobim Juiz de direito; Juiz municipal; Antônio Pinto de Mendonça;

Francisco José de Mattos; José Amaro Fernandes; Cândido

Franklin do Nascimento.

6

Quixadá Claudino Pereira de Farias; Antônio Ricardo B. Suçuarana;

Miguel Francisco de Queiroz; Antônio Mathias; Laurentino

Belmont de Queiroz; Professor público.

6

Jardim Juiz de direito; Juiz municipal; Manoel da Cruz R. Carvalho;

Berlamino G. de Sá Roris; João Alves Couto.

5

Saboeiro Juiz de direito; Vigário; Promotor público; José Fernandes

Vieira; Manoel de Oliveira Lima; Manoel da Costa Braga.

6

191

Inhamuns Manoel Marrocos Telles; Antônio Pinto B. Cordeiro; Juiz de

direito da comarca; Presidente da Câmara; Vigário da

freguesia; Juiz municipal do termo; Delegado de polícia;

Joaquim I. d’A. Chaves.

8

Maria Pereira Presidente da Câmara; Vigário; Delegado; Augusto Olegário

da Silva; Rodrigo Francisco Vieira e Silva; Francisco de

Góes e Mello.

6

Baturité Joaquim Barbosa Cordeiro; Juiz de direito; Vigário;

Promotor público; Delegado; José Pacífico da Costa Caraca;

Manoel Antônio de Oliveira; Antônio Francisco da Silveira;

João Pereira Castello Branco.

9

Canindé Presidente da Câmara; Vigário; Juiz municipal; Delegado;

Joaquim José da Cruz Saldanha; Manoel Luiz de Magalhães.

6

Imperatriz Juiz de direito interino; Vigário; Promotor público; Bento

Antônio Alves; Anastácio Francisco Braga; Antônio

Joaquim de Almeida; Manoel Ferreira Chaves; José de Souza

Pereira Júnior; Prismilão Camerino de Souza.

9

São Francisco Vigário; João Ferreira Gomes de Miranda; Manoel

Rodrigues Barreto; Ruffino Ferreira Gomes; José Teixeira

Bastos de Queiroz.

5

Acaracu Presidente da Câmara; Vigário; Juiz municipal; Francisco

Theofilo Ferreira; João de Araújo Costa.

5

Sobral Juiz de direito; Presidente da Câmara; Vigário; Promotor

público; Delegado; Francisco de Paula Pessoa; Joaquim

Ribeiro da Silva; José Saboia; Domingos José Pinto Braga

Junior; Vicente Ferreira de Arruda.

10

Santa Quitéria Vigário; Thomas Antônio de Souza; Lúcio Pinto de

Mesquita; João Antônio de Mesquita Magalhães; Fabio de

Moraes Monteiro.

5

Granja Juiz de Direito; Juiz municipal; Vigário; Zeferino Gil Pires

da Motta; Joaquim Francisco Garcez dos Santos.

5

Vila Viçosa Juiz de direito; Vigário; Promotor público; Augusto Pontes

de Aguiar; João Severiano da Silveira; Vicente do E. S.

Magalhães.

6

Ipu Pedro de Albuquerque Autran; Francisco Barboza Cordeiro;

Vigário; José Saboia de Castro Silva; Antônio Marinho

Crencêncio; Manoel José Coelho; José Bernardo Teixeira;

José de Araújo Costa.

8

Nº de Comissões:

38

Nº de pessoas nomeadas:

250

Fontes: Quadro elaborado a partir das portarias da Presidência da Província do Ceará publicadas nas seguintes

edições: Pedro II ̧n. 61, 14 mar. 1862, p. 1; Pedro II, n. 66, 21 mar. 1862, p. 1-2; Pedro II, n. 96, 29 abr. 1862, p.

3; e Pedro II, n. 98, 1 mai. 1862, p. 1.

* Em algumas das portarias, os nomes dos indicados não aparecem, sendo substituídos pela nomenclatura dos

cargos que ocupavam na localidade.

O quadro demonstra a existência de 38 comissões indicadas pela presidência da

província no primeiro quadrimestre de 1862, distribuídas por 33 localidades. Excetuando a

capital da província, com 30 comissionados divididos em 6 distritos, as comissões então

nomeadas no Ceará tiveram entre 5 e 11 membros instituídos por localidade. As comissões com

192

9 a 11 membros estavam alocadas nas cidades existentes, à época, no interior da província:

Aracati, Icó, Sobral, Crato e Baturité, com exceção de Quixeramobim, com apenas 6

participantes. Já as vilas – fora Maranguape, com 11 designados, provavelmente, pela

proximidade com Fortaleza – e povoados tiveram, na maioria, entre 5 e 6 comissionados. Ao

todo, 250 pessoas foram escolhidas para coordenação dos socorros na quadra epidêmica, com

capilaridade por, praticamente, todo o território provincial.

No relatório apresentado quando da posse de Figueiredo Júnior na Presidência da

Província, a 5 de maio de 1862, o vice-presidente José Antônio Machado fez resumo da situação

sanitária, destacando as medidas adotadas em Fortaleza e no interior, com destaque para a

criação das juntas e a autorização para a instituição, por parte destas, de enfermarias para

tratamento dos pobres acometidos pelo cólera, a serem retirados de suas “insalubres” casas:

Em todas as cidades, vilas e povoados mais importantes da província, nomeei

comissões de socorros; nos lugares mais povoados e onde por conseguinte o

facultativo não pode levar as suas visitas a todos que delas necessitam em suas

próprias casas, autorizei o estabelecimento de enfermarias, onde sejam

tratados os indigentes, que assim acharão um abrigo contra a intempérie do

tempo a que ficariam expostas em suas habitações insalubres739.

Como demonstrei no primeiro capítulo, o novo presidente do Ceará achou excessiva a

autorização dada por Machado às comissões para a criação das enfermarias provisórias, bem

como criticou decisões e gastos efetivados pelo antecessor na administração da crise na capital

e interior. Figueiredo Júnior decidiu desautorizar as comissões sobre a questão das enfermarias,

condicionando a criação delas à licença prévia da Presidência da Província. Ademais, passou a

orientar as comissões a gastar o menos possível, bem como a promover subscrições próprias –

recolhendo dinheiro entre as pessoas mais afortunadas – como forma de aliviar os gastos do

governo com o socorro aos coléricos740. Tais orientações foram uma das questões usadas pelo

Pedro II para censurar o papel desempenhado pelo presidente na administração da quadra

epidêmica, tema estudado no segundo capítulo.

Todavia, as comissões de socorros também foram alvo de disputas e usadas com fins

pessoais e políticos. As ações dos comissionados tiveram destaque significativo na conjuntura

provincial daquele ano, ganhando espaço na documentação oficial e nos relatos da imprensa.

739 MACHADO, José Antônio. Relatório com que o 4º vice-presidente comendador José Antônio Machado passou

a administração da província ao excelentíssimo senhor doutor José Bento da Cunha Figueiredo Júnior, em 5 de

maio de 1862. Ceará: Typographia Cearense, 1862, p. 4. Disponível no site:

http://ddsnext.crl.edu/titles/166#?c=0&m=34&s=0&cv=1&r=0&xywh=-1414%2C-1%2C4859%2C3420. Acesso

a 23 set. 2019. 740 ANRJ. Ofício n. 41. 26 mai.1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

193

As opiniões atinentes à atuação delas – especialmente sobre a eficácia ou fracasso das decisões

e a respeito da desenvoltura individual dos designados para integrá-las – foram diversas. Houve,

do mesmo modo, denúncias sobre uso indevido de recursos e, mesmo, apropriação destes por

parte de comissionados, como mostrarei mais à frente.

Ora, a própria composição das comissões deu margem para agitações políticas. As 250

pessoas, cujos nomes elenquei no quadro anterior, representavam parcela proeminente das elites

locais. Nela encontramos juízes de direito, juízes municipais, promotores, delegados,

subdelegados, oficiais militares e da Guarda Nacional, clérigos, deputados provinciais e gerais,

diplomatas, vereadores, médicos, proprietários rurais, comerciantes, entre outros. Em Sobral,

um detentor do cargo eletivo mais alto do legislativo imperial foi designado membro da

comissão: o senador Francisco de Paula Pessoa741. Homens que figuravam na lista de vice-

presidentes da província também compunham o rol dos nomeados para as comissões. Pode-se

concluir, portanto: ter o nome lembrado pelo governo quando da composição das comissões de

socorros, denotava reconhecimento de conceito e status. Antagonicamente, não ser incluído no

rol delas poderia ser interpretado como sinal de desprestígio social e político.

Na composição das juntas sanitárias do Ceará de 1862, foi comum a presença de

inimigos partidários. Numa das 6 comissões de Fortaleza, o vice-presidente José Antônio

Machado listou Manoel Franco Fernandes Vieira – que, como sabemos, se tornaria o maior

inimigo do presidente Figueiredo Júnior – e o padre Thomaz Pompeu de Souza Brasil742. O

primeiro era membro do clã conservador “carcará” e editor do diário Pedro II, enquanto o outro

liderava o Partido Liberal e era proprietário d’O Cearense. Ao designar membros de diferentes

partidos para as comissões, quiçá, o governo provincial pretendesse ampliar a atuação e

aceitação delas, bem como passar a mensagem de estarem acima dos interesses partidários, a

serviço da população desvalida e alarmada pelo cólera. Se era este o propósito, ele esteve longe

de ser concretizado na prática.

Na comissão de socorros do Crato, por exemplo, figuravam os nomes dos rivais Antônio

Luiz Alves Pequeno e Miguel Xavier Henriques d’Oliveira, líderes, respectivamente, dos

partidos Liberal e Conservador na cidade. Em 1862, Miguel Xavier ocupava a presidência da

Câmara Municipal e era proprietário da Gazeta do Cariri743. Já Antônio Luiz, era das pessoas

mais ricas da cidade, sendo um dos principais apoiadores do semanário O Araripe.

741 Pedro II, n. 98, 1 mai. 1862, p. 2. 742 Pedro II, n. 96, 29 abr. 1862, p. 3. 743 Jornal conservador, fundado em Crato em 1860, circulou por cerca de três anos. Infelizmente, nenhuma coleção

dele foi conservada. Sabe-se da circulação do jornal pelos textos que O Araripe publicava em resposta ao

194

Em 13 de setembro de 1862, O Araripe fez, na primeira página, ataques diretos a Miguel

Xavier, criticando-o, junto a outras pessoas da cidade, pelo comportamento desempenhado

durante o surto de cólera em Crato. O artigo d’O Araripe, provavelmente escrito por João

Brígido dos Santos, recriminava correspondência publicada no Pedro II, de autoria de Francisco

Rodrigues Sette, juiz de direito de Crato e presidente da comissão de socorros. Segundo O

Araripe, Sette teria se queixado dos procedimentos dos padres Lima Seca e Silva Sousa durante

a epidemia, acusando o primeiro de ter se negado a ministrar os últimos sacramentos ao padre

João Marrocos – história narrada no primeiro capítulo – e o segundo de ter fugido da cidade,

“tomado de pânico”744.

O Araripe não negava os episódios envolvendo os dois padres. Pelo contrário: frisava

terem todas pessoas os “sentimentos molestados” diante da verdade dos fatos. Lançava,

inclusive, novas denúncias sobre o clã dos Lima. O semanário acusava outro sacerdote da

família, o padre Lima Verde, de ter negado socorro ao próprio irmão, Antônio Ferreira Lima,

consentindo que deixasse a vida, junto com “primos, cunhados, sobrinhos e uma infinidade de

parentes”, sem confissão. Enquanto os familiares finavam, Lima Verde optara por ficar

“impassível” em seu sítio, “onde o cólera nunca penetrou”, alfinetava o jornal745.

Após delatar os padres Lima Seca e Lima Verde de falharem nas obrigações religiosas,

O Araripe perguntava a razão do Dr. Sette não ter incluído na comunicação do Pedro II os

nomes de outros indivíduos e autoridades implicadas em atos igualmente reprováveis durante

o surto epidêmico. Na lista dos que teriam procedido desta forma, O Araripe incluiu o nome

de Miguel Xavier Henriques d’Oliveira: “como presidente da câmara e como membro da

comissão de socorros, nunca saiu de seu asilo”. Pelas palavras do semanário liberal, o líder dos

conservadores de Crato teria justificado a ausência dos trabalhos na junta por ter contraído o

cólera, ficando em sua residência, sob tratamento. Todavia, o semanário punha em xeque a

versão: “Doente o Sr. Miguel Xavier! Nunca. Ele gozou sempre perfeita saúde, não sofreu

moléstia alguma, salvo se medo é também enfermidade”746.

Ao insinuar terem correligionários de Miguel Xavier confirmado o adoecimento dele

nas correspondências ao Governo Provincial, O Araripe alfinetava diretamente a Francisco

Sette, acusando-o de partidarismo. Malgrado elogiar a conduta do juiz de direito na presidência

da comissão sanitária, pois “mereceu e merecerá sempre os nossos louvores”, afirmava:

adversário. A folha liberal cratense representava a Gazeta do Cariri como “o eco repetido de mesquinhas paixões,

o poste constantemente levantado ao talento e ao mérito”. O Araripe, n. 273, 29 set. 1860, p. 1. 744 O Araripe, n. 288, 13 set. 1862, p. 1. 745 O Araripe, n. 288, 13 set. 1862, p. 1. 746 O Araripe, n. 288, 13 set. 1862, p. 1.

195

[...] não lhe podemos [...] poupar este merecido reparo, tanto mais quanto a

acusação dos dois sacerdotes devia provocar a de outros indivíduos, que não

se souberam conduzir nesses dias nefastos. Melhor, mais prudente, teria sido

não tocar em alguém: porque, isto feito, de necessidade era publicar todos os

nomes747.

As denúncias d’O Araripe atinentes ao desempenho de membros de comissões sanitárias

constavam na trajetória do semanário. Em 1856, quando o cólera ameaçou romper a fronteira

do Ceará, o então presidente provincial, Francisco Xavier Paes Barreto, instituiu juntas pelas

principais localidades, no intuito de socorrer os eventuais acometidos pela moléstia. A criação

delas foi elogiada pelo jornal. Tratando do assunto, a redação afirmou ter o presidente Paes

Barreto sido movido pelo “louvável desejo de atenuar, quanto caiba em seu governo, os terríveis

efeitos do cólera”, ao “incumbir as medidas de salvação pública a juntas de quatro membros”,

criadas “em cada uma de nossas vilas” e compostas com “pessoas que ou por seus empregos,

ou pela sua consideração nos lugares davam esperança de desenvolverem alguma energia e

fazerem mesmo sacrifícios pessoais em favor das populações em situação tão desesperada”748.

No entanto, O Araripe não deixou de tecer críticas ao funcionamento das juntas e aos nomes

para elas indicados:

Infelizmente, malgrado sua expectativa, suas admoestações fraternais, essa

coragem, que procura inspirar no meio do cortejo de horrores com que se nos

figura a aparição prestes desse flagelo, algumas das tais comissões nem sequer

tiveram vida e coragem para responderem aos ofícios de Sua Excelência!749

Na apreciação d’O Araripe, a falta de resposta das comissões não seria fruto do “medo”,

a lhes tolher “a pena”, mas reflexo de “ineptidão” dos indicados. Neste sentido, faltaria ao

presidente decisão mais apurada a respeito do papel dos indivíduos nas localidades. O governo

deveria ter observado melhor as “posições e relações” ocupadas, dando peso a essas

considerações “quando criava uma comissão”. Afinal, instituída para “causa desesperada”, cada

junta “devia ser composta de pessoas que inspirassem simpatias, tivessem energia para obrar

em quadra semelhante e, sobretudo, enxergassem alguma coisa”750.

As censuras d’O Araripe às comissões de socorros voltavam-se, portanto, a certos

nomeados, não por acaso, desafetos políticos da redação do semanário. A maior campanha feita

pelo jornal contra um comissionado deu-se, justamente, no ano de 1856. O alvo foi o vigário

de Barbalha, Pedro José de Castro e Silva. Além de exercer o paroquiato por mais de vinte anos,

747 O Araripe, n. 288, 13 set. 1862, p. 1. 748 O Araripe, n. 40, 12 abr. 1856, p. 1. 749 Idem. 750 Idem.

196

o padre era a principal liderança conservadora da vila, tendo, inclusive, ocupado o cargo de

deputado provincial entre 1850 e 1855751.

O nome de Pedro José de Castro e Silva aparecia corriqueiramente n’O Araripe, sempre

acompanhado de acusações. Isso não se dava ao acaso: o padre era um dos antagonistas do

redator João Brígido752. O Araripe teceu fortes críticas à junta estabelecida em Barbalha: “A

[comissão] da Barbalha notadamente é mais uma infelicidade que pesa sobre aquela vila; gente

desasada para semelhantes cousas, imbecil completamente, nem sequer poderão arranjar um

ofício respondendo o do Sr. Presidente!”753. Não por acaso, as críticas mais acerbas eram

voltadas ao vigário:

Distinguimos entre os quatro um Sr. membro. Tendo-lhe Sua Excelência [o

presidente] prescrito, como medida urgente, a feitura de um cemitério inda

mesmo de madeira, e mandando-lhes um crédito para as despesas de

semelhante obra; não obstante ser ela reclamada pela salubridade pública, e o

voto constante da população, que vê em sua matriz, o mais nojento templo da

província, um foco de miasmas que ameaça, de há muito, desenvolver ali um

mal perigoso; não obstante haver uma subscrição dos habitantes, uma verba

no orçamento da câmara, todavia a obra não se fará! É uma falta de caridade,

permita-nos a comissão dizer!754

Ao descrever a comissão de Barbalha e o estado do templo de forma tão áspera, a

redação d’O Araripe tinha como plano atingir a imagem de Pedro José de Castro e Silva,

representado como alguém posicionado contra a edificação do cemitério, não obstante os

alegados reclames da população em prol da “salubridade pública”, amedrontada com os

“miasmas” advindos da igreja de Santo Antônio.

O artigo prosseguia, descrevendo visita feita à Barbalha por Domingos José Nogueira

Jaguaribe, então juiz de direito do Crato e presidente da comissão sanitária. Na ocasião,

Jaguaribe teria ficado “horrorizado” com o “espetáculo triste da matriz”, cujo mau cheiro estaria

levando fiéis a não mais frequentá-la. Ante tal cenário, teria procurado autoridades do lugar

para reiterar a urgência do fim dos enterros na igreja, chegando a oferecer um escravo pessoal

751 STUDART, op. cit., 1915, p. 37-38. 752 Os choques entre Brígido e o vigário de Barbalha eram recorrentes. No ano de 1857, por exemplo, o sacerdote

fora apontado como um dos responsáveis pelo envio, em nome da Câmara Municipal barbalhense, de representação

ao governo provincial contra o redator d’O Araripe, na época, professor público na vila. Segundo artigo exposto

em primeira página, além de tecer calúnias contra “um moço que se acha acima dos botes daqueles que enegrecidos

na corrupção só vivem vida de crimes”, o padre teria forjado assinaturas de membros da Câmara naquele

documento (O Araripe, n. 96, 30 mai. 1857, p. 1). Duas edições após a veiculação do texto, o semanário fez nova

insinuação contra o pároco, afiançando ter ele aliciado um “facínora”, por 200$000 réis, para dar “umas

pequiadas”, ou seja, uma lição em João Brígido. O Araripe, n. 98, 20 jun. 1857, p. 3. 753 O Araripe, n. 40, 12 abr. 1856, p. 1. 754 Idem.

197

para trabalhar como carpinteiro na obra do cemitério. Ao vigário, instara: não consentisse mais

nas inumações no templo e benzesse, o quanto antes, terreno para servir de cemitério755.

Não obstante os pedidos de Jaguaribe, o sacerdote manteve-se irredutível. Alguns meses

depois, o vigário teria recebido ofício da vice-presidência do Ceará, ordenando o fim dos

sepultamentos no templo. Insatisfeito com a reprimenda do governo e suspeitando que tal ordem

resultara de pedido particular de Jaguaribe, padre Pedro Castro e Silva decidiu sair da comissão

sanitária e publicamente corroborou o não apoio à construção da necrópole. Como sua

influência política e social era forte, outras pessoas – seus “aderentes”, nas palavras d’O Araripe

– também se retiraram da comissão, sendo assim extinta. A edificação do cemitério ficou

exclusivamente nas mãos do delegado da localidade, “Sr. Pacifer”, sem a necessária

popularidade para obter uma subscrição em favor da obra756.

Para O Araripe a situação de Barbalha só seria resolvida com a instituição de nova

comissão de socorros. Aconselhava, ainda, o vice-presidente a fazer valer as determinações do

governo, usando a força policial para impedir a continuação das inumações no interior da

matriz. Por fim, querendo aumentar a intriga entre o sacerdote e o executivo cearense, O Araripe

lembrava à autoridade provincial “que inda não está sagrado o campo daquele cemitério, porque

aquele pároco não se tem querido resolver a benzê-lo, como lhe tem sido pedido particularmente

e por Sua Excelência ordenado”757.

Sem embargo do empenho em arranhar a imagem do desafeto, o órgão liberal cratense

não conseguiu qualquer medida punitiva contra o pároco. Em meados do ano de 1856, o cólera

já declinava consideravelmente nas províncias circunvizinhas ao Ceará e a preocupação em

conservar comissões sanitárias ativas foi arrefecendo. Por isso, o vigário de Barbalha

prosseguiu gerindo como bem queria os enterros na matriz, para sanha dos seus adversários758.

755 O Araripe, n. 40, 12 abr. 1856, p. 1. 756 O Araripe, n. 58, 23 ago. 1856, p. 3-4. 757 Idem, p. 4. 758 No ano de 1857, O Araripe teceu novas críticas ao vigário barbalhense, acusando-o de se apropriar do

patrimônio da paróquia. O jornal fez descrição depreciativa do estado da matriz de Barbalha, dando especial

atenção aos túmulos, o mote da saída do padre da comissão sanitária, ocorrida um ano antes: “[...] o ladrilho, que

é de tijolo, pelos enterramentos que, a despeito das ordens do Sr. Presidente da província são exclusivamente feitos

no templo, está sempre revolvido, que se não pode pisar. Exala horrível fétido de cadáveres em putrefação,

enterrados a flor da terra, e muitas vezes exumados antes de tempo, para cederem campo a outros que chegam” (O

Araripe, n. 104, 08 ago. 1857, p. 2). Afirmava ainda: na “matriz da Barbalha podem os cães, as cabras, os porcos

entrar livremente às horas que querem” e que, devido à falta de cuidados com as sepulturas no seu adro, “um amigo

nos refere que viu um cão acabando de devorar um osso [humano], que a terra não havia de todo limpado”. Diante

de um cenário apresentado de forma tão desoladora, o texto pedia ao juiz de direito que chamasse Pe. Pedro “às

contas”, para se informar dos fundos existentes no poder deste, levando as informações daí obtidas ao governo

provincial (O Araripe, n. 104, 08 ago. 1857, p. 2). Um processo eclesiástico foi instituído para investigar as

denúncias. Não obstante, a comissão responsável pelo inquérito inocentou o sacerdote de todas as acusações. O

Araripe, n. 125, 09 jan. 1858, p. 2.

198

Em 1862, quando o recurso às comissões sanitárias foi acionado novamente pelo

Governo Provincial, Pedro José de Castro e Silva figurou, novamente, entre os indicados de

Barbalha759. Os anos entre 1856 e 1862 não arrefeceram em nada a opinião da redação d’O

Araripe a respeito do vigário de Barbalha. Na conjuntura pós-cólera, os “costumes” da paróquia

de Barbalha foram criticados, sendo representados como atrasados. O mote da crítica dizia

respeito à informação de que a matriz estaria sendo usada, com autorização do padre Pedro,

para rituais de flagelação de penitentes, a expiar os pecados para afastar o cólera760.

Se para O Araripe a presença de Castro e Silva desabonava a comissão sanitária de

Barbalha, textos veiculados pelo Pedro II davam crédito ao vigário, descrevendo-o como pilar

central dos socorros aos coléricos da vila. Uma correspondência anônima, de 17 de junho de

1862, publicada pelo jornal conservador, criticava a lentidão do governo Figueiredo Júnior em

enviar recursos e medicamentos à Barbalha e a ênfase dele na filantropia dos mais abastados:

“É muito bom e facílimo estar-se no capitólio, fruindo gozos de toda ordem e mandar escrever

aos homens das localidades que façam prodígios! Que se sacrifiquem pelo seu patriotismo,

filantropia, caridade”761. Insinuava ter a postura do governo provincial levado “quase todos os

nomeados” para a comissão de socorros a não aceitarem o “encargo”. Alguns dos indicados,

inclusive, teriam deixado a vila, “como grande número de famílias e mais povo”762.

Diante do estado de abandono, por parte do governo e de membros da comissão, restaria

aos barbalhenses buscar ânimo no exemplo do vigário Castro e Silva, “disposto às lides do seu

ministério e também em aplicar remédios”. O altruísmo dele seria reforçado pela “nobre e

caridosa resolução” de não viajar à Fortaleza, onde deveria “tomar assento na assembleia

provincial”. Sem a presença do padre, afiançava a carta, “já se acharia deserta esta vila”. Da

comissão sanitária, restariam apenas em Barbalha o vigário Pedro José de Castro e Silva e o

padre João Francisco Nogueira da Costa, “verdadeiros sacerdotes que sabem compreender os

deveres de seu santo ministério”763.

O relatório do médico Antônio de Medeiros, enviado para coordenar os socorros no

Cariri, incluiu o nome do vigário entre as três pessoas mais atuantes durante o surto de cólera

em Barbalha: “Cumpre aqui consignar os nomes dos Srs. Raimundo J. Camello, presidente da

câmara municipal, Lúcio A. Brígido dos Santos, tabelião público, e vigário Pedro José de Castro

759 Pedro II, n. 66, 21 mar. 1862, p. 1. 760 O Araripe, n. 291, 19 out. 1862, p. 2-3. 761 Pedro II, n. 153, 8 jul. 1862, p. 3. 762 Idem. 763 Idem.

199

e Silva, os quais nessa quadra prestaram os maiores serviços à população” 764. Desta forma, o

médico corroborava a versão do Pedro II e contrariava a d’O Araripe a respeito do desempenho

do padre e político conservador.

A partir da leitura da imprensa, é possível afirmar ter sido o esvaziamento das juntas

sanitárias uma realidade em diversos pontos do Ceará de 1862. Parte da de Crato, por exemplo,

solicitou, em 22 de maio de 1862, exoneração ao governo provincial, descontente com o não

envio de medicamentos solicitados para a cidade765. Tratando da comissão de Baturité, João

Pereira Castello Branco, em carta veiculada no Pedro II, afirmou: “Da comissão de socorros,

apenas o nosso amigo, o Sr. Dr. juiz de Direito, e eu, é que vamos deliberando”, pois os demais

membros não se apresentavam para os trabalhos, seja porque “estejam fora” – tal qual o

delegado Pedro José de Castello Branco, irmão do missivista, cujo desempenho na conjuntura

epidêmica apareceu no tópico anterior – ou “porque estejam doentes, ou suas famílias”766. O

resultado dessa ausência trouxe problemas aos dois nomeados presentes na cidade: “o certo, é

que estamos sobrecarregados com a pesada tarefa”767.

O Cearense também veiculou críticas à comissão de Baturité e, a partir delas, não deixou

de contestar o funcionamento das congêneres, espalhadas pela província. Em um dos textos

publicados, informava ter o governo provincial nomeado “uma comissão composta de nove

membros”768. Não obstante, a medida não teria impacto na cidade, pois “como quase todas as

comissões nomeadas, a de Baturité não passou de uma ideia, porque até hoje todos os seus

membros, recolhidos aos bastidores, não têm dado a menor providência”. Alguns, no máximo,

assinariam, “em suas casas”, ofícios redigidos pelo Dr. juiz de direito e pelo promotor, dirigidos

764 MEDEIROS, op. cit., 1863, p. 17. 765 Na correspondência oficial reproduzida pelo Pedro II, consta que, a 22 de maio de 1862, Francisco Rodrigues

Sette, Manoel Ayres do Nascimento, Pedro José Gonçalves da Silva, Manoel Coelho Bastos, Benedito da Silva

Garrido, Gervásio Cícero de Albuquerque e Mello e Antônio Maria de Castro assinaram ofício dirigido à

presidência da província solicitando exoneração das funções na comissão sanitária de Crato. O presidente

concedeu dispensa à maioria deles, negando apenas ao promotor público, Gervásio Mello, e ao comandante de

destacamento, Antônio Maria de Castro, aos quais instou: como cidadãos e empregados públicos, deviam continuar

auxiliando “o governo com dedicação e fidelidade nesta conjuntura” (Pedro II, n. 147, 1 jul. 1862, p. 1). O relatório

escrito pelo médico Antônio de Medeiros explica o pedido de exoneração como motivado por desencontro de

informações a respeito do envio de medicamentos ao Crato. Tendo a junta, em fins de abril, enviado ofício

solicitando recursos, recebeu resposta da presidência afirmando que “amplos socorros já tinham sido enviados” e

recomendando economia e a organização de “subscrição em benefício dos indigentes” (MEDEIROS, op. cit., 1863,

p. 14). Os “amplos socorros” aludidos diziam respeito a nove cargas de medicamentos remetidos à cidade. Todavia,

o ofício chegou em Crato antes dos remédios. Segundo Medeiros, o que parecia “uma esquivança da parte da

administração”, incomodou os membros da comissão presentes na leitura do documento, levando-os a redigir o

pedido de exoneração. Após a chegada das cargas, esclarecido o aparente mal-entendido, o juiz Francisco Sette,

um dos que tivera a exoneração aceita pelo presidente do Ceará, pediu para ser readmitido na comissão.

MEDEIROS, op. cit., 1863, p. 14. 766 Pedro II, n. 169, 26 jul. 1862, p. 2. 767 Idem. 768 O Cearense, n. 1537, 12 ago. 1862, p. 3.

200

ao presidente da província. Os “poucos que se achavam doentes”, continuava o artigo, deviam

ser perdoados. Entretanto, “maior reprovação” mereciam “aqueles, que nada tendo sofrido, tão

grande abandono têm mostrado no comprimento de seus deveres”769.

Para exemplificar o mau comportamento de parte dos comissionados de Baturité, O

Cearense censurava o delegado Castello Branco – a se manter distante, no aparente sossego da

propriedade serrana – e um “negociante abastado do lugar”, de nome não enunciado. Este, por

riqueza e dever com a comissão deveria ser bom modelo, mas, ao contrário, teria ficado

“exasperado um dia, porque os trabalhadores de seu sítio vieram abrir sepulturas, e [por isso]

quis até despedi-los”. Aparentemente, para o “negociante abastado”, uma jornada de trabalho

em prol das condições sanitárias de Baturité não valia a paralização da labuta em sua

propriedade. Assim, os interesses particulares eram postos acima do bem comum: “É incrível,

mas é uma verdade”770.

A junta de Maranguape também foi alvejada por críticas constantes na imprensa,

especialmente pelo Pedro II. A ênfase do diário conservador na questão era reflexo tanto do

fato da vila ter sido o ponto mais afetado pelo cólera - com cerca de 2800 mortes registradas

entre meados de 1862 e início de 1863771 -, quanto pelas relações políticas e familiares a ligar

o redator Manoel Franco Fernandes Vieira ao local. Não por acaso, os primeiros conflitos entre

Manoel Franco e o presidente Figueiredo Júnior ocorreram após o jornal ter veiculado

apreciação negativa sobre os socorros e recursos enviados à Maranguape, conforme tratei no

capítulo anterior. Aliás, em muitos artigos e correspondências publicadas sobre a comissão da

vila, a depreciação ao governo provincial estava embutida.

Ao tratar do “estado sanitário, que tanto importa nesta quadra calamitosa a todo o bom

cearense”, um missivista afirmou remeter “ao silêncio que merece o elogio das dúzias que um

dos membros da comissão fez estampar” n’O Cearense, “apregoando os serviços da mesma

comissão”, afinal, “o público julgador atilado e justiceiro, aceita as boas intenções e despreza

os palavreados chochos”772. Se havia membros comissionados praticando autoelogio, outros

opinavam a respeito da ineficiência da junta frente ao avanço da epidemia, devido à escassez

de recursos a que estava submetida. O tenente coronel Ignácio Pinto d’Almeida e Castro, por

exemplo, informou ter recebido com “satisfação” a designação para compor a comissão e assim

“prestar os meus pequenos serviços aos meus irmãos desvalidos”. Entretanto, por residir fora

769 O Cearense, n. 1537, 12 ago. 1862, p. 3. 770 Idem. 771 O Cearense, n. 1568, 20 mar. 1863, p. 1. 772 Pedro II, n. 141, 23 jun. 1862, p. 2

201

da vila e “sabendo logo as dificuldades com que principiaram a lutar os meus colegas da

comissão, com os mesquinhos socorros do governo”, Almeida e Castro atinava sobre desligar-

se daquela. Assim, optara por ficar na sua fazenda, dispondo-se “a lançar mão de meus

pequenos recursos para socorrer os pobres que me cercam”773.

O afastamento entre Ignácio Pinto d’Almeida e Castro e os demais colegas da junta

sanitária foi ampliado por desavença interna: a definição sobre onde deveria ser instalada a

enfermaria para tratamento dos enfermos pobres. A maioria da comissão optara por abrigar o

“hospital dos coléricos” no prédio da Câmara Municipal. Já Ignácio Castro opinara no sentido

de afastar a enfermaria das ruas da vila. Para isso, propôs doar uma propriedade: “aquela casa

que tenho junto ao cemitério”. Segundo ele, “melhor posição não se encontra nesta vila”.

Todavia, a transformação da casa em enfermaria exigiria “gastar 200# (duzentos mil réis) a

300# (trezentos mil réis) com alguns reparos”. Por conta disso, a comissão teria descartado a

doação, pois, ironizava Ignácio Castro, “os cofres da nação não podem carregar com tantas

despesas, e nem os dinheiros da municipalidade servem para socorrer os seus munícipes, porque

não vale apenas lançar mão deles em crise semelhante”774.

Outro comissionado, o capitão Joaquim José de Souza Sombra, manifestou a decisão de

desligar-se da incumbência dos socorros. Em carta datada de 25 de junho de 1862,

aparentemente dirigida ao redator Manoel Franco, à época, ainda no cargo de inspetor da

tesouraria provincial, o capitão Sombra assim narrou o “estado lastimoso de indigência” do

“laborioso povo” de Maranguape:

[...] afirmo a Vossa Senhoria que, quem não presenciar não acredita. Faça V.

S. uma simples reflexão; o nosso povo vive do trabalho, um pai de família tem

2, 3, 6, ou mais filhos, como é muito comum, adoece aquele, ou mesmo a

mulher, ou algum dos filhos, o pobre já não vai ao trabalho, porque espera em

qualquer momento a morte, ou mesmo o ataque em todos os mais da família,

como já tem sucedido, e em tal colisão que fazer, não tendo nenhum recurso

de que lançar mão? Morre de peste, ou de fome como tem sucedido a muitos.

No Arraial de Santo Antônio do Pitaguaty, onde tenho por três vezes visitado

os doentes indigentes, observei tanta miséria, que fiquei intimamente

compenetrado de que, só Deus com sua Divina Misericórdia é que pode salvar

a seu povo775.

Segundo o autor da carta, os casos de mortes fulminantes ocorridos na vila seriam, na

maioria, ocasionados por “falta de dieta” e “preciso resguardo”, coisas as quais a comissão de

socorros não tinha condições de garantir, pois os quinhentos mil réis enviados pelo governo

773 Pedro II, n. 143, 26 jun. 1862, p. 3. 774 Idem. 775 Pedro II, n. 144, 27 jun. 1862, p. 4.

202

provincial, mais duzentos e cinquenta mil, coletados como subscrição, não eram suficientes

para as “despesas diárias do hospital”, além dos gastos com abertura de covas e sepultamento

dos coléricos. Neste cenário, a junta era obrigada a fazer empréstimos com particulares, sem a

garantia de ressarcimento por parte do governo provincial. “Quando nos virão os recursos do

governo?”, indagava776. O capitão Sombra decidiu, então, sair da junta, alegando ter o “aumento

de intensidade” da epidemia levado ao acréscimo dos “afazeres diários” da comissão e a

proporcional dificuldade em “socorrer a humanidade desvalida”. Portanto, saía por não saber

obrar com “trambolhos” e estar convencido de “fazer um sacrifício com mais vantagem em

outra posição”, ajudando os doentes, dentro dos limites possíveis, fora da comissão777.

Com o agravamento da epidemia, famílias em melhores condições financeiras passaram

a abandonar Maranguape, partindo rumo à capital do Ceará, dificultando ainda mais o trabalho

da junta de socorros. A situação ia “de mal a pior”, pois os “homens desta vila que podiam

prestar alguns serviços estão de cargas na porta para emigrarem”, de modo que “não se pode

reunir a comissão por falta de membros”778. Ademais, os poucos restantes na cidade, somados

a novos nomeados, em substituição aos exonerados e fugitivos, permaneciam divididos nas

decisões práticas, tal como a “remoção do hospital para junto do cemitério”779.

A partir do começo de julho de 1862, quando Manoel Franco Fernandes Vieira foi

demitido do cargo de tesoureiro, o Pedro II usou o tema comissões sanitárias como forma de

ataque ao presidente Figueiredo Júnior. Em artigo de capa, intitulado “O cólera, o Sr. José Bento

e uma sinopse dos seus socorros”780, apresentava apanhado sobre a situação enfrentada por

diferentes localidades cearenses. Sobre Baturité, afirmava ter a comissão sanitária dado um

ultimato ao presidente: “se o governo não prestasse os socorros garantidos à pobreza, ela se

dava por demitida”. Ademais, “a quadra não era a mais própria para tirar-se esmola”, pois

“todos tinham de sofrer prejuízos” com o aparecimento do mal, ponto de vista que não deixava

de isentar os mais abastados de arcar com os gastos da crise. A junta de Pacatuba também teria

pressionado Figueiredo Júnior, afirmando não estar “disposta a carregar com a responsabilidade

de faltas de quem quer que fosse”. Argumentava, ainda, “se o povo ali morria a fome”, não era

por causa da comissão, mas sim devido às decisões do presidente:

[...] o único responsável pelos tristes acontecimentos daquela povoação, por

não ter dado em tempo as providências que o caso pedia, pois não era com

776 Pedro II, n. 144, 27 jun. 1862, p. 4. 777 Idem. 778 Pedro II, n. 146, 30 jun. 1862, p. 3. 779 Idem. 780 Pedro II, n. 153, 8 jul. 1862, p. 1.

203

300# [trezentos mil] réis que para ali se enviou que se havia de montar

enfermaria, pagar empregados, comprar alguma roupa para os doentes,

fornecer dietas e além de tudo isto sustentar a pobreza781.

Outra situação visível na imprensa cearense de 1862 foi a existência de choques entre

integrantes das comissões. Subjacentes a eles estavam: disputas internas pelo comando das

juntas, discordâncias a respeito dos procedimentos adotados no socorro aos doentes, contendas

em torno da destinação dos recursos enviados pelo governo provincial e, não menos importante,

atritos pessoais e partidários existentes. Parte dessas questões aparecem no tópico a seguir.

3.3 - “Braveja detrator, braveja insano”

O conflito entre comissionados com mais destaque na imprensa envolveu a comissão

montada na cidade de Quixeramobim. Designada pelo governo provincial a 20 de abril de

1862782, foi composta pelos seguintes nomes: Francisco de Assis Bezerra de Meneses (juiz de

direito da comarca, ex-deputado provincial783 e presidente da comissão de socorros784),

Cordolino Barbosa Cordeiro (delegado de polícia, juiz municipal785 e deputado provincial786),

Cônego Antônio Pinto de Mendonça (vigário da freguesia, primeiro vice-presidente do Ceará,

ex-deputado provincial e deputado geral por cinco legislaturas787), Francisco José de Mattos

(cirurgião e deputado provincial por quatro legislaturas788), tenente Cândido Franklin do

Nascimento (juiz municipal substituto789) e o tenente coronel José Amaro Fernandes.

Indícios sobre a cisão na comissão de socorros de Quixeramobim vieram a público em

fins de agosto de 1862. Carta anônima, com data de 20 do referido mês, publicada n’O

Cearense, informava a extinção do cólera na localidade, pois “há um mês não apareceu caso

algum novo”790. A missiva elogiava a decisão da presidência do Ceará em exonerar os médicos

Antônio Mendes e Januário Manoel da Silva, contratados para tratar dos coléricos da cidade.

Todavia, continuava a carta, o ato do governo provincial estaria “incompleto”, pois, “não

781 Pedro II, n. 153, 8 jul. 1862, p. 1. 782 Pedro II, n. 98, 1 mai. 1862, p. 1. 783 PAIVA, op. cit., 1979, p. 88. 784 O Cearense, n. 1554, 9 dez. 1862, p. 3. 785 LEMOS, op. cit., 2016, p. 245. 786 PAIVA, op. cit., 1979, p. 87. 787 Idem, p. 103. 788 Idem, p. 89. 789 O Cearense, n. 1510, 4 fev. 1862, p. 1. 790 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 2.

204

havendo mais epidemia alguma, devia continuar na mamata o cirurgião Mattos”791. Enunciando

termo pejorativo, derivado do verbo “mamar”792 – ainda hoje, no século XXI, denotando

apropriação de cargos e recursos públicos com vistas ao enriquecimento pessoal793 –, a

afirmação tinha como escopo o cirurgião Francisco José de Mattos. Uma vez extinta a epidemia,

argumentava o missivista anônimo, a comissão sanitária deveria ser oficialmente dissolvida,

significando pôr fim, também, às diárias pagas pelo governo ao cirurgião comissionado: “Ao

menos torna-se menos pesado ao Estado esse terrível mal, que foi aliás uma fonte de ouro para

boticários e médicos”794.

Segundo a correspondência, o cônego Pinto de Mendonça propôs: a comissão devia, por

conta própria, decretar findo o “contrato com o Mattos, por desnecessário”795, informando,

posteriormente, ao presidente do Ceará sobre a decisão. Tendo em vista ter o engajamento do

cirurgião na comissão ocorrido por portaria do governo provincial, bem como a definição sobre

as diárias a serem pagas ao profissional, a proposta do cônego Pinto era inusual. Na carta, o

argumento para a medida seria a preocupação do cônego com gastos supérfluos. Por outro lado,

sem nomear Mattos diretamente, o texto aludia a profissionais a lucrar em meio à crise

instaurada pelo cólera:

Nem médico, nem boticário de parte alguma chegou ao pé de um certo que eu

conheço aqui, que de 200$ ou 300$ que aí mandou comprar, de remédios fez

mais de 4 contos de réis, chegando o escândalo de vender ópio na razão de 23

contos de réis a libra! Isto não é crível; mas garanto-lhe que é verdade. Todos

aproveitaram da calamidade, menos os padres que, como era de seu dever, se

prestaram sem outro interesse, que o de terem desempenhado o seu ministério

todo de amor, e caridade796.

O suposto bom comportamento dos padres era apresentado como o oposto do adotado

por profissionais de saúde, ávidos pelo lucro, em detrimento da situação dos pacientes. O

791 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 2. 792 Entre os sentidos dados ao verbo “mamar” no século XVIII e XIX estavam: “tirar dinheiro, ou outra coisa de

alguém com artifício (BLUTEAU, op. cit., 1728); “Levar alguma coisa a alguém gratuita e logrativamente”

(SILVA, Antonio de Morais; BLUTEAU, Rafael. Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D.

Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. 1. ed. Lisboa,

Simão Tadeu Ferreira, 1789); e “tirar, ou levar alguma cousa de alguém” (PINTO, op. cit., 1832). Dicionários

disponíveis no site: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/Mamar. Último acesso a 1 out. 2019. 793 Segundo o Dicionário Michaelis, “mamata” significa: 1) “Empresa ou negócio, público ou particular, em que

políticos e funcionários protegidos auferem lucros ilícitos”; 2) “Vantagem pecuniária obtida em órgão público, em

proveito próprio ou de outrem, em transações fraudulentas; comedeira, negociata”; 3) “Emprego rendoso que

requer pouco ou nada de trabalho; teta”. 4) “Qualquer negócio suspeito ou que envolve ações inescrupulosas;

marmelada, negociata”. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/busca?id=Xpqeb. Último acesso a 1 out. 2019. 794 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 2. 795 Idem. 796 Idem.

205

arremate da missiva trazia insinuação séria: “Contam por aqui cousas desagradáveis a respeito

de extravio de medicamentos, baetas etc., remetidos pelo governo... Mas eu não quero fazer eco

dessas cousas. Adeus”797. A negativa era retórica: o autor do texto publicado n’O Cearense

queria ecoar a insinuação a respeito de recursos destinados pelo governo do Ceará para socorro

dos mais pobres terem sido apropriados indevidamente. Precisamente, ao expor tal assunto e as

outras acusações sobre quem teria lucrado com a epidemia, o alvo não era outro senão o

cirurgião Mattos.

Após ataques tão diretos, Francisco José de Mattos usou o diário Pedro II como

plataforma para divulgar revide. Datado a 8 de setembro de 1862, o texto de Mattos tratava de

“uma carta dirigida deste infeliz Quixeramobim à redação” d’O Cearense “que parece só ter

tido por fim deprimir-me”798. O cirurgião pretendia responder ao “agregado de mentiras” com

o “desprezo” usual votado a “seu cínico e desleal autor”. Todavia, “por deferência ao público”,

decidiu escrever “para desmascarar a impostura de quem não perde ocasião de me fazer

conhecer o ódio que me vota sem ter podido tirar outro fruto”. Para Francisco José de Mattos,

não havia dúvidas sobre a identidade do autor da carta publicada n’O Cearense. O escritor seria

o colega de comissão de socorros, cônego Antônio Pinto de Mendonça: “sem nem um respeito

à verdade, aventura-se nesse terreno de calúnia e convícios, ocultando seu nome, e intendendo

que poderia ferir minha reputação impunemente”799.

Rebatendo as denúncias supostamente proferidas pelo padre, Mattos asseverava ser

patente em Quixeramobim a opinião sobre como procederam na quadra epidêmica. No intuito

de convencer os leitores a respeito de quem agira corretamente, o texto estruturou-se como

narrativa cronológica, tendo as ações de Mattos como fio condutor. O cirurgião informava ter

sido comunicado, por ofício da Presidência da Província, em 6 de maio, sobre a nomeação para

a junta de socorros. Reconhecendo “a importância e a urgência dos trabalhos da comissão na

aproximação da epidemia”, teria deixado a fazenda Beberibe, de sua propriedade, e ido “à

cidade entender-me com o Sr. juiz de direito e os outros membros nomeados para a

comissão”800.

Na primeira reunião do grupo, os comissionados dividiram tarefas: a Francisco José de

Mattos coube “montar uma enfermaria” e “marcar o lugar mais apropriado para o cemitério dos

coléricos”; o trabalho do cônego seria tratar da construção do cemitério, oferecendo também

797 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 2. 798 Pedro II, n. 219, 23 set. 1862, p. 2. 799 Idem. 800 Idem.

206

“casebre de sua propriedade para a enfermaria”; o delegado Cordolino trataria de “agenciar a

subscrição aconselhada pelo governo”, recolhendo doações dos mais abastados da cidade; já o

tenente coronel José Amaro Fernandes ocuparia a tesouraria da comissão, enquanto o tenente

Cândido Franklin coordenaria “os trabalhos para o asseio das ruas e praças da cidade”; por fim,

o juiz de direito da comarca, Francisco de Assis Bezerra de Meneses, assumiria a presidência

da comissão sanitária, dirigindo as reuniões e cuidando das demais questões pertinentes ao

grupo.

Segundo o relato de Mattos, em 24 de junho, dois casos de cólera álgido – em referência

ao esfriamento do corpo do paciente, tido como fase mais grave provocada pelo cólera – foram

tratados por ele. Diante disto, ele teria declarado “o aparecimento desse fatal inimigo da

humanidade” ao juiz de direito e ao delegado. A comissão sanitária não chegou ao consenso

sobre a questão, pois “o senhor cônego e os seus” teriam desmentindo o diagnóstico feito por

Francisco de Mattos, atribuindo “a malignidade de os querer aterrorizar!”801.

No dia seguinte, alguns soldados do destacamento contraíram o cólera, dos quais cinco

morreram. Ante os acontecimentos, o delegado Cordolino Barbosa Cordeiro, “com a coragem,

prudência e energia só próprias do homem que tem o sentimento do que vai, e do que deve à

sociedade”, teria empregado “todos os meios razoáveis para diminuir entre nós os horrorosos

estragos da epidemia”. Cordolino, tornado, pela narrativa, “o herói desta quadra no

Quixeramobim”, foi descrito visitando doentes, distribuído socorros aos indigentes e até

mesmo, em mostra máxima de “zelo e filantropia”, colocando, “com as suas próprias mãos,

alguns cadáveres nos caixões mortuários”, além de “acompanhar a toda hora do dia ou da noite

os féretros das pessoas mais gradas para não serem menos respeitados pelos condutores”802.

Ao investir na exaltação do delegado, Francisco de Mattos provocava o cônego Pinto

de Mendonça, a quem atribuía a autoria do texto veiculado n’O Cearense. Aliás, Cordolino

Cordeiro teria assumido obrigações originalmente dadas ao vigário, segundo a divisão de

tarefas dos comissionados, descrita há pouco. A obra do cemitério, sob direção do cônego, não

teria avançado “e temos certeza de que lá nunca pôs os pés”, provocava Francisco de Mattos.

Nenhuma cova teria sido aberta por ordem de Antônio Pinto de Mendonça, levando o “honroso

e enérgico” Cordolino, ciente dos “males que nos causaria a retardação dos cadáveres dos

coléricos insepultos”, a tomar iniciativa, enquanto o “cônego transido de medo recolheu-se a

801 Pedro II, n. 219, 23 set. 1862, p. 2. 802 Idem.

207

sua casa tomando o que chamava preservativos e só aparecia em sua porta muito pálido e

aterrado para indagar se já havia morrido alguém”803.

O texto de Mattos insinua a existência de um pecado capital a tomar o cônego: a inveja.

O vigário de Quixeramobim, “deslumbrado, pelo comportamento não só do digno delegado

como das mais autoridades e pessoas que se dedicaram a ajudar aos médicos”, teria ocultado,

na carta d’O Cearense, os “serviços desta ordem para figurar o mérito dos padres que aqui

estavam”804. Sobre o assunto, Mattos elogiava a ação do coadjutor, padre Jacinto Bezerra de

Menezes, “a toda hora a levar o pasto espiritual aos que o procuravam”. Todavia, Meneses

“adoeceu ligeiramente no terceiro ou quarto dia do aparecimento do cólera e recolheu-se à sua

cama para medicar-se”. Sem o principal auxiliar atuando, o “cônego vigário” saía “a confessar

alguns acometidos do mal, quatro ou cinco pessoas”. Segundo Francisco de Mattos, o cônego

exercia tais funções “sempre queixando-se de se ver forçado a tal sacrifício pela pastoral do

Excelentíssimo Prelado Diocesano, que fulminava pena de suspenção ao sacerdote que se

negasse a tais confissões”805. A acusação era grave, pois punha em xeque a versão veiculada

n’O Cearense, ao retirar Pinto de Mendonça do “quadro daqueles [sacerdotes] que se elevaram

à altura sublime de sua missão, sem constrangimentos, ou medo”806.

Nas palavras de Mattos, os poucos sacramentos ministrados aos enfermos pelo vigário

deram-se durante o dia, pois não deixava a residência após o anoitecer. A quem o procurasse

em tal turno, Pinto de Mendonça “mandava que chamassem ao Sr. padre Menezes que estava

enfermo e não podia sair a tais horas”. Mesmo amigos próximos, como o casal Antônia e Miguel

Alves de Mello Câmara, teriam sacramentos negados pelo cônego, alegando estar doente, sem

condições de “sair àquela hora”. Coube ao padre Jacinto Bezerra de Menezes, em

convalescença, o “ato de caridade” de socorrer à Antônia Câmara, ou “morreria esta respeitável

senhora junto à igreja e do vigário, sem confissão”. Assim, enquanto paroquianos corriam o

risco de finar sem a extrema unção, o vigário permanecia em casa, “talvez orando a Deus pelo

bem-estar de suas felizes ovelhas. Eis a obrigação e sublimidade de seu comportamento no

exercício do alto ministério que tão dignamente exerce” 807.

Após pôr em suspeição as obrigações religiosas de Pinto de Mendonça, Francisco de

Mattos informava ter, desde o início de maio de 1862, tratado, com remédios de sua “farmácia

particular”, “indigentes” afetados pela “colerina”, tida como variação mais amena do cólera ou

803 Pedro II, n. 219, 23 set. 1862, p. 2, grifo da fonte. 804 Idem, grifo da fonte. 805 Pedro II, n. 219, 23 set. 1862, p. 2. 806 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 2. 807 Pedro II, n. 219, 23 set. 1862, p. 2, grifos da fonte.

208

como fase inicial da doença. À época, Mattos ainda não sabia ter sido designado membro da

comissão sanitária, bem como não tinha chegado a ambulância com remédios, remetida da

capital pela presidência da província. Os medicamentos, mais carga com cobertores, teriam

chegado em 22 de maio, junto a ofício de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior, indicando o

cirurgião como responsável pela administração daqueles808.

A tutela de Mattos sobre os recursos do governo deu azo às denúncias feitas n’O

Cearense atinentes ao desperdício e apropriação indevida de remédios e baetas809. Por isso,

Mattos solicitava a Pinto de Mendonça, “apesar da mesquinharia em que se chafurda”, provas

dos fatos. Mais ainda, asseverava: os maiores “cobertores de baeta” tinham sido usados por

escravizados doentes do cônego, tratados na casa do médico Antônio Mendes810. O fato de ter

o vigário utilizado baetas, destinadas aos pobres, com cativos de sua propriedade, não era de

todo condenada por Mattos. Contemporizava: “Não lastimamos estas baetas e outros favores

distribuídos com escravos e fâmulos de Sua Senhoria, apesar de sua fabulosa riqueza, porque a

outros se prestaram, atendendo o aperto em que nos achamos e a falta de recursos”. Aliás, na

casa de Mattos também houve o uso de “algumas baetas” com escravizados dele, pois “não as

havia no mercado por preço algum, e não havíamos deixar morrer quem quer que fosse por falta

de um cobertor quando estamos convencidos que não eram essas as intenções do governo”811.

Ao citar tais questões, Francisco de Mattos acabava por abonar a acusação de terem membros

da junta sanitária usado recursos provinciais, destinados aos indigentes, em benefício particular.

Todavia, o cirurgião isentava a si e aos colegas de dolo, ao justificar a atitude por alusão à falta

de produtos disponíveis no comércio de Quixeramobim, devido à crise epidêmica. O mea culpa,

portanto, mostrava-se incompleto.

O texto de Francisco de Mattos prosseguia mencionando período no qual fora “atacado

gravemente do cólera depois de exausto de forças pelo trabalho de seis dias e noites

consecutivas quase sem dormir” no tratamento dos coléricos. Ao saber do adoecimento do

cirurgião, o cônego teria sugerido à comissão o desligamento de Mattos do grupo, dispensando,

também, o pagamento de diárias ao mesmo. Pinto de Mendonça, inclusive, remetera cartas à

Fortaleza defendendo a proposta, “em meu desabono, procurando cavar a minha família

dificuldades se eu lhe faltasse”. Segundo Mattos, o “rancor” do padre não teria justificativa.

Ironicamente, afirmava ter dado “provas de cavalheirismo e de que como médico era capaz de

808 Pedro II, n. 219, 23 set. 1862, p. 2. 809 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 2. 810 Pedro II, n. 219, 23 set. 1862, p. 2. 811 Idem.

209

fazer qualquer sacrifício em seu favor”, em ocasião na qual o cônego teria passado na residência

de Mattos, “como um espectro pálido e abatido com medo de confessar uma pobre moça doente

com horríveis câimbras que gritava pedindo confissão como último consolo nesta vida de

torpezas e misérias”812. Corroborando a estratégia narrativa adotada por Mattos, Pinto de

Mendonça era, mais uma vez, descrito como covarde.

Mattos informava, ainda, ter recebido em 20 de agosto recomendações da presidência

do Ceará para se dirigir a Quixadá, onde casos de cólera teriam ocorrido. Segundo o cirurgião,

ao procurar informações sobre tais casos com o médico Januário Manoel da Silva, “soube que

nenhum caso de cólera se dera, e que toda a comarca estava em boas condições sanitárias”.

Julgando desnecessários seus serviços, Mattos teria enviado, a 4 de setembro, ofício ao

presidente da província, “pedindo-lhe exoneração da comissão de socorros”, declarando-se

“desde aquele dia exonerado de tal serviço”. Ao afirmar ter solicitado a exoneração, Mattos

troçava “o cinismo de um sacerdote que desconhecendo a altura do lugar que está investido”

redigia ou mandava “escrever artigos tais para menoscabar a reputação daqueles que se não

curvam aos desmandos e imoralidade com que pretende sustentar sua decantada influência

política em Quixeramobim”813. O arremate do texto solicitava à redação do Pedro II a

publicação destas

[...] poucas linhas em defesa de um homem que se tem conservado nesta

comarca inofensivo, e entregue aos seus trabalhos, e religioso cumprimento

de seus deveres, e que jamais se curvará as diabruras e embustes de quem

entende que só pode dominar pela intriga e calunias fazendo consentir nisto

todo seu mérito e poder. Publique, Sr. Redator estas; e com isto muito

obrigado lhe ficará o seu constante leitor814.

Ao partir para o ataque direto a Antônio Pinto de Mendonça, Francisco José Mattos

provocou personalidade de monta nos jogos políticos provinciais. O cônego foi deputado

provincial em duas legislaturas815 e geral em cinco816. Chegou a ser escolhido senador, pela

Carta Imperial de 16 de maio de 1868, mas teve a eleição anulada pelo Senado817. Primeiro da

lista de vice-presidentes do Ceará, assumiu interinamente o governo em 1861818. Teve a

oportunidade de novamente presidir a província no começo de 1862, mas recusou-se, pois,

segundo José Bento da Cunha Figueiredo Júnior, não queria “comprometer-se e, para evitar

812 Pedro II, n. 219, 23 set. 1862, p. 2-3. 813 Idem, p. 3. 814 Idem. 815 PAIVA, op. cit., 1979, p. 85. 816 Idem, p. 103. 817 STUDART, op. cit., 1910, p. 117. 818 Idem, p. 117.

210

embaraços ao gabinete [Caxias] de 2 de março [de 1861], se absteve de tomar as rédeas da

administração”819. Ainda segundo Figueiredo Júnior, o cônego tinha sido do Partido

Conservador, “mas achou-se em divergência com os Vieiras”, convertendo-se em liberal. Aliás,

durante a passagem pela administração da província, Pinto de Mendonça “foi censurado por

haver procedido de um modo desfavorável aos conservadores”820.

Em 1862, portanto, o cônego Pinto de Mendonça passava por um dos mais importantes

políticos liberais cearenses e o poder dele em Quixeramobim era reconhecido publicamente.

Ata de uma sessão da Assembleia Legislativa daquele ano, transcrita pelo Pedro II, registrou

interessante debate entre deputados. Questionando a “má situação em que se acha o partido

saquarema dominado pelo partido liberal e sofrendo perseguição da atual administração” – em

referência ao presidente Figueiredo Júnior –, o deputado Cordolino Barboza Cordeiro –

personalidade heroificada por Francisco José de Mattos, como demonstrado há pouco – afirmou

estarem em “boas condições” os conservadores de Quixeramobim, no que foi logo rebatido por

outro parlamentar, cujo nome não foi registrado na ata: “Só se o Sr. cônego Pinto é saquarema”.

“E o que tem o Sr. Pinto hoje em Quixeramobim?”, arguiu Cordolino. A resposta do outro

debatedor foi curta e direta: “Tem tudo”821.

Com visibilidade no Ceará e autoridade em Quixeramobim, o cônego Antônio Pinto de

Mendonça não ficaria quieto ante os impropérios de Francisco de Mattos. Este pôs em dúvida

o papel ocupado pelo vigário durante a crise epidêmica, denunciando-o como esquivo às

obrigações da comissão de socorros, sacerdote covarde, a negar sacramentos aos moribundos

por medo de contaminação, e de se apropriar de baetas voltadas aos indigentes.

Se o relato de Mattos teve como veículo o jornal conservador do Ceará, a resposta do

cônego ocuparia outras páginas: as do principal órgão liberal de Fortaleza. Em 9 de dezembro

de 1862, Pinto de Mendonça usou O Cearense para revidar os ataques sofridos822. Logo ao

primeiro olhar, algo chama a atenção na réplica: o tamanho. Em 1862, cada edição d’O

Cearense e do Pedro II era impressa em quatro páginas, diagramadas em 4 faixas verticais cada,

portanto, 16 faixas ao todo. A correspondência de Francisco de Mattos foi publicada entre as

819 ANRJ. Ofício confidencial. 26 out. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 820 ANRJ. Ofício confidencial. 26 out. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 821 Pedro II, n. 266, 20 nov. 1862, p. 2. 822 O Cearense, n. 1554, 9 dez. 1862, p. 2-4. Infelizmente, o exemplar disponível na Hemeroteca Digital está

danificado. Falta uma faixa vertical das páginas 1 e 2. Por conta disso, uma coluna inteira da resposta do cônego

Antônio Pinto de Mendonça não pode ser lida. Todavia, como o texto ocupou 3 das 4 páginas daquela edição, a

maior parte dele permanece conservada, sendo possível compreender a linha argumentativa adotada pelo cônego

no rebate a Francisco Mattos.

211

páginas 2 e 3 do Pedro II, ocupando cerca de duas faixas823. Aquele número do diário

conservador trazia variação nos tamanhos dos tipos usados para impressão, por isso, havia

artigos com letras maiores e outros com menores. O de Mattos, por exemplo, estava entre os de

caracteres diminutos. Portanto, a publicação dedicada a desancar o vigário de Quixeramobim

ocupou espaço relativamente grande naquela edição.

Não obstante, quando comparado à réplica escrita por Pinto de Mendonça, o escrito de

Mattos parece minúsculo: o revide do cônego estendeu-se entre as páginas 2 e 4, ocupando

cerca de 12 faixas do jornal. A dimensão do texto indicia como Pinto de Mendonça investiu na

refrega. Não há informação se o cônego comprou espaço no jornal para a veiculação do texto.

Como a maioria dos jornais oitocentistas, O Cearense abria espaço para impressões “a pedido”,

nas quais os interessados podiam publicar anúncios, cartas, convites, necrológios etc., mediante

pagamento de taxa determinada pela redação do órgão. Em 1862, por exemplo, a capa d’O

Cearense informava os valores cobrados: 40 réis por linha publicada a pedido de assinantes e

80 réis para não-assinantes ou “o que se convencionar”824, denotando, assim, a possibilidade de

barganhar o preço junto à redação. Homem reconhecidamente rico e importante correligionário

dos redatores d’O Cearense, Pinto de Mendonça deve ter gozado de facilidades na viabilização

da longa réplica dirigida ao colega de comissão sanitária e desafeto declarado.

O título escolhido pelo cônego Pinto de Mendonça para a publicação não deixava de ser

contraditório, tendo em vista o espaço ocupado na edição: “Uma simples resposta ao Sr. F. J.

de Mattos”. Abaixo do título, veio uma epígrafe, já indicando o tom adotado pelo texto:

Braveja detrator, braveja insano

Arde, blasfema em vão; de algo te sirva

Tenaz verdade que te rói por dentro825.

Os versos, retirados da “Epístola Pena de Talião”, do poeta português Manuel Bocage

(1765-1805)826, descreviam personagem tomada pelo ódio e queimando internamente por suas

mentiras. Assim iniciava a detração a Mattos, autor de correspondência, nas palavras do cônego,

“contendo fatos que maculam meu caráter, como pároco e como cidadão”827.

Encadeando os fatos cronologicamente, estratégia similar à adotada no texto escrito por

Mattos, Pinto de Mendonça taxava como “narração inexata, enfadonha” as informações do

823 Pedro II, n. 219, 23 set. 1862, p. 2-3. 824 O Cearense, n. 1508, 21 jan. 1862, p. 1. 825 O Cearense, n. 1554, 9 dez. 1862, p. 2. 826 BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Soneto e outros poemas. São Paulo: FTD, 1994. 827 O Cearense, n. 1554, 9 dez. 1862, p. 2.

212

cirurgião a respeito das ações tomadas por este quando do “aparecimento do cólera”. Tal

narrativa teria por escopo “fazer sobressair prestimosos serviços prestados” por Mattos, “no

estabelecimento dum hospital, de que se encarregou, em um casebre que para isso ofereci”828.

Ressaltava ter o “público desta cidade” a lembrança de como o hospital fora montado “à minha

custa e doutros, que subscrevemos para ele, e com que despesa!”. Na sequência, ironizava o

valor doado por Francisco de Mattos: “Dez mil réis!!! E isto quando esperava receber do tesouro

alguns contos de réis em razão dos seu engajamento”829 no tratamento dos coléricos. Ao citar a

subscrição, Pinto de Mendonça tentava apresentar o oponente como alguém mesquinho e

avarento, portanto, avesso à caridade830.

Na sequência, o cônego punha em suspeição o diagnóstico feito por Mattos a respeito

de casos de colerina em Quixeramobim entre maio e fins de junho: “apenas uma ou outra pessoa

se queixava de diarreia mui passageira”. Com isso, o autor buscava invalidar a narrativa do

cirurgião sobre como, antes mesmo de ter sido nomeado para a comissão de socorros, atuara na

prevenção do cólera na cidade. Ao mesmo tempo, atribuía o diagnóstico a motivo nada nobre:

“Pouco me importava, que fosse cálculo do Sr. Mattos propalar, que existia a colerina desde o

dia 6 de maio, para ter jus à percepção da diária, por que estava engajado”831 pelo governo

provincial para o tratamento dos doentes. Tal atitude não seria novidade, fazendo parte do

histórico pessoal do cirurgião, há muitos anos vivendo “como um zangão dos cofres públicos”.

Após negar ter sido o autor da correspondência publicada n’O Cearense a 26 de agosto

de 1862 – aquela a acusar Mattos de “mamata” e elogiar o papel do cônego e dos padres,

primeira a pôr em cena a crise interna da comissão de socorros de Quixeramobim832–, Pinto de

Mendonça reconhecia o desempenho do delegado Cordolino, mas ridicularizava o tom adotado

pelo último a respeito do “herói da quadra”: “N’O Cearense se diz que o Sr. Dr. Cordolino

prestara relevantes serviços; mas não, como vosmecê por adulação [disse no Pedro II], que

acompanhara os caixões mortuários para o cemitério a toda hora do dia e da noite!”833.

Na sequência, Pinto de Mendonça afirmava não querer, nem precisar, dos elogios de

Francisco de Mattos. Aliás, insinuava já os ter tido de “sobra” no passado, quando era útil aos

interesses do hoje inimigo: “já fui também um herói, quando concorri para sua vinda a esta

828 O Cearense, n. 1554, 9 dez. 1862, p. 2, grifo da fonte. 829 Idem, grifo da fonte. 830 A Gazeta Official informou o valor arrecadado na subscrição citada: seiscentos e sessenta mil réis, doados por

vinte e quatro pessoas. A lista de doadores, impressa segundo a ordem decrescente de valores entregues, era

encabeçada pelo cônego, doador de cem mil réis, e encerrada pelo cirurgião Mattos, que cedera valor dez vezes

menor. Gazeta Official, n. 19, 17 set. 1862, p. 4. 831 O Cearense, n. 1554, 9 dez. 1862, p. 2. 832 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 2 833 Idem.

213

freguesia, quando me propus por vezes a fazer-lhe porção entre os amigos e quando...”. A frase

incompleta, com reticências, deixava no ar algum favor importante. O recurso ao mesmo tempo

provocava Mattos, teoricamente devedor da benesse, e deixava os leitores curiosos: qual seria

a mercê não enunciada? De qualquer modo, ao citar como deixou de ser “herói”, Pinto de

Mendonça acrescentava outra característica negativa do desafeto: a ingratidão.

Como era de se esperar, a réplica não deixou de tratar de umas das denúncias mais sérias

feitas pelo cirurgião: Pinto de Mendonça fugira das obrigações sacerdotais por medo. O cônego

repudiava a acusação, afirmava ter socorrido os “fregueses na calamitosa crise”, estando atento

às “suas necessidades espirituais como temporais”, movido pelo dever e sem medo. Pelo

contrário, afirmava ter encontrado em si, durante a quadra epidêmica, “uma fortaleza que não

esperava”834. Apenas em um dia deixara de ir à matriz. Nos demais, presidira “a novena de

penitência”, ouvira confissões e administrava “sacramentos aos que me procuravam a qualquer

hora do dia e da noite”835. Como testemunhos desta versão, citava a manifestação de autoridades

neste sentido, troçando da validade do testemunho de Mattos, pois “no quarto ou quinto dia de

epidemia se deu por doente, e só apareceu um mês depois dela extinta”836.

Para Pinto de Mendonça, três fatores explicariam os ataques de Francisco Mattos: a

questão da autoria da carta, publicada n’O Cearense, pedindo a exoneração do cirurgião e

levantando suspeitas sobre o uso indevido dos recursos provinciais; o fato do cônego ter se

negado a assinar atestado abonando os serviços prestados por Mattos nos distritos de Quati e

Milagres; Por fim, o cirurgião estaria persuadido de ter Pinto de Mendonça agido junto ao

cônsul português em Fortaleza, Manoel Caetano de Gouveia, para obstar uma fiança de 30

contos referente ao projeto “Fazenda Modelo”, cujo contrato fora firmado entre Mattos e o

governo provincial837.

834 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 2. 835 Sem negar o fato de ter recusado ir à casa de Miguel Alves de Mello Câmara, para ministrar-lhe os últimos

sacramentos, o vigário justificava a decisão como algo costumeiro: “Costumo sempre esquivar-me, quanto posso

de confessar pessoas, que me são caras, ou pelos laços de parentesco, ou de amizade”. Tal prática refletiria o desejo

de evitar “um certo natural acanhamento” do confessando, induzindo “a fazer uma confissão, não tão perfeita,

como deve, principalmente na hora tremenda de seu passamento”. Desta forma, o cônego invertia a acusação feita

por Mattos: a negativa em ministrar os sacramentos não teria sido consequência do medo ou falha com os deveres

sacerdotais, e sim da preocupação com o bem-estar espiritual do moribundo, que, pela proximidade em relação ao

confessor, podia fazer confissão incompleta, com riscos para salvação da alma. Assim, era “uma calúnia revoltante

o que se pretendeu atribuir-me com relação a esse fato”. O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 2. 836 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 2. 837 A “Fazenda Modelo” tinha como objetivo instituir estabelecimento voltado à pecuária, reunindo gado de

diferentes espécies, com vistas à melhora das criações provinciais. A pecuária era uma das principais atividades

econômicas do Ceará oitocentista, o que ajuda a explicar a razão do empreendimento. A resolução provincial n.

940, de 29 de agosto de 1860, estabeleceu contrato no valor de trinta contos de réis a ser fechado entre a Tesouraria

Provincial e o particular que assumisse a administração da fazenda. Em 1861, Francisco José de Mattos venceu a

disputa pelo contrato polpudo, recebendo dez contos de réis para iniciar os trabalhos (Pedro II, n. 198, 30 ago.

1861, p. 2). Aparentemente, Mattos pressionava o governo a liberar de uma vez os outros vinte contos previstos,

214

Pinto de Campos dedicou mais espaço à explanação do segundo fator. Ao não firmar o

atestado requerido pelo cirurgião, o cônego depreciava o profissionalismo do colega de junta

sanitária. Após o anúncio da chegada do cólera em Quati, cerca de 10 léguas em relação a

Quixeramobim, a comissão de socorros reuniu-se “para dar algumas providências a favor

daqueles infelizes”, a falecer “no mais completo abandono”. O grupo decidiu enviar Mattos ao

local, pois “já estava engajado pelo governo para curar o cólera em qualquer ponto da comarca”.

Ele deveria levar remédios e tratar dos doentes. Todavia, o cirurgião teria demonstrado “alguma

repugnância” à tarefa. Usando como escusa as dúvidas levantadas por outro médico sobre o

diagnóstico dos doentes de Quati, teria declarado à comissão a decisão de não sair da cidade,

onde seriam mais premente sua presença. Nesse ponto do texto, Pinto de Mendonça ironizava

a coragem do opositor: “Mas o Sr. Mattos não tem medo e prestou relevantes serviços”838.

Com novos óbitos reportados no distrito, a comissão “exigiu” a ida do cirurgião, “para

socorrer com remédios a esses desgraçados” e “examinar o estado das sepulturas, dos que ali

se tinham enterrado, e que se diziam estar exalando um mau cheiro e miasmas, que podiam

tornar a epidemia mais intensa e geral”. A pressão do delegado Cordolino teria sido

determinante para demover a resistência de Mattos em atender a determinação dos colegas de

junta. A alusão ao “herói”, tão elogiado na correspondência publicada pelo cirurgião no Pedro

II, era, novamente, usada pelo cônego para desqualificar o desafeto.

Forçado a ir a Quati, ao chegar lá, o cirurgião não teria tratado dos doentes nem

vistoriado o cemitério, retornando rapidamente a Quixeramobim. Teria agido de modo similar

no distrito de Milagres: “E quando assim procedia, estava engajado para curar por conta do

governo, e se julgava com direito de perceber a diária desde o dia do contrato!”. Nestes termos,

Pinto de Mendonça afirmava ter tido “bastante dignidade” ao se recusar a assinar atestados

favoráveis ao cirurgião839.

Na sequência, o cônego insinuava ter Francisco de Mattos se apropriado dos remédios

destinados aos doentes pobres, coisa que, insinuava, não fazia pela primeira vez, pois “uma

grande ambulância” existiria “em sua casa desde 1856”, quando a presidência do Ceará

remetera medicamentos para vários pontos, devido à presença do cólera nas províncias vizinhas.

daí porque tentou convencer o diplomata Manoel Caetano de Gouveia a servir de fiador no caso, manobra abortada

pela intervenção de Pinto de Mendonça, “antigo amigo e compadre” do cônsul português, nas palavras do cônego

(O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 3). Indícios revelados pela imprensa apontam que Mattos não cumpriu os

termos contratados, levando o governo provincial a enviar para Assembleia Legislativa proposta de rescisão ainda

em 1862. Aprovado o rompimento, Francisco José de Mattos ganhou uma década de prazo para devolver aos

cofres provinciais os “dez contos que já recebeu para esse fim” (Pedro II, n. 282, 11 dez. 1862, p. 2). 838 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 3, grifos da fonte. 839 Idem.

215

Sendo assim, indagava Pinto de Mendonça: “como o Sr. Mattos teve a coragem de pedir à

comissão de socorros uma atestação, de que fornecera aos pobres, remédios grátis de sua

farmácia particular?”. Para dar mais veracidade ao relato, o texto citava um conflito ocorrido

entre Mattos e o “boticário Sousa”. Quando a comissão de socorros procurou comprar remédios

a serem enviados à vila de Quixadá, o boticário aceitou fornecê-los por cerca de quarenta mil

réis. Todavia, Francisco de Mattos, “o nosso homem de boa consciência”840, se propôs a vender

os mesmos medicamentos por vinte e cinco mil réis. A oferta não poderia ser mais suspeita,

levando o boticário Sousa, “exasperado”, a dirigir-se à casa do cônego,

[...] onde se achavam o Sr. Dr. Mendes e outras pessoas, dizendo em altas

vozes que o Sr. Mattos vendera por semelhante preço, porque os remédios

nada lhe custaram; pois eram os próprios do governo, principalmente a massa

cáustica, que ele não tinha, e não era capaz de preparar como a que vendera, e

pelo preço porque o fizera841.

Na sequência, o vigário de Quixeramobim negava ter usado “baetas e remédios do

governo para meus escravos”. Informava ter se prevenido de tudo necessário ao bem-estar da

família e “para socorrer aos pobres, no que fosse compatível com as minhas forças”. Já Mattos

teria usado cobertores com seus escravizados, além de dá-los a “seus amigos e pessoas

conhecidas” com condições de comprar tais peças no comércio. Enquanto as baetas eram

distribuídas conforme as afinidades pessoais do cirurgião, indivíduos necessitados não as

recebiam: “há muito confessei, e vi com dor, que não tinham um pano para se cobrirem”842.

O conflito entre o cônego e o cirurgião de Quixeramobim e as demais ocorrências,

apresentadas ao longo deste tópico, exemplificam como a imprensa cearense colocou em

circulação versões díspares a respeito das comissões de socorros e dos seus membros, também

politizando a cobertura sobre elas.

Para além das polêmicas e independentemente dos resultados práticos obtidos, as juntas

sanitárias foram estratégicas na organização dos socorros nas diferentes localidades atingidas

pelo cólera em 1862. Elas tomaram decisões sobre questões higiênicas e sanitárias,

840 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 3, grifos da fonte. 841 Idem. 842 Após findar o longo relatório sobre o cirurgião Mattos, Pinto de Mendonça anexou a transcrição de vários

documentos e correspondências, na busca de validar as afirmações feitas. Nessa espécie de dossiê, constavam:

manifestação da Câmara Municipal, assinada por cinco vereadores, elogiando os serviços prestado pelo vigário na

quadra epidêmica; atestado do juiz de direito, que presidiu a comissão de socorros; declarações do delegado de

polícia; trecho do relatório escrito pela comissão sanitária para envio do governo provincial; cópias de cartas

escritas pelo cônego solicitando informações e pedindo aos destinatários autorização “para fazer o uso que me

convier” das respostas; e cartas do inspetor de quarteirão e de outro morador de Quati, descrevendo o mau

comportamento de Francisco de Mattos na localidade, quando fora enviado para tratar doentes e examinar as

condições do cemitério. O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 3-4.

216

improvisaram enfermarias, administraram recursos do governo provincial, promoveram

subscrições, agenciaram o enterro dos corpos, entre outras ações emergenciais. Numa província

com poucos médicos, sendo a maior parte residente em Fortaleza, e com apenas uma instituição

hospitalar – a Santa Casa de Misericórdia da capital, com um ano de existência quando da

chegada do cólera843 –, as comissões foram acionadas para garantir a distribuição de recursos,

medicamentos e cobertores por todo Ceará.

Em meio aos turbulentos dias do cólera, alguns comissionados, juntos a outros

indivíduos não inclusos nas comissões, conseguiram projeção social pelas ações executadas

durante a epidemia. Sobre tais personalidades foram publicados muitos textos na imprensa, com

elogios aos atos de caridade e filantropia supostamente realizados. Isso não deixou de trazer

possibilidades de favorecimento aos mesmos.

Por outro lado, passada a epidemia, entre 1863 e 1864, o cenário político do Ceará

reconfigurou-se, com a simbólica ascensão dos grupos posicionados ao lado do presidente da

província durante a crise. Fatores externos e internos explicavam as mudanças. É a respeito dos

prêmios almejados pelos prestadores de serviços durante o cólera e sobre o redesenho da

política no Ceará que o próximo capítulo irá deter-se.

843 Segundo Luciana de Moura Ferreira, a Irmandade da Misericórdia de Fortaleza foi criada em 1839, por ocasião

da visita de D. João da Purificação Marques Perdigão, Bispo de Olinda e Recife, diocese a qual estava ligado o

Ceará à época. A irmandade tinha por principal objetivo erguer um hospital. Todavia, apenas em 1847 teve início

a construção, sendo finalizada uma década depois. A lei provincial n. 958, de 4 de agosto de 1860 autorizou o

funcionamento do hospital, inaugurado em 14 de março de 1861. FERREIRA, Luciana de Moura. A Santa Casa

de Misericórdia de Fortaleza: acolhimento de enfermos e educação para a saúde pública (1861-1889). Tese

(Doutorado em Educação Brasileira). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017, p. 76.

217

CAPÍTULO 4 - À ESPERA DOS PRÊMIOS: O PÓS-CÓLERA NO CEARÁ

4.1 - “É a epidemia dos elogios”

Senhor Redator,

Na terrível época do cólera, por que passamos, como é natural, aparecem

nessas ocasiões, que se formam tempos de exceção, e anormais, pessoas que

se distinguem, representando, cada um o seu papel, uns inspirados pelo gênio

do mal, faltando a caridade, só cuidando de si, sendo todo egoísta; e, o que é

mais, até se locupletando por ocasião da desgraça alheia, outros ao contrário,

como que fazendo um protesto contra os atos daqueles, dando um testemunho

de que o homem não é mau por natureza, e que o seu coração é incapaz dum

sentimento inútil, ei-los que se mostram heróis, ou protagonistas do drama de

dor, e de sofrimento para a humanidade844.

A citação acima serviu de preâmbulo à missiva assinada pelo pseudônimo Justus,

veiculada na sessão “Correspondência”, do O Cearense, em fins de agosto de 1862. Publicada

com o título “O capitão Carmo perante o cólera no Icó”, tinha como objetivo fazer o elogio dos

serviços prestados por Joaquim do Carmo Ferreira Chaves, do corpo de polícia provincial. Na

introdução, afirmava serem os momentos críticos, tal como o vivenciado na cidade por conta

do cólera, gatilhos para a leitura sobre a natureza das pessoas: de um lado, estariam aquelas

representadas sobre o viés do egoísmo e da maldade; do outro, as generosas, boas, por deixarem

os interesses pessoais em prol dos coletivos. Se às primeiras faltava o sentimento de “caridade”,

nas últimas sobrava altruísmo, tornando-as heroicas e protagonistas.

O texto lançava elogios aos prestadores de “bons serviços”, sendo “merecedores duma

honrosa menção”. Assim, sem citar nomes, elogiava médicos e sacerdotes, responsáveis pelo

socorro físico e espiritual dos enfermos, mas também proprietários rurais e negociantes

“caridosos, com os seus socorros pecuniários em favor da pobreza”. A partir desse ponto, Justus

começava a descrever as ações de Joaquim do Carmo na quadra epidêmica, quando se portara

não “somente como um soldado, um comandante de destacamento”, mas, “antes de tudo isto,

olhou-se como homem, como cristão!”845. Embora afirmasse não desejar “ferir

suscetibilidades”, em alusão à pretensa vontade do capitão de manter discrição sobre os atos

realizados, a carta o descrevia como alguém que “se multiplicava”, servindo a todos, ricos e

pobres. Seus principais atos teriam tido lugar nas duas enfermarias montadas na cidade, no

teatro e na cadeia pública. Mesmo tendo contraído o cólera, o militar teria se recusado a parar

844 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 3. 845 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 3.

218

“de acudir” a “quem lhe batia a porta”. Por isso, “pulou da cama fora, e ficou bom, e Deus o

consentiu sem dúvida para continuar na sua carreira de abnegação e de caridade com os seus

serviços extraordinários”846.

Após descrever Joaquim do Carmo Ferreira Chaves quase como santo, determinado em

continuar servindo aos que procuravam auxílio, mesmo estando ele debilitado, a carta revelava

outra faceta do capitão, bastante valorizada numa sociedade marcada pela desigualdade social,

escravidão e preconceito de cor: a energia para impor a ordem. Segundo Justus, “certa gente

ruim, que infelizmente sempre se honra com a denominação de canalha”, esteve a ponto de

tumultuar a cidade. Tais pessoas teriam realizado “vários roubos e tentativas para outros, como

até se suspeitou que pretendiam formar grupos, e invadir as casas dos ricos, que eles supunham

ter dinheiro”. Neste cenário, Joaquim do Carmo mostrou o gênio militar:

Essa gente cruel, e ingrata, no dia que via morrer maior número de pessoas

boas e gradas, supunha-se incólume, e dizia que os brancos se acabariam; e

gritava – o Icó é nosso –. O capitão Carmo do mesmo modo que era caridoso,

e brando, torna-se enérgico, e forte para castigar os desmandos da canalha847.

Pelo trecho, deduz-se ter a camada abastada e branca do Icó temido a conjuntura

epidêmica, pela ameaça de desordem social, caracterizada pela pretensa ação da “canalha”,

representada como criminosa. O medo da doença somou-se ao temor das “classes perigosas”848,

fenômeno visível em outras epidemias do cólera no mundo oitocentista, onde os pobres,

majoritariamente vítimas da doença, foram representados como focos de desordem, ou

protagonizaram, de fato, rebeliões849. Todavia, “as pessoas boas e gradas” da cidade tinham

quem lhes valesse. Quando a mortalidade aumentou, sendo “preciso sepultar de 40 a 50, e mais

846 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 3. 847 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 3. 848 A descrição feita por Justus sobre a “canalha” do Icó encaixa com a visão preconceituosa presente na expressão

“classes perigosas”. O termo teve ampla difusão no Ocidente ao longo do oitocentos. No geral, era utilizada para

definir segmentos marginalizados, que recusariam trabalhos, preferindo viver cometendo crimes. No caso do

Brasil, “classes perigosas” seriam representadas como “classes pobres viciosas”, majoritariamente vistas como

compostas por pessoas de cor, tidas como fonte constante de ameaça ao ordenamento social. Ver: CHALHOUB,

op. cit., 1996, p. 20-23. 849 Como já afirmado anteriormente, revoltas populares ocorreram durante os surtos de cólera em países como

França, Rússia e Alemanha. Em 1856, o caso do “Pai Manoel” também levou Recife à beira de uma revolta,

liderada pelas camadas negras da cidade, que suspeitavam de um complô das autoridades para matar a “gente de

cor” (DINIZ, op. cit., 2003, p. 358). A quadra epidêmica trazia problemas que aumentavam as tensões sociais, tais

como: elevação dos preços dos alimentos, por conta das medidas de quarentena; as mudanças impostas sobre o

cotidiano da população, como nos ritos religiosos e nas práticas de cura tradicionais; as medidas disciplinadoras

de médicos e autoridades públicas; a piora das condições de trabalho e higiene; etc. Por outro lado, entre as elites,

assustadas com a epidemia e com a possibilidade de distúrbios sociais, prevalecia um discurso que via a doença

como resultante da “fraqueza moral e falta de autocontrole” da pobreza, isentando-se de uma percepção mais ampla

dos problemas da época, como se a “distribuição desigual da riqueza e da saúde” fossem “responsabilidade do

indivíduo e não da sociedade como um todo” (EVANS, op. cit., 2005, p.355). Todos esses fatores ajudam a

problematizar o cólera como fenômeno histórico.

219

por dia e noite”, a “gente ruim” foi forçada a se integrar nos trabalhos do cemitério. Quando se

negavam a fazê-lo, “mesmo mediante boa paga e muitas rogativas”, o “cinturão do soldado era

apontado a esses desalmados, que só assim se prestavam” aos afazeres. Desta forma, sem a

coação liderada pelo capitão Joaquim do Carmo, disciplinando e subordinando a “canalha”, “os

cadáveres ficariam insepultos”850 e a turba tomaria Icó.

Ao apontar as tensões existentes na primeira cidade tocada pelo cólera no Ceará e a

mescla entre brandura e energia do capitão Joaquim do Carmo, a missiva de Justus é um dos

exemplos mais interessantes da série de textos elogiosos, publicados na imprensa cearense ao

longo de 1862, voltados à avaliação dos serviços prestados por determinadas pessoas durante a

epidemia. Comumente descritas como atos de “justiça”, as publicações afirmavam-se

motivadas pela gratidão das localidades com os socorros oferecidos por figurões locais na crise,

usualmente apresentados como discretos, não adeptos do autoelogio e autopromoção.

Não obstante a suposta característica reservada dos beneméritos, as correspondências e

notícias publicadas nos jornais afirmavam-se no dever de divulgar os serviços proporcionados

por eles. Autor de publicação intitulada “Um voto de gratidão aos benfeitores de Baturité na

presente quadra”, Antônio Francisco da Silveira Júnior assegurava ser o louvor “o salário da

virtude na terra, enquanto no Céu o Onipotente decretará outro que não é dado aos mortais

conhecerem”851. Ao afirmar isso, o autor fazia referência a um princípio evangélico: “Tende o

cuidado de não praticar as vossas boas ações à frente das pessoas para serdes vistos por elas. Se

assim não for, não tendes recompensa da parte do vosso Pai que está nos céus” (Mateus 6, 1)852.

Contudo, argumentava Silveira Júnior, “além do louvor”, haveria algo mais “nobre nos

sentimentos do homem justo, que é o reconhecimento de gratidão”853. Assim, o dever de

gratidão do autor para com dez pessoas destacadas exemplarmente durante o cólera em Baturité

seria o mote da publicação e não a louvação condenada pelo evangelho, por colocar em risco a

“recompensa” celeste das boas práticas.

Não faltaram relatos parecidos com os de Silveira Júnior na imprensa cearense de 1862.

Alguns eram longos, fazendo apanhado geral de cada benfeitor local. No entanto, foi comum,

também, a publicação de notícias curtas, dando conta de obras individuais realizadas em prol

dos pobres acossados pelo cólera, como evidenciam os exemplos a seguir:

850 O Cearense, n. 1539, 26 ago. 1862, p. 3. 851 O Cearense, n. 1538, suplemento, 10 ago. 1862, p. 1. 852 Bíblia: Novo Testamento – Os quatro Evangelhos. Vol. 1. Tradução do grego, apresentação e notas por

Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 78. 853 O Cearense, n. 1538, suplemento, 10 ago. 1862, p. 1.

220

Esmolas – O Sr. José Smith de Vasconcellos, também muito conhecido nessa

cidade pelo seu gênio filantrópico, acaba de dar mais uma prova de sua

caridade ofertando para os hospitais que o governo vai montar, para o

tratamento do cólera, cem camisas, e cem cobertores; louvamos ao Sr. Smith

por tanta generosidade854.

De carta do nosso correspondente do Saboeiro, [...], consta que o cólera se

acha extinto no Assaré, tendo feito umas 140 e tantas vítimas.

O nosso prestimoso amigo Dr. Gonçalo Batista Vieira fez um ato de caridade

e que muito honra e recomenda seu caráter à gratidão pública, socorrendo

aquele lugar com dinheiro, e dando ordem franca para se fornecer o gado

necessário durante a epidemia855.

Se a caridade era usada para propagandear os feitos de certos indivíduos, a pretensa

ausência dela também servia para ataques. Em setembro de 1862, O Araripe publicou notícia

intitulada “ESMOLA”. Nela, tratava do padre Antônio Pereira de Vasconcelos, morador de

Missão Velha. Segundo o jornal, o sacerdote seria “um dos mais opulentos capitalistas da

província”. No tempo do cólera, teria sido “convidado pela comissão sanitária [...] para

subscrever em favor da população pobre da freguesia”, ocasião na qual “dignou-se enviar-lhe,

para este fim, NADA”856. O Araripe ironizava a situação, dizendo “consignar este ato de

generosa caridade de um sacerdote velho, que caça de espingarda para comer!”. Além da

acusação de avarento, Vasconcellos ainda teria falhado em suas obrigações, pois “não quis, por

exemplo, ouvir em confissão a um colérico, para quem fora chamado!”. O Araripe arrematava

em tom de galhofa: “Fique isto consignado, para que seja eterna a gratidão do público”857.

Pela leitura das citações acima, fica claro serem a caridade e a filantropia fulcrais nas

narrativas sobre ações de grandeza na conjuntura epidêmica. Segundo Michel Mollat, as noções

de “filantropia” e “beneficência” surgiram no século XVIII, passando a concorrer com os

tradicionais termos “caridade” e “misericórdia”. Enquanto os últimos embasavam-se em longos

imaginários religiosos e práticas piedosas tradicionais, as novas palavras teriam sentidos mais

profanos, ligados à “razão do Estado” e às novas preocupações com o lugar dos pobres nas

sociedades858. Para Gisele Sanglard e Luiz Otávio Ferreira, as obras filantrópicas, idealmente,

pressupunham uma ação social desvinculada do caráter espiritual ou missionário:

A filantropia, ou benemerência, é um neologismo surgido na França das Luzes

e se difere da caridade por se propor estar desvinculada de qualquer vestígio

de piedade e ter subjacente a ideia da utilidade social. Ao passo que a caridade

reflete o temor a Deus e uma atitude de resignação ante a pobreza, ou, dito de

outra forma, a caridade sempre se pautou por minimizar o sofrimento alheio;

854 O Cearense, n. 1523, 6 mai. 1862, p. 1. 855 Pedro II, n. 197, 29 ago. 1862, p. 1. 856 O Araripe, n. 287, 6 set. 1862, p. 2, grifos da fonte. 857 O Araripe, n. 287, 6 set. 1862, p. 2 858 MOLLAT, Michel. Os pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 290.

221

a filantropia, uma virtude laicizada, é uma ação continuada, refletida e não

isolada859.

Malgrado a diferenciação entre “caridade” e “filantropia”, os autores afirmam: no

Brasil, o limite entre as duas noções era tênue860. As publicações sobre o cólera no Ceará de

1862 comprovam a afirmação. Elas, nitidamente, mesclaram as terminologias, tomando-as por

sinônimos. Os recursos doados por figurões aos pobres, por exemplo, eram classificados como

“esmolas” em algumas ocasiões, ou como “subscrições” noutras, mas a noção caritativa

permanecia subjacente em ambos os casos. A indistinção entre atos caridosos e filantrópicos

aparece, inclusive, numa nota divulgada pelo O Sol:

Caridade – O Sr. Dr. Antônio Vicente do Nascimento Feitosa, ilustre

pernambucano, e advogado do Recife remeteu pelo Jaguaribe uma

ambulância de medicamentos para cura dos afetados da epidemia da freguesia

de Santa Ana do Acaracu; e o Sr. deputado desembargador Figueira de Mello

200$000 réis para serem distribuídos com coléricos indigentes do Sobral.

Louvores a estes dois cidadãos filantrópicos861.

Na prática, naquele contexto, caridade e filantropia definiam atos exercidos por pessoas

abastadas a, no máximo, minorar o sofrimento de alguns indigentes em ocasiões específicas,

sem modificar em nada as condições sociais causadoras da miséria. Tratando da epidemia do

cólera em Hamburgo, em fins do século XIX, Richard J. Evans afirmou ter a filantropia

desempenhado um papel importante na legitimação da desigualdade social da cidade862. Seja

pelo sentimento de piedade ou pelo cálculo político em torno das “classes perigosas”, os

serviços prestados por setores das elites cearenses em 1862 estavam próximos do que Sanglard

e Ferreira definiram como um “relacionamento intraclasse – com uma política para os pobres e

uma política entre elites”863. Ademais, como venho demonstrando, os atos generosos praticados

por alguns indivíduos rendiam louvores públicos, forma de aumentar a distinção social deles.

As câmaras municipais cearenses também foram responsáveis pela difusão de notas

laudatórias a respeito da beneficência. Várias dessas instituições aprovaram votos de

agradecimento a cidadãos envolvidos nos socorros públicos das localidades. Tais documentos

eram divulgados na imprensa, ganhando repercussão pela província. Quando foi alvo de

859 SANGLARD, Gisele; FERREIRA, Luiz Otávio. Caridade e filantropia: elites, estado e assistência à saúde no

Brasil. In: TEIXEIRA, Luiz Antonio; PIMENTA, Tânia Salgado; HOCHMAN, Gilberto (orgs.). História da saúde

no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2018, p. 149. 860 SANGLARD; FERREIRA, op. cit., 2018, p. 152. 861 O Sol, n. 281, 22 jun. 1862, p. 3, grifos da fonte. 862 EVANS, op. cit., 2005, p. 478. 863 SANGLARD; FERREIRA, op. cit., 2018, p. 148.

222

acusações desabonadoras da atuação como membro da comissão sanitária e vigário de

Quixeramobim, o cônego Pinto de Mendonça publicou n’O Cearense um voto de

agradecimento dos vereadores. Segundo o documento, o cônego prestara “grandes e valiosos

serviços” durante a “calamitosa quadra”, agindo “com tanto zelo, e dedicação que apesar do

horror que incutiu nos ânimos esse cruel flagelo da humanidade, e apesar de sua adiantada idade

se mostrou intrépido, e incansável na distribuição” dos socorros espirituais e temporais. Sobre

estes últimos, destacava ter sido Pinto de Mendonça um “dos que subscreveram mais avultada

quantia em benefício dos indigentes, aos quais particularmente ainda esmolava o pão da

caridade”. O voto de agradecimento finalizava declarando: os “relevantes serviços” do cônego,

jamais seriam esquecidos por quem sabe “apreciar os atos de verdadeira bondade”, afinal, foi

“na sua freguesia um dos heróis dessa época calamitosa, em que se portou como zeloso pastor,

e como cidadão prestimoso”864.

A quantidade de impressos exaltando o papel de padres, médicos, funcionários públicos,

proprietários rurais, negociantes, entre outros indivíduos abastados, pelos trabalhos realizados

durante a quadra epidêmica, não deixou de suscitar críticas. A meu ver, a mais interessante

estava numa carta enviada de Baturité ao O Cearense. Assinada pelo pseudônimo “José

Macaco”, e datada a 11 de setembro de 1862, informava à redação o desaparecimento da

“epidemia do cólera que tão horrorosamente devastou esta cidade”. Não obstante a “agradável

notícia”, o missivista noticiava ter o cólera dado lugar a “outra epidemia, se não tão terrível e

perigosa, pelo menos de lúgubres consequências”: a “epidemia dos elogios”865. Segundo José

Macaco, “todos querem merecê-los, e por causa disto já se vão desenvolvendo profundos

desgostos, e até mesmo algumas brigas têm havido”.

Narrava ter uma reunião da Câmara Municipal sido convocada com o propósito único

de “tecer elogios”, levando o missivista a supor: “haverá nela muitas bordoadas, e que alguém

irá visitar a cadeia”. Fazendo alusão à diarreia causada pelo cólera, deixando “a barriga vazia”,

José Macaco mostrava-se espantado com “certas pessoas” a pretender encher o abdômen “com

elogios”. Sobre a reunião, conversara com um vereador. Este confessara não ter informações

suficientes para atestar as obras de alguns indivíduos candidatos aos louvores da casa

legislativa: “Eu fui chamado pela câmara para fazer elogios a essas pessoas, mas que morando

distante da cidade, assim como muitos dos vereadores, não sei como me ei de atar, salvo se

atestar como testemunha ocular por ouvir dizer e tudo mais é história”866. A confidência, quase

864 O Cearense, n. 1554, 9 dez. 1862, p. 3. 865 O Cearense, n. 1543, 25 set. 1862, p. 3. 866 O Cearense, n. 1543, 25 set. 1862, p. 3, grifo da fonte.

223

levara José Macaco a abandonar a sisudez e dar “uma famosa gargalhada”. Ante a busca de

saudações por tantas pessoas, indagava o que estaria por traz do fenômeno. Insinuando não ter

certeza sobre o caso, indicava a possibilidade do governo ter prometido “algum prêmio, ou

alguma comenda a quem fosse elogiado, pois nunca vi tanta fome, e desespero por elogio”867.

A hipótese não se dava ao acaso. O próprio presidente do Ceará fazia promessas veladas,

na correspondência oficial, sobre a possibilidade de premiar os bons serviços oferecidos durante

a crise epidêmica. Dirigindo-se ao médico Manoel Marrocos Telles, que se prestava “a tratar

gratuitamente a classe indigente acometida da epidemia reinante” em São João do Príncipe,

Figueiredo Júnior afiançava não ser “indiferente ao desinteresse” e à “esplêndida prova” dados

por Marrocos naquela vila, deixando implícita a chance de recompensa: “cumpro o grato dever

de louvar os seus sentimentos de filantropia e caridade, assegurando-lhe que o governo toma

no devido apreço os seus valiosos serviços”868.

A expectativa de que atos altruístas exercitados na epidemia poderiam ser remunerados

não se dava ao acaso. Estava ancorada na política de gratificações adotada nas monarquias

portuguesa e brasileira. Como demonstrou António Manuel Hespanha, no Antigo Regime

português, determinados “ofícios públicos”, exercidos “sem caráter profissional e quotidiano,

participavam do imaginário do serviço religioso, combinado com o imaginário do serviço

feudal”869. Ambos pressupunham a “gratuidade”: eram prestados conforme “um nobre

espírito”, análogo “à disponibilidade dos crentes para o serviço de Deus ou dos vassalos para o

serviço de seu nobre senhor”. Por isso, o pagamento por eles não era obrigatório, nem podia se

assemelhar ao “salário dos ofícios mercenários”, dado em troca de um trabalho. Não obstante,

havia a esperança de recompensa, pelos atos extraordinários realizados, graças à “liberalidade

do príncipe”, a quem cabia o dever de “retribuir com mercês os serviços dos beneméritos”. Do

mesmo modo, os ocupantes de postos administrativos, mesmo recebendo salários regulares

pelas funções executadas, também podiam receber prêmios do príncipe como remuneração pelo

bom desempenho870.

Como apontou Jurandir Malerba, a partir da segunda metade do século XVIII, as

“distinções hierárquicas” tornaram-se o “principal capital que dispunha a monarquia” lusa para

“retribuir a fidelidade dos vassalos”871. Em momento delicado para a dinastia Bragança, a

867 O Cearense, n. 1543, 25 set. 1862, p. 3. 868 Pedro II, n. 113, 21 mai. 1862, p. 2. 869 HESPANHA, António Manuel. Caleidoscópio do Antigo Regime. São Paulo: Alameda, 2012, p. 208. 870 HESPANHA, op. cit., 2012, p. 209. 871 MALERBA, Jurandir. A Corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da independência. São Paulo:

Companhias das Letras, 2000, p. 273.

224

transmigração da Corte para o Brasil, Dom João exerceu a “liberalidade” como nenhum outro

monarca português fizera, franqueando mercês aos súditos partícipes da travessia atlântica e

aos grupos abastados brasileiros, especialmente aos negociantes de grosso trato do Rio de

Janeiro. A largueza dos distintivos honoríficos foi tanta, que, houve quem afirmasse

ironicamente: “sobressaía quem não os portava”872.

Após a separação política entre Portugal e Brasil, o império dos trópicos manteve, com

adaptações, o arcabouço das mercês. O artigo 102 da Constituição de 1824 estabeleceu, entre

as prerrogativas do Imperador, a concessão de “Títulos, Honras, Ordens Militares e Distinções

em recompensa de serviços feitos ao Estado”873. Aliás, uma característica inovadora da

monarquia brasileira reforçava o poder pessoal do Imperador: ao contrário da tradição europeia,

a premiar bons serviços com a nobreza vitalícia e hereditária, os nobres brasileiros não

repassavam títulos aos herdeiros: “A hereditariedade só era garantida para o sangue real,

enquanto a titularidade se resumia ao seu legítimo proprietário”874.

Ao longo do período Imperial, a distribuição de títulos foi expediente recorrente para

premiação de méritos, mas também como política do “toma lá dá cá”875, servindo de

compensação em conjunturas específicas. Entre 1888 e 1889, por exemplo, Pedro II nomeou

mais de 170 barões, a maioria “sem grandeza”876. Os nomeados eram proprietários rurais

descontentes com a abolição da escravatura. Para José Murilo de Carvalho, a “Coroa tentava

devolver em símbolo e status o que retirava em interesse material”877.

Até a proclamação da República, em 1889, o número de títulos nobiliárquicos

conferidos foi de 1439878, cifra pequena em comparação às 25111 ordens honoríficas

distribuídas no Segundo Reinado, conforme apanhado feito por Luiz Marques Poliano879.

Algumas das comendas imperiais tiveram origem nas congêneres portuguesas: Nosso Senhor

872 MALERBA, op. cit., 2012, p. 873 NOGUEIRA, op. cit., 2015, p. 77. 874 SCHWARCZ, op. cit., 1998, p. 160. 875 SCHWARCZ, op. cit., 1998, p. 191. 876 A tradição real portuguesa dividia os títulos nobiliárquicos em dois grupos, cada qual com hierarquia interna

própria: os de “grandeza” correspondiam aos duques, marqueses e condes. Já viscondes e barões estavam entre os

“sem grandeza”. Quando Dom João VI esteve no Brasil, entre 1808 e 1820, 44 títulos foram criados segundo essa

divisão, sendo os de “grandeza” distribuídos entre fidalgos portugueses. Apenas sete títulos “sem grandeza” foram

dados a brasileiros (RAMINELLI, Ronald. Nobreza do novo mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e

XVIII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 123). Com a independência do Brasil, novas distinções qualitativas

foram introduzidas no grupo dos viscondes e barões, que passariam a ter ou não “grandeza”. Os detentores da

distinção encontravam-se na seleta categoria dos “grandes do Império”. Neste sentido, o título de “barão sem

grandeza” era o menos importante, geralmente distribuído a grandes proprietários rurais, como os “barões do café”

da segunda metade do oitocentos (SCHWARCZ, op. cit., 1998, p. 175). 877 CARVALHO, op. cit., 2008, p. 258. 878 SCHWARCZ, op. cit., 1998, p. 160. 879 POLIANO, Luiz Marques. Ordens honoríficas no Brasil: história, organização, padrões, legislação. Rio de

Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, p. 126.

225

Jesus Cristo; São Bento de Avis; e São Tiago da Espada. Ser nomeado cavaleiro nelas era objeto

de desejo durante o período colonial, como demonstram os polêmicos processos para

comprovação de “pureza de sangue” a que estavam submetidos os candidatos a fidalgo880.

Em 1827, bula papal de Leão XII separou a Ordem de Cristo brasileira da originária

lusa, criada no século XIV. Concedeu, ainda, aos imperadores brasileiros “o Grã-mestrado

perpétuo” nas três ordens citadas acima881. Todavia, o parlamento não aprovou o beneplácito

dado ao Imperador. Por fim, o decreto imperial n. 321, de 9 de setembro de 1842, regulamentou

a situação das ordens herdadas de Portugal, adaptando-as, ao substituir o caráter militar e

religioso originário por elementos “meramente civis e políticos”, destinados a “remunerar

serviços feitos ao Estado tanto pelos súditos do Império como por estrangeiros beneméritos”882.

Além das ordens herdadas da antiga metrópole, Pedro I criou outras: a Ordem Imperial

do Cruzeiro (1822); a Ordem de Dom Pedro (1826); e a Ordem da Rosa (1829). Entre as

comendas existentes no Império, a da Rosa883 foi a mais acionada por Pedro II. Segundo

Artidóro Pinheiro, até 1883, foram 14284 nomeações, com ampla vantagem em relação à

segunda colocada, a Ordem de Cristo, com 6616884. Já Luiz Poliano, calculou em 15146 o

número de agraciados com a Ordem da Rosa no Segundo Reinado885, o equivalente a 62% de

todas as concessões honoríficas registradas no período.

Tratando das ordens honoríficas no Primeiro Reinado, Camila Borges da Silva apontou

questões que ajudam a entender a importância adquirida por elas ao longo do período imperial.

Como as condecorações estavam embasadas no princípio de “retribuição dos serviços

prestados”, elas instituíam uma relação dialética entre a Coroa e os súditos, promovendo trocas

entre a Corte e as elites dos diferentes pontos do Império:

[...] a Coroa dependia das ordens para a busca de serviços e de apoio dos

grupos locais, uma vez que estes últimos poderiam tornar viável o ideal da

880 RAMINELLI, op. cit., 2015, p. 49-59; CADENA, op. cit., 2013, p. 36-45. 881 PINHEIRO, Artidóro Augusto Xavier. Organização das Ordens Honoríficas do Império do Brazil. São Paulo:

Typographia a vapor de Jorge Seckler & c, 1884, p. 4. 882 POLIANO, op. cit., 1943, p. 77. 883 A Ordem da Rosa foi instituída a 17 de outubro de 1829, como parte das comemorações pelo casamento de

Pedro I com Dona Amélia. O decreto de fundação defendia serem as distinções honoríficas “dignas recompensas

de ações ilustres”, além de “eficazes estímulos para empreendê-las”, tendo em conta o desejo de “reconhecimento

público”. Tanto brasileiros quanto estrangeiros podiam ser agraciados com a Ordem da Rosa pela “fidelidade” ao

monarca e “serviços feitos ao Império”. Ela foi a ordem imperial com mais classes hierárquicas: Grã-cruzes

(limitado a 16 vagas, entre 8 efetivas e 8 honorárias); Grandes Dignitários (16 vagas); Dignitários (no número de

32); Comendadores, Oficiais e Cavaleiros (classes sem quantidade delimitada). O Imperador era o grão-mestre da

ordem, enquanto o príncipe herdeiro seria “Grã-cruz e Grande Dignitário Mor”. Os demais príncipes da família

imperial eram Grã-cruzes. Aos agraciados eram garantidas insígnias, títulos de tratamento e honras militares

variando de acordo com a classe ocupada. PINHEIRO, op. cit., 1884, p. 20-22. 884 PINHEIRO, op. cit., 1884, s/p. 885 POLIANO, op. cit., 1943, p. 126.

226

centralização política. Essa relação entre Coroa e súditos era viabilizada

através do desejo de nobilitação existente na sociedade imperial, que fazia

com que as práticas sociais fossem mediadas por estratégias que visassem

elevar a pessoa a um círculo mais ou menos seleto de pessoas886.

Ainda segundo a autora, o desejo de distinção ancorava as representações sociais

existentes a respeito das ordens. O condecorado era visto como ocupante de estamento superior,

com reconhecimento e prestígio, por ser portador de “certa trajetória e de uma estilização da

vida”887. O beneficiado com a insígnia, inclusive, estava disposto a pagar caro pela manutenção

da posição social diferenciada888. Por outro lado, chegar ao círculo fechado dos nobilitados,

indiciava o pertencimento a “redes de conhecimento pessoal que levavam o pretendente ao

soberano”889. A concessão da honraria era apanágio do Imperador. Mas, ao concedê-la,

respondia às demandas e indicações dos grupos sustentáculos do seu poder. Não por acaso, o

aspirante às ordens precisava amparar o pedido de mercê com atestados de autoridades. Quanto

mais bem relacionada fosse uma pessoa, com laços familiares, pessoais e políticos a ligá-la a

ocupantes de postos destacados do Império, maior a chance de alcançar a distinção.

Feitas tais ponderações, é compreensível a razão dos primeiros surtos do cólera no

Brasil, entre 1855 e 1856, tornarem-se mote para atestados de conduta enviados à Corte.

Escritos por autoridades religiosas e políticas das províncias, davam conta do desempenho de

indivíduos na quadra epidêmica. Muitos dos atestados foram solicitados por pessoas ávidas em

ascender na nobilitação já conquistada. Antônio Lacerda de Chermont, o Barão de Arari, por

exemplo, solicitou a Dom José Affonso de Moraes Torres, Bispo do Pará, atestado sobre como

procedera na conjuntura do cólera em Belém, sendo atendido pelo prelado:

Atesto que o Senhor Barão do Arary durante a epidemia do cólera que atacou

ultimamente a Capital do Pará, prestou-se a socorrer à pobreza, não só com

avultadas esmolas pecuniárias, como com carne verde. Mandando-a distribuir

pelos pobres gratuitamente todos os domingos e quintas feiras como consta de

anúncios nos jornais desta cidade, onde é público este ato de caridade, que

886 SILVA, Camila Borges da. As ordens honoríficas e a Independência do Brasil: o papel das condecorações na

construção do Estado Imperial brasileiro (1822-1831). Tese (Doutorado em História). Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014, p. 31. 887 SILVA, op. cit., 2014, p. 37. 888 As ordens honorificas não deixaram de propiciar receita ao tesouro público. Os condecorados pagavam

impostos que variavam de acordo com a classe ocupada. Ao longo do Segundo Reinado, as taxas foram sendo

elevadas, atingindo valores nada irrisórios. Por exemplo, o decreto 7540, de 15 de novembro de 1879, estabelecia

os seguintes valores para os diplomas das condecorações: um conto e cento e noventa e cinco mil réis para os Grã-

Cruzes de qualquer ordem; novecentos e cinquenta mil réis para os Grandes Dignitários da Ordem da Rosa;

setecentos e trinta e cinco mil réis para Dignitários da Rosa e do Cruzeiro; quatrocentos e cinco mil réis para

Comendadores da Rosa e trezentos e trinta mil réis para a mesma classe das outras ordens; quatrocentos e cinco

mil réis para Oficias da Rosa e do Cruzeiro; e cento e noventa e cinco mil réis para Cavaleiros de qualquer ordem.

POLIANO, op. cit., 1943, p. 127-128. 889 SILVA, op. cit., 2014, p. 37.

227

usou para com os necessitados, assim como a faculdade, que deu a todos para

se proverem de aguardente de seu engenho sem alguma paga, na ocasião em

que ela era considerada como um dos importantes remédios contra aquele

mal890.

Documentos do tipo serviram de embasamento ao governo Imperial para a concessão

de títulos e comendas. Aliás, alguns dos que almejavam as distinções apelaram diretamente aos

políticos influentes no Império. Caetano Maria Lopes Gama, o Visconde de Maranguape, foi

um dos a usar o cólera para justificar a concessão de honrarias em favor de conhecidos. Indícios

disto constam em carta dirigida ao Marquês de Olinda. A missiva não foi datada. Todavia, pelo

conteúdo e destinatário, deve ter sido escrita entre 1857-1858, quando Maranguape ocupava a

pasta dos Negócios Estrangeiros no gabinete presidido pelo marquês. Na carta, Maranguape

enviava o “requerimento de Antônio Félix”, sobre o qual “ontem te falei”. O requerente tinha

acrescido “documentos para provar” ter mantido, durante a epidemia de 1856, “um médico no

engenho onde lhe morreram 28 escravos”. O profissional teria tratado “os doentes da

vizinhança”, medicando-os com a “botica que Antônio Félix tinha para esse fim estabelecido

no seu engenho”891. Segundo o Visconde de Maranguape, não haveria “naquele distrito quem

não saiba desses atos de caridade praticados por esse fazendeiro”892.

Já Luiz Pedreira do Couto Ferraz, futuro Visconde do Bom Retiro, chefe do Ministério

dos Negócios do Império quando dos surtos de cólera de 1855 e 1856, remeteu ao Marquês de

Olinda duas cartas tratando de possíveis condecorações. Na primeira, Couto Ferraz informava

ter “o dever de consciência de falar” a respeito de “certos nomes” cujos serviços por “ocasião

do cólera tomei nota”893. Ele tinha ido à casa de Olinda para abordar pessoalmente o assunto.

Alegava “certa urgência de falar e vê-lo”, mas não o encontrou. Como esperou, em vão, até às

“duas da tarde” o aviso de Olinda sobre o encontro, solicitava “a fineza de mandar-me dizer a

que hora” poderia achá-lo no dia seguinte, pois Couto Ferraz tinha pressa em “ir para Bom

Retiro” 894, localidade da qual tirou o posterior título de visconde.

Não há registro se a reunião ocorreu. Porém, outra carta de Couto Ferraz indicou a

Olinda alguns nomes, descreveu ações realizadas na epidemia e sugeriu as honrarias a serem

890 IHGB. Atestado do Bispo do Grão Pará de que o Barão de Arari socorreu a pobreza durante a epidemia de

cólera na província. 24 março de 1856. Coleção Instituto Histórico. Lata 179, Pasta 73. 891 IHGB. Carta do Visconde de Maranguape ao Marquês de Olinda. Sem data. Lata 213, doc. 68. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 179, Pasta 73. 892 IHGB. Carta do Visconde de Maranguape ao Marquês de Olinda. Sem data. Coleção Marquês de Olinda. Lata

213, doc. 68. 893 IHGB. Carta de Luís Pedreira do Couto Ferraz ao Marquês de Olinda. Sem data. Coleção Marquês de Olinda.

Lata 213, doc. 68. 894 IHGB. Carta de Luís Pedreira do Couto Ferraz ao Marquês de Olinda. Sem data. Coleção Marquês de Olinda.

Lata 213, doc. 68.

228

concedidas a cada um. Nela, Couto Ferraz deixava “tudo bem explicado” e pedia ao marquês

“a maior e mais absoluta reserva” sobre o caso, “sobretudo no tocante a Cantagalo”. Justificava

o sigilo, alegando ser reconhecida “a amizade antiga” a ligar Olinda aos barões de Itapemirim

e de Nova Friburgo, por isso era importante evitar a maledicência: “Deus me livre, que se pense

você nisto ter levado só pela amizade; tal conceito seria injusto e iria prejudicar aos homens”895.

Além dos barões, entre os apontados por Couto Ferraz, destaco: Nicolau Neto Carneiro

Leão, “irmão do falecido Sr. Marquês de Paraná”. Ele “nada pediu, mas parece-me que o

oficialato da Rosa é o menos que você lhe pode dar”; Antônio Ribeiro Fernandes Torres, a

quem coube “a iniciativa dos donativos necessários para acorrer-se às despesas a que o cólera

obrigava”. Homem de muitos serviços e rico, “morre pelo título de barão”. Para o missivista, a

concessão do baronato “sem grandeza” não seria despropositada; Já o vigário do Engenho

Velho, José do Desterro Pinto, “deseja muito as meias encarnadas”896, ou seja, tornar-se bispo.

As correspondências citadas tinham propósito claro: o governo imperial estava

coletando atestados sobre as pessoas mais destacadas na conjuntura epidêmica de 1855 e 1856,

com vista à distribuição de títulos e ordens honoríficas por ocasião do aniversário de Pedro II,

a 2 de dezembro de 1858. Neste sentido, as mensagens de Maranguape e Couto Ferraz,

direcionadas ao Marquês de Olinda, tentavam incluir conhecidos e apadrinhados no rol dos

lembrados pelo beneplácito imperial.

Ao longo do ano de 1858, o Imperador conferiu alguns títulos e ordens honoríficas por

ocasião de festas religiosas e cívicas, além dos aniversários da família imperial, como era de

praxe no calendário da Corte897. Todavia, o governo reservou o dia do natalício de Pedro II para

distribuição massiva de benesses voltadas, especificamente, à “remuneração dos serviços

prestados por ocasião da epidemia do cólera morbo, nos anos de 1855 e 1856” 898. A relação

dos beneficiados, publicada na edição suplementar do Jornal do Commercio, trazia, em

primeiro lugar, os nomes dos novos titulados: dois condes (Santa Cruz899 e Beapendi), dois

viscondes (Boa Vista e Meriti), um barão (Marepi) e uma baronesa (Cametá)900.

895 IHGB. Carta de Luís Pedreira do Couto Ferraz ao Marquês de Olinda. Sem data. Coleção Marquês de Olinda.

Lata 213, doc. 68. 896 IHGB. Carta de Luís Pedreira do Couto Ferraz ao Marquês de Olinda. Sem data. Coleção Marquês de Olinda.

Lata 213, doc. 68. 897 SCHWARCZ, op. cit., 1998, p. 292-294. 898 Jornal do Commercio, n. 331, suplemento, 2 dez. 1858, p. 1. 899 O premiado com o título de Conde de Santa Cruz, foi D. Romualdo Antônio de Seixas de Santa Cruz, então

bispo da Bahia. Jornal do Commercio, n. 331, suplemento, 2 dez. 1858, p. 1. 900 O baronato dado a Anna Rufina de Sousa Franco Correia foi um reconhecimento aos serviços prestados pelo

falecido marido, o paraense Ângelo Custódio Correia, deputando geral em três legislaturas, morto devido ao cólera

em 1856, quando ocupava interinamente a presidência da província do Pará. Donald Cooper narrou a história: “No

auge da epidemia o governador interino do Pará, Ângelo Custódio Correia, chegou à Cametá a vapor para trazer

229

Na sequência, vieram os empregos honoríficos ligados à Casa Imperial, tão valorizados

quanto os títulos, por garantir “uma posição bastante respeitável na hierarquia social do

Império”901, além da proximidade com a família imperial. Luiz Pedreira do Couto Ferraz, que

há pouco vimos indicando nomes para serem premiados, foi designado “Veador”, oficial-mor

a serviço da imperatriz. A graça recebida, provavelmente, estava ligada ao fato de ter chefiado

o Ministério dos Negócios do Império durante o período da epidemia. Já a Marquesa do Paraná,

que junto à Baronesa de Cametá foram as únicas mulheres inclusas no rol dos agraciados

daquele 2 de dezembro, passou a ser “dama do palácio honorária”. O Marquês do Paraná morreu

em setembro de 1856, enquanto chefe do Gabinete da Conciliação. Desta forma, a honraria

dada à viúva funcionava também como homenagem ao estadista falecido, líder do governo no

tempo do cólera. Terminando o setor dos empregados da Casa Imperial, o engenheiro José

Maria Jacinto Rebelo recebeu as “honras de Oficial Menor”.

Seguindo tendência apresentada anteriormente, a respeito das ordens honorificas, a

maior parte dos agraciados pelos serviços durante o cólera recebeu a Ordem da Rosa. A lista de

beneplácitos foi publicada seguindo o padrão hierárquico das classes próprias da ordem. O

médico Francisco de Paula Cândido, diretor da Junta Central de Higiene Pública, principal

instituição sanitária do Império, foi quem recebeu a maior distinção na ocasião: tornou-se

Grande Dignitário da Rosa. Na sequência, 11 pessoas foram agraciadas como Dignitários, entre

elas: o Bispo de Pernambuco (Dom João da Purificação Marques Perdigão), o Visconde de

Ipanema, os barões de Carapebus, Nova Friburgo, Piabanha e Pilar902. O Barão de Nova

Friburgo foi um dos indicados na carta de Couto Ferraz ao Marquês de Olinda, citada faz

pouco903. Outro amigo de Couto Ferraz contemplado foi José Bento da Cunha Figueiredo.

Como tratado no capítulo dois, Cunha Figueiredo presidiu Pernambuco durante a epidemia do

cólera. Foi, inclusive, bastante criticado, especialmente pelo caso “Pai Manoel”. Até mesmo

Couto Ferraz, então Ministro dos Negócios do Império, o repreendeu por ter autorizado “que

suprimentos de socorros e evacuar muitos dos sobreviventes”. Na ocasião, teria retirado duzentas pessoas da

localidade. Todavia, o “governador Correia adoeceu do cólera no início da manhã da partida e morreu na mesma

tarde” (COOPER, op. cit., 1986, p. 473). Morto, Correia, o governo imperial concedeu uma pensão à viúva e o

título de baronesa de Cametá. Todavia, seu tempo de baronato foi curto: ao casar-se novamente, Anna Rufina

perdeu o título. BLAKE, op. cit., 1883, p. 86; SCHWARCZ, op. cit., 1998, p. 177. 901 GENOVEZ, Patrícia Falco. Os cargos do paço Imperial e a Corte no Segundo Reinado. Métis: história & cultura.

V. 1, n. 1, p. 215-237, jan./jun. 2002, p. 221. 902 Jornal do Commercio, n. 331, suplemento, 2 dez. 1858, p. 1. 903 IHGB. Carta de Luís Pedreira do Couto Ferraz ao Marquês de Olinda. Sem data. Lata 213, doc. 68. Coleção

Marquês de Olinda.

230

um preto da Costa se apresentasse como curador do cólera”904. Apesar das polêmicas, o ex-

presidente de Pernambuco acabou sendo promovido de Comendador a Dignitário905.

Quanto aos novos Comendadores da Rosa, foram 26 os nomeados906, entre os quais o

Barão de Muritiba, presidente do Rio Grande do Sul quando do cólera, José Pereira Rego –

futuro Barão do Lavradio, nome atuante da Junta Central de Higiene – e o Barão de Itapemirim,

outro a quem Couto Ferraz recomendara907. Aparentemente, as missivas ao Marquês de Olinda

cumpriram o intento: renderam benefícios a alguns amigos.

A penúltima classe da Ordem da Rosa, a dos Oficiais, teve 65 beneficiados908. Entre

eles, o Barão de Arari, o do atestado do Bispo do Pará909. Além do título de barão, Arari já era

Comendador da Ordem de Cristo. Assim, usando o cólera como justificativa, acrescentou outra

distinção para si.

Entre os Oficiais nomeados, encontrava-se, também, o nome de Antônio Félix Cabral

de Mello. Seria o “Antônio Félix” para quem o Visconde de Maranguape solicitara mercê na

correspondência ao Marquês de Olinda?910 Infelizmente, não há como precisar a questão.

Todavia, como inexiste outro “Antônio Félix” no rol dos contemplados e tendo em vista a

relação próxima entre Maranguape e Olinda, iniciada enquanto ainda eram estudantes na

Universidade de Lisboa, e visível nos três ministérios nos quais atuaram juntos911, não parece

crível uma recusa do marquês em pôr no rol dos agraciados alguém indicado pelo amigo.

Foi na classe dos Cavaleiros onde o governo imperial alocou o maior número de

beneplácitos: 486. Desde 1841, quando Pedro II passou a condecorar súditos anualmente com

a Ordem da Rosa, era a primeira vez a se criar quantidade tão grande de cavaleiros912. Não por

904 ANRJ. Carta de Luís Pedreira do Couto Ferraz a José Bento da Cunha Figueiredo. 08 mar. 1856. Fundo

Visconde do Bom Conselho. Doc. 33. 905 Jornal do Commercio, n. 331, suplemento, 2 dez. 1858, p. 1. 906 Jornal do Commercio, n. 331, suplemento, 2 dez. 1858, p. 1. 907 IHGB. Carta de Luís Pedreira do Couto Ferraz ao Marquês de Olinda. Sem data. Coleção Marquês de Olinda.

Lata 213, doc. 68. 908 Jornal do Commercio, n. 331, suplemento, 2 dez. 1858, p. 1. 909 IHGB. Atestado do Bispo do Grão Pará de que o Barão de Arari socorreu a pobreza durante a epidemia de

cólera na província. 24 março de 1856. Coleção Instituto Histórico. Lata 179, Pasta 73. 910 IHGB. Carta do Visconde de Maranguape ao Marquês de Olinda. Sem data. Coleção Marquês de Olinda. Lata

213, doc. 68. 911 Em 1839, quando Pedro de Araújo Lima (futuro Marquês de Olinda) era Regente do Império, Caetano Maria

Lopes Gama (Maranguape) foi chamado para o posto de Ministro dos Negócios Estrangeiros. No gabinete Olinda

de 1857, Maranguape ocupou novamente a pasta. Por fim, em 1862, os amigos estiveram juntos pela última vez,

com Maranguape chefiando o Ministério da Justiça. Com a saúde bastante comprometida, foi substituído por

Sinimbu no início de 1863. A idade e saúde dos componentes deste gabinete fazia jus ao apelido: “Ministérios dos

Velhos”. Aliás, o Visconde de Albuquerque morreu enquanto ocupava o posto de Ministro da Fazenda em 1863.

Maranguape faleceu em junho em 1864. Pouco meses depois, em 1865, o Marquês de Olinda voltou a ocupar o

posto de Presidente do Conselho de Ministros, em momento delicado da história nacional: a Guerra do Paraguai.

CADENA, op. cit, 2018. 912 PINHEIRO, op. cit., 1884, s/p.

231

acaso, havia muitos formados em medicina entre os laureados. Manuel Xavier Pedrosa, tratando

da lista de cavaleiros da Rosa de 1858, encontrou o nome de 201 médicos913. A quantidade

significativa dos discípulos de Hipócrates é indício do destaque obtido pelos profissionais nos

lugares atingidos pelo cólera, tornando-se auxiliares dos presidentes de província na

coordenação dos socorros públicos aos doentes. Atesta, ainda, o prestígio ascendente dos

esculápios no Império, atuando mais ativamente na sociedade, como na proposição de medidas

higiênicas e reformas urbanas, tidas como formas de prevenção das epidemias.

A leva de prêmios concedidos a 2 de dezembro de 1858 foi encerrada com os laureados

com a Ordem de Cristo: 27 comendadores e 221 cavaleiros. Assim, levando em conta todas as

classes das Ordens da Rosa e de Cristo, houve impressionantes 837 nomeações naquele dia. O

número expressivo refletia o impacto do cólera no país. Como tratei no primeiro capítulo, entre

1855 e 1856, quatorze províncias foram afetadas pela doença e cerca de duzentas mil pessoas

faleceram. Destarte, as ordens serviram para galardoar as pessoas destacadas nos socorros aos

coléricos e com prestígio e relações sociais suficientes para conquista da honraria.

Malgrado o recorde de graças concedidas, não faltou quem reclamasse da lista. Apenas

dois dias após a divulgação das mercês, textos foram publicados no Jornal do Commercio, no

Diário do Rio de Janeiro e no Correio Mercantil, criticando a insuficiência dos despachos. No

primeiro jornal, um escrito anônimo, dirigido ao Ministro do Império, Marquês de Olinda,

defendia não haver “nenhuma dúvida” de ter o governo de “aceitar qualquer reclamação por

parte daqueles que por iguais serviços não foram contemplados nos despachos [...] em

remuneração dos serviços prestados à humanidade na clamorosa quadra em que foi esta corte e

províncias ceifadas pelo cólera morbo”. Uma das ausências sentidas seriam os nomes dos

“inspetores de quarteirão da freguesia de Sacramento”, na Corte, para quem solicitava ao

marquês a reparação da “injustiça”. Citava, ainda, nomes de pessoas aptas a dar “informações

exatas” sobre a questão: o senador Sinimbu, o ex-chefe de polícia da área, um comendador e o

ex-subdelegado da freguesia914.

Outro texto, assinado pelo pseudônimo “Um apreciador do mérito”, defendia: “todo

mundo que lia no dia 2 a extensa lista dos agraciados”, bradava “QUE INJUSTIÇA!”915, ao não

encontrar incluso o Dr. Severiano Rodrigues Martins. Ele seria protagonista de muitos serviços

prestados ao povo durante a crise, salvando “centenas de vida”. A ausência do médico parecia

913 PEDROSA, Manuel Xavier de Vasconcelos. A cólera-morbo e a Ordem da Rosa. Anais do Congresso de

História do 2º Reinado (1975) - Comissão de História Política e Administrativa. Vol. 2. Rio de Janeiro: IGHB,

1984, p. 147. 914 Jornal do Commercio, n. 333, 4 dez. 1858, p. 2. 915 Jornal do Commercio, n. 333, 4 dez. 1858, p. 2, grifo da fonte.

232

incrível ao autor, só explicada por “esquecimento dele nessa confusão de nomes, onde o mesmo

indivíduo, como o Sr. Dr. Peregrino José de Freire, por exemplo, teve duas mercês (Cristo e

Rosa)”. O Dr. Severiano curava “nas principais casas da corte” e tinha amigos entre “as

principais notabilidades”. Estas deviam “lembrar não só seu nome, como os relevantes serviços

do habilíssimo médico”. Uma vez esquecido, Severiano ainda poderia vir a ser agraciado. Mas,

citando Tomaz Gonzaga, arrematava o texto: “As glórias que vêm tarde, já vêm frias”916.

As críticas do Diário do Rio de Janeiro às comendas entregues no natalício do

Imperador foram mais fortes917. Um editorial intitulado Ubinam gentium sumus? – expressão

retirada das Catilinárias de Cícero, cujo significado em português seria “em que lugar

estamos?”918 – aludia aos três anos a separar a epidemia da publicação dos despachos,

demonstrando a demora do governo em laurear os serviços prestados na crise. Uma vez

divulgada a lista dos premiados, o jornal classificava-a como “escárnio”, pois “foram

contemplados alguns com menos merecimento do que muitos outros que ficaram de fora”919.

Na sequência, indagava: as ausências seriam “esquecimento” ou “de propósito”? Na

opinião da redação do Diário do Rio de Janeiro, nada explicaria o esquecimento de “alguns

dignos fazendeiros, que fizeram parte de comissões em algumas freguesias da província”. Eles

teriam prestado serviços à custa de “seu dinheiro” e sacrifício pessoal, ao deixar as casas “na

ocasião mais crítica” para arcar com as atribuições dos comissionados:

Como esquecer estes dignos cidadãos que estão sempre prontos a concorrer

para as urgências do Estado, quando a eles acorre o governo? Como esquecer

estes homens cujas lavouras pela incúria, imprevidência e frouxidão do

governo deve brevemente definhar pela falta de braços, ficando assim

reduzida a fortuna de seus filhos?920

Segundo o texto, mesmo com todos os méritos demonstrados por estes “prestantes

cidadãos”, o governo não concedeu “um hábito, um aumento nas condecorações, que

porventura já possuíssem”. Assim, não demonstrava qualquer “gratidão”, não que ela pagasse

algo, pois “eles sabem servir a sua pátria, a seu soberano e socorrer seus semelhantes, sem visar

recompensa alguma”. Todavia, julgava a manifestação do governo necessária, servindo “como

uma prova de que seus serviços foram apreciados”. Desprezando àqueles que abriram

916 Jornal do Commercio, n. 333, 4 dez. 1858, p. 2. O trecho de Gonzaga citado pelo autor da nota em defesa do

Dr. Severiano pertence a obra “Marilia de Dirceu”. Ver: GONZAGA, Tomaz Antonio. Marília de Dirceu. São

Paulo: Prestígio/Ediouro, 2001. 917 Diário do Rio de Janeiro, n. 322, 4 dez. 1858, p. 1. 918 BARBOSA, Lydia Marina Fonseca Dias. As Catilinárias de Cícero: tradução e estudo retórico. Dissertação

(Mestrado em Letras Clássicas). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019, p. 19. 919 Diário do Rio de Janeiro, n. 322, 4 dez. 1858, p. 1. 920 Diário do Rio de Janeiro, n. 322, 4 dez. 1858, p. 1.

233

“ilimitadamente suas bolsas à pobreza desvalida”, o governo cometera “desfeita”, afinal, “ou

as graças deviam chegar a todos, sim a todos, ou então a ninguém”921. Na conclusão do editorial,

a crítica sobre a lista de benesses apareceu mesclada à condenação da política da Conciliação,

como se ela fosse responsável pelo não reconhecimento das ações praticadas quando do cólera:

Sim, é evidente que, então, nessa época de geral sofrimento, em que se

confundiram os partidos, em que todos se voltavam para o céu, implorando a

clemência divina, se representou, assim como hoje, ainda, se representa, uma

burlesca farsa. É evidente, que então, assim como hoje, ninguém apreciou

semelhantes serviços922.

A mesma edição trouxe texto mais irônico sobre o assunto. O foco dele era o Marquês

de Olinda. O ministro “estaria a esta hora muito enfermo”: “Sua Excelência foi atacado do

cólera das graças!”923. Os despachos de 2 de dezembro, afirmava o diário, engendraram

“mudanças atmosféricas”, causando uma “epidemia de cólera e de colerina”. Ridicularizando a

lista, citava o caso do vigário de Niterói, falecido em novembro, mas “agraciado com um

hábito” de Cristo. Demostrando todo o preconceito relativo às pessoas de cor e à escravidão,

atacava “João Pedro Fausto de Alcântara, vendedor de bilhetes de teatros, e que, segundo dizem,

foi escravo”. João Pedro recebeu a mercê de cavaleiro da Rosa, para revolta do Diário do Rio

de Janeiro. Aparentemente, o jornal não admitia a possibilidade de um liberto receber ordem

honorífica, mesmo se ele tivesse atuado de modo relevante na epidemia. Criticava ainda o

mérito do cavaleiro José Teles da Silva, pois teria recebido a honraria por alugar “carros à

polícia” e citava as duas comendas dadas ao “Dr. Peregrino José Freire”.

Ao censurar os laureados, o texto culpava o Marquês de Olinda: o ministro teria atirado

“a sua pasta sobre uma marquesa”924. A jocosa afirmativa refletia a leitura do momento político

vivenciado pelo gabinete Olinda, a viver seus estertores. A “marquesa” citada era uma espécie

de sofá, comum no século XIX, sem encosto e com assento de palhinha925. Ao insinuar ter

Olinda atirado a “pasta” sobre o móvel, o jornal sugeria um suposto pouco caso do marquês em

relação à justeza da lista de premiados, pois sabia ter findado o tempo do seu gabinete.

O Correio Mercantil também expressou, na capa de 4 de dezembro de 1858, avaliação

negativa sobre a relação dos agraciados. Segundo a redação do órgão, as “condecorações

concedidas para distinguir os serviços prestados por ocasião do cólera morbo produziram, como

921 Diário do Rio de Janeiro, n. 322, 4 dez. 1858, p. 1, grifo da fonte. 922 Diário do Rio de Janeiro, n. 322, 4 dez. 1858, p. 1. 923 Diário do Rio de Janeiro, n. 322, 4 dez. 1858, p. 1. 924 Diário do Rio de Janeiro, n. 322, 4 dez. 1858, p. 1. 925 Verbete do Dicionário Michaelis Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-

portugues/busca/portugues-brasileiro/marquesa/. Acesso a 15 out. 2019.

234

era de se esperar, profundos descontentamentos”. Em tom hiperbólico, argumentava terem sido

os “atos de caridade e tão geral a dedicação na quadra epidêmica” que seria necessário

“condecorar metade da população” ou, “mais prudente, nada fazer”, laureando ninguém.

Assegurava: o “ministério passado”, o de Caxias, “possuía melhores elementos para conhecer

a grande soma de serviços” prestados na epidemia, mas “recuou dessa tarefa e deixou à estima

pública e à consciência de cada um a recompensá-los”926.

Portanto, colocava em xeque a capacidade do ministério liderado por Olinda em ser

justo na questão. Aliás, o texto levantava dúvidas a respeito da possibilidade de qualquer

governo “desempenhar satisfatoriamente o encargo”, pois quanto “mais profunda e verdadeira”

fosse “a caridade”, menos “entrada obtém nas informações oficiais”. Assim, o “médico que sem

ostentação penetra os sótãos e os cortiços da indigência”, o “boticário que fornece as receitas

gratuitamente”, e o homem “esmoler que só abre a mão [com o óbolo] debaixo do travesseiro

do doente”, de modo a não envergonhar este, nunca seriam “relacionados entre os beneméritos,

porque os seus atos são pautados pelo sentimento de verdadeira religião”. Citava então alguns

nomes, entre os quais estavam “acadêmicos da faculdade de medicina”. Eles teriam se portado

de modo exemplar durante a epidemia, tendo “no amor dos pobres uma larga compensação do

esquecimento do ministério”927.

A análise do Correio Mercantil prosseguia, tratando da falta de instrumentos eficazes

do governo para “pesar os diversos serviços e graduá-los para a lista dos prêmios”. Alguns

doaram dinheiro, enquanto outros ocuparam “comissões retribuídas” – portanto, remuneradas

– ou organizaram hospitais e ambulâncias. Havia ainda, pessoas posicionadas juntos aos

moribundos, a quem velavam “gratuitamente”, dando conforto e ânimo, combatendo o “terror”

e salvando “por sua coragem muitas vidas e talvez cidades inteiras”.

O governo teria tentado desembaraçar-se do problema “adotando pura e simplesmente

o sistema das promoções do exército”. Assim, decidira dar ao cidadão “virgem de

condecorações” um “hábito” de Cristo ou da Rosa, “embora seus serviços fossem de uma ordem

elevada”. Às pessoas que já possuíam “hábito ou comenda”, o governo teria apenas elevado as

mesmas no interior das ordens, graduando-as em dignidade, malgrado “seus serviços não se

comparassem em grandeza aos do cidadão inferiormente condecorado”928.

Após citar a “disciplina usada na antiga corte de Portugal” para premiação aos súditos,

o editorial dirigia-se diretamente ao Marquês de Olinda. O Ministro do Império, teria se deixado

926 Correio Mercantil, n. 327, 4 dez. 1858, p. 1. 927 Correio Mercantil, n. 327, 4 dez. 1858, p. 1. 928 Correio Mercantil, n. 327, 4 dez. 1858, p. 1.

235

arrastar “por velhas usanças, que contrariam as ideias de nossa época”929. A afirmação trazia

embutida uma imagem recorrente – presente na imprensa e nos discursos parlamentares, desde,

pelo menos, fins dos anos 1840, acompanhando Olinda até a morte, em 1870 –, a representar o

marquês como “velho”, inadequado ao presente e aos cargos relevantes dados pelo Imperador

constantemente930. Assim, o ministro, cuja vida política teve início antes da independência do

Brasil, era apresentado pelo Correio Mercantil como alguém preso aos padrões portugueses de

nobilitação, inadequados ao Brasil de 1858. Não obstante tal apreciação, Olinda poderia

“reparar as injustiças”, reivindicando, assim, a inclusão de mais pessoas no rol dos laureados.

Todavia, afirmava o jornal, em tom dramático: “o efeito moral da promoção civil do dia 2 está

produzido. Podem fechar-se as feridas; as cicatrizes hão de sempre atestar que elas

existiram”931.

Levando em conta as publicações do Jornal do Commercio, Diário do Rio de Janeiro e

Correio Mercantil, fica evidente como as nomeações feitas em nome do cólera causaram

celeuma. Aliás, não só a imprensa captou as insatisfações com os laureados de 2 de dezembro

de 1858. Em correspondências privadas, figurões políticos não deixaram de pedir a inclusão de

apadrinhados olvidados na relação dos premiados. Em carta de dezembro de 1858, Bento da

Silva Lisboa, o Barão de Cairu, escreveu ao Marquês de Olinda para falar do sobrinho, “o

Doutor Lucas da Silva Lisboa”. O médico teria prestado “bons serviços durante a epidemia”.

Todavia, o nome dele não tinha “sido contemplado na lista dos Despachos”. Como o Jornal do

Commercio informara ter a publicação sobre os agraciados sido feita em “conformidade com

as relações apresentadas” e quem quisesse “reclamar”, se “dirigisse ao governo”, o barão rogava

ao marquês a correção da “omissão que houve”, afinal, alegava: “só por discrição podia deixar

ele [o sobrinho] de ser contemplado”. Esse não seria o caso, pois Olinda e “seus colegas”

saberiam dos serviços prestados pelo médico na “enfermaria da Rua dos Inválidos”932. A

solicitação de Cairu chegou em má hora. Em 12 de dezembro de 1858, novo governo foi

929 Correio Mercantil, n. 327, 4 dez. 1858, p. 1. 930 CADENA, op. cit., 2018, p. 205-212. 931 Correio Mercantil, n. 327, 4 dez. 1858, p. 1. A parte final do editorial lamentava a forma como Couto Ferraz

figurou na lista de agraciados. Na condição de Ministro do Império, ele teria feito “tudo o que era humanamente

possível para salvar a corte e as províncias”. O Imperador teria dado “prova de alta consideração admitindo-o ao

serviço da sua casa”, nomeando-o veador. Não obstante, “perante o país”, parecia ter o ministério Olinda votado

a Couto Ferraz o “menor apreço”. Notadamente, o editorial defendia a outorga de um título de nobreza ao ex-

ministro, mas isso só ocorreria em 1867, quando Couto Ferraz foi nomeado Barão do Bom Retiro, sem grandeza,

sendo elevado ao título de visconde, de mesma denominação, em 1872. Ver: BEDIAGA, Bergonha. Discreto

personagem do império brasileiro: Luís Pedreira do Couto Ferraz, visconde do Bom Retiro (1818-1886). Topoi.

V. 18, n. 35, p. 381-405, maio/ago. 2017, p. 392. 932 IHGB. Carta do Barão de Cairu ao Marquês de Olinda. Dez. 1862. Coleção Marquês de Olinda. Lata 213, doc.

68.

236

formado, sob a chefia de Antônio Paulino Limpo de Abreu, Visconde de Abaeté933. Assim, não

houve tempo para Olinda atender Cairu.

A notícia sobre os despachos de 2 de dezembro de 1858, bem como as reações contrárias

aos mesmos, chegaram ao Ceará após uma quinzena, tornando-se notícia n’O Cearense, em 17

do mesmo mês, e, um dia depois, no Pedro II. Este jornal dedicou pouco espaço ao ato,

destacando apenas os nomes das personalidades tituladas e agraciadas com empregos da Casa

Imperial, sem comentar nada a respeito das comendas da Rosa e de Cristo934. O Cearense foi

além: reproduziu as mesmas informações do Pedro II, acrescentando considerações sobre

agraciados com as ordens honoríficas e citando trechos críticos do Diário do Rio de Janeiro e

do Correio Mercantil, já citados.

O Cearense chegou, inclusive, a calcular quanto as nomeações renderiam ao tesouro:

levando em conta o número de agraciados e as taxas com joias e selos, os cofres do governo

poderiam receber quarenta contos e oitenta e um mil réis, valor considerável para os padrões da

época. Ao citar a cifra, O Cearense dava outra justificativa para a ampliação da “meia enchente

de graças”935 publicada no natalício do Imperador.

Entre as centenas de agraciados como cavaleiros da Rosa, O Cearense destacou quatro

pessoas ligadas ao Ceará. Três eram médicos cearenses: Joaquim Antônio Alves Ribeiro936,

Joaquim Antônio Hanvultando de Oliveira937 e Liberato de Castro Carreira938. Eles atuaram em

933 CADENA, op. cit., 2018, p. 2011. 934 Pedro II, n. 1874, 18 dez. 1858, p. 2. 935 O Cearense, n. 1185, 17 dez. 1858, p. 2. 936 Nascido em Icó (1830), formou-se em medicina na Universidade de Harvard (1853). No retorno ao Brasil, teve

a tese reconhecida também pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Voltando ao Ceará, foi nomeado médico

da pobreza pela Presidência da Província do Ceará, em 1858. Em Fortaleza, atuou ainda como médico no hospital

de Caridade e como cirurgião da Guarda Nacional. Fundou em Fortaleza a revista médica Lanceta ̧em 1862. Foi

sócio correspondente da Academia Imperial de Medicina, da Sociedade de Médica de Massachusetts, da Sociedade

de História Natural de Frankfurt e da Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional. Foi deputado provincial entre

1860-1861. Além de cavaleiro da Ordem da Rosa, tornou-se cavaleiro de Cristo em 1867. Faleceu no ano de 1870,

em Fortaleza. BLAKE, op. cit. 1898, p. 83-84; STUDART, op. cit., 1913, p. 4-6; PAIVA, op. cit., 1979, p. 93. 937 Nasceu em Fortaleza (1828). Formou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no ano da chegada do

cólera ao Brasil (1855). Por ocasião da epidemia, atuou na Corte e no Rio Grande do Sul, onde tratou de uma

divisão do Exército. Foi oficial do conselho naval. Além de escrever opúsculos de temática médica, foi autor de

peça intitulada “A esposa do além-túmulo” (1856). Foi diretor geral da Secretaria de Instrução Pública do Rio de

Janeiro. Morreu no Rio de Janeiro (1906). BLAKE, op. cit. 1898, p. 88-89; STUDART, op. cit., 1913, p. 8-9. 938 Natural de Aracati (1820), cursou medicina na capital do Império, onde formou-se em 1844. Foi nomeado

médico da pobreza no Ceará (1845), além de médico do Hospital Militar e provedor da saúde do porto de Fortaleza.

Entre as obras de sua autoria, publicou o opúsculo “Descrição da epidemia da febre amarela que grassou na

Província do Ceará em 1851 e 1852”. Retornando à província do Rio de Janeiro, fixou-se em Niterói. Em 1855,

foi nomeado para dirigir a enfermaria desta cidade, criada para tratamento dos indigentes atacados pelo cólera, o

principal motivo para sua nomeação como cavaleiro da Rosa (1858). Por ocasião da seca de 1877, escreveu uma

série de artigos no Jornal do Commercio, chamando a atenção para a situação do Ceará. Tornou-se Senador pela

província natal (1882). Cavaleiro da Rosa e de Cristo, foi membro do IHGB, da Academia Médico Homeopática

do Rio, da Sociedade Auxiliadora Industrial, da Sociedade Farmacêutica Brasileira e fundador do Instituto Médico

Fluminense. Faleceu em 1903. BLAKE, op. cit., 1889, p. 310-311; STUDART, op. cit., 1913, p. 250-259.

237

outras províncias durante a epidemia do cólera. A quarta pessoa foi o “Sr. inspetor Moura”, em

alusão provável a José Francisco de Moura, que à época da epidemia era inspetor do tesouro

em Sergipe, sendo removido para a inspetoria do Ceará em 1856939. Nos despachos de 2 de

dezembro de 1858, Moura, já portador dos hábitos de cavaleiro de Cristo e da Rosa, foi elevado

à classe dos oficiais da última940.

Portanto, quando o cólera atingiu o Ceará em 1862, as elites locais tinham conhecimento

de como os surtos nas outras províncias do país foram usados para abonar beneplácitos. As

centenas de benesses distribuídas em 1858 e a celeuma levantada na ocasião, atestavam como

o comportamento durante a epidemia poderia servir a quem almejava elevar seu status e afirmar

prestígio político e social. Assim, médicos, padres, comerciantes, proprietários rurais, entre

outras categorias sociais do Ceará, viram na epidemia de 1862 a oportunidade para requerer

recompensas por serviços prestados ao Estado. A caridade e filantropia, tão alardeadas nos

textos que abriram esse tópico, e a “epidemia de elogios” delas decorrentes, eram agenciadas

em prol da possibilidade de conquista de, pelo menos, uma comenda da Rosa ou de Cristo.

4.2 – “Estimaria sinceramente ver apreciados seus serviços pelo Governo Imperial”

A outorga das ordens honoríficas foi regulamentada pouco antes da chegada do cólera

ao Ceará, pondo em prática regras inexistentes em 1858. O decreto n. 2853, de 7 de dezembro

de 1861, propunha ordenar a concessão de todas as comendas brasileiras. Logo no primeiro

artigo, determinava: “Ninguém poderá ser admitido nas Ordens honoríficas do Império sem o

requerimento em que prove vinte anos pelo menos de serviços distintos ainda não

remunerados”. Apenas os párocos colados não estariam compreendidos na regra, pois ao se

“distinguirem por suas virtudes e zelo no desempenho de seu ministério”, poderiam “ser

admitidos na Ordem de Cristo depois de 10 anos de serviço”941.

Entre os documentos obrigatórios a instruir o requerimento do aspirante a cavaleiro,

estavam ficha corrida, comprovando que o “peticionário não se achava envolvido como réu em

processo criminal” e atestados de “autoridades superiores com quem houver servido que prove

seu bom desempenho”. Tais requerimentos seriam enviados à Corte pelo presidente da

939 Diário de Pernambuco, n. 258, 3 nov. 1856, p. 2. 940 Jornal do Commercio, n. 331, suplemento, 2 dez. 1858, p. 1. 941 PINHEIRO, op. cit., 1884, p. 22.

238

província ou, nos casos envolvendo clérigos, pelo bispo. Ambas autoridades deveriam se

expressar “explicitamente”942 sobre o mérito dos pretendentes.

Apesar da adoção de processo mais rígido de concessão, o artigo 8º do decreto instituía

exceções, dando ao governo a prerrogativa de premiar pessoas independente da comprovação

dos anos de serviço. Três parágrafos do mesmo artigo definiam as isenções das regras citadas

acima: 1) os membros da família real e estrangeiros, “em consideração à sua alta jerarquia e

merecimentos”; 2) os “servidores de Estado que se recomendarem por distintos merecimentos

e constantes provas de sua dedicação à causa pública e ao Imperador”; 3) “As [honrarias] que

forem dadas como remuneração de serviços extraordinários e relevantes”, nos quais se incluíam

as “ocasiões de perigo ou calamidade pública”943. Pelo decreto, ficava claro caber ao Ministério

do Império propor os nomes dos agraciados nessas situações944.

Desta forma, o governo imperial garantia a possibilidade de premiar serviços prestados

durante as crises sanitárias. Assim, o eventual bom desempenho numa epidemia era um dos

caminhos mais rápidos aos interessados nos hábitos honoríficos, poupando o trabalho de

comprovar décadas de bons serviços.

As determinações do decreto n. 2853, de 7 de dezembro de 1861, repercutiram

rapidamente no Ceará. Já em janeiro de 1862, o governo da província solicitou a José Ildefonso

de Sousa Ramos, ministro dos Negócios do Império, o oficialato da Rosa para o médico José

Lourenço de Castro Silva. O então presidente do Ceará, Manoel Antônio Duarte de Azevedo,

citava explicitamente o decreto e afirmava julgar os serviços do médico compatíveis com as

“disposições dos §§ [parágrafos] 2 e 3 do artigo 8”945. Portanto, a justificativa para a comenda

era dada tanto pelos bons serviços prestados por José Lourenço de Castro Silva em cargos

públicos, quanto pelas ações extraordinárias desempenhadas. Para ilustrar essa decisão, o

presidente Duarte de Azevedo descrevia a trajetória do médico, apontando cargos eletivos

ocupados, funções públicas nas quais atuara – cirurgião do Hospital Regimental do Rio de

Janeiro (1836-1837), médico da pobreza de Fortaleza (1838-1841) e do Hospital Militar (1848-

1849), Provedor de Saúde do Porto de Fortaleza (1840), Inspetor de Saúde Pública (desde

942 PINHEIRO, op. cit., 1884, p. 22. 943 Além dos serviços nas “ocasiões de perigo ou calamidade pública”, o decreto definia como “serviços

extraordinários e relevantes”: a “sustentação da ordem pública e da Independência, Integridade e Dignidade da

Nação”; atos em prol “das igrejas matrizes, estradas, canais ou de outras obras ou estabelecimentos que o Governo

para esse efeito declarar que são de utilidade pública. Em geral todos os serviços de que resultar notável e

assinalada utilidade à religião, à humanidade e ao Estado, quer sejam prestados no exercício de funções públicas

civis, eclesiásticas, ou militares, quer nas ciências, nas letras, nas artes ou na indústria”. PINHEIRO, op. cit., 1884. 944 PINHEIRO, op. cit., 1884, p. 24. 945 ANRJ. Ofício s/n. 31 jan. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

239

1852), Comissário Vacinador e cirurgião do Estado Maior da Guarda Nacional – e ações

realizadas em épocas de epidemias no Ceará, como a de febre amarela em 1851. Aliás, o

documento chegava a insinuar ter sido José Lourenço um dos responsáveis pela não

contaminação da província pelo cólera no ano de 1855, pois providenciou meios para que não

“se rompesse o cordão sanitário” no porto, organizado para evitar a invasão da doença946.

No começo de abril de 1862, outro ofício de mesmo tema foi remetido ao Ministério do

Império. Assinado pelo vice-presidente do Ceará, José Antônio Machado, reiterava o pedido

do oficialato da Rosa para José Lourenço de Castro e Silva, alegando os “relevantes serviços

prestados à humanidade e a causa pública em diversas épocas”. Citando o pedido feito por

Duarte de Azevedo, Machado rogava ao Ministro do Império a apresentação do caso “à Sua

Majestade O Imperador”, no intuito de, “com a proposta de Vossa Excelência, seja pelo mesmo

Augusto Senhor concedida aquela graça ao mencionado médico”947.

Segundo o vice-presidente, José Lourenço via a ciência como “um sacerdócio, que ele

exerce com verdadeiro sentimento de filantropia”. Frisava ter o governo acabado de nomear o

médico como “presidente de uma comissão sanitária, a cujo cargo está o estudo dos meios de

indicação das medidas preventivas contra a invasão do cólera morbo, que ameaça a província”.

Por fim, relatava que desde 2 de dezembro de 1849, José Lourenço de Castro e Silva portava o

“hábito de Cristo”. Ao citar a data, o presidente reforçava serem os “novos serviços”, prestados

após tal comenda, suficientes para habilitar o médico à outra condecoração948.

O estouro do cólera em abril de 1862 e o papel desempenhado pelo Inspetor de Saúde

Pública ao longo da crise, motivaram José Bento da Cunha Figueiredo Júnior a enviar nova

solicitação de mercê. Em menos de nove meses, era o terceiro ocupante da cadeira de presidente

do Ceará a requerer ao Ministério do Império a graça para o médico, demonstrando como este

tinha aceitação e influência junto ao governo provincial. O presidente citava os ofícios

anteriores, e, discretamente, cobrava resposta mais ágil da Corte: “dois dos meus predecessores

pediram para ele o Oficialato da Rosa, dirigindo os ofícios constantes das cópias juntas, sobre

o que o Governo Imperial não se dignou ainda dar solução”949.

946 ANRJ. Ofício s/n. 31 jan. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 947 ANRJ. Ofício n. 33. 11 abr. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 948 ANRJ. Ofício n. 33. 11 abr. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 949 ANRJ. Ofício n. 83. 11 set. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

240

No ofício, Figueiredo Júnior ressaltou a atuação do médico durante a epidemia do

cólera, “que se acha quase extinta nesta Província”, ocasião na “qual o Dr. José Lourenço

adquiriu novos e mui valiosos títulos à Munificência Imperial”. O Inspetor de Saúde Pública

teria se destacado na comissão “encarregada de comprar e remeter para os diversos pontos as

ambulâncias de remédios que eram pedidos, gêneros alimentícios, camas, baetas e outros

objetos de que havia mister”, produzindo, ainda, instruções “para a aplicação conveniente” dos

medicamentos. Nomeado para uma comissão distrital de socorros de Fortaleza, atuou em duas,

“porque outro [médico] não havia que [...] quisesse incumbir-se”. Como Provedor da Saúde do

Porto, apresentava-se a bordo, “a fim de proceder as desinfecções, de que também não ficaram

isentas as malas do correio de terra; serviço este que em 1855, quando o cólera morbo não

chegou a esta Província, custou aos cofres públicos o dispêndio de quinhentos mil réis”950.

Diante da falta de médicos e dos gastos onerosos com a contratação de profissionais de

outras províncias, “foi o Dr. José Lourenço o único que generosamente ofereceu os seus

serviços, prestando-se a curar gratuitamente a classe desvalida, a quem socorreu com louvável

abnegação e caridade”. Teria, ainda, sido “uma das poucas pessoas que se mostravam sempre

mais interessadas na economia razoável que se devia guardar”, posicionando-se contra obras

caras e consideradas desnecessárias, como “o aterramento de dois pântanos da cidade, e o

fazimento de grandes fogueiras” para desinfecção do ar, defendidas pela Câmara Municipal de

Fortaleza. Nas palavras de Figueiredo Júnior: “Foi, enfim, o Dr. José Lourenço de Castro e

Silva o auxiliar mais eficaz que teve a Província durante a quadra calamitosa”951.

Para além dos atos realizados durante a crise, o pedido do presidente do Ceará em prol

de José Lourenço de Castro e Silva continha algo a mais. Ele nasceu entre os Castro de Aracati,

citados no primeiro capítulo, importante clã “chimango” do Ceará. A influência da família na

cidade era tanta, a ponto de seus membros vangloriarem-se: “No Aracati não há partido

conservador”952. Além disso, enquanto estudante da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro

– onde diplomou-se como primeiro médico cearense pela instituição –, José Lourenço iniciou

firme amizade com o padre José Martiniano de Alencar, aliado dos Castro. O político

experimentado costumava expor a admiração nutrida para com o amigo: “não me envergonho

950 ANRJ. Ofício n. 83. 11 set. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 951 ANRJ. Ofício n. 83. 11 set. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 952 A frase por dita pelo médico Liberato de Castro Carreira, primo de José Lourenço de Castro e Silva. OLIVEIRA,

Carla Silvino. Cidade (in)salubre: ideias e práticas médicas em Fortaleza (1838-1853). Dissertação (Mestrado em

História). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2007, p. 29.

241

de ser cearense, porque existe um José Lourenço”953. Aliás, Alencar, na passagem pela

presidência do Ceará entre 1834-1837, foi quem deu o primeiro emprego público ao jovem

médico: o cargo de médico da pobreza954.

Portanto, desde a juventude, Castro e Silva era conhecido como liderança do Partido

Liberal no Ceará, sendo eleito deputado provincial em quatro legislaturas955. Ora, tendo José

Lourenço tido apoio entusiasmado da imprensa liberal pelos serviços realizados durante a

epidemia de 1862, a defesa da mercê por parte de Figueiredo Júnior não deixava de ter

componente político, afinal, o presidente contou com o apoio dos liberais na contenda contra o

Pedro II. Não por acaso, Figueiredo Júnior citou o pedido de graça para José Lourenço de

Castro e Silva em outro ofício enviado ao Marquês de Olinda. No documento, o presidente

solicitava ordens honoríficas para Castro e Silva e para o padre Thomaz Pompeu de Sousa

Brasil, dono do jornal O Cearense. Tratando da questão, Figueiredo Júnior dirigiu súplica ao

Marquês de Olinda:

[...] rogo a Vossa Excelência que se digne tomar em consideração a proposta

que fiz para serem condecorados os Doutores José Lourenço de Castro e Silva

e Thomás Pompeu de Sousa Brasil. Ambos são liberais. Eu estimaria mui

sinceramente ver apreciados seus serviços pelo Governo Imperial956.

Aliás, Pompeu e Castro Silva não seriam os únicos liberais indicados para honrarias por

Figueiredo Júnior no ano de 1862. Tal como fizera em 1858, solicitando indicação de nomes

para premiação pelos serviços realizados no cólera entre 1855-1856, o Marquês de Olinda

requereu ao presidente do Ceará, em ofício classificado como reservado, a 22 de novembro de

1862, a organização de lista contendo as pessoas destacadas durante a epidemia, mais indicação

das honrarias a serem eventualmente dadas. Confirmando o recebimento da solicitação,

Figueiredo Júnior passou a “organizar a relação das pessoas que merecem ser agraciadas pelos

serviços prestados durante a quadra epidêmica”. Segundo o presidente, a seriedade do tema

953 ALENCAR, José Martiniano de. Apud STUDART, op. cit., 1913, p. 143. 954 Desde 1837, a província do Ceará, mais precisamente, a cidade de Fortaleza, contava com o serviço do “médico

da pobreza”, funcionário público, diplomado em medicina, que tinha entre as atribuições tratar doentes pobres,

prestar informação sobre o estado sanitário da província e indicar medidas profiláticas nas situações epidêmicas.

José Lourenço de Castro e Silva foi o primeiro ocupante do cargo. Segundo Carla Silvino, a nomeação sinalizava

que Castro e Silva poderia permanecer no cargo por quinze anos. Todavia, o fim do governo de José Martiniano

de Alencar, em 1837, e a ascensão dos “caranguejos” à presidência da província, abalou a permanência do médico

no posto. A postura política de Castro e Silva – eleito deputado provincial em 1838 – levou o presidente João

Antônio de Miranda, a pressioná-lo a optar entre o salário da assembleia e o de médico da pobreza. Assim, acabou

demitido do cargo. OLIVEIRA, op. cit., 2007, p. 30-33. 955 PAIVA, op. cit., 1979, p. 95. 956 ANRJ. Ofício confidencial. 11 out. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

242

poderia fazer com que demorasse a encaminhar a lista: “É meu empenho dar a Vossa Excelência

uma informação conscienciosa e circunstanciada. Por isso talvez haja alguma demora”957.

Ao contrário do anunciado, a relação de candidatos ao beneplácito imperial teve

conclusão rápida: foi remetida à Corte a 12 de janeiro de 1863958. No ofício de

encaminhamento, Figueiredo Júnior afirmava ter elaborado a listagem a partir de “documentos

oficiais”, bem como de “informações particulares”959. Ela trazia os indicados organizados por

localidade onde atuaram durante a epidemia, fazendo resumo das ações realizadas, variando no

grau de detalhes, tendo alguns recebido mais de uma página e outros apenas uma linha. O

documento também apontava aspectos biográficos de alguns indivíduos, destacando serviços

prestados anteriormente ao cólera. Informava, ainda, se já possuíam alguma ordem honorífica.

Para a maioria dos relacionados, Figueiredo Júnior sugeria a comenda mais adequada a

ser dada pelo governo imperial, sopesando o grau da honraria pela leitura da trajetória de vida,

somada ao desempenho individual durante a crise epidêmica. O quadro a seguir, resume as

principais informações presente no ofício enviado ao Ministério dos Negócios do Império:

Quadro 3

Indicados às Ordens Honoríficas pelos serviços prestados na epidemia do cólera de 1862

957 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 15 dez. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 213, doc. 103. 958 Nas pesquisas realizadas no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, tentei localizar o documento na coleção de

ofícios remetidos pela presidência do Ceará ao Ministério dos Negócios do Império. Todavia, não o encontrei.

Também procurei, sem sucesso, o ofício na Coleção Marquês de Olinda do Instituto Histórico e Geográfico

Nacional. É provável que o envio do mesmo a outra repartição imperial tenha levado ao arquivamento em fundo

diverso. De qualquer forma, o ofício tornou-se público em 1910, quando Rodolpho Smith de Vasconcelos –

possuidor do título de Barão de Vasconcellos, concedido pela coroa portuguesa em 1874, e genealogista

organizador do livro “Arquivo Nobiliárquico Brasileiro” (1918) – publicou transcrição na Revista do Instituto do

Ceará, instituição na qual era sócio correspondente. Na apresentação que fez do documento, Vasconcellos afirma

ter consultado o original no “Arquivo Público Nacional”, denominação antiga dada ao hoje ANRJ. Além do

interesse histórico, o genealogista tinha outro motivo para a publicação do ofício: seu pai, o negociante português,

radicado em Fortaleza, José Smith de Vasconcellos, constava na lista de candidatos às ordens honoríficas pelos

feitos durante a epidemia de 1862, recebendo, inclusive, elogios rasgados de Figueiredo Júnior. Portanto, é a partir

da transcrição feita por Vasconcellos na Revista do Instituto do Ceará que analiso as indicações lançadas pelo

presidente do Ceará ao Marquês de Olinda. VASCONCELOS, Barão de. Um documento official relativo ao

Cholera-morbus no Ceará em 1862. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza, tomo XXIV, 1910, p. 79-99. 959 FIGUEIREDO JÚNIOR, José Bento da Cunha. Apud VASCONCELOS, op. cit., 1910, p. 80.

Local Indicados Profissão Comenda sugerida

Fortaleza

Francisco de Farias Lemos Chefe de Polícia Oficial da Rosa

José Lourenço de Castro e

Silva

Médico e Inspetor de

Saúde Pública

Comendador de

Cristo

João Severiano Ribeiro Inspetor da Tesouraria

provincial

Oficial da Rosa

243

José Smith de Vasconcelos Comerciante e vice-

provedor da Santa Casa

de Misericórdia

Oficial da Rosa

Antônio Teles de Menezes Proprietário Comendador da Rosa

Galindo Firmo da Silveira

Cavalcante

Padre Cavaleiro de Cristo

Francisco Fidelis Barroso Coronel da Guarda

Nacional, delegado, juiz

municipal suplente e

fazendeiro

Cavaleiro de Cristo

ou da Rosa

José Cândido da Guerra

Passos

Padre, capitão do

Exército e capelão do

Hospital da Caridade

Cavaleiro de Cristo

Maranguape

Joaquim Felício de Almeida

e Castro

Delegado Cavaleiro de Cristo

Joaquim José de Sousa

Sombra

Presidente da Câmara

Municipal e capitão da

Guarda Nacional

Não consta

Jovino Franklin Belota Alferes do Exército,

chefe de destacamento e

delegado suplente

Cavaleiro da Rosa

Aquiraz

Mathias Pereira d’Oliveira Vigário Cavaleiro de Cristo

Manoel José Pereira

Pacheco

Coronel da Guarda

Nacional

Oficial da Rosa

Vicente Ferreira Gomes Juiz de direito Cavaleiro de Cristo

São Bernardo

João Diniz Ribeiro da

Cunha

Delegado e juiz

municipal

Cavaleiro do Rosa

Francisco das Chagas

Araújo

Tenente coronel da

Guarda Nacional

Cavaleiro do Rosa

Lino Deodato Rodrigues de

Carvalho

Padre Cavaleiro de Cristo

Limoeiro Francisco Ribeiro Bessa Padre Cavaleiro de Cristo

Baturité

Luiz de Cerqueira Lima Juiz de Direito Oficial da Rosa

Pompílio da Rocha Moreira Delegado e alferes do

Exército

Cavaleiro da Rosa

Raimundo Francisco

Ribeiro

Vigário Cavaleiro de Cristo

José Joaquim Coelho da

Silva

Padre Cavaleiro de Cristo

Francisco Ayres de Miranda

Henrique

Padre Cavaleiro de Cristo

Icó

Luiz José de Medeiros Juiz de direito Não consta

Joaquim do Carmo Ferreira

Chaves

Capitão do corpo de

polícia

Oficial da Rosa

Miguel Francisco da Frota Vigário Cavaleiro de Cristo

ou oficial da Rosa

Lavras José Maria Freire de Brito Padre Cavaleiro de Cristo

São João do

Príncipe

Francisco Bernardo de

Carvalho

Juiz de direito Oficial da Rosa

Antônio Carlos Barreto Boticário Cavaleiro de Cristo

Manoel Marrocos Teles Médico Não consta

Crato

Antônio Manoel de

Medeiros

Médico e cirurgião do

Corpo de Saúde do

Exército

Oficial da Rosa

244

Fonte: Quadro elaborado a partir de VASCONCELOS, Barão de. Um documento official relativo ao Cholera-

morbus no Ceará em 1862. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza, tomo XXIV, 1910, p. 79-99.

As indicações feitas por Figueiredo Júnior contemplavam 49 indivíduos, distribuídos

por 17 localidades da província. Notadamente, o presidente do Ceará priorizou lugares nos

quais o cólera agiu com mais intensidade, como Maranguape, Baturité, Icó e Crato, municípios

que teriam concentrado 53% das mortes pela doença em 1862960. A exceção foi Fortaleza, onde

a epidemia fez poucas vítimas, cerca de 362, o equivalente a 3% dos óbitos provinciais961.

Apesar da incidência leve do cólera na capital, ela teve o maior número de indicados às

honrarias: 8 pessoas. A proximidade geográfica e política em relação ao centro do poder

provincial ajuda a entender tal proeminência. Aqueles indivíduos estavam mais próximos de

Figueiredo Júnior, especialmente no caso dos funcionários públicos, como o chefe de polícia,

o inspetor do tesouro, o inspetor de saúde pública e o delegado de polícia. Tais profissionais

cumpriam determinações diretas da presidência e, pelas funções ocupadas, intervinham na

condução das ações sanitárias na cidade e, mesmo, na província.

960 Cálculo feito a partir dos dados coletados pelo Barão de Studart. Segundo ele, a mortalidade por cólera no Ceará

em 1862 teria sido de aproximadamente 11000 pessoas. Pelos dados computados pelo autor, a soma dos óbitos de

Maranguape, Baturité, Icó e Crato seria de 5810. STUDART, op. cit., 1997, p. 57. 961 STUDART, op. cit., 1997, p. 57.

Francisco Rodrigues Sette Juiz de direito Oficial da Rosa

João Brígido dos Santos Professor público Cavaleiro da Rosa

Missão Velha

Felix Aurélio Arnaud

Formiga

Vigário Cavaleiro de Cristo

Joaquim Jussilino Viriato

Formiga

Padre Cavaleiro de Cristo

Bernardino Gomes de

Araújo

Professor aposentado Cavaleiro de Cristo

Santana do

Brejo Grande

José Joaquim Cidade Não consta Não consta

Barbalha

Raimundo José Camello Não consta Não consta

Lúcio Aurélio Brígido dos

Santos

Escrivão Não consta

Pedro José de Castro e Silva Vigário Não consta

Jardim Américo Militão de Freitas

Guimarães

Juiz de direito Cavaleiro de Cristo

Saboeiro

Diogo José de Souza Lima Vigário Não consta

José Tavares Teixeira Vigário Não consta

Manoel Felipe dos Santos Padre Não consta

Quixeramobim

Antônio Pinto de Mendonça Vigário Oficial da Rosa

Cordolino Barbosa

Cordeiro

Delegado e Juiz

Municipal

Cavaleiro de Cristo

Francisco de Paula Meneses Padre Cavaleiro de Cristo

Antônio Elias Saraiva Leão Não consta Cavaleiro de Cristo

Quixadá Cláudio Pereira de Faria Padre Cavaleiro de Cristo

245

Por outro lado, a possibilidade de contatar diretamente o presidente também abria

espaço para o pedido de mercês por parte de quem almejava distinções. Aliás, no rol dos 49

indicados, apenas 3 tinham recebido ordens honoríficas anteriormente. O trio habitava em

Fortaleza. Para os já agraciados, Figueiredo Júnior aconselhava promoção interna ou a entrega

de insígnia de outra ordem, como no caso de João Severiano Ribeiro: “Ele é Cavaleiro da Ordem

de Cristo, e merece o Oficialato da Rosa”962.

Levando em consideração as informações sobre as atividades profissionais dos

candidatos à munificência imperial, e tendo em conta o fato de algumas pessoas exercerem

várias funções ao mesmo tempo, nota-se no quadro predomínio dos padres: 19 foram citados,

equivalendo a 39% da lista. Os militares, divididos entre Polícia, Guarda Nacional e Exército,

vinham na sequência, com 9 nominados ao todo (18%). Juízes de direito e delegados apareciam

em terceiro lugar, com 6 indicados cada (12%). As últimas categorias com destaque eram a dos

juízes municipais e médicos, cada qual com 3 (6%). As outras profissões, bem com os casos

nos quais Figueredo Júnior não registrou tal informação, equivaliam a cerca de 7% da lista.

O número relativamente pequeno de médicos chama atenção. Nas nomeações de 1858,

discutidas no tópico anterior, cerca de 200 médicos tinham sido agraciados como cavalheiros

da Rosa963, demonstrando como tais profissionais alçaram-se em prestígio na conjuntura das

epidemias do cólera de 1855 e 1856. No primeiro capítulo, demonstrei como a presidência da

província do Ceará agenciou dezenas de médicos, cearenses e de outras províncias, quando do

surto de 1862. Tais profissionais foram engajados nas comissões sanitárias e distribuídos pelo

território provincial, recebendo diárias consideradas altas, de até 50 mil réis964.

A explicação sobre a diminuta parcela de médicos na lista de possíveis agraciados pelos

serviços prestados no Ceará de 1862 foi registrada por Figueiredo Júnior. Segundo ele, havia

outras pessoas ignoradas na lista que “prestaram serviços” durante o cólera. Porém, o presidente

ponderava: elas não “merecem uma condecoração”, por terem sido remuneradas

financeiramente. Esse era o caso dos “médicos assalariados”. Embora reconhecesse terem

alguns atuado “melhor e com menor paga que outros”965, Figueiredo Júnior os considerava já

remunerados suficientemente.

A maior exceção ao recorte adotado pelo presidente do Ceará ficou com o médico e

cirurgião do Exército Antônio Manoel de Medeiros. Como demonstrei no início deste trabalho,

962 FIGUEIREDO JÚNIOR apud VASCONCELOS, op. cit., 1910, p. 83. 963 PEDROSA, op. cit., 1984, p. 147. 964 ANRJ. Ofício n. 57. 28 jul.1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 965 FIGUEIREDO JÚNIOR apud VASCONCELO, op. cit., 1910, p 86.

246

o contrato do facultativo enviado ao Cariri estabeleceu mais de 800 mil réis de gratificação, ao

que se somaria a cifra de 30 mil réis por cada dia de serviço durante o tempo do cólera, levando

um servidor do Ministério do Império a censurar os valores, orientando cautela de modo a evitar

“que os seus comissários abusem o menos possível” da tesouraria966.

Consciente da quantia paga a Antônio Manoel de Medeiros, José Bento da Cunha

Figueiredo Júnior justificou a inclusão do nome daquele no rol dos pretendentes às ordens

honoríficas, afiançando não ter havido “médico na província que o igualasse em atividade e

diligência, sendo para notar o zelo que mostrou em economizar os dinheiros públicos”967.

Aparentemente, o presidente tentava anular a crítica às gratificações generosas dadas a

Medeiros pela alusão à pretensa economia realizada nos gastos com as comissões nas quais

atuara. Além do mais, Figueiredo Júnior informava ter o médico, após retornar do Cariri, ido

“gratuitamente” atender à vila Maranguape, onde a epidemia permanecia forte968.

No histórico de Medeiros constaria, ainda, a atuação em 11 comissões sanitárias em

diversos pontos do Ceará, durante epidemias de febre amarela e varíola. Aliás, teria prestado

“serviços importantes durante o cólera” no Pará em 1855 e no Lazareto da Jacarecanga, em

Fortaleza, no ano de 1861, quando teria atendido “;” fornecendo medicamentos e dietas “à sua

custa”. A partir desses argumentos, Figueiredo Júnior defendia o oficialato da Rosa para

Antônio Manoel de Medeiros, taxado como cidadão “irrepreensível”.

Os dois outros médicos inclusos na relação escrita pelo presidente do Ceará eram: José

Lourenço de Castro e Silva, de quem já tratei, e Manoel Marrocos Teles. Enquanto o primeiro

tinha a favor de si todo o histórico de serviços prestados em cargos provinciais ligados à saúde

pública, sendo a principal autoridade sanitária do Ceará em 1862, o último teria prestado

“serviços gratuitos por um mês à pobreza” da comarca de São João do Príncipe durante o

cólera969. Ademais, Marrocos tinha sido o médico para quem o presidente do Ceará remetera

ofício com promessa velada de premiação, citado no tópico precedente970. Assim, o currículo

de serviços prestados à província e as ações filantrópicas embasavam a tríade de médicos da

lista de Figueiredo Júnior, enquanto outras dezenas de colegas deles foram descartados por,

supostamente, já terem sido pagos a contento.

966 ANRJ. Ofício n. 28. 15 mar. 1862. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 967 FIGUEIREDO JÚNIOR apud VASCONCELO, op. cit., 1910, p. 95. 968 FIGUEIREDO JÚNIOR apud VASCONCELO, op. cit., 1910, p. 95. 969 FIGUEIREDO JÚNIOR apud VASCONCELO, op. cit., 1910, p. 95. 970 Pedro II, n. 113, 21 mai. 1862, p. 2.

247

Voltando para a observação do quadro, observadas em conjunto, e excluindo alguns

casos nos quais Figueiredo Júnior não especificou qual comenda poderia ser dada, as menções

priorizaram a Ordem de Cristo: foram 23 referências a ela, indicando 22 aspirantes a cavaleiro

e 1 a comendador. Talvez, a explicação para a predominância fosse o fato da categoria

profissional com mais indicados ter sido a dos sacerdotes: 19 no total. Tratando do Primeiro

Reinado, Camila Borges da Silva mostrou como a Ordem de Cristo foi a mais acionada para a

premiação de “padres, sobretudo vigários e aqueles pertencentes à alta hierarquia do clero”971.

Mesmo com a reforma produzida pelo decreto n. 321, de 9 de setembro de 1843, tornando as

ordens militares de origem portuguesa em instituições “meramente civis”972 e de uso exclusivo

do Estado, a de Cristo, pela vinculação histórica com o catolicismo, permaneceu sendo a

comenda mais comumente oferecida a religiosos973.

Colocada em segundo plano em relação à Ordem de Cristo no documento do presidente

do Ceará, a Ordem da Rosa teve 18 insígnias mencionadas: 1 de comendador, 11 de oficial e 6

de cavaleiro. A indicação ao oficialato da Rosa de pessoas que ainda não portavam o hábito de

cavaleiro aproveitava as brechas regimentais do decreto n. 2853, de 7 de dezembro de 1861. O

artigo 5º afirmava: a admissão em qualquer ordem deveria ocorrer no “primeiro grau”, ou seja,

no de cavaleiro. A promoção para o grau seguinte (oficial) só poderia ocorrer passados 4 anos,

sendo necessário comprovar os serviços prestados ao Estado no interstício. Todavia, a regra

não tinha aplicação para os agraciados pelos “serviços extraordinários e relevantes”974, entre os

quais incluíam-se os realizados durante as epidemias. Estes já podiam ser inseridos nas ordens

em graus intermediários e superiores.

Não foi casualidade, portanto, ter Figueiredo Júnior alocado as pessoas mais

proeminentes entre os aspirantes ao oficialato da Rosa, reunindo quem ocupava os melhores

cargos na administração provincial, além de juízes de direito, oficiais do Exército, Polícia e

Guarda Nacional. Mas houve algumas exceções no padrão: José Smith de Vasconcelos,

negociante português e vice-provedor da Santa Casa, foi um dos recomendados a oficial da

Rosa. Um dos trechos mais detalhados do documento descrevia os serviços prestados por ele.

971 SILVA, op. cit., 2014, p. 258. 972 PINHEIRO, op. cit., 1884, p. 6. 973 Além das ordens honoríficas, Figueiredo Júnior sugeriu outra benesse adicional aos sacerdotes cearenses

destacados durante o cólera. Títulos de “Cônegos honorários da Capela Imperial” poderiam ser dado aos

“sacerdotes mencionados, e principalmente aqueles que já tenham alguma condecoração”, ou “outra mercê,

segundo a importância dos serviços constantes desta minha exposição”. FIGUEIREDO JÚNIOR apud

VASCONCELO, op. cit., 1910, p. 99. 974 PINHEIRO, op. cit., 1884, p. 23-24.

248

O negociante estaria “sempre pronto a auxiliar o governo em qualquer ideia de proveito para a

província, em cujo desenvolvimento industrial tem tomado parte”975.

Outro dado a chamar a atenção no quadro é a quantidade de membros de comissões

sanitárias inclusos entre os candidatos à munificência imperial. Como indiquei anteriormente,

as comissões ocuparam papel de destaque na conjuntura epidêmica, sendo tema constante da

imprensa. Ao comparar os dados do quadro 2 – contendo a listagem da maior parte das

comissões sanitárias criadas pelo governo do Ceará – com as informações do documento usado

na elaboração do quadro 3, notei: das 49 pessoas indicadas às ordens honoríficas por Figueiredo

Júnior, 28 integraram juntas de socorros, equivalendo a 57%. Entre os 28, 8 tinham sido

presidentes de comissões. O número expressivo de comissionados candidatos às honrarias

corrobora minhas considerações a respeito de como ter o nome incluso nas juntas sanitárias era

símbolo de status, bem como poderia servir para aumento da notabilidade local e provincial,

inclusive com a possibilidade de concessão de graças imperiais.

O apontamento feito pelo presidente do Ceará não deixou também de refletir os espaços

políticos ocupados pelos aspirantes às distinções honoríficas. Dos 49 presentes no documento,

15 tiveram passagem pela Assembleia Legislativa. Destes, 3 foram deputados gerais976.

Em várias partes do documento, Figueiredo Júnior afirmava embasar as indicações em

relatos feitos por autoridades locais, fiadoras dos desempenhos individuais na epidemia.

Quando indicou o juiz de direito de Baturité, Luiz Cerqueira de Lima, por exemplo, afirmou

terem a Câmara Municipal e a comissão de socorros proclamado “aquele digno magistrado

como tendo prestado os mais relevantes serviços, quer na cidade, quer nos povoados de fora,

fazendo acudir a pobreza com prontos socorros”977. Desta forma, Figueiredo Júnior ancorava

as indicações em opiniões de terceiros, dando às mesmas uma fachada de imparcialidade.

Todavia, o poder discricionário dado ao presidente do Ceará na composição da lista,

enviada reservadamente ao Marquês de Olinda, não deixava de oferecer oportunidade para

favorecimento de homens sintonizados com o governo provincial. Como expus ao longo da

tese, as ações de Figueiredo Júnior durante o cólera serviram de mote para acirrada contenda

na imprensa cearense, simbolizada na campanha do Pedro II em desestabilizar o chefe do

executivo provincial e na reação dos jornais liberais na defesa deste.

975 FIGUEIREDO JÚNIOR apud VASCONCELO, op. cit., 1910, p 86. 976 Para chegar ao número de parlamentares, comparei os nomes indicados por José Bento da Cunha Figueiredo

Júnior com as listas de deputados provinciais e gerais feitas por PAIVA, op. cit., 1979, p. 83-108. 977 FIGUEIREDO JÚNIOR apud VASCONCELO, op. cit., 1910, p. 92.

249

Aliás, parte dos componentes do quadro 3 recorreu à imprensa para defender Figueiredo

Júnior das críticas do Pedro II. Um artigo de capa d’O Araripe, redigido por João Brígido,

afirmou ter o diário conservador de Fortaleza se portado como “órgão de um partido, que tem

interesses a pleitear, sem compromissos de ordem alguma para com a atual administração da

província”. Assim, O Araripe isentava o presidente de culpa, asseverando estar “no coração de

cada caririense [...] impresso o reconhecimento” pela ação da autoridade: “Seja, pois, ao menos

essa linguagem suscita e verdadeira o lenitivo às injustas acusações que sofre”978.

Também falando sobre o Cariri, Antônio Manoel de Medeiros foi outro a ecoar loas a

Figueiredo Júnior e vilipendiar os opositores deste. Em correspondência enviada ao presidente

da província, tornada pública pela Gazeta Official, Medeiros dizia ter “lido as acusações que o

diário Pedro 2º tem feito com relação ao serviço público durante a epidemia e em tempo

oportuno farei conhecer a injustiça, demonstrando que nenhum socorro faltou ao Cariri”.

Acrescentava ainda: “qualquer acusação a Vossa Excelência nesse sentido” seria “calúnia”,

“uma ingratidão que revolta”979.

Já José Lourenço de Castro e Silva, em balanço sobre a situação da epidemia em

Fortaleza, rendeu “homenagem ao Administrador da Província que nesta quadra tenebrosa, em

que lhe coube as rédeas da Presidência, soube aliar as conveniências, e a celeridade de todos os

socorros precisos a bem dos desvalidos; e dos quais também se aproveitaram alguns dos

favorecidos da fortuna”. Apresentando-se “como cidadão que jamais conspurcou seus lábios

com a mentira e a lisonja”, José Lourenço de Castro e Silva afiançava os “esforços generosos”,

a dedicação e celeridade do presidente. Não teria havido “nenhuma demora de sua parte sobre

qualquer exigência da situação”. Aliás, Figueiredo Júnior teria posto o bem-estar pessoal de

lado pelo comprometimento no combate à epidemia: “quase não repousava, com detrimento de

sua saúde que vi assaz comprometida”980.

Outra defesa do tipo veio de Maranguape, vila constantemente aludida pelo Pedro II

como prova da incompetência dos socorros provinciais. Na correspondência veiculada n’O

Cearense, o delegado Joaquim Felício de Almeida e Castro dava graças às atuações do bispo e

do presidente do Ceará, sem as quais os maranguapenses estariam “a chorar a desolação e

extermínio”. Classificava Figueiredo Júnior como “um administrador da província, nutrido –

até hoje – dos melhores desejos a respeito dos seus administrados”, lamentando o não

978 O Araripe, n. 286, 30 ago. 1862, p. 1-2. 979 Gazeta Official, n. 14, 30 ago. 1862, p. 1. 980 Gazeta Official, n. 21, 24 set. 1862, p. 4.

250

reconhecimento geral dos méritos do presidente. O “que fazer na época em que de tudo se quer

tirar partido?”, indagava981.

Os textos expostos acima evidenciam como, ao indicar os possíveis laureados,

Figueiredo Júnior tratou de incluir indivíduos fiéis a ele, ao rebaterem as acusações

desabonadoras do governo provincial. Não por acaso, três dos autores das notas citadas acima

– José Lourenço de Castro e Silva, João Brígido dos Santos e Joaquim Felício de Almeida e

Castro – eram ligados ao Partido Liberal. Entre os relacionados por serviços prestados no tempo

do cólera figuravam outros nomes reconhecidamente liberais, sendo a maioria padres: cônego

Antônio Pinto de Mendonça, padre Mathias Pereira de Oliveira, padre Félix Aurélio Arnaud

Formiga, padre José Tavares Teixeira, padre Miguel Francisco da Frota, padre Cláudio Pereira

de Faria, Lúcio Aurélio Brígido dos Santos e Bernardino Gomes de Araújo.

Para além destes, algumas autoridades que não se autodenominavam liberais, mas foram

acusadas de acossar conservadores, figuravam na relação dos concorrentes ao beneplácito

imperial. Dois casos exemplificam isso: Vicente Ferreira Gomes, juiz de direito de Aquiraz, e

seu colega Francisco Bernardo de Carvalho, da comarca de São João do Príncipe, teriam tomado

parte nos processos sob suas jurisdições, prejudicando correligionários do Pedro II982.

Ao indicar tal tendência, não quero afirmar terem sido liberais e simpatizantes de

Figueiredo Júnior os únicos correlacionados entre os sujeitos com maiores serviços prestados

durante a epidemia. Conservadores também figuraram na lista do presidente do Ceará: João

Severiano Ribeiro, Cordolino Barbosa Cordeiro, padre Pedro José de Castro e Silva, Joaquim

José de Sousa Sombra, Francisco Rodrigues Sette, Manoel Marrocos Teles e padre Raimundo

Francisco Ribeiro. A presença dos mesmos poderia ser usada para atestar a imparcialidade do

presidente do Ceará, disposto a reconhecer os méritos das ações prestadas durante a crise de

1862, independente dos posicionamentos partidários. A própria conjuntura nacional, discutida

no primeiro capítulo, com a ascensão da chamada “Liga Progressista”, justificava uma

composição equilibrada, mesclando os partidos.

Todavia, é interessante observar: nenhum dos conservadores arrolados tinham

manifestado publicamente críticas às ações de Figueiredo Júnior frente ao cólera. Pelo

contrário, houve mesmo quem publicou texto na imprensa em defesa do presidente, entrando

em choque com a linha editorial do Pedro II. O juiz de direito do Crato e presidente da junta de

socorros, Francisco Rodrigues Sette – a quem O Araripe costumava taxar de partidário

981 O Cearense, n. 1535, 29 jul. 1862, p. 3. 982 As acusações constam nas edições: Pedro II, n. 274, 29 nov. 1862, p. 1-2 e Pedro II, n. 105, 9 mai. 1862, p. 2.

251

conservador983–, recorreu ao O Cearense para rebater as críticas negativas a Figueiredo Júnior,

afirmando não ter faltado ao Crato “recursos de qualidade alguma em todo o tempo da

epidemia”984. Punha em dúvida, inclusive, a veracidade de carta publicada no Pedro II:

Não posso descobrir nesta cidade quem seja o seu autor, mas seja ele quem

for, deve estar convencido, de que se pensa ter descoberto no Crato um meio

de deprimir ao Excelentíssimo Presidente da província, errou o alvo

completamente. O Crato em peso é reconhecido a Sua Excelência pelas

prontas e acertadas medidas que tomou985.

Não deixa de ser irônico, também, a indicação de duas pessoas sucessoras de Manoel

Franco Fernandes Vieira, o principal inimigo de Figueiredo Júnior, em postos importantes na

capital. Como demonstrado no segundo capítulo, Manoel Franco fora demitido da Inspetoria

do Tesouro Provincial, após atritos com o presidente do Ceará, devido aos textos do Pedro II,

a respeito do cólera, trazendo críticas severas ao governo. Para o lugar de tesoureiro, Figueiredo

Júnior nomeou João Severiano Ribeiro. Incluso entre os candidatos à oficial da Rosa, Severiano

recebeu muitos elogios de Figueiredo Júnior, para quem o sucessor de Manoel Franco suportara

“o extraordinário trabalho que ocasionou a epidemia nesta extensa e populosa província, por

causa das informações que lhe cabia dar, pagamentos amiudados e liquidações de contas, que

ainda hoje correm por suas mãos”. Membro do Partido Conservador, João Severiano estaria

acima das parcialidades, “sendo aqui um dos homens que a imprensa mais tem respeitado,

mesmo em épocas de grandes exacerbações dos ânimos por motivos políticos”986. Ao destacar

o papel estratégico da tesouraria na crise epidêmica e exaltar o tesoureiro, ao representá-lo como

alguém a colocar o bem-público acima dos interesses partidários, Figueiredo Júnior não deixava

de atingir Manoel Franco Fernandes Vieira, inferiorizado na comparação com o sucessor.

Quando da chegada da epidemia, Manoel Franco ocupava, ainda, o posto de vice

provedor da Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza, instituição nova, com cerca de um ano

de atividade. Pelo regimento dela, o posto de provedor era prerrogativa do presidente da

província, tendo como principal função garantir os interesses e funcionamento da Santa Casa,

especialmente na questão orçamentária. Já o vice provedor chefiava a mesa diretora da

irmandade e era o responsável direto pela administração do hospital987. Desta forma, Manoel

983 O Araripe, n. 288, 13 set. 1862, p. 1. 984 O Cearense, n. 1540, 2 set. 1862, p. 4. 985 O Cearense, n. 1540, 2 set. 1862, p. 4. 986 FIGUEIREDO JÚNIOR apud VASCONCELO, op. cit., 1910, p. 83. 987 FERREIRA, op. cit., 2017, p. 51.

252

Franco estava num posto estratégico, ainda mais em momento de epidemia, na qual caberia à

Santa Casa ser o espaço central para acolhimento e tratamento dos coléricos de Fortaleza.

Contudo, Manoel Franco renunciou ao cargo de provedor a 28 de agosto de 1862.

Provavelmente, a saída decorria do agravamento do conflito com o presidente do Ceará, a quem

o vice-provedor deveria corriqueiramente dirigir-se para tratar das necessidades do hospital.

Alegando “se achar doente”988, Franco solicitou à mesa diretora da irmandade o afastamento

do posto. Para sucedê-lo, a mesa indicou o negociante português José Smith de Vasconcelos.

Assim como fizera em relação ao novo inspetor de tesouraria, Figueiredo Júnior não

poupou elogios ao indicar o substituto de Manoel Franco na Santa Casa de Misericórdia ao

oficialato da Rosa. Arrolava ações caridosas dele durante a epidemia, bem como o empenho

em “aumentar o patrimônio daquele utilíssimo estabelecimento, promovendo subscrições até

na Europa”989. Ressaltava, ainda, a organização de uma exposição de produtos provinciais, a

arrecadar mais de 2 contos de réis para a instituição, com o leilão dos objetos expostos990.

Caso as indicações de Figueiredo Júnior fossem atendidas pelo governo imperial,

Manoel Franco Fernandes Vieira poderia se sentir atingido ao ver os novos ocupantes da

tesouraria provincial e da vice provedoria da Santa Casa laureados com a ordem da Rosa, e,

talvez, interpretasse as nomeações como mais um capítulo do conflito com o presidente do

Ceará. Todavia, o Ministério do Império não levou a cabo a premiação. Se em 1858 centenas

de pessoas receberam hábitos da Rosa e de Cristo pelos serviços prestados quando da chegada

do cólera ao Brasil, o mesmo não ocorreu com os cearenses atuantes na epidemia de 1862. Não

houve nomeações relativas ao assunto no 2 de dezembro de 1863, nem nos anos seguintes. A

lista de Figueiredo Júnior, elaborada tão minunciosamente para premiar não só quem se

destacara nos socorros aos coléricos, mas também aos defensores do presidente, no contra-

ataque ao Pedro II, quedou esquecida.

Ao comparar os 49 nomes do documento escrito por Figueiredo Júnior em 1863 com os

perfis biográficos escritos pelo Barão de Studart991 e com as relações dos “cearenses titulares e

condecorados”, publicadas por Paulino Nogueira, em 1901992, notei: apenas 8 pessoas

receberam ordens honoríficas. Todavia, os prêmios foram dados individualmente e não tendo

os serviços prestados em 1862 como justificativa central. O médico José Lourenço de Castro e

988 Pedro II, n. 211, 16 set. 1862, p. 2. 989 FIGUEIREDO JÚNIOR apud VASCONCELO, op. cit., 1910, p. 86. 990 FIGUEIREDO JÚNIOR apud VASCONCELO, op. cit., 1910, p. 86. 991 STUDART, op. cit, 1910; STUDART, op. cit, 1913; e STUDART, op. cit, 1915. 992 NOGUEIRA, Paulino. Relação dos cearenses titulados e condecorados. Revista do Instituto do Ceará.

Fortaleza, tomo XV, p. 122-136, jan-jun., 1901; NOGUEIRA, Paulino. Relação dos cearenses titulados e

condecorados. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza, tomo XV, p. 289-303, jul.-dez., 1901.

253

Silva, por exemplo, foi promovido de cavaleiro a comendador de Cristo por conta “dos longos

e prestantíssimos serviços em épocas diversas”993, com destaque para os postos de médico da

pobreza, inspetor de saúde pública, diretor geral de instrução pública e deputado provincial em

quatro legislaturas994. O oficialato da Rosa, reivindicado por três presidentes da província em

1862, nunca foi concedido ao médico e político liberal.

Outro premiado pela carreira no funcionalismo foi João Severiano Ribeiro. Funcionário

público desde 1839 – tendo, inclusive, atuado na Inspetoria do Tesouro de Alagoas em 1856,

prestando “serviços mui relevantes durante o tempo em que reinou o cólera morbo naquela

província”995 –, João Severiano já tinha o hábito de Cristo antes da epidemia do Ceará de 1862.

Pelos serviços nesta ocasião, tivera o nome indicado a oficial da Rosa por Figueiredo Júnior.

Nos anos seguintes, Severiano ocupou série de cargos públicos em Pernambuco e Ceará. Foi,

ainda, vice-provedor da Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza e deputado provincial por

quatro vezes996. Como reconhecimento pelo histórico profissional, o governo imperial lhe

concedeu a honra de cavaleiro da Rosa, a qual João Severiano recusou997. Não há registro a

respeito do motivo da recusa. Já cavaleiro de Cristo, talvez quisesse poupar gastos com o

diploma e a joia da nova comenda.

Já o médico Antônio Manoel de Medeiros atuou em diversas epidemias, sendo

constantemente enviado pelo governo provincial ao interior do Ceará a tratar dos doentes.

Inclusive, faleceu enquanto atuava numa comissão de socorros no Cariri, em 1879998. Entre

1877 e 1879, uma seca atingiu fortemente a província. Numa conjuntura de fome, de migração

em massa, de maus alojamentos e péssimos hospitais disponíveis, a varíola encontrou espaço

para desenvolver-se como nunca, tanto no interior como na capital. Cerca de 180.000 pessoas

morreram no Ceará durante o período, por conta da fome, da varíola e outras doenças999. Nessa

conjuntura, faleceu Antônio Manoel de Medeiros. Quando da morte, era cavaleiro da Rosa,

honraria menor em comparação ao oficialato solicitado por Figueiredo Júnior para premiação

das ações do médico em 1862, ocasião na qual teria tratado os coléricos do Cariri e Maranguape

de modo exemplar: “Não houve médico na província que o igualasse em atividade e diligência,

sendo para notar o zelo que mostrou em economizar os dinheiros públicos”1000.

993 O Cearense, n. 66, 15 ago. 1874, p. 1. 994 STUDART, op. cit, 1913, p. 142-143; PAIVA, 1979, op. cit., p. 95. 995 FIGUEIREDO JÚNIOR apud VASCONCELO, op. cit., 1910, p. 82. 996 STUDART, op. cit, 1910, p. 514; PAIVA, 1979, op. cit., p. 92. 997 NOGUEIRA, op. cit., 1901, p. 128. 998 STUDART, op. cit., 1910, p. 108. 999 STUDART, op. cit., 1997b, p. 45. 1000 FIGUEIREDO JÚNIOR apud VASCONCELO, op. cit., 1910, p. 95.

254

Já Pompílio da Rocha Moreira e o padre José Cândido da Guerra Passos foram

agraciados como cavaleiros de São Bento de Avis, uma das antigas ordens portuguesas

adaptadas ao Brasil, tornando-se, no Segundo Reinado, condecoração destinada exclusivamente

aos integrantes do Exército e da Armada1001. Figueiredo Júnior havia solicitado os hábitos da

Rosa e de Cristo, respectivamente, para os militares pelos serviços prestados na epidemia de

1862. O hábito de Avis veio como reconhecimento das carreiras de Pompílio e José Cândido,

somadas às respectivas patentes de capitão e coronel1002, pela atuação numa conjuntura de

ascensão dos militares nos rumos do Império, especialmente após a Guerra da Tríplice Aliança

contra o Paraguai (1864-1870)1003.

Por fim, os cônegos Raimundo Francisco Ribeiro e Antônio Pinto de Mendonça

receberam o hábito de Cristo. Como a comenda de cavaleiro desta ordem era comumente

entregue a religiosos, especialmente aos bem situados na hierarquia1004, ela veio premiar aos

dois padres. Raimundo Ribeiro, por exemplo, foi vigário de Baturité por 49 anos1005, enquanto

Pinto de Mendonça, além do vicariato de Quixeramobim, ocupou o posto de governador do

Bispado do Ceará, por determinação de Dom Luiz Antônio dos Santos. Para além das atividades

religiosas, eles foram também políticos, atuando como deputados provinciais e gerais e, como

era comum no oitocentos, chefes de família, com filhos formados na Faculdade de Direito de

Recife e ocupantes de cargos públicos e eletivos1006.

Portanto, os 8 cearenses agraciados com ordens honoríficas, que constavam na lista de

49 indicados ao beneplácito imperial pelos atos durante a epidemia do cólera de 1862,

receberam comendas pela trajetória, e não, especificamente, pela atuação naquele momento de

calamidade pública. Se o cólera motivou a concessão de mais de 800 comendas em 18581007,

não pareceu ser suficiente para premiar as pessoas indicadas por Figueiredo Júnior pelos

serviços de 1862. Para além da lista, a falta de despachos imperiais sobre a questão também

deve ter frustrado as dezenas de pessoas cujos atos de filantropia e caridade foram amplamente

anunciados na imprensa cearense de 1862. A “epidemia dos elogios”1008 foi em vão: para quem

esperava distinções pelos atos praticados e propagandeados, não haveria recompensas.

1001 PINHEIRO, op. cit, 1884, p. 5. 1002 NOGUEIRA, op. cit., 1901, p. 130-135. 1003 O padre José Cândido da Guerra Passos recebeu a patente de coronel por conta da atuação no Paraguai.

STUDART, op. cit, 1913, p. 82. 1004 SILVA, op. cit., 2014, p. 258. 1005 STUDART, op. cit., 1915, p. 71. 1006 STUDART, op. cit., 1910, p. 117-118; STUDART, op. cit., 1915, p. 71-73. 1007 Jornal do Commercio, n. 331, suplemento, 2 dez. 1858, p. 1. 1008 O Cearense, n. 1543, 25 set. 1862, p. 3.

255

Algumas questões, penso eu, podem explicar a razão do cólera no Ceará não ter rendido

as distinções almejadas por parte das elites locais envolvidas com os socorros de 1862. A

primeira diz respeito ao impacto do cólera entre 1855-1856. Se, em 1849, a epidemia de febre

amarela tinha assustado o Império, o cólera a superou em tragédia. A primeira manifestação

desta doença no Brasil foi avassaladora, atingindo quatorze províncias, de norte a sul, incluindo

a Corte, em pouco mais de um semestre. Os cerca de 200 mil óbitos computados à época

demonstram a amplitude do problema. A decisão política do governo imperial, ao recorrer à

“meia enchente”1009 de comendas de 1858, refletia, portanto, o impacto da doença no Brasil.

Perto da estreia do cólera no país, a epidemia de 1862, no Ceará, pareceu fato isolado e irrisório,

malgrado ter matado cerca de 2% da população provincial.

As várias críticas recebidas pelo Marquês de Olinda pelos despachos de 2 de dezembro

de 1858, quando estava prestes a ser substituído na chefia do gabinete, também podem tê-lo

deixado mais atento às nuances da política de uso das comendas como pagamento por serviços

prestados durante crises sanitárias. Mesmo as centenas de honrarias dadas em 1858 não

satisfizeram segmentos sociais ávidos por prêmios para os seus correligionários, agregados,

amigos e familiares. Quando em 1862 retornou à chefia do governo, o marquês acionou o

presidente do Ceará para elencar as pessoas mais destacadas na conjuntura marcada pelo cólera.

Todavia, Olinda não repetiu a torrente de graças de 1858.

Ademais, quando no início de 1863 Figueiredo Júnior remeteu ofício relacionando os

aspirantes ao beneplácito imperial, as atenções do governo e do país estavam catalisadas para a

crise diplomática conhecida como “Questão Christie”. Segundo Marcelo Basile, o conflito deu-

se na conjuntura de choques recorrentes entre Brasil e Inglaterra, como a não renovação do

tratado comercial de 1827 e as controvérsias relativas ao tráfico negreiro. Mesmo após 1850,

quando o tráfico atlântico foi abolido oficialmente no Brasil, a Inglaterra não pôs fim ao Bill

Aberdeen Act, política naval focada na inspeção e apreensão de embarcações suspeitas de

tráfico ilegal. Enquanto os brasileiros criticavam o intervencionismo atlântico, os diplomatas

da rainha Vitória cobravam mais rigor das autoridades imperiais na fiscalização dos navios,

bem como cobravam compensações pelos gastos britânicos no contexto da Independência do

Brasil e Guerra Cisplatina1010.

Dois incidentes foram mote para o agravamento do conflito. O naufrágio de uma fragata

inglesa no Rio Grande do Sul, em junho de 1861, seguido da pilhagem da carga, e a acusação,

nunca comprovada, de terem tripulantes ingleses sido assassinados na ocasião, levou o

1009 O Cearense, n. 1185, 17 dez. 1858, p. 2. 1010 BASILE, op. cit., 1990, p. 256.

256

diplomata William Dougal Christie a pressionar as autoridades por agilidade na investigação,

enviando um capitão inglês para acompanhar o inquérito pessoalmente, no que foi atalhado pelo

presidente do Rio Grande do Sul1011.

O segundo incidente, em julho de 1862, foi a prisão de três oficiais ingleses,

alcoolizados e à paisana, após entrarem em atrito com uma sentinela brasileira na capital do

Império. Os marinheiros foram soltos no dia seguinte. Todavia, afirmando estarem os oficiais

sóbrios quando do conflito e alegando maus tratos sofridos na prisão, Christie exigiu punição

às autoridades policiais envolvidas, pedido formal de desculpas por parte do governo imperial

e indenização pelas perdas do naufrágio no Rio Grande do Sul1012.

Como as autoridades brasileiras não acataram as reivindicações, William Dougal

Christie ordenou bloqueio ao porto do Rio de Janeiro, fato ocorrido entre 31 de dezembro de

1862 e 5 de janeiro de 1863, quando houve, ainda, a captura de cinco navios da marinha

mercante brasileira. O clima de agitação tomou as ruas da Corte. O governo imperial aceitou

pagar, sob protesto, indenização pelo incidente de 1861, rejeitando as outras exigências de

Christie e cobrando desculpa e compensação britânica pela violação ao território brasileiro. O

governo inglês recusou-se a atender as cobranças, levando ao rompimento das relações

diplomáticas entre os países1013.

A crise diplomática despertou onda patriótica no Brasil. No Ceará não foi diferente. Os

jornais deram amplo espaço ao assunto a partir de fins de janeiro de 1863, reproduzindo

correspondências do governo imperial com a legação inglesa, comunicações do Marquês de

Olinda aos presidentes de província, publicando notas de apoio ao Imperador, informando sobre

manifestações de câmaras municipais, propondo a organização de subscrições para doação ao

Imperador, recursos a serem usados em eventual guerra, entre outras questões1014.

Os ofícios de Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda também passaram a ser tomados

pela questão Christie. Se a epidemia de cólera de 1862 fez a imprensa cearense se dividir entre

ataques e defesas ao governo provincial, a crise diplomática parecia ao presidente do Ceará uma

oportunidade para sossegar ânimos e apaziguar os partidos em nome do dever patriótico:

Tenho a maior satisfação em afiançar a Vossa Excelência que os sentimentos

patrióticos manifestados pelo povo dessa capital, sem distinção de posições

sociais, nem de opiniões políticas, tem tido eco nesta província, cujos

1011 BASILE, op. cit., 1990, p. 256. 1012 BASILE, op. cit., 1990, p. 256-257. 1013 BASILE, op. cit., 1990, p. 257. 1014 Pedro II, n. 18, 23 jan. 1863, p. 1-4; O Cearense, n. 1560, 23 jan. 1863, p. 2-3; O Sol, n. 312, 25 jan. 1863, p.

3; Gazeta Official, n. 54, 28 jan. 1863, p. 1-4.

257

habitantes estou bem certos, se unirão como um só corpo e rodearão o Augusto

Trono de Sua Majestade, O Imperador, sempre que se tratar do decoro e

dignidade da Nação Brasileira. As manifestações da imprensa aqui servem de

confirmação ao meu juízo1015.

Ante a repercussão do caso Christie, Figueiredo Júnior dizia pôr em prática as

orientações de Olinda, em circular de 10 de janeiro, na qual o ministro teria orientado os

presidentes de província a aproveitar “as boas disposições e os sentimentos de patriotismo”

decorrentes do conflito, de modo a “promover a concórdia e harmonia entre os habitantes” das

províncias, fazendo-os “esquecer as inimizades e os ódios originados pelas lutas políticas; pois

que agora, mais do que nunca, necessita o Império da união de todos os brasileiros”1016.

Apenas a 31 de janeiro de 1863, Figueiredo Júnior enviou cinco diferentes

correspondências ao Marquês de Olinda, dando conta da reação dos habitantes de Fortaleza às

notícias vindas da Corte. O fervor cívico do Ceará, afirmou, não seria superado “por nenhuma

outra Província”1017. Chegou a aventar a possibilidade dos partidos conservador e liberal

fecharem acordo na eleição para escolha do sucessor do senador Miguel Fernandes Vieira, líder

carcará morto em 1862: “adversários políticos se mostram dispostos a prestarem

reciprocamente seus sufrágios”1018.

Em ofício classificado como confidencial, o chefe do executivo cearense revelava como

agia nos bastidores naqueles dias. Comentava a circular enviada por Olinda, em 10 de janeiro

de 1863, na qual o ministro teria recomendado aos presidentes de província que, “com a

necessária reserva, e sem dar a perceber de modo nenhum” terem recebido “ordem ou

insinuação do Governo”, estimulassem “o patriótico empenho que se manifesta de agenciar

subscrição para ser aplicado o seu produto a bem da defesa do Brasil, do modo que melhor

entender o Governo Imperial”. Figueiredo Júnior afirmava estar empenhado na questão.

Todavia, ponderava sobre possível dificuldade, advinda da crise epidêmica de 1862:

Os calamitosos efeitos da epidemia do cólera morbo, e as frequentes

subscrições e esmolas a que deu lugar nesta província o sentimento de

caridade que se despeitou durante a quadra epidêmica, desfalcou um pouco a

fortuna dos particulares e mesmo dos negociantes: pelo que não se obterá

provavelmente quantia muito avultada, a menos que alguma declaração de

1015 ANRJ. Ofício n. 11. 30 jan.1863. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182. 1016 ANRJ. Ofício n. 12. 31 jan.1863. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182. 1017 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 31 jan. 1863. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 213, Doc. 104. 1018 ANRJ. Ofício n. 12. 31 jan.1863. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182.

258

guerra ao Brasil exija novos sacrifícios dos cidadãos que estejam no caso de

fazê-lo1019.

Não obstante tal questão, o presidente do Ceará asseverava “obrar de um modo mui

direto para o fim de obter auxílios mais eficazes”. Tendo em vista a “consideração e deferência”

recebidas pelo presidente por parte de alguns cearenses influentes, estabeleceu “conversa íntima

com algumas pessoas de inteira confiança”, tratando de “dar toda a possível animação à ideia

patriótica da subscrição”. Uma das estratégias foi acionar os jornais liberais da capital, aqueles

que, como demonstrei ao longo desta tese, apoiaram sobremaneiramente a Figueiredo Júnior na

conjuntura do cólera: “Neste intuito, influenciei discretamente para que o ‘Cearense’ e o ‘Sol’

se pronunciassem de modo a despertar o entusiasmo dos que podem ajudar o Governo, a bem

da dignidade nacional”1020. Do mesmo modo, orientou a Gazeta Official a, “com a prudência

necessária”, transcrever “certos artigos, convenientes dos periódicos da Corte”1021, com vistas

ao incentivo às contribuições. Desta forma, o presidente do Ceará confessava a proximidade

estabelecida com os liberais, bem como o agenciamento do jornal oficial da província para os

fins políticos de interesse do governo.

Quando a “Questão Christie” ocorreu, os casos de cólera no Ceará mostravam-se poucos

e espaçados. A fase crítica, com milhares de doentes e mortos espalhados por toda a província,

estava superada. Desta forma, a epidemia, mote central da politização dos jornais liberais e

conservadores do Ceará em 1862, deixava de ser tema premente na imprensa. Em seu lugar,

surgia a crise diplomática, colocada acima dos partidos. Simbolicamente, a comissão

provincial, formada para coordenar a arrecadação de doações na província, era composta pelo

presidente Figueiredo Júnior e por Thomaz Pompeu e Manoel Fernandes Vieira, os respectivos

líderes dos partidos Liberal e Conservador e proprietários dos jornais O Cearense e Pedro II1022.

Das câmaras municipais, vinham votos de felicitação ao Governo Imperial pela postura

adotada na crise. A de Telha, afirmava ter Pedro II justificado “gloriosamente o título de

Defensor Perpétuo do Brasil” e o governo imperial não desmentia “sua alta missão fazendo

sentir a poderosa Nação Britânica que o Brasil posto que novo e fraco, não trepida defender

briosamente seus direitos por amor dos quais não duvida sacrificar-se quando a honra da Nação

1019 ANRJ. Ofício confidencial. 31 jan.1863. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182. 1020 ANRJ. Ofício confidencial. 31 jan.1863. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182. 1021 ANRJ. Ofício confidencial. 31 jan.1863. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182. 1022 O Cearense, n. 1569, 27 mar. 1863, p. 1.

259

o exigia”1023. Já as câmaras de Quixeramobim e Fortaleza nomearam comissão com cearenses

residentes no Rio de Janeiro, encabeçadas pelo deputado geral José de Alencar1024, para

transmitir ao Marquês de Olinda mensagem de congratulação a Pedro II: “Os grandes Monarcas

fazem os grandes povos. O exemplo aí está no entusiasmo e patriotismo com que a Nação

Brasileira à voz de seu Imperador se ergueu diante da prepotência britânica, e cercou o Trono

de Vossa Majestade Imperial, seguro paládio da honra e dignidade nacional”1025.

Se o cólera tinha mobilizado atos de caridade e filantropia, agora era chegada a hora de

fortificar as manifestações de patriotismo. Não por acaso, muitos indivíduos tratavam de

propagandear atos em prol do governo imperial. Os jornais foram tomados por anúncios de

doações e por listas com nomes de participantes de subscrições1026. O já conhecido José

Lourenço de Castro e Silva, por exemplo, ofereceu os doze meses de salário do ano de 1863,

do cargo de Inspetor de Saúde Pública, ao governo imperial, “para ser aplicado às despesas do

armamento naval contra a agressão do governo inglês”1027. A ação rendeu novos elogios de

Figueiredo Júnior, que remeteu cópias dos ofícios trocados com o médico ao Marquês de

Olinda. A Castro e Silva, o presidente falou da “satisfação de ainda esta vez reconhecer o

louvável desinteresse e patriotismo com que Vosmecê se mostra sempre disposto a prestar os

seus serviços em bem do país, até com sacrifícios pecuniários”1028.

Como demonstrei, desde o começo de 1862, a presidência da província buscava nova

distinção honorífica para José Lourenço. A justificativa para o prêmio foi reforçada pelo

desempenho do médico durante a epidemia do cólera. Desta forma, o pretenso “desinteresse”

do médico ao doar o ordenado, podia esconder algo mais. Talvez, após tentar tomar partido do

cólera, chegava a hora de fazer o mesmo com a Questão Christie.

1023 ANRJ. Felicitações enviadas pela Câmara Municipal de Telha ao Marquês de Olinda. 18 fev. 1863. Série

Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1863).

Notação IJJ 9-182. 1024 ANRJ. Ofício de José Martiniano de Alencar ao Marquês de Olinda, com felicitações da Câmara Municipal

de Quixeramobim. 14 abr. 1863. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182. 1025 ANRJ. Ofício de José Martiniano de Alencar ao Marquês de Olinda, com felicitações da Câmara Municipal

de Fortaleza. 29 mar. 1863. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182. Para além das câmaras, algumas felicitações reuniam

mais indivíduos. O documento organizado no Icó, por exemplo, partia das “pessoas mais importantes da cidade”,

reunindo 11 páginas de assinaturas de deputados gerais e provinciais, sacerdotes, juízes, vereadores, militares,

médicos, bacharéis, comerciantes e proprietários rurais. ANRJ. Felicitações enviadas do Icó ao Marquês de Olinda.

17 abr. 1863. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas autoridades. Ofícios do Governo

do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182. 1026 Exemplos de publicações do tipo se encontram nas edições seguintes: Pedro II, n. 31, 8 fev. 1863, p. 3; O

Cearense, n. 1562, 6 fev. 1863, p. 2; Gazeta Official, n. 60, 18 fev. 1863, p. 4; O Sol, n. 316, 22 fev. 1863, p. 3. 1027 O Sol, n. 315, 15 fev. 1863, p. 3. 1028 ANRJ. Ofício n. 23. 17 abr. 1863. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182.

260

Mas outro assunto tomou a atenção dos jornais cearenses em 1863: as eleições para

senador e deputado geral. Os resultados dos pleitos, simbolicamente, refletiram muito dos jogos

políticos e partidários a marcar a imprensa em 1862, tempo do cólera, “Liga” e conflitos

internos no Ceará. É o que exibirei a seguir.

4.3 – O “Cólera morbo psíquico e moral”

Haviam chegado à capital dois dos mais empenhados candidatos à senatoria,

os deputados Raimundo e Figueira de Mello, este último sob a forma de chuva

de ouro, trazendo 10:280$ [dez contos e duzentos e oitenta mil réis] de uma

subscrição que promovera na corte, em benefício dos pobres, que sofreram

do cólera. Se não se achasse em vésperas de uma eleição, se não fora um

pretendente do sufrágio público, há muito boa parte se atribuiria este serviço

à humanidade; mas em tal ocasião só enxergam cálculo político, no que o

ilustre cearense supõe ver somente generosidade1029.

Publicado originalmente na coluna “Noticiário” do semanário O Araripe, a citação

acima aludia ao retorno à Fortaleza dos deputados gerais Raimundo Ferreira de Araújo Lima e

Jerônimo Martiniano Figueira de Mello, então candidatos ao Senado. Como já tratado

anteriormente, em agosto de 1862, o senador Miguel Fernandes Vieira, liderança do Partido

Conservador no Ceará e proprietário do diário Pedro II, faleceu no Rio de Janeiro. A morte do

político “carcará” anunciava o advento da campanha eleitoral. Se ao longo do segundo semestre

daquele ano, as notícias relativas ao cólera permaneceram constantes nos jornais cearenses, não

faltaram, também, textos sobre os candidatos à câmara vitalícia.

O Araripe centrava-se no desembargador Figueira de Mello. Comentava o fato dele ter

voltado ao Ceará com quantia destinada aos “que sofreram do cólera”1030. A iniciativa de

Figueira de Mello em organizar subscrição na Corte para doação à pobreza vitimada pela

epidemia repercutiu na imprensa provincial. Em meados de outubro de 1862, a Gazeta Official

anunciou terem Figueira de Mello e o irmão, João Capistrano Bandeira de Mello, promovido

“entre as pessoas do comércio da corte uma subscrição que já montava a 8.000$000 e que

poderá subir ao dobro”. A destinação dos recursos seria o socorro “às viúvas e crianças vítimas

do cólera”1031. Elogiando a iniciativa dos deputados, O Sol afirmou ser ela “prova de muita

dedicação desses dois ilustres cavaleiros pela sua província”, sugerindo: “melhor aplicação teria

a cifra subscrita se fora destinada à instituição de um colégio de educandos órfãos” em

1029 O Araripe, n. 293, 22 nov. 1862, p. 2. 1030 O Araripe, n. 293, 22 nov. 1862, p. 2. 1031 Gazeta Official, n. 27, 15 out. 1862, p. 3.

261

Fortaleza, pois seria “uma fonte de mais perene auxílio para a orfandade”1032. Já o Pedro II

transcreveu ofício de Figueira de Mello e Bandeira de Mello encaminhando à presidência do

Ceará a subscrição, a ser gasta conforme orientação do presidente e do bispo. Na publicação,

constava ainda a lista de mais de setenta doadores, entre os quais destacavam-se: Visconde de

Abrantes, Visconde de Ipanema, Visconde de Bonfim, Visconde de Estrela, Barão de Mauá,

Barão de Nova Friburgo, Barão de Itamaraty e Barão de Itaguaí1033.

Malgrado o teor elogioso dado aos jornais de Fortaleza à doação, o cratense O Araripe,

adotou tom mais áspero, indicando ser a subscrição levantada por Figueira de Mello não um

ato filantrópico desprovido de interesses, mas “cálculo político” com vistas à sua candidatura

ao Senado. Para justificar a interpretação, O Araripe insinuava ter a campanha de Figueira de

Mello encontrado resistência entre os Fernandes Vieira, o núcleo conservador “carcará”, ávido

por fazer de alguém do clã o sucessor de Miguel Fernandes Vieira. O Araripe provocava: nem

mesmo a indicação do “consistório” em favor de Figueira de Mello teria demovido os carcarás

da decisão de não patrocinar efetivamente a candidatura do desembargador1034.

Ao falar em “consistório”, O Araripe apropriava-se de termo irônico usado para se

referir ao núcleo do Partido Conservador na Corte. Em fins de agosto de 1862, repercutiu no

Ceará documento assinado por cinco lideranças do partido, constando entre eles a chamada

“trindade saquarema”, formada pelo Visconde de Itaboraí, Visconde do Uruguai e Eusébio de

Queiroz. Os dois primeiros eram recorrentemente chamados “cardeais”, enquanto o último era

tido como o “papa” saquarema1035. Além da “trindade”, o Barão de Muritiba e Manoel Felizardo

de Sousa e Mello completavam a lista a firmar o documento enviado ao Ceará. O Cearense,

transcreveu “a encíclica do consistório oligárquico da Corte”1036, indicando ter sido endereçada

à província “a pedido do desembargador Figueira de Mello”.

Segundo a “encíclica”, a eleição para sucessão de Miguel Fernandes Vieira no Senado,

oportunizaria aos “nossos amigos políticos” demonstrarem a “união e maioria em que se”

achavam os conservadores na Província do Ceará, oferecendo “à escolha do poder moderador

três cidadãos que pelos seus serviços ao país representem a consistência dos nossos princípios,

e por sua ilustração possam defender-nos no combate da discussão parlamentar”. Assim,

orientava votos em favor dos deputados gerais Jerônimo Martiniano Figueira de Mello,

Raimundo Ferreira de Araújo Lima e Domingos José Nogueira Jaguaribe, “cidadãos

1032 O Sol, n. 297, 12 out. 1862, p. 4. 1033 Pedro II ̧n. 243, 23 out. 1862, p. 2. 1034 O Araripe, n. 293, 22 nov. 1862, p. 2. 1035 HOLANDA, op. cit., 2010, p. 96. 1036 O Cearense, n. 1541, 9 set. 1862, p. 1, grifos da fonte.

262

vantajosamente conhecidos no país”, cuja inclusão na lista tríplice, a ser enviada ao Imperador,

corresponderia “à expectativa da opinião conservadora”1037.

A manifestação do “consistório” desagradou aos Fernandes Vieira. Não por acaso, o

jornal dos “carcarás” publicou carta, assinada pelo pseudônimo “Plínio”, comentando a chapa

sugerida. Segundo o missivista, “por mais respeitáveis que sejam os Doutores apresentados”,

haveria “ingratidão para com a família Fernandes Vieira, porquanto nenhum membro foi

lembrado para um lugar na lista”1038. Ademais, punha em dúvida os “recursos” disponíveis aos

indicados pela Corte para “organizar uma chapa excluindo aqueles que dispõem de elementos

muito valiosos” para a empreitada eleitoral. Segundo Plínio, “os homens de verdadeiros

recursos são os Doutores [Francisco] Domingues da Silva e [Manoel] Fernandes Vieira”.

Somente uma chapa com tais nomes inclusos exprimiria “os sentimentos da província”, pois

“nenhum eleitor do partido conservador do Ceará deixará de abraçar com satisfação os ilustres

nomes que acabo de nomear” 1039.

Nota-se, portanto, a pretensão do grupo responsável pelo Pedro II de organizar a lista

de candidatos conservadores da província e, especialmente, garantir na mesma a presença de

Manoel Fernandes Vieira, desconsiderando assim as orientações enviadas da Corte pela direção

do partido. Colocado de lado na pretensão à senatoria pelos carcarás, o desembargador Figueira

de Mello faria campanha sem apoio efetivo do Pedro II. Ante tal cenário, O Araripe acusava o

magistrado de querer descolar-se da “seita eusebiana” – em alusão a Eusébio de Queiroz, colega

de turma de Figueira de Mello no Curso Jurídico de Olinda1040 –, tentando apresentar-se como

“ligueiro”1041. Assim, a candidatura do desembargador adotava a “Liga” como forma de superar

o boicote carcará, contando, ainda, com a expectativa de conseguir apoio dos diferentes partidos

ao seguir a senda, teoricamente, mais conciliatória. Por isso, O Araripe, diante do cenário

político, acusava Figueira de Mello de usar o cólera para se promover eleitoralmente1042.

A insinuação d’O Araripe acerca de Figueira de Mello fazia sentido. Alguns textos

escritos em defesa da candidatura dele usavam a epidemia como principal exemplo de bom

serviço para com o Ceará. O Sol, por exemplo, em capa dedicada à pretensão do desembargador

à câmara vitalícia, fez apanhado da trajetória do “cidadão nosso patrício, que por muitos títulos

se faz digno de ser um dos três que as urnas devem contemplar e oferecer a escolha da coroa”.

1037 O Cearense, n. 1541, 9 set. 1862, p. 1. 1038 Pedro II, n. 226, 3 out. 1862, p. 2. 1039 Pedro II, n. 226, 3 out. 1862, p. 2. 1040 STUDART, op. cit., 1910, p. 396. 1041 O Araripe, n. 293, 22 nov. 1862, p. 2. 1042 O Araripe, n. 293, 22 nov. 1862, p. 2.

263

Destacava, particularmente, a coleta de donativos feitas no Rio de Janeiro em prol das “viúvas

e órfãos que a epidemia do cólera deixou, ou para servir de asilo a órfãs, em um colégio de

educandas, como se tem pensado, visto que para o sexo masculino já o temos na capital”1043.

Para a redação d’O Sol, somente um ato dos cearenses poderia retribuir tamanha generosidade:

[...] a contribuição alcançada de mais de 12 contos de réis se for devida e

vantajosamente aplicada é um benefício tão real a essa classe desvalida, e tão

imorredouro para o nome daqueles que o promoveram, que a província grata

a esta dedicação, a este zelo do Sr. Figueira de Mello não pode deixar de

contemplá-lo como mui digno de ser na câmara vitalícia seu representante1044.

Em janeiro de 1863, a Gazeta Official noticiou baile realizado na capital do Ceará em

honra de Figueira de Mello e irmão, João Capistrano: “os dois distintos cearenses tiveram a

feliz inspiração de socorrer suas coprovincianas mais desventuradas na quadra em que uma

terrível calamidade as reduzia à viuvez e orfandade”1045. Para além da subscrição, revelava a

redação da Gazeta Official ter o desembargador posto “à disposição da presidência a quantia de

300$000 com o fim mui louvável de socorrer os indigentes de diversas localidades”. O tom

laudatório marcava a notícia:

[...] o Sr. Figueira de Mello deu mais de um exemplo edificante, mostrando

que o homem verdadeiramente patriota não deve perder o ensejo de estender

a mão ao patrício desditoso. É principalmente nas grandes calamidades que o

axioma res non verba [fatos e não palavras] adquire maior valor para quem

não acredita na eficácia de simples palavras desacompanhadas de fatos

significativos dos bons sentimentos que a ditaram1046.

O baile, inclusive, arrecadou mais um conto de réis, com doações dos “amigos do Exm.

Sr. Desembargador”1047, para o projeto de criação de instituição voltada a viúvas e órfãos.

Notadamente, o baile e a notícia da Gazeta Official faziam parte da estratégia eleitoral de

Figueira de Mello, afinal a realização da homenagem ocorreu cerca de três semanas antes da

eleição, marcada para 8 de fevereiro de 1863. Ademais, a publicação na folha oficial do Ceará

de loas aos atos do desembargador durante o cólera não deixava de indiciar a preferência da

presidência pelo candidato. A relação entre Figueira de Mello e a família Cunha Figueiredo era

de conhecimento público. Como mostrei no segundo capítulo, em 1856, José Bento da Cunha

Figueiredo, então presidente de Pernambuco, foi acusado de intervir na quarentena portuária, a

1043 O Sol, n. 301, 9 nov. 1862, p. 1-2. 1044 O Sol, n. 301, 9 nov. 1862, p. 2. 1045 Gazeta Official, n. 52, 21 jan. 1863, p. 3. 1046 Gazeta Official, n. 52, 21 jan. 1863, p. 3. 1047 Gazeta Official, n. 52, 21 jan. 1863, p. 4.

264

fim de liberar o desembarque de caixão, trazido ocultamente do Rio de Janeiro, com o cadáver

do filho de Figueira de Mello. O corpo da criança “exalava mau cheiro”, havendo, inclusive, a

suspeita de ter finado por cólera1048.

Se Cunha Figueiredo desconsiderou os riscos sanitários para ajudar o amigo

desembargador em hora tão delicada, a perda de um filho, era de supor que Figueira de Mello

se colocasse ao lado de Figueiredo Júnior quando este governava o Ceará. Em debate ocorrido

na Câmara Geral, a 31 de maio de 1862 – reproduzido na Gazeta Official cerca de noventa dias

depois, justamente no período no qual José Bento da Cunha Figueiredo Júnior estava sob ataque

do Pedro II – , Domingos José Nogueira Jaguaribe fez apanhado da situação epidêmica no

Ceará, anunciando ter pedido esclarecimentos ao gabinete sobre as medidas tomadas pelo

governo imperial no socorro da província1049.

Tomando a palavra, Figueira de Mello procurou rebater a insinuação de estar Figueiredo

Júnior “embaraçado em empregar os dinheiros públicos para opor-se à marcha do cólera morbo

e evitar os inconvenientes e desgraças que costuma fazer esse hóspede em todas as partes em

que apareceu”. Segundo a acusação, implícita no discurso de Jaguaribe, as ordens do gabinete

a respeito da parcimônia com os gastos durante a crise estariam fazendo o presidente agir sem

vigor no combate à epidemia. Rebatendo a tese, Figueira de Mello asseverava ter nenhuma

recomendação passada pelo governo geral “influído no ânimo daquele presidente para não

gastar dinheiros públicos”. Figueiredo Júnior teria “bastante tino, bastante consciência de sua

posição para não faltar a ela”, sabendo gastar com responsabilidade. Disse Figueira de Mello:

[...] consta-me mesmo que ele havia empregado todos os meios e dado as

ordens precisas para se fazerem as convenientes despesas. Portanto, à vista

das informações que tenho, particularmente daquelas que deduzo dos jornais

de nossa província, e finalmente do caráter do digno administrador do Ceará,

suponho que ele não faltará ao seu dever, e que está na altura de sua missão1050.

Destarte, a proximidade entre Figueira de Mello e os Cunha Figueiredo era notória.

Sem afirmar apoiá-lo oficialmente, Figueiredo Júnior não deixava de dar sinais da preferência

pelo desembargador na campanha ao Senado. Não por acaso, a Gazeta Official, órgão

subordinado a Figueiredo Júnior, publicava transcrições de discursos do desembargador na

Câmara dos Deputados1051. Em um dos debates parlamentares, chegou a usar o cólera para

1048 ANRJ. Carta do Dr. Joaquim d’Aquino Fonseca ao Ministro dos Negócios do Império, Luiz Pedreira de Couto

Ferraz. 23 fev. 1856. Fundo Saúde Pública. Notação IS4-25. 1049 Gazeta Official, n. 15, 3 set. 1862, p. 2. 1050 Gazeta Official, n. 15, 3 set. 1862, p. 3. 1051 Exemplos disso são encontrados nas edições: Gazeta Official, n. 15, 23 set. 1862, p. 2-3; Gazeta Official, n.

18, 13 set. 1862, p. 3; Gazeta Official, n. 21, 24 set. 1862, p. 4; e Gazeta Official, n. 23, 1 out. 1862, p. 3-4.

265

reivindicar a concessão de novos recursos para o Ceará, com vistas à criação de um seminário

na província. O número de sacerdotes vitimados pela epidemia foi o mote da solicitação:

[...] a província do Ceará, hoje vítima do cólera, vem sofrendo

extraordinariamente no número dos seus ministros; não menos de 10 ou 12

tem sucumbido a essa terrível enfermidade no exercício do santo mistério,

prestando consolações aos enfermos confessando-os, sacramentando-os e,

enfim, satisfazendo tudo quanto a nossa religião manda em ocasiões

críticas1052.

Quando em março de 1863 o resultado do escrutínio para o Senado veio a público, não

pareceu surpresa estar Figueira de Mello na primeira colocação. A eleição envolveu mais de

dez candidatos. Entre os liberais, figuravam pessoas destacadas durante a crise epidêmica, como

o médico José Lourenço de Castro e Silva e o cônego Pinto de Mendonça, sobre quem dissertei

anteriormente. Todavia, o nome mais importante do Partido Liberal na disputa foi o de Thomaz

Pompeu de Souza Brasil, líder “chimango” na província e proprietário d’O Cearense.

Como era de se esperar, a folha em questão foi a principal porta-voz da candidatura.

Logo após a morte do senador Miguel Fernandes Vieira ser anunciada, O Cearense passou a

veicular cartas anônimas ou firmadas por pseudônimos, além de textos publicados em jornais

de outras províncias, com elogios ao “cearense de grande ilustração e moralidade, um brasileiro

que fez honra à sua pátria”1053. O papel do sacerdote e líder partidário era representado, nas

publicações do jornal, quase como missão religiosa: “Sua palavra ungida pela fé de Deus

desperta o remorso no coração do forte e cai como as gotas do bálsamo sobre as chagas do

oprimido”1054. O candidato era descrito como o único capaz de iniciar nova fase política no

Ceará, pois a “vitória do Sr. Pompeu será o primeiro protesto contra o feudalismo carcará”1055.

Além de clérigo, Pompeu era doutor pelo curso jurídico de Olinda e reconhecido como

intelectual pelos estudos geográficos, históricos e estatísticos realizados no Ceará,

transformados em livros ou publicados na imprensa. Era, inclusive, sócio correspondente do

IHGB. A faceta intelectual foi explorada na série de publicações a respeito da candidatura dele

ao Senado. Uma das missivas asseverava: somente o “invejoso negará a sua ilustração, e

possibilidade de ser útil à sua província natal”1056. A preocupação de Pompeu em investigar

problemas locais também foi acionada no agenciamento de votos: “As causas que determinam

1052 Gazeta Official, n. 21, 24 set. 1862, p. 4. 1053 O Cearense, n. 1541, 9 set. 1862, p. 3. 1054 O Cearense, n. 1543, 23 set. 1862, p. 2. 1055 O Cearense, n. 1543, 23 set. 1862, p. 2. 1056 O Cearense, n. 1544, 30 set. 1862, p. 1.

266

as secas que tantas vezes têm assolado o Ceará não tem escapado às suas investigações”1057. Ao

debruçar-se sobre o fenômeno mais impactante e recorrente na província, o “Sr. Dr. Pompeu

tem estudado e proposto os meios conducentes se não a um pronto remédio ao menos à

minoração dos males”1058 decorrentes das secas.

No conjunto dos textos dedicados à exaltação dos méritos políticos e intelectuais de

Thomaz Pompeu de Souza Brasil, depreende-se a insinuação de que a ascensão da “Liga” na

Corte trazia possibilidade concreta do resultado do escrutínio ao Senado trazer a “verdade”1059

sobre os desejos da província. Em eleições ao senado anteriores, dominadas pelos

conservadores, especialmente o núcleo “carcará”, os candidatos liberais nunca conseguiam

figurar na lista tríplice. O próprio Pompeu alcançava ser bem sufragado nas votações, mas

ficava distante do topo. Todavia, o momento político vivido no Império no despontar dos anos

1860 anunciava mudanças nas regras dos jogos eleitorais, engendrando expectativas entre os

liberais a respeito do pleito ao Senado:

Hoje, porém, que uma política de moderação e tolerância parece inaugurar-se

e querer realizar as promessas da constituição, temos fé que os seus serviços

serão galardoados [...].

Não nos iludimos: o nome do Sr. Dr. Thomaz Pompeu de Souza Brasil há de

se levado agora perante o trono imperial em lista tríplice1060.

A crença na possibilidade do resultado da eleição trazer uma mescla dos partidos nos

três primeiros lugares, motivou O Cearense a imprimir carta enviada de Saboeiro, berço dos

“carcarás”, sugerindo o pragmatismo aos eleitores da província, votando em chapa composta

por dois liberais (Thomaz Pompeu e Hipólito Pamplona) e um conservador (Manoel Fernandes

Vieira): “Apresento homens de mérito de um, e de outro lado; ponho de parte suas opiniões, e

aprecio-os pelas suas luzes, pelo seu caráter, e por outras qualidades, que únicas devem merecer

nossos sufrágios”1061.

Se entre os liberais a esperança estava depositada na possibilidade do padre Pompeu se

beneficiar da conjuntura, entre os conservadores candidatos à senatoria, os mais destacados

eram: Manoel Fernandes Vieira, Domingos José Nogueira Jaguaribe e Raimundo Ferreira de

Araújo Lima. Se O Cearense foi o espaço promotor da candidatura de Thomaz Pompeu, a

redação do Pedro II, tratou de defender interesses políticos e familiares, sendo porta-voz da

1057 O Cearense, n. 1551, 18 nov. 1862, p. 2. 1058 O Cearense, n. 1551, 18 nov. 1862, p. 2. 1059 O Cearense, n. 1541, 9 set. 1862, p. 3. 1060 O Cearense, n. 1551, 18 nov. 1862, p. 2. 1061 O Cearense, n. 1545, 7 out. 1862, p. 3.

267

campanha de Manoel Fernandes Vieira. O momento era delicado para os “carcarás”. As mortes

sucessivas do Visconde de Icó e dos filhos, o senador Miguel Fernandes Vieira e o deputado

geral José Fernandes Vieira, entre junho e agosto de 1862, enfraqueceram politicamente o clã.

Além disso, o conflito entre Manoel Franco Fernandes Vieira e José Bento da Cunha Figueiredo

Júnior, ocasionado pelas críticas veiculadas ao Pedro II a respeito do desempenho do presidente

da província na crise do cólera, rompeu as pontes do grupo político com o governo provincial,

peça importante de qualquer eleição. O diário, claramente, tentou derrubar Figueiredo Júnior

do cargo, dedicando muitas páginas ao cólera, como demonstrado no segundo capítulo.

Havia, ainda, a notória relação entre o presidente do Ceará e Figueira de Mello. A

candidatura do desembargador contava ainda com as simpatias do núcleo saquarema da Corte.

Como apontado recentemente, o “consistório” tinha preterido Manoel Fernandes Vieira da

chapa sugerida ao escrutínio, optando por Figueira de Mello, Domingos Jaguaribe e Raimundo

de Araújo Lima1062.

Com tantos pontos somando contra a campanha “carcará”, o Pedro II ironizava o fato

da eleição atrair candidatos de outras províncias, meio claro de provocar Figueira de Mello,

cuja trajetória política, nos últimos anos, era mais pernambucana que cearense1063: “A vaga que

deixou no senado o nosso sempre chorado, e nunca esquecido senador Miguel Fernandes Vieira,

veio de novo trazer à província um aluvião de candidatos a esta cadeira”1064. Ante tais aspirantes

externos, o Pedro II recomendava a tradição, ou seja, os votos dos eleitores conservadores

deveriam recair sobre:

o nome de um cearense que tem todos os predicados, e que por vós não é

desconhecido, este cearense é o Dr. Manoel Fernandes Vieira, magistrado

probo e honrado no último ponto, membro importante duma das primeiras

famílias da província, mano de nosso falecido senador Miguel Fernandes

Vieira1065.

Os bastidores da eleição eram observados de perto pelo presidente da província. Poucas

semanas após a morte de Miguel Fernandes Vieira, Figueiredo Júnior, em carta na qual

atualizava o Marquês de Olinda a respeito dos atritos com o Pedro II, chamava a atenção para

a necessidade de “proceder-se brevemente a eleição de senador para preencher a vaga do Dr.

1062 O Cearense, n. 1541, 9 set. 1862, p. 1. 1063 No começo dos anos 1860, Figueira de Mello residia em Recife. Sua carreira em Pernambuco foi alavancada

quando atuou na repressão ao movimento praieiro, em 1848, sendo, recompensado, na sequência com o cargo de

Chefe de Polícia, passando ao Tribunal da Relação de Pernambuco e à chefia de Polícia da Corte, em 1855. Em

suas passagens pela Câmara dos Deputados, representou ora Pernambuco e ora Ceará. CADENA, op. cit., 2018,

p. 208; STUDART, op. cit., 1910, p. 396. 1064 Pedro II, n. 2, 3 jan. 1863, p. 2. 1065 Pedro II, n. 2, 3 jan. 1863, p. 2.

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Miguel”. Após tocar no assunto, fez apanhado sobre os jogadores interessados em ocupar o

tabuleiro eleitoral, apontando as posições ocupadas por eles, dentro e fora do Ceará:

Apresentam-se candidatos, segundo me consta, os deputados Jerônimo

Martiniano Figueira de Mello, Raimundo Ferreira de Araújo Lima, e

Jaguaribe, assim como o juiz de direito de Recife, Francisco Domingos da

Silva, e o Dr. Thomaz Pompeu de Sousa Brasil, o chefe do partido liberal, e

redator do “Cearense”. Ainda não sei se se apresentarão o Dr. Manoel

Fernandes Vieira (deputado) e o atual Presidente da Paraíba, Francisco Araújo

Lima1066.

O presidente do Ceará dissertava, especialmente, sobre o “Dr. Pompeu que conta

também com o terço dos eleitores (do seu credo)”. O padre teria procurado Figueiredo Júnior

para comunicar a decisão de concorrer ao pleito, solicitando a “coadjuvação moral”1067 do

presidente. É importante recordar: naquele momento, a imprensa liberal tinha se colocado ao

lado de Figueiredo Júnior na pendenga com o ex-tesoureiro e redator do Pedro II, Manoel

Franco. Partia dela a defesa das ações do presidente frente ao cólera, rebatendo as acusações do

diário conservador, a culpar pessoalmente a autoridade provincial pela grave crise sanitária.

Portanto, ao demandar o apoio de Figueiredo Júnior, Thomaz Pompeu indicava como a adesão

entusiasmada d’O Cearense poderia ser recompensada pelo apoio na eleição.

Ora, diante da solicitação e não podendo indispor-se com apoiador importante na

província, num momento de crise, restou a Figueiredo Júnior tentar desconversar: “Tive meio

de iludir à resposta, sem prometer-lhe causa alguma”. Para o presidente do Ceará, como eram

“muitos os candidatos” e não havia como “prever com bom fundamento quais serão os

vencedores”, ao governo conviria “a neutralidade no pleito, tanto mais quanto nenhum dos

candidatos” adotava postura claramente “hostil ao Gabinete e à administração provincial”. Não

obstante, em tom submisso, solicitava orientações ao Marquês de Olinda, indicando como

poderia tomar o lado do candidato do agrado do ministro:

Rogo a Vossa Excelência que a este respeito se digne manifestar-me a sua

encarecida opinião, porque neste negócio, como em qualquer outro, eu desejo

seguir à risca o pensamento do Governo; e quando não puder satisfazer este

meu desejo me apressarei em resignar o meu posto; porque eu teria remorsos

1066 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 25 ago. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 216, doc. 60. 1067 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 25 ago. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 216, doc. 60.

269

se porventura, ainda que inocentemente, criasse embaraços a quem me honra

com a sua confiança1068.

As relações respeitosas entre Figueiredo Júnior e o padre Pompeu permaneceram pelo

resto de 1862. Mesmo não acatando o pedido de apoio do padre, o presidente do Ceará

permanecia a receber o líder liberal e a conversar sobre a eleição. Numa das correspondências

com o Marquês de Olinda, Figueiredo Júnior revelava ter sabido pelo padre Pompeu que

Francisco Xavier Paes Barreto, pernambucano e ex-presidente do Ceará, tinha feito uma

sondagem para avaliar se lançaria candidatura nesta província, mas os resultados não teriam

sido muito animadores1069.

Se Figueiredo Júnior absteve-se de favorecer Pompeu na eleição a senador, não deixou

de buscar recompensá-lo pelo apoio dado na crise epidêmica. Em 27 de setembro de 1862, o

presidente do Ceará endereçou à corte documento no qual elogiava o “Ensaio estatístico da

Província do Ceará”, então no prelo. A obra reunia dados históricos, geográficos, políticos e

estatísticos da província, tendo sido impressa em dois volumes, somando mais de mil e cem

páginas. Ela fora encomendada a Thomaz Pompeu pelo governo provincial em 1855, na

administração de Vicente Pires da Motta1070.

Figueiredo Júnior classificou o ensaio como “obra de laboriosas investigações”,

“trabalho de grande mérito literário, porventura o primeiro neste gênero até hoje publicado no

Império” e “fecundo auxiliar para os estudos administrativos”1071. Para além dos “trabalhos

literários”, Pompeu apresentaria “serviços meritórios na qualidade de empregado público”,

como quando ocupou a Diretoria Geral de Instrução Pública. Segundo Figueiredo Júnior, na

secretaria da presidência da província, não faltavam documentos atestando o “patriotismo e

solicitude com que o Dr. Thomaz Pompeu se presta em tudo quanto diz respeito ao serviço

público, quando invocado pelo governo”.

Ante tais atributos, Figueiredo Júnior anunciava ter incumbido o padre da tarefa de

escrever a “história da epidemia do cólera morbo”, a partir de “documentos oficiais e outros

dados”1072. Aliás, Pompeu teria tido destaque “como membro de uma comissão sanitária da

1068 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 25 ago. 1862. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 216, doc. 60. 1069 ANRJ. Ofício confidencial. 11 out. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 1070 BRASIL, op. cit., 1997a, p. v. 1071 ANRJ. Cópia anexa ao ofício n. 86. 1 out. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de

diversas autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 1072 Aparentemente, a obra não foi publicada. Talvez o manuscrito de Thomaz Pompeu que José Pereira Rego diz

ter consultado no IHGB sobre a epidemia do cólera no Ceará, referenciado no livro do futuro Barão do Lavradio,

fosse um esboço do estudo encomendado por Figueiredo Júnior (REGO, op. cit., 1873, p. 168). Infelizmente, não

achei o manuscrito durante a pesquisa no IHGB.

270

capital durante a epidemia do cólera”, quando “teve novas ocasiões de prestar seus bons

serviços”. Após apanhado tão elogioso da trajetória intelectual e pessoal de Thomaz Pompeu

de Souza Brasil, o presidente requeria ao Marquês de Olinda: levasse “à Augusta Presença de

Sua Majestade O Imperador” o pedido de prêmio para o “prestimoso cidadão”, para quem

solicitava a “comenda da Ordem de Cristo”1073.

Como demonstrei no tópico anterior, as ordens honoríficas eram importantes símbolos

de distinção, bem como um dos meios do governo imperial premiar serviços destacados dos

súditos. Ao solicitar a comenda, Figueiredo Júnior desejava retribuir os favores de Pompeu com

o hábito de Cristo, especialmente os prestados pelo grupo político do padre durante o surto do

cólera. Tal intepretação era, inclusive, veiculada pelos opositores do presidente. Em 1863, em

artigo intitulado, “O comendador do cólera”, A Constituição, folha de Domingos Jaguaribe,

criticava a pretensão de Figueiredo Júnior em conseguir a distinção para Pompeu “pelos

serviços prestados durante a quadra do cólera morbo nesta província”. Para o jornal, o

presidente desconsiderava os méritos de outras pessoas destacadas na epidemia para priorizar

o padre Pompeu. Ao fazer isso, estaria querendo retribuir não as ações de Pompeu frente ao

cólera, mas os “serviços prestados à pessoa do presidente com os elogios do Cearense à sua

administração. É por isso talvez que o Sr. Pompeu alega hoje, que não poucos favores têm feito

ao Sr. Figueiredo Júnior”1074.

Não obstante a busca de comenda por parte do presidente do Ceará, Thomaz Pompeu

desejava mais: a câmara vitalícia. Quando no princípio de março de 1863 foram apuradas as

urnas da eleição ao senado, o desembargador Figueira de Mello obteve o primeiro lugar,

Thomaz Pompeu o segundo e Domingos Jaguaribe fechou a lista tríplice. Os maiores derrotados

do escrutínio foram os Fernandes Vieira. Isolados pela campanha maciça de oposição a

Figueiredo Júnior, durante a epidemia, viram o maior inimigo político, Pompeu, figurar na

seleta lista dos vencedores. Ademais, os conservadores eleitos, Figueira de Mello e Jaguaribe,

estavam longe de seguir a cartilha “carcará”, trilhando caminhos próprios. Aliás, Jaguaribe

afastava-se cada vez mais dos Fernandes Vieira, inclusive fundando o jornal A Constituição,

em 1863, rompendo o exclusivismo do Pedro II como órgão conservador da província1075.

Se a relação amistosa entre liberais e o presidente Figueiredo Júnior tinha sido a tônica

da segunda metade de 1862, o resultado eleitoral do padre Pompeu estremeceria os ânimos entre

1073 ANRJ. Cópia anexa ao ofício n. 86. 1 out. 1862. Série interior. Negócios de províncias e estados. Ofícios de

diversas autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181. 1074 A Constituição ̧n. 8, 12 nov. 1863, p. 2-3. 1075 NOBRE, op. cit., 2006, p. 96.

271

as partes em 1863. O ano da crise Christie, que o presidente do Ceará, tolamente, julgou ser

capaz de apaziguar as disputas partidárias1076, seria marcado por tensionamentos entre o grupo

político do padre Pompeu e Figueiredo Júnior. Os motivos da crise eram claros. Em primeiro

lugar, os liberais, fortalecidos pela campanha ao Senado e pela crise do Partido Conservador no

Ceará, mormente no núcleo “carcará”, desejavam conquistar mais espaços de poder.

A conjuntura nacional era alvissareira para os liberais cearenses e de outras províncias.

Em maio de 1863, estava previsto o início do ano legislativo nas câmaras provisória e vitalícia

da Corte. Não obstante, Paulo Cadena demostrou como, ainda em abril de 1863, Sinimbu, então

Ministro da Justiça, escreveu ao Marquês de Olinda anunciando a chegada dos “grandes atores

do drama de maio”1077. Os “atores” aludidos na metáfora eram os parlamentares e o “drama”

seria encenado no início da sessão legislativa: no dia 12 de maio de 1863, deu-se a leitura do

decreto 3092, dissolvendo a Câmara provisória, com convocação de eleição. A nova legislatura

teria início a 1 de janeiro de 18641078. O Imperador, que resistira à dissolução duas vezes em

1862, quando das quedas de Caxias e Zacarias, cedia agora, aliviando o Marquês de Olinda do

convívio com uma câmara hostil. Desta forma, abria-se a oportunidade para a eleição de um

parlamento de tez mais liberal e conservadora moderada, articulados sob a “liga progressista”,

e menos conservadora “emperrada”1079.

Quando no segundo semestre de 1863 a província do Ceará agitou-se com as eleições

para escolha de deputados gerais, o padre Pompeu pressionou Figueiredo Júnior em busca de

mais apoio aos candidatos liberais. O resultado eleitoral em alguns distritos desagradou ao líder

chimango, passando a publicar críticas ao presidente por meio d’O Cearense, levando a

autoridade a responder via Gazeta Official. Os jornais irmanados na crise epidêmica na defesa

do governo provincial, agora trocavam altercações. Explicando o conflito ao Marquês de

Olinda, Figueiredo Júnior afirmou: Pompeu “pretendia fazer sem despesas e sacrifícios” oito

“deputados mediante os recursos oficiais”, por isso mostrava-se:

despeitado porque não escrevi (como ele desejava) intervindo em seu favor na

eleição do 3° distrito. Em particular declara aos amigos que me deve atenção

e que eu sou um dos Presidentes mais honestos que tem tido a Província: mas

pela sua folha, querendo explicar a derrota moral que sofreu, faz-me censuras

1076 ANRJ. Ofício n. 12. 31 jan.1863. Série Interior. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182. 1077 SINIMBU apud CADENA, op. cit., 2018, p. 255. 1078 CADENA, op. cit., 2018, p. 255. 1079 HOLANDA, op. cit., 2012, p. 32-33.

272

tão inconsistentes que desde certo tempo não têm merecido a contestação da

“Gazeta”1080.

Se não faltavam elogios a Thomaz Pompeu no ofício no qual Figueiredo Júnior solicitou

o hábito de Cristo para o padre, a correspondência oficial de 1863 trazia apenas depreciações.

Para o presidente do Ceará, o clérigo “ultimamente desmereceu muito o conceito de seus

próprios correligionários”1081. Ele teria lançado “insinuações odiosas ao Coronel João Antônio

Machado cuja probidade é incontestada, e a quem o mesmo Pompeu deve favores que agora

esquece só porque o Coronel Machado não quer ser seu instrumento dócil”. Figueiredo Júnior

dizia-se admirado da “facilidade com que o Padre Pompeu faz asseverações inverídicas,

censurando algumas vezes, por aquilo mesmo que ele praticou, de um modo injustificadamente

ou já teve a ocasião de solicitar ou louvar”1082. Além disso, o presidente do Ceará acusava o

padre de ter fraudado a eleição, “subtraindo no Crato três votos e na Barbalha dezenove a outro

candidato liberal, o Dr. Bernardo Duarte Brandão”, futuro Barão do Crato1083.

Para além das disputas eleitorais de 1863, um segundo fator azedou a relação de Pompeu

com o chefe do executivo provincial: a acusação de ter Figueiredo Júnior favorecido Figueira

de Mello na eleição ao Senado. Tendo recusado o apoio a Thomaz Pompeu, o presidente, nos

bastidores, sustentaria a candidatura do amigo desembargador. Tal ilação era pública,

repercutindo, sem meias palavras, na Corte, quando o resultado do pleito eleitoral veio à tona.

Em 9 de março de 1863, o texto de capa do Diário do Rio de Janeiro foi dedicado à eleição no

Ceará. O artigo comentava o segundo lugar conquistado pelo “Reverendo Doutor Thomaz

Pompeu de Souza Brasil”, a quem o Ceará deveria “uma brilhante reparação a esse distinto

cavalheiro, que por tantos e tão valiosos serviços se recomendava à sua província natal”1084.

Na sequência, o texto tecia loas ao caráter e saber de Pompeu, “uma dessas inteligências

que se acrisolam no ostracismo político e cujos dotes intelectuais e morais crescem e se apuram

na luta dos partidos”. O líder liberal cearense seria um “homem de convicções inabaláveis, tão

moderado na manifestação de seu pensamento quanto firme na sustentação dos princípios que

abraçou por convicção”. Argumentava ser o nome do padre na lista tríplice não resultado de

“imposição, nem em virtude de barganhas ou transações menos confessáveis”, mas sim,

1080 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 14 out. 1863. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 113, doc. 106. 1081 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 15 dez. 1863. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 113, doc. 106. 1082 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 15 dez. 1863. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 113, doc. 106. 1083 IHGB. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior ao Marquês de Olinda. 14 out. 1863. Coleção Marquês

de Olinda. Lata 113, doc. 106. 1084 Diário do Rio de Janeiro, n. 67, 9 mar. 1863, p. 1.

273

derivado de uma eleição “livre e espontânea”, sendo “manifestação solene, feita pelos eleitores

cearenses a um cidadão benemérito”1085.

Malgrado destacar a espontaneidade da votação, se a vitória de Pompeu brotava dos

méritos pessoais, como intelectual e político, o Diário do Rio de Janeiro punha em dúvida a

forma como os dois outros integrantes da lista tríplice foram eleitos: “O Sr. Dr. Pompeu teve

de lutar na sua candidatura contra a influência do presidente da província, que sustentava

abertamente a candidatura do Sr. desembargador Figueira de Mello e contra a do chefe de

polícia que advogava a do Sr. Dr. Jaguaribe”1086. Assim, Figueiredo Júnior era acusado de

favorecer Figueira de Mello, enquanto o chefe de polícia, Francisco de Farias Lemos, teria

agido em prol do candidato Jaguaribe.

A proximidade entre Figueira de Mello e Figueiredo Júnior levantava suspeitas por

todos lugares. Por outro lado, a relação entre os políticos também inspirava pedidos de favor.

A 31 de outubro de 1862, mais de três meses antes da eleição, João Capistrano Bandeira Filho,

sobrinho de Figueira de Mello, escreveu desejando o “melhor caminho possível” na candidatura

senatorial, apresentada como “legítima aspiração” do tio. Informava estar empenhado em

conseguir “com o Silvério de Sousa e com o Paes Barreto”, algumas “cartas a favor de sua

candidatura”. Após falar dos esforços na busca das declarações, rogava ao tio “um obséquio

que muito penhorará a minha gratidão”. O favor envolvia o pedido de um cargo:

O meu primo e amigo, Dr. João de Albuquerque Rodrigues, natural desta

província, deseja encetar a sua vida pública em uma Promotoria, e como me

consta que está vaga a da Comarca de Vila Viçosa, eu peço a Vossa Excelência

que intervenha para com o nosso amigo Dr. José Bento Júnior para que seja o

meu parente nomeado para ali. É um moço inteligente, muito honesto, e a

quem sou verdadeiramente afeiçoado, e que, espero muito nos ajudará naquela

comarca.

Conto que Vosmecê atenderá devidamente o meu pedido, e que mais uma vez

beijarei as suas mãos em sinal de minha gratidão1087.

Aparentemente, Figueira de Mello levou o pedido do sobrinho ao “amigo” presidente

do Ceará. Figueiredo Júnior concedeu o favor: a Gazeta Official publicou, entre as portarias de

27 de junho de 1863, a nomeação de João de Albuquerque Rodrigues como “promotor público

da comarca de Vila Viçosa”1088.

1085 Diário do Rio de Janeiro, n. 67, 9 mar. 1863, p. 1. 1086 Diário do Rio de Janeiro, n. 67, 9 mar. 1863, p. 1. 1087 BNRJ. Carta de João C. Bandeira Filho a Jerônimo Martiniano Figueira de Mello. 31 out. 1862. Divisão de

Manuscritos. Fundo Figueira de Mello. I-29, 24, 187. 1088 Gazeta Official ̧n. 87, 8 jul. 1863, p. 4.

274

Passada a eleição ao Senado, cartas de congratulação foram remetidas a Figueira de

Mello. Nelas, também havia rogativas envolvendo Figueiredo Júnior. Uma das missivas tinha

como remetente João Brígido. Personagem citado ao longo de toda a tese, o editor d’O Araripe,

foi um dos apoiadores do presidente no Ceará durante a epidemia do cólera. Por meio do seu

jornal ou de cartas reproduzidas n’O Cearense, Brígido defendera Figueiredo Júnior dos

ataques perpetrados pelo Pedro II, corroborando a ação dos outros jornais de inspiração liberal

na campanha de confronto com o diário “carcará”, como mostra o trecho a seguir:

Tenho lido no Pedro II uma carta, em que o Sr. Dr. José Bento é horrivelmente

acusado de omisso em relação ao Crato. Ela vai assinada daqui; mas afirmo-

lhe que é apócrifa, porque não vejo alguém que pudesse rabiscar esse papel:

todos são agradecidos ao presidente que realmente se portou o melhor possível

dando todas as providências que eram compatíveis com suas forças1089.

O apoio de João Brígido a Figueiredo Júnior pode ter sido um dos motivos que fizeram

o presidente do Ceará incluir aquele na lista dos candidatos às honrarias honoríficas pelos

serviços prestados pelo cólera, como analisei anteriormente. Para o redator d’O Araripe,

Figueiredo Júnior solicitou a comenda de cavaleiro da Rosa1090. Todavia, João Brígido parecia

desejar recompensa mais concreta pela manifesta fidelidade ao presidente do Ceará na

conjuntura epidêmica: um cargo de professor público para o irmão Constantino Brígido dos

Santos. Para conseguir o intento, recorreu a Figueira de Mello.

Em março de 1863, Brígido escreveu ao desembargador afirmando ter recebido carta,

de 23 de fevereiro, “na qual me dava já a lisonjeira notícia de haver entrado na lista tríplice”.

Pela vitória na eleição, João Brígido parabenizava a Figueira de Mello, afirmando ter o Ceará

o “bom senso de preferi-lo aos candidatos carcarás, cujo merecimento está muito aquém do de

Vossa Excelência”. Na sequência, elucubrava sobre a quem caberia a “honra da escolha” do

monarca. Brígido afirmava ser a “vontade da província” uma “bela garantia para Vossa

Excelência”, dando a entender que Figueira de Mello seria Senador nessa ocasião ou em outra:

“não deverá descrer de um dia ter assento na câmara vitalícia”1091.

Após tais afagos, Brígido solicitou “um bem importante favor, que por acanhamento

reservei para agora”. Informava estar a cadeira de latim de Crato para ser suprimida.

Argumentava ser a cidade “um lugar muito populoso e central, que, portanto, a não pode

dispensar”. Segundo o remetente, Figueiredo Júnior não estava querendo prover a cadeira, “por

1089 O Cearense ̧n. 1540, 2 set. 1862, p. 1. 1090 VASCONCELOS, op. cit., 1910, p. 96. 1091 BNRJ. Carta de João Brígido dos Santos a Jerônimo Martiniano Figueira de Mello. 10 mar. 1863. Divisão de

Manuscritos. Fundo Figueira de Mello. I-29, 33, 270.

275

economia dos dinheiros públicos”. Diante disso, Brígido solicitava a intervenção de Figueira

de Mello: “Meu mano Constantino Brígido dos Santos, professor aposentado da cadeira de latim

de Imperatriz, pretende este lugar, com proveito para os cofres provinciais, pois que sendo-lhe

ela dada, perde o seu ordenado de aposentadoria em favor deles”1092.

Brígido alegava não ter “outros empenhos na província”, ou seja, nenhuma aspiração ou

demanda, meio de reforçar o pedido de emprego para o familiar. Assim, demandava a Figueira

de Mello: se dirigisse “ao senhor Dr. José Bento, pedindo-lhe que faça a nomeação do meu

mano para esta cadeira, independentemente de concurso”, alegando ser “mais que ocioso” tal

recurso para obtenção do cargo, visto ter Constantino sido professor. Pela gentileza do

desembargador no caso, João Brígido afiançava hipotecar a “gratidão e serviços, esperando que

Vossa Excelência fará o seu pedido com a maior presteza, e com todas as instâncias que se

fizerem mister”. Um pós-escrito encerrava a missiva: “PS: Dirigindo-se ao Senhor Dr. José

Bento, Vossa Excelência tenha a bondade de me avisar na mesma ocasião”1093.

Apesar da súplica enfática dirigida a Figueira de Mello, João Brígido não conseguiu o

emprego para o parente: a vaga da cadeira de latim de Crato seria preenchida em fevereiro de

1864, sendo aprovado, por concurso, o professor Joaquim Correia Lima de Macedo1094. Haveria

o agastamento das relações de Figueiredo Júnior com a liderança do Partido Liberal no Ceará,

em 1863, determinado a recusa do emprego a Constantino Brígido? Ou Figueira de Mello não

se empenhou no caso, por ter sabido da publicação d’O Araripe, acusando o desembargador de

usar a subscrição em prol dos órfãos e viúvas do cólera como “cálculo político”1095 para

promover-se na eleição ao Senado? A partir das fontes consultadas na pesquisa não há como

responder tais perguntas.

Todavia, uma coisa fica clara na documentação: os liberais souberam canalizar a seu

favor a conjuntura provincial e nacional dos anos 1862 e 1863. A ascensão da “Liga” na Corte

1092 BNRJ. Carta de João Brígido dos Santos a Jerônimo Martiniano Figueira de Mello. 10 mar. 1863. Divisão de

Manuscritos. Fundo Figueira de Mello. I-29, 33, 270. 1093 BNRJ. Carta de João Brígido dos Santos a Jerônimo Martiniano Figueira de Mello. 10 mar. 1863. Divisão de

Manuscritos. Fundo Figueira de Mello. I-29, 33, 270. A demanda de João Brígido chegou aos ouvidos dos

conservadores no Ceará em fins de junho de 1863. O Pedro II publicou texto assinado pelo pseudônimo “O

Imparcial”, comentando ter Brígido requerido a Figueiredo Júnior a cadeira de latim do Crato para o irmão

“apresentando para isso os documentos necessários, que comprovam a razão do seu pedido. O texto não poupou

críticas ao caso: “Este moço [Constantino Brígido], que foi aposentado por falta de juízo, e que ainda hoje se

conserva no status quo, não pode de modo algum ser aproveitado para a instrução pública atenta à sua

incapacidade”, prejudicando “esse ramo importante de serviço, e inutilizar assim o concurso de pretendentes

habilitados.” A conclusão do texto afirmava: Figueiredo Júnior não deveria “se deixar levar por informações

oficiais com que se pretende pagar favores particulares”, dando a entender que a nomeação só seria explicada

como recompensa da presidência pelo apoio dado por João Brígido durante a celeuma da imprensa entorno do

cólera em 1862. Pedro II, n. 140, 23 jun. 1863, p. 3, grifos da fonte. 1094 Gazeta Official, n. 126, 10 fev. 1864, p. 3. 1095 O Araripe, n. 293, 22 nov. 1862, p. 2.

276

fragilizou o Partido Conservador no Ceará, tão acostumado a deter o domínio pela relação

umbilical mantida com os presidentes da província. Já a epidemia do cólera, com forte impacto

social, foi apropriada politicamente. No embate entre o Pedro II, dos Fernandes Vieira, e o

presidente do Ceará, os jornais O Cearense de Thomaz Pompeu, coadjuvado por O Araripe, de

João Brígido, a Gazeta Official e O Sol postaram-se ao lado de Figueiredo Júnior, conquistando,

num primeiro momento, a simpatia e benesses do chefe do executivo provincial. Contaminados

pela rixa com o presidente, por obra das críticas de Manoel Franco Fernandes Vieira à gestão

da crise, os “carcarás” sofreram, ainda, com a morte de lideranças importantes do clã e viram o

controle do Partido Conservador na província ser contestado. A exclusão de Manoel Fernandes

Viera da lista tríplice para o Senado era indício claro da nova situação política.

Com a dissolução da Câmara em maio de 1863, anunciava-se um pleito favorável aos

liberais. Os opositores deles não poderiam contar com a simpatia do presidente Figueiredo

Júnior, com poder para intervir na composição das mesas de qualificação de votantes e nas

ações das forças policiais no momento da eleição. Assim, os conservadores perderam a

oportunidade de acionar a seu favor os instrumentos corriqueiramente utilizados para garantir

a proeminência política no Ceará. Como em 1863 haveria eleição de oito deputados gerais, o

Partido Conservador viu-se instado a negociar com o Liberal uma partilha, a permitir a cada

parcialidade eleger 4 deputados. As negociações naufragaram por conta de Thomaz Pompeu, a

recusar a divisão de eleitores por distrito proposta pelos adversários, pois desejava fazer

deputados nos locais onde julgava serem os liberais mais fortes1096.

Portanto, os conservadores jogavam em desvantagem. Às vésperas da eleição, O Pedro

II, inclusive, acusou o governo de promover demissões de delegados e inspetores de quarteirão

com vistas ao pleito eleitoral, prejudicando os conservadores1097. Além disso, teria havido

fraude no processo de qualificação dos eleitores na capital e em outros pontos da província. Em

artigo assinado pelo pseudônimo “O velho do povo”, o Pedro II publicou interessante leitura

da situação. Afirmava terem os quatorze anos de domínio conservador sido responsáveis pelo

abrandar das tensões partidárias no Brasil e no Ceará, a ponto de quase extinguir “a diferença

entre os partidos políticos”, com suposta nomeação indistinta de “pessoas de todas as crenças”

para a “magistratura, a guarda nacional, a administração, as repartições, e mais empregos”1098.

A versão punha em xeque a “Liga”, sem citá-la diretamente, ao representar a situação

política do país e do Ceará como a melhor possível. Por isso, o artigo indicava não haver razão

1096 Pedro II, n. 153, 10 jul. 1863, p. 2. 1097 Pedro II, n. 167, 26 jul. 1863, p. 3. 1098 Pedro II, n. 177, 7 ago. 1863, p. 2.

277

para, “de repente”, os “partidos extremados e os homens decaídos pela revolução de 48”

voltarem à cena. Estes estariam “furiosos”, intentando “vingar velhos agravos, dissimulados,

mas não esquecidos”. Por essa chave de leitura, o movimento político ascendente desde 1862,

não significaria avanço em prol da distensão partidária, e sim o contrário. Fazendo referências

ao processo de qualificação dos eleitores em Fortaleza, em 1863, acusava os liberais de “poluir

a igreja de Deus [onde se deu os trâmites eleitorais] com uma desordem premeditada”1099.

Se em 1862 o Pedro II fez do cólera o mote para o ataque ao presidente da província,

voltava a citar a doença, dessa vez como metáfora para explicar o momento político vivido,

apresentado como um “vírus” da raiva, a debilitar a razão, com consequências tão nocivas

quanto a epidemia vivida no ano anterior: “não se pode deixar de sentir e perceber como causa

de tudo isto um certo vírus rábido, ou espécie de cólera morbos psíquico e moral, que terá de

fazer tantas vítimas como o cólera físico”1100.

A leitura dramática do cenário político feita pelo Pedro II, comparando as mudanças

agenciadas pela Liga ao cólera, refletia a situação delicada vivida pelo Partido Conservador

local e nacionalmente. O resultado do escrutínio não foi alvissareiro para os conservadores.

Como afirmou Sérgio Buarque, as províncias deram, nas eleições parlamentares, ampla vitória

à Liga ou ao “Progresso, como já se intitulava” o movimento1101. No Ceará, o saldo não foi

diferente: os liberais ganharam 5 das 8 vagas em disputa1102. Derrotado na eleição ao Senado,

Manoel Fernandes Vieira sofreu novo golpe: não conseguiu reeleger-se deputado geral, indício

de como os “carcarás” enfrentavam má fase.

Atingidos pelo contexto geral desfavorável, os conservadores na província direcionaram

as críticas, mais uma vez, ao presidente do Ceará. Domingos Jaguaribe, um dos eleitos para a

liste tríplice ao Senado no começo de 1863, usou as páginas do A Constituição para acusar

Figueiredo Júnior de favorecer os liberais nos distritos, especialmente na capital, onde a

qualificação dos votantes teria sido tumultuada. A mesa responsável pelo trabalho chegara a

propor adiar a eleição. Todavia, o presidente da província teria imposto à mesa a lavra das “atas,

dando a eleição por feita, e fazendo caber aos liberais uma boa parte no eleitorado”1103.

Nos anos seguintes, Jaguaribe permaneceria acusando Figueiredo Júnior de

imparcialidade, como mostra o opúsculo deste, de 1866, no qual rebate discurso proferido por

aquele na câmara dos deputados. Na publicação, Figueiredo Júnior afirmava ter sido imparcial

1099 Pedro II, n. 177, 7 ago. 1863, p. 2. 1100 Pedro II, n. 177, 7 ago. 1863, p. 2. 1101 HOLANDA, op. cit., 2012, p. 34. 1102 Gazeta Official, n. 103, 14 out. 1863, p. 2. 1103 A Constituição, n. 2, 1 out. 1863, p. 3.

278

na eleição, o que seria comprovado pelas críticas conjuntas recebidas de liberais e

conservadores na ocasião. Defendendo o suposto legado de sua administração, afirmava:

“Colocado no centro da luta política, atravessei a crise epidêmica, promovi os melhoramentos

que pude, e fiz diversas eleições sem derramamento de sangue e sem a mínima intervenção

(sucessos virgens na província do Ceará)”1104.

Quando 1863 terminou, Figueiredo Júnior vivia situação peculiar: era criticado por

conservadores, a indicar na derrota das urnas a intervenção do presidente da província, e por

liberais, que, malgrado as vitórias eleitorais do ano, cobravam mais apoio do chefe do executivo

cearense. Quando assumiu a província, em maio de 1862, o tabuleiro da política do Ceará era

bem diferente. O jogo era monopolizado pelos conservadores, liderados pela facção “carcará”,

cabendo aos liberais derrotas sucessivas. A epidemia de cólera, com forte impacto social,

também afetou os jogos políticos. As forças em disputa reorganizaram-se, à luz dos interesses

pessoais e das leituras feitas da conjuntura, marcada também por conflitos nacionais,

prometendo readequar as disputas partidárias. No caso do Ceará, um grupo tomou o lado do

presidente, ao perceber os erros de estratégia dos opositores e as possibilidades abertas pelas

proposições vindas da Corte. Passada a epidemia, os competidores que usaram o cólera para

fazer oposição a Figueiredo Júnior acabaram derrotados, atropelados pela indisposição do

governo local em auxiliá-los e pela renovação parlamentar promovida pelo governo imperial.

A virada simbólica dos liberais cearenses seria coroada a 9 de janeiro de 1864, sendo,

mais uma vez, beneficiados pelo contexto político nacional. Contrariando as expectativas, a

indicar vantagem de Figueira de Mello, onze meses após a eleição, o Imperador escolheu

Thomaz Pompeu de Souza Brasil para a vaga no Senado1105. Pompeu foi nomeado senador no

mesmo dia de Teófilo Ottoni. Liberal histórico, Ottoni tinha sido eleito para a lista tríplice por

Minas Gerais em dezembro de 1862, sendo confirmado rapidamente pelo Imperador1106.

O Diário do Rio de Janeiro saudou a dupla nomeação, afirmando ter o “ato imperial”

despertado “júbilo sincero” em todo país, demonstrando o “alto pensamento político que serve

ao mesmo tempo para definir uma situação e demonstrar a sinceridade da coroa”1107. A escolha

dos dois liberais refletia o momento político e o patrocínio do Imperador aos “ligueiros”.

Segundo Holanda, para além da maioria esmagadora da Câmara, os opositores aos

1104 FIGUEIREDO JÚNIOR, op. cit., 1866, p. 4. 1105 STUDART, op. cit., 1915, p. 143. 1106 HOLANDA, op. cit., 2010, p. 119. 1107 Diário do Rio de Janeiro, n. 9, 9 jan. 1864, p. 1.

279

“conservadores emperrados” conseguiram os tão cobiçados “assentos no Senado, e não apenas

três ou quatro”1108.

Portanto, Thomaz Pompeu, o padre liberal, dono d’O Cearense, substituía na câmara

vitalícia a maior liderança “carcará”, Miguel Fernandes Vieira. Se este gozou menos de dois

meses da câmara vitalícia, Pompeu teve treze anos nela, morrendo em 18771109: uma dupla

derrota para o clã do Pedro II.

A nomeação de Pompeu ocorreu alguns dias antes do término do Gabinete Olinda. A 15

de janeiro de 1864, Zacarias de Góis assumiu o governo1110. O “Ministério dos velhos”

terminava. O novo gabinete encontrava um parlamento de “heterogênea composição” 1111, com

significativa presença de liberais históricos e progressistas1112. O Marquês de Olinda saía de

cena, provisoriamente1113. Com a troca no ministério, a 19 de fevereiro de 1864, José Bento da

Cunha Figueiredo Júnior foi exonerado da presidência da província do Ceará, após um ano e

oito meses de governo, sendo substituído pelo liberal Lafayette Rodrigues Pereira1114.

A exoneração pegou Figueiredo Júnior de surpresa. Em carta escrita a Figueira de Mello,

anunciava o retorno aos “pátrios lares [Recife] depois de tão longa e difícil peregrinação”.

Segundo o missivista, os “homens do progresso despediram-me à francesa, como têm feito a

muita gente boa”. Na sequência, lamentava ter sido Thomaz Pompeu escolhido senador pelo

Imperador, em vez do amigo Figueira de Mello: “Depois de tanta lida por amor da pátria e até

com sacrifício de minha saúde, não me restou ao menos o prazer de vê-lo no Senado. Eu lhe

falo com toda sinceridade: senti muito esta decepção, a única que sofri no Ceará”. Nem a

exoneração do cargo de presidente teria pesado tanto quanto ver o desembargador preterido.

Sobre a nova situação política da província, lamentava a força adquirida por Pompeu e a

conjuntura política nacional:

Já há de saber da reação que se vai operando naquela Província, que afinal

constituiu-se feudo do Pompeu, como foi dos Vieiras. Nem o Ceará para

escapar ao progresso, nem eu era Presidente próprio para esta quadra de

reviramento. Entretanto é de lamentar que por menos de meia dúzia de

1108 HOLANDA, op. cit., 2010, p. 118. 1109 STUDART, op. cit., 1915, p. 143. 1110 CADENA, op. cit., 2018, p. 262. 1111 BASILE, op. cit., 2000, p. 256. 1112 HOLANDA, op. cit., 2012, p. 35. 1113 Em maio de 1865, Pedro II chamou o Marquês de Olinda para chefiar o governo mais uma vez. O último

ministério organizado pelo político teve espaço durante a Guerra de Tríplice Aliança com o Paraguai. O marquês

permaneceu no cargo até 3 de agosto de 1866. O estadista faleceu pouco tempo depois, em 1870, aos 77 anos de

idade. CADENA, op. cit., 2018. 1114 PAIVA, op. cit., 1979, p. 112.

280

garimpeiros se transtorne a situação calma e criadora que a Província

apresentava1115.

Malgrado as críticas expostas, Figueiredo Júnior, ao longo do governo no Ceará,

contribuiu para o rearranjo das forças políticas provinciais e, como alguém subordinado ao

ministério Olinda, fora agente promotor de medidas garantidoras da vitória liberal na eleição

de 1863. Acolheu com vontade o apoio da imprensa “chimanga” em 1862, quando era atacado

pelo Pedro II. Como reconhecimento pelo apoio, indicou vários dos liberais, inclusive Thomaz

Pompeu às ordens honoríficas pelos supostos serviços prestados no cólera. Todavia, quando

este grupo político demandou mais apoio e recompensas, a partir do começo de 1863, os

choques tiveram início. A aliança era tênue, feita ao sabor dos interesses momentâneos de

ambos os lados.

Ao cabo do governo, Figueiredo Júnior deixava os maiores opositores durante o cólera

– o Partido Conservador, especialmente o núcleo “carcará” – destroçados, e os aliados na crise

epidêmica – os liberais, que passara a relegar em 1863 – em situação favorável na província e

no parlamento. Exonerado do cargo, apeado do poder político, o ex-presidente do Ceará, cujo

governo fora marcado pelo cólera, terminou a carta ao amigo desembargador com um lamento

sobre sua situação em 1864: “Acho-me com escritório de advocacia, que é o recurso dos

proscritos”1116.

Os liberais cearenses gozaram de situação política vantajosa na província por quatro

anos. Entre janeiro de 1864 e julho de 1868, quatro presidentes governaram o Ceará, todos

liberais: Laffayette Rodrigues Pereira; Francisco Ignácio Marcondes Homem de Mello; João

de Sousa Mello e Alvim; e Pedro Leão Velloso1117. A alta rotatividade dos presidentes refletia

a instabilidade dos gabinetes na Corte: foram cinco os ministérios formados entre 1864 e

18681118. As esperanças a respeito da liga progressista, tornada “Partido do Progresso”, de

conseguir garantir a conciliação no parlamento e dar estabilidade ao governo imperial, não se

concretizou, ainda mais com o aprofundamento da guerra contra o Paraguai e suas

consequências econômicas e sociais desastrosas1119.

A queda do “progresso” não tardou. Chefiando pela terceira vez o ministério, Zacarias

de Góis entrava em choque constante com Caxias a respeito do comando do conflito. O militar

1115 BNRJ. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior a Jerônimo Martiniano Figueira de Mello. 20 mar.

1864. Divisão de Manuscritos. Fundo Figueira de Mello. I-29, 23, 208. 1116 BNRJ. Carta de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior a Jerônimo Martiniano Figueira de Mello. 20 mar.

1864. Divisão de Manuscritos. Fundo Figueira de Mello. I-29, 23, 208. 1117 PAIVA, op. cit., 1979, p. 112. 1118 JAVARI, op. cit., 1889, p. 134-150. 1119 BASILE, op. cit., 2000, p. 265.

281

conservador, derrubado do gabinete por Zacarias em 1862, era uma das lideranças centrais da

guerra, ascendendo mais ainda no cenário político nacional1120. Além do mais, a decisão do

Imperador de fazer senador a Sales Torres Homem, um ex-liberal convertido ao Partido

Conservador, aborreceu a Zacarias, aumentando o desgaste do gabinete. Diante da situação,

Pedro II resolve trazer os conservadores de volta ao poder, nomeando o Visconde de Itaboraí,

a 16 de julho de 18681121.

No Ceará, Diogo Velho Cavalcante de Albuquerque, conservador paraibano, assumiu a

presidência em agosto de 1868, pondo fim ao predomínio liberal na província. O tabuleiro

político reorganizou-se rapidamente, com reposicionamento dos jogadores na disputa.

Algo simbólico marcou a mudança de conjuntura. Pivô das polêmicas na imprensa de

1862, Manoel Franco Fernandes Vieira, que fez do cólera arma na guerra travada com o

presidente Figueiredo Júnior, retorna à cena pública: seis anos após ter sido demitido da

Tesouraria Provincial, Manoel Franco voltava ao posto de inspetor da repartição1122. Cerca de

uma semana antes da nomeação tornar-se pública, o Pedro II, que perdera o contrato de folha

oficial da província, voltou a ser responsável pela publicação do expediente do governo do

Ceará1123. O cólera tinha passado, Figueiredo Júnior caído, a “Liga” não mais existia e os

“carcarás” davam a volta por cima.

1120 Em 1869, Caxias seria nomeado duque, o único do Segundo Reinado a portar tal distinção. SCHWARCZ, op.

cit., 1998, p. 175. 1121 BASILE, op. cit., 2000, p. 265. 1122 O retorno de Manoel Franco ao posto de chefia foi noticiado no Pedro II, n. 166, 12 ago. 1868, p. 3. 1123 A 4 de agosto, o Pedro II anunciou sua recontratação como folha oficial. Pedro II, n. 160, 4 ago. 1868, p. 1-2.

282

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo dessa tese – utilizando jornais cearenses, de diferentes matizes partidárias,

bem como a correspondência oficial da presidência da Província do Ceará com o governo

imperial e outras fontes –, busquei demonstrar como uma epidemia do cólera foi sendo

apropriada nas disputas políticas provinciais entre 1862 e 1863. A ideia era aprofundar a

compreensão da historicidade do fenômeno doença, ao vinculá-lo ao cotidiano partidário

provincial, marcado por choques constantes entre os segmentos conservadores e liberais do

Ceará. Por meio da crise epidêmica, entrevi uma oportunidade para vislumbrar os jogos

políticos locais do período e as estratégias adotadas naquela conjuntura com vistas a manter ou

melhorar a posição dos jogadores no tabuleiro provincial.

Conforme discorri, o estouro do cólera no Ceará de 1862 coincidiu com a posse de um

novo presidente de província, José Bento da Cunha Figueiredo Júnior. À época uma conjuntura

de instabilidade política era visível no governo imperial, decorrente de questões delineadas ao

longo dos anos 1850 e princípios de 1860, ligadas às reformas iniciadas no Gabinete da

Conciliação, do Marquês de Paraná, responsáveis por uma recomposição do parlamento na

Corte. A ascensão da “Liga Progressista”, em 1862, indiciava como a Câmara dos Deputados

estava cindida, ofertando pouca sustentação aos gabinetes: ao longo do ano, três ministérios

governaram o país.

A instabilidade política era, assim, um elemento complicador para o presidente

Figueiredo Júnior. Com a posse do Marquês de Olinda no posto de presidente do Conselho de

Ministros, a 30 de maio de 1862, o presidente do Ceará teve de mostrar-se fiel ao novo gabinete,

para assim manter-se no cargo, significando assumir uma atitude conciliatória na província.

Se a complexidade definia o cenário nacional, o provincial também não era tranquilo. O

presidente do Ceará teve que entrar em contato com as disputas partidárias entre “chimangos”

e “carcarás”, buscando vislumbrar as particularidades delas para definir as estratégias a adotar

em seu governo e para cumprir as determinações ministeriais recebidas. Desde a década de

1840, a política provincial era dominada por uma hegemonia dos conservadores, a expurgar os

liberais dos cargos públicos mais proeminentes e, via fraude e violência nas eleições, das boas

colocações no legislativo provincial e nacional.

O cólera veio adicionar mais desafios à conjuntura. A manifestação espetacular da

epidemia colocou o presidente no centro das decisões e atenções. Vendo o drama da peste sobre

a província, e buscando ler as atitudes da presidência durante a quadra da moléstia, os grupos

políticos e sua imprensa partidária acabaram tomando a epidemia como mote para desestabilizar

283

o presidente ou para conseguir seu apoio, e, por conseguinte, usar o poder do chefe do executivo

para garantir benesses nas disputas pelo poder provincial.

Enquanto o diário Pedro II, órgão conservador, dos “carcarás” Fernandes Vieira, tomou

o cólera para opor-se a Figueiredo Júnior, os jornais “chimangos”, O Cearense, Gazeta Official,

O Sol e O Araripe, trataram de escudar o presidente. Se na folha “carcará”, Figueiredo Júnior

era o culpado pelas cenas dramáticas da epidemia, por não enviar recursos antecipadamente, ou

por encaminhar parcos valores às localidades afetadas pelo cólera, nas gazetas liberais, o

presidente era um “salvador”, atuando com agilidade, não negando recursos e, ao mesmo

tempo, mantendo responsabilidade sobre os gastos excessivos da fazenda pública, sendo a

cobertura do Pedro II classificada como fruto do ressentimento, devido à demissão do redator

Manoel Franco Fernandes Vieira do posto ocupado na Tesouraria Provincial. Tanto o Pedro II

quanto os jornais liberais embasavam seus textos numa conjecturada “opinião pública”, forma

de justificar as posturas editoriais particulares, ancorando-as na suposta aceitação geral dos

cearenses.

Demonstrei, também, como José Bento da Cunha Figueiredo Júnior procurou defender-

se das críticas veiculadas no Pedro II. Na correspondência oficial à Corte, especificamente ao

ministro Marquês de Olinda, o presidente do Ceará insistiu na versão de ser alvo de perseguição

política, por conta da demissão de Manoel Franco e pelo rompimento do contrato que fazia do

Pedro II à folha oficial da província. Na busca de embasar tal tese, utilizou-se fartamente dos

artigos publicados na imprensa liberal cearense, defensora dos atos da presidência no socorro

às localidades afetadas pelo cólera e crítica mordaz do conjunto de textos enunciados pelo diário

dos Fernandes Vieira.

O intenso debate sobre a atuação do presidente do Ceará durante a crise epidêmica,

presente na imprensa e na correspondência oficial, não deixou de repercutir na Corte, entre os

ministros e o próprio Imperador. As autoridades máximas do Império chegaram a estudar a

troca do presidente do Ceará.

Ao contrário do pai, José Bento da Cunha Figueiredo, que saiu da presidência de Minas

Gerais, Figueiredo Júnior acabou mantido no cargo de chefe do executivo cearense, talvez um

prêmio de consolação dado pelo Marquês de Olinda, devido à rede de relações a ligar os Cunha

Figueiredo com figurões da política imperial.

Para além do presidente da província, outras autoridades públicas com atuação durante

a epidemia foram alvos dos textos da imprensa. Foi o caso dos delegados de polícia. Com o

estouro do cólera, o governo provincial deu às autoridades policiais certo protagonismo na

organização da situação sanitária das localidades, nomeando-as para comissões de socorro e

284

orientando-as para agirem na manutenção da ordem, no uso da força para transporte de doentes

aos hospitais improvisados e na organização dos serviços de sepultamento dos mortos.

Como os delegados detinham funções estratégicas nos jogos políticos do Império,

especialmente quando das eleições, a ação deles na quadra epidêmica ganhou cobertura

apaixonada da imprensa, defendendo-os ou agredindo-os de acordo com a coloração partidária

de cada autoridade.

Os usos políticos da epidemia na imprensa também incidiram sobre as comissões de

socorros montadas pelo governo provincial. Ao publicar artigos de opinião e correspondências

de correligionários, os jornais tornaram mais visíveis os problemas práticos, as tensões

partidárias, disputas internas, a busca por favorecimento e outras questões a permear as

comissões no contexto de crise instaurado pelo cólera. Os elogios ou críticas às juntas de

socorros foram usados para enaltecer ou diminuir personalidades com atuação partidária

reconhecida pelos órgãos de imprensa, bem como serviram para corroborar as posturas

editoriais a respeito da atuação do governo provincial na gestão da crise epidêmica.

O cólera também ensejou atos caridosos e filantrópicos, nem sempre desinteressados. A

imprensa cearense foi pródiga em elogios a ações de determinadas pessoas durante a epidemia.

As ordens honoríficas imperiais – importante mecanismo de premiação de serviços prestados

ao Estado, bem como instrumento político de troca entre o Imperador e as elites espalhadas

pelo país – foram distribuídas em demasia no ano de 1858, como retribuição às pessoas

destacadas, e bem relacionadas, durante as primeiras manifestações do cólera no Brasil (1855-

1856). Isso gerou expectativas entre as elites cearenses envolvidas com os socorros aos pobres

atingidos pelo cólera em 1862, daí a razão de uma “epidemia dos elogios” tomar as páginas da

imprensa provincial.

Figueiredo Júnior, por sua vez, usou a prerrogativa de indicar ao Ministro do Império

os possíveis agraciados com as ordens honoríficas para recompensar indivíduos colocados ao

seu lado durante a quadra epidêmica, especialmente liberais que usaram a imprensa para defesa

da presidência da província.

Por fim, através da análise das eleições para o Senado e para a Câmara Geral, em 1863,

analisei a reconfiguração dos jogos políticos no Ceará, com a ascensão dos liberais e a derrota

dos conservadores, especialmente dos “carcarás”. Devido a fatores internos – como a

indisposição do Pedro II com o presidente da província, tendo o cólera como pano de fundo,

rompendo relação responsável pelo sucesso eleitoral dos conservadores no Ceará, desde 1840

– e a externos – a fortificação da “Liga Progressista” e a correlata elevação dos liberais e

285

conservadores menos “emperrados” nas casas legislativas da Corte –, no final do governo de

Figueiredo Júnior, a política provincial do Ceará apresentava outra faceta.

Simbolicamente, os segmentos políticos a tomarem a defesa da presidência do Ceará,

durante o cólera de 1862, gozavam os louros da vitória, enquanto aos “carcarás” do Pedro II

restava esperar que as viradas constantes promovidas pelo Poder Moderador não tardassem.

Respondendo à pergunta que dá título à tese, a epidemia do cólera não poderia estar sob

o controle de um grupo social específico do Ceará de 1862. Suas cenas dramáticas não tinham

um diretor. A doença performou de modo relativamente autônomo, coadjuvada pelas mazelas

sociais dos lugares por onde passou, agindo com força e deixando um rastro de morte. Todavia,

não faltou quem tentasse se apropriar do fenômeno natural e histórico da epidemia. Diferentes

grupos e indivíduos usaram o cólera em seus discursos, especialmente na imprensa, no ataque

a adversários ou na busca de benesses pessoais e políticas. Portanto, o cólera não serviu a

nenhum partido, mas, ao mesmo tempo, não faltou quem tentasse usá-lo nos jogos políticos

daquela conjuntura.

286

REFERÊNCIAS

a) Documentos

Fontes hemerográficas:

- Jornais da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro:

A Constituição (Fortaleza)

Correio Mercantil (Rio de Janeiro)

Diário de Pernambuco (Recife)

Diário do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro)

Gazeta Official (Fortaleza)

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro)

Jornal do Recife (Recife)

O Araripe (Crato)

O Cearense (Fortaleza)

O Comercial (Fortaleza)

O Sol (Fortaleza)

Pedro II (Fortaleza)

Fontes Manuscritas:

- Arquivo Nacional do Rio de Janeiro:

Série Interior

Ofício s/n. 31 jan. 1862. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 14, 26 mai.1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 28, 15 mar.1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 33. 11 abr. 1862. Negócios de províncias e estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 35, 4 mai. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

287

Ofício s/n. 5 mai. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de

diversas autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício 36 a. 13 mai. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício 41. 26 mai. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício 41 a. 5 jun. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 47. 9 jun. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício 49. 18 jun. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 51. 23 jun. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 52. 27 jun. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 53. 30 jun. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício confidencial. 8 jul.1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício s/n. de 9 jul. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 56. 11 jul. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 57. 28 jul.1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 60. 28 jul. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício s/n. 2 ago. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 65. 12 ago. 1862. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 72 de 20 ago. 1862. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

288

Ofício n. 77. 30 ago. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 82. 9 set. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 83, 11 set. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 84. 12 set. 1862. Negócios de Província e Estados - Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício confidencial. 11 out. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício confidencial. 26 out. 1862. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício confidencial. 30 out. 1862. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1861-1862). Notação IJJ 9-181.

Ofício n. 11. 30 jan. 1863. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182.

Ofício n. 12. 31 jan.1863. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182.

Ofício confidencial. 31 jan.1863. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182.

Ofício Reservado. 11 fev. 1863. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182.

Ofício n. 28. 12 fev. 1863. Negócios de Províncias e Estados. Ofícios de diversas autoridades.

Ofícios do Governo do Ceará (1862). Notação IJJ 9-182.

Felicitações enviadas pela Câmara Municipal de Telha ao Marquês de Olinda. 18 fev. 1863.

Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas autoridades. Ofícios do Governo do Ceará

(1863). Notação IJJ 9-182.

Ofício de José Martiniano de Alencar ao Marquês de Olinda, com felicitações da Câmara

Municipal de Fortaleza. 29 mar. 1863. Negócios de Província e Estados. Ofícios de diversas

autoridades. Ofícios do Governo do Ceará (1863). Notação IJJ 9-182.

Ofício de José Martiniano de Alencar ao Marquês de Olinda, com felicitações da Câmara

Municipal de Quixeramobim. 14 abr. 1863. Negócios de Província e Estados. Ofícios de

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