Descodificando Barreto de Resende: As Vistas de Diu, Damão e Goa

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SANTOS, Joaquim Rodrigues dos, MENDIRATTA, Sidh Losa, “Descodificando Barreto de Resende: As Vistas de Diu, Damão e Goa” in Actas do VIII Congresso dos Monumentos Militares – Fortificação Costeira: Dos Primórdios à Modernidade", Faro, Associação Portuguesa dos Amigos dos Castelo [no prelo].

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SANTOS, Joaquim Rodrigues dos, MENDIRATTA, Sidh Losa, “Descodificando Barreto de Resende: As Vistas de Diu, Damão e Goa” in Actas do VIII Congresso dos Monumentos Militares – Fortificação Costeira: Dos Primórdios à Modernidade", Faro, Associação Portuguesa dos Amigos dos Castelo [no prelo].

Descodificando Barreto de Resende: As vistas de Diu, Damão e Goa Joaquim Rodrigues dos Santos E.T.S. Arquitectura y Geodesia, Universidad de Alcalá de Henares (Madrid) [email protected] Sidh Losa Mendiratta Núcleo de Arquitectura e Urbanismo, Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra [email protected]. Abstract: Described as naïf and attractive works, the watercolours attributed to Pedro Barreto de Resende inserted in Códice CXV/X-2 of the Biblioteca Pública de Évora and in Sloane Ms. 197 of the British Library remain a precious source for the study of the Portuguese Eastern Empire and also an interesting example of spatial representation during the 17th century. Influenced by the previous works of Duarte d’Armas and largely based on the charts of Godinho de Herédia, the iconographical production of Resende has, however, an unique system of codification as well as rhetorical concerns that call for an in depth analysis. Resende’s views of the Empire’s cities and territories attempt to communicate a broad range of information in a straightforward and pragmatic – and also holistic and seductive – way. The visual grammar thus employed by Resende in his depictions of Diu, Damão and Goa is considered in this text, where we propose a few tools for its decoding. Introdução A iconografia atribuída a Pedro Barreto de Resende contida no Livro das Plantas de todas as Fortalezas […]1, descrita como sendo um conjunto de desenhos “ingénuos e atraentes”2, permanece uma fonte primordial para o estudo da presença portuguesa no Oriente. Apesar da sua extensa difusão, este conjunto iconográfico carece, na nossa opinião, de uma análise aprofundada que permita compreender o contexto da sua produção, a metodologia empregue e a sua importância enquanto fonte histórica; neste sentido, lançamos algumas pis-tas para esse estudo mediante a análise de três exemplos: as vistas de Diu, Damão e Goa. Dentro da produção de Resende, escolhemos estes exemplos pelo facto de serem locais onde parte considerável das estruturas de origem portuguesa sobreviveu relativamente intacta, permitindo assim a comparação da representação do desenho com a realidade existente. Por outro lado, a representação da ilha de Goa apresenta ainda destacado interesse por ser uma representação de escala territorial e pela sua riqueza informativa. Metodologia adoptada por Resende Pedro Barreto de Resende chegou à Índia em 1629, enquanto secretário do novo vice-rei D. Miguel de Noro-nha, conde de Linhares. Quatro anos depois, D. Filipe III escrevia ao vice-rei, lembrando-lhe que enviasse «(…) as descripções de todas as costas, portos, abras e surgidouros desse Estado, cada governo ou capitania de per si (…)»3. Existindo desígnios anteriores desta natureza, este foi, no entanto, o primeiro inquérito que correspondeu à encomenda e que chegou (praticamente) completo aos nossos dias. D. Miguel de Noronha delegou a tarefa em António Bocarro, cronista do Estado da Índia; este aceitou a incumbência, mas cingindo-se apenas à componente textual. Bocarro sugeriu que Resende se responsabilizasse pela componente icono-gráfica, visto que este teria já em sua posse diversas representações de cidades no Oriente, feitas para sua própria “curiosidade”4. Resende, talvez pressionado pelo vice-rei, aceitou ceder os seus desenhos; porém, colocou como condição Bocarro ceder-lhe a componente textual. Desta cooperação resultou o famoso inqué-rito completado em 1635 e prontamente remetido em duas vias para o rei5. Os seus desenhos constituem o objecto deste estudo – mais especificamente, as vistas de Goa, Damão e Diu. Em finais de 1629, o vice-rei escreveu ao rei dizendo que estava a tentar recolher documentação produzida pelo cartógrafo português Manuel Godinho de Herédia, de forma a dar início à encomenda régia6. Em 1635, Resende disponibilizou a Bocarro 52 desenhos destinados a integrarem o inquérito. Analisando este conjunto de imagens, verificamos que pelo menos 10 dessas representações apresentam claras afinidades com dese-nhos análogos da autoria de Herédia7 – ponto de vista do observador, morfologia do território, elementos construídos e relações posicionais. Em pelo menos outras 8 representações encontramos afinidades mais

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genéricas, mas ainda assim facilmente identificáveis8. Esta evidente relação a nível iconográfico entre Resende e Herédia, já apontada anteriormente9, parece-nos ainda mais fundamentada tendo em conta que Resende era secretário do vice-rei e que, como tal, certamente teve acesso à produção de Herédia (que na altura estaria sendo resgatada). Podemos afirmar que as imagens de Resende se inserem num tipo de produção patente na fase inicial da representação “vista de pássaro”, a qual ainda não dominava os novos métodos de comunicação visual que surgiram no Renascimento. Em nosso entender, estas características resultam, antes de mais, do facto de Resende ter iniciado a sua produção – ainda antes de receber a incumbência do inquérito – a partir da obra iconográfica de Herédia, a qual possuía essas mesmas características. Resende estendeu este tipo de repre-sentação a todas as imagens do inquérito, incluindo aquelas para as quais não existiam, tanto quanto sabe-mos, representações análogas da autoria de Herédia. Contudo, Resende introduziu dois temas transversais que distinguem e valorizam a sua obra ao nível da coerência representativa (sistema de símbolos, importân-cia cromática, estética unificadora) e ao nível da actualização da informação (aumento da abrangência de território, introdução de novas estruturas e de elementos topográficos). Destas particularidades resultou um conjunto iconográfico mais rico em termos informativos e de estética mais apelativa. Sintetizando, pensamos que o método de elaboração dos desenhos por parte de Resende compreendia três etapas fundamentais:

1. Delimitação do território a representar, orientação cardinal no suporte e sua representação básica em vista zenital;

2. Inserção de perímetros de implantação de elementos estruturantes (fortificações, cercas e malhas urba-nas);

3. Aplicação selectiva de diversos pontos de vista do observador (rebatimento de planos de fachadas e uso localizado de representação perspéctica), variações de escalas de representação e de graus de por-menorização.

Este método permitia assim transmitir o máximo de informação num único desenho, aproximando-se de certo modo à representação em “vista de pássaro”, embora sacrificando o rigor geométrico. Acresce ainda o uso de representações estereotipadas que, no fundo, constituem um sistema sinalético apreensível (canhões, poços, tanques, cruzeiros, árvores), complementado pelo amplo recurso à cor (diferenciação de materiais, representação do relevo). Analisando o subconjunto de 34 imagens do inquérito para as quais não encontramos qualquer relação a nível de representação com a obra de Herédia, verificamos que estas se podem agrupar em quatro grupos geográficos: o arábico, o de Ceilão, o da Província do Norte e um quarto grupo aleatório:

1. No grupo arábico (10 imagens)10, os locais representados apenas passaram para o domínio português – ou sob ele foram fortificados – após o reequilíbrio estratégico derivado da perda de Ormuz em 1622, razão pela qual não terão sido desenhados por Herédia. Assinalamos ainda as fortes afinidades existen-tes ao nível da representação estereotipada das estruturas militares patentes nos desenhos de Resende.

2. Paralelamente, os locais constantes no grupo de Ceilão (7 imagens)11 foram também conquistados ou fortificados após o falecimento de Herédia, com a excepção de Jafanapatão.

3. O grupo da Província do Norte (7 imagens)12 representa maioritariamente locais com fortificações de reduzidas dimensões (como casas senhoriais fortificadas, torres ou baluartes isolados), ou locais de difícil acesso (como as fortificações na Serra de Asserim ou em Manorá); talvez por isso, também não terão sido abordadas por Herédia.

4. Finalmente, no quarto grupo (10 imagens), que apresenta uma grande disparidade geográfica, podemos distribuir os desenhos em dois subgrupos: um para o qual se conhecem representações de Herédia mas que Resende parece ter ignorado13; e outro14 não abordado por Herédia, onde destacamos os casos de Cambolim e Negapatão, que também passaram para domínio português somente após o falecimento de Herédia.

Para todos estes locais, pensamos que Resende terá recolhido informações de índole oral, escrita e gráfica provenientes de várias fontes. Seriam estes os locais que Bocarro encomendou especificamente, no âmbito do inquérito, e após ter escolhido os casos pertinentes que já existiam na colecção de desenhos de Resende reproduzidos a partir da obra de Herédia. Feita esta abordagem geral, importa ainda esclarecer que a questão da autoria individual dos desenhos comummente atribuídos a Barreto de Resende extravasa o âmbito deste estudo. Embora seja provável que o papel de Resende tenha sido essencialmente o de coordenador e coleccionador, e que a autoria de cada dese-nho per se possa recair sobre um ou mais colaboradores, a análise do material iconográfico – e do seu valor enquanto fonte histórica – não está dependente desta questão (que, de resto, merece um estudo próprio por parte dos especialistas em História de Arte e em Codicologia).

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A vista da Ilha de Diu As primeiras imagens conhecidas de Diu realizadas por portugueses são a existente no Roteiro de Goa a Dio de D. João de Castro15, e a que se encontra nas Lendas da Índia de Gaspar Correia16, ambas datadas do período compreendido entre os dois cercos àquela fortaleza, após a sua conquista pelos portugueses (1538 e 1546). Apesar da riqueza informativa destes desenhos, Resende seguramente não os utilizou como fontes – antes terá usado uma imagem de Herédia, como a existente no Atlas Miscelânea17. Por seu turno, Herédia tampouco fez uso dos dois documentos iconográficos mencionados e, aparentemente, não se deteve em Diu tempo suficiente para produzir uma vista fidedigna e aprofundada. Consequentemente, esta é uma das suas produções menos conseguidas. Resende, ao utilizar a imagem de Herédia, reiterou em boa medida as impre-cisões do seu antecessor, ainda que tenha introduzido actualizações. As afinidades ocorrem não apenas ao nível do ponto de vista da composição geral, mas também na representação da fortaleza e de elementos da cidade18. Ainda assim, o desenho de Resende resulta mais coerente e eloquente na informação transmitida.

Imagens 1 e 2 – Vista da Ilha de Diu (fonte: Pedro Barreto de Resende, Livro das Plantas de todas as

Fortalezas[…]); Fotografia Aérea da Ilha de Diu (fonte: Google Earth)

Em relação à composição geral, Herédia desenhou a ilha de Diu dividida em três partes: a fortaleza, a cidade com o seu perímetro amuralhado, e o restante território da ilha. A proporção de cada uma das partes reflecte a sua importância no contexto dos interesses portugueses: a fortaleza – situada no extremo leste da cidade e símbolo do domínio português sobre o território – apresenta-se sobredimensionada, enquanto que o território em redor da cidade, com menor presença portuguesa e escasso povoamento, é representado de forma diminu-ta. Esta mesma hierarquia foi seguida por Resende. Em relação à fortaleza, importa referir que Herédia a representou no período em que ainda se construía a sua segunda linha de defesa19, enquanto que a ilustração de Resende representa a obra praticamente concluída. Este facto traduz-se numa diferença sensível entre os dois desenhos ao nível da planta de implantação da fortaleza (ambos, no entanto, estão longe de representar de forma realista a implantação existente). Assim, no âmbito do inquérito, Resende com certeza recebeu informações actualizadas referentes à finalização das obras da segunda linha defensiva, nomeadamente o baluarte de S. Domingos e a couraça da porta. Condicionado por este processo de actualização e pela sua tendência para simplificar a morfologia das estru-turas para formas elementares, Resende alterou também a representação dos baluartes dos perímetros defen-sivos. Sintetizando, na representação de Resende, a segunda cortina de muralhas adquiriu um traçado que dá à fortaleza uma forma quadrangular, ao invés da triangular mais coerente com a realidade; e os baluartes sofreram uma modificação significativa, tanto de posicionamento, como de forma e importância atribuída20. Nota-se ainda um pequeno perímetro circular murado no interior da fortaleza – talvez corresponda a uma simplificação de um elemento retratado por Herédia e que poderia assinalar a extensa pedreira que ainda hoje pode ser vista próximo ao baluarte cavaleiro. Interpretamos este facto como mais um indício de que Resende não esteve em Diu. Quanto ao fortim do Mar, sabe-se que a sua origem é pré-portuguesa, e que durante o período português sofreu diversas obras de reparação. Enquanto Herédia o desenha de forma elíptica interca-lado com uma pequena torre, Resende simplifica a estrutura, reduzindo-a a uma única torre/bastião. Em relação à cidade de Diu, situada a oeste da fortaleza, o desenho de Herédia evidencia uma malha urbana diferente em torno de uma mesquita, na zona noroeste (a mais antiga da cidade). Na zona sudeste, mais pró-xima à fortaleza portuguesa, Herédia concentrou quase todos os edifícios religiosos cristãos (excepção feita ao hospital dos Pobres e ao convento de S. Domingos, e ainda ao novo paço do Governador, que se situam junto à Ribeira, na zona nordeste). Precisamente nesta área predominantemente católica, entre a fortaleza e a cidade pré-portuguesa, Herédia representou uma estrutura urbana mais regular. Na zona mais a sul da cidade

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foram representadas quadras aparentemente de função mais agrícola e com implantação mais esparsa sem carácter urbano. Resende, por seu turno, optou por representar todo o espaço da cidade de forma densamente urbanizada, espalhando os seus edifícios religiosos21 pela cidade, possivelmente numa afirmação do domínio português sobre esta22. No território da ilha exterior ao perímetro muralhado da cidade, e ao contrário de Herédia23, Resende optou por não representar edificações; pensamos que, provavelmente, tal se deve ao facto do inquérito ser um documento de índole prática que pretenderia comunicar, sobretudo, informações com relevo ao nível da organização governativa. Como o domínio sobre esse território extramuros seria menos efectivo (em caso de invasão, os parcos habitantes desse território provavelmente não contariam como elementos de defesa – mesmo a defesa desse território seria impraticável), a opção de Resende terá sido a de simplesmente ignorar qualquer edificação que lá existisse, considerando a área como uma espécie de “terra de ninguém”24. A vista de Damão Herédia elaborou pelo menos uma planta da praça de Damão Grande, provavelmente no contexto das obras no perímetro amuralhado efectuadas segundo a traça do arquitecto Giovanni Battista Cairatti. Contudo, e ao contrário de Diu, Resende não usou a planta de Herédia como base para a sua vista de Damão. A primeira impressão que ressalta para quem observa a imagem de Damão realizada por Resende, é a des-proporção entre a praça abaluartada e o forte de S. Jerónimo, situado na outra margem do rio Damanganga. Salienta-se também a regularidade da malha urbana de Damão Grande e o facto de, no seu perímetro amura-lhado, figurar um baluarte que na realidade não existe. Como em alguns outros casos, Resende parece ter simplificado a forma geométrica da implantação da cerca da praça, aproximando-o de um quadrado25; esta tendência é reforçada pelo destaque dado na representação ao forte pré-português, elemento central e estrutu-rante de Damão Grande 26. De referir ainda que o conjunto fortificado de Damão é a única representação do códice de Évora onde as estruturas defensivas surgem em cor branca – ou seja, aparentemente rebocadas e caiadas.

Imagens 3 e 4 – Vista da Cidade de Damão (fonte: Pedro Barreto de Resende, Livro das Plantas de

todas as Fortalezas[…]); Fotografia Aérea da Cidade de Damão (fonte: Google Earth) Observando a representação do forte de S. Jerónimo, verifica-se que a sua dimensão se afigura exacerbada relativamente à de Damão Grande, especialmente se tivermos em conta que a sua área é ainda menor do que a do primitivo forte pré-português. Talvez Resende tenha pretendido evidenciar a importância dessa obra militar, construída segundo as mais recentes técnicas da época, e que estava prestes a ser concluída. O forte é representado por Resende de forma triangular quando, na realidade, a sua planta de implantação se aproxima de um quadrilátero; esta representação poderá ter advindo da simples união dos três baluartes existentes, elementos que marcavam as inflexões nos panos de muralha27. Destaca-se ainda a eloquência da porta monumental do forte, cuja representação talvez tenha condicionado a orientação do edifício no desenho. Por outro lado, verifica-se que num dos baluartes se vislumbram fendas na alvenaria exterior; trata-se de uma situação descrita por Bocarro28. Note-se ainda a ausência de artilharia no desenho, conquanto a mesma é enumerada no texto29. Centrando-nos na representação de Damão Grande, constata-se que a representação ortogonal e modulada dos seus quarteirões e traçado viário corresponde, em boa medida, ao actualmente existente – excepto na zona ocidental da cidade, onde o desenho parece ter sofrido uma compressão. De modo geral, também a implantação dos edifícios notáveis corresponde aproximadamente à realidade30; entre estes, encontram-se algumas representações que revelam um conhecimento considerável, provavelmente até o recurso a fontes produzidas in loco. A título de exemplo, refira-se a representação da Sé e das casas do governador dentro do

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forte pré-português31, assim como o caso da porta monumental do forte de S. Jerónimo. Porém, a representa-ção geral da cidade ostenta uma densidade urbana exagerada, tendo em conta a estimativa populacional avançada por Bocarro32. Facto singular e que constitui um erro crasso, dado o âmbito do inquérito, é a existência de 11 baluartes na representação da muralha de Damão Grande, face aos 10 que verdadeiramente foram erguidos e que ainda hoje lá se encontram33. Importa referir que as primeiras representações conhecidas de Damão, da autoria de Herédia, são mais fiéis à forma da cidade e apresentam o número correcto de baluartes. Outros pormenores na representação chamam a nossa atenção: no baluarte de S. Miguel, defronte do forte de S. Jerónimo, Resende representa um pequeno casario diferenciado do restante edificado – estruturas não caiadas e não telhadas. Este facto e a sua localização próxima à porta do Mar e à porta da Ribeira34 poderá indicar que seriam construções de serviço para apoio às actividades marítimas e fluviais que se efectuavam na vizinha Ribeira 35. Especulando sobre uma intenção retórica patente no desenho de Damão, Resende talvez pretenda sobrevalo-rizar a importância e opulência de Damão Grande (sede da soberania portuguesa) face ao povoado preexis-tente de Damão Pequeno, situado na envolvente do forte de S. Jerónimo. De facto, Damão Pequeno, habitada indistintamente por cristãos e não-cristãos, teria uma maior densidade populacional e vitalidade económica. Resende procurou subverter esta realidade, reduzindo a representação de Damão Pequeno a um pequeno conjunto de casas não caiadas e não telhadas, e exagerando, como anteriormente referido, a densidade e qua-lidade construtiva existente em Damão Grande. A vista da Ilha de Goa A vista da cidade de Goa e ilha de Tiswadi destaca-se das outras representações de Resende pelo seu valor informativo e complexidade. Conjuntamente com as vistas de Salcete e Bardez, a vista de Tiswadi retrata um território densamente cristianizado e pontuado por diversas estruturas e infra-estruturas. Contudo, aquilo que mais individualiza a vista de Goa, em nosso entender, é o modo pormenorizado como alguns edifícios são desenhados, fugindo aos parâmetros usuais de codificação empregues no conjunto iconográfico. Especial-mente na representação dos edifícios religiosos da cidade de Goa, mas também nos palácios e edifícios públicos, Resende evidencia as respectivas características marcantes e individualizadas, quer ao nível dos desenhos dos alçados, quer ao nível da volumetria geral. Este facto reflecte naturalmente a observação em primeira-mão da realidade urbana representada.

Imagens 5 e 6 – Vista da Ilha de Goa (fonte: Pedro Barreto de Resende, Livro das Plantas de todas as

Fortalezas[…]); Fotografia Aérea da Ilha de Goa (fonte: Google Earth) Aparentemente, Resende não usou a cartografia de Herédia nem a célebre gravura de Linschoten como base matricial para a sua representação de Tiswadi, embora seja provável que tenha tido acesso a estes elementos, assim como a material de outros autores. Resende desenha a implantação da ilha de Tiswadi e das barras dos rios Mandovi e Zuari de forma estilizada e verosímil, enfatizando certos marcos geográficos como a zona de N. Sra. do Cabo, o paço de Daugim e a ermida de Siridão. Olhando para a representação da ilha Tiswadi, ressalta claramente a dimensão exagerada da cidade de Goa face ao restante território. Este facto condiciona a estruturação geral e as relações posicionais dos elementos mais importantes do território insular. Destaca-se também a importância e pormenor dadas à representação da topografia e às principais culturas agrícolas (arrozais e palmeirais). Assume relevância a representação da extensa muralha iniciada pelos portugueses cerca de 156536, embora muito divergente do seu verdadeiro perímetro de implantação. Distinguem-se claramente duas fases na cons-trução desta estrutura defensiva. A primeira, do lado nascente da ilha, acompanha o canal de Cumbarjua,

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entre o paço de Daugim e o bastião de Mangueiral; esta secção corresponde à iniciada no tempo do vice-rei D. Antão de Noronha (r. 1564-68). A segunda, que se estende desde o Mangueiral ao longo do planalto de Kadamba até próximo de Panelim, corresponde a uma edificação seiscentista que nunca foi terminada – facto que é sugerido pelo desenho. As diferenças entre as duas representações notam-se ao nível da cor, do porme-nor, da espessura da muralha e ainda ao nível do rigor da implantação. Ainda no âmbito do sistema defensivo da ilha de Goa, são representados os fortes de Reis Magos, de Aguada, de Gaspar Dias, o forte de Mormu-gão, as estruturas de N. Sra. do Cabo, secções de muralha nas praias a sul de Taleigão, e aquilo que aparenta ser a ribeira fortificada de Pangim. No campo das estruturas religiosas, Resende assinala pelo menos 59 edificações, das quais 28 pertenciam à zona urbana ou periferia da capital do Estado da Índia; esta abundância de igrejas demonstra a importância fulcral da religião católica e, sobretudo, das ordens religiosas na cidade. Embora muitas delas tenham desa-parecido ou estejam actualmente em ruínas, é possível identificá-las a todas através do cruzamento com outras fontes históricas. No desenho, sobressaem as vistas da igreja paroquial de N. Sra. da Luz, do convento de N. Sra. da Graça e colégio de N. Sra. do Pópulo dos agostinhos, da Misericórdia, e do convento de S. Domingos. De referir ainda as igrejas jesuítas de S. Paulo e a do Bom Jesus37. A vista da cidade de Goa é aquela onde Resende retrata com maior expressividade as características específicas das igrejas (e outros edifícios de grandes dimensões), evidenciando o desenho das fachadas principais, da volumetria geral e posi-ção da(s) torre(s). Pensamos ainda que a cor vermelho/acastanhada indica edificações em construção ou em renovação38. De particular interesse são também as zonas de Daugim, do palácio do vice-rei e de Ribandar, pela riqueza de pormenorização. São assinalados de igual modo marcos importantes do quotidiano da cidade, como a fonte de Banguinim, a forca, o pelourinho novo, o Arsenal, a cruz dos Milagres, as ruínas da igreja de S. Tomé o Novo (obra nunca terminada), os cemitérios e as zonas de realização de mercados. Acreditamos que muitas das casas ou propriedades representadas de modo mais individualizado correspondessem a edifica-ções existentes com essas características. Afinal, seriam sítios que Resende conheceria bem – e alguns até provavelmente foram por ele frequentados. Não temos dúvidas de que a representação de Goa é a mais expressiva e informativa de todas as vistas pro-duzidas por Resende no âmbito do inquérito, reflectindo o facto do seu autor conhecer de forma aprofundada a cidade e ilha retratada. Nota Final Apesar de não conhecermos a reacção de D. Filipe III ao inquérito, sabe-se que a acção governativa do vice-rei, o conde de Linhares, foi amplamente reconhecida em Madrid; por outro lado, é inegável a existência de um extenso trabalho de reprodução do inquérito efectuado por Bocarro e Resende que se extende por diver-sas partes do Mundo39. Os desenhos de Resende, apesar de não transmitirem com rigor científico as cidades e estruturas representa-das, comunicam de forma expressiva e sedutora uma realidade maior – a realidade multidimensional e cultu-ral do universo urbanístico português no Oriente. Deste modo, a sua iconografia moldou de forma determi-nante a construção do imaginário oriental e suscita interesse continuado e renovado. Referências Bibliográficas (códices consultados) (anónimo) – Breve Tratado ou Epilogo de Todos os Visorreys, que tem Havido no Estado da India, Successos que Tiverão no Tempo dos seus Governos, Armadas de Navios, e Galeões, que do Reyno de Portugal Forão ao Dito Estado, e do que Succedeo em Particular a Alguas Dellas nas Viagens que Fizerão. Descripções das Fortalezas da India Oriental. Códice MSS Fonds Portugais nº 1 da Bibliothèque Nationale de Paris, c.1636 (microfilme / jpg) (anónimo) – Livro das Cidades, e Fortalezas, que a Coroa de Portugal tem nas Partes da India, e das Capitanias, e mais Cargos que Nelas ha, e da Importancia Delles. Códice MS. 3127 da Biblioteca Nacio-nal de Madrid, 1582 (fac símile com prefácio de LUZ, Francisco Paulo Mendes da. Lisboa: Centro de Estu-dos Históricos Ultramarinos, 1960) (anónimo) – Livro das Plantas das Fortalezas, Cidades e Povoaçois do Estado da Índia Oriental, cõ as Demostrações do Maritimo dos Reinos e Provincias Donde Estão Cituadas e Outros Portos Pricipais Daquelas Partes. Códice Nº Inv. 1471 da Biblioteca do Palácio Ducal da Casa de Bragança em Vila Viçosa, c.1650 (fac símile com prefácio de SILVEIRA, Luís. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1991)

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(anónimo) – O Lyvro de Plantaforma das Fortalezas da Índia. Códice nº 1805 da Biblioteca da Fortaleza de S. Julião da Barra em Oeiras, c. 1620/c.1640 (fac símile com estudo de CARITA, Rui. Lisboa: Edições Inapa, 1999) (anónimo) – Relação das Plantas, & Dezcripsões de Todas as Fortalezas, Cidades, e Povoações que os Portuguezes tem no Estado da India Oriental. Códice nº 29 do Fundo Geral de Manuscritos da Biblioteca Nacional de Lisboa, c.1622/33] (fac símile com introdução de VEIGA, Augusto Botelho da Costa. Lisboa: Biblioteca Nacional de Lisboa, 1936) ABREU, Lisuarte de – Livro de Lisuarte de Abreu. Códice Ms. 525 da Colecção de J. Pierpont Morgan Library em Nova Iorque, c.1562 (fac símile com introdução de ALBUQUERQUE, Luís de. Lisboa: Comis-são Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1992) ALBERNAZ I, João Teixeira – Livro em que se Relata o Sitio de Todas as Fortalezas, Cidades e Povoa-çoens do Estado da India Oriental com as Descripções da Altura em que Estão e de Tudo o que ha Nellas, Artelharia, Prezidio, Gente d’Armas e Vaçalos, Rendimento e Despeza, Fundos, e Baixos das Barras, Reys da Terra Dentro o Poder que tem e a Paz e Guerra que Guardão e Tudo o que Está Debaixo da Coroa de Espanha. Códice R.202 da Biblioteca Nacional de Madrid, c.1635 (microfilme) ALBERNAZ I, João Teixeira – Plantas das Cidades e Fortalezas da Conquista da India Oriental. Códice Cod. Mon. Icon. 162 da Bayerische Staatsbibliothek de Munique, c.1648 (jpg) ALBERNAZ I, João Teixeira – Taboas Geraes de toda a navegaçaõ divididas e emendadas por Dom Ieronimo de Attayde. Códice Case 9, D. 6, Deck 1, Atlas nº 5931 da Library of Congress em Washington, 1630 (jpg) ALBERNAZ I, João Teixeira – Rezão do Estado do Brasil no Gvoverno do Norte Somete asi como o teve dõ Diogo de Menezes até o Anno de 1612. Códice do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, c.1626 (fac símile com apresentação de CUNHA, A. G.. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1968) ARMAS, Duarte d’ – Livro das Fortalezas Situadas no Extremo de Portugal e Castela. Códice PT-TT-CF/159 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa, c.1509-16 (fac símile com introdução de BRANCO, Manuel da Silva Castelo. Lisboa: Edições INAPA, 1997) BOCARRO, António – Livro das Plantas de todas as Fortalezas, Cidades e Povoaçoens do Estado da Índia Oriental com as Descripçoens da Altura em que Estão, e de Tudo que ha Nellas, Artilharia, Pre-sidio, Gente de Armas, e Vassalos, Rendimento, e Despeza, Fundos, e Baxos das Barras, Reys da Terra Dentro, o Poder que tem, e a Paz, e Guerra, que Guardão, e Tudo que Esta Debaxo da Coroa de Espa-nha. Códice COD. CXV/2-X da Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora, 1635 (fac símile com estudo histórico e transcrição de CID, Isabel. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 3 vols., 1992) CARNEIRO, António de Mariz – Descripçam da Fortaleza de Sofala, e das Demais da Índia com uma Rellaçam das Religiões Todas, que há no Mesmo Estado. Códice Ilum. nº 149 da Biblioteca Nacional de Lisboa, 1639 (fac símile com introdução de DIAS, Pedro. Lisboa: Fundação Oriente, 1990) CASTRO, D. João de – Roteiro de Goa a Dio. Códice Col. S. Vicente, Tomo XV, pp. 183 seqq. do Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa, c.1588, baseado no original perdido de 1538/39 (fac símile com prefácio de COSTA, Abel Fontoura da. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 2 vols., 1940) CORREIA, Gaspar – Lendas da Índia. Códice PT-TT-CF040/43 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa, meados do séc. XVI (fac símile com introdução e revisão de ALMEIDA, Manuel Lopes de. Por-to: Lello & Irmão Editores, 4 vols., 1975) HERÉDIA, Manuel Godinho de – Plantas de Praças das Conquistas de Portugal Feytas por Ordem de Ruy Lourenço de Tavora Vizo rey da Índia. Códice CAM - 3,5 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1610 (pdf) MORENO, Diogo de Campos – Relação das Praças Fortes, Povoações e Cousas de Importância que Sua Majestade tem na Costa do Brasil. Códice PT-TT-MR/1/68 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa, 1609 (microfilme) RESENDE, Pedro Barreto de – Livro do Estado da Índia Oriental Repartido em Tres Partes, a Primeira Contem Todos os Retratos dos Vizorreis que tem Avido no Dito Estado athe o Anno 634, com Discrip-sois de seus Governos, A Segunda Parte Contem as Plantas das Fortalezas que há do Cabo da Boa Esperança athe a Fortaleza de Chaul e com Larga Descripçao de Tudo o Mais que lhe Toca, A terceira Contem as Plantas de Todas as Fortalezas que ha de Goa athe a China, com Descripção da Mesma Forma, e vão Juntamente Plantas de Fortalezas que não são do Estado que por Estarem nas Mesmas Costas se Puzerão por Curiozidade. Códice Sloane MS. 197 da British Library de Londres, c. 1646 (jpg / transcrição dactilográfica feita por Armando Cortesão em 1936/37)

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SOUSA, Manuel de Faria e – Ásia Portuguesa. Códice RES. 4385-4387 V da Biblioteca Nacional de Lis-boa, 1666-75 (fac símile com introdução de ALMEIDA, Manuel Lopes de. Porto: Livraria Civilização, 6 vols., 1945/47) (edições consultadas) ANTUNES, Luís Frederico Dias – “Diu”. In Os Espaços de um Império: Estudos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, pp.149-159 AZEVEDO, Carlos de – A Arte de Goa, Damão e Diu. Lisboa: Comissão Executiva do V Centenário do Nascimento de Vasco da Gama, 1970 BOXER, Charles Ralph – “António Bocarro and the Livro do Estado da Índia Oriental”. In Garcia da Orta, Lisboa, 1956, (nr. especial), pp.203-215 BUENO, Beatriz Siqueira – “Desenho e Desígnio – O Brasil dos Engenheiros Militares”. In Oceanos, Lis-boa, nr.41, 2000, pp.40-58 CARITA, Helder – “Arquitectura Civil Indo-Portuguesa e a Paisagem Urbana de Goa”. In Os Espaços de um Império: Estudos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugue-ses, 1999, pp.77-89 CHICÓ, Mário Tavares – “A Cidade Ideal do Renascimento e as Cidades Portuguesas da Índia”. In Garcia da Orta, Lisboa, (nr. especial), 1956, pp.319-328 CHOUKROUN, Sabine – “Damão”. In Os Espaços de um Império: Estudos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, pp.125-137 CORTESÂO, Armando, MOTA, Avelino Teixeira da – Portugaliae Monumenta Cartographica. Lisboa: Comissão Nacional para a Comemoração do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 6 vols., 1960 DAVEAU, Suzanne – “Lugares e Regiões em Mapas Antigos”. In Lugares e Regiões em Mapas Antigos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, pp.13-44 DIAS, Pedro – História da Arte Portuguesa no Mundo (1415-1822) – O Espaço Índico. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 MOUREIRA, Rafael – “A Fortaleza de Diu e a Arquitectura Militar no Índico”. In Os Espaços de um Império: Estudos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, pp.139-147 NORONHA, Percival – “Um Passeio pela Velha Cidade de Goa”. In Os Espaços de um Império: Estudos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, pp.91-103 NUTI, Lúcia – “The Perspective Plan in the Sixteenth Century: The Invention of a Representational Lan-guage”. In The Art Bulletin, Nova Iorque, vol.78, nr.1, 1994, pp.105-128 NUTI, Lúcia – “Mapping Places: Chorography and Vision in the Renaissance”. In COSGROVE, Denis (ed.) – Mappings. Londres: Reaktion Books, 1999, pp.90-108 QUADROS, Jerónimo – Diu – Apontamentos para a sua Historia e Chorographia. Pangim: Tipographia Fontainhas, 1899 PATO, Bulhão – “Introdução”. In Década 13 da Historia da Índia. Lisboa: Typographia da Academia Real de Sciencias, 1876 REIS, Nestor Goulart – Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo: Editora da Universida-de de São Paulo, 2001 ROSSA, Walter – Cidades Indo-Portuguesas. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Des-cobrimentos Portugueses, 1997 SILVEIRA, Luís – Ensaio de Iconografia das Cidades Portuguesas do Ultramar. Lisboa: Junta de Inves-tigações do Ultramar, 4 vols., 1956 1 Livro das Plantas de todas as Fortalezas, Cidades e Povoaçoens do Estado da Índia Oriental com as Descripçoens da Altura em que estão, e de tudo que ha nellas, Artilharia, Presidio, Gente de Armas, e Vassalos, Rendimento, e Despeza, Fundos, e Baxos das Barras, Reys da Terra dentro, o Poder que tem, e a Paz, e Guerra, que guardão, e tudo que esta debaxo da Coroa de Espanha (1635) de António Bocarro [códice COD. CXV/2-X da Biblioteca Pública e Arquivo Dis-trital de Évora]. 2 CID, 1992, vol.1, pp.9-10. 3 A referência a esta ordem régia encontra-se na carta de 24 de Dezembro de 1633 de António Bocarro [PATO, 1876, p.XVI]. 4 Sobre a contextualização histórica e a definição das autorias, ver: CORTESÃO, MOTA, 1960, vol.5, pp.60-70; CID, 1992, vol.1, pp.13-32. 5 Livro das Plantas de todas as Fortalezas, Cidades e Povoaçoens do Estado da Índia Oriental com as Descripçoens da Altura em que estão, e de tudo que ha nellas, Artilharia, Presidio, Gente de Armas, e Vassalos, Rendimento, e Despeza,

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Fundos, e Baxos das Barras, Reys da Terra dentro, o Poder que tem, e a Paz, e Guerra, que guardão, e tudo que esta Debaxo da Coroa de Espanha (1635), onde uma das vias se encontra em Évora [códice COD. CXV/2-X da Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora], e a outra Armando Cortesão e Avelino Teixeira da Mota mencionam como tendo estado à venda no livreiro A. Rosenthal Ltd. de Oxford, em 1961. Resende publicou, mais tarde, o Livro do Estado da Índia Oriental Repartido em tres Partes, a Primeira contem todos os Retratos dos Vizorreis que tem avido no dito Estado athe o Anno 634, com Discripsois de seus Governos, A Segunda Parte contem as Plantas das Fortalezas que há do Cabo da Boa Esperança athe a Fortaleza de Chaul e com larga Descripçao de tudo o mais que lhe toca, A Terceira contem as Plantas de todas as Fortalezas que ha de Goa athe a China, com Descripção da mesma Forma, e vão junta-mente Plantas de Fortalezas que não são do Estado que por estarem nas mesmas Costas se puzerão por Curiozidade (ca. 1646) de Pedro Barreto de Resende [códice Sloane MS. 197 da British Library de Londres], em que acrescentou mais imagens de lugares no Oriente – não necessariamente portugueses –, tendo ainda utilizado o texto de Bocarro ao qual fez algumas alterações, assim como em algumas imagens utilizadas por Bocarro na obra de 1635 [CORTESÃO, MOTA, 1960, vol.5, pp.59-85]. 6 Ver: CORTESÃO, MOTA, 1960, vol.4, p.42. 7 Barcelor, Cananor, Cochim, Colombo, Coulão, Cranganor, Diu, Manar, Onor e Solor. 8 Baçaim, Damão, Galle, Macau, Malaca, Mangalor, Mascate e Mombaça. 9 Ver: CORTESÃO, MOTA, 1960, vol.5, p.81. 10 Borca, Corfação, Curiate, Doba, Libedia, Mada, Matara, Quelba, Sibo e Soar. 11 Batecalou, Beligão, Caliture, Jafanapatão, Negumbo, Tanavare e Triquilimale. 12 Asserim, Bombaim, Danú, Manorá, Sirgão, Taná e Tarapor. 13 Bardez, Chaul, Morro de Chaul, Goa, Moçambique e Salsete. 14 Cambolim, Meliapor, Negapatão e Sofala. 15 Roteiro de Goa a Dio (ca. 1588, baseado no original perdido de 1538/39) de D. João de Castro [códice Col. S. Vicen-te, Tomo XV do Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa]. 16 Lendas da Índia (meados do séc. XVI, possivelmente finalizado entre 1551 e 1563) de Gaspar Correia [códice PT-TT-CF040/43 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa]. 17 A imagem foi consultada através da obra Portugaliae Monumenta Cartographica. 18 Representação da muralha da cidade, dos quarteirões edificados, na localização de alguns edifícios principais e, inclu-sive, na representação de três marcos existentes no espaço compreendido entre a fortaleza e a cidade. 19 Esta construção resulta da vontade de modernização da fortaleza de Diu após o seu segundo cerco, no qual a estrutura sofreu avultados danos. 20 Na altura em que Herédia desenhou a imagem de Diu, o enorme baluarte de S. Domingos ainda estaria em constru-ção, daí a forma irregular apresentada num dos baluartes por si desenhados; por isso mesmo, o baluarte de S. Martinho, pertencente à primeira linha de muralhas e mais próximo do acesso à entrada da fortaleza, adquiriu uma maior impor-tância na representação. Quando Resende desenhou a sua imagem, o baluarte de S. Domingos já estaria quase finalizado (terminou em 1639/41), daí que a importância do baluarte de S. Martinho tenha desaparecido ao ponto de ser omitido na representação, embora na realidade ele tenha sido integrado na muralha como uma espécie de esplanada. A forma não poligonal do baluarte de S. Domingos poder-se-á explicar pela direcção de um dos seus lados, que quase alinha com a muralha e assim dá a impressão de ser um mesmo pano amuralhado. Outro facto importante é a inexistência da couraça na representação de Herédia, embora na representação de Gaspar Correia ela já existisse; tal provavelmente poderá ter sido motivado pela possível ruína durante e após o 2º cerco de Diu, visto que notícias referem que a couraça teria sido reconstruída por volta de 1635 – daí Resende a ter já representado, juntamente com o pequeno torreão que, juntamente com o baluarte de S. Jorge, ladeia a porta de entrada da fortaleza. 21 Convento capuchinho de S. Francisco, convento jesuíta de S. Paulo, igreja de S. Tomé, convento carmelita de N. Sra. da Esperança, igreja de S. Pedro e convento de S. Domingos. 22 Comparando a imagem do códice de Évora e a do códice de Londres, realizada 10 anos depois, verifica-se que esta última apresenta outra diferença substancial: foram eliminados três quarteirões no códice londrino, precisamente aque-les mais próximos à fortaleza. A tal poderá não ser alheio o facto de que, em 1634 – precisamente quando o códice de Évora se encontrava na fase de finalização –, por ordem do vice-rei, conde de Linhares, se ter procedido à demolição de todas as edificações próximas à fortaleza que perturbassem a sua defesa. Esse acontecimento, que adquiriu repercussão até pelo facto de terem sido enviados de Goa alguns emissários especiais com a missão de impedir a derrube dos edifí-cios religiosos dentro do perímetro de demolições, poderá ter tido como implicação a obliteração dos quarteirões mais próximos da fortaleza, no códice de Londres, como forma de o actualizar face ao códice de Évora. 23 Herédia representou no espaço extramuros diversas quadras que aparentam ser terrenos agrícolas vedados e com poucas ou nenhumas edificações, sugerindo que esse território seria basicamente um abastecedor de víveres agrícolas – sabe-se que os franciscanos teriam uma quinta na área extramuros, a qual é, aliás, representada no códice de Londres de Resende. 24 No códice de Londres, essa componente prática funcionalista do inquérito não existia, pelo que Resende optou por representar edifícios fora do limite amuralhado da cidade. Contudo, representou essa área extramuros como o interior da cidade, densamente povoada, e acrescentou-lhe uma legenda bastante elucidativa da sua forma de pensamento: apelidou esse povoamento extramuros, com a sua proeminente mesquita, como sendo a “cidade dos mouros”, ou seja, a cidade sobre a qual o domínio português é menos efectivo, por oposição à “cidade dos portuguezes” intramuros, sobre a qual o

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controlo era real – ainda que a maioria dos seus habitantes intramuros fosse autóctone e de outras confissões religiosas. Importa ainda referir que Diu foi dos poucos locais onde existiu uma tolerância religiosa anterior a 1774 no Estado da Índia portuguesa. 25 Por exemplo, as imagens de Baçaim, São Tomé de Meliapor e Mangalor. 26 O forte pré-português originou o traçado de toda a cidade, onde os eixos viários assumiram direcções consentâneas com o seu posicionamento – destaque para a rua que liga a porta do Mar e a porta de Terra e que é tangente ao forte –, e até as dimensões dos quarteirões se basearam na sua própria dimensão [ROSSA, Walter, Cidades Indo-Portuguesas, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, pp77-81]. 27 Bocarro igualmente menciona a forma triangular do forte: «(…) Chama-ce o dito forte Sam Jeronimo. He feito em figura triangular, com hum baluarte pera o campo, cavaleiro, e dous meyos baluartes, que ficão nos outros dous cantos, com suas cazas-matas pelo razo do orizonte, na face do rio. Tem o pano de muro que corre ao longo delle secenta e sinco braças, de des palmos cada hua; os outros dous panos de muro tem cada hum secenta braças, que vam fechar com o dito baluarte cavaleiro. (…)» [BOCARRO, António, Livro das Plantas de todas as Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental (estudo histórico e transcrição de CID, Isabel), Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1992, vol.2, p.86]. 28 «(…) O meyo baluarte que esta pera a banda da barra, chamado Sam Francisco Xavier, entulharão-no da area e forão-lhe abrindo hua cava logo ao pe delle (com o pezo da area o fes hir arruinando as paredes). (…)» [BOCARRO, António, Livro das Plantas de todas as Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental (estudo histórico e trans-crição de CID, Isabel), Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1992, vol.2, p.86]. 29 O texto de Bocarro menciona a existência de 10 peças de artilharia para o forte de S. Jerónimo; menciona ainda a existência de 27 peças de artilharia na praça de Damão Grande, quando o desenho representa apenas 22 peças [BOCARRO, António, Livro das Plantas de todas as Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental (estudo histórico e transcrição de CID, Isabel), Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1992, vol.2, pp.85-86]. Refira-se ainda que Resende não representou a artilharia no desenho de Damão pertencente ao códice de Londres. 30 Conforme se pode conferir relativamente ao palácio do Governador e à igreja jesuíta de S. Paulo, partilhando partes distintas do forte pré-português; a igreja matriz (Sé), a casa de Câmara e a igreja de N. Sra. do Rosário, em torno da praça principal; o convento dominicano de N. Sra. da Vitória; a igreja franciscana do Espírito Santo – renomeada depois como Madre de Deus –; o convento agostinho de N. Sra. da Graça; e a Misericórdia. 31 No caso da Sé, atente-se na volumetria geral, escada lateral de acesso ao coro alto e na porta lateral; relativamente às casas do governador, atente-se nos pormenores da torre com a sua varanda, parapeito e escada de acesso à muralha e o poço. 32 Segundo o texto de Bocarro, dentro de Damão Grande viviam «(…) coatrocentos cazados entre portuguezes e seus filhos e alguns pretos christãos, todos muy boa gente de armas, que tambem tem alguns escravos de armas, que serão duzentos. (…)» [BOCARRO, António, Livro das Plantas de todas as Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental (estudo histórico e transcrição de CID, Isabel), Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1992, vol.2, p.84]; ou seja, cerca de 600 pessoas no total; cruzando esses dados com o número de casas representadas por Resende (cerca de 250), resulta uma média de 2,4 pessoas por casa, o que parece pouco plausível. 33 Bocarro refere no seu texto que «(…) todo este muro tem em roda dez baluartes (…)» [BOCARRO, António, Livro das Plantas de todas as Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental (estudo histórico e transcrição de CID, Isabel), Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1992, vol.2, p.84]; António Mariz Carneiro dá conta do erro de Resende na legenda que coloca junto do baluarte inexistente no seu desenho no códice Descripçam da Fortaleza de Sofala[…], baseado inteiramente no códice de Évora; a legenda refere que «este baluarte não no ha» [CARNEIRO, António de Mariz, Descrição da Fortaleza de Sofala e das mais da Índia (introdução de DIAS, Pedro), Lisboa, Funda-ção Oriente, 1990]. Assinala-se uma situação muito semelhante na representação de Baçaim, onde Resende representa 11 baluartes quando de facto são apenas 10. 34 A porta encontra-se hoje entaipada. 35 Segundo indicação de Paulo Varela Gomes, existiriam em cidades indo-portuguesas bairros contidos, chamados chal-les. Estes seriam eventualmente de habitantes não-cristãos e do mesmo ofício. A sua existência está documentada para a cidade de Goa e Chaul; colocamos a hipótese de que o casario mencionado seria um challe. 36 Os seus 21km permitem considerá-la, tanto quanto sabemos, o mais extenso pano contínuo de muralha edificado pelos portugueses no Mundo. A cerca defendia – de forma ineficaz – um território maioritariamente agrícola, visto que a área ocupada pela cidade de Goa seria cerca de 20% da área abarcada pela muralha. 37 Por indicação de Paulo Varela Gomes aos autores durante a elaboração do presente trabalho, pode-se avançar que a representação de S. Paulo por Barreto de Resende corresponde ao desenho original da fachada e que a representação da mesma igreja por parte do inglês John Johnson, que visitou Goa em 1806 e publicou depois a obra Sketchbook of Views in Western Índia, corresponde a uma remodelação do frontispício, ocorrido algures entre 1635 e 1750. 38 Atente-se nos exemplos da Sé de Goa, igreja de N. Sra. do Carmo, colégio de S. Roque e igreja do Bom Jesus (em renovação). 39 Livro em que se Relata o Sitio de todas as fortalezas[…] de João Teixeira Albernaz I; Descripçam da Fortaleza de Sofala[…] de António de Mariz Carneiro; Breve Tratado ou Epilogo de Todos os Visorreys[…] de autor anónimo; Lyvro de Plantaforma das Fortalezas da Índia de autor anónimo; Livro das Plantas das Fortalezas[…] de autor anóni-mo [CORTESÃO, MOTA, 1960, vol.5, pp.59-85].