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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP) DANIEL PÉRICLES ARRUDA ESPELHO DOS INVISÍVEIS: o RAP e a poesia no trabalho prático-reflexivo com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação em Belo Horizonte/MG MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL São Paulo 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

(PUC-SP)

DANIEL PÉRICLES ARRUDA

ESPELHO DOS INVISÍVEIS: o RAP e a poesia no trabalho prático-reflexivo com

adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação

em Belo Horizonte/MG

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

São Paulo

2012

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

(PUC-SP)

DANIEL PÉRICLES ARRUDA

ESPELHO DOS INVISÍVEIS: o RAP e a poesia no trabalho prático-reflexivo com

adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação

em Belo Horizonte/MG

Dissertação de mestrado apresentada à banca examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como

exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE

em Serviço Social, sob orientação da Professora Doutora

Myrian Veras Baptista.

São Paulo

2012

São Paulo, ____/____/_______

BANCA EXAMINADORA

“O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso.

Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese,

como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e,

portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação.”

(MARX, 1978, p.116)

Dedico esta dissertação à minha amável família, que

sempre me apoia na dinâmica da vida simples, nas

batalhas da vida cotidiana, e que sempre acredita nos meus

sonhos, por mais difíceis e impossíveis que eles pareçam

ser: Elza, mãe, e Maurício Arruda, pai (in memoriam), e

minhas irmãs, Cristiana e Luciana.

AGRADECIMENTOS

A Deus, por existir concretamente em minha vida e por me dar ânimo e força todos os dias

para seguir firme na minha caminhada.

À Profa. Dra. Myrian Veras Baptista, minha orientadora, que me proporcionou discussões

importantes sobre a temática, por meio de sua sabedoria e da riquíssima capacidade de

compreensão e de leitura reflexiva, que possibilitaram várias descobertas no processo de

construção deste trabalho.

À Profa. Dra. Maria Lúcia Martinelli, pelas contribuições pertinentes no meu exame de

qualificação, pela sensibilidade e pela humildade em lidar com o saber e com as pessoas.

À Profa. Dra. Luciene Jimenez, pela disponibilidade e pelo interesse de ter participado do

meu exame de qualificação, com contribuições importantes.

Ao Prof. Jorge Enrique Mendoza Posada, pelo respeito e pelas influências na minha

militância.

À Profa. Dra. Iris Amâncio, pelo carinho e pelo incentivo nesta trajetória.

Aos sujeitos da pesquisa, por terem colaborado com os seus depoimentos.

Ao Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford, pela concessão da

bolsa de estudos.

À equipe da Fundação Carlos Chagas, pelo acompanhamento realizado durante todo o

processo do mestrado.

Ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo (PUC-SP), pela acolhida e pela maneira respeitosa de lidar com os

alunos.

À Diretoria de Gestão da Informação e Pesquisa (DIP), da Subsecretaria de Atendimento às

Medidas Socioeducativas (Suase) da Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais

(Seds), por permitirem a realização da pesquisa de campo.

Aos Programas de Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais – Campus Contagem e Coração Eucarístico/BH – por terem contribuído no meu

processo de formação profissional e por sempre me receberem com respeito e carinho.

Ao Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead) e ao Serviço de Apoio à Reintegração

Familiar (Sarf), pela confiança, compreensão e apoio, que colaboraram para o meu

amadurecimento profissional e organização para o início do mestrado.

A Giana Késia, Silvério Rodrigues, Nayana Souza, Cláudia Silva, Adalete Paxeco, Patrícia da

Silva Pinto, Sinval Guedes, Milene Garcia, Lucélia Ferreira, Leandra Baquião, Aracéli Vieira,

Leandro Moreira, Júnia Costa, Evandro Passos, Rozangela Leite, Denílson Tourinho,

Anderson Feliciano, Wanderley dos Santos, Fernanda Azevedo, Ricardo Vidal, Felipe

Augusto (Bobina), Lindomar Sebastião, Renato, Clair, Li, Nikka, Moyses (A 286), Lindomar

3L, PMC, DJ Erick 12, DJ ACoisa, Alessandro Buzo, King Nino Brown (Zulu Nation Brasil),

Nelson Triunfo (Casa do Hip Hop de Diadema/SP), Vespa e Alan. A cada um, por uma razão

especial direta e/ou indireta neste trabalho e/ou na minha trajetória de vida.

À cultura Hip Hop e à literatura marginal, por terem possibilitado encontros e reencontros

com vários rappers, poetas, poetizas, B. Boys, B. Girls, DJs, grafiteiros, organizadores de

eventos e pesquisadores da área do Hip Hop. E, também, por terem contribuído na minha

leitura de vida e de mundo.

RESUMO

ARRUDA, Daniel Péricles. Espelho dos invisíveis: o RAP e a poesia no trabalho prático-

reflexivo com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação em Belo

Horizonte/MG. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São

Paulo, 2012.

Esta dissertação teve por finalidade apreender a relação do adolescente em cumprimento de

medida socioeducativa de internação com as oficinas de RAP e de poesia, tendo em vista o

uso dessas artes como instrumento socioeducativo e como caminho para possibilitar a

comunicação, a reflexão e a efetivação dos objetivos da medida. Trata-se de uma análise ex-

post-facto sobre as oficinas de RAP e de poesia realizadas nos anos de 2007 a 2010 com

adolescentes que estavam em cumprimento de medida socioeducativa de internação, no

Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead), uma das unidades que executa a medida a

adolescentes do sexo masculino, em Belo Horizonte/MG. Para a realização deste estudo foi de

suma importância a análise de todos os registros feitos no período de 2007 a 2010, como

filmagens, fotos, produção de letras de RAP e de poesias dos adolescentes, relatórios,

prontuários, anotações do diário de campo, etc. Foram entrevistados: um adolescente e dois

jovens adultos que participaram das oficinas quando adolescentes, com o objetivo de

apreender os resultados das oficinas, na perspectiva dos seus sujeitos; dois profissionais que

acompanharam essa prática de trabalho com os adolescentes; e um DJ, por ser uma das

referências mais antigas da cultura Hip Hop no estado de Minas Gerais. As entrevistas

realizadas com os profissionais tiveram por objetivo a apreensão dos significados que os

mesmos atribuíram à sua realização. E, a entrevista com o DJ, deu-se em razão dele poder

subsidiar a apreensão histórica da influência do Hip Hop na cidade e em sua relação com o

adolescente. O percurso analítico realizado demonstrou que as oficinas de RAP e de poesia

podem propiciar a apreensão e o trato de questões objetivas e subjetivas dos adolescentes,

relacionadas à sua vida e à medida socioeducativa de internação que estão vivenciando, com

maior aproximação de suas realidades.

Palavras-chave: Adolescente; Medidas socioeducativas; Violência; Invisibilidade; Hip Hop.

ABSTRACT

ARRUDA, Daniel Péricles. Mirror of invisible: the RAP and the poetry in the practical

reflexive work with teenagers in fulfillment of measurable social-education internment in

Belo Horizonte/MG. Dissertation (Master’s Degree) – Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo, São Paulo, 2012.

This dissertation had the goal of apprehend the relation of the teenager in fulfillment of

measurable social-educational internment with of the RAP and of the poetry, in view of the

use of this art as a socio-educational tool and as a way to enable the communication, the

reflection and the realization of the objectives. It is an analysis ex-post-facto about the

realized RAP and poetry workshops in the years 2007 to 2010 with teenagers that were in

fulfillment of measurable social-educational internment Center of Adolescent Treatment

(Cead) – Centro de Atendimento ao Adolescente in Portuguese. This is one of the units that

execute the social-educational measure of internment to male teenagers at Belo

Horizonte/MG. For the realization of this study, was of big importance the analysis of all

registers that were made in the period of 2007 to 2010, and it was: footages, photos,

production of RAP lyrics and poetry lyrics of the teenagers, reports, records, annotations in

the field diary, etc. Were also interviewed a teenager and two young adults that, when

teenagers, participated in the workshops; two professionals that accompanied this practice of

work with the teenagers and one DJ for being one of the oldest references of the Hip Hop

Culture at Minas Gerais state. The realized interviews with a teenager and two young adults

aimed to apprehend the resulting of the workshops in the perspective of their subjects. The

realized interviews with the professionals have had as objective the apprehension of the

meanings that they attributed to its realization. And, the interview with the DJ, was in reason

of him subsidize the historical apprehension of the influence of the Hip Hop at the city and in

your relation with the teenager. The realized analytical course demonstrated that the RAP and

the poetry workshops can propitiate the apprehension and the tract of objective and subjective

questions of the teenagers, related to your lives and to the measurable social-educational of

internment that they are experiencing, with bigger approximation to their reality.

Keywords: Adolescent; Measurable social-education; Violence; Invisibility; Hip Hop.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Local onde aconteceu a primeira oficina ......................................................... 45

Figura 2 – Mensagem de entrada da oficina ...................................................................... 47

Figura 3 – Adolescente participando da oficina ................................................................ 48

Figura 4 – Adolescente participando da oficina ................................................................ 48

Figura 5 – Adolescente participando da oficina ................................................................ 50

Figura 6 – Gráfico da evolução da privação e da restrição de liberdade no Brasil ........... 69

Figura 7 – King Nino Brown e Áfrika Bambaataa, na Casa do Hip Hop de Diadema/SP,

em 2003 .............................................................................................................................. 86

Figura 8 – DJ ACoisa, em plena performance .................................................................. 89

Figura 9 – DJ Erick 12, em seu estúdio ............................................................................. 89

Figura 10 – Rapper Moyses, do grupo A 286, durante show ............................................ 90

Figura 11 – B. Boy Alan, em plena performance .............................................................. 91

Figura 12 – Graffiti feito por Vespa, representando o rapper Sabotage, na Casa do Hip

Hop, em Diadema/SP ......................................................................................................... 92

Figura 13 – DJ ACoisa, no evento Hip Hop na Veia Pela Vida ........................................ 97

Figura 14 – Cartaz do Sarau Tarde Poética ....................................................................... 100

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Quadro de funcionários do Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead) ......34

Tabela 2 – Modalidades de invisibilidade ............................................................................64

Tabela 3 – Distribuição percentual da idade dos adolescentes atendidos na medida

socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de Atendimento às Medidas

Socioeducativas (Suase) ........................................................................................................70

Tabela 4 – Distribuição percentual do sexo dos adolescentes atendidos na medida

socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de Atendimento às Medidas

Socioeducativas (Suase) ........................................................................................................70

Tabela 5 – Distribuição percentual da renda familiar (per capita) dos adolescentes

atendidos na medida socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de

Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase) ...............................................................71

Tabela 6 – Distribuição percentual da situação profissional dos adolescentes atendidos na

medida socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de Atendimento às

Medidas Socioeducativas (Suase) .........................................................................................71

Tabela 7 – Distribuição percentual da raça/cor autodeclarada dos adolescentes atendidos

na medida socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de Atendimento às

Medidas Socioeducativas (Suase) .........................................................................................72

Tabela 8 – Distribuição percentual do estado civil dos adolescentes atendidos na medida

socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de Atendimento às Medidas

Socioeducativas (Suase) ........................................................................................................73

Tabela 9 – Distribuição percentual da escolaridade dos adolescentes atendidos na medida

socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de Atendimento às Medidas

Socioeducativas (Suase) ........................................................................................................73

Tabela 10 – Distribuição percentual do ato infracional cometido pelos adolescentes

atendidos na medida socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de

Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase) ...............................................................74

Tabela 11 – Categorização dos atos infracionais praticados pelos adolescentes atendidos

na medida socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de Atendimento às

Medidas Socioeducativas (Suase) .........................................................................................75

Tabela 12 – Distribuição percentual do uso autodeclarado de álcool dos adolescentes

atendidos na medida socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de

Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase) ...............................................................76

Tabela 13 – Distribuição percentual do uso autodeclarado de tabaco dos adolescentes

atendidos na medida socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de

Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase) ...............................................................77

Tabela 14 – Distribuição percentual do uso autodeclarado de maconha dos adolescentes

atendidos na medida socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de

Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase) ...............................................................77

Tabela 15 – Distribuição percentual do uso autodeclarado de cocaína dos adolescentes

atendidos na medida socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de

Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase) ...............................................................77

Tabela 16 – Distribuição percentual do uso autodeclarado de crack dos adolescentes

atendidos na medida socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de

Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase) ...............................................................78

Tabela 17 – Distribuição percentual do uso autodeclarado de solvente dos adolescentes

atendidos na medida socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de

Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase) ...............................................................78

Tabela 18 – Distribuição percentual do uso autodeclarado de psicofármacos dos

adolescentes atendidos na medida socioeducativa de internação, em 2010, na

Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase) ....................................79

Tabela 19 – Distribuição percentual do uso autodeclarado de drogas sintéticas dos

adolescentes atendidos na medida socioeducativa de internação, em 2010, na

Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase) ....................................79

Tabela 20 – Sistematização de todas as tabelas referentes à autodeclaração do uso de

alguma substância dos adolescentes atendidos na medida socioeducativa de internação,

em 2010, na Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase) ...............80

Tabela 21 – Descrição das principais oficinas de RAP e de poesia realizadas no Centro

de Atendimento ao Adolescente (Cead) ................................................................................99

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 14

Capítulo 1

O CONTEXTO DA AÇÃO QUE NORTEOU A PESQUISA ....................................... 19

1.1 A medida socioeducativa de internação .................................................................... 20

1.2 Histórico do Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead) .................................. 29

1.3 O trabalho desenvolvido pelo Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead) ..... 31

1.4 Reflexões acerca do cotidiano institucional ............................................................... 37

1.5 A construção de uma metodologia de trabalho desenvolvida por meio do RAP e

da poesia ............................................................................................................................. 40

1.6 Procedimentos facilitadores do uso da metodologia ................................................. 51

Capítulo 2

A RELAÇÃO ATO INFRACIONAL E VIOLÊNCIA .................................................. 59

2.1 Violência, invisibilidade e cultura: como entendê-las? ............................................ 61

2.2 Quem são os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de

internação? ......................................................................................................................... 68

Capítulo 3

A PESQUISA: O RAP E A POESIA COMO MEDIADORES DA TEORIA NA

PRÁTICA ........................................................................................................................... 82

3.1 A arte ............................................................................................................................ 82

3.2 A cultura Hip Hop ....................................................................................................... 84

3.3 O RAP e a poesia como discurso político e conhecimento crítico ........................... 95

3.4 A pesquisa ex-post-facto, seu espaço e os procedimentos metodológicos ................ 98

3.5 As apreensões obtidas da relação do adolescente em cumprimento de medida

socioeducativa de internação e dos profissionais do Centro de Atendimento ao

Adolescente (Cead) com o RAP e a poesia ...................................................................... 107

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 122

REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 126

ANEXOS ............................................................................................................................ 135

Anexo A - Poesia – Ver e não ser visto – Autoria: Daniel Péricles Arruda (Vulgo

Elemento) ..................................................................................................................... 135

Anexo B - Letra de RAP – A lágrima de um palhaço – Autoria: Daniel Péricles Arruda

(Vulgo Elemento) ........................................................................................................ 136

Anexo C - Letra de RAP – O bagulho é doido – Autoria: MV Bill............................. 138

Anexo D - Letra de RAP – Realidade – Autoria: Jibagoo e outros ............................. 142

Anexo E - Letra – Infinito particular – Autoria: Marisa Monte ................................... 146

14

INTRODUÇÃO

Uma História

Você tá ligado que o mundo é isso aí

Vamos curtir o RAP, vamos ouvir

A vida é embaçada, se eu fosse um vento

O vento é uma vida que te leva ao pensamento

Fico olhando que eu tô ficando louco

Tipo assim, como se fosse um poço

Os meus pais não vêm aqui me ver

Fico bolado e começo a sofrer

Penso em matar, penso em morrer

Penso em salvar, penso em viver

Na vida do crime eu entrei muito cedo

Achava que era o tal só pra mim ter conceito

Traficava, fumava um, que prejuízo

Na minha infância perdi vários amigos

Mas é Deus o meu grande amigo

Porque sempre está comigo

Refrão:

Quero que a minha história tenha um final feliz

Final feliz, final feliz

Um final feliz é um novo começo

Levar a minha vida e corrigir os meus erros

A vida que eu levo não é fácil, não

Uma rapa de treta tenho no coração

Morar em um abrigo amanhã, quem sabe?!

Ficar longe da bandidagem

Arrumar um trampo e voltar a estudar

É melhor do que cheirar e roubar

Pois sei que no presídio não vai ser bom

Quero correr atrás e investir no meu dom

Cantar e dizer o que eu vivo

Dizer o que eu penso e o que eu sinto

No mundão, família e diversão

Na escola e numa profissão

Sangue bom, fico por aqui, um abraço

Tenha fé em Deus e valorize o seu espaço

Refrão:

Quero que a minha história tenha um final feliz

Final feliz, final feliz

(Letra de RAP escrita por um adolescente, sujeito da pesquisa)

As palavras, as rimas e os versos, ao mesmo tempo em que chamam a atenção,

representam sentimentos, imaginações, vivências marcantes e sonhos almejados,

primordialmente, vindos de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de

internação, como demonstra o RAP acima, escrito por um adolescente, em 2007.

15

Ao abordar a sua história o jovem apresenta as várias faces de sua vida: como foi,

como é, e como ele gostaria que fosse. A letra trata de questões sobre o sofrimento, a

felicidade, a saudade, a família, a relação com Deus, os motivos que o levaram ao

envolvimento com a criminalidade e o que ele considera necessário para não voltar a praticar

atos infracionais, entre outras.

O RAP e a poesia1 são tidos como possibilidades de múltiplas expressões, que

demonstram ao sujeito a sua capacidade de manifestar sonhos, revoltas e rebeldias, e

inquietações subjetivas. Isto é, trata-se de uma possibilidade de manifestar a sua própria vida

e também uma forma de absorver a realidade.

Aqui, o uso do RAP e da poesia, como apoio ao trabalho socioeducativo, é discutido

numa perspectiva crítica2. Meu intuito é apreender os pontos relevantes dessa abordagem para

a construção de uma metodologia de trabalho com adolescentes que cumprem medida

socioeducativa de internação, considerando três categorias essenciais: cultura, violência e

invisibilidade. A cultura, como formação de valores e de constituição identitária; a violência,

tendo em vista a prática do ato infracional como uma de suas modalidades de expressão; e a

invisibilidade, como forma de ver (ou não ver) o outro como tal.

Dessa maneira, este estudo teve por finalidade apreender a relação do adolescente em

cumprimento de medida socioeducativa de internação com as oficinas de RAP e de poesia,

considerando o uso dessas artes como instrumento socioeducativo e como uma metodologia

para possibilitar a comunicação, a reflexão e a efetivação dos objetivos da medida. E,

também, como apoio para a leitura e para a ação direta dos profissionais da Comunidade

Socioeducativa3.

1 A sigla RAP vem do inglês rhythm and poetry, ou seja, ritmo e poesia. No Brasil, alguns a

consideram também como Revolução Através das Palavras. Assim, o RAP é constituído de poesia, mas cabe ressaltar que durante o trabalho serão mencionados os termos RAP e poesia, devido à metodologia desenvolvida e aplicada, e por considerar as especificidades de cada um deles, uma vez que podemos ter a poesia independentemente do RAP. A poesia é referenciada por suas várias linhas, principalmente, pela literatura marginal, conhecida e/ou chamada também de literatura periférica, literatura suburbana, literatura do oprimido ou literatura do “excluído”. 2 O sentido de perspectiva crítica assumido nesta dissertação é o da dialética marxista – a leitura

racional dos fatos, com vistas à superação de seus condicionamentos e limites, por meio do desvelamento de suas determinações sócio-históricas. Ou seja: “Não se trata, como pode parecer a uma visão vulgar de ‘crítica’, de se posicionar frente ao conhecimento existente para recusá-lo ou, na melhor das hipóteses, distinguir nele o ‘bom’ do ‘mau’. Em Marx, a crítica do conhecimento acumulado consiste em trazer ao exame racional, tornando-os conscientes, os seus fundamentos, os seus condicionamentos e os seus limites – ao mesmo tempo em que se faz a verificação dos conteúdos desse conhecimento a partir dos processos históricos reais.” (NETTO, 2009, p. 6) 3 Segundo o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), a Comunidade

Socioeducativa “é composta pelos profissionais e adolescentes das Unidades e/ou programas de atendimento socioeducativo, [que] opera, com transversalidade, todas as operações de deliberação, planejamento, execução, monitoramento, avaliação e redirecionamento das ações, que devem ser

16

Por se tratar de um estudo ex-post-facto 4

, ou seja, “dizer sobre um fato ocorrido”,

neste caso, as oficinas de RAP e de poesia, realizadas no Centro de Atendimento ao

Adolescente (Cead) nos anos de 2007 a 2010, não aponto hipóteses, mas trago alguns

pressupostos para melhor compreensão de como a questão se colocava na época:

1 – O adolescente compreenderia o RAP e a poesia como uma “trilha sonora” de sua

vida, com potencial transformador, mas não suficiente para um direcionamento prático;

2 – A invisibilidade não seria dada, nem estaria presente em todos os níveis de vida do

adolescente;

3 – A violência seria um meio (e não um fim), pelo qual os adolescentes expressariam

suas angústias, desejos e frustrações, no contexto desigual da sociedade brasileira – assim, a

análise de suas “trilhas sonoras”, possibilitaria descobrir e diferenciar questões que teriam

determinado sua prática infracional e, a partir daí, construir estratégias para superá-las;

4 – Uma aproximação do adolescente, para que seja eficaz no alcance dos objetivos

socioeducativos, teria que focar atividades que despertassem não apenas o seu interesse, mas a

sua capacidade de crítica em relação à sociedade e à sua própria vida.

Para melhor nortear as reflexões sobre o tema, a pesquisa também se apropriou das

seguintes indagações: como o adolescente em cumprimento de medida socioeducativa de

internação compreende e materializa as reflexões possibilitadas pelas oficinas em suas

relações com a violência? Como as atividades com os adolescentes, por meio de oficinas,

podem contribuir no processo de superação de sua invisibilidade? Compreendendo que a

prática infracional é uma expressão da cultura da violência, como o uso do RAP e da poesia

pode lidar com essa questão? Que metodologia poderia ser utilizada de forma a despertar o

interesse dos adolescentes e, ao mesmo tempo, desenvolver sua capacidade de crítica em

relação à sociedade e à sua própria vida?

A ida a campo por ocasião deste estudo, para realização de entrevistas semi-

estruturadas, foi de suma importância para apreender – do ponto de vista dos sujeitos – a

importância do RAP e da poesia como suportes de uma metodologia no processo

socioeducativo.

Por questões éticas, o adolescente e os dois jovens adultos (egressos da medida

socioeducativa de internação) entrevistados serão mencionados aqui por nomes de planetas:

compartilhadas, rotativas, solidárias, tendo como principal destinatário o coletivo em questão, contemplando as peculiaridades dos participantes.” (SINASE, 2007, p.73) 4 Polanski (s.d.) informa que a expressão ex-post-facto foi utilizada pela primeira por Chapin (CHAPIN

E QUEEN, 1937) e, posteriormente, por Greenwood (1945) e Chapin (1947, 1955).

17

Júpiter, de 20 anos; Saturno, de 20 anos; e Marte, de 16 anos5. Além de preservar a identidade

dos sujeitos da pesquisa, sugeri nomes de planetas para fazer alusão ao movimento do sistema

solar e aos mistérios que os norteiam – cabendo a mim, então, tentar desvendá-los.

Foram entrevistados também dois profissionais da unidade que acompanharam as

oficinas naquele período. Ambos foram escolhidos por terem sensibilidade à questão e por

conhecerem a trajetória, os desafios e os avanços do Sistema Socioeducativo de Minas Gerais,

há anos. O primeiro será mencionado pela denominação Lua e o segundo, Sol. Da área do Hip

Hop, entrevistei o DJ ACoisa, pelo seu vasto conhecimento cultural e social do trabalho com

jovens, por meio dessa cultura.

Este estudo apoiou-se nas categorias do método dialético – totalidade, contradição e

mediação – na perspectiva assumida na teoria social de Karl Marx, cujas reflexões foram

norteadas pelas leituras feitas de autores, como Frederico (2005, 2006), Goldmann (1972,

1979), Lukács (1978) entre outros6.

Esta dissertação de mestrado está organizada em cinco partes: introdução, que tem

como objetivo delinear os primeiros movimentos que realizei como base para iniciar a

pesquisa – nesse movimento, parti da ideia de que o RAP e a poesia possibilitam espaços de

expressão dos sujeitos e de sua capacidade de apreender a realidade; três capítulos,

explicitados a seguir; e considerações finais.

No primeiro capítulo – O Contexto da Ação que Norteou a Pesquisa –, apresento

alguns apontamentos sobre a medida socioeducativa de internação; o histórico do Centro de

Atendimento ao Adolescente (Cead), isto é, como foi criado e suas modalidades de gestão; o

trabalho socioeducativo desenvolvido pela unidade; reflexões acerca do cotidiano

institucional, fazendo uma análise crítica dessa modalidade de medida privativa de liberdade;

a construção de uma metodologia de trabalho desenvolvida, por meio do RAP e da poesia,

5 Os nomes dos autores das letras de RAP e de poesia não serão revelados, embora se tratem de

produções próprias. Todas estão relacionadas aos direitos autorais, Lei 9.610/1998, nos termos do artigos 11, 24 e 108. Optei também por não revelar os nomes, em conformidade com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069/1990, artigo 247, em virtude de um dos sujeitos da pesquisa ter idade inferior a 18 anos. 6 É importante destacar que ao longo deste trabalho utilizarei as notas de rodapé para relatar,

esclarecer ou mencionar pontos importantes e detalhes ocorridos durante o meu diálogo com os autores, considerando que “nenhuma pessoa culta pode sentir-se perturbada com a existência de uma nota em tipo miúdo ao fundo de uma página, e todas as pessoas, sejam elas profissionais ou leigas, precisam conhecer as credenciais de um fato quando este é mencionado. As notas de rodapé são também um índice expressivo do cuidado posto no estudo de um determinado assunto.” (GALBRAITH apud NETTO, 2009a, p. 9). Assim, utilizarei os nomes completos das instituições, dos setores, etc. acompanhados com a sigla entre parênteses para melhor compreensão do leitor, com exceção das siglas/categorias: RAP – Rhythm and Poetry (Ritmo e Poesia); DJ – Disc-Jóquei (sem tradução literal); e MC – Master of Ceremony (Mestre de Cerimônia), que são mencionadas com mais frequência neste trabalho.

18

detalhando como ocorreram as oficinas; e, por fim, os procedimentos facilitadores do uso da

metodologia – sendo um subsídio detalhado para a sua aplicação.

No segundo capítulo – A Relação Ato Infracional e Violência –, abordo as

peculiaridades desse debate e os fatores produtivos e reprodutivos, bem como o estudo

realizado em relação às categorias cultura, violência e invisibilidade; e, ainda, analiso o perfil

dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação no Brasil,

detendo-me, especificamente, em Minas Gerais, com foco em Belo Horizonte, que se

constituiu o espaço maior, no qual a pesquisa se realizou.

No terceiro e último capítulo – A Pesquisa: o RAP e a poesia como mediadores da

teoria na prática –, apresento algumas reflexões sobre a arte; ressalto a história da cultura Hip

Hop; analiso o RAP como discurso político e conhecimento crítico, e exponho a pesquisa

realizada e as apreensões obtidas da relação do adolescente em cumprimento de medida

socioeducativa de internação e dos profissionais do Centro de Atendimento ao Adolescente

(Cead) com o RAP e a poesia.

Por fim, nas considerações finais, retomo alguns aspectos deste trabalho e proponho

algumas reflexões acerca da pesquisa realizada.

Há que se ressaltar que não pude deixar de receber o leitor com epígrafes, no início de

cada capítulo e de cada subitem desta dissertação, que traduzem parte do conteúdo exposto,

sendo também, as frases emergentes de cada etapa do processo de produção acadêmica.

19

Capítulo 1

O CONTEXTO DA AÇÃO QUE NORTEOU A PESQUISA

Quase nenhuma ação humana tem por sujeito um indivíduo isolado.

(GOLDMANN, 1979, p. 18)

Este capítulo apresenta alguns passos importantes para o esclarecimento desta

produção acadêmica, intitulada Espelhos dos Invisíveis: o RAP e a poesia no trabalho

prático-reflexivo com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de

internação.7 A seguir, apresento, sucintamente, a trajetória acadêmica que me direcionou a

essa temática, o meu trabalho no Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead), e as razões

do trabalho que desenvolvi, por meio do RAP e da poesia, com os adolescentes em

cumprimento da medida socioeducativa de internação.

Em 2007, iniciei minha experiência na área da medida socioeducativa de internação

como estagiário de Serviço Social, no Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead), em

Belo Horizonte/MG, quando dei início às oficinas de RAP e de poesia com os adolescentes,

as quais tiveram continuidade após a minha efetivação, em 2008. Naquela época, estava no

sexto período do curso de Serviço Social, da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais (PUC-MG), campus Contagem. Concomitantemente, participei de várias discussões na

cultura Hip Hop, no Movimento Negro e no Movimento Estudantil, além de participar do

Grupo de Estudos Afrobrasileiros (Geab), vinculado à Sociedade Inclusiva, programa da Pró-

reitoria de Extensão, da PUC-MG.

Nos primeiros dois meses de estágio, minhas atividades não tinham cunho de pesquisa,

embora eu já fizesse anotações no meu diário de campo, em relação aos aspectos de interesse,

captados na minha relação com os adolescentes. A prática como estagiário serviu-me de base

para a continuidade de meu trabalho com os adolescentes.

O primeiro movimento com o RAP se fez no mês de julho de 2007. Todos os dias

aconteciam o Bom Dia, momento em que um profissional, acompanhado ou não de um

adolescente, fazia a leitura de texto, poema ou encenação teatral curta, antes do café da

7 Naquele contexto, os adolescentes utilizavam o espelho, mediante solicitação do agente

socioeducativo, que ficava na recepção. Tal procedimento era realizado por medida de segurança e por razões de estrutura física da unidade. Outra forma de se olharem, era pelos vidros das janelas da sala dos técnicos quando atravessavam ou estavam no pátio. As janelas tinham uma película escura na superfície, do tipo insulfilm, possibilitando, então, o reflexo. Um dia, ao ver um adolescente se arrumando diante da janela, eu escrevi a poesia “Ver e não ser visto” (Anexo A). Assim, Espelho dos Invisíveis chama a atenção para o estudo da invisibilidade e seus fatores.

20

manhã. A atividade era organizada mediante escala e todos da comunidade educativa

participavam. No meu dia de fazer o Bom Dia, levei caixa de som, discman, cabo de áudio e

microfone, e montei, antes de eles chegarem à cantina, local onde tomavam café e acontecia a

atividade. Após chegarem, disse a eles que iria fazer um Bom Dia de forma diferente. Então,

comecei a cantar a música A Lágrima de um Palhaço (Anexo B) e, enquanto eu cantava o

RAP, prestava a atenção nas expressões faciais, que eram várias: de surpresa, de choque, de

sorriso, de atenção; no entanto, todos davam conta de sustentar o olhar no momento em que

eu os fixava. A música tinha como temas a paz, a esperança e a possibilidade de superação

dos problemas. Ao final, eles aplaudiram e foram liberados para o café da manhã.

Mais tarde, no pátio, muitos falavam do Bom Dia e se dirigiam a mim: “Você canta

direitim”; “Você tem CD?; Grava pra mim?”. Percebi que eles levaram tudo como surpresa e

não como enganação, uma vez que no período de dois meses de minha permanência na

instituição apenas alguns sabiam que eu era rapper. O RAP já existia na instituição, mas não

era desenvolvido com os adolescentes. A partir daí, com apoio institucional, consegui

desenvolver as oficinas de RAP e de poesia.

Nesta dissertação, para analisar o contexto da ação realizada, considerei importante

fazer, inicialmente, algumas observações sobre a natureza da medida socioeducativa de

privação de liberdade e o histórico do Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead), para

que ficassem claros os referenciais sobre os quais me apoiei para definir a forma como

desenvolvi as oficinas.

1.1 A medida socioeducativa de internação

Para proceder a uma tal reflexão e se deixar contagiar por uma perspectiva

inovadora e radicalmente democrática, é preciso antes de tudo se

despojar do sentimento de vingança, enquanto marca da cultura

e razão punitiva existente no Brasil.

(SALES, 2007, p. 49)

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é um instrumento jurídico, que norteia

os direitos e deveres de crianças e de adolescentes no Brasil, na perspectiva da proteção

21

integral8. Mesmo com a necessidade da efetivação prático-operacional de alguns pontos

rezados no ordenamento jurídico, é notório o posicionamento humanitário, digno e condizente

com os direitos humanos que se contrapõe às concepções tradicionalistas, entendidas como

estigmatizantes, conforme o Código de Menores Mello Mattos9.

Souza (2006) aponta a mudança de termos nesse processo de desestigmatização: são

adolescentes (em vez de menor), que são apreendidos (em vez de presos) pela prática de atos

infracionais (em vez de crimes). Essa mudança de termos não significou diretamente uma

mudança de prática, na medida em que algumas ainda expressam ideias pré-concebidas, por

exemplo, o movimento da sociedade pela redução da idade de imputabilidade penal e um

sentimento de vingança difuso, que culpabiliza todos por ações de alguns. Isso é o que Heller

(1972, p. 34) chama de ultrageneralização:

[...] os juízos ultrageneralizadores são todos eles juízos provisórios que a prática

confirma ou, pelo menos, não refuta, durante o tempo em que, baseados neles,

formos capazes de atuar e de nos orientar [...]. Isso poderá ser feito quando o juízo

se apoiar na confiança, mas não quando se basear na fé. Os juízos provisórios que se

enraízam na particularidade e, por conseguinte, se baseiam na fé são pré-juízos ou

preconceitos.

Esse sentimento de vingança (SALES, 2007) propicia pensamentos vazios de

humanidade e repletos de uma lógica punitiva que só muda o problema de lugar. Ele não

considera a história, os motivos, o momento vivenciado pelo adolescente e as questões

pertinentes ao seu desenvolvimento.

É comum ouvir críticas “acríticas” nos noticiários ou nas conversas tecidas na vida

cotidiana acerca da redução da idade de imputabilidade penal ou nos questionamentos

relacionados ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), considerando que este “protege

bandidos” ou que “passa a mão na cabeça do menor”. De fato, como comenta Chauí (1989, p.

20):

8 O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) contrapõe as ideias baseadas na Doutrina da

Situação Irregular – destinada a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade – com a Doutrina da Proteção Integral a todas as crianças e adolescentes no País, considerados sujeitos de direitos. O reconhecimento dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil ocorreu a partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e foi confirmada pela Lei 8.069/1990. O Estatuto da Criança e do Adolescente: “Passa a vigorar, pela nova legislação, a chamada doutrina de proteção integral que, partindo dos direitos das crianças reconhecidos pela ONU [Organização das Nações Unidas], procura garantir a satisfação de todas as necessidades das pessoas de menor idade, nos seus aspectos gerais, incluindo-se os pertinentes à saúde, educação, recreação, profissionalização, etc.” (CURY apud BAPTISTA, 2000, p. 15). Para essas palavras, Cury baseia-se na Convenção Internacional acerca dos Direitos Humanos da Criança, ratificada de forma unânime pela Assembleia Geral das Nações Unidas, no ano de 1989. 9 Vide Decreto 17.943-A, de 12/10/1927, e Lei 6.697/1979. Instrumentos jurídicos voltados ao

atendimento à criança e ao adolescente em situação irregular até 1990.

22

A prática de declarar direitos significa, em primeiro lugar, que não é um fato óbvio

para todos os homens que eles são portadores de direitos e, por outro lado, significa

que não é um fato óbvio que tais direitos devam ser reconhecidos por todos. A

declaração de direitos inscreve os direitos no social e no político, afirma sua origem

social e política e se apresenta como objeto que pede o reconhecimento de todos,

exigindo o consentimento social e político.

A medida socioeducativa é uma providência jurídica, de cunho socioeducativo,

destinada a adolescentes de 12 a 18 anos incompletos que cometeram ato infracional10

. De

acordo com o artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), elas são:

I Advertência;

II Obrigação de reparar o dano;

III Prestação de serviços à comunidade;

IV Liberdade assistida;

V Inserção em regime de semi-liberdade;

VI Internação em estabelecimento educacional;

VII Qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI11

§ 1o A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-

la, as circunstâncias e a gravidade da infração. § 2

o Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de trabalho

forçado. § 3

o Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão

tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições.

A medida socioeducativa de internação pode ser aplicada somente nas condições

apontadas no artigo 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):

I Tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a

pessoa;

II Por reiteração no cometimento de outras infrações graves;

III Por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.

§ 1o O prazo de internação na hipótese do inciso III deste artigo não poderá ser

superior a três meses, devendo ser decretada judicialmente após o devido processo

legal.

§ 2o Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida

adequada.

10

De acordo com o artigo 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.” 11

Art. 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II - orientação, apoio e acompanhamento temporários; III - matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.” Os outros incisos desse mesmo artigo são: VII - acolhimento institucional; VIII - inclusão em programa de acolhimento familiar; IX - colocação em família substituta.

23

Essa medida segue o princípio da brevidade e da excepcionalidade de sua aplicação,

em razão da condição peculiar de desenvolvimento do adolescente. A brevidade refere-se à

questão do tempo de sua aplicação, principalmente, porque o tempo do adolescente inclui o

ritmo de seu desenvolvimento, que é diferenciado do indivíduo adulto. A excepcionalidade,

pelo reconhecimento de que o adolescente vive uma fase de construção de sua personalidade

– compreendida pelo conjunto dos elementos bio-fisio-socio-psicológios particulares que

nortearão o desenrolar de sua vida –, o que deve determinar, sempre que possível, o respeito

ao seu direito à convivência familiar e comunitária. Assim, conforme o artigo 121 do Estatuto

da Criança e do Adolescente (ECA):

Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios

de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em

desenvolvimento.

§ 1o Será permitida a realização de atividades externas, a critério da equipe técnica

da entidade, salvo expressa determinação judicial em contrário.

§ 2o A medida não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser

reavaliada, mediante decisão fundamentada, no máximo a cada seis meses.

§ 3o Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos.

§ 4o Atingido o limite estabelecido no parágrafo anterior, o adolescente deverá ser

liberado, colocado em regime de semi-liberdade ou de liberdade assistida.

§..5o A liberação será compulsória aos vinte e um anos de idade.

§ 6o Em qualquer hipótese a desinternação será precedida de autorização judicial,

ouvido o Ministério Público.

§ 7o A determinação judicial mencionada no § 1

o poderá ser revista a qualquer

tempo pela autoridade judiciária.

Em 18 de janeiro de 2012, foi sancionada a Lei 12.594, que institui o Sistema

Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)12

, que regulamenta a execução das

medidas socioeducativas voltadas para adolescentes que pratiquem atos infracionais.

A lei contém 90 artigos, divididos em três títulos. O Título I – Do Sistema Nacional de

Atendimento Socioeducativo (Sinase) – traz o Capítulo I, que aborda as disposições gerais da

referida lei, onde destaco o parágrafo segundo do artigo primeiro:

§ 2o Entendem-se por medidas socioeducativas as previstas no art. 112 da Lei no

8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), as quais têm

por objetivos: I - a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas

do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação;

II - a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e

12

Chamo a atenção do leitor, pois farei menção à Lei 12.594, de 18/1/12, que entrou em vigor após 90 dias de sua publicação, em 18/4/12, e também utilizarei seu documento original, Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), posto a público em 2004, que serviu de guia na implementação e na operacionalização de ações, em prol do atendimento aos adolescentes autores de atos infracionais.

24

sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento;.e

III - a desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença

como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos,

observados os limites previstos em lei.

O Capítulo II, que mostra as competências da União, dos estados e dos municípios; o

Capítulo III, que apresenta as articulações necessárias e os aspectos relevantes para a

elaboração do Plano de Atendimento Socioeducativo; o Capítulo IV, que aborda questões

sobre a inscrição de programas de atendimento no Conselho Estadual ou Distrital da Criança e

do Adolescente, entre outras questões. Nesse capítulo, destaco o artigo 12:

Art. 12. A composição da equipe técnica do programa de atendimento deverá ser

interdisciplinar, compreendendo, no mínimo, profissionais das áreas de saúde,

educação e assistência social, de acordo com as normas de referência.

§ 1o Outros profissionais podem ser acrescentados às equipes para atender

necessidades específicas do programa.

§ 2o Regimento interno deve discriminar as atribuições de cada profissional, sendo

proibida a sobreposição dessas atribuições na entidade de atendimento.

§.3o O não cumprimento do previsto neste artigo sujeita as entidades de

atendimento, seus dirigentes ou prepostos à aplicação das medidas previstas no art.

97 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente

(ECA).

Ainda no capítulo IV, são abordadas também as competências dos Programas de Meio

Aberto e dos requisitos específicos para a inscrição de Programas de Privação de Liberdade

(Semiliberdade e Internação). O Capítulo V reza sobre a avaliação e a gestão do atendimento

socioeducativo; o Capítulo VI fala sobre a responsabilização dos gestores, operadores e

entidades de atendimento; e o Capítulo VII versa sobre o financiamento e as prioridades.

O Título II – Da Execução das Medidas Socioeducativas – apresenta o Capítulo I, que

mostra, nas disposições gerais, os princípios que regem a execução das medidas

socioeducativas; o Capítulo II, que aborda os procedimentos para jurisdicionar a execução das

medidas socieducativas; o Capítulo III, que aponta os direitos individuais, a saber:

Art. 49. São direitos do adolescente submetido ao cumprimento de medida

socioeducativa, sem prejuízo de outros previstos em lei: I - ser acompanhado por

seus pais ou responsável e por seu defensor, em qualquer fase do procedimento

administrativo ou judicial; II - ser incluído em programa de meio aberto quando

inexistir vaga para o cumprimento de medida de privação da liberdade, exceto nos

casos de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa,

quando o adolescente deverá ser internado em Unidade mais próxima de seu local de

residência; III - ser respeitado em sua personalidade, intimidade, liberdade de

pensamento e religião e em todos os direitos não expressamente limitados na

sentença; IV - peticionar, por escrito ou verbalmente, diretamente a qualquer

autoridade ou órgão público, devendo, obrigatoriamente, ser respondido em até 15

(quinze) dias; V - ser informado, inclusive por escrito, das normas de organização e

funcionamento do programa de atendimento e também das previsões de natureza

disciplinar; VI - receber, sempre que solicitar, informações sobre a evolução de seu

25

plano individual, participando, obrigatoriamente, de sua elaboração e, se for o caso,

reavaliação; VII - receber assistência integral à sua saúde, conforme o disposto no

art. 60 desta Lei; e VIII - ter atendimento garantido em creche e pré-escola aos filhos

de 0 (zero) a 5 (cinco) anos.

Também compõe o Título II, o capítulo IV, que trata do Plano Individual de

Atendimento (PIA), do qual destaco os seguintes artigos:

Art. 52. O cumprimento das medidas socioeducativas, em regime de prestação de

serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade ou internação, dependerá

de Plano Individual de Atendimento (PIA), instrumento de previsão, registro e

gestão das atividades a serem desenvolvidas com o adolescente.

E o artigo 5313

: “O PIA será elaborado sob a responsabilidade da equipe técnica do

respectivo programa de atendimento, com a participação efetiva do adolescente e de sua

família, representada por seus pais ou responsável.” No atendimento em meio aberto, o Plano

Individual de Atendimento (PIA) deverá ser elaborado no prazo de até 15 dias a partir da data

de ingresso do adolescente no programa; já para o atendimento em meio fechado, o prazo é de

45 dias.

O Capítulo V apresenta as diretrizes da atenção integral à saúde de adolescentes em

cumprimento de medida socioeducativa e discorre sobre questões acerca do atendimento a

adolescentes com transtorno mental e com dependência de álcool e de substância psicoativa; o

Capítulo VI ressalta os pontos pertinentes da visita a adolescentes em cumprimento de medida

de internação, do qual cito o artigo 68: “É assegurado ao adolescente casado ou que viva,

comprovadamente, em união estável o direito à visita íntima.”14

; e o artigo 69: “É garantido

13

O artigo 41 da referida lei afirma que: “A autoridade judiciária dará vistas da proposta de plano individual de que trata o art. 53 desta Lei ao defensor e ao Ministério Público pelo prazo sucessivo de 3 (três) dias, contados do recebimento da proposta encaminhada pela direção do programa de atendimento.” Caso não seja impugnado o Plano Individual de Atendimento (PIA) será homologado. Há questionamentos acerca do prazo para a elaboração do Plano Individual de Atendimento (PIA). O tempo exigido deveria ser o tempo estipulado para o início de sua realização, pois, nós, profissionais que atuamos na área, sabemos que é preciso de um tempo maior para conquistar a confiança do adolescente, em alguns casos para localizar a família, etc. 14

A visita íntima, no sistema prisional, iniciou-se em meados da década de 1980, como uma forma de combater a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis. Em 2010, realizei um projeto socioeducativo, por meio da poesia – Projeto Reinvenção –, em parceria com o Programa de Reintegração Social do Egresso do Sistema Prisional de Contagem/MG (Presp), na Penitenciária de Segurança Máxima Nelson Hungria, em Contagem/MG, com um grupo de 12 pré-egressos que estavam cumprindo pena – educandos que estavam prestes a serem liberados ou a receberem alguma progressão de regime. Em uma oficina, cujo tema era família, um dos educandos me disse: “Pra gente, toda visita é íntima”, ou seja, para eles, independe que sejam visitados pela esposa ou pela namorada. Em outras palavras, o jovem quis dizer que toda visita é o momento íntimo de eles conversarem e trocarem afetos com os seus; e, para isso, é necessário privacidade. Faço essas colocações somente a título de reflexão, pois não pretendo mudar o foco do assunto. Na medida socioeducativa de internação, mesmo com as restrições apresentadas pela lei em questão, é sabido

26

aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação o direito de

receber visita dos filhos, independentemente da idade desses.”

O Capítulo VII traz os princípios das normas disciplinares, conforme o artigo 71:

Art. 71. Todas as entidades de atendimento socioeducativo deverão, em seus

respectivos regimentos, realizar a previsão de regime disciplinar que obedeça aos

seguintes princípios:

I - tipificação explícita das infrações como leves, médias e graves e determinação

das correspondentes sanções;

II - exigência da instauração formal de processo disciplinar para a aplicação de

qualquer sanção, garantidos a ampla defesa e o contraditório;

III - obrigatoriedade de audiência do socioeducando nos casos em que seja

necessária a instauração de processo disciplinar;

IV - sanção de duração determinada;

V - enumeração das causas ou circunstâncias que eximam, atenuem ou agravem a

sanção a ser imposta ao socioeducando, bem como os requisitos para a extinção

dessa;

VI - enumeração explícita das garantias de defesa;

VII - garantia de solicitação e rito de apreciação dos recursos cabíveis; e

VIII - apuração da falta disciplinar por comissão composta por, no mínimo, 3 (três)

integrantes, sendo 1 (um), obrigatoriamente, oriundo da equipe técnica.

Em seguida vêm as razões determinantes de sua não aplicação, conforme o artigo 75:

“Não será aplicada sanção disciplinar ao socioeducando que tenha praticado a falta: I - por

coação irresistível ou por motivo de força maior; II - em legítima defesa, própria ou de

outrem.”

Por fim, o Título II traz o Capítulo VIII, que apresenta a possibilidade de ofertas de

vagas do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Serviço Nacional de

Aprendizagem Comercial (Senac), Serviço Nacional de Aprendizagem Transporte (Senat) e

Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), por meio de articulações de operadores

dessas instituições com os gestores dos Sistemas de Atendimento Socioeducativo.

Já o Título III – Disposições Finais e Transitórias – ressalta aspectos de

regulamentação e de regularização de entidades, do qual destaco o artigo 83:

Os programas de atendimento socioeducativo sob a responsabilidade do Poder

Judiciário serão, obrigatoriamente, transferidos ao Poder Executivo no prazo

máximo de 1 (um) ano a partir da publicação desta Lei e de acordo com a política de

oferta dos programas aqui definidos.

E o artigo 84: “Os programas de internação e semiliberdade sob a responsabilidade

dos Municípios serão, obrigatoriamente, transferidos para o Poder Executivo do respectivo

Estado no prazo máximo de 1 (um) ano a partir da publicação desta Lei e de acordo com a

que as unidades precisarão de mudanças na estrutura arquitetônica, na cultura e na mentalidade institucional para a efetivação responsável desse direito.

27

política de oferta dos programas aqui definidos.” Além de trazer as alterações realizadas em

alguns artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

A partir dessa leitura acerca dos ordenamentos jurídicos que envolvem a medida

socioeducativa, apresentarei como é o seu funcionamento prático em Belo Horizonte/MG,

onde, a partir de dezembro de 2008, os casos de adolescentes que cometem atos infracionais

são apurados pelo Centro de Atendimento Integrado ao Adolescente Autor de Ato Infracional

(CIA/BH)15

.

De acordo com a Cartilha do CIA/BH, o atendimento é realizado da seguinte maneira:

o adolescente, apreendido em flagrante pela autoridade policial, por ter praticado ato

infracional, é encaminhado para o CIA/BH. Nesse primeiro momento, a autoridade policial

realiza as providências necessárias e convoca os pais e/ou responsáveis para comparecem ao

Centro, para ciência dos fatos e tomarem as providências que considerarem necessárias.

Posteriormente, o adolescente é encaminhado ao juiz de Direito da Vara Infracional para a

realização da audiência imediata, com a presença do promotor, do defensor público, do

advogado, dos pais e/ou responsáveis, em que o juiz determina as seguintes providências,

isoladas ou concomitantemente: 1) remissão16

; 2) arquivamento17

; 3) aplicação de medida

protetiva18

.

15

O Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional (CIA/BH) foi criado por meio da Resolução-Conjunta de 2 de setembro de 2008, em cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), precisamente, do artigo 88, inciso V: “[...] integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social, preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização do atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional”. O Centro tem por finalidade apurar e agilizar com maior e melhor efetivação a jurisdição infracional cabível aos adolescentes autores de atos infracionais. Dessa forma, é constituído pela integração de instituições públicas que compõem o núcleo de Sistema de Justiça Juvenil: Defensoria Pública de Minas Gerais, Ministério Público, Poder Judiciário, Polícia Militar de Minas Gerais, Polícia Civil, Prefeitura de Belo Horizonte e Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds). O Centro atende nos dias úteis de 8h às 22h, e nos fins de semana e feriados de 13h às 18h. A Delegacia de Orientação e Proteção à Criança e ao Adolescente (Dopcad) funciona 24h nas dependências do Centro, que também tem por objetivos: “garantir a responsabilização imediata dos adolescentes autores de ato infracional na comarca de Belo Horizonte; reinserir (reconduzir) o adolescente no convívio familiar e social; prevenir a reincidência (repetição de atos infracionais); contribuir para a diminuição dos índices de criminalidade na comarca de Belo Horizonte.” (CARTILHA CENTRO INTEGRADO DE ATENDIMENTO AO ADOLESCENTE AUTOR DE ATO INFRACIONAL – CIA/BH, p. 8). 16

De acordo o artigo 126, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional”. No parágrafo único é esclarecido que: “Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo”. O Art. 127 reza que: “A remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semi-liberdade e a internação.” Na sequência, o art. 128 afirma que “a

28

Entretanto, caso não seja viável a aplicação de nenhuma dessas três determinações, o

promotor poderá oferecer a denúncia (representação), assim o juiz poderá estabelecer alguma

das medidas socioeducativas em meio aberto (advertência; obrigação de reparar o dano;

prestação de serviço à comunidade; ou liberdade assistida), ou encaminhar para internação

provisória, onde o adolescente deverá permanecer no máximo 45 dias no aguardo do

julgamento. Após o julgamento, caso receba a medida socioeducativa de internação, o

adolescente é encaminhado para uma unidade de privação de liberdade19

, em que não há

tempo determinado. O adolescente é reavaliado no máximo a cada seis meses e o tempo da

internação, por nenhuma razão, deverá ultrapassar três anos.

Para que seja aplicada a medida socioeducativa de internação é necessária a

concretude dos pontos descritos acima. A medida não é (ou não deveria ser) a única e nem a

primeira a ser aplicada ao adolescente que cometeu ato infracional. Daí, a importância dos

cuidados necessários para o levantamento do caso de cada adolescente.

medida aplicada por força da remissão poderá ser revista judicialmente, a qualquer tempo, mediante pedido expresso do adolescente ou de seu representante legal, ou do Ministério Público.” 17

O processo é arquivado e, então, o adolescente não precisa responder pela acusação. 18

Vide nota de rodapé 11, página 22. 19

O art. 124, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), afirma: “São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os seguintes: I - entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministério Público; II - peticionar diretamente a qualquer autoridade; III - avistar-se reservadamente com seu defensor; IV - ser informado de sua situação processual, sempre que solicitada; V - ser tratado com respeito e dignidade; VI - permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável; VII - receber visitas, ao menos, semanalmente; VIII - corresponder-se com seus familiares e amigos; IX - ter acesso aos objetos necessários à higiene e asseio pessoal; X - habitar alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade; XI - receber escolarização e profissionalização; XII - realizar atividades culturais, esportivas e de lazer; XIII - ter acesso aos meios de comunicação social; XIV - receber assistência religiosa, segundo a sua crença, e desde que assim o deseje; XV - manter a posse de seus objetos pessoais e dispor de local seguro para guardá-los, recebendo comprovante daqueles porventura depositados em poder da entidade; XVI - receber, quando de sua desinternação, os documentos pessoais indispensáveis à vida em sociedade. § 1

o Em nenhum caso haverá incomunicabilidade. § 2

o A autoridade judiciária

poderá suspender temporariamente a visita, inclusive de pais ou responsável, se existirem motivos sérios e fundados de sua prejudicialidade aos interesses do adolescente.

29

1.2 Histórico do Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead)

Em um espaço educativo, a arquitetura, sua estética e a ocupação

do espaço físico não são neutros. Muito menos

os recursos materiais disponíveis.

(DAYRELL, 2007, p. 5)

Historicamente, o Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead) – unidade que

executa a medida socioeducativa de internação, aplicada pelo juiz da Vara Infracional – foi

criado em 199820

e, inicialmente, gerenciado pela organização não governamental

Providência Nossa Senhora da Conceição. Também nesse ano, em Belo Horizonte/MG, houve

a implantação da medida socioeducativa de liberdade assistida, e, em 2004, a implantação da

medida socioeducativa de prestação de serviço à comunidade.

Segundo relatos de funcionários mais antigos, o Centro era um imóvel (galpão) que

pertencia a Luiz Fernando da Costa, mais conhecido como Fernandinho Beira-Mar21

, e teria

sido confiscado pela Justiça.

É possível perceber que a unidade não foi planejada para funcionar como um centro de

internação. Em razão desse fato, foi necessário fazer várias reformas e adaptações, com o

intuito de possibilitar melhor atendimento aos adolescentes e condições de trabalho para os

funcionários. Um aspecto relevante é que a unidade esta localizada em região urbana, com

20

Período do governo municipal de Célio de Castro (Partido Socialista Brasileiro – PSB), do governo estadual de Itamar Franco (Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB) e do governo federal de Fernando Henrique Cardoso (Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB). De acordo com o Projeto Político-Pedagógico do Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead), a unidade foi criada “sob a responsabilidade da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PMBH), [...] que fez parceria com a entidade filantrópica Providência Nossa Senhora da Conceição para seu gerenciamento. Sua criação, sob a responsabilidade da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PMBH), deve-se a uma solicitação da Vara da Infância e Juventude de Belo Horizonte, que pediu o apoio do Município em caráter excepcional, já que naquele momento o Estado não poderia atendê-la.” (PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DO CENTRO DE ATENDIMENTO AO ADOLESCENTE – Cead, 2005, p. 6). Como se percebe, naquele contexto, a Prefeitura de Belo Horizonte assumiu uma responsabilidade que caberia ao Estado, conforme da Lei 8.069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nos termos do artigo 125: “É dever do Estado zelar pela integridade física e mental dos internados, cabendo-lhe adotar as medidas adequadas de contenção e segurança”. Não pretendo aprofundar a questão, que, certamente, envolve dimensões de ordem administrativa, econômica e política, mas chamo a atenção para o momento em que a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – foi sancionada em relação ao seu período de materialidade. Isto é, cabe aqui uma reflexão sobre como as leis nem sempre estão de acordo com as conjunturas sociais. 21

Nascido em Duque de Caxias, criado na favela Beira-Mar, Fernandinho Beira-Mar nasceu em 4 de julho de 1967. É considerado um dos maiores traficantes de drogas e de armas da América Latina. A título de informação, até o fechamento deste trabalho, Beira-Mar encontrava-se na Penitenciária Federal de Mossoró, Rio Grande do Norte, desde 5 de fevereiro de 2011.

30

casas residenciais e comércio diversificado22

, não podendo ser, por isso, classificada

geograficamente como um “arquipélago dos esquecidos” (FOUCAULT, 2009).

Em 14 de junho de 2004, o Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead) passou a

ser mantido pela Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds), supervisionado pela

Superintendência de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Same) e gerenciado pela

Inspetoria São João Bosco (ISJB)23

. Ou seja, a unidade passa a ser mantida pelo Estado e

inicia a gestão compartilhada com o Sistema Salesiano.

Assim, de acordo com o Projeto Político-Pedagógico do Centro de Atendimento ao

Adolescente (2005, p. 6), ficou acordado que:

I) Compete à Inspetoria São João Bosco, entre outros:

Elaborar e executar a proposta pedagógica para o atendimento aos adolescentes;

Recrutar, selecionar, treinar e contratar a equipe responsável pelo atendimento;

Capacitar e administrar a equipe responsável pelo atendimento;

Zelar pelo atendimento aos adolescentes, de acordo com as determinações do

Estatuto da Criança e do Adolescente;

Cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais relativas aos adolescentes

admitidos na Unidade de Internação.

II) Compete à Secretaria de Estado de Defesa Social, entre outros:

Prover os recursos financeiros necessários à administração da Unidade de Internação

e à manutenção do atendimento educacional e assistencial, conforme disposto no

Plano de Trabalho, anexo III, que integra este Convênio;

Prover a Unidade de Internação dos móveis, equipamentos e utensílios

indispensáveis ao atendimento conforme consta no Anexo V;

Zelar pela qualidade do atendimento pactuado e pelo cumprimento das

determinações judiciais relativas aos adolescentes admitidos na Unidade de

Internação;

Articular e integrar os demais Órgãos Governamentais para uma atuação

complementar e solidária de apoio ao desenvolvimento do atendimento pactuado24

.

De 2004 a 2008, a unidade teve como embasamento pedagógico o método educativo

de Dom Bosco, conhecido também como Sistema Preventivo de Dom Bosco ou Pedagogia

Salesiana25

.

22

Chamo a atenção para esse ponto, pois é característico que as instituições restritivas, – ou como denominadas por Goffman (2001), “instituições totais” –, de modo geral, estejam “longe de tudo e perto de nada”. 23

De acordo com o Manual do Colaborador Salesiano na Inspetoria São João Bosco, a inspetoria foi criada em “11 de dezembro de 1947 com o desmembramento da Inspetoria Salesiana de São Paulo.” (PAULA, 2005, p.79). 24

Os tópicos I e II fazem menção à cláusula sexta, do convênio firmado entre Estado e Inspetoria São João Bosco. Os anexos III e IV mencionados não foram localizados para melhor esclarecer a questão. 25

João Melchior Bosco (Dom Bosco), nasceu no dia 16 de agosto de 1815, no povoado denominado Becchi, próximo a Turim, no Piemonte, ao norte da Itália. Padre aos 26 anos, desde a juventude se pautava em trabalhar com jovens, por meio da evangelização e da educação. O método é baseado em três pilares: Amor, traduzido na expressão italiana amorevollezza, no sentido de demonstrar para o jovem a sua importância, ou seja, os jovens devem ter ciência de que são importantes e amados;

31

A partir de novembro de 2008, com o rompimento do convênio entre o Estado e a

Inspetoria São João Bosco (ISJB), a unidade continua a ser mantida pela Secretaria de Estado

de Defesa Social (Seds) e supervisionada pela Subsecretaria de Atendimento às Medidas

Socioeducativas (Suase), com a modalidade de gestão direta, até os dias atuais.

1.3 O trabalho desenvolvido pelo Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead)

Em todo jovem, mesmo o mais complicado, existe uma corda que ainda vibra, e a

obrigação do educador é descobrir essa corda e tirar proveito disto.

(DOM BOSCO)

O atendimento fornecido pelo Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead) teve – e

permanece tendo - por fundamento a Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente –

ECA); o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) – hoje Lei 12.594/2012;

o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à

Convivência Familiar e Comunitária (2006); o Regimento Interno da unidade; as Diretrizes,

Normativas e Orientações da Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas

(Suase); e as demais legislações que garantem os direitos dos adolescentes.26

O trabalho realizado tinha início nas participações em estudos de casos nos Centros

Provisórios27

, juntamente com outras unidades de internação, para que fosse decidida a

Razão, em que Dom Bosco baseava-se como complementação do amor, em busca de esclarecimentos das necessidades dos jovens; e Religião, com a espiritualidade cristã como ação transcendente – aqui, envolve-se também o reconhecimento do amor e da razão como valores importantes. Cabe dizer que a metodologia servia-nos como uma referência de trabalho e de aproximação ao adolescente, por considerar a relação entre educando e educadores não como um guia prático de instruções religiosas. Os motivos que acarretam a internação do adolescente jamais são entendidos como prática pecaminosa, e sim, como prática infracional. Nessa experiência, a Pedagogia Salesiana se fez em conjunto com outros saberes e com o cuidado e o respeito com a diversidade cultural e/ou religiosa dos adolescentes e dos funcionários. Os ensinamentos dessa pedagogia ainda estão presentes na cultura institucional do Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead). 26

Cabe dizer que a descrição do trabalho realizado por essa unidade baseia-se nos anos de 2007 a 2010, para ser fiel à construção deste trabalho, período em que realizei as oficinas de RAP e de poesia. 27

Há, em Belo Horizonte, duas unidades de internação provisória: Centro de Internação Provisória Dom Bosco (Ceip/DB) e o Centro de Internação Provisória São Benedito (Ceip/SB). Esses estudos de casos referem-se também ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), artigo 123: “A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração.” Essa modalidade de transição é descrita a partir da minha experiência vivenciada no Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead). Outro detalhe, o tempo da internação é contado a partir da data da sentença aplicada pelo juiz e não a partir do momento em que o adolescente é transferido para uma unidade de internação.

32

unidade em que o adolescente cumpriria a medida, considerando a sua idade,

condicionalidades em razão do seu ato infracional e/ou envolvimento com a criminalidade,

para que ele pudesse ou não cumprir a medida próximo à sua residência28

. Após a decisão, a

unidade escolhida realizava um pré-acolhimento desse adolescente, ou seja, um técnico ia até

o Centro de Internação Provisória, com o intuito de transmitir-lhe segurança e esclarecer

dúvidas. No mesmo dia em que acontecia o pré-acolhimento, o adolescente era transferido

para a unidade de internação, para o início do cumprimento da medida que lhe fora imputada.

Já na unidade, o adolescente passava por um exame pessoal para averiguar as

condições físicas em que ele está chegando; em seguida submetido a uma entrevista inicial,

momento em que um técnico e um agente socioeducativo realizava o preenchimento de

formulários de informações básicas, como endereço, telefone, dados pessoais e relação dos

pertences trazidos. Esse momento também era importante para explicar ao adolescente sobre

as normas básicas de convivência e para ouvi-lo quanto às suas dúvidas, medos e

expectativas29

.

Ao realizar o acolhimento na unidade, eu falava duas frases para os adolescentes, que

chamava a atenção de quem ouvia, pois eu dizia: “Seja bem-vindo”30

e logo fazia um

comentário sobre essa expressão, pois queria provocar uma reflexão sobre o espaço e o lugar.

O adolescente era bem-vindo não pelo o que fez, mas pelo o que é – um ser social. Em

determinado momento, eu falava: “O seu desligamento começa hoje”, para significar sua

responsabilidade no cumprimento da medida.

Logo, era feito o primeiro contato com a família do adolescente para informá-la da

chegada e dar-lhe ciência das regras institucionais para se fazer visitas ao adolescente.

Nas primeiras 72 horas que o adolescente ficava na unidade, permanecia no

alojamento. Nesse período, era atendido por técnicos que faziam a sua interação gradativa às

atividades desenvolvidas na unidade: eram-lhe explicados os seus direitos e deveres na

convivência institucional. Encontrava-se no regimento interno do Centro de Atendimento ao

Adolescente (Cead), no artigo 12, inciso I, a seguinte determinação: “As primeiras 24 horas

28

Essas condicionalidades fazem menção às implicações do ato infracional do adolescente e, também, ao seu envolvimento com a criminalidade. Isto é, pode não ser adequado (em determinadas circunstâncias) que o adolescente cumpra a medida na mesma unidade que o seu irmão ou companheiros de gangue ou numa unidade que ele tenha ‘guerra’ com outro adolescente. Assim, esse estudo de caso apurava as condições e as implicações de casa caso. 29

Alguns adolescentes não sabem informar a sua própria data de nascimento, o endereço completo ou o número de telefone. Não que eles não queiram dizer, talvez seja uma demonstração do “desconhecimento” de si. 30

Uma vez me perguntaram porque eu falo assim, então eu disse: “Você quer que eu diga – seja ‘mal-vindo’?”

33

deverão ser cumpridas em seu alojamento e nas outras 48 horas, ele já poderá circular na sala

de TV, com direito a 30 minutos de pátio pela manhã e 30 minutos à tarde” (REGIMENTO

INTERNO DO CENTRO DE ATENDIMENTO AO ADOLESCENTE – CEAD, Art. 12,

inciso I). Essas 72 horas serviam também para averiguar possíveis “rixas” do adolescente com

os demais internos.

Durante o período de acolhimento, o adolescente era atendido por um técnico de

referência (assistente social ou psicólogo), para iniciar o acompanhamento técnico e avaliar

possíveis demandas. Nesse mesmo período, o regimento interno era trabalhado com o

adolescente pela pedagoga.

A unidade realizava acompanhamento sociofamiliar, jurídico, psicoterapêutico,

terapêutico-ocupacional, pedagógico e de saúde básica. Fornecia também espaços para

escolarização, profissionalização, esporte, arte, lazer, grupos de reflexão, oficinas temáticas e

comissões de saúde, segurança e espiritualidade, que visavam a avaliação e a construção de

propostas para melhor funcionamento da unidade. Para tal, era preciso um grupo profissional

qualificado para lidar com a complexidade de cada caso. A equipe técnica da unidade era

multi e interdisciplinar31

.

A unidade era constituída pelos seguintes profissionais:

31

Morin (apud RODRIGUES, 2000, p. 127), ao definir essas categorias, considera que “a multidisciplinaridade ou pluridisciplinaridade trata do estudo de um mesmo objeto por várias disciplinas; não há necessidade de integração sobre elas. [...] A transdisciplinaridade [...] promove a troca de informações e de conhecimentos entre disciplinas, mas, fundamentalmente, transfere métodos de uma disciplina para outras. [...] A interdisciplinaridade possibilita não só a fecunda interlocução entre as áreas do conhecimento como também constitui uma estratégia importante para que elas não se estreitem nem se cristalizem no interior de seus respectivos domínios; favorece o alargamento e a flexibilização dos conhecimentos, disponibilizando-os em novos horizontes do saber”. Para além dessas modalidades, os técnicos dessa unidade não se baseavam em equipes como forma de atuação – reconheciam os saberes de outras áreas profissionais que formavam a comunidade socioeducativa. O atendimento da unidade se fazia pelo princípio da “incompletude institucional”, ou seja, o trabalho era desenvolvido com a coparticipação das instituições que compunham o sistema de garantia de direitos e de outros parceiros.

34

Tabela 1 – Quadro de funcionários do Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead)

Direção Uma diretora geral, uma diretora de atendimento e um

diretor de segurança

Setor Administrativo Duas assistentes administrativas

Equipe Técnica

Um assistente social, duas psicólogas, uma pedagoga,

uma terapeuta ocupacional, duas técnicas de

enfermagem

Estagiários Uma estagiária de psicologia e uma estagiária de

serviço social

Agentes Socioeducativos 38 agentes socioeducativos

Auxiliares Educacionais e Arte-educadores Três auxiliares educacionais e dois arte-educadores

Escola Uma diretora e seis professoras

Cozinha, Limpeza, Lavanderia e Portaria Cinco cozinheiras, duas auxiliares de serviços gerais,

duas auxiliares de limpeza e quatro porteiros

Fonte: Sistematização do autor.

Após o período de acolhimento, o adolescente começava a frequentar a escola e as

oficinas da unidade. O ensino educacional (escolarização) no Centro de Atendimento ao

Adolescente (Cead) era resultado de um convênio com a Secretaria de Educação da Prefeitura

de Belo Horizonte. A escola ficava nas dependências da unidade e funcionava no período da

manhã e da tarde. Não havia separação por série, mas por níveis de conhecimento dos

adolescentes, conforme os conteúdos específicos que seriam abordados.

A questão escolar era um ponto que chamava atenção, pois:

Esses adolescentes, na maioria das vezes, estão afastados da escola há um bom

tempo, porque foram de alguma forma excluídos, e têm pouca crença na sua

capacidade de aprender. As amarras que trazem são muitas; as formas de resistência,

a pouca valorização da escola, o receio de fracassar, a dificuldade de aceitar e

mostrar o próprio erro, têm como umas de suas causas o medo de ser rejeitado.

(ARRUDA; PINTO, 2009, p. 106)

Mesmo com a baixa crença na capacidade de aprender – considerando que há

adolescentes com níveis escolares condizentes à sua idade –, nos atendimentos, eles falavam

da escola como um lugar importante, porém apresentavam várias demandas para

permanecerem frequentando-a.

35

Havia também oficinas de informática, teatro, bijuterias, origami, dança e percussão32

,

e todas ocorriam de maneira alternada, de acordo com a programação da unidade, a partir da

demanda dos adolescentes.

Uma forma central de programar o processo a ser vivenciado pelo adolescente era o

Plano Individual de Atendimento (PIA). Tratava-se de uma metodologia que contribuía para o

acompanhamento do caso e de sua evolução. Esse instrumental era utilizado para traçar e

registrar as metas e os objetivos a serem alcançados pelo adolescente. A programação

realizava-se a cada três meses, com a presença de dois técnicos e um agente socioeducativo e,

nesse momento, o adolescente era ouvido e orientado em relação aos seus objetivos em cada

área de atendimento – referentes à educação, à família, à saúde, à situação processual, ao

trabalho, à convivência institucional, entre outros.

Tal abordagem possibilitava a realização de um trabalho de reflexão com o

adolescente, considerando-se que, além das metas e dos objetivos, também era trabalhado o

“como fazer” para conseguir realizá-los. O Plano Individual de Atendimento (PIA)

possibilitava um trabalho em conjunto e articulado, que demonstrava ao adolescente que ele

teria apoio e que seria necessário o seu empenho, sendo ele o maior interessado.

Já o Plano de Atendimento à Família (PAF)33

visava a manutenção e o fortalecimento

dos vínculos familiares em relação à sua função protetiva e socializadora de seus membros.

Essa programação acontecia a cada seis meses com a presença do adolescente, de sua família,

dos técnicos de referência e de um agente socioeducativo.

Os encaminhamentos tirados de ambos os Planos eram anotados para registro e

organização de seu processo de concretização e, se necessário, outros profissionais também

eram chamados a participar de sua realização.

Havia na unidade várias modalidades de estudo de caso: o interno, que era realizado

com a equipe técnica, os diretores da unidade e um representante dos agentes socioeducativos,

e tinha por finalidade o conhecimento do caso do adolescente e a construção de intervenções e

encaminhamentos necessários; aquele que contava com o plantão de agentes socioeducativos,

que acontecia todos os sábados de manhã, e visava elucidar o caso de adolescentes para os

agentes socioeducativos, no sentido de orientá-los sobre a melhor maneira de lidar com eles; o

32

O trabalho de percussão é desenvolvido na unidade pelo agente socioeducativo e arte-educador Eurípedes Roberto Maximiano, e existe desde 2007. O grupo de percussão chamado Tamborlescentes era formado por adolescentes que participavam dessa oficina. Tive o prazer de acompanhar parte dessa atividade, que, além de abordar os fundamentos da música, a produção de instrumentos e ensinar a tocá-los, faz riquíssimas associações com a dimensão socioeducativa. 33

Metodologia de trabalho desenvolvida pelo Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead), de 2004 a 2010.

36

estudo de caso que acontecia na unidade, com a equipe do Juizado da Infância e da Juventude

e o Ministério Público, com o objetivo de repassar o desenvolvimento do cumprimento da

medida socioeducativa de internação vivenciada pelos adolescentes e os encaminhamentos a

serem realizados com outros órgãos de defesa dos direitos dos adolescentes; aquele realizado

para encaminhamentos, como para cursos e/ou para algum tratamento de saúde mais

específico; e, por fim, o estudo de caso que acontecia em conjunto com outras instituições

socioassistenciais e/ou com unidades de atendimento ao adolescente, para realização de

encaminhamentos, com a finalidade de desligamento e/ou de progressão da medida.

O adolescente era envolvido em atividades tanto internas quanto externas. Permanecia

no alojamento somente à noite, para dormir, ou quando cumpria norma disciplinar34

, e nos

demais horários, ficava na escola, no curso, na oficina. Alguns adolescentes estudavam ou

trabalhavam fora da unidade, em razão de seu bom desenvolvimento na medida e por não

estarem ameaçados de morte.

O atendimento técnico acontecia, semanalmente, por cada profissional. Eram

registrados em formulários técnicos específicos de cada área, respeitando as questões éticas.

O Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead) desenvolvia três modalidades de

trabalho com as famílias. O primeiro era o Encontro com Famílias, realizado a cada três

meses nas dependências de uma instituição parceira, próxima à unidade, sem a presença dos

adolescentes em cumprimento da medida. Os familiares eram convidados a participarem

dessas atividades, que desenvolviam uma temática diferente a cada encontro, e que tinham por

base a convicção de que havia necessidade de proporcionar às famílias momentos em que

ficassem mais à vontade para conversar e discutir em grupo questões relacionadas às

diferentes temáticas abordadas – sexualidade, afetividade, etc.

A segunda modalidade era o Encontro Multifamília, que ocorria a cada seis meses

dentro da própria unidade. Realizavam-se palestras temáticas, oficinas, trabalhos lúdicos e era

oferecido almoço.

O terceiro trabalho era a Reunião Informativa, que acontecia conforme a demanda da

unidade, ou seja, quando era detectada a necessidade de informar os familiares a respeito de

mudanças na rotina institucional, ou outros assuntos de interesse da família sobre a rede

socioassistencial, e/ou para ouvir dúvidas dos familiares.

34

Norma disciplinar é uma sanção aplicada ao adolescente que cometeu ato que transgrida as normas disciplinares, conforme a sua gravidade, o adolescente pode ser levado ao “alojamento de reflexão” – mais conhecido como “sete”, por ser o sétimo alojamento dos corredores – de 12 a 96 horas. As normas disciplinares eram avaliadas e discutidas pelos técnicos e agentes socioeducativos para decidirem sobre o seu término ou não.

37

Havia outros momentos, durante o cumprimento da medida, para os quais os

familiares também eram convidados a participar, como excursões, assembleias – em que eram

discutidas propostas de melhorias no convívio institucional com os adolescentes –, quando se

acompanhava algum tipo de encaminhamento junto com os adolescentes. Esses casos

dependiam de vários critérios: se os adolescentes não corriam risco ou ameaça de morte, se

tinham demonstrado responsabilidade no cumprimento da medida, entre outros.

A unidade realizava principalmente duas modalidades de trabalho em grupo com os

adolescentes: o terapêutico, que abordava questões pertinentes ao cumprimento da medida e

ao mundo do trabalho; e o de valores, que proporcionava debates em grupo sobre temáticas

voltadas para o autocuidado.

Antes do desligamento, conforme a situação do adolescente, a unidade enviava um

pedido de autorização para o juiz da Vara Infracional, comunicando o desenvolvimento do

jovem, e solicitava autorização para que ele pudesse passar alguns fins de semana em casa.

Quando era deferido o pedido, iniciava-se, gradativamente, o seu retorno à convivência

familiar e comunitária. A unidade permanecia na incumbência de monitorar as visitas e

informar ao juiz como ocorreram.

O desligamento do adolescente em cumprimento da medida socioeducativa de

internação, ocorria em rede, que expressava um movimento interno e externo. Desde o início

da medida, a família e as referências locais de atendimentos eram articuladas para participar

da construção e da legitimação de seus direitos, visando a sua proteção e o seu não retorno à

prática de atos infracionais e/ou à criminalidade.

1.4 Reflexões acerca do cotidiano institucional

Não há “muralha chinesa” entre as esferas

da cotidianidade e da moral.

(HELLER, 1972, p. 25)

Parto de referenciais de análise sobre a cotidianidade, para refletir sobre o cotidiano

institucional, que é uma de suas dimensões.

De acordo com Heller (1972, p. 17), “a vida cotidiana é a vida de todo homem”, isto é,

ninguém está fora dela, independentemente da classe social e da divisão sociotécnica do

trabalho todos os homens dependem do cotidiano para existirem. A autora afirma também que

“a vida cotidiana é a vida do homem inteiro” (HELLER, 1972, p. 17), pois o homem interage

38

na cotidianidade, com todas as faces de sua individualidade, envolvendo-se com todas as suas

habilidades e sentidos, porém, não em sua plenitude.

Netto (NETTO; CARVALHO, 2011, p. 65 a 67), embasado pela ótica lukácsiana,

afirma que a vida cotidiana é ontologicamente “insuprimível”, pois não há vida social sem

cotidianidade. Por isso, aponta três determinações fundamentais do cotidiano, as quais

comparecem em cada situação, sem considerar as relações que as vinculam. A primeira é a

heterogeneidade, por ser constituída de interseções de atividades que formam um núcleo de

objetivação do ser social; a segunda é a imediaticidade, pois a atividade cotidiana expressa a

relação direta entre o pensamento e a ação; e a terceira é a superficialidade extensiva, por

compreender que a mobilização do homem na cotidianidade demanda “todas as atenções e

todas as forças, mas não toda a atenção e toda a força”, todo ser social exerce as suas emoções

e os seus sentimentos, porém de maneiras diversificadas e com intensidades variadas.

Mas afinal, o que se compreende por vida cotidiana?

É aquela vida dos mesmos gestos, ritos e ritmos de todos os dias: é levantar nas

horas certas, dar conta das atividades caseiras, ir para o trabalho, para a escola, para

a igreja, cuidar das crianças, fazer o café da manhã, fumar o cigarro, almoçar, jantar,

tomar uma cerveja, a pinga ou o vinho, ver televisão, praticar um esporte de sempre,

ler o jornal, sair para um “papo” de sempre, etc. (NETTO; CARVALHO, 2010, p.

23)

Assim, a vida cotidiana é construção diária e ininterrupta. É a vida de todos os dias e

de todas as horas. Local de encontros e desencontros. Espaço do lugar e dos “não-lugares”

(MARC AUGÉ, 1994).

Tais perspectivas não estão separadas nas relações do homem com a sociedade, com

outros homens e consigo mesmo. A vida do homem é movimento; nada é inerte na vida

cotidiana, todos estão ligados a algo ou a alguém, a todo o momento. Não há, na vida

cotidiana, o início e o fim exato de qualquer movimento. O cotidiano se produz e se reproduz

por meio da história, que é o elemento central do seu desenvolvimento (HELLER, 1972).

Aqui, a história não se refere somente a fatos históricos, mas ao desenvolvimento do

processo humano e social, pois “não há vida cotidiana sem espontaneidade, pragmatismo,

economicismo, andologia, precedentes, juízo provisório, ultrageneralizações, mimese e

entonação” (HELLER, 1972, p. 37). Essas categorias, num contexto institucional, passam por

transformações, sendo, então, um “cotidiano controlado” por reduzir as espontaneidades das

ações e por demandar atenção aos níveis de relações tecidas.

39

Heller (1972, p. 18) afirma que “o homem já nasce inserido na cotidianidade” e que a

cotidianidade é construída na história, daí a importância desta, como uma das categorias

centrais para análise e compreensão do cotidiano.

A vida cotidiana não reúne todos os seres sociais ao mesmo tempo, no mesmo local,

fazendo as mesmas coisas e com os mesmos desejos e interesses. Está onde o homem está. O

homem não vive sozinho e ainda que ele se sinta ou tente essa vivência solitária, não obterá

êxito, pois mesmo na vida solitária, na solidão, na falta de vínculos afetivos e sociais, é

preciso a participação do outro para compor essa condição de vivência.

No caso do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa de internação, é

importante ressaltar que a unidade não é o mundo em si, e nem pretende sê-lo. Por mais que

haja grades, camas de alvenaria e horários controlados, existe um mundo que parece estar do

lado de fora da unidade, mas não está: a unidade está dentro desse mesmo mundo, porém,

ocupando dimensões e vivenciando condições particulares.

O cotidiano institucional é uma das múltiplas dimensões da vida cotidiana; não há

como fragmentar a cotidianidade35

. É constituído por pessoas, por regras, por normas e por

relações de poder36

. A segurança de uma unidade não está somente sob a responsabilidade dos

agentes socioeducativos, mas de todos que ali trabalham. Todas as atividades socioeducativas

visam a produção e a manutenção da segurança institucional. Essa dimensão do cotidiano tem

a vida do outro como “vida nossa”, por causa da responsabilidade institucional quanto aos

cuidados e à atenção às demandas do adolescente. A vida cotidiana não acaba para o

adolescente quando ele vive o cotidiano institucional, pois todas essas dimensões constituem

o seu “mundo da vida” (BAPTISTA, 1998), que é o cotidiano.

Nesse sentido, a exemplaridade é aspecto fundamental. Educar – particularmente no

caso de adolescentes, – consiste em ensinar que se é. Portanto, a forma como o

programa de atendimento socioeducativo organiza suas ações, a postura dos

profissionais, construída em bases éticas, frente às situações do dia-a-dia, contribuirá

para uma atitude cidadã do adolescente. (SISTEMA NACIONAL DE

ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO, 2007, p. 86)

35

O cotidiano “grita do lado de fora”, um ponto de reflexão no espaço privativo. Isso, por compreender o “lado de fora” e o “lado de dentro”. Essa divisão dá a impressão de que o tempo da medida é um “tempo morto”, que a vida está parada. 36

As relações de poder podem estar em qualquer nível de relação institucional. Mattos (2009, p. 15), em estudo realizado em uma unidade de atendimento em Belo Horizonte, apresenta um discurso do corpo diretivo: “O menino tentou fugir, foi excesso de confiança da nossa parte. Estamos relaxando com nosso serviço. Eles estão começando a mandar de novo. Nós temos que provar que quem manda aqui somos nós... Temos que ser rígidos com quem fizer isso [referindo-se a adolescentes que estavam se armando com chuço de arame das grades protetoras das lâmpadas]. O último adolescente que morreu aqui dentro foi furado com isso... Bate. Bate, mas não deixa marca (Informação Verbal)”.

40

1.5 A construção de uma metodologia de trabalho desenvolvida por meio do RAP

e da poesia

O pensamento é o passeio da alma.

(SÓCRATES)

O contato com os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de

internação no Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead) exigiu que eu assumisse uma

tríade metodológica: aproximação, observação e confiança – a qual será discutida abaixo.

Essa tríade pode ser percebida nas duas dimensões desse trabalho: de quem o realiza e de

quem o recebe.

Na aproximação, o contato direto, para mim, colocou em xeque alguns dos

conhecimentos que eu havia acumulado, quando muitas das ideias neles contidas negavam a

história, a temporalidade e a concretude dos fatos. O contato direto pode ser ameaçador

quando exime a aproximação gradativa. E, por mais que a ação seja positiva, ela é tomada

como negativa pela forma como foi realizada. Assim, a compreensão dessa contradição

ocupou lugar de destaque para possibilitar o reconhecimento da condição do outro, e a

sustentação – por meio da superação da situação – de um canal de diálogo.

Por meio de estudos que eu já vinha realizando e de meu envolvimento em várias

discussões, percebi o quanto era importante o conhecimento teórico para a prática

profissional, para a prática discursiva e para o entendimento das múltiplas manifestações da

“questão social.”37

Essa percepção levou-me a considerar que poderia utilizar as oficinas como mediação

entre a teoria e a prática. Durante muitos anos ouvi (e ainda ouço) a frase: “A teoria é uma

coisa, a prática é outra”. Por isso, era necessária uma estratégia, um modo, enfim, uma

metodologia de trabalho que evidenciasse que a teoria e a prática compõem uma totalidade de

diversos, ou seja, que estão imbricadas e são indissociáveis. A partir daí, refleti sobre a

mediação, que, como uma das categorias da teoria social de Karl Marx, seria fundamental

para compreender e possibilitar as ações realizadas, por meio de oficinas de RAP e de poesia.

A mediação articula-se com a contradição e a totalidade, como categorias essenciais para o

37

Cabe citar alguns atores que mais embasaram os meus estudos sobre a questão social: Carvalho (2001, 2002, 2005), Castel (2007), Demo (1998), Fernandes (1972), Galeano (2002), Huberman (1984), Iamamoto (1998), Martinelli (1995), Martins (1997) e Yasbek (2003).

41

estudo, e a análise dessa modalidade de prática socioeducativa, considerando a diversidade de

situações e os desafios do trabalho direto com os sujeitos.

Naquela ocasião, eu já utilizava o RAP e a poesia como instrumentos críticos para

externalizar e compreender ideias e questionamentos sociais38

; porém, optei por não trazer

isso à tona para os adolescentes num primeiro momento, pois eu tinha a necessidade de

perceber se o RAP era conhecido ou trazido por eles, e como isso era feito. Não demorou

muito: a primeira situação que envolvia o RAP foi quando eles estavam na área de televisão,

assistindo a um DVD de RAP norte-americano. A identificação era com os estilos dos

rappers: tatuagens, joias, roupas, ou seja, com os símbolos que produzem identificação e

manifestação de consumo e, também, com aspectos de sua cultura, relacionados às questões

de gênero: os clips de músicas frequentemente exibiam uma aparente “facilidade” dos rappers

para atrair lindas mulheres. Outro movimento percebido eram as músicas cantadas por alguns

deles, algumas conhecidas, de grupos de RAP como Racionais MC’s e Facção Central, ambos

de São Paulo/SP.

Em algumas situações, presenciei os adolescentes cantando RAP na instituição. Era

notória a identificação deles com o RAP; quando cantavam, percebia-se, por meio da

expressão facial, do tom da voz e do posicionamento do corpo e até por comentários: “Eu

sempre quis falar isso”, ou seja, “esse ‘cara’ me entende”.

Mas a frase motivadora das oficinas foi de um adolescente: “Eu tenho vontade de

escrever umas paradas, e pá!”. Encontrei aí um ponto de partida importante para o meu

trabalho: a vontade.

A vontade é do outro e não minha, ou nossa. Assim, naquele contexto, notei que os

adolescentes foram aguçados à participação espontânea, isto é, não era preciso convidá-los

para participarem da atividade, apenas comunicar-lhes que iria acontecer. Não era preciso

convencimento, pois a proposta não era exterior a eles, fazia conexão com o mundo e com a

realidade vivida por cada um deles.

Na perspectiva da aproximação, para os adolescentes, um dado importante de

aceitação foi a minha afirmação de raça/cor, bem como o penteado afro, que possibilitaram

uma proximidade natural deles comigo – cabe dizer que o autor que vos escreve é negro e usa

tranças. Não afirmo que não-negros e outros tipos estéticos não poderiam também obter

aceitação, pelo contrário, nessa experiência, percebi que a minha imagem era vista como um

“igual diferente”, ou seja: igual na raça/cor, mas diferente no posicionamento; sendo, pois,

38

Questionamentos críticos acerca da violência, da pobreza, do racismo, do desemprego, entre outros.

42

uma referência positiva para os adolescentes (SOARES, 2005). Esse posicionamento está

relacionado com o segundo dos três pontos, que é a observação, isto é, o olhar39

: não como

curiosidade, mas como atenção. Como diz Fernando Pessoa, por meio do heterônimo Alberto

Caeiro, em o Guardador de Rebanhos (PESSOA, 2011, p. 35):

O que nós vemos das coisas são as coisas.

Por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra?

Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos

Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,

Saber ver sem estar a pensar,

Saber ver quando se vê,

E nem pensar quando se vê

Nem ver quando se pensa.

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),

Isso exige um estudo profundo,

Uma aprendizagem de desaprender

E uma sequestração na liberdade daquele convento

De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas

E as flores as penitentes convictas de um só dia,

Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas

Nem as flores senão flores,

Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

Nessa relação, parafraseando Pessoa, digo que “alegres de nós que trazemos o espírito

desnudado”.

E, assim, foi possível construir o terceiro ponto, que é a confiança. Como construção,

a confiança exige espontaneidade, sinceridade e entendimento das ações desenvolvidas e do

seu contexto institucional. No caso do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa

de internação, todo e qualquer tipo de trabalho pode assumir sentidos diferentes, devido à

complexidade do contexto em que vivem e às formas de relacionamento que nele são

estabelecidas.

Aproximação, observação e confiança formaram o tripé dessa metodologia, iniciada

em 2007. Ficou evidente que é possível – tanto para os adolescentes quanto para o arte-

educador – nos aproximarmos de alguém ou de algo, de diferentes formas, o que encaminha

para diferentes resultados. Nessa aproximação, há possibilidade mútua de observação e, no

39

Nesta dissertação, quando me refiro ao olhar, aponto para o fato de que qualquer observação é, necessariamente, norteada pela visão de mundo de quem a realiza, a qual determina as dimensões do seu olhar.

43

momento em que isso ocorre, pode acontecer ou não uma aceitação impregnada de mútua

confiança. Daí a necessidade de ter analisado com cuidado esse movimento, em sua

totalidade, dentro de uma conjuntura institucional. A confiança, nesse contexto, teve o sentido

de um “semáforo”40

, que contribuiu para a condução dos fatos na sua velocidade, isto é, a

atenção para não inibir a espontaneidade e, ao mesmo tempo, o planejamento para iniciar as

oficinas de RAP e de poesia. Assim, aproximação, observação e confiança corroboraram para

a criação de um vínculo41

, pois segundo o Relatório Anual da Fundação Criança (1999 apud

BAPTISTA, 2000, p. 87):

O vínculo tem o seu papel preponderante em toda e qualquer ação que objetive

mudanças e transformações, funcionando como o elo de uma corrente que liga os

indivíduos sem prendê-los. Elo flexível que permite renovar os sentimentos e

atitudes grupais e individuais, quebrando preconceitos, impedindo que os rótulos se

tornem permanentes e os papéis fixos.

As oficinas não representaram apenas a produção de letras de RAP e de poesia, mas

também foram espaços de formação de grupo, de sociabilidade e de troca de experiências.

Como trabalhar a relação com os adolescentes, tendo em vista sua baixa escolaridade e até

mesmo as implicações de seu ato infracional? Todos os meus cuidados éticos possibilitaram

que os adolescentes não me vissem como um artista – pois tal relação poderia anular o

propósito da ação –, mas como um profissional que faz uso da arte como mediação e diálogo,

em prol dos objetivos da medida socioeducativa de internação. Tal questão será mais bem

trabalhada no decorrer desse trabalho; porém, de antemão, afirmo que as oficinas, embora não

ofereçam uma metodologia infalível, milagrosa ou sedutora, envolvem o adolescente como

“autor de atos sociais”42

. Dessa forma, as possibilidades de acirrar relações de poder

diminuem.

40

Na minha observação, isso não foi singular. Os adolescentes também se aproximaram de mim e me observaram, antes de depositarem confiança. De acordo com Baptista (2000, p. 87): “Entre educador e adolescente é construída uma situação de inter-relação dialética de reciprocidade, na qual não apenas o educador reflete sobre a conduta do jovem, mas também o jovem analisa o modo de se relacionar do educador.” 41

Outra questão relacionada a esta abordagem é o próprio significado da palavra vínculo: ela vem do latim vinculum, vincire e significa unir, atar. Aqui, para além desse significado, trago esse termo também no sentido da identificação e do sentimento de pertencimento que mantém a relação dos adolescentes com as oficinas que, nessa experiência, proporcionou a responsabilidade e o compromisso em estabelecer trocas e diálogos espontaneamente. Isto é, vinculação que, conforme Batista (2000) não quer dizer homogeneização de papéis (dos educadores e dos adolescentes) por considerar as diferenças e os deveres que há entre eles. Nessa abordagem, ‘vínculo em si com apoio do outro’. Para análise da questão do vínculo busquei também outros autores que discutem essa questão: Frasseto (1999), Gayotto (2000), Heller (1987). 42

Aqui, uso a expressão “autor de atos sociais” para diferenciar e compreender o sujeito – o adolescente – da ação que ele cometeu. O adolescente nunca é o que ele fez ou faz. Quando é visto

44

Ademais, havia adolescentes que apresentavam grandes dificuldades na escrita, mas

que não eram as mesmas no ato de pensar – em algumas situações, a poesia era feita num

diálogo para captar a essência poética, depois é que se inseria o uso do papel e da caneta.

As oficinas foram organizadas de acordo com o planejamento institucional, para não

comprometer os atendimentos, as visitas, os cursos e as aulas dos adolescentes.

Preferencialmente, aconteciam ao entardecer ou no sábado à noite, momento em que eu

percebia que os adolescentes estavam mais sensíveis e inspirados, bem como a necessidade de

realizar atividades que preenchessem esse período institucional. Nessa organização, também

se levou em conta a orientação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase):

Oferecer diferentes atividades socioeducativas (esportivas, culturais, de lazer, de

estudos, entre outras) no período entre o entardecer e o recolhimento bem como nos

finais de semanas e feriados evitando sentimentos de isolamento e solidão (Sistema

Nacional de Atendimento Socioeducativo SINASE, 2007, p. 120).

Basicamente, os adolescentes eram comunicados a respeito da realização das oficinas

no momento em que todos estavam presentes. Não havia restrições para participação, mas

havia alguns acordos, que logo descreverei.

Recordo-me que a primeira oficina realizada por mim, em julho de 2007, teve a

participação espontânea de todos os adolescentes que estavam liberados na unidade. Naquele

dia, foram organizadas duas, para que todos pudessem participar.

Como eu já conhecia os adolescentes, e vice-versa, não foi preciso um momento para

apresentação e nem um “quebra gelo”. A minha relação construída anteriormente por meio da

tríade – observação, aproximação e confiança – possibilitou o estabelecimento de um

vínculo43

, que serviu de suporte para o trabalho direto.

Assim, comecei as oficinas perguntando a eles sobre as expectativas de estarem ali e

expliquei sobre a estrutura da oficina e a importância de fazermos alguns combinados básicos

e segui-los, como: respeito ao agir, respeito ao falar e respeito ao ouvir. Isto é, não utilizei a

expressão “é proibido”, deixando claro que as oficinas não eram obrigatórias, porém, exigiam

compromisso, e que as normas institucionais se faziam presentes naquele espaço. O respeito

ao agir referia-se ao bom comportamento e ao cuidado com a sua produção e o respeito com a

produção dos outros adolescentes. O respeito ao falar devia-se ao tratamento com os outros

dessa forma anulamos o seu próprio eu e criamos um terreno fértil para a produção de preconceitos e de estigmas. Assim, “autor de atos sociais” remete à responsabilização e à valorização do sujeito, numa perspectiva transformadora, por meio da socioeducação. (SOARES, 2005, 2011) 43

Importante lembrar a nota de rodapé 41, na página 43.

45

adolescentes e ao respeito ao emitirem opiniões e críticas. E, o respeito ao ouvir referia-se ao

silêncio e à importância de ouvir o outro e a si mesmo.

Esses combinados eram necessários, por se tratar de um contexto institucional e pelo

fato de as oficinas terem o caráter socioeducativo, e nunca foram descumpridos por nenhum

adolescente.

Após a parte introdutória da oficina, iniciei contando a história da cultura Hip Hop, em

relação aos direitos e deveres daquele período, envolvendo também questões relacionadas à

cidadania. Foi um momento muito rico e especial Os adolescentes desconheciam o contexto

histórico do Hip Hop. Um fato marcante ocorreu quando peguei um vinil44

e coloquei para

tocar. A maioria não sabia o que era aquilo: “Como assim?!”; “O que separa uma música da

outra?!”; “Lado A e lado B?!”. Essas foram algumas das indagações feitas por eles naquele

período. Foi um choque saber que o vinil de ontem é o CD de hoje e, ao mesmo tempo,

também foi engraçado para todos nós.

Naquele dia, havia levado alguns equipamentos para mostrar como que uma base é

produzida, como o scratch45

é feito pelo disc-jóquei (DJ) – percebi que o adolescente gosta de

ver de perto aquilo que estamos falando.

Figura 1 – Local onde aconteceu a primeira oficina. Crédito: Daniel Péricles Arruda.

44

O vinil também conhecido como Long Play (LP) é mantido vivo no Brasil, principalmente, pela cultura Hip Hop. Começou a perder espaço para o Compact Disc (CD), a partir da primeira metade da década de 1990. A Polysom, fábrica localizada em Belford Roxo/RJ, é a única da América Latina que ainda produz e comercializa. 45

É o movimento que os DJs fazem com o a mão em cima do vinil, indo para frente e para traz – giro do disco no sentido contrário –, para produzir sons diversificados.

46

Todo material era organizado de acordo com a temática que iria ser trabalhada. Eu

tinha o cuidado de separar as músicas de RAP e de outros estilos, vídeos e livros de poesia,

conforme o perfil do grupo e de acordo com as questões que eram necessárias.

Todas as oficinas exigiam preparação, estratégia, material de trabalho, linguagem

apurada e percepção para que eu pudesse compreender as expressões verbais e atitudinais dos

adolescentes. As oficinas não apontavam como eles deveriam ser ou como eles deveriam

pensar, mas procuravam identificar o quê e como eles pensavam sobre tal temática46

.

Como falar sobre pobreza e violência com aqueles que viveram na pele esses temas?

“Falar de exclusão ao ‘excluído’ é humilhá-lo, um gesto de prepotência interpretativa próprio

de quem pertence ao mundo do mando e não ao mundo do nós e da partilha” (MARTINS,

2002, p. 44). A questão não era falar de, mas refletir sobre tal assunto. Para levá-los à reflexão

era necessária uma linguagem simples, envolvente e respeitosa. As oficinas aconteciam

também em atenção ao momento vivenciado pela unidade47

, por isso era de suma importância

o apoio e o envolvimento de outros profissionais na sua realização.

A formação dos grupos era feita considerando a relação entre eles, pois realizar as

oficinas com adolescentes que estejam em alto nível de conflito entre si poderia acarretar

situações imprevistas e comprometer o funcionamento.48

Era necessário preparar o ambiente em que as oficinas iriam ser trabalhadas: eu

utilizava uma música ambiente para harmonizar e suavizar o clima; afixava a cada oficina

uma frase diferente na entrada da sala para servir-lhes de acolhida e para ser um ponto de

reflexão. Uma das frases que mais contribuiu era do poeta gaucho Mário Quintana: “Às vezes

a gente pensa que está dizendo bobagens e está fazendo poesia.”

46

A título de exemplo, existe um vídeo da BBC Brasil – o qual pode ser visto no site you tube – que mostra o trabalho realizado pelo monge Kansho Tagai que transmite os ensinamentos budistas (sutras), em um templo liderado por ele no centro de Tóquio, por meio do RAP. O monge não conseguia entender as letras de RAP, que eram em inglês. Daí, ele percebeu que o mesmo ocorria com os sutras budistas por causa que a maioria das pessoas não compreendia nada. Por essa razão, o monge começou a realizar trabalhos com jovens mesclando o sutra com termos simples em japonês moderno, por meio do RAP. O monge pretende misturar sapateado com o budismo e pretende aprender a sambar e a fazer o passo de dança moonwalker, de Michael Jackson. Kansho Tagai é uma referência local, onde é chamado de “Senhor Felicidade”. 47

Conhecer e compreender as implicações do ato infracional e o momento vivenciado pela unidade são de suma importância para saber qual temática é mais cabível naquele momento e como se deve trabalhá-la. 48

Não quero dizer que não era possível trabalhar com adolescentes que não conversam um com o outro. Ressalto apenas a atenção às relações tecidas entre os adolescentes e os seus riscos.

47

Figura 2 – Mensagem de entrada da oficina. Crédito: Daniel Péricles Arruda.

Eis aqui, um ponto crucial. O que são bobagens? Naquele contexto, para os

adolescentes, bobagens eram as suas ideias tímidas que estavam guardadas dentro de si;

formas de se protegerem. Por isso que era importante dizer para eles o significado das coisas.

O que é poesia? “Poesia é voar fora da asa”, como diz o poeta Manuel de Barros (2008, p.

21). Poesia é uma forma de ver, de expressar, de sentir e de compreender a vida.

Além do conceito era necessário elevar o seu ao patamar de reflexão. Não era somente

a produção de RAP e de poesia que possibilitaria a superação da alienação do cotidiano

(HELLER, 1972), mas a ambiência em que essas oficinas ocorriam, Essa ambiência era

constituída pela preparação que antecipava as oficinas, mais as discussões que antecediam o

ato de escrever. Nas conversas, surgiam palavras ou frases interessantes, então eu dizia:

“Você viu o que você falou? Escreva isso.” As discussões eram “rios emaranhados de

peixes”, e o meu papel era ajudá-los a jogar a rede, ou ajudá-los a identificar ou a criar o

nome dos peixes.

O momento da apreensão do pensamento não tinha hora certa para acontecer. Havia

adolescentes que apresentavam facilidade para escrever e outros com dificuldades para

escrever ou desenhar, mas sempre demonstravam o desejo de se expressarem49

.

49

A baixa escolaridade não desqualificava a capacidade subjetiva do adolescente em se expressar. Por isso, é necessário desconstruir a ideia de que todos os desenhos feitos de traços fortes e/ou rabiscados são expressões negativas, como, raiva, tristeza, etc. Percebia que muitos desenhos com essas características também eram feitos por falta de habilidade com o lápis, e, até mesmo, por uma razão positiva ao encontrarem prazer em desenhar daquela forma.

48

Figura 3 – Adolescente participando da oficina. Crédito: Patrícia Tavares.

Nesse momento, eles pegavam o papel e a caneta para começar a produzir50

. Era muito

comum ouvir a frase “olha aqui se ‘tá’ errado?”. Havia insegurança, dificuldade de começar e

vários começos apagados, vistos pelas marcas no papel.

Figura 4 – Adolescente participando da oficina. Crédito: Patrícia Tavares.

Manter distância quando o adolescente escreve e manter o mínimo possível de pessoas

acompanhando eram fatores essenciais para a liberdade de criação deles. Ir até a carteira para

ficar olhando o que ele escrevia anularia o movimento espontâneo de sua produção.

50

Dar um papel e um lápis para o adolescente e dizer “escreve aí qualquer coisa” é incompetência de quem ministra as oficinas. Um papel em branco assusta, e muito. Ao contrário do ditado popular, digo que “papel não aceita tudo”. Antes do papel e do lápis é preciso motivos, fundamentos. É importante que o adolescente entenda o que é e para quê são as oficinas, pois pode ficar entendido que as oficinas são “técnicas de obter confissões” e/ou que as poesias que eles produzirem podem servir de provas contra eles. Cabe dizer, também, que nem todas tinham produção escrita, mas produção de ideias e de diálogos. O RAP e a poesia eram formas de apreendê-las.

49

Os adolescentes sentavam enfileirados ou em círculos? Dependia. No início das

oficinas eu percebia que alguns ficavam incomodados ao estarem em círculo, pois todos se

olhavam e dava uma sensação de “vigilância poética” entre eles, ou seja, um ficava olhando

se o outro já tinha começado a escrever, ou se já estava terminando. O círculo ajudava nas

discussões, mas nem sempre nas produções. Isso, na fase inicial. A fila não é, em si, negativa,

como é dito em outros trabalhos em grupo. Nessa experiência, a fila permitia a preservação do

adolescente na fase inicial; depois, podia-se ter acesso a outros tipos de organização: o

círculo, o triângulo, o posicionamento livre.

Havia adolescentes que não sabiam escrever. Nesses casos, faziam desenhos ou até

mesmo improvisos, que eram anotados para não se perderem. Outro ponto comum era o

pedido de ajuda, às vezes, por exemplo, faltava uma palavra para completar o verso. Mas

expressão, ao concluírem, era de felicidade: era como se eles estivessem em outro lugar, isso

porque “a arte é uma representação que nos conduz a uma realidade diferente de nosso

cotidiano” (FREDERICO, 2005, p. 26).

Em geral, aos sábados, à noite, eles socializavam as produções com os demais

adolescentes; era também uma maneira de observar o adolescente expressando a sua obra.

Lembro que a expressão não se baseava apenas nos saraus realizados, mas durante todo o

processo das oficinas, e que o mostrar para o outro não era o foco, mas, sim, mostrar-se a si

mesmo.

De acordo com o consentimento do adolescente, algumas produções serviam de base

para atendimento técnico.

50

Figura 5 – Adolescente participando da oficina. Crédito: Daniel Péricles Arruda.

O espírito das oficinas manteve-se pelos seguintes pontos:

– Se eu ouço músicas que tem a ver com a minha vida, por que eu mesmo não escrevo

sobre a minha própria vida?;

– Não há letras de RAP ou poesias feias, grandes ou pequenas. O que existe são

produções diferentes e formas diferentes de produzir;

– As oficinas não são concursos ou competições para sabermos quem é o melhor. São

espaços de criação, de troca e de conhecimento.

Assim, as oficinas eram tidas como um lugar de pensar a vida a partir dos valores de

cada adolescente. Lugar que, por meio das letras de RAP e de poesia, era possível perceber a

singularidade e a particularidade em seu estado real. As oficinas tinham a ver com o que

Goethe (apud HELLER, 1972) chama de “condução de vida”: nesse caso, está relacionado

com a maneira como adolescente consegue romper com a alienação e orientar-se de maneira

segura e responsável para fazer suas escolhas e, também, com o modo como ele as assumem,

ou seja, “a condução de vida supõe, para cada um, uma vida própria, embora mantendo-se a

estrutura da cotidianidade; cada qual deverá apropriar-se a seu modo da realidade e impor a

ela a marca de sua personalidade” (HELLER, 1972, p. 40).

51

1.6 Procedimentos facilitadores do uso da metodologia

A arte revela ao homem a sua essência. Mas, quem é esse homem capaz de entendê-la,

capaz de afirmar a infinitude das possibilidades genéricas, capaz de reconhecer

a sua própria natureza nos objetos exteriores?

(FREDERICO, 2005, p. 36)

Os procedimentos têm por base os aspectos apresentados no item anterior. Assim,

considero relevante detalhar as dimensões que constituem a “superação da alienação do

cotidiano” no trabalho prático-reflexivo, por meio do RAP e da poesia, com adolescentes em

cumprimento de medida socioeducativa de internação. Dessa forma, para a realização de

oficinas com esse público, apresento as etapas, as quais demandam atenção para a sua

aplicação e apreensão51

. Antes disso, porém, considero necessário realizar algumas

observações a respeito dessa prática.

É importante que o responsável por aplicar essa metodologia tenha um conhecimento

prévio acerca da cultura Hip Hop e da poesia e que conheça antecipadamente os adolescentes

que participarão, ou seja, que procure saber se há relação ou identificação desses adolescentes

com essa cultura e qual é o sentido dela para eles. É interessante também que o responsável

por ministrar as oficinas já tenha uma sensibilidade para essa modalidade de arte. Tais

questões podem ser apreendidas a partir de “sucessivas aproximações” (BAPTISTA, 2006)

com os sujeitos.

Ressalto que o que pretendo com a proposta dessa metodologia não é organizar um

manual prático para formação de rappers ou de poetas, nem construir uma atividade “lúdica”

51

Por favor, amigos e companheiros rappers, poetas e arte-educadores, não pensem que estou apresentando uma forma única de realizar oficinas, ou que essa construção é produto de uma “grande descoberta”, ou que estou fazendo uso dessa arte sem reconhecer e defender as suas origens e o seu aspecto de formação crítica. A utilização dessa arte é uma forma de ampliar seus espaços de atuação e de alcançar os adolescentes e os jovens que as tenham como uma “lupa” para enxergar a vida. O objetivo, aqui, é que essa metodologia sirva de apoio, de referência e de motivação na construção e/ou na complementação de trabalhos de socioeducação, que são realizados por meio da arte.

52

que comece e termine em si52

, mas sim, estruturar um referencial dinâmico, flexível, de

cunho socioeducativo, que ancore a elaboração e a realização de oficinas de RAP e de poesia

– podendo subsidiar também outras modalidades de oficinas, como as de teatro, de percussão,

etc. –, com vistas ao processo de redirecionamento da sociabilidade53

vivenciado pelo

adolescente em medida de privação de liberdade, concomitantemente aos objetivos da medida

socioeducativa de internação.

Em minha experiência pude aprofundar algumas questões com os adolescentes, por

utilizar essa arte – o RAP e a poesia – também nos atendimentos e nas intervenções.

O trabalho por meio das oficinas não deve ser realizado de maneira isolada, mas de

maneira articulada com a unidade e, nesse caso, de forma mais sistematizada e imediata com

algum setor da instituição, por exemplo, a escola.

O interesse pelas oficinas pode surgir de várias formas: mediante solicitação dos

adolescentes – essa via contribui para o avanço de algumas etapas das “sucessivas

aproximações” (BAPTISTA, 2006); mediante proposta externa de algum arte-educador; ou

mediante proposta da própria unidade. Essas vias demandam cuidado no trato de um possível

estranhamento dos adolescentes com as oficinas e/ou com a pessoa que a ministrará.

Após a articulação com a instituição é interessante que o responsável em ministrar as

oficinas seja apresentado aos adolescentes – se possível, não no dia da oficina, mas alguns

dias antes. Na apresentação, é importante que ele fale sobre elas e informe o porquê de serem

realizadas.

Todo o trabalho deve ser planejado, articulado e compartilhado com os profissionais

da unidade, de acordo com os objetivos e as etapas do processo das oficinas. É de suma

importância que todos os profissionais da unidade tenham fácil acesso aos detalhes das

oficinas, que podem (e devem) ser socializados, por meio de um projeto que conste:

apresentação sucinta da oficina; os objetivos; o detalhamento de como e onde serão realizadas

(o local deve ser agendado e/ou combinado com antecedência e deve ser organizado antes da

chegada dos adolescentes); as temáticas; os materiais necessários (papel, lápis, borracha,

52

Peço atenção ao leitor nessa afirmação, pois não quero dizer que não é importante que algum adolescente queira ser rapper ou poeta. A questão é que isso tem que partir dele, no processo natural da oficina. Outra questão é que as oficinas não se baseiam num momento silencioso em que todos ficam “suspensos” em suas ideias. A arte não é contra a gargalhada, o sorriso e o divertimento. A arte precisa também desses três últimos elementos para se constituir. A questão lúdica a que me refiro é que o RAP e a poesia sejam abordados na perspectiva possibilitadora de transformação daqueles que estão envolvidos nela. Pois, de acordo com Netto “a poesia como a arte é uma forma de conhecimento, mas ela pode ser desqualificada” (NETTO – anotação de aula no dia 08 de outubro de 2010). Essa desqualificação pode ocorrer de várias formas, inclusive, pela forma que essa arte é feita e apresentada. 53

Expressão utilizada por Silva Losacco (2004), ao analisar o processo de socioeducação.

53

computador, som, microfone, etc., conforme a necessidade de uso); cronograma, constando os

dias e os horários da realização das oficinas, e com a relação dos nomes dos adolescentes que

participarão e o contato do responsável.

O número de participantes fica a critério de cada responsável por ministrar as oficinas

– sugiro, sobretudo na fase inicial, a formação de grupos pequenos para maior e melhor

liberdade dos participantes e para o conhecimento gradativo de cada adolescente envolvido.

Se possível, a formação dos grupos deve ser construída, orientada pelas ponderações de

profissionais da unidade, que poderão sinalizar, com mais precisão, acerca do perfil dos

adolescentes, as relações existentes entre eles, etc. Tais observações são relevantes, por se

tratar de uma dinâmica institucional complexa, a qual uma pessoa que não conheça o

ambiente, pode estar fadada a assumir uma visão imediata das relações e, sem perceber, de

maneira não intencional, seguir na contramão do trabalho socioeducativo.

Também, as oficinas tanto podem ser construídas a partir de temáticas apresentadas

pelos próprios adolescentes, quanto pelos responsáveis pela unidade, ou ainda por aquele que

irá ministrá-las; isso depende muito do cotidiano institucional, para que as oficinas aconteçam

de maneira segura. Essa construção baseia-se na poesia “O mistério das coisas”, de Junqueira,

(2007, p. 76):

Quando não sei

Onde colocar minha

Existência,

Penso em coisas como

Passarinho,

árvore,

rochedo

rio e mar,

coisas

que amo tanto

e das quais

tenho tanto medo.

você já pegou

um passarinho

na mão?

é incômodo,

é como tocar

o mistério das coisas,

o corpo do bichinho

é quente

e pulsa.

54

A poesia traz questões importantes para a reflexão sobre o trabalho prático-reflexivo,

por meio de oficinas de RAP e de poesia com adolescentes em cumprimento de medida

socioeducativa de internação. De acordo com a indagação poética – “você já pegou um

passarinho na mão?” – é a partir do “toque” que se alcança o “mistério das coisas”. Ou seja, é

pela aproximação crítica que se consegue ver e sentir o adolescente como tal. Nas oficinas, os

adolescentes podem se sentir assustados, da mesma forma como se sentem quando chegam à

unidade para o cumprimento da medida: “É na chegada... é na acolhida... [o adolescente] é

igual um bichinho assustado.” (SOL).

O modo como o adolescente se apresenta ou como se esconde – ou como se apresenta

escondendo ou como se esconde apresentando – não é o mesmo no decorrer do cumprimento

da medida socioeducativa de internação, bem como, não é o mesmo durante as oficinas.

Desse modo, para o desenvolvimento das oficinas, apresento os cinco pontos cruciais

para a sua operacionalização e para a compreensão de suas dimensões e de seus

procedimentos.

1) Ponto de partida: as oficinas podem começar ou acontecerem em um ambiente fora

da sala da aula. Isso vai depender da dinâmica e da estrutura física da unidade. Por exemplo, o

início das oficinas pode se dar numa simples “rodinha” no pátio, em que os adolescentes

cantam ou escutam RAP. Esse é o momento da criatividade e de o arte-educador se articular

com os adolescentes e com os demais profissionais – com os agentes socioeducativos que

ficam mais próximos a eles no pátio.

Não há necessidade de o adolescente produzir no primeiro encontro da oficina, mas é

preciso que ele tenha contato com algo produzido por alguém, ou que veja um trecho de filme

que mostre algo parecido. Aqui, as letras de músicas ou de poesias impressas auxiliam na

discussão, pois a absorção do conteúdo é maior quando se ouve e se lê ao mesmo tempo.

Nessa fase, o adolescente apresenta o RAP ou a poesia de que mais gosta. Assim, ele

já traz algo que é dele, ou seja, apresenta um caminho de acordo com o seu gosto por alguma

música. Logo, o ponto de partida significa que o arte-educador está apreendendo as ideias

primárias dos adolescentes acerca das temáticas que nortearam as oficinas. Trata-se de ideias

comuns, ideias básicas, “bobagens54

”, como dizia Mário Quintana.

2) Distanciamento da partida: é a etapa em que as ideias iniciais começam a se mover,

dando espaço para as novas. Aqui, é possível a apresentação de algo que complemente ou

questione o gosto do adolescente ou o seu próprio entendimento. O questionamento não

54

De acordo com a página 47.

55

significa anular ou a proibir o que ele pensa ou traz, mas fazer um apontamento para o novo,

para algo complementar – tal questionamento se relaciona, de certo modo, com a crítica

marxista, que é uma negação dialética, que perspectiva a superação. É o momento em que se

pode discutir em grupo a letra da música e/ou da poesia, com vistas a analisar a relação dela

com a vida do adolescente. Essa discussão pode ser articulada com histórias, fatos cotidianos

para que este não se torne um momento fechado e possibilite entradas, movimentos e saídas

na discussão, ou seja, uma dinâmica de interação, por meio do diálogo. Essa etapa vai

sinalizar para o surgimento das reflexões.

3) Ponto de chegada: é o ponto máximo da reflexão, ponto de encontro e/ou de

descoberta, no qual o adolescente alcança a “superação da alienação”. Momento em que se

pode ouvir frases do tipo: “Eu não sabia que era assim!”; “Oh! Eu nunca pensei desse jeito”;

ou “Que doido, velho!”.

Seria, provavelmente, a mesma sensação ao ler os textos abaixo e logo descobrir quem

os escreveu:

Amadinha do meu coração, torno a te escrever porque estou sozinho e porque me

cansa ficar dialogando na minha cabeça o tempo todo, sem que tomes conhecimento

disso, sem que possas me ouvir e responder.

Beijo-te dos pés à cabeça, caio de joelhos diante de ti e gemo: amo-a, minha

senhora. De fato, te amo. E te amo mais do que o mouro de Veneza jamais amou55

.

(SCHWERBROCK apud KONDER, 2009, p. 24)

O ponto de chegada é o despertar, é a surpresa. Momento de ter ideias, em que se

assumem posições, e/ou de ter inspiração para produzir e fazer escolhas. Considerando que “o

pensamento é uma operação viva, cujo progresso é real sem ser, entretanto, linear e,

sobretudo, sem nunca estar acabado” (GOLDMANN, 1979, p. 7). Nessa fase de produção e

de escolha, o arte-educador pode se deparar com a seguinte situação: a produção do

adolescente pode conter gírias ou palavrões e suas escolhas podem ser diferentes das

55

Esses trechos são da carta de Marx a Jenny, escrita 21/6/1856.

56

esperadas, ainda que menos alienadas. Como lidar com isso56

, considerando que “nem todos

os sujeitos receptivos possam reagir adequadamente à arte no modo a que nos referimos”

(LUKÁCS, 1978, p. 294). Em minha experiência no Centro de Atendimento ao Adolescente

(Cead), descobri que, geralmente, por traz de cada palavrão tinha alguém ou algo, ou seja, não

se baseava somente no hábito ou no costume. Todo palavrão tinha um significado. Esse era,

portanto, também, o momento de se trabalhar a questão do respeito.

4) Distanciamento da chegada: é o começo do retorno – mas não para o ponto de

partida. Se o adolescente inicia um processo de rompimento com a alienação, dificilmente

retornará ao ponto de partida. Nesse momento, o adolescente começa a escrever ou a desenhar

o que alcançou. Considero essa fase o momento mais íntimo da oficina, pois o adolescente

precisa de privacidade para escrever. Por essa razão, não é aconselhável que o responsável por

ministrar as oficinas e os agentes socioeducativos “vigiem” o que ele está escrevendo. É

preciso ter uma distância física dos adolescentes, para que eles fiquem mais à vontade. A

aproximação é interessante apenas quando solicitada por ele.

5) Ponto de retorno: é quando se expressa a consolidação do que ele aprendeu nesse

percurso. Se, nesse ponto o adolescente for o mesmo do ponto de partida, considera-se que

não houve superação, não aconteceu a volta comentada por Goldmann (1979, p. 21):

Assim, eis-nos aqui, de volta ao ponto de partida: toda grande obra literária ou

artística é expressão de uma visão do mundo, um fenômeno de consciência coletiva

que alcança seu máximo de clareza conceitual ou sensível na consciência do

pensador ou do poeta.

56

Eis a questão: proibir ou não proibir? Como fazer? Mandar apagar? Fingir que não ouviu e/ou viu? Antes de responder a essas questões, pergunto: por que as gírias e os palavrões incomodam tanto quando são falados na música RAP e quando estão em outros estilos musicais, como em Seu Jorge e Ana Carolina, na música Chatterton; em Legião Urbana (Renato Russo), na música Faroeste Caboclo; em Ultraje a Rigor, na música Filha da Puta, por exemplo, não causam incômodo? Em minha experiência, os adolescentes preferiam não colocar palavrões, porque queriam mostrar para a família e para os profissionais da unidade. A questão é interpretar em qual campo que esses palavrões estão, se é no campo do insulto, do desrespeito, da expressão, da indignação. A questão do palavrão talvez seja mais um problema nosso, do que deles, pois quando há preconceito, toda palavra não entendida, toda gíria pode ser classificada como palavrão. Já passei por situações em que o adolescente se referia a uma pessoa que ele não gostava, por meio de um palavrão. Sugiro uma cuidadosa reflexão dessa questão, a partir do filme Voo noturno: o lado selvagem do rap (1992) – não confundir com o filme Voo noturno, de 2005. Em relação às gírias, indico a dissertação de Alves (2008) e a tese de Luz (2007), na qual os autores apresentam gírias e expressões utilizadas pelos jovens da cultura Hip Hop, com os seus devidos significados.

57

No ponto de retorno, a visão do mundo57

expressa na produção e nas escolhas do

adolescente é comparada com a do ponto de partida para evidenciar os resultados do processo,

o qual implica a noção do adolescente.

Em todas as fases mencionadas poderá surgir o silêncio, o que não significa a não

participação do adolescente. O silêncio não pode ser confrontado com um rol de perguntas

para provocar a palavra, por isso, cabe compreender se está no processo de reflexão ou se está

causando ou manifestando um bloqueio – o adolescente não consegue sair do ponto de partida

– ou uma confusão mental causada pelo excesso de informação, o que faz com que o

adolescente se perca no processo – ou pela sua recusa, por considerar que seus valores foram

desrespeitados, não conseguindo, portanto, ter identificação ou aceitação da atividade, o que

poderia ser chamado Pedagogia do Não58

.

Ao término das oficinas é decisão do grupo se desejam ou não mostrar a produção

para as pessoas. Pode acontecer de adolescentes, por terem produzido um conteúdo muito

íntimo, não quererem compartilhar com os outros, seja por questões legais, seja pela ética, e

isso deve ter respeitado.

O momento da apresentação do material produzido fora ou dentro da unidade deve ser

articulado com a instituição e com os adolescentes. As apresentações não devem ser o

objetivo maior e nem o objetivo-fim das oficinas. Pode ocorrer também de as pessoas que

acompanham o desenvolvimento das oficinas, em razão de ansiedade ou de emoção,

anteciparem essa apresentação.

Cabe ao responsável pelas oficinas ter clareza e posicionamento a partir dos cuidados

desse trabalho, pois, primeiramente, o adolescente produz algo dele para ele, depois produz

dele para o outro, o que demanda concordância, preparação e clareza de objetivos, pois “antes

de mais nada o objeto não é um objeto em geral, mas um objeto determinado, que deve ser

consumido de um modo determinado, de um modo mais uma vez mediatizado pela própria

produção” (MARX apud LUKÁCS, 1978, p. 294).

Portanto, minha experiência evidenciou que a tríade observação, aproximação,

confiança é o pilar para a realização de oficinas. No entanto, é importante pensar que esses

57

Para Goldmann (1979, p. 17), a visão do mundo “não é um dado empírico imediato, mas, ao contrário, um instrumento conceitual de trabalho, indispensável para compreender as expressões imediatas do pensamento dos indivíduos”. O autor afirma também que “uma visão de mundo é precisamente esse conjunto de aspirações, de sentimentos e de ideias que reúne os membros de um grupo (mais frequentemente, de uma classe social) e os opõem aos outros grupos.” (GOLDMANN, 1979, p. 20). 58

Inspirei-me nesse termo ao trabalhar com um profissional, há anos, que para tudo o que as pessoas lhe pediam, ele dizia não, sendo que na maioria das vezes, era possível dizer sim. O não era uma defesa para evitar responsabilidade, isto é, evita-se um compromisso negando sua realização.

58

pilares são relativos, na medida em que há que se fazer uma mediação: as características

deverão ir se construindo de acordo com a forma como as oficinas se desenvolvem, uma vez

que:

O pensamento dialético afirma, em compensação, que nunca há pontos de partida

absolutamente certos, nem problemas definitivamente resolvidos; afirma que o

pensamento nunca avança em linha reta, pois toda verdade parcial só assume sua

verdadeira significação por seu lugar no conjunto, da mesma forma que o conjunto

só pode ser conhecido pelo progresso no conhecimento das verdades parciais. A

marcha do conhecimento aparece assim como uma perpétua oscilação entre as partes

e o todo, que se devem se esclarecer mutuamente. (GOLDMANN, 1979, p. 5)

59

Capítulo 2

A RELAÇÃO ATO INFRACIONAL E VIOLÊNCIA

Por favor, não me entendam mal. Não estou elogiando a violência nem mesmo a justificando.

Não pretendo defender a agressão. Desejo apenas compreendê-la.

Não há como mudar uma realidade se não a compreendermos.

(SOARES, 2005, p. 216)

A violência é uma questão permanente na história da humanidade. As suas várias

manifestações estão atreladas à forma de organização de uma sociedade, ao seu período

histórico e aos valores constitutivos na vida social. Porém, a violência não será tratada como

adjetivação, sendo boa ou má, pois há um paradoxo ao refletir sobre ela. Algumas sociedades

ultrapassaram a perspectiva do “olho por olho, dente por dente”. Mas em alguns países ainda

encontramos a pena de morte, ou seja, o uso da violência do Estado para combater a violência

(SOARES, 2011). Assim, a violência caminha entre o “problema” e a “solução”. Práticas

violentas já foram utilizadas como forma de obter confissões e de se pagar por um pecado,

com a intenção de purificação. Homens e mulheres acusados pela igreja católica de feitiçaria

ou de produzirem conhecimentos contra a doutrina eram queimados vivos.

Trata-se, nesse contexto, do princípio do suplício, ou seja, o castigo era remetido à

punição corporal e à pena de morte.

Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757, a pedir perdão publicamente diante

da porta principal da Igreja de Paris [...] levado e acompanhado numa carroça, nu, de

camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita

carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos

mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com

que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que

será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e

enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado

por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas,

e suas cinzas lançadas ao vento. (FOUCAULT, 2009, p. 9).

Nesse caso, uma pessoa foi condenada por ter matado o pai e, consequentemente,

levada e condenada ao “mundo público”. A punição foi exposta em meio aberto para servir de

exemplo à população e o teor sádico incluía todo corpo. Assim, o fim maior da punição é o

término da existência humana de quem cometeu o delito e a sensação de que o castigo

aplicado foi justo. As punições eram vistas como um “espetáculo punitivo”.

Desse modo, chamo a atenção para o fato de que falar sobre violência não implica

assumir um lado ou outro, mas apreender, no tempo, o quê, o para quê e o como.

60

A relação ato infracional e violência demanda a leitura de suas expressões e dos

fatores que o determinaram. Parte significativa dos adolescentes que acompanhei como

assistente social do Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead) teve uma trajetória de vida

marcada por diferentes modalidades de violência: a pobreza, o abandono, a fragilidade dos

laços familiares. Por mais que um caso parecesse igual ao outro, eram únicos pelo modo como

cada adolescente vivenciou tais situações.

Lembro-me do caso de um adolescente que tinha vasto histórico de atos cometidos

durante a infância – furto de som de carros, principalmente. Nos atendimentos, ele contava a

sua história de vida e era possível identificar o que vinha antes de suas práticas infracionais;

não busco justificar tais práticas, mas compreender o desenvolvimento de sua história. Em

suma, ele teve uma trajetória marcada pela pobreza e pelo abandono familiar. Devido às

brigas dentro de casa, ele passou o maior tempo de sua infância nas ruas. Nessa convivência,

começou a ser utilizado pelo grupo local para cometer furtos de aparelhos de CD de carros,

por não chamar a atenção, já que era pequeno e magro. Esse envolvimento era permeado pelo

uso de drogas. Um dia, perguntei por quanto ele vendia o aparelho de CD; então, ele me disse

que não vendia, pois o grupo local pedia para ele roubar em troca de um cigarro de maconha.

O adolescente não tinha noção do preço de troca, do valor de ambos os produtos e dos riscos a

que estava exposto. Não se tratava de “criminoso” ou “periculoso”, mas de um adolescente

que encontrou uma forma de sobrevivência básica e de aceitação.

A relação ato infracional e violência não são partes iguais e de encaixe perfeito. Tendo

em vista que os atos infracionais que envolvem pessoas, como homicídio e lesão corporal,

escamoteiam os outros atos infracionais que tratam de “coisas”, por exemplo, a receptação.

Em outras palavras, por serem de maior proporção e envolverem pessoas como vítimas, ficam

evidenciados como os únicos.

O ato infracional não é regado por uma conduta violenta na mesma intensidade e na

mesma intencionalidade. É um risco afirmar que a violência gera ou produz o ato infracional,

por considerar que a prática do ato infracional acaba sendo também uma forma de reação

contra a própria violência. Na verdade: “Não há o problema da violência e nem do crime. Nós

temos múltiplas dinâmicas que merecem elaborações e abordagens muito diferenciadas e

políticas públicas distintas.” (SOARES, 2010)59

.

59

Depoimento colhido no Programa Roda Viva, com Luiz Eduardo Soares em 30/11/2010.

61

O Mapa da Violência 2011: os jovens do Brasil, escrito por Julio Jacobo Waiselfisz60

,

apontou que Belo Horizonte/MG, em 1998, estava em 17o lugar no ordenamento das capitais,

por taxas de homicídio, com o índice de 42,9 assassinatos, em 100 mil, de jovens 15 a 24 anos

de idade. Uma década depois, em 2008, estava em 7o lugar, com o índice de 116,3, por cada

100 mil61

.

A concentração de homicídios está na população juvenil, basicamente na faixa etária

de 15 a 24 anos, que tem se estendido até os 29 anos.

A vítima letal brasileira típica é jovem, do sexo masculino, tem entre 15 e 24 anos

(ainda que o espectro etário se estenda rápida e perigosamente para baixo e para

cima), mora nas vilas, favelas ou periferias das metrópoles e, frequentemente, é

negra. Portanto, ainda que haja tantos casos atingindo membros de outros grupos

sociais e outras faixas etárias, o alvo estatisticamente mais provável da modalidade

mais grave da violência tem idade, cor, sexo, endereço e classe social. (SOARES,

2005, p. 247).

2.1 Violência, invisibilidade e cultura: como entendê-las?

Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém

Diz violentas as margens que o comprimem.

(BERTOLD BRECHT)

De acordo com Baptista (2010):

A violência é um fenômeno social de natureza complexa, que envolve relações de

indivíduos, grupo, classes, nações, e que tem por resultado afetar a integridade

60

Cabe destacar um ponto de suma importância apresentado pelo Mapa da Violência 2012: os novos padrões da violência homicida no Brasil. Apresenta dados estatísticos sobre homicídios no Brasil, nas décadas de 1980 a 2010, e demonstra que morreram mais pessoas, vítimas de homicídio (192.804 e, destes, 147.373 por arma de fogo) do que os outros eventos armados no mundo, mesmo sendo um País em que não há guerra civil e/ou enfrentamentos territoriais, religiosos e étnicos, segundo o Mapa da Violência 2012. “E esses números não podem ser atribuídos às dimensões continentais do Brasil. Países com número de habitantes semelhante ao do Brasil, como Paquistão, com 185 mi habitantes, têm números e taxas bem menores que os nossos. E nem falar da Índia, também elencada, com 1.214 mi de habitantes”. (WAISELFISZ, 2012, p. 21). No Brasil, temos múltiplas manifestações da violência fora de uma situação de conflito entendida como guerra. A banalização e a naturalização dessas múltiplas manifestações alimentam a barbárie social. Nas palavras de Soares (2005, p. 247): “Há um déficit de jovens, entre 15 e 24 anos, na sociedade brasileira – fenômeno que só se verifica nas estruturas demográficas de sociedades que estão em guerra. Portanto, o Brasil vive as consequências de uma guerra ‘inexistente’, mais que qualquer outro, setor social está pagando com a vida o preço dessa tragédia.” 61

O mesmo estudo apontou São Paulo/SP, em 1998, no 6o lugar (122,3) e, em 2008, no 27

o (23,4).

Rio de Janeiro/RJ, em 1998, em 3o (141,1) e, em 2008, 20

o (72,8). Maceió/AL, em 1998, estava em

15o (54,3) e, em 2008, estava em 1

o (251,4).

62

física, moral ou espiritual de pessoas ou de agrupamentos humanos. (BAPTISTA,

2010, p. 1)

Baptista (2010) aborda a diversidade e as formas de expressão da violência,

considerando a violência estrutural, a conjuntural, a institucional e a interpessoal. A autora

considera também as contradições desses vários tipos e as violências resultantes dos conflitos

sociais, que independem do modelo e da formação das classes sociais62

.

Nesse sentido, compreendo os atos infracionais como uma modalidade de violência

que jamais será singular – nenhuma violência é singular. Toda violência envolve

determinações sócio-históricas e questões de ordem concreta e subjetiva na imediaticidade do

fato. E, enfatizar apenas os fatores diretos à prática do ato infracional anula as possibilidades

de apreensão de fatores condicionantes e/ou determinantes:

Em outras palavras, pobreza e desigualdade são e não são condicionantes da

criminalidade, dependendo do tipo de crime, do contexto intersubjetivo e do

horizonte cultural a que nos referirmos. Esse quadro complexo exige políticas

sensíveis às várias dimensões que o compõem. É tempo de aposentar as visões

unilaterais e o voluntarismo. (SOARES, 2002, p. 2)

Entretanto, no cenário desigual vivenciado pelas grandes sociedades como a brasileira,

das práticas da violência a do ato infracional também pode ser pensada como uma forma de

conseguir espaço, acolhida, lugar, ou seja, reconhecimento63

.

Por que a arma de fogo dá a sensação de poder ao adolescente? Quais são os ganhos

obtidos pelo adolescente envolvido com a criminalidade?64

A arma dá sensação de comando, de status e de poder. Com ela, é possível adquirir

dinheiro, respeito e bens materiais. Essas respostas são tidas como regras e conclusões únicas

para todos os casos. Há os que dizem que “a vida do crime é um caminho fácil”65

; no entanto,

a realidade mostra que é o contrário: a vida do crime é difícil e perigosa. Esse modelo de

sociabilidade demanda atenção por onde se anda e sigilo, em caso de ser apreendido pela

polícia ou pego por inimigos, ou seja, um pequeno erro pode custar a própria vida. Isso é vida

62

Soares (2005), ao falar sobre a cultura da paz, afirma que a violência se aprende, assim como se aprende a exercer e guiar-se para a paz. “O senso comum supõe que a violência seja a explosão animal de um fogo interno que arde em nós.” (SOARES, 2005, p. 237). 63

Vide a dissertação de Toledo (2007). 64

Tenho o cuidado de compreender a categoria e o nível de envolvimento do adolescente com a prática infracional, pois há adolescentes que, mesmo cometendo atos infracionais, não apresentam relações com a criminalidade. O seu envolvimento está inserido numa gama de papéis e representações. Para essa reflexão, conferir Zaluar (1994, 2000, 2004, 2008). 65

Sobre essa questão, Soares (2005, p. 218) afirma que “a carreira do crime é uma parceria entre a disposição de alguém para transgredir as normas da sociedade e a disposição da sociedade para não permitir que essa pessoa desista”.

63

fácil? A vida do crime é uma bandeja que nem sempre traz o que o adolescente pediu,

certamente:

Ainda por motivos ilusórios e passageiros, a violência dá prazer, fortalece a auto-

estima, proporciona a fruição do respeito e da admiração que advém do

pertencimento a um grupo, permite o acesso ao desejo das gurias (e dos guris),

garante ingresso na festa hedonista do consumo. Então, cabe-nos criar condições

para que pelo menos as mesmas vantagens possam ser experimentadas no lado de

cá. (SOARES, 2005, p. 241)

A prática do ato infracional seria uma forma de romper a invisibilidade? Não como

generalização, mas como raciocínio analítico e fundamentado, Soares (2005) afirma que a

estigmatização, o preconceito, a indiferença e a negligência são fatores que anulam o

reconhecimento do sujeito tornando-o invisível para o acesso aos direitos e a uma “boa

condição humana”66

.

A invisibilidade não está relacionada diretamente com o ser ou não ser visto, mas com

o modo como se é identificado e se é reconhecido pelo outro. Nessa questão, há distinções

entre o preconceito e a indiferença, na medida em que ambos atuam como anulação da

pessoa; a indiferença negligencia, já o preconceito projeta nela uma imagem não verdadeira e

pré-formada (SOARES, 2005). O que resulta, então, em olhares não acolhedores:

Nós nada somos e valemos nada se não contarmos com o olhar alheio acolhedor, se

não formos vistos, se o olhar do outro não nos recolher e salvar da invisibilidade –

invisibilidade que nos anula e que é sinônimo, portanto, de solidão e

incomunicabilidade, falta de sentido e valor. (SOARES, 2005, p. 206)

A ausência de reconhecimento pode produzir e reproduzir vários sinônimos para a

invisibilidade e antônimos para o reconhecimento pessoal e social. A invisibilidade não é

dada, e quando é, já passou um processo de produção a certo nível; não é singular e nem

única: as suas várias formas corroboram para transformar concretamente a pessoa naquilo que

pensamos erroneamente, ou por convicções próprias de ordem cultural. Porém, “quando não

se é visto e se vê, o mundo o oferece o horizonte, mas furta a presença, aquela presença

verdadeira que depende da interação, da troca, do reconhecimento, da relação humana”

(SOARES, 2006, p. 167).

Para Soares (2005), quando “o menino invisível se arma” é como se conseguisse um

“credenciamento” para existir socialmente e conseguir visibilidade. Muito mais do que um ato

infracional, é um pedido de socorro, uma declaração de condição. Esse adolescente expressa

66

De acordo com Rios (2006, p. 7), “não existe natureza humana – o que existe é a condição humana, que os homens constroem juntos, historicamente. Essa condição humana pode ser boa ou má”.

64

um sentimento que, para o autor, é medo. E, “como aquilo que se prevê é ameaçador, a defesa

antecipada será a agressão ou a fuga, também hostil. Quer dizer, o preconceito arma o medo

que dispara a violência, preventivamente” (SOARES, 2005, p. 175).

É comum noticiários trazerem títulos como: “Menor que matou adolescente no

Juramento se apresenta à polícia”67

. O termo “menor”, mencionado principalmente em fatos

de cunho infracional, reduz a condição do adolescente, ao mesmo tempo em que amplia os

preconceitos e as rotulações. Quem é o menor? Quem é o adolescente?

Rios (2006) chama a atenção para três pontos principais para se compreender a

realidade, consequentemente, os pilares para a o estudo da invisibilidade. O primeiro ponto é

a clareza em relação ao nosso ponto de partida, que são nossos valores e a nossa cultura.

Mesmo com esses pontos de partida, as ideologias e os preconceitos podem distorcer a forma

de enxergar algo ou alguém. O segundo ponto é a profundidade, ou seja, ir além da superfície

das questões, ir além do que as imagens apresentam ser, é o que dizem os filósofos: “sair da

aparência e ir à essência”. O terceiro e último ponto é a abrangência, devido à contradição da

realidade: não isso ou aquilo, mas isso e aquilo – há necessidade de apreender a realidade em

seus diversos ângulos e em perceber múltiplos pontos de vistas de seus atores.

A partir das minhas reflexões, construí um quadro acerca das modalidades de

invisibilidade, com base em Rios (2006), Soares (2005), Sales (2007) e Braga (2004):

Tabela 2 – Modalidades de invisibilidade

Modalidades de Invisibilidade Aspectos

Projetada Construída a partir de estigmas, preconceitos,

indiferença, negligência, humilhação, racismo, etc.

Intencional Quando é sabida a verdade e se tenta anular por

alguma razão.

Estratégica Construída para tirar proveito e/ou vantagem, ou para

criar impressão diversa da realidade mediante alguma

camuflagem.

Naturalizada Qualquer atitude ou comportamento tomado por força

maior de valores pessoais, sociais ou culturais, que

não atraem a pessoa para a existência de um fato.

Oculta Quando só é identificada em uma convivência maior.

Essa invisibilidade se revela na compreensão de nossa

incompreensão acerca das pessoas ou das coisas.

Fonte: Sistematização do autor.

67

Título de uma reportagem publicada em 23 set 2011, às 11h03, no portal O Globo Rio. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/mat/2011/09/23/menor-que-matou-adolescente-no-juramento-se-apresenta-policia-925424800.asp>. Em entrevista, no Programa Roda Viva, de 30/11/2010, Luiz Eduardo Soares enfatiza que “os jornalistas não têm formação para lidar com o crime”. É percebido que a questão criminal – neste estudo, questão infracional –, é abordada como notícia não imparcial e sem fundamento reflexivo.

65

As modalidades de invisibilidade se correlacionam, assim como se correlacionam os

sujeitos que as vivenciam.

É necessário perguntar para quem o adolescente envolvido na criminalidade e/ou autor

de atos infracionais é invisível e quais são os determinantes dessa questão.

É fato que “nós costumamos ignorar os sujeitos que não são como nós, que são os

outros” (RIOS, 2006, p. 6). Nessa perspectiva, cito as pessoas que prestam serviços, os

adolescentes autores de atos infracionais, os egressos do sistema prisional, as pessoas em

situação de rua, e aquelas com algum tipo de deficiência, enfim:

Essas são as pessoas que a gente não vê, que são os outros. São outros eus. Não são

eu, mas são como eu, e é muito difícil admitir essa existência. Porque Narciso acha

feio o que não é espelho. É importante, entretanto, pensar que a nossa identidade é

garantida pelos outros, pela presença da alteridade. Mesmo no espelho mais

cristalino, a imagem que eu tenho de mim é invertida. Quem fala de mim é quem me

vê, quem está na minha frente – é o outro, o alter, aquele que me reconhece. Quando

deixo de reconhecer o outro, nego ao outro a sua identidade. Se não levo em conta a

alteridade, a presença do outro, instalo algo chamado a alienação, porque quando

deixo de reconhecer o outro, nego ao outro a sua identidade. Marx falou da

alienação econômica. Podemos falar numa alienação ética, que é o que ocorre

quando olhamos os outros sem ver, ou quando vemos sem crítica, quando não

reparamos. (RIOS, 2006, p. 7)

Até aqui, foram apresentadas as questões relevantes sobre violência e invisibilidade.

Considero necessária a abordagem da categoria cultura68

, como algo ontológico – ou seja,

como inerente ao ser social –, para apreender e articular com o constructo teórico produzido.

A cultura, produzida e reproduzida numa sociedade, determina (e é determinada) pela

maneira como as pessoas se organizam e constroem as suas relações. Nesse sentido, a cultura

pode ser apreendida nas manifestações do senso comum, pois:

O senso comum é comum não porque seja banal ou mero exterior conhecimento.

Mas porque é conhecimento compartilhado entre os sujeitos da relação social. Nela

o significado a precede, pois é condição de seu estabelecimento e ocorrência. Sem

significado compartilhado não há interação (MARTINS, 2008, p. 54).

Nesse movimento, vejo a cultura como manifestação e ao mesmo tempo como

organização da vida social – ela se manifesta na sua organização e se organiza na sua

manifestação. Há uma modalidade de cultura que é comum e visivelmente reconhecida: são as

68

Cultura, do latim culture, significa “o cuidado disponibilizado ao campo ou ao gado”, surgiu no fim do século 13 para referenciar uma parcela de terra cultivada. No século 16, começa ganhar sentido figurado, podendo fazer referência à cultura de uma faculdade, ou seja, a ação de trabalhar para o seu desenvolvimento. O século 18 é considerado o início de seu sentido moderno (CUCHE, 2002), que teve a filosofia Iluminista como um de seus pilares.

66

manifestações artísticas que se expressam por meio da poesia, da dança, da música, da

pintura, etc. – sendo essa via a que mais chama a atenção aos olhos; porém, não começa e

nem termina aí, pois sendo ontológica, está sempre presente e é processual. Pode-se apreender

a cultura por meio dos hábitos, dos costumes e dos valores de uma sociedade ou de um grupo

social; no entanto, essa apreensão somente se torna concreta, compreendendo-se o seu

movimento real.

De acordo com Abbagnano (1963), o termo cultura, a princípio, possui dois

significados básicos: um refere-se à formação do homem e ao seu desenvolvimento, o outro

diz respeito ao modo de vida e de pensar do homem, sendo, então, produto de sua formação,

que, segundo o autor, é um estágio civilizatório.

Para os gregos, a cultura era um processo de formação do homem, que se realizava por

meio da educação, basicamente das belas artes: a poesia, a filosofia, o discurso, etc. Era o que

diferenciava os homens de todos os outros animais. “Neste sentido, a cultura foi para os

gregos a busca e a realização que o homem fez de si, ou seja, da verdadeira natureza humana”

(ABBAGNANO, 1963, p. 272, tradução minha). Assim, para os gregos, o homem só

conseguia realizar-se por meio dessa busca, de sua vivência em sociedade com a polis – esse

pressuposto tem como fundamento a frase de Aristóteles: “O homem é por natureza um

animal político”.

Nesse perspectiva, para Chauí (2000, p. 61), a filosofia do século 19 “descobre a

Cultura como modo próprio e específico dos seres humanos”. É, pois, por meio da cultura que

os seres humanos existem de maneira diferenciada dos animais: são seres culturais, enquanto

os animais são seres naturais.

Karl Marx (1989) também faz um paralelo entre o homem, “como ser genérico

consciente”, e o animal, que “constrói apenas segundo o padrão e a necessidade da espécie”:

A construção prática de um mundo objetivo, a manipulação da natureza inorgânica é

a confirmação do homem como ser genérico consciente, isto é, ser que considera a

espécie como seu próprio ser ou se tem a si como ser genérico. Sem dúvida, o

animal também produz. Faz ninho, uma habitação, como as abelhas, os castores, as

formigas, etc. Mas só produz o que é estritamente necessário para si ou para as suas

crias; produz apenas numa só direção, ao passo que o homem produz

universalmente; produz unicamente sob a dominação da necessidade física imediata,

enquanto o homem produz quanto se encontra livre da necessidade física e só

produz verdadeiramente na liberdade de tal necessidade; o animal apenas se produz

a si, ao passo que o homem reproduz toda a natureza; o seu produto pertence

imediatamente ao seu corpo físico, enquanto homem é livre perante o seu produto. O

animal constrói apenas segundo o padrão e a necessidade da espécie a que pertence,

ao passo que o homem sabe como produzir de acordo com o padrão de cada espécie

e sabe como aplicar o padrão apropriado ao objeto; deste modo, o homem constrói

também em conformidade com as leis da beleza. (MARX, 1989, p.165)

67

É imediata a identificação do animal com a sua ação vital. Entretanto, o homem parte

da vontade e da consciência, realizando uma “atividade vital consciente” que abre a sua

possibilidade para assumir-se como “ser genérico”, transformando a natureza.

A partir dessas reflexões, assumo, nesta dissertação, como conceito de cultura, o

proposto por Chauí (2000, p. 61):

A cultura é a criação coletiva de idéias, símbolos e valores pelos quais uma

sociedade define para si mesma o bom e o mau, o belo e o feio, o justo e o injusto, o

verdadeiro e o falso, o puro e o impuro, o possível e o impossível, o inevitável e o

casual, o sagrado e o profano, o espaço e o tempo. A Cultura se realiza porque os

humanos são capazes de linguagem, trabalho e relação com o tempo. A Cultura se

manifesta como vida social, como criação das obras de pensamento e de arte, como

vida religiosa e vida política.

Chauí (2000) aponta que, para a filosofia do século 20, não há “a Cultura” como

unidade básica e ampla, mas “culturas diferentes”. Cada uma produz o seu modo de vida, suas

expressões linguísticas, suas relações sociais, conforme o processo político, econômico,

social, geográfico e histórico em que se constitui.

Portanto, essas três categorias – a invisibilidade, a violência e a cultura – não são

fechadas em si. Compartilham entre si e com um conjunto de categorias relacionadas à vida

em sociedade, e podem possibilitar a expressão de categorias ontológicas, bem como de

categorias constituída por processos emergentes, oriundos dessa relação. Percebo que a

identidade70

é das categorias que se evidência por:

[...] torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em

relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas

culturais que nos rodeiam (HALL, 1987). É definida historicamente, e não

biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,

identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há

identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que

nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. (HALL, 2006, p. 12)

O que posso afirmar, a partir dos estudos realizados, é que os fatores que produzem e

reproduzem a invisibilidade e a violência, compondo uma cultura, não ocorrem apenas em

razão de fatos ocorridos na realidade imediata; existem outros fatores, de ordem maior, que

70

Cf. Hall (2006, 2009), que afirma que a identidade é mutável e que esse processo não tem fim. O autor contrapõe a ideia de que a identidade é única, pois, caso fosse, não seria possível que as pessoas construíssem a sua história, sendo elas as mesmas do nascimento até a morte. Esse pensamento, nas palavras do autor, seria uma “fantasia”. Hall (2006, p. 39) sugere que “[...] em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento.”

68

são determinantes e que resultam da inversão da leitura daquela realidade ou, até mesmo, de

uma cultura de naturalização da violência e da invisibilidade:

Se é assim, o jovem invisível que recorre à arma para pedir socorro e reconquistar

visibilidade, afirmando-se pelo avesso, só pode fazê-lo, porque esta é uma das

hipóteses que nossa sociedade colocou à sua disposição e a cultura sancionou-a.

(SOARES, 2005, p. 240).

2.2 Quem são os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação?

O adolescente é um viajante que deixou um lugar e ainda não chegou no seguinte.

(LOSACCO, 2010, p. 68)

Segundo o Levantamento Nacional de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente

em Conflito com a Lei, de 201071

, havia, naquele ano, 17.703 adolescentes em restrição e

privação de liberdade: na internação, 12.041; na internação provisória, 3.934; e na

semiliberdade, 1.728. Os dados apresentam um aumento, de 763 jovens (4,50%) em

restrição/privação de liberdade, em relação a 2009, que se contrapôs à continuidade da

redução que vinha acontecendo nos anos anteriores.

Figura 6: Gráfico da evolução da privação e da restrição de liberdade no Brasil. Fonte: Secretaria Nacional

dos Direitos Humanos - Levantamento Nacional de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito

com a Lei (2010, p. 7).

71

O levantamento foi constituído a partir de dados e informações repassados por gestores estaduais do Sistema Socioeducativo para a Secretaria de Direitos Humanos e Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente.

69

As tabelas abaixo apresentam os dados dos 1.432 adolescentes que foram atendidos

em medida socioeducativa de internação, em Minas Gerais, no ano de 201072

.

Ao término das tabelas que apresentam o índice dos atos infracionais cometidos pelos

adolescentes (Tabela 10) e da sequência de tabelas acerca do uso autodeclarado pelos

adolescentes de substâncias ilícitas e lícitas73

(Tabelas 12 a 19), que são apresentadas em

números relativos – percentuais –, construo uma síntese da conversão dos números relativos

em números reais. Para tanto, foi preciso fazer aproximações numéricas – tendo por base a

somatória real dos sujeitos –, de forma a apresentar os números reais, em vez das

porcentagens. Nas demais tabelas, apresento alguns números reais e os números relativos

entre parênteses.

Tabela 3

Há uma incidência acentuada de adolescentes em cumprimento de medida

socioeducativa de internação, a partir dos 15 anos de idade, 212 (14,8%), indo para 352

(24,6%) aos 16 anos e, alcançando um número maior aos 17 anos, 497 (34,7%), e um declínio

a partir dos 18 anos, 175 (12,2%).

72

A coleta e a elaboração dos dados foram feitas e cedidas para esta pesquisa, pela Diretoria de Gestão da Informação e Pesquisa (DIP), da Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase), da Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais (Seds). Atualmente, há em MG 17 unidades que executam a medida socioeducativa de internação – algumas delas, situadas no interior, são destinadas também à internação provisória. Em Belo Horizonte estão 6 (seis) destas unidades de internação. 73

Refiro-me ao álcool e ao tabaco que, embora não sejam substâncias ilícitas, o seu consumo e a sua venda são proibidos para pessoas de idade inferior a 18 anos.

70

Tabela 4

Dos 1.432 adolescentes, 1.373 (95,9%) eram do sexo masculino, e 59 (4,1%) do sexo

feminino. A tabela apresenta pouca variação do comparativo nacional, realizado pelo

Levantamento Nacional de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a

Lei, de 2010: naquele estudo, 16.807 (94,94%) dos adolescentes eram do sexo masculino e

896 (5,06 %), do feminino.

Tabela 5

De acordo com a Diretoria de Gestão da Informação e Pesquisa (DIP), da

Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase), o cálculo foi construído

mediante as informações de renda autodeclaradas pelos adolescentes no momento da acolhida

71

nas unidades. As informações sobre a renda familiar foram divididas pelo número de pessoas

residentes no domicílio, para a elaboração da tabela acima.

Com base nessas informações, constatou-se que mais da metade das famílias, 955

(66,69%) recebiam um per capita de até um salário-mínimo74

. Isso quer dizer que o número

significativo de famílias de adolescentes em privação de liberdade precisava de algum apoio

socioassistencial.

Tabela 6

A tabela mostra que 715 (49,9%) adolescentes não trabalhavam antes de iniciarem o

cumprimento da medida socioeducativa de internação; 505 (35,3%) não sabiam informar e/ou

não responderam; e 212 (14,8%) afirmaram que trabalhavam.

Tabela 7

74

Em 2010, o salário-mínimo era de R$ 510, de acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

72

No que se refere à raça/cor, índice de maior representatividade, 717 (50,1%)

adolescentes se autodeclararam pardos; 338 (23,6%), brancos; e 294 (20,5%), pretos. A soma

das categorias parda e preta, totaliza 1.003 (70,06%) adolescentes que se autodeclaram

afrodescendentes. É interessante assinalar a baixa incidência de autodeclarados amarelos, 17

(1,2%), e indígenas, 4 (0,3%)75

.

Tabela 8

A maioria dos adolescentes era solteiros: 1.365 (95,33%). O índice de adolescentes

que informaram ser amigados, foi de 39 (2,73%) e que tinham união estável foi de 9 (0,61%).

75

É importante considerar que o contingente de adolescentes negros ou afrodescendentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação está relacionado com a formação sócio-histórica do território. Afirmo isso, pois esse perfil de raça/cor varia em cada unidade e em cada região do País; mesmo assim, os adolescentes que se autodeclaram pretos e pardos são a maioria na privação de liberdade. A título de exemplo, a minha percepção, ao visitar uma unidade da Fundação Casa situada em Piracicaba/SP, foi de que a maioria dos adolescentes que estavam internados no momento não eram negros. Para discutir a questão racial, conferir Amaro (2005), Moore (2010), Munanga (2006, 2009), Ribeiro (2004) Sartre (1968) e Silva (1995).

73

Tabela 9

No ensino fundamental, o 6o ano teve a maior concentração de adolescentes, 407

(28,40%); no ensino médio, a maior concentração estava no 1o ano, 51 (3,58%); e, no ensino

superior, o índice foi de 2 (0,12%).

74

Tabela 10

Para subsidiar os estudos dessa tabela, realizei uma classificação da natureza dos atos

infracionais praticados:

75

Tabela 11 – Categorização dos atos infracionais praticados pelos adolescentes atendidos na

medida socioeducativa de internação, em 2010, na Subsecretaria de Atendimento às Medidas

Socioeducativas (Suase)

Categoriasa Porcentagem

Crimes praticados contra o patrimônio

(roubo, furto, tentativa de roubo, latrocínio, dano,

extorsão, receptação, roubo a mão armada)

564 (39,38%)

Crimes praticados contra a pessoa

(homicídio, tentativa de homicídio, lesão corporal,

vias de fato)

390 (27,24%)

Crimes praticados contra a dignidade sexual

(estupro)

19 (1,33%)

Crimes praticados contra a liberdade individual

(ameaça)

16 (1,09%)

Crimes praticados contra a administração pública

(desacato) 1 (0,06%)

Outros ilícitos – lei especial

(tráfico de drogas e posse para uso de drogas –Lei

11.343/2006; posse ou porte ilegal de armas – Lei

10.826/2003)

363 (25,37%)

Outras categorias

(sem informação, outros, descumprimento de

medida, mandado de busca e apreensão)

79 (5,53%)

1.432 (100,00%)

a Utilizo a categoria crime por ser o termo utilizado pelo Código Penal Brasileiro.

Fonte: Sistematização do autor.

Os atos infracional mais praticados pelos adolescentes em cumprimento de medida

socioeducativa de internação foram: roubo, 345 (24,09%); tráfico de drogas, 328 (22,88%); e

homicídio, 235 (16,44%).

Os atos infracionais cometidos contra o patrimônio – roubo, furto, tentativa de roubo,

latrocínio, dano, extorsão, receptação, roubo a mão armada – tiveram o maior índice, com 564

incidências (39,38%). Convém ter clareza que nessa contagem estão incluídos os latrocínios,

que somaram 40 (2,79%), e que são, ao mesmo tempo, infrações contra o patrimônio e contra

a pessoa. Ainda que o latrocínio fosse reclassificado na categoria de infração contra a pessoa,

o índice de infrações contra o patrimônio continuaria a ser maior nessa categorização, com

524 (36,59%).

76

Os atos infracionais cometidos contra a pessoa – homicídio, tentativa de homicídio,

lesão corporal, vias de fato – somaram 390 das incidências (27,24%). Se a essa classificação

forem somados os casos de latrocínio, a sua percentagem subiria para 430 (30,03%).

Os atos infracionais cometidos por alguma prática ilícita (tráfico de drogas, posse ou

porte ilegal de armas, posse de drogas para uso pessoal ) foram de 363 (25,37%). A posse de

drogas para o uso pessoal – ainda que esteja na tabela encaminhada pela instituição –

conforme a Lei 11.343/2006, artigo 2877

(lei que institui o Sistema Nacional de Políticas

Públicas sobre Drogas -Sisnad) –, se o consumo pessoal de drogas for comprovado, não pode

ser considerada crime que comporte privação de liberdade.

Nas demais categorias (sem informação, outros, descumprimento de medida, mandato

de busca e apreensão), os índices tiveram um total de 79 (5,53%).

De acordo com a Diretoria de Gestão da Informação e Pesquisa (DIP), da

Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase), a média do tempo de

cumprimento da medida socioeducativa de internação era de 361 dias.

Tabela 12

O índice de maior representatividade, em relação ao uso autodeclarado de álcool pelos

adolescentes, foi de 848 (59,2%) adolescentes, que afirmaram não fazer uso de álcool. Por

outro lado, 553 (38,6%) autodeclaram que faziam uso.

77

“Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.”

77

Tabela 13

A maioria dos adolescentes, 829 (57,9%) declarou que fazia uso de tabaco; 573 (40%)

afirmaram que não faziam uso.

Tabela 14

A maioria dos adolescentes, 1.107 (77,3%), autodeclarou que fazia uso de maconha;

enquanto 296 (20,7%) autodeclararam que não faziam.

Tabela 15

78

Ao contrário do que se afirmou em relação ao uso de maconha, 903 (63,05%)

adolescentes autodeclararam que não faziam uso de cocaína, enquanto que 499 (34,83%) se

autodeclaram usuários.

Tabela 16

A autodeclaração do não uso de crack é maior do que a do não uso da cocaína, ou seja,

1.182 (82,52%) disseram não usar crack e 221 (15,41%) adolescentes se autodeclaram

usuários.

Tabela 17

O número de adolescentes que se autodeclararam não usuários de solventes, 1.291

(90,1%), é um pouco superior ao do não uso do crack, 1.182 (82,52%). Dos adolescentes que

autodeclararam fazer uso de solventes, obteve-se o número de 113 (7,9).

79

Tabela 18

Em sequência, 1.381 (96,4%) adolescentes autodeclararam que não faziam uso de

psicofármacos e 23 (1,6%) autodeclararam que sim.

Tabela 19

O número de adolescentes que autodeclararam que não usavam drogas sintéticas foi de

903 (63,1%), enquanto 13 (0,9%) afirmaram usar. O percentual da categoria “sem

informação” também é significativo: 503 (35,1%). Os dados demonstram que o uso de drogas

sintéticas tem menor espaço entre os adolescentes pesquisados, pois mesmo se o índice da

tabela “sem informação” fosse somado ao “sim”, o resultado não teria ultrapassado a

representação maior dessa tabela, que é o “não”.

As tabelas demonstram a atenção da Diretoria de Gestão da Informação e Pesquisa

(DIP), da Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase), com a questão

das drogas, evidenciada pelo detalhamento específico de cada substância. As tabelas que

apresentaram a autodeclaração, com a maior representatividade de adolescentes que faziam

uso de alguma substância, foram as que trataram do tabaco e da maconha.

80

A autodeclaração de que não faziam uso de crack, nem de solventes, nem de

psicofármacos ou de sintéticos, teve índices significativos; entretanto, o uso autodeclarado de

álcool, mesmo não tendo atingindo a maioria, apresenta o índice expressivo de 553 (38,6%)

adolescentes.

Os dados trazem à luz a importância desse tipo de detalhamento, para a compreensão

da relação do adolescente com a diversidade de drogas, possibilitando um olhar crítico, em

relação ao seu uso, e subsidiando encaminhamentos para o debate com o próprio adolescente

e para o enfrentamento da questão, no contexto da ação socioeducativo.

Tabela 20 – Sistematização de todas as tabelas referentes à autodeclaração do uso de alguma

substância, dos adolescentes atendidos na medida socioeducativa de internação,

em 2010, na Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase)

Fonte: Sistematização do autor – alguns números são aproximativos, em razão da dificuldade da conversão

imediata de números relativos para números reais.

Esses dados são de suma importância para análise dos adolescentes em cumprimento

de medida socioeducativa de internação, pois parte expressiva desses jovens era oriunda de

um segmento da população em estado de vulnerabilidade pessoal e social. Índices não

SUBSTÂNCIAS NÃO NÃO SABE / NÃO RESPONDEU SEM INFORMAÇÃO SIM TOTAL

Álcool

847 16 16 553 1.432

Tabaco

573

14 16 829 1432

Maconha 296 13 16 1.107

1432

Cocaína

903 15 15 499 1.432

Crack

1.182 15 14 221 1432

Solvente

1.291 14 14 113 1.432

Psicofármacos

1.381 14 14 23 1.432

Sintéticas

903 13 503 13 1.432

81

diferentes puderam ser observados nos anos anteriores, de 2007 a 2009, nas oficinas de RAP e

de poesia que foram realizadas.

De modo geral, o perfil médio do adolescente em cumprimento de medida

socioeducativa de privação de liberdade, no ano de 2010, era o de um adolescente com 16

anos de idade, do sexo masculino, afrodescendente, solteiro, que não trabalhava antes de

iniciar o cumprimento da medida socioeducativa de internação, tendo como escolaridade o 6o

ano do ensino fundamental. De família com renda familiar de até um salário-mínimo per

capita, a principal infração foi contra o patrimônio, e não fazia uso autodeclarado de álcool e,

em relação às substâncias ilícitas, autodeclarava-se usuário de maconha.

Os adolescentes que atendi tinham perfil bastante aproximado àquele feito acima.

Eram atores de uma dinâmica social desigual, uma vez que os adolescentes de segmentos de

classe com melhores condições de vida e com acesso aos direitos sociais, quando cometiam

atos infracionais, raramente chegavam até a medida socioeducativa de privação de liberdade.

Na minha experiência, não atendi nenhum adolescente de segmento de classe que lhes dessem

boas condições de contratação de defesa jurisdicional em relação à prática infracional.

82

Capítulo 3

A PESQUISA: O RAP E A POESIA COMO MEDIADORES DA TEORIA NA

PRÁTICA

O Universo não é uma idéia minha.

A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha.

A noite não anoitece pelos meus olhos,

A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.

Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos

A noite anoitece concretamente

E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

(ALBERTO CAEIRO, Poemas Inconjuntos)

Após descrever e realizar apontamentos críticos acerca do contexto da ação que

norteou a pesquisa, a apresentação e as peculiaridades do tema desta dissertação, bem como

após discutir as categorias principais que emergiram no processo do trabalho realizado por

meio das oficinas de RAP e de poesia, no terceiro capítulo faço algumas reflexões sobre a

arte, a questão da cultura Hip Hop e de seus elementos; observo o RAP, como discurso

político e conhecimento crítico; e, por fim, analiso a pesquisa e as apreensões obtidas da

relação do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa de internação e dos

profissionais do Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead) com o RAP e a poesia.

3.1 A arte

[...] assim como a música desperta primeiramente o sentido musical do homem,

assim como para o ouvido não musical a mais bela música não tem

nenhum sentido...

(KARL MARX, 2004, p. 110)

De acordo com Frederico (2005), Karl Marx não ignorou os estudos acerca da estética

e da arte78

. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, de 1844, Marx deixou encalços

relevantes para que se reflita a arte também como objetivação humana.

78

“Em seus anos de formação universitária, junto com o direito e a filosofia, Marx empenhou-se seriamente no estudo da literatura e da estética, tendo acompanhado os cursos de Schlegel sobre literatura antiga. No início de 1842, paralelamente à atividade jornalística, dedicou-se a escrever um Tratado sobre a arte cristã, além de dois ensaios, Sobre a arte religiosa e sobre os românticos.Todo esse material se perdeu, informa Lifshitz que pesquisou os cadernos de leitura nos quais Marx fazia anotações preparatórias e resumos de livros que serviam de base para a redação dos referidos textos.” (FREDERICO, 2005, p. 23).

83

Para Marx, a arte desdobra-se do trabalho, atividades que fazem parte do

desenvolvimento das objetivações materiais e não-materiais e possibilitam ao homem

distinguir-se da natureza, ou seja, transformando-a em seu objeto e modificando-a conforme

as suas demandas vitais. As objetivações não são realizadas mediante processo de

hierarquização, pois apresenta várias formas. A arte, por exemplo, não “supera” o trabalho e

nem vice-versa, isto é, as objetivações não são superáveis entre si. A compreensão de arte, de

Karl Marx, diferencia-se da de Hegel e Feuerbach.

Frederico (2005, p. 25) afirma que, para Hegel,

a arte é, simultaneamente, uma manifestação que torna o Espírito consciente de seus

interesses e um modo através do qual o homem diferencia-se da natureza, situa-se

em face de seu próprio ser, faz-se objeto de contemplação, exterioriza-se desdobra-

se, projeta-se, apresenta-se a si próprio e, assim, toma consciência de si.

Hegel, em sua perspectiva idealista, assinala também que toda arte é portadora de

conteúdo. Para ele, há um sentido da arte na arte que, pelo artista, é posto objetivamente e,

pelo receptor, é aceito de maneira subjetiva.

Feuerbach, que não aceitava o primado do Espírito posto por Hegel, por considerá-lo

alienado e por inverter as condições sociais presentes na realidade, queria “ver a arte como a

manifestação do ser humano verdadeiro, um ser desalienado, absoluto, podendo em tudo

contemplar a sua essência, já que nada mais o separa dela” (FREDERICO, 2005, p. 33). O

autor questiona ainda o caráter abstrato teológico de Hegel, porém, de acordo com Frederico

(2005), o pensamento de Feuerbach, percebido em seus poucos registros sobre a arte,

apresenta-se contraditório e ambíguo quando deseja superar o constructo hegeliano.

A arte, em Karl Marx, também contraria as análises postas por Hegel,

compreendendo-a como atividade humana essencial, uma “manifestação das forças essenciais

do homem” – atividade objetivada de maneira concreta – e não como “manifestação do

Espírito”, como intuição sensível do homem (FREDERICO, 2005).

Há também críticas em Karl Marx, em relação ao pensamento de Feuerbach, pois:

Em Feuerbach, a arte exprime diretamente a essência humana ao torná-la

reconhecível para o homem, liberta da alienação. E como o homem é um ser natural,

ele também se reconhece nas estrelas, no sol, nas plantas, etc. Para Marx, ao

contrário, não há lugar para a contemplação desinteressada do belo natural onde

cintilaria a própria essência humana, pois os sentidos, embora tenham um

fundamento natural, conheceram um longo desenvolvimento social e, através dele,

diferenciaram-se especialmente da natureza. As objetivações humanas, criando

ininterruptamente novos objetos, humanizam não só os sentidos como também a

própria natureza. (FREDERICO, 2005, p. 46)

84

Dessa maneira, para Marx, as objetivações humanas estão ligadas ao processo de

autoformação do homem e às transformações oriundas das relações sócio-históricas. Marx

(apud FREDERICO, 2005) afirmava que a arte é uma dimensão do homem, por ser essencial

para a “emancipação dos sentidos”. A arte, como práxis, expressa um movimento de

superação contra alienação, em busca da “verdade sensível”, e é:

Entendida como afirmação ontológica, forma específica de objetivação do ser social.

A arte surge na história como um desdobramento do trabalho, uma ação que dá

continuidade à autoformação do homem. A referência última para se compreender a

arte é o processo de autodesenvolvimento do gênero humano, com seus avanços e

recuos, e não as diferentes formas de expressão das classes e grupos sociais

centradas no “sujeito transindividual”79

. (FREDERICO, 2006, p. 54)

Nessa perspectiva, compreendo a arte como ação ontológica legitimada do ser social,

com seus movimentos reiterativos – avanços e recuos –, que fazem parte do processo de

autoformação do gênero humano. Essa compreensão tem por base a forma como a arte é

apresentada por Heller (1972), Lukács (1978) e Frederico (2005 e 2006): como uma das

objetivações que podem superar e romper as alienações da cotidianidade.

3.2 A cultura Hip Hop

Somos mentes evoluídas do verde e amarelo/

Somos quadros bem pintados por um artista cego.

(THAÍDE & DJ HUM – Soul do Hip Hop)

As raízes da cultura Hip Hop, ao contrário do que muitos pensam e afirmam,

germinaram na Jamaica. A história desse país é semelhante a do Brasil: foi colonizada por

europeus; sofreu com o genocídio dos nativos (os índios arawak); foi rota de tráfico de

africanos escravizados e construída pela mão de obra escrava; os africanos escravizados não

tiveram apoio e/ou não foram ressarcidos após a abolição; e, finalmente, passou por crises

políticas, econômicas e sociais em seu processo de independência.

Nas primeiras décadas do século 20, em razão do contexto de desigualdade social e de

precárias condições de vida, jovens jamaicanos encontraram na música uma forma de

79

A análise cuidadosa dessa categoria encontra-se em Goldmann (1972, p. 79-100).

85

contestação de suas vidas cotidiana. Chamados também de rude boys, tinham a música como

uma

Criação de canções que discorriam sobre o próprio cotidiano era uma das únicas das

opções para esses rapazes, que tinham geralmente uma vida de muito risco e,

geralmente, bastante curta, no trânsito entre a miséria e a violência. Para um rude, a

única maneira de ser livre dos bairros de West Kingston era um single de sucesso ou

um tiro da polícia. (LINDOLFO FILHO apud SOUZA, 2011, p. 59)

Em 1960, jovens jamaicanos promoviam festas em comunidades, onde foi possível

construir uma referência de encontros e de manifestações por meio de versos e de improvisos

feitos sob o som dos toca-discos (pick-ups). As festas também aconteciam nas ruas com a

sonorização do sound system, sistema sonoro em que se tocava reggae e outros estilos de

música jamaicana.

A técnica conhecida como toast, baseava-se no modo falado de cantar, na forma de se

expressar, de narrar os fatos cotidianos e de fazer crítica. Essa narrativa oral é uma herança

cultural, de matriz africana, a qual era realizada pelos chamados griots africanos. “Na África

ocidental, os trovadores (griots) eram os guardiões da história cultural. Sua canção folclórica

falada deu origem às artes verbais nos Estados Unidos.” (NATIONAL GEOGRAPHIC, 2007,

p. 68, tradução minha).

Foi a influência dessa cultura que, no fim dos anos de 1960 e 1970, com a migração de

jovens jamaicanos para os Estados Unidos, carreou mais força para a formação da cultura Hip

Hop.

Clive Campbell – mais conhecido como DJ Kool Herc81

– é reconhecido como um dos

precursores da cultura Hip Hop. Levou para Nova York/EUA as técnicas utilizadas na

Jamaica, apropriando-se, consequentemente, dos estilos musicais afrodescendentes daquela

época.

Segundo Herschmann (2005, p. 21), foram Kool Herc e, seu discípulo, Grand Master

Flash, que:

começaram a dar festas no gueto do Bronx (NY), utilizando-se de técnicas que

posteriormente se tornariam fundamentais para este tipo de música eletrônica.

Dentre essas técnicas, eles introduziram os sounds system, mixadores, scratch e os

repentes eletrônicos, que ficaram posteriormente conhecidos como raps.

81

Nasceu em Kingston, na Jamaica e imigrou para os Estados Unidos em 1967, quando tinha 12 anos de idade.

86

Por essa razão, Kevin Donavan82

, conhecido como Áfrika Bambaataa, aperfeiçoou a

técnica trazida pelo DJ Kool Herc e, em 12 de novembro de 1973, fundou a Zulu Nation83

.

Um ano depois, em 12 de novembro de 1974, Áfrika Bambaataa, DJ Kool Herc, DJ Grand

Master Flash e DJ Grand Wizard Theodore legitimaram as ações desenvolvidas por essa arte,

que recebeu o nome de Hip Hop.

Figura 7 – King Nino Brown e Áfrika Bambaataa, na Casa do Hip Hop de

Diadema/SP, em 2003. Crédito: arquivo pessoal de King Nino

Brown

O cenário, entre 1960 e 1970, foi marcado por um período de várias manifestações da

população negra norte-americana sobre os direitos civis. Momento em que os enfrentamentos

82

Nasceu no dia 10 de abril de 1960, no bairro do Bronx, Nova York. De acordo com a Revista Da Rua, “com apenas 10 anos de idade Kevin Donovan [Áfrika Bambaataa] era líder de uma gangue chamada Black Spades e já tocava em festas caseiras. Aos 13, conheceu um sujeito que também seria um pioneiro da cultura Hip Hop, o DJ Kool Herc. Quando viu Kool Herc andando com a primeira pick-up [toca-disco] (aquela mala metálica em que o DJ leva seus toca-discos), que se tem notícia, debaixo do braço, e discotecando a música de James Brown de uma forma totalmente diferente, quebrada em breakbeats, pedaços que se repetiam, o tal do Kevin se entusiasmou tanto que largou a gangue e decidiu que ali estava seu futuro. Desde essa época, o moleque gostava de estudar a história da África, fuçou tanto que descobriu nos livros um chefe Zulu do século XIX e se batizou com o nome dele: Áfrika Bambaataa”. (REVISTA DA RUA, n. 5, p. 25) 83

Segundo informações de King Nino Brown, “a Zulu Nation é uma organização que existe em vários países e luta pela divulgação e fortalecimento da cultura Hip Hop. No Brasil, Nino Brown iniciou as articulações com a Zulu Nation em março de 1994. Após anos de pesquisas e de estudos, ele foi batizado como King Nino Brown, por Áfrika Bambaataa, e, em junho de 2002, a Zulu Nation Brasil se torna uma organização não governamental (ONG). Criada a partir da necessidade de organizar as atividades de seus membros, todos ligados à cultura negra e ao movimento Hip Hop, privilegia ações sociopolíticas e culturais, com a juventude de periferia, em especial a mais carente e em situação de vulnerabilidade. A Zulu Nation Brasil divulga a missão da Zulu Nation, por meio de oficinas socioculturais, palestras, seminários nacionais e internacionais (Europa), encontros de jovens, eventos realizados em escolas nos centros culturais, núcleos habitacionais municipais da capital paulistana, e em outras cidades e estados do Brasil. Os membros da Zulu Nation Brasil possuem representação em dez capitais no País; são jovens que sempre estiveram na cultura Hip Hop”.

87

e as manifestações foram acirrados contras as leis de segregação e que os estilos musicais

afrodescendentes norte-americanos eram constituídos pelo jazz, o soul e o funky.

O jazz surgiu nas primeiras décadas do século 20 (TELLA apud ANDRADE, 1999) e

expressou toda a conjuntura dos conflitos raciais vivenciados nos Estados Unidos. Esse estilo

musical foi formado pelos seguintes elementos:

Os ritmos sincopados, as improvisações de ragtime e o blues propiciaram a

formação do jazz, música baseada em um conjunto de vários instrumentos, com os

quais as pessoas podiam dançar. Os estilos posteriores afastaram-se das estruturas

tradicionais de acordes, melodias e ritmos.84

(NATIONAL GEOGRAPHIC, 2007, p.

69, tradução minha).

O soul85

surgiu no fim da década 1950 e foi criado a partir da mescla do estilo gospel,

dos afrodescendentes norte-americanos, com o rhythm and blues, também conhecido como

(R&B). Esse estilo musical também entoou a resistência e a luta dos afrodescendentes para a

legitimação de seus direitos civis, e teve o mestre James Brown como uma de suas principais

referências.

Já o funky86

surgiu no fim da década de 1960 e passou por um processo de mudança de

status, ou seja, de um caráter negativo em relação ao sentido do termo, para um caráter

positivo, relacionando-se ao “orgulho de ser negro”. Alguns autores afirmam que, nesse

período, houve uma fase em que o soul teria perdido o seu alto papel questionador “virando

mais um rótulo comercial” (TELLA. In: ANDRADE, 1999, 57).

O funk radicalizava suas propostas e empregava ritmos mais pesados e arranjos mais

agressivos, na tentativa de extrair toda a influência branca, refletindo na não

aceitação destes como parceiros musicais. Esse era um novo momento, uma

afirmação da música e do músico negro na sociedade norte-americana.

84

Entre tantos, cito algumas referências do jazz: The Modern Jazz Quarter, Miles Davis, Lee Morgan, Billie Holiday, Nina Simone, Sarah Vaughan. 85

Soul significa “alma”, de acordo com a Revista National Geographic (2007). O contexto musical vivenciado pelo soul propiciou a construção de várias gravadoras em Detroit, Memphis e Filadelfia. Outra referência desse estilo foi Ray Charles; o filme Ray (2004), baseado na história desse artista, ilustra bem o período. 86

Herschmann afirma que, apesar das leituras mais favoráveis, os sentidos atribuídos aos termos funk e funky guardam ainda certa ambiguidade. Segundo o dicionário Novo Michaelis (1994, p. 449 apud HERSCHMANN, 2005, p. 31): “Funk – medo, susto, pânico, pavor; 2. Medroso, covarde, ter medo de, temer; 2 aterrorizar, assustar, intimidar; 3. Evitar, esquivar-se, fugir de, escolher-se, acovardar-se; Funky – música de estilo e sentimento simples e rústico. Na gíria – batuta, bom” . É importante chamar a atenção para que não se confunda o funky daquele período (o funky de raiz), do qual cito como referência Sly Stone, Earth, Wind & Fire, The Ohio Players, Kool & The Gang, George Clinton, Bar-Kays, entre outros, com o funky brasileiro atual, que, na verdade é Miami Bass. Ou seja, aqui no Brasil, houve a mudança do conteúdo, com a permanência do nome.

88

Em suma, esses foram os principais estilos que buscavam uma transformação por meio

da arte, do protesto cantado. Nessa conjuntura, os Estados Unidos tinham altos índices de

violência e de tráfico de drogas e os jovens moradores de comunidades eram os mais afetados

com essa questão.

Conforme Keys (apud SILVA, 1999, p. 27), “o termo hip-hop está associado aos

movimentos da forma popular de dançar, que envolvia movimentos como saltar (hip) e

movimentar os quadris (hop).” (SILVA. In: ANDRADE, 1999, p.27).

Aparentemente, o significado da palavra representa um sentido festivo e simples,

porém, em sua essência, traz um traço contundente de críticas, denúncia e manifestações, de

cunho social, político e cultural, apresentado por alguns grupos de RAP87

.

A cultura Hip Hop é constituída pelos seguintes elementos:

O DJ (Disc-Jóquei) desempenha o controle sonoro e/ou desempenha performances,

por exemplo: o scratch, que é o movimento realizado com a mão em cima do vinil – para

frente e para traz –, girando o disco no sentido contrário, para produzir sons diversificados; e

o back to back, manuseio com dois vinis ao mesmo tempo, um em cada toca-disco (pick-up),

utilizando algum trecho do instrumental; ou breakbeat, parte cantada pelo rapper/cantor, a

fim de montar a letra e com a repetição, ou a sequência da batida, criando grooves ou loops.

De maneira geral, os DJs utilizam os toca-discos (pick-ups), fones de ouvidos e mixer

– misturador de sons –, aparelho em que os DJs conectam os demais equipamentos. Assim, “a

sobreposição de músicas que têm andamento, ritmo e tonalidades diferentes. Nas mãos dos

DJs tais equipamentos transformam-se, verdadeiramente, em instrumentos musicais”

(AZEVEDO; SILVA. In: ANDRADE, 1999, p. 79).

Com mais frequência, na cultura Hip Hop, os DJs utilizam o vinil para a realização de

suas performances, mas também há DJs de/em outros estilos musicais. O DJ pode realizar

várias funções: fazer parte de um grupo de RAP específico; trabalhar como freelancer em

diversos grupos de RAP; tocar em eventos; realizar performances em campeonatos; ser DJ e

produtor musical; dentre outras.

87

Como exemplo, cito alguns grupos de RAP norte-americanos: na costa leste, Run-DMC, LL Cool J, Boogie Down Productions, Salt-n-Pepa, Beastie Boys, Public Enemy, De La Soul, A Tribe Called Quest, Queen Latifah, Wu-Tang Clan, Notorius B.I.G, Missy Elliott, Jay-Z, Nas, Sean Combs, The Roots e The Fugees; e na costa oeste, Ice-T, NWA, Tupac Shakur, Dr. Dre e Snoop Doogg.

89

Figura 8 – DJ ACoisa, em plena performance. Crédito: arquivo pessoal do DJ ACoisa.

Figura 9 – DJ Erick 12, em seu estúdio88. Crédito: arquivo pessoal de Erick 12

O MC (Master of Ceremony – mestre de cerimônia), também chamado de rapper, é

aquele que geralmente compõe e canta o RAP. Tem como principal instrumento a linguagem,

acompanhada de sua capacidade crítica de composição, por meio dos versos e das rimas.

88

Erick 12 é um dos DJs mais conceituados no cenário do RAP nacional brasileiro. Foi DJ e produtor durante sete anos, de um dos principais grupos de RAP no Brasil, Facção Central. Este grupo foi o mais citado pelos adolescentes durante as oficinas e, principalmente, nas entrevistas realizadas para este trabalho. Erick 12 exerce várias atividades na cultura Hip Hop, além de DJ e produtor musical, também é MC e produtor de videoclipes.

90

O MC também pode fazer uso de outras habilidades, como a declamação de versos, o

discurso reflexivo sobre algumas questões e a arte de improvisar versos, conhecido como

freestyle, modalidade que se refere à batalha entre dois ou mais MCs. Nela, estipula-se um

tempo para que possam duelar, elaborando, na hora, versos e rimas de ataque ao(s) seu(s)

oponente(s)89

.

O RAP envolve não somente a questão do canto, mas também o poder que o rapper

tem de expressar o que sente e/ou pensa, por meio das letras e, até mesmo, do posicionamento

de seu corpo, cujos movimentos parecem de enfrentamento, isso por utilizarem a linguagem

corporal e facial, em que criam expressões corpóreas, por meio de vários gestos com as mãos,

do balançar do corpo, etc.

Figura 10 – Rapper Moyses, do grupo A 286, durante show. Crédito: arquivo pessoal de Moyses.

O breaking90

é uma modalidade de dança realizada pelos B. Boys ou B. Girls por meio

de vários passos, como o top rock (que é a entrada na roda de dança); o footwork (conhecido

como sapateado); e o freeze (que é o encerramento da dança). São movimentos precisos,

89

No filme 8 Mile: rua das ilusões (2002), dirigido por Curtis Hanson, Jimmy “Rabbit” – interpretado por Eminem – é um jovem rapper branco, que sonha conseguir um espaço no mundo do RAP. Ele reside em um bairro majoritariamente de negros – Warren, no norte da cidade de Detroit, em Michigan/USA. Rabbit tem como desafios superar as brigas entre as gangues, os preconceitos e os conflitos familiares. O documentário The MC: why we do it aborda distinções entre ser MC e rapper, porém não aprofundarei, aqui, essa questão. 90

Modalidade de dança também chamada de B. Boying.

91

envolventes e muito expressivos, numa articulação entre powermoves – movimentos

acrobáticos de força –, no tempo certo do breakbeat.

Nessa modalidade da cultura Hip Hop, “a palavra transforma-se em movimentos, em

mobilidades dos corpos: velocidades, gingas e saltos que, por meio da dança, constituem um

território de existência minimamente consciente.” (SANTOS, 2009, p. 39).

Figura 11 – B.Boy Alan, em plena performance. Crédito: Daniel Péricles Arruda (Casa

do Hip Hop, em Diadema/SP). Data: 27/11/2010.

O graffiti é a arte visual expressa por meio de desenhos e de letras em vários formatos,

produzidos com spray, principalmente em viadutos, muros e trens. É marcada por técnicas e

criatividade em sua produção.

Durante muitos anos, o graffiti foi visto de maneira preconceituosa e negativa pela

sociedade. Hoje, percebo um avanço nessa questão, na medida em que conseguiu elevar-se ao

patamar da arte – não que antes não fosse –, mas as suas dimensões próprias possibilitaram

romper preconceitos e despertar a atenção e o interesse das pessoas91

.

Historicamente, os desenhos feitos nas cavernas ou as imagens feitas pelos maias,

incas e astecas podem ser tidos como referências do graffiti: “O ‘carvão’ de antes é o spray de

hoje”.

91

Cf. o filme Basquiat: traços de uma vida (1996).

92

Figura 12 – Graffiti feito por Vespa, representando o rapper Sabotage, na Casa do Hip

Hop, em Diadema/SP. Crédito: Vespa. Data: 27/11/2010.

O conhecimento é um elemento que apresenta várias interpretações na cultura Hip

Hop. Uns defendem sua especificidade, por acreditar que ele representa a busca da raiz

histórica da cultura Hip Hop, na perspectiva de manifestação política e cultural. Outros

acreditam que se expressa de maneira mais intensa e contundente, por meio da literatura

marginal – modalidade literária produzida pelos poetas e escritores que são da periferia ou

que abordam temáticas oriundas dela. Há quem afirme que o conhecimento já está em todos

os outros quatro elementos, por isso, não há necessidade de se criar mais um.

Nas palavras de Áfrika Bambaataa, “muita gente se concentra apenas nos quatro

elementos do Hip Hop, mas muitos vão atrás do quinto elemento, o conhecimento.”93

Nesse contexto, o racismo, a pobreza e a violência já eram a tríade da realidade de

muitas periferias das grandes cidades. A cultura Hip Hop foi abraçada pelos jovens, negros e

moradores das periferias como forma de protesto e resistência. Uma identificação firmada

pela linguagem e pela capacidade elaboradora de construir discursos e práticas tidas como

revolucionárias contra o sistema94

.

93

Resposta dada, em entrevista à Revista Da Rua, ao ser indagado sobre o porquê ele defende a tese de que a história deve ser recontada, principalmente, a africana. (REVISTA DA RUA, n. 5, p. 25) 94

O sistema, muitas vezes mencionado pelos rappers, refere-se ao sistema capitalista e seus mecanismos, os quais produzem a desigualdade social.

93

Foi essa a cultura que chegou ao Brasil, no início da década de 1980, sob forte

influência dos filmes Fame (1980), Flashdance (1983), Wild Style (1983), Beat Streat (1984)

e Break (1984)95

e que possui como referência mais forte, a cidade de São Paulo96

.

Na cidade de São Paulo, no início da década de 1980, jovens oriundos da periferia

encontraram na dança – breaking – uma forma de criarem a sua “cultura de rua”. Nesse

período, havia encontros de dança na Praça da Sé, na Praça Ramos, mas o lugar que realmente

fincou raízes foi na Rua 24 de Maio, em 1984. Foi na Estação de Metrô São Bento que

surgiram as crews de breaking: Nação Zulu, Crazy Crew, Street Warriors e Back Spin Kings.

Havia ainda outros grupos de expressão, como: Eletric Boogies, Dragon Breakes, Búffalo

Girls e Jabaquara Break. Cito também os grupos Black Juniors, que participavam de

programas de televisão, e Funky & Cia, do qual Nelson Triunfo e King Nino Brown faziam

parte. Esses estão entre as principais pessoas que mais divulgaram a cultura Hip Hop pelo

Brasil. Nesse período, na Rede Record, havia dois concursos, um de break e outro chamado

Michael Jackson; e no programa do Gugu, no SBT, o Viva a Noite, trazia o concurso de funky

original.

Referência em todo País, a cultura Hip Hop da cidade de São Paulo mostrou-se aos

jovens paulistanos como expressão do sentimento de pertencimento, de possibilidades reais de

transformação e de manifestação.

Foi em São Paulo que surgiram rappers e grupos de RAP, como Consciência Humana,

Potencial 3, Pavilhão 9, Código 13, RPW, Dina Di, Sharylaine, Cris Lady RAP, Thaide & DJ

Hum97

, DMN, RZO, Sabotage, Racionais MC’s, Facção Central, entre vários outros.

Os dois últimos grupos citados eram os mais ouvidos pelos adolescentes com os quais

trabalhei no Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead). Um fato interessante é que Belo

Horizonte e Região Metropolitana possuem vários grupos de RAP, mas eles não eram

mencionados pelos adolescentes. Por que isso acontecia?

De acordo com Dayrell (2005)98

, a cultura Hip Hop de Belo Horizonte não se

constituiu da mesma forma que a de São Paulo. O autor apresenta o depoimento do rapper

Zero, do grupo Face Oculta:

95

Há uma série de filmes mais recentes que abordam essa questão, como No Balanço do Amor (2001). O filme Fame (1980) foi adaptado em 2010, com o título em português, Fama. 96

No documentário Nos tempos da São Bento, o rapper GOG afirma que “o Hip Hop não nasceu em São Paulo. Ele ‘pipocou’ no País inteiro”. Há no RAP nacional brasileiro uma diversidade de estilos que envolvem traços característicos de cada região. 97

A dupla foi desfeita há alguns anos, mas ambos continuam a realizar os seus respectivos trabalhos. O rapper Thaíde é um dos apresentadores do programa A Liga, exibido na emissora Bandeirantes. 98

Dayrell (2005) faz um estudo pertinente sobre a história e o desenvolvimento da cultura Hip Hop, em Belo Horizonte/MG.

94

Aqui em BH o pessoal das antigas não levou o RAP pra periferia. Eles fez tudo

errado, trabalhou visando grana, e o hip hop não é assim não. O que houve lá fora:

eles levaram o hip hop para o povo, para as escolas, aquele lance de conscientizar as

mães para que elas não se preocupem quando o filho estiver naquela, até nos

presídios eles levaram. Se eles tivessem trabalhando na época, hoje a gente tava aí

colhendo... (DAYRELL, 2005, p.57)

Não pretendo aprofundar a questão, embora seja importante, mas é necessário refletir

acerca do desenvolvimento da cultura local, no próprio local, e as condições materiais que

estavam existentes no seu processo de produção. A identificação dos adolescentes com os

quais trabalhei, em Belo Horizonte, com o RAP paulista não é diferente da dos próprios

jovens que promoviam a cultura Hip Hop em Belo Horizonte, que, por diversas dificuldades,

vivenciadas naquele contexto

[...] não perceberam que o público potencial que poderia lhes dar uma base de

sustentação era exatamente aquele da periferia. Nessa fase, o discurso de denúncia

dos rappers não foi acompanhado por qualquer ação concreta nos bairros ou nos

movimentos comunitários e políticos, a não ser, por iniciativas isoladas.

(DAYRELL, 2005, p. 57)

Atualmente, o cenário da cultura Hip Hop, de Belo Horizonte e Região Metropolitana,

vem demonstrando avanços significativos, por meio de atividades – Duelo de MCs, Palco Hip

Hop, Cidade Hip Hop, entre outros –, pela articulação da cultura Hip Hop com outros setores

da sociedade, bem como por meio de vários grupos de RAP de Belo Horizonte e Região

Metropolitana, como Flávio Renegado, Das Quebradas, Verdade Seja Dita, CDR

Trincaments, Dokttor Bhu e Shabê, S.O.S Periferia (Santa Luzia), Raça de MC’s, (Betim).

Cito os grupos Black Soul e Retrato Radical como os ícones da história da cultura Hip Hop,

em Belo Horizonte.

Portanto, a partir disso, faço algumas indagações sobre os últimos anos, quando se

formaram vários grupos de RAP, que produzem CDs, camisas, videoclipes. Quem são os

consumidores da cultura Hip Hop? Quais são os principais motivos que fazem com que essa

cultura seja assumida por um determinado grupo da sociedade? São manifestações da cultura

Hip Hop que se tornam produto, mercadoria. Isso significa que esse movimento se rendeu ao

valor de troca e não mais ao de uso? Ou podemos afirmar que o Hip Hop manteve seu

discurso e sua filosofia e, por desenvolver-se em um mundo capitalista, vende seu produto,

mas não vende sua alma?

95

3.3 O RAP e a poesia como discurso político e conhecimento crítico

"A terra começou a tremer.

É só musica urbana,

mas se eu for pegar na enxada

não tem ninguém para rimar"

A rima tem urgência, o caso é complicado

Tem que ser certeira, não pode errar o alvo

A rima denuncia e sacrifica,

O que a lei do homem não entende e santifica

Ora rica, ora pobre, ora vibra, ora sofre

E a rima é muito mais que a tinta e o pergaminho

Errou quem comparou seu teor ao do vinho

Pra quem sente frio é cobertor

É alivio na hora da dor

A rima não se silencia nos lamentos, nos desgostos

É eterna, seu autor nunca esta morto

Muita gente subiu e atraiu, consolada por ela quando caiu

A rima transforma o homem por inteiro

Cela fechada, mente aberta, descrevendo o cativeiro

Joia rara, ouro da simplicidade,

Jazidas encontradas na humanidade

A rima recicla da vida a palavra pobreza

Agora espírito de luta, beleza

Não se entrega, não paga resgate, é vacinada contra o vírus vaidade

A rima desafia a hipocrisia, é pancada sem dó

Pura rebeldia, sem ritmo, sem compasso, fora do tempo,

Livre pra expressar seus sentimentos

A rima é assim mesmo sem explicação

A vivencia explodindo em inspiração

É um drible um show de habilidade

Lance que deixa o zagueiro irado e na saudade

A rima é o Universo em equilíbrio

Há quem odeie, e eu? Eu acho incrível

Tem muito mais valia que o dinheiro

Não se compra, não se vende, não se sente o cheiro

A rima é a palavra no maior significado

Adversária da frieza de um dicionário

Não tem fãs, tem seguidores,

Impostores gravam cenas como atores

A rima sofre com a censura, foi caluniada

Por quem ri do verbo e não crer na força da palavra

"Mas o dia da igualdade ta chegando seu doutor

Mas o dia da igualdade ta chegando seu doutor"

(GOG – A rima denuncia)

96

Há um legado muito rico do RAP brasileiro – rap nacional. As músicas não perdem a

validade, tornam-se hinos, como: “Um Homem na Estrada”, dos Racionais MC’s, que, em

vários locais, foi citada e na maioria das vezes cantada por Eduardo Matarazzo Suplicy99

.

As letras/músicas vão ao encontro principalmente da juventude. A identificação do

adolescente em cumprimento de medida socioeducativa de internação com o RAP é um ponto

significativo, por isso, é necessário compreender a relação desses adolescentes com o RAP e a

poesia, considerando-se também que:

[...] o jovem autor de infração vive uma carga maior de conflitos. Além daqueles que

surgem em seu processo de auto-identificação, acumulam outros conflitos trazidos

pelos entraves e rótulos que sua diferença projeta na representação social e, em

muitos casos, o conflito da sobrevivência. (GUARÁ, 2000, p. 122).

E como se podem identificar esses outros conflitos da sobrevivência?

Martinelli (2009) utiliza como epígrafe, na conclusão de seu livro Serviço Social:

identidade e alienação, uma brilhante frase de Guimarães Rosa: “O real não está na saída nem

na chegada, ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. Ou seja, são nas

transformações da vida e de desvelamento das projeções sociais que se pode identificar para

alcançar o real.

A abordagem do RAP está “no meio da travessia”, por isso o RAP não se torna

discurso político, ele já o é. A questão é que pode deixar de sê-lo, bem como deixar de

produzir conhecimento crítico. É importante dizer que os rappers têm, para os adolescentes

em cumprimento de medida socioeducativa de internação, função relevante, pois são

referências, não somente pelas músicas, mas pelas histórias de vida100

, que os tornam, em

alguns casos, exemplo de superação: “[...] o diferencial da cultura Hip Hop das demais

culturas é esta: ela trouxe para as pessoas de menos conhecimento a possibilidade de buscar

conhecimento da maneira dela, cada uma aprende e conduz do seu jeito.” (DJ ACoisa).

A poesia, na perspectiva da literatura marginal101

, apresenta estética e conteúdos que

fazem laços com o RAP, contrapondo a lógica de que a poesia é arte de um determinado

segmento de classe social, denominado “culto”.

99

Atualmente, é senador pelo Partido dos Trabalhadores (PT), de São Paulo. É Ph.D. em economia, pela Universidade Estadual de Michigan e autor do livro Renda de Cidadania: a saída é pela porta (2002). 100

Cf. Luz (2007). 101

Nascimento (2006) tece algumas problematizações acerca da expressão “literatura marginal”, destacando o contraste do termo pela comparação entre os poetas marginais, de 1970, e os poetas marginais da nova geração. Para a autora, o conceito de literatura marginal é amplo e demanda a leitura de cada fase de sua aplicação. Há na cidade de São Paulo/SP vários saraus que têm

97

Para exemplificar, menciono o evento sociocultural Hip Hop na Veia Pela Vida102

, que

acontece na cidade de Betim/MG, que é constituído por oficinas, debates, apresentações de

diversos grupos de RAP, breaking, graffiti, DJ, dentre outras atividades, como o basquete.

Para participar, é preciso conseguir quatro pessoas para doarem sangue.

O Hip Hop na Veia Pela Vida é realizado anualmente, desde 2004, com a organização

do DJ ACoisa. No decorrer das posteriores edições passaram a compartilhar a

realização/organização: a Prefeitura do Município de Betim e a Fundação de Arte da Cidade

de Betim/MG (Funarbe), com apoio da Polícia Militar, da Guarda Municipal e parceria da

Fundação Hemominas.

O evento consegue mobilizar vários jovens da região e demais localidades,

envolvendo-os nas atividades descritas.

Figura 13 – DJ Acoisa, no evento Hip Hop na Veia Pela Vida. Crédito: arquivo pessoal

do DJ Acoisa.

O discurso político do RAP tem demandado cuidado em relação ao que muitos

chamam de velha e nova escola. Para GOG, “quando se fala em nova e velha escola, criamos

um abismo. Quando falamos em geração, falamos de referências, de continuidade103

”. Na

mesma linha de raciocínio, DJ Acoisa, em entrevista realizada, afirmou que “não existe nova

escola, assim como não existe velha escola. O que existe é o crescimento de adeptos da

cultura Hip Hop”. Em outras palavras, as gerações e o crescimento na cultura Hip Hop

legitimam o seu conhecimento amplo, evitando a fragmentação de seu processo histórico.

modificado a dinâmica local da comunidade, que têm contado com vários escritores de renome, por exemplo, Sérgio Vaz, Ferréz e Alessandro Buzo. 102

Paulo da Silva Soares, conhecido como DJ Acoisa, é diretor de oficinas culturais da Fundação de Arte, da Cidade de Betim/MG, e músico da Banda Berimbrown. É o idealizador e organizador do evento Hip Hop na Veia Pela Vida, que realiza a sua oitava edição em 2012. 103

Depoimento colhido no Programa A Liga, exibido em 29/11/2011.

98

3.4 A pesquisa ex-post-facto, seu espaço e os procedimentos metodológicos

O método dialético preconiza um caminho diferente.

(GOLDMANN, 1979, p. 13)

Esta dissertação de mestrado foi realizada por meio de uma modalidade de pesquisa,

ex-post-facto – realizada a partir de fatos passados de um trabalho, que tem como

característica o desenvolvimento de metodologia de ação construída na própria ação –, que

podemos considerar como pesquisa-ação.

Thiollent (1986) percebe um questionamento em relação à pesquisa-ação em alguns

espaços acadêmicos, que a compreendem como uma atividade utilizada por profissionais que

têm algum tipo de dificuldade relacionada à metodologia e que não querem seguir os seus

critérios. Assim, o autor considera relevante discutir o conceito de metodologia, para que se

possa entender melhor esse aspecto:

[...] a metodologia é entendida como disciplina que se relaciona com a

epistemologia ou a filosofia da ciência. Seu objetivo consiste em analisar as

características dos vários métodos disponíveis, avaliar suas capacidades,

potencialidades, limitações ou distorções e criticar os pressupostos ou as

implicações de sua utilização. Ao nível mais aplicado, a metodologia lida com a

avaliação de técnicas da investigação. Além de ser uma disciplina que estuda os

métodos, a metodologia é também considerada como modo de conduzir a pesquisa.

Neste sentido, a metodologia pode ser vista como conhecimento geral e habilidade

que são necessários ao pesquisador para se orientar no processo de avaliação, tomar

decisões oportunas, selecionar conceitos, hipóteses, técnicas e dados adequados.

(THIOLLENT, 1986, p. 25).

Na mesma publicação, Thiollent afirma que a pesquisa-ação pode ser compreendida

como uma pesquisa social com objetivo prático, de acordo com os critérios da pesquisa e do

envolvimento dos atores em análise. A pesquisa-ação é mais compreendida como estratégia

de pesquisa do que como uma metodologia e, nesse caso, pode servir como uma “bússola” nas

práticas do pesquisador.

Por essas questões, sendo a pesquisa-ação uma estratégia metodológica, considero que

ela foi a mais adequada para o desenvolvimento dessa pesquisa.

A pesquisa-ação é necessariamente uma abordagem qualitativa, se compreendermos

que esta “parte do fundamento de que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito,

uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto, um vínculo indissociável entre o mundo

objetivo e a subjetividade do sujeito” (CHIZZOTTI, 2010, p. 79).

99

Assim, tendo em vista uma análise crítica do objeto de pesquisa, reitero a utilização da

abordagem qualitativa, baseada na análise dos materiais que documentaram as ações no

período, durante a realização das oficinas com os adolescentes: poesias e letras de RAP,

fotografias, filmagens, anotações (diário de campo), observações, percepções e artigo

científico produzido.104

A escolha do Centro de Atendimento ao Adolescente (Cead) para o desenvolvimento

da pesquisa relaciona-se ao fato de o trabalho ter sido ali desenvolvido, consecutivamente de

2007 a 2010 e, também, por ter me proporcionado uma sensibilidade para o trato da questão,

possibilitando tanto o desenvolvimento continuado das oficinas – que contribuíram para o

conhecimento da Instituição e dos adolescentes que estavam em cumprimento de medida –,

quanto para a prática e desenvolvimento dos profissionais envolvidos nesse processo.

Entre as várias oficinas realizadas, foram selecionadas três, tendo por critério de

escolha aquelas que mais tiveram elementos para subsidiar esta dissertação:

Tabela 21 – Descrição das principais oficinas de RAP e de poesia realizadas no Centro de

Atendimento ao Adolescente (Cead)

DESCRIÇÃO OFICINA I OFICINA II OFICINA III

Principais

Temáticas

Família, violência

e história de vida

Estatuto da Criança e do Adolescente

(ECA)

Violência, educação,

desemprego e amor

Período

Dezembro de

2007 a março de

2008

Junho e julho de 2008 Abril e maio de 2009

No de

Participantes 13 8 6

Apresentação Tarde Poética Comemoração dos 18 anos do Estatuto

da Criança e do Adolescente (ECA)

II Simpósio Mineiro de

Assistentes Sociais

Fonte: Sistematização do autor.

A oficina I tratou de temas como família, violência e história de vida, que foram

abordados em dez encontros (sessões). Resultou no sarau chamado de Tarde Poética, que

aconteceu no dia de visita e contou, portanto, com a presença de familiares de adolescentes

participantes e não participantes das oficinas, e convidados institucionais.

104

ARRUDA; PINTO. De volta pro Mundão: uma análise dos adolescentes egressos da medida socioeducativa de internação. Anais do II Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais. Belo Horizonte: Conselho Regional de Serviço Social (Cress, 6ª região), 2009.

100

Figura 14 – Cartaz do Sarau Tarde Poética. Crédito: Daniel Péricles Arruda.

A oficina II abordou os direitos e deveres rezados pelo Estatuto da Criança e do

Adolescente (ECA), e foi realizada em sete encontros (sessões). As produções foram

apresentadas no evento Comemoração dos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente,

organizado pelo Colégio Salesiano, em Belo Horizonte/MG.

Na oficina III discutiram-se temas como violência, educação, desemprego e amor e foi

realizada em cinco encontros (sessões). Na ocasião, os adolescentes apresentaram suas

poesias no II Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais, em Belo Horizonte/MG.

Todos os encontros aconteciam dentro da unidade, no período de 50 minutos, cada. A

participação dos adolescentes acontecia a partir do interesse e da articulação de horários, em

razão de outras atividades realizadas. Havia oficinas em que os adolescentes participavam

esporadicamente, no entanto, as três possibilitaram o trabalho continuado com todo o grupo.

Além da pesquisa ex-post-facto, tendo por objetivo conhecer resultantes atuais daquele

trabalho, foram realizadas entrevistas com um adolescente; dois jovens adultos, que

participaram das oficinas, quando eram adolescentes (ou seja, um adolescente de cada oficina

mencionada na Tabela 21); dois profissionais que acompanharam essa prática de trabalho com

os adolescentes; e um DJ, por ser uma das referências mais antigas da cultura Hip Hop, no

estado de Minas Gerais. As entrevistas foram semiestruturadas, abertas e a realização teve

apoio de um roteiro, que permitiu que os entrevistados discorressem sobre as temáticas, para

além das perguntas realizadas.

As entrevistas com o adolescente e os dois jovens adultos objetivaram apreender os

resultantes das oficinas, na perspectiva dos seus sujeitos; já as realizadas com os profissionais

tiveram por objetivo a apreensão dos significados que estes atribuíram à sua realização; por

fim, a entrevista com o DJ, deu-se em razão de ele poder subsidiar a apreensão histórica da

influência do Hip Hop na cidade e em sua relação com os adolescentes.

101

O instrumental para a realização das entrevistas foi construído por meio de uma

linguagem acessível à compreensão da pesquisa e das perguntas que foram feitas para os

sujeitos. De acordo com Triviños (2009), nem tudo depende do investigador, mas há alguns

pontos em que é possível ao pesquisador superar e/ou transformar, por exemplo: construir

uma aproximação sucessiva com os atores da entrevista; não agendar em locais e horários

inviáveis; evitar entrevistas longas; propiciar uma relação de confiabilidade e simpatia na

entrevista; obter aprovação do entrevistado para escrever ou gravar o desenvolvimento da

pesquisa; ter organização para lidar com gravação, transcrição, anotação e análise do

conteúdo; atentar aos prováveis silêncios do entrevistado, diferenciando o “ponto morto” (isto

é, insatisfação em responder ou falta de compreensão da pergunta) do “silêncio produtivo”,

que se baseia numa reflexão e num tempo de elaboração da resposta.

Todas as entrevistas e todo o material documental que dizia respeito aos sujeitos,

foram utilizados com prévio consentimento, obtido mediante assinatura de termo relacionado

a essa questão, pelos sujeitos da pesquisa. Por considerar que o estudo envolveu seres

humanos, fez jus às determinações da Resolução 196/1996, do Ministério da Saúde, tendo

sido aprovado pelos comitês de ética da Diretoria de Gestão da Informação e Pesquisa (DIP),

da Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase), e da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo.

A pesquisa realizada teve por finalidade a construção de uma produção científica, o

que significa:

[...] que seus procedimentos investigativos deve(m)[rão] explicitar um esforço no

sentido de viabilizar uma produção de conhecimentos que permita ultrapassar as

práticas espontâneas e as reflexões que se confinam em ações pontuais para, pela

polêmica e pela crítica teórica, construir uma “metodologia dinâmica de ação”.

(BAPTISTA, 2006, p.29)

Para tanto, este estudo apoiou-se nas categorias do método dialético: totalidade,

contradição e mediação, que, de acordo com Netto (2009b, p. 28), Karl Marx descobriu por

meio da articulação dessas três categorias “[...] a perspectiva metodológica que lhe propiciou

o erguimento do seu edifício teórico”.

No texto de Marx, O Método da Economia Política, a questão do método apresenta

uma profunda reflexão sobre as categorias, que foram apreendidas da realidade. A categoria

da totalidade foi discutida como eixo fundamental, que expressa a articulação das demais

categorias, considerando “[...] o cuidado de manter a indissociável conexão que existe em

Marx entre elaboração teórica e formulação metodológica” (NETTO, 2009b, p. 26). Netto

(2009b) afirma que não há como separar a base teórica do planejamento profissional, da

102

perspectiva sociopolítica. E, na base teórica marxiana, as categorias não são construídas pelo

pensamento, elas emergem do processo de análise direta e concreta da realidade. Nesse

sentido, a totalidade compreendida como categoria teórica e ontológica fundamental, não é

construída de maneira intelectiva, mas é produto da observação da relação dinâmica, em que

ocorrem os fatos sociais. Esse processo exige a compreensão dos circuitos e das conexões que

interagem diretamente e/ou indiretamente nas relações sociais.

No estudo da sociedade burguesa – na qual são produzidas e reproduzidas várias

transformações nas relações sociais –, há que se trabalhar na perspectiva de uma totalidade

dinâmica, que emerge de uma sociabilidade, que

[...] é inerente a todas as atividades humanas, expressando-se no fato ontológico de

que o homem só pode constituir-se como tal em relação com outros homens e em

consequência dessa relação; ela significa reciprocidade social, reconhecimento

mútuo de seres de uma mesma espécie que partilham uma mesma atividade e

dependem uns dos outros para viver. (BARROCO, 2009, p. 21)

Por compreender a reciprocidade é que não se deve definir a totalidade como a soma

das partes, pois, desse modo, haveria a anulação de especificidades e a não consideração das

relações, das contradições, dos afetos, dos sentidos, das mediações e, também, das

determinações sócio-históricas que incidem em sua construção.

Em relação a esse aspecto, Goldmann (1979), em seu estudo sobre as obras de Pascal e

Racine, apresenta na introdução um texto, a que chamou de O Todo e as Partes, no qual

analisa a relação entre verdade parcial e o conhecimento da verdade constante no todo,

[...] pois toda verdade parcial só assume sua verdadeira significação por seu lugar no

conjunto, da mesma forma que o conjunto só pode ser conhecido pelo progresso no

conhecimento das verdades parciais. A marcha do conhecimento aparece assim

como uma perpétua oscilação entre as partes e o todo, que se devem esclarecer

mutuamente (GOLDMANN, 1979, p. 5).

Esse esclarecimento mútuo, afirmado por Goldmann (1979), é fruto de uma análise

que jamais estará acabada, seja em seu conjunto, seja em seus elementos. Por isso, o autor

afirma que “o pensamento é uma operação viva, cujo progresso é real sem ser, entretanto,

linear e, sobretudo, sem nunca estar acabado” (GOLDMANN, 1979, p. 7). Assim, a totalidade

é apreendida pelo sujeito como um conjunto articulado de determinações, em que é possível

fazer abstrações e retomá-las para a realidade como um guia. Esse conjunto pode ser

compreendido como um “concreto pensado”.

103

Na carta de Karl Marx enviada para Anninkov105

vemos uma crítica acerca da

totalidade tal como era vista por Proudhon. Nela, Marx faz uma crítica ao pensamento de

Proudhon, por não ter considerado o percurso histórico do modo de produção. Em destaque,

questiona a ausência de rigor crítico sobre a divisão do trabalho:

Para o sr. Proudhon, a divisão do trabalho é uma coisa bem simples. Mas não foi o

regime de castas uma determinada divisão do trabalho? Não foi o regime das

corporações outra divisão do trabalho? E a divisão do trabalho do regime das

manufaturas, que começou em meados do século 17 e terminou em fins do século

18, na Inglaterra, também não difere totalmente da divisão do trabalho da grande

indústria, da indústria moderna? O sr. Proudhon se encontra tão longe da verdade

que omite o que nem sequer os economistas profanos deixam de levar em conta.

(MARX, 2009, p. 247)

Percebe-se, então, que Marx faz indagações e questiona a simplicidade da divisão do

trabalho, compreendida por Proudhon, o qual desconsidera a origem e o desenvolvimento

histórico, bem como por não discutir a separação entre cidade e campo. Para Marx, o

significado de totalidade abordado para a compreensão dos fatos, não deve se apoiar apenas

na sequência cronológica, por mais que ela seja importante, mas deve assumir o sentido do

movimento dos acontecimentos e, principalmente, não exatamente dos fatos imediatos que

aconteceram, mas do que ocorreu para que tais fatos acontecessem. Ou seja, ir às raízes das

questões (MARX, 1991).

Nesse pressuposto, fazendo uma aproximação da realidade e tendo a apreensão do

objeto, é possível alcançar o concreto imediato para analisá-lo e desvendá-lo. O concreto não

é uma produção do intelecto, mas uma apresentação do real que só é compreendido pela via

da razão, que lhe dá sentido pela abstração, que, nas palavras de Netto (2009b, p. 20), “[...] é

um procedimento intelectual sem o qual a análise é inviável – aliás, no domínio do estudo da

sociedade, o próprio Marx insistiu com força em que a abstração é um recurso indispensável

para o pesquisador”.

É por isso que na exposição de O Método da Economia Política, Marx discorre a

respeito da abrangência, da profundidade e da clareza.

Quando estudamos um dado país do ponto de vista da Economia Política,

começamos por sua população, sua divisão em classes, sua repartição entre cidades e

campo, na orla marítima; os diferentes ramos da produção, a exportação e a

importação, a produção e o consumo anuais, os preços das mercadorias, etc. Parece

105

Essa carta foi datada em Bruxelas/Inglaterra, no dia 28 de dezembro de 1846, e publicada pela primeira vez por M.K. Lenke, em 1912. Nela, Karl Marx informa a Annenkov as suas impressões iniciais a respeito do livro de Proudhon – Filosofia da Miséria – e a questiona com a publicação de seu livro, Miséria da Filosofia.

104

que o correto é começar pelo real e pelo concreto, que são a pressuposição prévia e

efetiva; assim, em Economia, por exemplo, começar-se-ia pela população, que é a

base e o sujeito do ato social de produção como um todo. No entanto, graças a uma

observação mais atenta, tomamos conhecimento de que isso é falso. A população é

uma abstração se desprezarmos, por exemplo, as classes que a compõem. Por seu

lado, essas classes são uma palavra vazia de sentido se ignorarmos os elementos em

que repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital, etc. Estes supõem a

troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho

assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço, etc. não é nada. Assim, se

começássemos pela população, teríamos uma representação caótica do todo e,

através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a

conceitos cada vez mais simples; do concreto idealizado passaríamos a abstrações

cada vez mais tênues até atingirmos determinações as mais simples. (MARX, 1978,

p. 116).

Do ponto de vista da economia política, é notório que as indagações podem levar à

busca, à procura, isto é, ao processo investigativo que caminha para a produção também de

conhecimento do concreto como uma totalidade, pois retomando a epígrafe inicial desta

dissertação,

[...] o concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é,

unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo da

síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de

partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da

representação. (MARX, 1978, p. 116)

Nesse sentido, a totalidade é uma categoria que está em movimento, por isso, não há

como defini-la simplesmente como “todo”. A vida social é uma totalidade formada por

inúmeras totalidades. “Para Marx, a sociedade burguesa é uma totalidade concreta. Não é um

‘todo’ constituído por ‘partes’ funcionalmente integradas.” (NETTO, 2009b, p. 27). As

categorias, tanto as do método quanto as empíricas, em Karl Marx, insisto, estão na realidade,

são categorias reais e sócio-históricas. A realidade não é estática; não é absoluta; não é

imutável. A realidade sempre se transforma.

A dificuldade, para Marx, está na apreensão das categorias que emergem da realidade

social, as quais são constitutivas do método.

As especificidades são percebidas na realidade, compondo um concreto que se

apresenta de várias formas para não ficarmos reféns das manifestações imediatas, “[...] seria

partir-se da totalidade, totalidade que sendo tudo é ela mesma e a possibilidade de sua

negação. Neste universo a crítica não é uma operação externa ao objeto, mas a explicitação

necessária de seus constituintes” (PAULA, 2001, p. 19). Certamente:

[...] a totalidade concreta e articulada que é a sociedade burguesa é uma totalidade

dinâmica – seu movimento resulta do caráter contraditório de todas as totalidades

que compõem a totalidade inclusiva e macroscópica. Sem as contradições, as

105

totalidades seriam totalidades inertes, mortas – e o que a análise registra é

precisamente a sua contínua transformação. (NETTO, 2009b, p. 27)

A totalidade concreta articula-se em dois movimentos importantes. A primeira

articulação é a subordinação de uma totalidade às “totalidades mais complexas”. E, a segunda

articulação é na qual esta totalidade subordina as “totalidades menos complexas”. Esses

movimentos fazem parte da totalidade concreta, possibilitando uma “hierarquização

dinâmica” a qual não é predeterminada, pois essa articulação se faz de modo diferente,

conforme: o momento histórico vivenciado por uma sociedade; as condições materiais de

produção e de reprodução; o plano ideológico vigente, etc. Esses processos são constituídos

de campos de força contrárias, que atuam no propósito tanto de manter as estruturas de um

determinado fato, quanto de modificá-la (BAPTISTA, 2012)106

.

Nessa lógica, temos a categoria da contradição107

:

Essas forças que operam em sentidos divergentes, contraditórios, não são

introduzidas nos processos sociais, elas os constituem, são sua substância. Em toda

realidade social, em toda instância do ser social, é essa colisão que produz a

dinâmica, que efetiva o movimento da história. (BAPTISTA, 2012, p. 20)

As contradições, independentemente de seus níveis de complexidade, não se

constituem sem os sistemas de mediações. Esses sistemas permitem a compreensão peculiar

dos processos que se formam nas totalidades, por isso:

[...] sem os sistemas de mediações (internas e externas) que articulam tais

totalidades, a totalidade concreta que é a sociedade burguesa seria uma totalidade

indiferenciada – e a indiferenciação cancelaria o caráter do concreto, já determinado

como ‘unidade do diverso’ (NETTO, 2009b, p. 28).

106

Material de aula apresentado no Núcleo de Estudos e Pesquisa Sobre a Criança e o Adolescente (NCA) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC/SP, intitulado A pesquisa avaliativa de políticas, programas, projetos e/ou intervenções sociais (BAPTISTA, 2012). 107

Localizei dois trechos na música “O bagulho é doido”, do rapper carioca MV Bill, na qual ele apresenta as contradições constituídas na dinâmica de jovens no tráfico varejista de drogas. No primeiro trecho, diz: “[...] tipo peste, tá no sudeste, tá no nordeste, no centro-oeste/ Teu pai te dá dinheiro, você vem e investe/ No futuro da nação, compra pó na minha mão/ Depois me xinga na televisão/ Na sequência vai pra passeata levantar cartaz/ Chorando e com as mãos sinalizando o símbolo da paz”. Nesses versos, MV Bill apresenta a movimentação do tráfico de drogas – “pó” (cocaína) – e os segmentos de classes diferentes que os constituem. Porém, um segmento alimenta o outro, por meio da compra da droga, logo, o mesmo segmento posiciona-se contra uma ação a qual ele também é “responsável”. No segundo trecho, Bill, diz: “[...] veja que ironia, que contradição/ O rico me odeia e financia minha munição/ Que faz faculdade, trabalha no escritório/ Me olha como se eu fosse um rato de laboratório/ Vem de sheroki, vem de kawazaki/ Deslumbrado com a favela, como se estivesse vendo um parque/ De diversões, se junta com os vilões/ De sente Ali ‘cuzão’ e os 40 ladrões”. Nesses versos, a relação contraditória também é presente. Ambos chamam a atenção para as mediações constituídas e que movem essas relações. Ver a letra completa no Anexo C.

106

As mediações não estão presentes de maneira dada em uma realidade. “No plano do

pensamento, o desenvolvimento deste obedece a uma impulsão necessária que progride do

singular ao universal, através do particular” (PONTES, 1989, p. 21). Aqui, a particularidade é

referida não no sentido vernáculo, mas, como um dos momentos da perspectiva dialética. É

um momento de leitura da realidade, é a forma como a singularidade é assumida.

Ora, afirmar que o particular constitui-se um campo de mediações, necessariamente

não implica conceber um espaço amorfo, indefinido de ligação entre o universal e o

particular, mas ao contrário, este campo de mediações é um “espaço” articulado e

determinado; para clarificar isto, basta lembrar que no âmbito da particularidade

temos uma universalidade relativa (face ao singular) e uma singularidade relativa

(face ao universal). É neste espaço de mediações que a lei se determina. (PONTES,

1989, p. 22).

É importante dizer que a mediação não se refere a um movimento de escolha ou de

alternativas. Ela é inseparável ao desenvolvimento da realidade e não está ausente das ações

desenvolvidas nas e pelas instituições de modo geral. É compreendida pelo seu movimento, e,

como categoria histórica, está presente na dinâmica da totalidade (OLIVEIRA, 1988).

De acordo com Martinelli (1993), as mediações também são categorias em que são

processadas as ações da prática profissional. Para a autora, mediação é:

[...] uma forma de objetivar a prática, pela qual o próprio profissional se objetiva

enquanto ser social. É, ao mesmo tempo, uma categoria reflexiva e ontológica, pois

sua construção se consolida tanto por operações intelectuais, como valorativas,

apoiadas no conhecimento crítico do real, possibilitado fundamentalmente pela

intervenção da consciência. (MARTINELLI, 1993, p. 137)

Portanto, é a partir desse aporte teórico que analiso o conteúdo coletado para alcance

dos objetivos traçados para este estudo.

107

3.5 As apreensões obtidas da relação do adolescente em cumprimento de medida

socioeducativa de internação e dos profissionais do Centro de Atendimento ao

Adolescente (Cead) com o RAP e a poesia

Porque a gente estar lá dentro é fácil, é só ficar dois três anos parado, deitado e dormindo,

mas através daquilo [das oficinas] eu tive uma reflexão e pude mudar de vida e ter a

vida que eu tenho hoje, graças a Deus.

(SATURNO – sujeito da pesquisa)

As oficinas de RAP e de poesia, realizadas de 2007 a 2010, possibilitaram a formação

de um espaço para a construção de valores com os adolescentes e, também, de um lugar de

aprendizado. Naquele contexto, percebi que as oficinas proporcionavam reflexões sobre as

temáticas – as quais eram trazidas por eles, por mim e por profissionais da instituição –, para

além das questões trazidas. Por isso, o trabalho de campo, após dois anos da realização das

oficinas, propiciou um estudo mais aprofundado, a partir da análise dos próprios sujeitos.

O RAP e a poesia tiveram apreensões diferenciadas, mas não distintas, para cada

sujeito da pesquisa, que participou das oficinas.

O primeiro jovem adulto, ao qual chamarei de Júpiter108

, hoje com 20 anos de idade –

tinha 16 anos, quando participou das oficinas –, já cantava RAP em sua comunidade de

origem antes de iniciar o cumprimento de medida socioeducativa de internação. Disse que

tem o dom para cantar RAP, que, para ele, é uma forma de aprender e ensinar. Afirmou que

sentiu “responsa”109

quando apresentou a sua arte em atividades e para outras pessoas, e que

as oficinas de RAP e de poesia foram um lugar que possibilitou mudanças em sua vida:

Eu não era um menino fácil igual eu sou hoje, entendeu?! Ninguém me encontrava

aqui numa hora dessa [aproximadamente 9h da manhã]. Mudou, porque assim...,

porque você vai ficando mais velho e vai vendo as coisas diferente. Você vai vendo

que viver é bom demais, entendeu?! Você vai ver que o que a mãe falava naquele

momento era certo. E o que vinha na sua cabeça é que não era. Você vai

aprendendo, entendeu?! E passando pro outro, daí vai... (JÚPITER)

108

Lembrando que os três sujeitos da pesquisa que participaram das oficinas – Júpiter, de 20 anos; Saturno, de 20 anos; e Marte, de 16 anos – serão mencionados por nomes de planetas, bem como os dois profissionais entrevistados que serão mencionados como Lua e Sol, conforme explicado na introdução deste trabalho. 109

“Responsa” significa responsabilidade ao fazer algo; dar sentido positivo às ações que se faz.

108

É a sua letra de RAP, intitulada “Uma história”110

– a qual apresento novamente para

que o leitor a compreenda, com os seus depoimentos –, que abre a introdução desta

dissertação:

Você tá ligado que o mundo é isso aí

Vamos curtir o RAP, vamos ouvir

A vida é embaçada, se eu fosse um vento

O vento é uma vida que te leva ao pensamento

Fico olhando que eu tô ficando louco

Tipo assim, como se fosse um poço

Os meus pais não vêm aqui me ver

Fico bolado e começo a sofrer

Penso em matar, penso em morrer

Penso em salvar, penso em viver

Na vida do crime eu entrei muito cedo

Achava que era o tal só pra mim ter conceito

Traficava, fumava um, que prejuízo

Na minha infância perdi vários amigos

Mas é Deus o meu grande amigo

Porque sempre está comigo

Refrão:

Quero que a minha história tenha um final feliz

Final feliz, final feliz

Um final feliz é um novo começo

Levar a minha vida e corrigir os meus erros

A vida que eu levo não é fácil, não

Uma rapa de treta tenho no coração

Morar em um abrigo amanhã, quem sabe?!

Ficar longe da bandidagem

Arrumar um trampo e voltar a estudar

É melhor do que cheirar e roubar

Pois sei que no presídio não vai ser bom

Quero correr atrás e investir no meu dom

Cantar e dizer o que eu vivo

Dizer o que eu penso e o que eu sinto

No mundão, família e diversão

Na escola e numa profissão

Sangue bom, fico por aqui, um abraço

Tenha fé em Deus e valorize o seu espaço

Refrão:

Quero que a minha história tenha um final feliz

Final feliz, final feliz

Esse jovem, enquanto em cumprimento de medida, fazia acompanhamento psicológico

e psiquiátrico para tratar questões de transtorno mental. Porém, isso não o impedia de

participar das oficinas, pelo contrário, nos encontros, ele apresentava espontaneidade,

110

Letra de RAP escrita pelo próprio adolescente, na oficina I.

109

memorização e alta capacidade elaborativa e metafórica, como é visto nos seguintes versos:

“A vida é embaçada, se eu fosse um vento/ O vento é uma vida que te leva ao pensamento/

Fico olhando que eu tô ficando louco/ Tipo assim, como se fosse um poço/”.

Em certo momento da pesquisa mostrei para o jovem a letra de RAP acima, que ele

havia feito há cerca de quatro anos na oficina. Ele foi o único que tinha a produção decorada.

A letra apresenta uma série de categorias que se referem à vida do adolescente: “Vamos curtir

o RAP, vamos ouvir/111

” é tido como um chamado introdutório para que se atente à sua

condição de vida e para o que ele tem a dizer sobre ela. Não somente apresenta respostas

sobre a sua vida, mas apresenta um terreno, que permite a construção de um diálogo a partir

das vivências do próprio jovem, que afirmou:

Meu RAP tem umas coisas bacana e algum ensinamento, e... assim... e daí vai... é...

RAP é uma coisa legal, é uma coisa bonita, uma coisa assim que eu posso te falar,

uma coisa... vai ensinando, aí você vai cantando ali... entendeu?! RAP nós vivemos

de RAP, nós vivemos de música. E assim vai... (JÚPITER)

O adolescente aponta uma questão importante acerca da invisibilidade. Para ele, as

pessoas de sua comunidade nem sempre conseguem vê-lo como uma pessoa “humilde”. Isso,

anterior e posteriormente ao cumprimento da medida socioeducativa de internação: “A

humildade. Eles não veem, mas assim, é uma coisa que você vê em você e eles não veem,

entendeu?! É uma coisa assim que você vive ela. Entendeu?! Só que eles não estão vendo. Só

você sabe que é... Só você sabe...” (JÚPITER).

Para ele, ser humilde:

É você ser compreensivo. É ser compreensivo com a pessoa e assim: que lei é lei e

limite é limite. É você viver o seu limite. É viver a humildade. Ter seu respeito [...].

Às vezes, é você saber brincar... Ter o seu limite ali... Igual você ir dançar... Você

chegar lá e dançar e tal. Você curtir sua vida e não ser zuado, entendeu?! Você

entrar lá e bater no peito que é o tal e tal?! Você vai ser zuado. Não vai ter ninguém

que vai gostar. Mas com humildade você chega ali tranquilo, do seu jeito,

conversa... (JÚPITER).

Para o segundo jovem adulto, ao qual chamarei de Saturno, hoje com 20 anos de

idade, e com 16, na época em que participou das oficinas:

O RAP pra mim significa... às vezes, [alguém] canta um RAP ali... só de você ouvir

o toque é bonito, mas pra mim não é só o toque o RAP que eu escuto. Eu medito na

letra, no que ele [o MC] está querendo passar para mim, entendeu?! A música está

rolando e eu medito... Por que o RAP é uma história, praticamente, não é?! Então,

para mim é isso: meditação! (SATURNO)

111

Esse verso faz lembrar a música “Realidade”, do grupo de RAP Jigaboo, cujo refrão diz: “Chega perto de mim/ Me deixa falar/ Sempre de muito longe/ Vem me condenar”. Ver Anexo D.

110

Para ele, o RAP se apresentou como forma de contar histórias às quais, ao ouvir,

meditou na letra. Possibilitou a meditação, a sua análise interior e, mesmo considerando o

toque bonito – a base ou o instrumental –, a letra do RAP é o que o tocou mais, por ele querer

buscar a mensagem que o MC transmite. Tal meditação ajudou-o a vencer a vergonha (no

sentido da timidez) que sentia nos momentos que apresentava a sua arte para os outros.

Ao ser indagado sobre as mudanças concretas em sua vida, Saturno afirmou:

Mudei praticamente o jeito de viver. Porque o RAP fala muito de vida, de maldade,

de paz, fala muito desses motivos. Então, através do RAP eu pude refletir alguns

momentos que a gente passa que, às vezes, você escuta um RAP, que fala uma

história que no futuro você vai passar por histórias [semelhantes a] que ele [o

rapper] passou. Então, você ouvindo aquela música você já sabe mais ou menos se

desviar daquele problema.

Para esse jovem adulto, o RAP é a tradução da realidade da vida cotidiana, sendo

transmitida por meio de histórias a partir dessa realidade. Por compreender que o RAP “fala

muito de vida, de maldade, de paz”, ele entende que o RAP, então, anteciparia as prováveis

situações da vida cotidiana – situações que assumiriam diferentes faces, de acordo com a

particularidade de cada situação vivenciada – assim, ele procurou outros caminhos para

desviar-se de algum possível problema parecido no futuro.

A questão da invisibilidade é o ponto de maior significação em sua convivência

comunitária anterior e posteriormente ao cumprimento da medida socioeducativa de

internação, a qual foi percebida em sua relação com a comunidade de origem:

Eu tenho esse pensamento na minha mente também. Às vezes, eu passo um... Aqui

no [nome do bairro] na hora que você chegar e perguntar “quem é o [apelido dele]”,

aí eles já falam, “lá em baixo”. Aqui todo mundo me conhece como [apelido dele]

Então, às vezes, eu ando aí pelas ruas e as pessoas ficam me olhando meio assim,

achando que eu ainda sou o que eu era, entendeu?! Eu ainda não consegui passar

confiança para as pessoas. Porque o que eu mais quero é ter a confiança da

comunidade. Então, às vezes, eu passo na rua e os outros me veem e falam “aquele

menino é isso e aquilo”, sendo que eu não sou mais. Então, eu tenho esse grande

problema com muitas pessoas: eu tenho o problema de não passar confiança para

eles, entendeu?! Muita gente ainda não tem em mim aquela confiança que tinha

antigamente. Então, isso para mim... na minha vida, prejudicou um pouco nessa área

da confiança mesmo, muito poucas pessoas têm confiança em mim hoje, mas eu

ainda vou conseguir conquistar essa confiança de todos, se Deus quiser, e ele quer,

não é?! Com certeza... (SATURNO)

111

O relato exemplifica a invisibilidade projetada112

por alguns moradores da

comunidade. Para Saturno, é evidente que a comunidade ainda o olha a partir de seu passado,

evidenciando sua invisibilidade no presente. Ele ainda ressaltou que:

Pelo o que eu já fiz, eu acho difícil a comunidade me olhar do jeito que eu era. O

jeito que eu já fui antes de passar pelo que eu passei. Então, eu acho que o jeito que

está indo está bom, mas se a comunidade me desse uma oportunidade, uma

confiança a mais, eu acho que ela ia dar uma fortalecida a mais na gente. A gente

podia andar onde a gente puder ir. Se todo mundo confiasse, seria melhor, não é?

Pra mim um ponto que me prejudica muito é a falta de confiança da comunidade.

(SATURNO)

Nessa questão, Soares (2005, 2011) fala das “profecias que se autocumprem”, ou seja,

atitudes discriminatórias das pessoas que podem acarretar e/ou corroborar para a existência

daquilo que se pretendia evitar. Por isso, a partir de sua experiência e dos relatos acima,

perguntei se ele já pensou em reafirmar o que a comunidade diz sobre ele:

Já, já... Teve muitas vezes dos outros chegarem na minha cara assim e apontarem o

dedo e falar... Eu dentro da casa da pessoa e a pessoa, ao chegar na casa dela, falar:

“Você não vai entrar aqui dentro, porque você é isso, isso e aquilo.” Eu já tive muita

vontade de voltar sim e falar “já que você está falando que eu sou, eu vou ser.” Mas

a minha força maior é a minha família! Porque eu, depois que saí do Cead... quando

eu saí não... quando eu tava dentro do Cead, eu pude refletir o sofrimento que a

minha família passava sem a minha presença! Porque família é assim... Então, por

causa da minha família mesmo, da sua força, da vizinhança, dos amigos que também

davam força – “não, não faz isso não” –, até hoje eu estou firme e forte.

(SATURNO)

É possível perceber que a família e os amigos têm sido um suporte fundamental para

que ele não retorne a envolver-se com a criminalidade. O que se evidencia em sua letra de

RAP intitulada “Lembra?”113

Eu conheço o ECA não faz muito tempo

Então vou lhe dizer o que estou aprendendo

Direitos e deveres, irmão, é muita coisa

Coisas que não tive, coisas muitos boas

Esporte, lazer, cultura e educação

Perdi minha moral fazendo confusão

Mas sei, que posso superar, então

Estou na correria com Deus no coração

Centro de Internação é uma passagem

Não quero retornar e evitar a malandragem

Daqui pra frente trabalho e estudo

É o melhor que eu faço pro futuro

O ECA está comigo, está com você

O ECA não foi feito pra gente esquecer

112

Invisibilidade projetada, no sentido assumido na Tabela 2, da página 64. 113

Esse trecho foi escrito pelo próprio jovem, na oficina II. É constituída por mais três partes não mencionadas aqui pelo falto de eu não ter localizado os seus respectivos autores para que autorizassem a reprodução.

112

Então, olhe para trás e veja a história

Do Código de Menores ao ECA é uma vitória

Refrão:

Você já foi criança um dia, lembra?

Já adolescente um dia, lembra?

Então pare pra pensar, irmão.

Já o terceiro sujeito da pesquisa, que ainda é adolescente, com 16 anos de idade – tinha

14 anos na época das oficinas –, ao qual chamarei de Marte, disse que as oficinas de RAP e de

poesia o ajudaram a ter paciência no processo de aprendizado escolar. Paciência que o ajudou

a vencer o medo e a vergonha [timidez] de expor a sua arte. As oficinas eram para ele uma

atividade diferente, pois antes delas ele só jogava futebol: “A minha experiência foi grande,

eu não conhecia nada. Pensava que poesia para mim era você, tipo, escrever tudo lá e no final

você tira umas palavras lá e faz uma poesia, e depois ver a diferença. Nós ficamos lá... fala

sobre o livro, fala sobre isso...” (MARTE).

O “fala sobre o livro, fala sobre isso” refere-se à sua poesia e às discussões realizadas

sobre ela. A poesia do adolescente chama-se “O Livro”114

:

O livro precisa de alguém para passar as páginas,

E as pessoas precisam do livro para passar a vida.

E quem não gosta de ler?

A falta de leitura faz mal para os olhos.

E os bons olhos não desperdiçam oportunidades.

Em relação às possíveis mudanças e aprendizados, Marte relatou:

Ah, cara. Sinceramente?! Ah, velho... Com isso eu pude ter algumas oportunidades

diferentes. Só que, sinceramente, até hoje eu fiz, gostei, igual eu falava com você

que gostei muito [...]. Só que, hoje: assim, eu falar com você que mudou... não

mudou não [...]. Ah, cara, minha cabeça mudou muito. [...] O que não mudou é o

crime: é o mesmo.

A passagem apresenta aspectos relevantes. O adolescente afirma que gostou de ter

participado das oficinas de RAP e de poesia e que seu pensamento mudou (“minha cabeça

mudou muito”). Entretanto, ao realizar a entrevista em sua comunidade, e pelo fato de eu

conhecer a dinâmica comunitária daquele lugar onde o tráfico de drogas é intenso e se

apresenta como alternativa de sobrevivência para muitos adolescentes e jovens, ele se vê

diante de uma realidade que confronta a sua “cabeça que mudou muito”. Esse depoimento é

importante, pois o adolescente foi sincero em me responder, trazendo um não uma negativa,

que abriu a vertente para essa reflexão: as oficinas constituíram-se desse movimento concreto-

114

Poesia escrita pelo próprio adolescente, na oficina III.

113

subjetivo – não viam os adolescentes como “maus” e que precisavam ser transformados em

“bons”, viam os adolescentes como pessoas com possibilidades a serem aproveitas e limites a

serem superados.

A observação permitiu-me notar que a invisibilidade desse adolescente tinha por base

a sua relação comunitária, anterior e posterior ao cumprimento da medida: “De vez em

quando eu sou humilde, mas muitos não conseguem ver. Não sou humilde assim... falar que é

humilde é ser assim... Tem hora que você esgota a paciência. Só que sou bem humilde; só que

as pessoas não veem isso.” (MARTE).

Para ele:

Ser humilde é você saber falar com as pessoas. Na minha opinião, é você conversar

com a pessoa tranquilo, calmo, baixo... não chegar tipo grosso, endoidando, isso e

aquilo. Na minha opinião, é saber conversar e saber lidar com as pessoas que estão

ao seu redor. Na minha opinião é isso. (MARTE)

De acordo com Guará (2000), a humildade é um valor de importância para o jovem.

Há nessa relação a presença da contradição do “valor humildade”, com as características de

suas vidas.

A humildade, para os jovens – na pesquisa realizada pela autora –, é “um valor que

qualifica aquele que não prejudica ninguém e ‘não quer ser diferente de ninguém’ e, assim, a

‘humildade’ é equiparada à igualdade. Sujeito humilde é aquele que ‘não é melhor que

ninguém’, não é presunçoso ou orgulhoso.” (GUARÁ, 2000, p. 195).

Comte-Sponville (apud GUARÁ, 2000, p. 196) aborda a humildade como uma

questão relacionada a outro sentimento, que é a tristeza. Para ele, a humilde é “o esforço pelo

qual o ‘eu’ tenta se libertar das ilusões que tem sobre si mesmo e porque essas ilusões o

constituem – pelo qual ele se dissolve.” A autora afirma que essas “ilusões” podem ser

compreendidas também como ilusão da própria condição social. Nessa lógica, “a humildade é

para os jovens o reconhecimento de sua impotência diante das dificuldades da vida, mesmo

que com seus atos procurem demonstrar coragem e orgulho.” (GUARÁ, 2000, p. 196).

Na entrevista que tive com a profissional – a quem chamarei de Lua –, do Centro de

Atendimento ao Adolescente (Cead), ela comentou que as oficinas possibilitaram o trabalho

direto com o adolescente, visando a critica a partir de uma arte que eles gostavam, que é o

RAP, pois:

De forma geral, as oficinas agregaram muito valor à instituição, ao trabalho com os

adolescentes, e elas ganharam lugar de destaque dentro da proposta de trabalho.

Teve uma época que as oficinas estiveram bem sistematizadas. Eu acho que

acrescentou muito porque os adolescentes eram envolvidos nas oficinas. A gente via

a vontade, via o interesse deles, e [percebia] uma transformação daquele sujeito que

114

estava ali, [pelo fato de ele se] deslocar de lugar – sair do lugar de ser somente

assistido pela instituição e [passar a] ser protagonista. Então, eu acho que as oficinas

tiveram esse lugar de relevância, tanto para a instituição quanto para os próprios

adolescentes que participaram como protagonistas desse processo. (LUA)

O deslocamento mencionado no relato acima foi possível pelo movimento que o RAP

e a poesia têm de objetivar, como arte, ou seja, de elevar-se para além das básicas condições

de vida. Isso é o que Heller (1972) chama de “suspensão do cotidiano”.

Isso para mim é ampliar a noção de mundo. Por mais que o RAP ou a poesia falem

da experiência do menino, lá na comunidade dele ou não... o que ele assistiu desde

quando nasceu... você pode também através do RAP apresentar um mundo novo

para o adolescente. E isso é ampliar a noção de mundo, [possibilitar] alternativas de

vida. (LUA)

Para o segundo profissional entrevistado no Centro de Atendimento ao Adolescente

(Cead) – a quem mencionarei como Sol –, as oficinas foram as atividades que os adolescentes

puderam se identificar, principalmente pela linguagem e pela capacidade de superação:

Todos [os adolescentes] me chamaram muita atenção porque nós o acompanhamos

[o processo das oficinas] do início até o final. Mas teve um que eu gostava muito,

era o [Júpiter], porque ele tinha muita dificuldade. Acredito que ele talvez tenha sido

um dos que tiveram mais dificuldades. Mas foi um que, diante da dificuldade, mais

brilhou. Acho que ele conseguiu brilhar mesmo porque tinha essa dificuldade, pois o

desejo dele [de superação], era grande que ele ficava dançando, imitando os

Jacksons: mexia o corpo... tinha dificuldade de fala, mas... como ele conseguiu! Ele

era muito tímido, mas por isso mesmo é que ele não chamava muito a atenção. Às

vezes, aquela timidez, aquele jeito dele, aquele desejo de fazer a coisa... E como ele

conseguiu dar conta disso... Desse interesse que ele tinha, de estar ali, de estar

produzindo, de estar fazendo... a vontade de estar participando... Ele foi uma pessoa

que chamou muito a atenção. Eu acredito que ele conseguiu se destacar. Pela

dificuldade que ele tinha ele se destacou, porque o seu desejo foi maior que a sua

dificuldade... Então, ele conseguiu chamar atenção e ficou marcado. (SOL)

Antes de iniciar as oficinas na unidade, alguns adolescentes falavam que era proibida a

entrada de alguns CDs de RAP, pois eram consideradas músicas muito “pesadas”. Alguns

CDs de RAP eram permitidos, desde que fossem ouvidos com o discman e fone de ouvido.

Quanto a isso, não tive qualquer problema para realizar as oficinas; pelo contrário, a unidade

se interessou pela proposta de utilizar o RAP e a poesia no trabalho socioeducativo.

Embora seja longo o depoimento abaixo, optei por apresentá-lo de maneira completa,

para ser fiel à linha de raciocínio da narrativa em relação a essa questão, trazida pelos

adolescentes.

Às vezes, [os profissionais] optam pela coisa mais fácil em relação a essa questão. O

que é o mais fácil? É proibir e acabou. Por que trabalhar de fato essa questão? Então,

foi um marco quando você chegou e conseguiu “quebrar” um tanto de coisas...

115

porque ainda hoje no Cead muitos CDs são proibidos: “Não podem” [ser ouvidos],

têm que passar por uma seleção... Porque é essa a visão: às vezes, é mais fácil

proibir... quer dizer “o que está sendo falando ali? Nada!” É porque não têm o

conhecimento. A maioria de nós... não temos o conhecimento do RAP. “Então, se

eu não tenho conhecimento, o melhor é eu proibir. Não vou buscar, não vou me

interessar nisso, não vou dar ouvido a isso” Então, a palavra é proibir. Está falando

[a música RAP] “Oh, tem que matar, tem que não sei o quê, tem que subir o morro

e tal.” “Opa! Então, vamos ter proibir isso”. Sem saber de fato o que quer dizer

isso. Sem saber ao fundo o que quer dizer aquilo, sabe?! Num período anterior, por

não termos tanta visão, conhecimento – foi mais fácil para nós (vou falar “nós”

porque querendo ou não eu estava ali presente) foi mais fácil para nós ter proibido

tudo. Como, ainda hoje, ainda é mais fácil. Em vez de colocar um CD pesado dos

Racionais que está falando de violência, é mais fácil proibir do que trabalhar. Não é

diferente hoje. Hoje, ainda, alguns CDs são proibidos. Porque ainda existe essa visão

de que o RAP faz apologia, de que o RAP é pesado... Só que isso é contraditório.

Porque [o adolescente] não pode colocar o CD no rádio para ouvir no pátio, mas

pode ouvir como o fone de ouvido. Ele não pode ouvir naquele momento, mas se ele

for para casa dele no final de semana, ele ouve. Ele canta com o seu amigo ali no

canto [da instituição]. Então... é muito contraditório. É mais fácil tirar do que

trabalhar, não é?! Então... isso, ainda acontece hoje. A pessoa fica meio que assim...

numa faca de dois gumes! Porque: como eu não posso colocar o CD deles, mas

posso permitir que eles ouçam ali no mesmo momento com o fone no rádio dele? No

meu rádio não pode, mas no dele pode. Então, foi por isso que foi cortado. O

argumento é a questão da apologia, da gíria que influencia... então... Tem muitas

outras coisas aí que fogem um pouco... (SOL).

A questão também é presente no relato abaixo, da profissional Lua:

Quando eu cheguei no Cead [em 2005] já existia essa orientação [sobre a questão do

CDs de RAP]. Eu acho que [esse tema] toca muito no preconceito das pessoas.

Assim, a instituição não é isenta dos preconceitos dos profissionais que trabalham

nela. Eu acho que quando existe uma orientação desse tipo, não deixa de haver um

pouco de preconceito. O funcionário quando chega para trabalhar, não deixa os

valores do lado de fora da instituição. Por mais que a gente tente fazer um

alinhamento dos valores de cada um com o valor institucional, às vezes, [o valor

individual] acaba tendo peso. E o que eu percebo é que não é todo mundo que

escuta o RAP com bons ouvidos. Às vezes, não conseguem ver que não são todas

as letras que fazem apologia ao crime e colocam tudo num pacote só. A partir disso,

começa essa proposta: todo CD que chegar vai passar por uma avaliação da equipe

técnica. E aí, o técnico aprova ou não esse CD para ser escutado na instituição. Só

que aí passa pelo valor do técnico e nem sempre vai ser discutido: “Gente, vamos

discutir essa música para ver se aprovamos ou não aprovamos? – Não, é a pessoa

mesmo que aprova, que despacha o CD para adolescente escutar ou para ser

devolvido para a família. (LUA, grifo meu).

Identifico, nesses relatos, uma categoria importante para o tratamento da questão, que

é o preconceito. Recorro a Heller (1972), para desenvolver uma análise crítica sobre o

assunto.

De acordo com o autor, o preconceito é compreendido a partir dos “juízos

ultrageneralizadores”, que são construídos cotidianamente em relação às práticas comuns na

vida dos homens:

116

Sempre reagimos a situações singulares, respondemos a estímulos singulares e

resolvemos problemas singulares. Para podermos reagir, temos de subsumir o

singular, do modo mais rápido possível, sob alguma universalidade; temos de

organizá-lo em nossa atividade cotidiana, no conjunto de nossa atividade vital; em

suma, temos de resolver o problema. Mas não temos tempo para examinar todos os

aspectos do caso singular, nem mesmo os decisivos: temos de situá-lo o mais

rapidamente possível sob o ponto de vista da tarefa colocada. E isso só se torna

possível graças à ajuda dos vários tipos de ultrageneralização. (HELLER, 1972, p.

35).

Os “juízos ultrageneralizadores” são utilizados como guia e como subsídio para os

posicionamentos diante dos fatos sociais, ou seja, esses “juízos” possibilitam uma leitura e um

entendimento imediato das relações, não significando, prontamente, a existência de

preconceito. É por isso, que, nessa ótica, a autora não se refere ao “pensamento” como teoria,

e sim como posicionamento concreto do ser social. Por se tratar de um pensamento cotidiano

voltado para a vida empírica, acaba sendo ultrageneralizador, ou seja, uma generalização mais

ampla de um fato isolado. Para a autora:

Toda ultrageneralização é um juízo provisório ou uma regra provisória de

comportamento: provisória porque se antecipa à atividade possível e nem sempre,

muito pelo contrário, encontra confirmação no infinito processo da prática.

Diferentemente do que ocorre com os juízos cotidianos, os juízos científicos

consideram-se provisórios apenas até o momento em que, num determinado estágio

evolutivo da ciência, as hipóteses comprovam-se como verdades, sendo confirmadas

(HELLER, 1972, p. 44).

Se esses “juízos ultrageneralizadores” forem incorretos, é a própria prática que

orientará as posições e as condutas frente às questões e às pessoas reais com as quais se

trabalha. Caso isso não aconteça, corre-se o risco de assumir posições preconceituosas.

Nesse sentido, o preconceito existe quando os “juízos provisórios” – que são todos

eles “juízos ultrageneralizadores” – passam a ter caráter único e não maleável, não baseando-

se na forma prática de orientação da cotidianidade. “Os juízos provisórios que se enraízam na

particularidade e, por conseguinte, se baseiam na fé são pré-juízos ou preconceitos”

(HELLER, 1972, p. 35).

Ainda, o preconceito pode ocorrer quando não existe questão posterior que o

contraponha por estar “exposto ao perigo da cristalização (fossilização); e, embora

inicialmente o tratamento grosseiro do singular não seja prejudicial, pode converter-se num

dano irreparável se se conserva após ter cumprido sua função.” (HELLER, 1972, p.35-36).

O preconceito é a categoria do pensamento que está relacionada aos comportamentos

praticados na cotidianidade, ou seja, “é um tipo particular de juízo provisório.” (HELLER,

1972, p. 45).

117

Heller (1972, p. 59) ressalta que o preconceito apresenta-se com um “conteúdo

axiológico negativo”. Por essa razão, a análise do sujeito preconceituoso deve se realizar a

partir do ângulo de sua totalidade e se ela está completamente fomentada pela sua

particularidade. Considerando que os preconceitos são constituídos e se apresentam em vários

níveis de intensidade e conforme a pessoa, o local, etc., o preconceito:

[...] reduz as alternativas do indivíduo. Mas o próprio preconceito é, em maior ou

menor medida, objeto da alternativa. Por mais difundido e universal que seja um

preconceito, sempre depende de uma escolha relativamente livre o fato de que

alguém se aproprie ou não dele. Cada um é responsável pelos seus preconceitos. A

decisão em favor do preconceito é, ao mesmo tempo, a escolha do caminho fácil no

lugar do difícil, o “descontrole” do particular-individual, a fuga diante dos

verdadeiros conflitos morais, tornando a firmeza algo supérfluo. (HELLER, 1972, p.

60).

A redução das alternativas do indivíduo acontece com a manifestação do preconceito,

que independe de seu nível potencial. Assim, Heller (1972, p. 63) considera que “só

poderemos nos libertar dos preconceitos se assumirmos o risco do erro e se abandonarmos –

juntamente com a ‘infalibilidade’ sem riscos – a não menos tranquila carência de

individualidade.” Nesse prisma, “libertar dos preconceitos” exige uma releitura da forma que

com que se olha para algo ou para alguém e se questiona as certezas e incertezas das próprias

convicções:

Só um detalhe. Eu acho que as oficinas que começaram a ser feitas ajudou a

desconstruir um pouco essa ideia pré-concebida do RAP. Eu acho que a partir daí,

hoje é muito mais fácil liberar um CD de RAP do que era em 2005 quando eu

cheguei na instituição. (LUA).

Portanto, o trabalho de campo possibilitou o aprofundamento da estratégia utilizada,

para maior apreensão das relações dos adolescentes que estiveram em cumprimento da

medida socioeducativa de internação, com as oficinas de RAP e de poesia.

Por meio deste estudo, constatei que os adolescentes compreenderam e materializaram

as reflexões sobre a violência, a partir da relação dos conteúdos das oficinas – músicas e

poesias – e sua própria história de vida. Essa relação, pela identificação, possibilitou um

caminho para a construção do trabalho. Nesse aspecto, notei que as letras de RAP com

narrativas sobre mãe, história de vida, a vida em comunidade, vida no crime, etc., eram as que

mais proporcionaram essa identificação. Por isso, digo que as reflexões dependeram do

interesse do adolescente em participar das oficinas. As materializações dessas reflexões não

foram imediatas (e nem pretendiam) e, por terem sido marcantes, passaram por um processo

118

gradativo de autoformação, de experiência própria, demandando condições materiais

condizentes.

A questão não foi verificar se eles colocaram em prática o que escreveram nas letras

de RAP ou nas poesias, mas se conseguiram identificar as suas condições materiais existentes

na passagem do poético para o concreto, se compreenderam as dimensões dessa identificação

e o que apreenderam sobre o que pode surgir a partir daí, pois:

É, realmente, importante para quem quer que deseje intervir na vida social, saber

quais são, num estado dado, numa dada situação, as informações que se podem

transmitir, quais as que passam sofrendo deformações mais ou menos importantes e

quais as que não podem passar. (GOLDMANN, 1972, p. 10).

Ponto em comum entre os três adolescente/jovens sujeitos da pesquisa foi a questão da

invisibilidade relacionada com a convivência comunitária antes e depois do cumprimento da

medida socioeducativa de internação – considerando a intensidade dessa invisibilidade em

relação à prática infracional. No entanto, há uma diferença: antes da medida socioeducativa, o

valor da invisibilidade não era negativo pela sua condição de cobertura da cultura da violência

local. Após a medida, esse valor se tornou negativo pelas relações que foram se fragilizando,

devido ao preconceito e à “confiança” da comunidade que não os vê como pessoas

“humildes”, que passaram por um processo de socioeducação e que buscam uma convivência

comunitária “normal”.

Você consegue ver esse invisível quando você pergunta isso. Quer dizer, ele está

falando de quem? Ele está falando do invisível. Frente a frente, olho no olho ele não

dá conta de falar disso. Mas, na escrita, ele consegue se expressar muito facilmente o

que, às vezes, não consegue olho no olho. Então, é por isso que é importante a

poesia, a escrita: essa poesia que chega na construção desse RAP, que é a linguagem

deles. (SOL)

As atividades por meio das oficinas do RAP e da poesia podem contribuir para o

processo de superação dessa invisibilidade que corrobora para que as pessoas não os vejam

como eles são. As atividades ocorrem a partir da articulação com os objetivos da medida e

como forma de servir de mediação para o trabalho socioeducativo para as demais áreas. É,

também, uma forma de apreender as demais questões que envolvem as especificidades do

adolescente e do seu desenvolvimento na medida socioeducativa de internação. Se as oficinas

não forem um lugar em que os adolescentes sintam prazer, conforto e identificação, o

resultado pode ser o que se pretende “combater”. Ademais, as apresentações dos RAPs e das

poesias partiram de um processo natural das oficinas, decidido em conjunto com os

119

adolescentes, para não os expor, pois a pesquisa ratificou a presença de motivações como a

“responsa”, mas também pontos inibidores como o medo e a vergonha de se apresentarem em

público.116

Se o adolescente já traz uma invisibilidade, há necessidade de desenvolver um cuidado

no modo de trabalhar essa questão, para que ela não se torne “invisibilidade institucional” –

que limita o mundo da pessoa entre os muros e que não a respeita como pessoa, em razão dos

motivos que levaram para a instituição.

Eu acho que tem momentos... Não é uma invisibilidade intencional, de forma

nenhuma, mas tem momentos que a gente para e olha o tempo de medida do

adolescente na instituição e se assusta e se questiona: “Gente! Como assim? Esse

menino está aqui até hoje? O que ele fez? O que nós fizemos?” Essas são as

perguntas principais. Eu acho que existe uma demanda institucional em função da

demanda que outros adolescentes apresentam de forma tão intensa. Esse adolescente

que apresenta pouca demanda acaba ficando no lugar invisível. E tem adolescentes...

para alguns, é cômodo estar nesse lugar, porque a instituição para eles é um lugar de

proteção. Não deveria ser, porque é um lugar... A instituição... o foco dela é a

responsabilização pelo ato infracional, mas em alguns casos ela ocupa também um

lugar de proteção social. (LUA).

Assim, considero também que as oficinas de RAP e a de poesia devem lidar com a

questão da violência e/ou com temáticas relacionadas à prática do ato infracional, a partir do

discurso dos adolescentes, das músicas e das poesias com as quais eles se identificam, tendo

atenção para não reforçar a “visão comum” deles, que é o ponto de partida do trabalho. É

necessário, ainda, diferenciar “falar de algum tema” de “falar sobre algum tema”. O primeiro

implica nos apontamentos feitos pelos e para os adolescentes e o segundo refere-se a um

estágio mais avançado, na medida em que implica percepções derivadas desses apontamentos.

Outro ponto importante é dizer de/sobre o tema sem enfatizar, de maneira isolada, a

categoria central da oficina ou, até mesmo, sem mencioná-la de maneira direta. Nessa

perspectiva, considero que a metodologia que poderia ser utilizada, de forma a despertar o

interesse dos adolescentes e, ao mesmo tempo, desenvolver sua capacidade de crítica em

relação à sociedade e à sua própria vida, é aquela que se constitui dentro do processo de

socioeducação, com a utilização de instrumentais reconhecidos pelos sujeitos.

116

Por incrível que pareça, as apresentações realizadas em público aconteciam mediante o interesse do adolescentes. Esse aspecto não era a finalidade das oficinas. As apresentações em público demandavam o movimento avaliativo que eu chamava de “pós-apresentação”, para analisar como o adolescente se sentiu e quais foram as suas percepções. De acordo com Saturno: “O primeiro dia foi muito vergonhoso, mas me ajudou muito a colocar um brilho no meu rosto, né?! Assim, perder a vergonha de estar na frente de todo mundo”. As oficinas tinham o cuidado com o “infinito particular” – nome da música de Marisa Monte – dos adolescentes (Ver Anexo E).

120

Nessas oficinas, um espaço importante de trabalho é o da consciência dos

adolescentes. De acordo com Goldmann (1972), é necessário fazer distinção entre

“consciência real” e “consciência possível”. O autor classifica esse movimento, que vai da

consciência real para a consciência possível em quatro níveis:

O primeiro nível acontece toda vez que alguma informação não é compreendida por

ausência de conhecimento prévio. A recepção pode ser alcançada a partir de um

conhecimento que se coloca no processo da ação.

O segundo nível refere-se à “estrutura psíquica do indivíduo”. Aqui, Goldmann (1972)

menciona Freud, em relação à sua análise acerca dos componentes estruturais de desejos e de

rejeições, bem como do “eu consciente”, que se torna resistente a algumas informações e/ou

atribui sentido destorcido a outras.

O terceiro nível, sociológico, relaciona-se aos grupo particular do sujeito, resultante de

seu passado e dos diferentes acontecimentos que agiram sobre ele. Dada a estrutura de sua

consciência real, o indivíduo resiste à apreensão de algumas informações que não sejam

legitimadas.

O quarto e último nível é o que Karl Marx considera como os “limites da consciência

possível”, em que, para ocorrer o alcance da informação, é necessária a transformação da

estrutura do grupo, pois “existem efetivamente informações cuja transmissão é incompatível

com as características fundamentais deste ou daquele grupo social. É o caso em que as

informações ultrapassam o máximo de consciência possível do grupo.” (GOLDMANN, 1972,

p. 11).

Esses níveis apresentados por Goldmann (1972) relacionam-se com o movimento das

oficinas, por terem um caráter prático-reflexivo e por terem considerado as especificidades

que constituem o grupo de adolescentes. Por meio da compreensão do processo da

“consciência real” para a “consciência possível” é que pude chegar à estruturação da

metodologia central deste trabalho. Assim, as oficinas realizadas possibilitaram a efetivação

do que denomino de “cultura da libertação”, por viabilizar uma mudança a partir das

condições tangíveis da cultura e da vivência prática e política dos sujeitos.

A “cultura da libertação” refere-se ao conjunto de ações que podem ser desenvolvidas

e/ou percebidas, por meio do RAP e da poesia, compreendendo também que:

A simples “existência” da obra não encerra a discussão. O que mais interessa é a

função exercida pela arte na vida cotidiana dos homens. A arte, portanto, não existe

como um dado objetivo numa relação de indiferença com os seus receptores.

(FREDERICO, 2005 p. 111).

121

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É um apoio essas oficinas, as oficinas são um apoio para gente.

(SATURNO – sujeito da pesquisa)

Apresento, nessas considerações finais, percepções que tive durante o processo de

pesquisa e que foram constituídas a partir do movimento dinâmico da investigação realizada.

A princípio, considero de suma importância o cuidado ético de preservar todos os

documentos que auxiliaram a análise desta pesquisa, como fotografias, imagens de vídeo,

produção dos adolescentes e, principalmente, o diário de campo117

, que, possibilitou, de

maneira efetiva:

– O retorno aos detalhes, descritos durante a realização das oficinas, nos anos de 2007

a 2010, que possibilitaram o “reviver fidedigno” dos acontecimentos, dos relatos e das

produções realizadas pelos adolescentes e de minhas anotações acerca da realização das

oficinas;

– O reconhecimento do amadurecimento operacional e metodológico das oficinas e,

também, do modo como os adolescentes desenvolviam-se nelas;

– A organização do projeto de pesquisa, a elaboração dos procedimentos

metodológicos e a localização dos sujeitos que participaram das oficinas – pois os três sujeitos

da pesquisa não estavam mais em cumprimento da medida socioeducativa de internação; já

eram egressos, no momento da entrevista; e

– A análise e a reflexão mais aprofundada das atividades que foram realizadas naquele

período, possibilitando, também, o avanço nas estratégias e nas técnicas de operacionalização

das oficinas apresentadas na metodologia construída.

Também considero importante a minha retomada a campo e ter localizado os três

sujeitos escolhidos para pesquisa – um adolescente e os dois jovens adultos que participaram

das oficinas naquele período. O momento do encontro foi marcante e de muita felicidade para

eles e também para mim. Ao perguntar-lhes sobre a sensação do reencontro, a resposta dos

117

O meu diário de campo era feito a partir dos seguintes pontos: 1 – local, lugar (considero que o lugar em que você escreve interfere no modo como as descrições/análises são feitas), data e horário; 2 – temática da oficina; 3 – descrição da atividade realizada; 4 – reflexões a partir da descrição realizada; 5 – inquietações e/ou dúvidas e 6 – observações. A utilização do diário de campo pode ser flexível, sem preocupação de um modelo de diário de campo único e exclusivamente de caráter descritivo, pois, é por esse instrumental que o pensamento deve se fazer livre para que, num segundo momento, o profissional e/ou estudante que vier a utilizá-lo faça uma leitura para realizar as reflexões finais daquele registro.

122

três foi igual: “surpresa”. Um sujeito da pesquisa disse: “Eu pensei que você tinha se

esquecido de mim...” (SATURNO). Ele não imaginava que eu iria aparecer, após alguns anos,

para falar sobre as oficinas.

Aqui, cabe uma indagação: como explicar essa expressão de alegria ao reencontrar

esses sujeitos, sendo que no passado eu havia realizado intervenções intensas e severas com

eles, por algum comportamento inadequado durante o cumprimento da medida?

Costuma-se dizer que o adolescente precisa de limites – como se o limite fosse um

cordão de isolamento ou uma corrente presa no pé dele à parede. Em minha experiência,

percebia que as relações tecidas no campo do respeito – construídas em mão dupla –,

possibilitava que, eu, como profissional, fosse visto como alguém de referência positiva. Por

eu ser essa referência, os adolescentes ainda valorizam essa relação. Assim, o reencontro foi

produtivo também por evidenciar que a dimensão do respeito recíproco continuava presente.

Dessa forma, os cuidados éticos e o reencontro com os sujeitos da pesquisa deram-me

a segurança para realizar este estudo ex-post-facto mesmo após alguns anos da realização das

oficinas. E essa segurança ratificou a minha convicção em avançar nessa metodologia de

trabalho e sistematizá-la de maneira efetiva, como uma das práticas que mais se aproxima da

realidade de vida de adolescentes que estão em cumprimento de medida socioeducativa de

internação. Nessa aproximação, ao fazer o movimento de retorno ao processo vivenciado,

percebi os motivos que causaram a emersão das categorias violência, invisibilidade e cultura.

Em relação ao primeiro pressuposto que norteou esta dissertação – o adolescente

compreenderia o RAP e a poesia como “trilha sonora” de sua vida, com potencial

transformador, mas não suficiente para um direcionamento prático – é evidente que os

adolescentes falaram sobre a violência de uma forma muito concreta em suas produções.

Identificaram o RAP (ouvido e produzido por eles) à sua história de vida, pela sua

potencialidade de transformação por meio do conhecimento adquirido e produzido. Nesse

sentido, eles conseguiram identificar e expressar as razões que possivelmente impediam e/ou

dificultavam a efetivação de sua superação como, por exemplo, a desigualdade social. As

produções traziam dimensões riquíssimas, que provocavam indagações acerca do modo como

eles vivenciaram a violência, e como a prática infracional estava relacionada também com

outras dimensões, como a luta por sobrevivência e uma resposta à subalternidade (TOLEDO,

2007). Às vezes, a violência se apresentava como aparência (ou na aparência), escamoteando

forças internas e externas contraditórias: “[...] os meus pais não vêm aqui me ver/ Fico bolado

e começo a sofrer/ Penso em matar, penso em morrer/ Penso em salvar, penso em viver...”

(JÚPITER).

123

O segundo pressuposto – a invisibilidade não seria dada, nem estaria presente em

todos os níveis de vida do adolescente – demandou uma análise detalhada e qualificada desse

alcance, pois tornou necessário “tentar ver o que está nesse invisível. No invisível: o que está

oculto.” (SOL). Nas palavras de Saturno evidencia-se o invisível sobrepondo o visível “às

vezes, eu ando aí pelas ruas e as pessoas ficam me olhando meio assim, achando que eu ainda

sou o que eu era, entendeu?!”. Essa invisibilidade toma para ele uma forma de rejeição, de

desqualificação e, apenas ao nível do pensamento, como uma expressão de vontade, ele

responsabiliza o outro (a sociedade) por um eventual retorno às antigas práticas: “Eu dentro

da casa da pessoa e a pessoa, ao chegar na casa dela, falar: ‘Você não vai entrar aqui dentro,

porque você é isso, isso e aquilo’. Eu já tive muita vontade de voltar sim e falar ‘já que você

está falando que eu sou, eu vou ser”.

O terceiro pressuposto – a violência seria um meio (e não um fim), pelo qual os

adolescentes expressariam suas angústias, desejos e frustrações, no contexto desigual da

sociedade brasileira, assim, a análise de suas “trilhas sonoras”, possibilitaria descobrir e

diferenciar questões que teriam determinado sua prática infracional e, a partir daí, construir

estratégias para superá-las. Esse pressuposto se confirmou quando, ao analisar a violência em

sua totalidade e a partir das conjunturas sócio-históricas que norteiam a vida do adolescente

que pratica ato infracional, demonstrando as múltiplas situações que determinam essa prática,

ficou evidente que a violência não é o fim da história no contexto da análise dessa questão. A

violência, como meio, não se constrói sozinha. Por isso, torna-se necessário diferenciar as

múltiplas situações e “trabalhar a cultura a partir da própria cultura que os adolescentes

trazem.” (LUA). Por essa razão, “é fundamental discutir a cultura da violência, quer dizer,

pesquisar seus meios de difusão, suas características, sua lógica moral própria, para investir

nos antídotos, entre os quais se destaca a cultura Hip-Hop” (SOARES, 2005, p. 221).

O quarto e último pressuposto – uma aproximação do adolescente, para que seja eficaz

no alcance dos objetivos socioeducativos, teria que focar atividades que despertassem não

apenas o seu interesse, mas a sua capacidade de crítica em relação à sociedade e à sua própria

vida – se legitimou na pesquisa realizada, por evidenciar vários aspectos. Tornou claro que o

interesse primário fazia com que o adolescente estivesse presente nas oficinas, mas, a sua

permanência continuada, a sua contribuição e o seu sentimento de pertencimento se

desenvolviam por meio de seu envolvimento direto nas atividades, não apenas por sua

presença. Caber dizer também que trabalhar o pensamento crítico com os adolescentes não

significou potencializá-los contra a instituição, e sim, potencializá-los, a favor da defesa de

124

seus direitos, da responsabilização por seus atos, da superação de seus conflitos, da

construção de um novo modo de entender a vida.

Considero também que a emersão das categorias humildade e preconceito

contribuíram para o avanço deste estudo, o qual não teria acontecido de tal forma se eu não

tivesse ido a campo para realizar essa apreensão.

Em relação à humildade – categoria discutida aqui como um valor para os

adolescentes a partir do conceito construído por Guará (2000) – chamo a atenção para as

características contraditórias que a perpassam quando de seu uso pelos adolescentes: ela se

apresenta em suas relações cotidianas e, dificilmente, o adolescente será “humilde” o tempo

todo, sobretudo com quem lhe faz mal. Marte a apreende como um modo de se relacionar:

“Ser humilde é você saber falar com as pessoas”. Mas deixa claro que em sua vida, ainda que

se mostre humilde, às vezes, não é percebido como tal: “De vez em quando eu sou humilde,

mas muitos não conseguem ver”.

Já o preconceito relacionou-se com a questão da invisibilidade projetada. Por essa

razão, considero necessário que os profissionais, de qualquer instituição em que o RAP seja

representativo e expressivo, entendam o que essa cultura significa no processo da

socioeducação.

Para a compreensão e a ação nesse sentido, é importante refletir sobre a terceira tese

de Karl Marx contra Feuerbach:

A doutrina materialista que pretende que os homens sejam produto das

circunstâncias e da educação, e que, consequentemente, homens transformados

sejam produtos de outras circunstâncias e de uma educação modificada, esquece

que são precisamente os homens que transformam as circunstâncias e que o

próprio educador precisa ser educado. É por isso que ela tende inevitavelmente a

dividir a sociedade em duas partes, uma das quais está acima da sociedade (por

exemplo, em Robert Owen). A coincidência da mudança das circunstâncias e da

atividade humana ou a automudança só pode ser considerada e compreendida

racionalmente como práxis revolucionária. (MARX, 2007, p. 100, grifo meu).

Por fim, considero a arte como mediação na perspectiva crítica e como instrumento de

trabalho, no fazer profissional dos assistentes sociais. Pois, de acordo com Lukács (1978, p.

296):

A arte opera diretamente sobre o sujeito humano; o reflexo da realidade objetiva, o

reflexo dos homens sociais em suas relações recíprocas, no seu intercâmbio social

com a natureza, é um elemento de mediação – ainda que indispensável –, é

simplesmente um meio para provocar este crescimento do sujeito.

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133

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2004.

134

ANEXOS

Anexo A

Poesia: Ver e não ser visto

Autoria: Daniel Péricles Arruda (Vulgo Elemento)

A minha privacidade foi quebrada,

Ao admirar o meu eu pela vidraça,

Descobri que sou visto, mas não vejo,

Várias pessoas além do espelho.

Tipo vigiar e punir,

Só por cuidar de mim,

Eu sou o que penso e não o que vejo,

Várias pessoas olham no espelho,

Poucas consideram o contexto,

Nem todas gostam de si mesmo.

135

Anexo B

Letra de RAP: A Lágrima de um palhaço

Autoria: Daniel Péricles Arruda (Vulgo Elemento)

Hã, Vulgo Elemento, irmão, aí, fecha com nóis, Contagem/MG, São Paulo/SP, A Lágrima de

um Palhaço. É que eu tenho muito orgulho do que faço, tá ligado, mano, e acredito mesmo

que a tristeza é o motivo da alegria do palhaço, com o sentimento da dor e o bem estar do

abraço, um aperto de mão, um sorriso nos lábios, (a lágrima que desce dos olhos do palhaço.)

Se a vida é um circo eu sou um palhaço/

no picadeiro, na ativa arrancando aplausos/

a recompensa do ensaio e do trabalho/

ver o ser humano com o sorriso nos lábios/

né fácil, esse mundo está louco é um paralelo/

entre o preto e o branco a favela e o castelo/

aí mano Phil, eu to ligado que admira o meu som/

palavra chave tu falo tem que ter dom, bom/

A Lágrima de um Palhaço não é por acaso/

representa o desabafo apertado de um passado/

hã, como um sorriso com lágrimas nos olhos/

sentimento de dor como a guerra do petróleo/

quando estou no back gudang e campari/

mano to ligado isso é coisa de covarde/

a tristeza é o motivo, então, reflito/

na alegria do palhaço e com isso identifico/

REFRÃO ( 2 vezes)

Me deixe sorrir, me deixe chorar/

Senhoras e senhores o show vai começar/

Me deixe fugir pra outro lugar/

Aonde a paz prevalecerá/

136

Caminhando e cantando, uai, eu vou vivendo/

a vítima do sistema, vai, sobrevivendo/

o meu pensamento é diferente dos outros/

não sei, bem, tem hora que penso que estou ficando louco/

eu vou pintar o rosto de palhaço meu amigo/

pra ver se você luta e identifica comigo/

Em São Paulo ou BH tem que lutar até o fim/

Um dia pura tristeza, noutro dia feliz/

No Brasil, grande parte da população sofre com isso/

é como se fosse um abismo/

desemprego, depressão, humilhação e o vício, o que é isso/

a degradação do ser humano, é aquilo/

o circo está aberto o espetáculo começou, /

estreando Vulgo Elemento vou te dizer quem eu sou/

transformando os punhos fechados em abraços/

e relatando o motivo da lágrima de um palhaço/

REFRÃO ( 2 vezes)

Me deixe sorrir, me deixe chorar/

Senhoras e senhores o show vai começar/

Me deixe fugir pra outro lugar/

Aonde a paz prevalecerá/

137

Anexo C

Letra/Autoria: MV Bill

Música: O bagulho é doido

Álbum: Falcão: o bagulho é doido (2006) Faixa 02

Sem cortes

Liga a filmadora e desliga o holofote

Se quer me ouvir, permaneça no lugar

Verdades e mentiras, tenho muitas pra contar

Doideira

Fogueira à cada noite pra aquecer

O escuro da madruga que envolve o meu viver

Não sou você...

Também não sei se gostaria ser

Ficar trepado no muro

Se escondendo do furo

Não me falta orgulho

Papo de futuro

É nós

Que domina a cena

Bagulho de cinema

A feira tá montada, pode vir comprar

Eu vendo uma tragédia

Cobro dos comédias

16 é a média

Deus tá vendo, eu acredito

Sou detrito

Que tira o sono do doutor

Seria o Jason, se fosse um filme de terror

Desembaça

Saia na fumaça

O bonde tá pesado e você tá achando graça

Tipo peste

Tá no sudeste, tá no nordeste, no centro-oeste

Teu pai te dá dinheiro

Você vem e investe

No futuro da nação

Compra pó na minha mão

Depois me xinga na televisão

Na sequência vai pra passeata levantar cartaz

Chorando e com as mãos sinalizando o símbolo da paz

O bagulho é doido

Não tenta levar uma

Não vem pagar de pã, se não for porra nenhuma

Deus ajuda

Que eu fique de pé no sol e na chuva

138

A pista tá uma uva

Pretendo ser feliz

Com um rádio transmissor

E uma glock numa Honda Bizz

Um trago no cigarro

Um gole na cerveja

E sou destaque no outdoor que anuncia a revista 'VEJA!'

"Se eu morrer.. nasci outro que nem eu ou pior, ou melhor..."

"Se eu morrer eu vou descansar.."

"Ah, sonhar! Nessa vida não dá pra sonhar não..."

"Amanhã não sei nem se eu vou tá aí"

Veja que ironia

Que contradição

O rico me odeia e financia minha munição

Que faz faculdade

Trabalha no escritório

Me olha como se eu fosse um rato de laboratório

Vem de sheroki*

Vem de kawazaki

Deslumbrado com a favela

Como se estivesse vendo um parque

De diversões

Se junta com os vilões

Se sente por um instante

Ali Cuzão e os 40 ladrões

Se os homi chegasse

E nós dois rodasse

Somente o dinheiro iria fazer com que eu não assinasse

Pra você?

Tá tranqüilo

Nem preocupa

Sabe que vai recair

Sobre mim a culpa

Me levam pra cadeia

Me transformam em detento

Você vai para uma clínica tomar medicamento

Imagine vocês

Se eu fizesse as leis

O jogo era invertido

Você que era o bandido

Seria o viciado, aliciador de menor

Meu sonho se desfaz igual o vento leva o pó

Big Brother

Da vida de ilusão

Não se ama

Se odeia

Se precisar, mandamos pro paredão

Com bala na agulha

Cada um na sua

139

O meu dinheiro vem da rua

Um bom soldado nunca recua

A droga que você usa é batizada com sangue

É mais financiamento

Mais armas

Bang-bang

Corre igual um porco

Para não ficar 'sós'

Fica todo arrepiado quando ouve alguém falar que É NÓS

"É muito esculacho nessa vida..."

REFRÃO:

Já vou ficar no lucro se passar de 18

Depois que escurece o bagulho é doido

O mesmo dinheiro que salva também mata

Jovem com ódio na cara

Terror que fica na esquina

Esperando você chegar

Se passa de 18

Depois que escurece o bagulho é doido

O mesmo dinheiro que salva também mata

Já vem com um monte na cara

Terror que fica na esquina

Esperando você...

Aos 47 você vem falar de paz

Tem um maluco que falava disso há 15 anos atrás

A bola do mundo me deixou na mira dos policiais

Sou notícia sem ibope na maior parte dos jornais

Quem sou eu

Eu não sei

Já morri

Já matei

Várias vezes eu rodei

Tive chance e escapei

E o que vem?

Eu não sei

Talvez, ninguém saiba

Eu penso no amanhã e sinto muita raiva

RELAXA..

Não tenta levar uma

Se não vou ter que dar baixa

É o certo pelo certo

O errado não se encaixa

Não usa faixa

Idade certa

Cidade Alerta

140

O alvo certo, a isca predileta

Tipo atleta

Correndo pela esquina

Assuta o senhor

Mas, impressiona a mina

Se liga

Que legal

Meu território é demarcado

Eu não atravesso a rua principal

Bacana sem moral

Liga pro jornal e fala mal

Viu a foto do filhinho na página principal

Não

Como vitima

Como marginal

Fornecia pros playboys e vendia Parafal

Mesmo assim eu continuo sendo o foco da história

Momentos de lazer eu carrego na memória

Se a chapa esquentar

O fogos Detonar

Depois que amenizar

Alguém vem pra me cobrar

Você sabe o que isso representa

Seu vicio é que me mata

Seu vicio me sustenta

Antes de abrir a boca pra falar demais

Não esqueça

Meu mundo você é quem faz..

"Tenho uma irmã de 5 anos.. de 6 anos.. fico pensando se eu morrer assim, mané.. minha

irmãzinha vai ficar como... triste!"

REFRÃO:

Já vou ficar no lucro se passar de 18

Depois que escurece o bagulho é doido

O mesmo dinheiro que salva também mata

Jovem com ódio na cara

Terror que fica na esquina

Esperando você chegar

Se passa de 18

Depois que escurece o bagulho é doido

O mesmo dinheiro que salva também mata

Jovem com ódio na cara

Terror que fica na esquina

Esperando você...

141

Anexo D

Letra de RAP: Realidade

Grupo: Jigaboo

Álbum: As Aparências Enganam (1999) Faixa 16 – Gravadora Virgin

Refrão (2 vezes)

Chega perto de mim

Me deixa falar

Sempre de muito longe

Vem me condenar

Brasil parece que não melhora nunca

2 manos Cáos e Ks, e a luta continua

sociedade nos condena, não nos ajuda

mas Ks não esquenta a paciência,

pode crê somos nóis anti-sistema

televisão explora la fora ninguém percebe

rebelião deu ibope virou manchete

tropa de choque entrou com toda maldade

somos presas fáceis da sociedade

PMC, Deco, Suave estão ligados que é verdade

de mudar todos tem capacidade

novela sonho do pobre o mundo que não existe

playboy com tudo na mão acha graça no que assiste

eles tem tudo na mão, não vivem como a gente vive

não precisam roubar como pobre de honestidade

então venha pra cá e levem pra fora a verdade

142

Refrão (2vezes)

Chega perto de mim

Me deixa falar

Sempre de muito longe

Vem me condenar

Rebelião ibope na televisão

muda de canal não aguento mais ver isso não..

é sempre assim, bem assim que acontece

ou você condena, ou você esquece

gente que nunca correu atrás de nada

e tem o que quer sempre de mão beijada

classificando a mulecada de marginal....

11,12,13 anos acha que é normal

coloca dificuldade, em todos os sentidos

diz que a maioria ali dentro tá perdido

insisto a maioria não é todo mundo

gente desqualificada ta cuidando do assunto

e inocente que seja apenas esse ou aquele...

não interessa tem mais é que olhar por ele,

ou será que aqui pobre que não canta ou joga futebol

nunca terá um lugar ao sol.....

Refrão (2vezes)

Chega perto de mim

Me deixa falar

Sempre de muito longe

Vem me condenar

Enquadramento às 08:00 horas o que vou fazer agora?

poucos manos é que vão embora,

a violência é pra quem vai ficar

juro que não entendo esse lugar

em minha vida quero dar outro sentido

143

muitos como eu não queria ser bandido

quando tem motivo de rebelião

aqui ninguém presta só tem ladrão

Quero mudar este pensamento como você tá vendo

muitos tem futuro, muitos tem talento

se tivesse alguma ocupação

a garotada não estaria nessa não

este lugar escuro nada acontece

fico feliz quando o dia amanhece

a justiça não me deixa falar

e sem ouvir a minha voz

me interna aqui nesse lugar

Refrão (2 vezes)

Chega perto de mim

Me deixa falar

Sempre de muito longe

Vem me condenar

Como deve ta lá fora vários manos a mil

tem mano da Vila Edi de também do Jd. Brasil

aqui dentro da prisão vários mano ciente

tem quebrada Itaquera e Cidade Tiradentes

cada um convive aqui do jeito que pode

tem zona oeste , zona leste, zona sul, e zona norte

esse é o sofrimento sentimento de dor,

também tem vários mano que mora no interior

Quem liga esse RAP é o mano da Bela Vista

mando um salve no momento pra baixada Santista

a verdade é dita não deixe pra depois

quem liga esse RAP é 16 e a UE-2

144

também tem vários mano que ta na UE-12

tem mano da UE13, e também da UE-14

tem várias unidades a verdade que comove

tem o UE-5, tem o UE-15, e a UE-19

tem a 16 essa verdade que é

são algumas unidades da Febem Tatuapé

Refrão (2 vezes)

Chega perto de mim

Me deixa falar

Sempre de muito longe

145

Anexo E

Letra: Infinito particular

Autoria: Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown

Álbum: Infinito Particular (2006) – Faixa 1

Eis o melhor e o pior de mim

O meu termômetro, o meu quilate

Vem, cara, me retrate

Não é impossível

Eu não sou difícil de ler

Faça sua parte

Eu sou daqui, eu não sou de Marte

Vem, cara, me repara

Não vê, tá na cara, sou porta bandeira de mim

Só não se perca ao entrar

No meu infinito particular

Em alguns instantes

Sou pequenina e também gigante

Vem, cara, se declara

O mundo é portátil

Pra quem não tem nada a esconder

Olha minha cara

É só mistério, não tem segredo

Vem cá, não tenha medo

A água é potável

Daqui você pode beber

Só não se perca ao entrar

No meu infinito particular